rhdpp 1 diogo geraldes.pdf

40
REVISTA DE HISTÓRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLÍTICO INSTITUTO DE HISTÓRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLÍTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA N.º 1 | 2010 235 Trabalhos de alunos do 1.º ciclo Relação da Igreja Católica e Portugal no Pós 25 de Abril - Paradigma Fiscal no quadro comparativo das demais confissões religiosas Diogo Geraldes 1 Sumário Nota Preliminar I. Considerações históricas 1. Igreja Católica em Portugal na Idade Média 2. Igreja Católica e Portugal nos alvores do protestantismo - Idade Moderna 3. A Igreja Católica e Portugal na aurora do constitucionalismo liberal 4. O grave conflito entre Portugal e a Igreja na Proclamação da República da 1910 5. O ambiente do estatuto jurídico de uma nova política religiosa 6. A Concordata de 1940: Antecedentes e características 7. O Concílio Vaticano II. A mudança do paradigma da Igreja 8. As implicações fiscais presentes na Concordata de 1940 II. Relação da Igreja Católica e Portugal no Pós 25 de Abril 9. A Constituição de 1976: a Constituição Democrática 10. O Princípio da igualdade, a igualdade na tributação. A capacidade contributiva 11. Benefícios fiscais e isenções e a exclusão de tributação 12. A Concordata e a ordem Constitucional Portuguesa à luz da subjectividade da Santa na Comunidade Internacional 13. Estatuto fiscal da Igreja Católica presente na Concordata e comparação com o Estatuto fiscal presente na Lei 16/2001 (LLR) Conclusão 1 [email protected]

Upload: claudio-souza

Post on 25-Sep-2015

15 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    235

    Trabalhos de alunos do 1. ciclo

    Relao da Igreja Catlica e Portugal no Ps 25 de Abril -

    Paradigma Fiscal no quadro comparativo das demais

    confisses religiosas

    Diogo Geraldes1

    Sumrio

    Nota Preliminar

    I. Consideraes histricas 1. Igreja Catlica em Portugal na Idade Mdia 2. Igreja Catlica e Portugal nos alvores do protestantismo -

    Idade Moderna

    3. A Igreja Catlica e Portugal na aurora do constitucionalismo liberal

    4. O grave conflito entre Portugal e a Igreja na Proclamao da Repblica da 1910

    5. O ambiente do estatuto jurdico de uma nova poltica religiosa

    6. A Concordata de 1940: Antecedentes e caractersticas 7. O Conclio Vaticano II. A mudana do paradigma da Igreja 8. As implicaes fiscais presentes na Concordata de 1940

    II. Relao da Igreja Catlica e Portugal no Ps 25 de Abril 9. A Constituio de 1976: a Constituio Democrtica 10. O Princpio da igualdade, a igualdade na tributao. A

    capacidade contributiva

    11. Benefcios fiscais e isenes e a excluso de tributao 12. A Concordata e a ordem Constitucional Portuguesa luz

    da subjectividade da Santa S na Comunidade

    Internacional

    13. Estatuto fiscal da Igreja Catlica presente na Concordata e comparao com o Estatuto fiscal presente na Lei 16/2001

    (LLR)

    Concluso

    1 [email protected]

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    236

    Nota Preliminar

    Por mais infinita que seja a delimitao espacial de um

    trabalho necessrio faz-la. Aparar o que suprfluo, que no

    possibilita a descoberta ou que tolha essa pretenso por caminhos

    tortuosos que no raras vezes se sucedem. Com a delimitao

    sugerida pelo Professor, o presente trabalho no poder abarcar

    algumas matrias importantes mas que por imperativo espacial

    no podem ser abordados.

    O trabalho centrar-se- nas relaes que a Santa S e

    Portugal estabeleceram aps o 25 de Abril de 1974, focando-se

    num dos domnios mais delicados as implicaes fiscais. No

    prosseguimento deste estudo no possvel estabelecer o regime

    fiscal da Igreja Catlica sem compar-lo com o regime vigente

    para as demais confisses religiosas.

    Contudo, para se apreender a projeco que a religio tem

    no seio da cultura portuguesa necessrio retroceder na Histria,

    expondo os momentos mais significativos que marcaram a relao

    entre a Igreja Catlica e Portugal desbravando os filamentos seculares

    e culturais 2 da Nao Portuguesa.

    Releva para o presente trabalho a justificao da

    Subjectividade Internacional da Santa S, na medida em que

    conduz a um diferenciado face s restantes confisses religiosas.

    Dedicar-se- grande acuidade aos momentos histricos

    conducentes a alteraes importantes que iro afluir ao sculo

    XX, sem descurar a aluso da ligao religiosa desde o bero da

    nacionalidade. Os momentos que serviro de mote ao andamento

    histrico sero:

    Evoluo histrica. Lei de Separao de 1911, resultado da Proclamao

    da Repblica.

    Concordata de 1940 Concilio Vaticano II Constituio de 1976 Lei de Liberdade Religiosa Concordata de 2004 Como o ttulo permite descortinar, a Histria serve de

    antelquio preparatrio explanao do mago do trabalho, o

    paradigma fiscal no quadro comparativo das demais confisses

    religiosas. Isto , far-se- uma anlise ao regime fiscal da Igreja

    Catlica e das demais confisses religiosas, confrontando com a

    2 A expresso de Maria Lusa DUARTE, Direito da Unio Europeia e das

    Comunidades Europeias, vol. I, tomo I, ed. Lex, 2001,p. 76

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    237

    Lei Fundamental luz dos princpios vigentes na ordem jurdica

    portuguesa.

    Como este trabalho elaborado no 2 ano do plano de

    estudos, ainda no foi leccionada a disciplina de Direito Fiscal,

    por esse facto no ser abordado numa vertente puramente fiscal.

    I. Consideraes histricas

    1. A Igreja Catlica em Portugal na Idade Mdia

    A religio Catlica, desde o bero da nacionalidade, est

    intimamente ligada cultura portuguesa. No indiferente o facto

    de a Pennsula Ibrica ter pertencido ao Imprio Romano. Este,

    devido expanso que atingiu, tornou-se demasiado grande e

    vasto para ser controlvel, tendo perto da sua capitulao em 476

    d.C., a Europa quase dominada na sua totalidade e com um

    controlo vasto do Oriente3.

    Com a queda do Imprio Romano do Ocidente, deixou de

    existir uma figura no plano internacional4 que fosse fonte de

    concrdia e lograsse de legitimao unanimemente aceite. Emerge

    a figura do Romano Pontfice5, que ser durante toda a Idade

    Mdia o vrtice da comunidade dos Reinos6 Cristos, a designada

    Respublica Christiana.

    Aps a Independncia do Reino de Portugal face ao Reino

    de Castela, que se consumou materialmente em 11437, s em 1179

    foi formalmente exarada a sua existncia jurdico-constitucional

    num acto do Papa Alexandre III, a Bula Manifestus Probatum.

    3 Vide, Sebastio CRUZ, Direito Romano (Ius Romanum), 4 edio, vol, I,

    Coimbra Editora, Coimbra, 1969, pp 80e ss. 4 Plano internacional circunscrito ao antigo Imprio Romano, com poucas

    excepes. 5 Aps um perodo de terrveis perseguies aos Cristos pelo Imprio

    Romano, o Imperador Constantino consagra a religio Catlica como religio

    oficial do Imprio. notrio que esta inverso de posicionamento em relao

    aos Cristianismo reveladora de uma religio de convenincia que o

    Imprio utilizar na sua ambio tentacular. Vid. Salvatore CALDERONE,

    Constantino e il Cattolicesimo, Florena, 1962, pp 125 192 e Marla SORDI,

    Storia di Roma. Il Cristianesimo e Roma, Bolonha, 1965, pp 375 396. 6 Contra a designao de Reino, postulando a existncia de Estados desde a

    Grcia Antiga, Vide Diogo FREITAS DO AMARAl, Histria das Ideias

    Polticas, 5 reimpresso da edio de 1998, vol. I, Almedina, passim. 7 Ano da assinatura do tratado de Zamora, entre D. Afonso Henriques e

    Afonso VII de Leo e Castela, a 5 de Outubro de 1143.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    238

    Neste acto est patente a auctoritas do Papa no plano

    jurdico-constitucional8 e espiritual j que, segundo a mxima

    Paulina nulla potestas nisi a Deo9, sendo o Papa o vigrio de Cristo

    na terra. Cada Monarca teria de ser, como nos diz Frei Heitor

    Pinto, imitador de Cristo ornado de todas as virtudes, abrasado

    no fogo da divina caridade, para que ensine e governe no

    somente com leis e palavras mas com obras e exemplos10. Ou

    seja, verifica-se que na Idade mdia a teleologia do poder ser

    baseada na realizao da justia e do bem comum. O monarca

    visto como um pai que deve tratar os seus sbditos (filhos), com

    misericrdia e rectido vertidas na lei e nos bons costumes.11

    Do outro lado do prisma, ou melhor, na ordem social mais

    terrena, povo, a religio o motor de muitas comunidades no que

    concerne ajuda e esclarecimento de questes, verbi gratia, ensino, e

    tarefas administrativas, onde, com parcos recursos humanos o Rei

    no tinha meios para suprir as necessidades da populao onde

    por vezes a nica pessoa que conheciam era um clrigo.12

    A religio marcava fortemente quase todas as actividades

    quotidianas, sendo praticamente transversal a todas as camadas da

    populao, formando um corpo indivisvel onde o Rei era a

    cabea que comandava todos os membros.13 Relevam as posies

    aristotlica e tomista sobre a natureza do regime, a defesa e

    teorizao da monarquia apresentado o reino de Deus como

    arqutipo poltico14. Esse comando, terico, exercia-se na prtica

    8 Mesmo antes da existncia Constituies formais pode justificar-se a

    existncia de Constituies no escritas onde exista um poder poltico, neste

    caso de legitimao Divina. Vide. Paulo OTERO, Instituies Polticas e

    Constitucionais, vol. I, Almedina, Lisboa, 2007, passim. 9 Para o desenvolvimento das doutrinas justificativas do poder, vide RUY DE

    ALBUQUERQUE/MARTIM DE ALBUQUERQUE, Histria do Direito

    Portugus, 12 edio, vol. I, Edio Sintra, Rio de Mouro, 2005, pp. 459- 474. 10 Cfr. Frei Heitor PINTO, Imagem da vida Crist. Dilogo da Justia, vol I, p.

    160. 11 Crf. Antnio BARBAS-HOMEM, A lei da Liberdade, vol. I, Principia,

    Lisboa, 2001, pp 122-131. 12 As freguesias so um exemplo paradigmtico da influncia fundamental da

    Igreja Catlica na modulao da cultura da comunidade, Vide. Diogo

    FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 3

    edio, Lisboa, 2006, pp. 509 520. 13 O denominado organicismo e paternalismo poltico. Vide. Antnio

    BARBAS-HOMEM, op cit. pp. 26 e 27. 14 Extrado da Cristologia, onde todo o Povo de Deus comunga com o Corpo

    mstico de Cristo, Cfr. Catecismo da Igreja Catlica, Grfica de Coimbra, 2

    edio, Coimbra, ponto 218, Vide. Martim DE ALBUQUERQUE, O poder

    poltico no Renascimento Portugus, ISCPU, Lisboa 1968, pp. 47-62, 123-135 e 205-

    235.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    239

    pela unio de todos religio (hodiernamente seria uma religio

    de Estado). Factor de coeso territorial, a religio permitiu

    congregar diversos ncleos populacionais da poca da ocupao

    Romana. profunda a importncia ao nvel scio-cultural atravs

    da dinamizao dos centros de estudo, claustrais, episcopais e a

    prpria Universidade. No obstante todos os abusos reportados

    ao clero, estes devem ser objecto de uma interpretao histrica,

    devido complexidade de laos entre as diversas ordens15 e as

    prerrogativas concedidas Igreja eram o reflexo (na maioria das

    vezes do papel desempenhado pela mesma na comunidade).16

    2. A Igreja Catlica e Portugal nos alvores do protestantismo Idade Moderna.

    na transio para a Idade Moderna que a Europa sofre

    profundas transformaes religiosas, fruto dos novos desafios

    lanados no mbito dos descobrimentos, com a redefinio das

    abordagens evangelizadoras e do estatuto jurdico dos fiis v.g

    ndios.17 Mas com a reforma protestante que a Europa deixar

    de militar na unidade teolgico-poltica. o fim da Respublica

    Christiana.

    Com o dealbar da navegao por outros povos (Ingleses,

    Espanhis e Holandeses), surge um conflito latente que ficar

    marcado pela questo do mare clausum.

    Neste, mais uma vez, salienta-se a postura de cariz catlico

    da denominada Escola Espanhola18 na questo supracitada.

    Vislumbra-se, nesta poca, o nascimento do Estado

    como paradigma da poca Moderna, que conduzir supremacia

    do Soberano face ao Papa. As guerras religiosas, a teorizao do

    Estado, a invocao da Razo de Estado, entre outras mudanas

    15 Historicamente, Nobreza, Clero e Povo. 16 Cfr. RUY DE ALBUQUERQUE/MARTIM DE ALBUQUERQUE, op

    cit, pp 24 32. 17 O verdadeiro confronto de civilizaes ocorre com os descobrimentos, Cfr,

    Antnio BARBAS-HOMEM, op cit, p 140. 18 Composta por Francisco de Vitria, Domingo de Souto e Francisco de

    Suarez. Para um conhecimento aprofundado do da querela jurdica poltica e

    religiosa entre dois hemisfrios do Cristianismo. O Catolicismo e o

    Protestantismo. Vide. Paulo MERA, Um aspecto da Questo Hugo Grcio

    Serafim de Freitas (condio jurdica dos mares no Direito Romano) in Boletim da

    Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, II, 1916, pp. 464 e ss.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    240

    no pensamento europeu maioritrio conduziro igualdade

    (formal) entre os Estados19,20.

    Importa realar a fidelidade de Portugal Doutrina

    catlica. O exemplo paradigmtico encontra-se na denominada

    Segunda Escolstica que tinha em Portugal grandes defensores21.

    Face reforma protestante presente em grande parte da Europa,

    desenha-se em Portugal uma corrente que pugnar pelos valores

    da tradio catlica alicerados na concepo da moral da

    poltica22. A contra-reforma edificada com auxlio de muitos

    telogos portugueses que adaptam a moralidade crist medieva s

    novas concepes teolgicas do renascimento, nomeadamente

    pela afirmao da subordinao ao poder do Romano Pontfice.

    margem das querelas doutrinrias a Igreja continuava a

    ter o domnio exclusivo da conformao moral das gentes,

    culminando, negativamente, no Santo Ofcio23. Foi a face que

    transpareceu nesta poca da Igreja em Portugal, todavia

    desenvolveu-se um trabalho ao nvel assistencial com a amplitude

    da Santa Casa da Misericrdia abarcando praticamente toda a rede

    hospitalar portuguesa24.

    A subordinao ao Papa pelo poder poltico no foi

    sempre a tnica dominante nas relaes internacionais. A questo

    dos jesutas fomentada pelo Marqus de Pombal apenas um dos

    exemplos na tentativa de afirmao da Igreja nacional face Santa

    S25.

    19 Martim DE ALBUQUERQUE, O poder poltico no Renascimento Portugus, pp.

    150 a 213. 20 Sem esquecer a importncia fulcral da Paz de Vesteflia (1648), Vide por

    todos, Jorge MIRANDA, Curso de Direito Internacional Pblico, Principia, 3

    edio, 2006, Estoril, pp. 9 14, MARTIM DE ALBUQUERQUE, OS

    Descobrimentos e os Direitos do Homem, in Jornal de Letras. 21 Tais como D. Jernimo Osrio, Molina, Francisco Suarez, pertencentes

    escola peninsular 22 Entre outros autores, destaca-se o Bispo de Silves, D. Jernimo Osrio e

    Barbosa de Homem. Crf. Discursos de la Iuridica y verdadera RAzon de Estado,

    Contra a fomentacion por mdios ilcitos, p. 263 23 No raras vezes manipulada pelo poltico no sentido de eliminar os

    opositores e inconvenientes para a estabilidade Real. Vide., Teresa

    BERNARDINO - Sociedade e atitudes mentais em Portugal (1777-1810).: Imprensa

    Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1985, p. 100 e ss. 24 Cfr. Laurinda, ABREU, Padronizao Hospitalar e Misericrdias: apontamentos

    sobre a reforma da assistncia pblica em Portugal. Revista Portuguesa de Histria, 1996,

    31 (2), pp. 287-303. 25 Cfr. Sergio Ferlito, La lege Portoghuese di Libert Religiosa in separata da revista

    da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLIII n 2,

    Coimbra Editora, 2002, Lisboa, pp. 1402- 1406.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    241

    A aco da Igreja era ampla, abarcando quase toda a

    sociedade portuguesa. At ao despontar do liberalismo em

    Portugal as relaes entre os dois Estados (Santa S e Portugal)

    so pautadas pelo estabelecimento de acordos que visam quase

    sempre estabelecer obrigaes recprocas decorrentes da aco do

    padroado em Portugal e posteriormente nos territrios alm-

    mar26.

    Digno de nota a celebrao de apenas duas concordatas

    durante as Constituies de cariz liberal (excluindo a Constituio

    de 1911) 27. Com as Constituies de pendor formal, foram

    positivadas normas ainda que incipientes sobre a regulamentao

    das relaes entre o Estado e a Igreja28.

    3. A Igreja Catlica e Portugal na aurora do constitucionalismo liberal

    No de somenos importncia o facto de a Igreja ser um

    pilar fundador do Ancien Regime, correspondente ao pensamento

    da unidade axiolgica edificada em torno do ideal cristo. A

    nacionalidade confunde-se com a Igreja Catlica e o esprito

    cristo est imerso na cultura portuguesa. Logo na transio para a

    Monarquia Constitucional deram-se passos no sentido de no

    haver um corte repentino no passado de comunho entre a Igreja

    e o Estado29. Neste sentido haver, em Portugal uma relativa

    26 Houve um total de 16 acordos (concrdias) at primeira constituio de

    1822. Para um aprofundamento do contedo dos acordos, Vide. Estudos sobre a

    nova Concordata, Santa S Repblica Portuguesa 18 de Maio de 2004, Universidade

    Catlica Editora, 2007, Lisboa, pp 357 - 359 27 No obstante ser classificada como a ltima constituio liberal, para as

    relaes entre a Igreja e Portugal, esta ser abordada autonomamente visto ser

    a matriz da separao intempestiva entre Igreja e Estado que estar na base da

    Concordata de 1940, vid. Infra 4 28 Uma excepo a Concordata de 1848, que reatou as relaes entre

    Portugal e a Santa S firmada por D. Maria II aps um grave conflito

    perpetrado pelo Ministro da Justia no Decreto de 30 de Maio de 1834 que

    visava extinguir todos os conventos e ordens religiosas. Verifica-se uma tenso

    permanente entre as correntes pr-modernas e tradicionalistas no

    constitucionalismo oitocentista em grande parte devido tentativa de

    controlar jurisdicionalmente a Igreja, por parte do Estado. Cfr, Sobre este

    ponto, Jnatas MACHADO, Liberdade religiosa numa comunidade constitucional

    inclusiva Dos direitos da verdade aos direitos dos cidados, Coimbra Editora, 1996,

    Coimbra, pp. 112 e ss. 29 Face aos ideais liberais tinha perdido relevncia a comunho poltica e

    religiosa do Estado e da Igreja.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    242

    secularizao da sociedade com preponderncia para afastar do

    plano poltico a Igreja30.

    A revoluo liberal ps em causa o regalismo e a ausncia

    de igualdade entre os diversos estratos da comunidade. O

    pensamento liberal radicava, sobretudo, na revoluo francesa que

    viria a ter um forte pendor anti-clerical na medida em que,

    lancetava o passado sem deixar qualquer marca de identificao

    com o presente31.

    Altera-se o modo de observar a origem do Poder. Em

    Portugal, opta-se por enveredar pela via moderada, que conduzir

    ao constitucionalismo liberal32. Contudo opera-se o figurino de

    origem do Poder; este j no se encontra apenas na legitimidade

    Papal mas sim na Nao (art. 121. C. 1822). Acentua-se o

    carcter derivado da autoridade do Rei, resultando o seu poder da

    Nao. Ensaia-se, explicitamente por limitao negativa a

    proibio de ingerncia do Rei na esfera judiciria (Cfr. 124. C.

    1822) 33. Em Portugal, consagra-se a religio catlica como religio

    de Estado em sede Constitucional. A monarquia constitucional

    influenciada pelo iderio liberal mas, sem descurar a forte tradio

    e implementao da religio catlica no seio da comunidade,

    concede alguma tolerncia para as demais confisses, mas

    proclama a religio Catlica como religio de Estado, (o

    Prembulo, o art. 25. e o art. 237. so exemplos paradigmticos)

    34.

    Concilia-se a posio dominante da Igreja em toda a

    sociedade com os novos vectores liberais. As restantes

    Constituies da Monarquia liberal (1826 e 1838) tinham de

    comum declararem a religio catlica apostlica de rito romano,

    religio oficial do Estado (art. 6. da C. 1836 e art. 3. da C. 1838).

    A distino, nas diversas Constituies, operava-se apenas no

    modo de manifestao da religio perante as pessoas. 30 Cfr, Jnatas MACHADO, op cit, pp. 92 95. 31 de relevar para assuno de uma liberdade no plano religioso assente na

    igualdade entre os homens, vide art. 1. da Declarao de Direitos do Homem

    e do Cidado. Os homens nascem e so livres e iguais em direitos. 32 Pelas discusses travadas nas Cortes Constituintes e pela imprensa da poca

    possvel descortinar trs tendncias do modelo poltico-constitucional a

    eleger: O constitucionalismo ingls, o modelo francs, no sector mais radical,

    e os gradualistas, que perfilhavam o figurino da Constituio de Cdis de

    1812. Cfr, Jos GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da

    Constituio, Almedina, 7 edio ( 4 Reimpresso), 2003, p. 129. 33 Cfr, Jos GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 132 e 133. 34 As referncias encontram-se logo Santssima Trindade alude um modo

    inquestionvel Igreja Catlica, pois esta estabeleceu-a como dogma desde o

    Conclio de Constantinopla em 553. Cfr. Catecismo da Igreja Catlica, op. cit., p.

    72.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    243

    Apesar de, aparentemente, a consagrao do catolicismo

    como religio de Estado estabelecer um regime favorvel de quase

    exclusividade, este retirava qualquer margem de manobra

    Igreja no sentido da intromisso do Estado no seio da

    organizao e actividade administrativa ser um limite prpria

    actuao livre da Igreja. Sendo considerada uma religio oficial,

    eram concedidos Igreja uma srie de privilgios e Coroa um

    conjunto de prerrogativas que, mais do que favorecer,

    dificultavam a liberdade e a autonomia da aco da Igreja. Se o

    culto e o clero eram subvencionados (embora mal) pelo

    oramento de Estado, e aos bispos era reconhecida uma particular

    capacidade de representao poltica como membros vitalcios da

    Cmara dos Pares do Reino, Igreja, era retirada liberdade de

    exerccio com o beneplcito rgio35.

    Saliente-se o facto de este tratamento diferenciado s ter

    sido exequvel devido existncia de uma margem muito residual

    de crentes de outros credos.

    4. O grave conflito entre Portugal e a Igreja na Proclamao da Repblica da 1910

    A proclamao da Repblica foi acompanhada de um

    gravssimo conflito religioso, alicerado num anticlericalismo de

    natureza jacobina com fortes influncias do positivismo (jacobino)

    ideolgico do Partido Republicano. Este esprito presidiu

    elaborao da Constituio de 1911 (C. 1911), apesar de no estar

    explicitamente expresso.36

    O cerne do conflito surge com a Lei de Separao de 1911,

    por meio da qual se verifica uma drstica separao entre o

    Estado e a Igreja37. Pode defender-se que esta lei era filha

    ilegtima da idntica Lei francesa de Combes (visceralmente

    35 Indispensvel publicao e circulao dos seus documentos. Eram ainda

    cerceadas outras liberdades com as contnuas ingerncias do Estado na

    organizao e expresso da vida em Igreja. 36 A liberdade religiosa, de conscincia e a igualdade poltica e civil de todos os

    cultos estava apenas consagrada formalmente, (arts. 3., 4. e 5.,

    respectivamente). Os princpios constantes desta Constituio rapidamente se

    transformaram em letra morta. Assim, por todos, Jnatas MACHADO,

    op.cit., pp. 120 e ss, Jorge MIRANDA, A Constituio e a Concordata: Brevssima

    Nota, in Lusitania Cannica, Estudos sobre a nova Concordata. op. cit., pp.

    101-112; JORGE MIRANDA, O princpio da igualdade e tributao dos ministros de

    culto, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Joaquim Moreira da

    Silva Cunha, Coimbra Editora, Lisboa, 2005. pp. 437-463. 37 Cfr. Sergio FERLITO, op. cit., p. 1410.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    244

    jacobina e anticlerical) 38. Ou seja, verifica-se um recrudescimento

    dos valores mais radicais herdados da Revoluo Francesa39.

    Seguiu-se um perodo difcil de declarado conflito institucional

    que contribuiu em larga medida para o descrdito da primeira

    Repblica e havia de conduzir revoluo de Maio de 1926 e ao

    consequente Governo ditatorial40.

    Um curioso relato que contrasta fortemente com o

    discurso oficial do regime republicano surge de um escritor

    espanhol, Unamuno, que na sua viagem por Portugal dois anos

    antes da revoluo de 1910, caracteriza o povo portugus como

    profundamente catlico nas suas mltiplas expresses msticas, do

    popular ao pseudo-erudito41

    5. O ambiente do estatuto jurdico de uma nova poltica religiosa

    Com a aprovao da Constituio de 1933, inaugura-se um

    novo captulo nas relaes entre a Igreja e Portugal, tendo a

    Constituio encerrado um cariz compromissrio com forte

    pendor totalitrio42. A questo religiosa favoreceu a adeso por

    parte dos grupos catlicos ao ideal corporativista e nacionalista do

    regime de Salazar que canalizaram o seu descontentamento face

    primeira Repblica43,44. A Liberdade Religiosa foi consagrada

    38 Assim, D. Eurico Dias NOGUEIRA, A concordata de 1940: Contributo para a

    paz em Portugal e aspectos a modificar in Lusitania Cannica, Relaes Igreja

    Estado em Portugal, Universidade Catlica Editora, Lisboa, 2002, p. 347. 39 Com uma posio oposta vide Jnatas MACHADO, op cit, passim 40 Sendo certo que houve alguma atenuao do regime de suspeita e de

    desrespeito face Igreja a partir da primeira guerra mundial. Entre outros. o

    Presidente Sidnio Pais inverteu tenuemente a marcha e restabeleceu as

    relaes diplomticas com a Santa S (promovidas pelo cientista-poltico Egas

    Moniz), Cfr D. Eurico Dias NOGUEIRA, op cit., p. 248. 41 Cfr D. Carlos AZEVEDO (coordenao), Histria religiosa de Portugal, vol.

    III, Circulo de Leitores, Rio de Mouro, 2002, pp. 148 e 149. 42 H um trplice compromisso entre o constitucionalismo liberal, as

    tendncias polticas de Salazar Nacionalismo poltico e autoritarismo. Assim

    Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo I, Coimbra Editora, 3

    edio, 2003, Lisboa, pp. 298 304. 43 Paulo OTERO, A concepo unitarista do Estado na Constituio de 1933, in

    Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pp. 415 434, Sobre a

    Constituio de 1933 em geral Vide, Paulo OTERO, Legalidade e Administrao

    Pblica. O sentido da vinculao da Administrao juridicidade, Almedina, Coimbra,

    2003, pp. 110 132; 355 357; 424 426; 567 569. 44 Para a construo do corporativismo necessrio atentar s Encclicas:

    Rerum Novarum, de 1891, e Quadragesimmo Anno, de 1931, onde se propes um

    via intermdia entre o socialismo e o capitalismo.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    245

    amplamente no s na sua vertente individual (art. 8. da

    Constituio de 1933), como na prpria liberdade de organizao

    das confisses e separao das Igrejas do Estado, inscrito numa

    constituio portuguesa pela primeira vez (art. 45. e 46.,

    respectivamente), mas que praticamente no foram cumpridos.

    A manipulao urdida pelo regime permitiu que o

    fenmeno religioso fosse aproveitado como elemento de

    estabilizao social, nacionalizando com aproveitamento poltico,

    o carcter conservador dos portugueses.

    Apesar de formalmente separadas, mantinham-se em

    estreita colaborao moral, sem o distanciamento requerido.45

    6. A Concordata de 1940: Antecedentes e caractersticas.

    A Concordata surge num ambiente de aproximao

    recproca em regime de separao concordatado. Ao estabelecer

    um regime favorvel para a Igreja, o Estado poderia controlar a

    sua liberdade, j que, tendo a Igreja o controlo dos crentes, mais

    possibilidades tinha o regime de permanecer no poder. A Igreja

    foi ainda mais manietada aps a reviso Constitucional de 1951,

    devido incluso (art. 45., CRP) da designao Religio da

    Nao Portuguesa46. Foi um passo atrs que afastou o tratamento

    atribudo pelo Estado Igreja Catlica e s demais confisses

    religiosas, na medida em que as relaes entre Igreja e Estado

    seriam objecto de uma conveno internacional (Concordata),

    enquanto com as demais confisses no catlicas apenas se

    estabeleceria acordos para regular as manifestaes extrnsecas

    dos cultos47. Alm disso a personalidade jurdica das associaes

    e organizaes catlicas continuava a ser reconhecida ope legis, e as

    45 Assim, D. Carlos AZEVEDO, Momentos e temas em confronto nas relaes Igreja -

    Estado em Portugal in op. cit, pp. 9 14; Manuel BRAGA DA CRUZ, A

    Concordata com a Santa S cinquenta anos depois, Communio, 1991, pp. 272 280 e

    Jorge MIRANDA, O princpio da igualdade e tributao p. 448. 46 Apesar do parecer negativo da Cmara Corporativa, elaborado por Marcello

    Caetano. 47 Atente-se no facto de a Constituio de 1933 tratar com desigualdade as

    relaes com a Igreja e as demais confisses. Tratando as outras confisses

    como no catlicas e limitando os acordos manifestao extrnseca dos

    cultos a Constituio violava uma norma (art. 4.) que propugnava a

    igualdade na aplicao da lei. claramente uma desigualdade que atentava

    contra os princpios eclesiais. O Estado tentava, mais uma vez, amarrar a

    Igreja sua doutrina.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    246

    associaes doutras confisses s poderiam ser reconhecidas

    casuisticamente48.

    Na reviso Constitucional de 1971, o nome de Deus foi

    introduzido na Constituio (art. 45., CRP), no artigo sobre

    liberdade religiosa. Esta seria objecto, no final do Estado Novo,

    de uma lei, a Lei n. 1/71, de 21 de Agosto. Surgida por imposio

    do crescimento de outras manifestaes da pulverizao do

    religioso, em tese, possibilitaria um tratamento diferenciado

    dependendo da sua representatividade49. Contudo, a

    Constituio de 1976 que garantir a liberdade religiosa sem

    limites no tratamento das confisses, na medida em que uma

    Constituio de pendor totalitrio (C. 1933) nunca poderia ter

    uma abertura liberdade.

    Nos 48 anos de totalitarismo, houve sempre vozes no seio

    da Igreja catlica que se ergueram contra o regime opressor,

    sendo de destacar as intervenes da Aco Catlica, a

    manifestao a partir de 1958 do Bispo do Porto, D. Sedas Nunes,

    que numa das suas cartas exprimiu a sua opinio sobre a

    Corporativismo. Criticou fortemente o corporativismo

    implementado pelo Estado Novo, porque aquele no

    correspondia ao corporativismo defendido pela Igreja50. A

    interveno mais meditica foi, por ventura, a do Bispo do Porto,

    D. Antnio Ferreira Gomes. Na intitulada declarao de voto ou

    Pro-memria51 feita uma crtica dura ao regime e actuao de

    Salazar. Como consequncia, o bispo do Porto ser exilado

    durante 10 anos (1959 1969) Pode defender-se que s

    compreendendo a dinmica das relaes entre o Estado e a Igreja

    possvel entender que no concebvel a queda da Primeira

    Repblica e a ascenso do regime autoritrio, sem referncia

    poltica religiosa republicana e insatisfao de grandes pores

    da comunidade portuguesa (maioritariamente tradicional e 48 O que, de per si, no discriminatrio. S o na medida do tratamento

    francamente desajustado que a religio catlica tinha face s demais religies,

    tratando-a com superioridade. Esta no deve ser aferida pelo Estado. O

    Estado deve apenas reconhecer a religio com mais laos histricos, e trat-la

    em conformidade, no com tamanha desproporo, que s atenta contra a

    liberdade dos crentes face ao poder poltico. 49 Para um maior desenvolvimento, vide, D. Carlos AZEVEDO

    (coordenao), op cit, pp. 480 506. 50 De destacar as crnicas de Ruy Belo e as intervenes que milhares de

    leigos tiveram na denncia da poltica do Estado Novo mas que muitas vezes

    no era seguida pela hierarquia. O corporativismo do Estado Novo tinha, em

    teoria, sido inspirado pelo corporativismo propugnado pela Doutrina Social

    da Igreja. Cfr. D. Carlos AZEVEDO, Momentos e tema.. op. cit., pp. 11 26;

    Compndio da Doutrina Social da Igreja, principia, 2005, Estoril, pp. 258 e ss. 51 Mais conhecida por Carta a Salazar.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    247

    agrcola). De igual modo no possvel compreender a Revoluo

    de 1974 sem analisar a tenso crescente da conscincia catlica,

    aps a II Guerra Mundial e sobretudo aps o Conclio Vaticano

    II52.

    7. O Conclio Vaticano II. A mudana do paradigma da Igreja

    O ambiente poltico e eclesial presente ao tempo da

    aprovao da Concordata de 1940 era, como j se disse, um

    regime de separao concordatado53. Perante o confisco54 de

    bens operado em 1834 (para as ordens religiosas) e em 1911 (para

    o clero diocesano), a concordata era uma manifestao da

    (re)aproximao entre o Estado e a Igreja. Seria uma forma de

    compensar o tratamento arbitrrio de que esta padecera

    anteriormente.

    Um marco que poria em causa a actualidade da Concordata

    e da actuao do regime viria a ser o acontecimento do sculo na

    Igreja, o Conclio Vaticano II. O verdadeiro aggiornamento proposto

    por Joo XXIII na abertura conciliar permitiu reposicionar o

    magistrio da Igreja catlica. Isto , o Conclio Vaticano II

    significou mais do que uma renovao teolgica e doutrinria,

    tendo consubstanciado uma viragem para a modernidade. Importa

    realar a importncia prima facie da passagem da precedncia da

    verdade sobre a liberdade para uma precedncia da liberdade

    sobre a verdade. Esta inverso encerra uma importncia primacial

    porque lanou o mote para a construo de Liberdade como fonte

    luminescente da dignidade da pessoa humana, encontrando-se

    positivada nos documentos conciliares, designadamente na

    52 Cfr. Manuel BRAGA DA CRUZ, O Estado Novo e a Igreja Catlica, Bizncio,

    Lisboa, pp.32 48 e 191 193. 53 Vide, supra 6. 54 Para uma diferena entre confisco, expropriao e indemnizao, vide,

    Antnio Carlos dos SANTOS, Maria Eduarda GONALVES, Maria Manuel

    Leito MARQUES, Direito Econmico, Almedina, 5 edio, Coimbra, pp. 43 e

    46. De notar que a propriedade era um Direito Sacrossanto nas Constituies

    liberais, mas para a Igreja olvidou-se esse principio paladino dos liberais. Vide,

    art. 6. da C. 1822, art.145. - 21 da Carta Constitucional de 1926; art. 23. da

    C. 1838; art. 3. - 25 da C. 1911. Classificando o direito como Sacrossanto nas

    Constituies liberais, Assim, Jos GOMES CANOTILHO/ VITAL

    MOREIRA, Constituio da Repblica Portuguesa anotada, art. 1. a 107., vol. I,

    Coimbra editora 4 edio, Coimbra, 2007, pp. 798 811.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    248

    Declarao Dignitates Humanae. Consagra de modo solene e

    categrico o reconhecimento da liberdade religiosa a todos os

    homens55.

    A Declarao alerta para o facto de todo o homem ter o

    dever de procurar a religio, sem quaisquer meios coactivos, de

    uma maneira livre. condenada a impossibilidade do exerccio

    pblico dos actos religiosos56. Em sintonia, encontra-se a

    Constituio Pastoral Gaudium et Spes, que pela primeira vez no

    estabelece um paralelismo entre a sua condio de sujeito de

    Direito Internacional e as relaes com os Estados, uma vez que o

    magistrio do Conclio Vaticano II no privilegia propriamente

    essa condio, para fundamentar as suas relaes com os Estados.

    Sendo embora Igreja Universal, agrupamento ou sociedade

    visvel e comunidade espiritual, a Igreja tenta ser fermento na

    vida social do corpo poltico. Difundindo, como diz a Gaudium et

    spes - os reflexos da sua luz, sobretudo enquanto cura e eleva a

    dignidade da pessoa humana, consolida a coeso da sociedade e d

    um sentido mais profundo actividade quotidiana57. No Conclio

    opera-se uma inverso da justificao do exerccio da liberdade

    religiosa concedida Igreja Catlica. Se at ao Conclio a doutrina

    que era patente nas relaes entre o Estado e a Igreja, era

    elaborada numa centralidade institucional, isto , tomando como

    referencial a configurao scio-jurdica da sociedade perfeita58,

    agora, prevalece preferencialmente uma centralidade

    personalista, ou seja, a especificidade das relaes entre os

    Estados e a Igreja consubstancia-se na colaborao prestada pelas

    entidades, ambas vocao integral da pessoa humana59. Aps a

    55 Cfr. Declarao Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa. p. 2. E Vide. Joo

    XXIII, Encclica Pacem in Terris, 11 de Abril 1963: AAS 55 (1963), pp 260 e

    261. 56 A Declarao no distingue catlicos ou protestantes ou qualquer outra

    manifestao religiosa, tendo como limite a perturbao da ordem pblica.

    claramente contrria aos princpios constantes da Constituio de 1933. No

    advoga a supremacia de qualquer religio. , portanto, uma injustia contra a

    pessoa humana e contra a prpria ordem estabelecida por Deus, negar ao

    Homem o livre exerccio na sociedade, uma vez salvaguardada a justa ordem

    pblica. Cfr. Declarao op. cit., p. 3, 2. 57 Gaudium et Spes (traduo) A Igreja no mundo actual, Editorial Apostolado da

    Orao, 7 edio, Braga, p. 65, ponto 40. 58 Antes do Conclio a projeco externum do seu Direito era baseada na

    socialidade perfeita, apesar de se assumir como que a Igreja tinha essa

    duplicidade. A sua essncia era divina e humana. Assim, Ruy Leito, Sobre a

    natureza das Concordatas, tese de mestrado apresentada na Faculdade de Direito

    de Lisboa em 1945 (indita). 59 Cfr. Gaudium et Spes (traduo) A Igreja no mundo actual, op. cit., p.135, ponto

    76

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    249

    II Guerra Mundial, assiste-se ao ltimo estdio do Estado

    Moderno, que nasceu face falncia dos Estados totalitrios,

    inspirados remota ou mais proximamente pelo Estado hegeliano.

    Este ltimo estdio caracterizado pelo ideal de Estado

    democrtico, de Direito, social, laico e pluralista. Com a

    revalorizao da dignidade da pessoa humana numa sociedade

    democrtica, j no possvel o Estado tecer consideraes sobre

    os valores de esprito. A criao cultural, as convices morais,

    artsticas, as opinies polticas, etc, no podem ser objecto de

    doutrina de Estado. Contudo o Estado recorre a um sistema de

    valores imanente sociedade mas que transcende o prprio

    Estado60. E a, o Estado socorre-se da matriz que conforma uma

    comunidade, que constitui o filamento cultural. No caso

    portugus, o Estado, pelo que foi exposto, deve recorrer, entre

    outras, matriz crist. O Estado plural e laico, mas o Estado

    constitudo por pessoas que desenvolvem a sua actividade atravs

    da cultura impregnada na prpria sociedade61.

    No que concerne ao Direito Internacional, este sculo

    prdigo em proclamaes da dignidade da pessoa humana como

    direito inalienvel, e consequentemente, a liberdade religiosa. A

    Declarao Universal dos Direitos do Homem, em 1948,

    proclama no art. 18. a liberdade religiosa nas suas diversas

    manifestaes. De considerar a Acta de Helsnquia, adoptada por

    35 Estados, incluindo a Santa S, que tambm proclamou o

    direito liberdade religiosa62.

    Sobre a eliminao das formas de intolerncia e de

    discriminao fundadas na religio ou nas convices, debrua-se

    a Declarao da Assembleia Geral das Naes Unidas, de 25 de

    Novembro de 1981. de particular importncia para Portugal o

    estabelecido no art. 13. do Tratado de Roma, j que a par da

    DUDH, os tratados da Unio63 entram na ordem jurdica

    portuguesa, estando apenas sujeito ao crivo da Lei Fundamental64.

    60 Enquanto entidade poltico-administrativa. 61 Para uma abordagem geral, Cfr. G. THILS, Le statut de la communnaut

    ecclesiale dans le droit des tats modernes, p. 387. Paulo OTERO, Instituies

    polticas op. cit., pp 428 449 e JOO XXIII, Enciclica Pacem interris,

    11.04.1963, AAS 55 (1963), pp. 291-292. 62 O documento sistematizou os direitos em trs seces, sendo a terceira

    sobre a liberdade religiosa. 63 Direito primrio da Unio Euro-Comunitria. Expresso utilizada pela

    Professora Maria Lusa Duarte. Vide. Maria Lusa DUARTE, op. cit., Passim. 64 A DUDH encontra-se num plano supra-constitucional (art. 16. CRP) e o

    Direito da Unio Europeia tem uma parametricidade similar s normas de

    Direito Interno (art. 8. n. 4 da CRP).

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    250

    Verifica-se que o paradigma do final do Estado Novo no

    que concerne Igreja, encontrava-se esgotado e francamente

    desactualizado. A Igreja tinha mudado, agora encontrava no

    Estado um parceiro para a independncia e no um suserano no

    qual a Igreja ficava manietada pelo poder poltico65.

    8. As implicaes fiscais presentes na Concordata de 1940

    A Concordata de 1940, de 7 de Maio,66 tem diversos

    artigos que, prima facie, poderiam redundar em privilgios

    infundados. Contudo, estes devem ser entendidos luz do

    momento histrico que lhes deu origem. O artigo VIII, referente

    s isenes fiscais, dispe:

    So isentos de qualquer imposto ou contribuio, geral ou local, os

    templos e objectos nele contidos, os seminrios ou quaisquer estabelecimentos

    destinados formao do clero, e bem assim os editais e avisos afixados

    porta das igrejas, relativos ao ministrio sagrado; de igual iseno gozam os

    eclesisticos pelo exerccio do seu mnus espiritual.

    Os bens e entidades eclesisticos, no compreendidos na alnea

    precedente, no podero ser onerados com impostos ou contribuies especiais.

    Concordata foi aditado o Acordo Missionrio, que tinha

    como ultima ratio tutelar o padroado no alm-mar.

    O artigo 11. do Acordo Missionrio rezava assim67:

    Sero isentos de qualquer imposto ou contribuio, tanto

    na Metrpole como nas colnias :

    a) todos os bens que as entidades mencionadas no artigo

    868 possurem em conformidade com os seus fins:

    b) todos os actos inter vivos de aquisio ou de alienao,

    realizados pelas ditas entidades para satisfao dos seus fins, assim

    65 Gaudium et Spes (traduo) A Igreja no mundo actual, op. cit., p. 135, ponto 76. A

    viso da Igreja centra-se no servio e caridade. Estes dois vectores da

    mensagem evangelizadora s podem ser conduzidos se no houver uma

    interaco que no redunde em controlo por parte do Estado em relao

    Igreja catlica. 66 Publicada no Dirio do Governo, 1. srie, n. 158 de 10 de Julho de 1940. 67 Apesar de se ter utilizado o pretrito, o Acordo Missionrio (as relaes

    jurdicas que ainda existiam, mantm-se) ficou ressalvado com a Concordata

    de 2004. Vide art. 31. da Concordata de 2004. 68 Dioceses, circunscries missionrias, outras entidades eclesisticas,

    institutos religiosos das colnias assim como os institutos missionrios,

    masculinos e femininos, que se estabelecerem em Portugal continental e ilhas

    adjacentes.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    251

    como todas as disposies mortis causa de que frem beneficirias

    para os mesmos fins.

    Alm disso, sero isentos de todos os direitos aduaneiros

    as imagens sagradas e outros objectos de culto.

    Como j foi aludido, o estabelecimento deste regime foi

    fruto da compensao que o Estado se viu na obrigao de

    conceder. Como muito do patrimnio que tinha sido confiscado

    Igreja69 j era patrimnio classificado, no era materialmente

    possvel a restituio dos bens em espcie. A Indemnizao

    afigurou-se como uma das solues possveis, mas os montantes

    seriam de valor to elevado que rapidamente foi afastada essa

    hiptese.

    A soluo que correspondeu ao entendimento possvel

    atribuiu Igreja uma amplitude generosa no que concerne sua

    actividade eclesial, concedendo desagravamentos fiscais, isto ,

    mais do que isenes. Estas pressupem um reconhecimento

    administrativo (subjectivo ou objectivo), enquanto que, nas

    situaes de excluso da tributao, esta operada ope legis70. Ou

    seja, no necessria qualquer norma habilitante que reconhea a

    personalidade jurdica. uma norma no necessita de

    regulamentao porque o Estado devolve, neste caso, ao Direito

    Cannico, a ereco de pessoas morais. A letra do preceito deixa

    antever uma iseno71 objectiva72. Isto , as isenes s

    seriam aplicadas nos prprios templos e seminrios e no nas

    pessoas morais (colectivas) que as administravam73,74. No artigo

    69 Vide, supra 7, 1. 70 Crf. Isabel MARQUES DA SILVA, Implicaes fiscais in op. cit., pp. 210-222;

    Manuel PIRES, Aspectos fiscais in op. cit., pp. 201-207. 71 A iseno entre aspas indica a excluso de tributao. 72 Para estabelecer a melhor interpretao a tomar. Vide, entre outros, Joo

    Baptista MACHADO, Introduo ao Direito e ao Discurso Legitimador, 16.

    reimpresso, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 175 185; Jos de OLIVEIRA

    ASCENSO, O Direito - Introduo e teoria geral, 13. edio refundida,

    Almedina, Coimbra, 2007, pp. 391-430. 73 Uma interpretao tendo em conta a ratio do preceito, atendendo-se aos

    elementos histrico e teleolgico, postergando-se o literal. Nesse sentido o

    STA, pelo menos desde 1965, veio afirmando reiteradamente que as isenes

    previstas no artigo VIII da Concordata de 1940 tm carcter subjectivo ou

    pessoal e no carcter objectivo ou real Cfr entre outros, Ac. Do STA de 30

    de Junho de 1993 (rec. N. 4776); Ac. Do STA de 18 de Fevereiro de 1988

    (rec. N 4776) e Ac. Do STA de 4 de Junho de 2003 (rec. N. 593/2003). A

    ereco de pessoas morais (ou colectivas, como mais usual em Portugal)

    regida pelo Cdigo de Direito Cannico e a Lei Fundamental do Estado do

    Vaticano (A nova Lei Fundamental do Vaticano apenas foi publicada em

    2000, vide, Lei fundamental do Vaticano in,

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    252

    11. do Acordo Missionrio prev-se que todos os bens no

    estejam sujeitos a tributao. Se se reportar poca da redaco

    do artigo facilmente se percebe a amplitude dos desagravamentos

    fiscais concedidos Igreja.

    Importa sublinhar que este regime resultava tambm da

    especificidade do posicionamento da Igreja catlica gerada ao

    longo de sculos (como foi apresentado anteriormente)75 e do seu

    amplssimo papel e aco na sociedade portuguesa em domnios

    variados, como a assistncia, a beneficncia, a educao, a cultura.

    Face ao exposto, possvel afirmar que o estatuto da Igreja

    catlica no enfermava de privilgios, no obstante a relao entre

    as duas entidades estar corrompida pelo posicionamento do

    Estado Novo e da respectiva Constituio de 193376.

    II. Relao da Igreja Catlica e Portugal no Ps 25 de Abril.

    9. A Constituio de 1976: a Constituio Democrtica.

    A Revoluo de Abril de 1974 terminou com 48 anos de

    vigncia do regime poltico anterior, o Estado Novo,

    consubstanciando-se na descontinuidade material da Constituio

    de 1933. Seria o prenncio da liberdade e a efectivao do respeito

    pela dignidade da pessoa humana. Desde o incio, a legitimidade

    revolucionria teve igualmente como ponto de referncia a

    DUDH.

    Apesar da turbulncia fracturante, vivida no perodo que

    precedeu a aprovao da Constituio, e das tentativas de

    enformar a Constituio num sentido socializante, prevaleceu a

    liberdade, a participao democrtica, o respeito pelo direitos do

    Homem e a efectiva ateno propriedade privada (nas revises

    subsequentes)77. Com a primeira Constituio verdadeiramente

    http://www.vatican.va/vatican_city_state/legislation/documents/scv_doc_20001126_leg

    ge-fondamentale-scv_po.html). 74 Cfr. Manuel PIRES, Iseno de Impostos, Comentrio ao artigo VIII da Concordata

    de 1940, in Concordata entre a Santa S e a Repblica Portuguesa, Almedina,

    Coimbra, 2001, pp. 135 e ss. 75 Vide, Supra, 1-7. 76 Assim, Manuel PIRES, Benefcios Fiscais e a Igreja Catlica, in Lusitania

    Canonica, Relaes Igreja... op. cit., p. 153. 77 Para uma perspectiva da transio para a Constituio de 1976, Ver Jorge

    MIRANDA, Manual Tomo I, op. cit., pp. 329-252; Jos GOMES

    CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoriaop. cit., pp. 195-219. Mais

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    253

    democrtica, passa a garantir-se a liberdade religiosa sem

    discriminao de confisses e ainda sem limites especficos,

    servindo a separao entre o Estado e a Igreja como garantia da

    liberdade e da igualdade.

    10. O Princpio da igualdade, a igualdade na tributao. A capacidade contributiva

    Um dos princpios primazes num Estado de Direito a

    igualdade. H de comum na tradio constitucional portuguesa78 a

    positivao deste Direito, como caracterstica indelvel do

    liberalismo. Contudo, a frmula empregue na Constituio

    Portuguesa de 1976 (CRP), constante do art. 13., deixa notar a

    componente jusracionalista enformada pela moderna tcnica

    jurdica. O seu n. 1, segundo o qual todos os cidados tm a

    mesma dignidade social perante a lei, apresenta o trao da

    igualdade natural interligado com a igualdade jurdica. Todavia o

    social presente na frase faz emergir a distncia face ao pensamento

    liberal. Neste, bastava a igualdade formal, isto , igualdade perante a

    lei. O foco centrava-se no aplicador da lei. Agora exige-se uma

    igualdade material, uma igualdade na lei79. Mais do que dirigido para

    o aplicador do preceito, a igualdade na lei impende sobre os

    rgos criadores da norma, sendo objecto de uma estruturao,

    partindo o Estado de sujeito passivo da igualdade para criador

    dessa mesma igualdade80. Esta probe igualizaes arbitrrias ou

    infundadas, material ou racionalmente. E probe discriminaes,

    feitas com base em critrios subjectivos, ou com base em critrios

    objectivos mas aplicados em termos subjectivos. A igualdade da

    lei obriga o legislador tambm a adoptar distines a fim de criar

    desenvolvidamente no que concerne s revises constitucionais que

    permitiram abrir a Constituio iniciativa privada em 1982 e 1989,

    expurgando muito do cariz socializante que enformava a Constituio, Vide,

    numa abordagem econmica. Eduardo PAZ FERREIRA, Direito da Economia,

    AAFDL, reimpresso de 2008, Lisboa, 2001, pp. 101-168. 78 Com um pendor decisivo nas Constituies liberais. 79 O pensamento liberal centrava-se na universalidade da lei e na prevalncia

    de lei na medida da abrangncia de todo o universo destinatrio da norma e a

    prevalncia da lei como predomnio da vontade geral sobre o interesse

    particular. Assim, Srgio VASQUES, O Princpio da Equivalncia como critrio de

    igualdade tributria, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 15- 38. 80 Atentando no possvel vazio semntico do princpio da igualdade, Maria

    de GLRIA GARCIA, Princpio da igualdade: Frmula vazia ou frmula carregada de

    sentido?, BMJ, 1986, n. 368, in Maria da Glria Garcia (Lisboa, 2005), Estudos

    sobre o princpio da Igualdade, 29-73.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    254

    um mnimo de igualdade de oportunidades, ou a priori, ou nos

    resultados a atingir.

    Modernamente possvel ento encontrar dois corolrios

    da igualdade fiscal. O primeiro esta conquista das revolues

    liberais, a generalidade ou universalidade dos impostos. Significa

    este princpio que todos os cidados esto sujeitos ao pagamento

    de impostos, no havendo entre eles distino de classe, ordem ou

    de casta. Esta generalidade implica sobretudo a proibio de

    distines assentes em critrios meramente subjectivos, como os

    enunciados no art. 13/2 da CRP. A denominada proibio da

    discriminao tem vindo gradualmente a perder importncia, j

    que a tipificao de conceitos insusceptveis de discriminao de

    lei, deixa de colher, baseado em factores subjectivos, porquanto

    no moderno Estado Social existe um comando Constitucional que

    impele o legislador a tomar medidas na erradicao desta

    realidade81.

    No contexto supracitado, a igualdade tributria assenta

    numa particularidade do grande princpio da igualdade. No

    entanto, o fenmeno da tributao tem contribudo de forma

    decisiva para a transformao do prprio princpio da igualdade.

    Reveste particular importncia o tema da igualdade na tributao,

    porque, como esta consiste na ablao coactiva da propriedade

    privada, necessrio atender ao critrio da igualdade para

    materializar a justia que deve presidir supresso de um direito

    fundamental (propriedade privada) 82. Ora, a materializao da

    justia consubstanciada no desgnio do Estado Social carece de

    um critrio uniformizador para garantir a igualdade tributria. Ou

    seja, decorre da igualdade a uniformidade dos impostos, isto ,

    todos devem estar adstritos ao pagamento de impostos com base

    num mesmo preceito. O critrio que hoje unanimemente

    entendido o da capacidade contributiva83. Pode traduzir-se este

    princpio numa adaptao da frmula clssica, o princpio da

    igualdade fiscal, que exige que o que essencialmente igual seja

    tributado de forma igual, e o que seja essencialmente desigual, seja

    tributado de maneira desigual, na medida dessa desigualdade.

    81 Assim, Srgio VASQUES, op. cit., p. 34. 82 No displicente a colocao do Direito de propriedade entre os direitos

    econmicos, No est colocado como Direito Fundamental, apesar natureza

    anloga, art. 17. CRP, o que representa a delimitao fora do quadro

    sacrossanto atingido no iderio liberal. Cfr, Jos GOMES CANOTILHO,

    VITAL MOREIRA, Constituio da Repblica op. cit., pp.799-810. 83 No critrio adstrito igualdade tributria, encontram-se dois corolrios. O

    princpio da generalidade (igualdade fiscal subjectiva) e o princpio da

    distribuio de riqueza (igualdade fiscal objectiva). Cfr. Nuno S GOMES,

    Manual de Direito Fiscal , Vol. II Lisboa, p. 125.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    255

    Exige-se tambm um tratamento proporcional, das situaes

    relativamente iguais afigura-se para o legislador, ora em mera

    faculdade, ora em obrigao. E a comparao entre aquilo que

    igual ou desigual est sujeita ao critrio da capacidade

    contributiva, que remonta antiguidade clssica, e est nsito na

    prpria Bblia84.

    O critrio da capacidade contributiva assenta em duas

    funes primaciais: uma funo garantstica, no sentido de que s

    devem ficar sujeitas a tributao os que podem pagar (ability to

    pay), e uma funo solidarista, no sentido de que desde que haja

    capacidade de pagar todos devem contribuir para as despesas

    pblicas na medida da sua capacidade85. Ou seja, neste critrio no

    possvel atender a critrios extrafiscais discriminatoriamente

    arbitrrios. Contudo, a imperiosa necessidade de harmonizar os

    diversos preceitos constitucionais, perante incumbncias

    prioritrias do Estado em matrias do domnio econmico-social

    (art. 81.), concedem ao legislador a possibilidade de assentir

    isenes e outros desagravamentos fiscais derrogatrios dos

    regimes tributrios.

    11. Benefcios fiscais e isenes e a excluso de tributao.

    Em termos formais, encontra-se perante uma iseno

    sempre que a lei subtrai tributao, atravs da previso

    normativa de um facto impeditivo, situaes e sujeitos que de

    outra forma, ficariam dentro do mbito da previso da norma

    tributria86. Ocorre, pois, sempre que uma situao jurdica que

    deveria ser tributada e no o , por razes de extra-fiscalidade87.

    84 Gn 14, 18-20; Lv 30, 27; Reis2 23, 35; Lc 21, 1; Mc 12, 41. 85 Cfr. Nuno S GOMES, op. cit., p. 200. 86 Cfr.J.L SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra editora,

    Coimbra, 3. edio,2007, p. 449. 87 Deve ser aplicado com proporcionalidade. A medida deve ser necessria para

    o fim que se visa observar, isto , prossecuo do objectivo extra-fiscal em

    causa, ter de mostrar-se adequada ao objectivo, na medida em que a medida

    que lesa em menor grau o princpio da igualdade tributria. Ter que existir

    uma relao com o objectivo de meio-fim, e ter de mostrar-se ainda

    proporcional em sentido estrito aos ganhos extra-fiscais que se obtenham em

    contrapartida com a medida. Cfr. Srgio Vasques, op. cit., pp. 86 e 87; para um

    aprofundamento do princpio da proporcionalidade em Direito

    Administrativo, Vide. Diogo FREITAS DO AMARAL, Curso op. cit., vol. II,

    pp. 127- 132.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    256

    Importante realar a natureza de excepo da iseno fiscal

    face a uma determinada regra, previamente formulada atravs de

    expressa previso legal. Em suma, est-se perante uma iseno

    fiscal sempre que se trate de uma norma com um objectivo extra-

    fiscal. Estas surgem de um modo casustico sendo

    abundantemente utilizados no sentido de promover um

    comportamento altrusta de uma organizao privada ou fomentar

    as prticas culturais, artsticas, etc. A sua legitimao advm dos

    factos supracitados. A legitimao ter sempre em conta a

    permanente tenso entre as isenes fiscais e o princpio da

    capacidade contributiva que consagra a distribuio dos encargos

    tributrios88.

    H um juzo valorativo empreendido pelo Estado, na

    medida em que a evoluo para um Estado Social de Direito

    compreendeu a valorizao de comportamentos que

    complementam a funo v.g., social, acometida ao Estado como

    incumbncia prioritria deste89.

    Para uma percepo do conjunto dos desagravamentos

    fiscais necessrio proceder definio dos vrios tipos de

    desagravamentos fiscais.

    O conceito mais lato de desagravamentos fiscais

    compreende dentro de si vrias figuras. Assim, dentro dos

    desagravamentos fiscais podemos distinguir as no sujeies

    tributrias ou as excluses tributrias dos benefcios fiscais90.

    As no sujeies tributrias so normas fiscais estruturais

    que estabelecem delimitaes negativas da incidncia, so

    geralmente medidas legislativas com alguma estabilidade e

    durabilidade.

    Os benefcios fiscais so normas excepcionais, com

    carcter temporrio, criadas para a tutela de interesses pblicos

    extra fiscais de natureza social ou econmica, com valor superior

    aos impostos que excepcionam.

    O art. 2. n. 2 do EBF enuncia as possveis manifestaes

    dos benefcios fiscais: as isenes, as redues de taxa, as

    88 Tudo isto deve ser acompanhado do clculo permanente da receita perdida

    (despesa fiscal) e de uma ponderao exacta dos limites que devem

    acompanh-los. Na verdade o denominado benefcio fiscal sempre um

    benefcio para alguns contribuintes, levando, algumas vezes, onerao de

    outros contribuintes. 89 Com as sucessivas revises constitucionais, atenuou-se e restringiu-se as

    incumbncias prioritrias do Estado, atribuindo-se sociedade cvel um papel

    crescente. 90 Ambos explicitados nos arts. 2. e 3. do Estatuto dos Benefcios Fiscais

    (EBF). Decreto-Lei n. 108/2008, que republica o Estatuto dos Benefcios

    Fiscais.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    257

    dedues matria colectvel e colecta, as amortizaes e

    reintegraes aceleradas.

    Existe ainda uma diferena, que, embora procedimental,

    pode ter implicaes na autonomia das instituies. Se nos casos

    da concesso de benefcios fiscais se atribui genericamente

    poderes de fiscalizao Direco- Geral do Impostos91, nas

    situaes de no sujeio tributria tal no acontece, porque esto

    fora do mbito de incidncia do imposto.

    Tanto na Concordata como na Lei Liberdade Religiosa

    encontram-se estas duas figuras tributrias com algumas

    diferenas de regime.

    12. A Concordata e a ordem Constitucional portuguesa luz da subjectividade da Santa S na Comunidade

    Internacional.

    A personalidade jurdica da Santa S na comunidade

    internacional apresenta-se como algo difcil de negar. Todavia, a

    sua posio carece de fundamentao, sendo necessrio atender

    importncia histrica, efectividade da presena internacional e

    organizao administrativa como critrios norteadores da

    justificao da personalidade jurdica da Santa S. tanto mais

    importante esclarecer esta prerrogativa internacional, quanto o

    debate sobre a liberdade religiosa atinente aos instrumentos

    jurdicos usados no estabelecimento das respectivas relaes com

    as confisses religiosas.

    Praticamente desde a fundao do Igreja ficou estabelecido

    que existiria uma estrutura que dependeria do sucessor designado

    por Cristo92. A presena na comunidade Internacional da Igreja

    manifesta-se, temporalmente, desde que a Igreja catlica se tornou

    pela declarao do Imperador Constantino (380 d.C.), religio

    oficial do Imprio Romano, desde esse momento a Igreja nunca

    perdeu a sua personalidade jurdica internacional participando

    ininterruptamente nas relaes internacionais, sobrevivendo

    reforma protestante (que fracturou a Europa), revoluo

    Francesa mas sobretudo denominada questo Romana93. Apesar

    91 Cfr. O art. 6. do EBF, a contrario, Quando no se concede benefcios fiscais,

    nas situaes de no sujeio tributria, consequentemente no esto sujeitas a

    fiscalizao tais entidades.

    92 A base jurisdicional ltima da fundao da Igreja encontra-se em Mt. 16, 16.

    Presente em todos os documentos eclesiais com especial referncia para o

    Catecismo da Igreja Catlica, op. cit., pp. 8-20 e 190-193. 93 Antes na ascenso ao poder de Victor Emanuel I, o Papa detinha um amplo

    poder temporal, j que era soberano nos Estados Pontifcios. A sua autoridade

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    258

    da pequena poro territorial detida pelo Vaticano, a Santa S

    exerce todas a as prerrogativas de um Estado. Sendo detentor,

    como qualquer Estado soberano, de funes legislativas, judiciais

    e executivas94, com as limitaes decorrentes dos micro-Estados.

    Discute-se o suposto privilgio da Igreja Catlica. Sendo a Igreja o

    reflexo jurdico-institucional da Santa S, aquela apresenta

    caractersticas que mais nenhuma confisso possui. A

    universalidade, a par da unidade e da independncia, que

    caracterizam a Igreja e lhe permitem actuar com igualdade na cena

    internacional, podendo afirmar-se que difcil a qualificao da

    posio da Igreja na cena Internacional como de privilgio95.

    Uma ltima caracterstica reside na conceptualizao do

    Estado do Vaticano/Santa S como unio pessoal onde a Santa S

    e o Vaticano encontram na pessoa do Romano Pontfice a

    complementaridade essencial para a representao externa da

    Igreja e do Vaticano96. Como corolrio da subjectividade

    era comparvel a qualquer Chefe de Estado. Contudo o poder temporal era e

    sempre ser acessrio do poder espiritual. O primeiro era garantia de

    independncia do segundo. Cfr. August FRANZEN, Breve histria da Igreja,

    editorial presena, 1996, pp. 322 e ss; Salmo CAETANO DE SOUSA, A

    Santa S e o Estado da Cidade do Vaticano: Distino e complementaridade,

    in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, So Paulo,

    N/d, p. 298. Mesmo desaparecendo a soberania temporal do Papa, aps a

    conquista violenta de Victor Emanuel I em 1870, a Santa S no perdeu, ipso

    facto, a subjectividade internacional. Como se aludiu, o Vaticano (ou os estados

    pontifcios) eram o reflexo da presena da Igreja no mundo. Mas, como ainda

    o Direito Internacional Publico vivia em larga escala dos Estados, Santa S

    foi estabelecido um territrio onde teria total jurisdio e independncia, o

    Vaticano. Decorrendo dos acordos de Latro firmados com a Itlia em 1929.

    Ao ius legationis e ius tractum do Papa, atribui-se uma parcela de territrio onde

    pudesse ser exercido pelo Papa o Magistrio Petrino com independncia. 94 O Direito Cannico tem a particularidade de ser uma ordem jurdica que

    no tem poder coactivo externo apesar de projectar os seus efeitos no

    denominado ius publicum ecclesiasticum externum. 95 O Cdigo de Direito Cannico, pea chave no ordenamento jurdico da

    Santa S/Vaticano/Igreja, estabelece no cnone 330 e ss a hierarquia da Igreja,

    permitindo a unidade e impedindo a desagregao que poderia originar a

    perda da subjectividade internacional. 96 Questo controvertida. Havendo autores que no consideram o Vaticano

    um Estado, Cfr, Jorge MIRANDA, Curso de Direito Internacional Pblico, op. cit.,

    pp. 212 214; Andr GONALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS,

    Direito Internacional Pblico, Almedina, Coimbra, 1993, pp. 269 e ss., Autores

    que consideram o Vaticano um Estado, Cfr. Salmo CAETANO DE SOUSA,

    op. cit., pp. 288 314, Mario TEDESCHI, Vaticano (Stato della Citt del) in

    Enciclopdia del Diritto, XLVI, 1993, pp 284 e ss, , , Natale ADDAMIANO -

    Chiesa e stato : dalle origini del cristianesimo ai patti lateranensi, Mario

    Bulzoni Editore, Roma, 1969. Passim; Estabelecendo as prioridades da Santa

    S nas relaes internaionais, princpio da no beligerncia, promoo e defesa

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    259

    internacional da Santa S aparece o regime concordatrio, isto , a

    Igreja detm na qualidade de sujeito com personalidade

    internacional jus legationis e jus tractuum, que lhe permite o

    estabelecimento de convnios com os Estados, sendo as

    Concordatas um instrumento de paradigmtico97. Ou seja, as

    Concordatas so tratados internacionais firmados entre a Santa S

    e os Estados.

    A Concordata, visando estabelecer as obrigaes e direitos

    da Igreja Catlica num determinado Estado, afigura-se de

    natureza primacial, nomeadamente em Portugal, onde a populao

    maioritariamente catlica (85%)98, alm de toda a influncia e

    importncia no campo cultural, assistencial, moral, etc., que a

    Igreja teve ao longo dos sculos (e ainda tem) como foi referido

    anteriormente99.

    A natureza da Igreja em Portugal no se compadecia com

    uma lei geral sobre a liberdade religiosa (Lei n. 16/2001), devido

    s especificidades que a Igreja apresenta, nomeadamente em

    questes ligadas ao patrimnio, aos feriados religiosos ou

    questo fiscal, que se apresenta com algumas nuances face ao

    regime comum ( o que est subjacente ao art. 58. da LLR)100.

    de realar que a Concordata, no domnio fiscal e em praticamente

    todos os domnios, teve como fonte de inspirao a LLR, o que

    denota vontade expressa de estabelecer o mais possvel um regime

    prximo entre a Igreja e as demais comunidades religiosas.

    Quanto insero da Concordata na ordem jurdica

    Portuguesa, desde logo parecem existir dois princpios

    fundamentadores do contedo da Concordata: o primeiro a

    proclamao da independncia e autonomia da Igreja Catlica e

    do Estado Portugus, cada um na sua ordem. O segundo, que

    decorre do primeiro, o princpio da cooperao (que s

    da Dignidade da Pessoa Humana, entre outros, Vide, Tauran, D. Jean-Louis - Intervenco do secretrio para as relaes da Santa S com os Estados in

    http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/documents/rc_seg-

    st_doc_20020422_tauran_po.html 97 Contra o modelo concordatrio actual. Pugnando pelo alargamento do

    modelo concordatrio a outras religies, Vide, Vitalino CANAS, Os acordos

    religiosos ou a generalizao da frmula concordatria, in Estudos em memria do

    Conselheiro Lus Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, pp. 281-334. 98 Cfr, Jorge MIRANDA, A Constituio e a Concordata: Brevssima Nota, in

    Lusitania Canonica, Estudos sobre a nova Concordata: Santa S - Repblica

    Portuguesa, 18 de Maio de 2004,Universidade Catlica Editora, Lisboa, 2006;

    Cfr, VERA JARDIM, Uma Concordata do Conclio e do Estado Democrtico, in

    Lusitania Canonica op. cit., p. 53. 99 Vide, supra, pontos 1 a 7. 100 Regime comum s demais religies, arts. 31. e 32. da Lei n. 16/2001 (Lei

    da Liberdade Religiosa, LLR).

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    260

    possvel havendo separao), que parte da responsabilidade mtua

    da Igreja e de Portugal no servio do bem comum, para a

    construo de uma sociedade que promova a dignidade da pessoa

    humana, a justia e a paz101. Esto ambos presentes no

    prembulo, prembulo esse que, estranhamente, no apresenta

    qualquer referncia ao Conclio Vaticano II

    Este princpio da cooperao tem mltiplas concretizaes

    ao longo do texto concordatrio. Assumindo diferentes sub-

    princpios, alguns destes coincidem com fins que o Estado

    tambm prossegue, como a cooperao nas relaes e em

    organizaes internacionais, a assistncia e a solidariedade social, o

    ensino e a preservao do patrimnio cultural da a importncia

    da cooperao, num Estado de Direito Democrtico baseado no

    respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, sendo um

    Estado laico sem ser laicista.

    Outros princpios como o do respeito pelas tradies

    nacionais (arts. 3 e 22.), a garantia da liberdade institucional da

    Igreja e reconhecimento do respectivo exerccio da sua misso de

    forma livre (art. 2., n.s 1 e 4), a garantia da liberdade individual e

    da prtica religiosa dos catlicos, e ainda o reconhecimento da

    funo social da Igreja, integram igualmente texto em causa.

    sobretudo este ltimo princpio, o do reconhecimento da

    funo social da Igreja, que mais interessa nesta anlise.

    Concretiza-se na atribuio de direitos e benefcios s pessoas

    jurdicas cannicas, com fins de assistncia e solidariedade (art

    12), no empenho do Estado na afectao de espaos a fins

    religiosos (art 25), e nos benefcios fiscais da Santa S,

    Conferncia Episcopal, dioceses e demais jurisdies eclesisticas

    e outras pessoas jurdicas cannicas (arts. 26. e 27.) - mas no

    dos sacerdotes. , portanto, com base neste princpio que se

    estruturam os benefcios e isenes tributrias da Igreja Catlica.

    De duvidosa constitucionalidade o art. 9. da Concordada

    de 2004. A igreja tem liberdade para a criao, extino,

    modificao e extino de dioceses, parquias e outras jurisdies

    eclesisticas mas ter sempre que notificar os rgos do Estado e

    a nomeao e remoo de Bispos ter que cumprir a respectiva

    formalidade de notificao (art. 9, in fine) 102. Poder estar em

    causa o n. 4 do art. 41., in fine, que estatui a liberdade de

    101 A Santa S e a Repblica Portuguesa, afirmando que a Igreja Catlica e o

    Estado so, cada um na prpria ordem, autnomos e independentes;, Cfr.

    Antnio de SOUSA FRANCO, Princpios Gerais da Nova Concordata, in

    Lusitnia Cannica... op. cit., pp. 17 e ss. 102 Assim, Jorge MIRANDA, A Constituio e a concordata, in Lusitania

    Canonica, op. cit., pp. 111 e 112.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    261

    organizao interna das Igrejas e consequente proibio da

    ingerncia do Estado na organizao interna da Igreja103.

    Na actual ordem Constitucional, a norma nuclear o art.

    41., que condensa num s preceito toda a dinmica que um

    Estado deve ter em relao s religies sob a epgrafe Liberdade

    de conscincia, de religio e de culto:

    1. A liberdade de conscincia, de religio e de culto inviolvel.

    2. Ningum pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de

    obrigaes ou deveres cvicos por causa das suas convices ou prtica religiosa.

    3. Ningum pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das

    suas convices ou prtica religiosa, salvo para recolha de dados estatsticos

    no individualmente identificveis, nem ser prejudicado por se recusar a

    responder.

    4. As igrejas e outras comunidades religiosas esto separadas do

    Estado e so livres na sua organizao e no exerccio das suas funes e do

    culto.

    5. garantida a liberdade de ensino de qualquer religio praticado

    no mbito da respectiva confisso, bem como a utilizao de meios de

    comunicao social prprios para o prosseguimento das suas actividades.

    6. garantido o direito objeco de conscincia, nos termos da lei.

    Estes trs direitos aqui previstos decorrem uns dos outros

    pela ordem em que so expostos. A liberdade de conscincia

    consiste essencialmente na liberdade de opo pelos prprios

    valores ticos ou morais da conduta prpria ou alheia. A liberdade

    de religio a liberdade de ser ou no praticante de um

    determinado credo religioso. A liberdade de culto consubstancia-

    se no direito individual ou colectivo de praticar os actos externos

    de venerao104 associados a uma determinada religio.

    Atendendo sobretudo liberdade religiosa, que mais

    interessa para o presente trabalho, esta norma consiste numa

    concretizao do princpio da igualdade (art. 13 n.2 da CRP),

    reiterando a proibio de discriminao ou privilgio por motivos

    religiosos.

    O n. 4 vem dar expresso ao princpio da separao entre

    o Estado e as Igrejas. ele prprio um lime material reviso da

    Constituio [art. 288. al. c)].

    103 Pode inferir-se que o dever de notificao (de jurisdies eclesisticas) se

    deve ao facto de no n. 2 do art. 26. da Concordata estar estatuda uma

    excluso de tributao. O Estado ao atribuir essa iseno no deixa de

    ingerir na organizao interna na medida em que arroga-se ao direito de querer

    ser informado sobre as jurisdies eclesisticas. 104 Venerao, aqui, em sentido lato.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

    N. 1 | 2010

    262

    Deste princpio decorrem dois corolrios: o princpio da

    no confessionalidade do Estado e a liberdade de organizao e

    independncia das igrejas e confisses religiosas. O primeiro

    probe qualquer ingerncia religiosa na organizao ou governo do

    Estado ou poderes pblicos e exige ainda a neutralidade do

    Estado105. O segundo garante o oposto, isto , a proibio da

    ingerncia do Estado na organizao interna e funcionamento das

    confisses religiosas. Trata-se sobretudo de admitir uma

    independncia recproca106.

    Esta laicidade no equivale no entanto a uma irrelevncia

    ou desconsiderao da religio. O Estado no assume fins

    religiosos, no professa nenhum credo religioso, nem submete

    nenhuma Igreja ao seu regime administrativo. Mas no ignora a

    funo social, as vivncias religiosas e tradies inerentes, nem o

    apoio social educacional e de incluso que as confisses religiosas

    tm107.

    Uma ltima nota para o facto de a Concordata ser um

    tratado como qualquer outro108. No Direito portugus ela vigora,

    actualmente por via do art. 8 n. 1 da CRP, que uma clusula de

    recepo automtica, aplicando-se sempre que para tal esteja

    habilitada, podendo ser invocada junto dos rgos e agentes do

    Estado como atributiva de direitos e impositiva de deveres109.

    Quanto relao com as normas de Direito interno, como

    normas de Direito Internacional, as normas da Concordata

    105A constituio impe que haja uma separao entre o Estado e as Igrejas,

    ou seja, a neutralidade confessional. Diferente a posio laicista, onde se

    rejeitam as manifestaes religiosas, no estabelecendo quaisquer tipo de

    relaes com nenhuma religio. Esta posio atenta contra o princpio da

    igualdade (art. 13. CRP) porque este obriga diferenciao do que se mostra

    inequivocamente diferente. Neste caso, a Igreja tem uma funo crucial,

    designadamente na assistncia caritativa, logo o tratamento sem ser desigual e

    diferenciado. Vide, numa posio de menor abertura s relaes com as

    diferentes comunidades religiosas, J.L Gomes CANOTILHO/ VITAL

    MOREIRA, Constituio da Repblicaop. cit., pp. 604 617. A igualdade

    administrativa da actividade do Estado, Vide, Diogo FREITAS DO

    AMARAL, Curso de Direito Administrativo, op. cit., pp. 122 127. Sobre a

    distino entre laico e laicista, Vide, Jorge MIRANDA, Manual op. cit., tomo

    IV, pp. 405 e ss. 106 Referncia a este princpio tambm no prembulo da Nova Concordata.

    alis com base nesta independncia recproca e autonomia do Estado e da

    Igreja que se fundamenta todo o Acordo internacional. 107 Assim Jorge MIRANDA E Rui MEDEIROS, anotao ao art. 14. da

    CRP, Constituio Portuguesa Anotada Tomo I, Coimbra editora, 2005, pp. 447 e

    448. 108 Apenas de um ngulo jurdico. 109 Jorge MIRANDA, A Concordata e a ordem constitucional portuguesa, Direito e

    Justia, vol. V, 1991, pp. 158 e ss.

  • REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO

    INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA