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REVISTA DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO
INSTITUTO DE HISTRIA DO DIREITO E DO PENSAMENTO POLTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
N. 1 | 2010
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Trabalhos de alunos do 1. ciclo
Relao da Igreja Catlica e Portugal no Ps 25 de Abril -
Paradigma Fiscal no quadro comparativo das demais
confisses religiosas
Diogo Geraldes1
Sumrio
Nota Preliminar
I. Consideraes histricas 1. Igreja Catlica em Portugal na Idade Mdia 2. Igreja Catlica e Portugal nos alvores do protestantismo -
Idade Moderna
3. A Igreja Catlica e Portugal na aurora do constitucionalismo liberal
4. O grave conflito entre Portugal e a Igreja na Proclamao da Repblica da 1910
5. O ambiente do estatuto jurdico de uma nova poltica religiosa
6. A Concordata de 1940: Antecedentes e caractersticas 7. O Conclio Vaticano II. A mudana do paradigma da Igreja 8. As implicaes fiscais presentes na Concordata de 1940
II. Relao da Igreja Catlica e Portugal no Ps 25 de Abril 9. A Constituio de 1976: a Constituio Democrtica 10. O Princpio da igualdade, a igualdade na tributao. A
capacidade contributiva
11. Benefcios fiscais e isenes e a excluso de tributao 12. A Concordata e a ordem Constitucional Portuguesa luz
da subjectividade da Santa S na Comunidade
Internacional
13. Estatuto fiscal da Igreja Catlica presente na Concordata e comparao com o Estatuto fiscal presente na Lei 16/2001
(LLR)
Concluso
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Nota Preliminar
Por mais infinita que seja a delimitao espacial de um
trabalho necessrio faz-la. Aparar o que suprfluo, que no
possibilita a descoberta ou que tolha essa pretenso por caminhos
tortuosos que no raras vezes se sucedem. Com a delimitao
sugerida pelo Professor, o presente trabalho no poder abarcar
algumas matrias importantes mas que por imperativo espacial
no podem ser abordados.
O trabalho centrar-se- nas relaes que a Santa S e
Portugal estabeleceram aps o 25 de Abril de 1974, focando-se
num dos domnios mais delicados as implicaes fiscais. No
prosseguimento deste estudo no possvel estabelecer o regime
fiscal da Igreja Catlica sem compar-lo com o regime vigente
para as demais confisses religiosas.
Contudo, para se apreender a projeco que a religio tem
no seio da cultura portuguesa necessrio retroceder na Histria,
expondo os momentos mais significativos que marcaram a relao
entre a Igreja Catlica e Portugal desbravando os filamentos seculares
e culturais 2 da Nao Portuguesa.
Releva para o presente trabalho a justificao da
Subjectividade Internacional da Santa S, na medida em que
conduz a um diferenciado face s restantes confisses religiosas.
Dedicar-se- grande acuidade aos momentos histricos
conducentes a alteraes importantes que iro afluir ao sculo
XX, sem descurar a aluso da ligao religiosa desde o bero da
nacionalidade. Os momentos que serviro de mote ao andamento
histrico sero:
Evoluo histrica. Lei de Separao de 1911, resultado da Proclamao
da Repblica.
Concordata de 1940 Concilio Vaticano II Constituio de 1976 Lei de Liberdade Religiosa Concordata de 2004 Como o ttulo permite descortinar, a Histria serve de
antelquio preparatrio explanao do mago do trabalho, o
paradigma fiscal no quadro comparativo das demais confisses
religiosas. Isto , far-se- uma anlise ao regime fiscal da Igreja
Catlica e das demais confisses religiosas, confrontando com a
2 A expresso de Maria Lusa DUARTE, Direito da Unio Europeia e das
Comunidades Europeias, vol. I, tomo I, ed. Lex, 2001,p. 76
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Lei Fundamental luz dos princpios vigentes na ordem jurdica
portuguesa.
Como este trabalho elaborado no 2 ano do plano de
estudos, ainda no foi leccionada a disciplina de Direito Fiscal,
por esse facto no ser abordado numa vertente puramente fiscal.
I. Consideraes histricas
1. A Igreja Catlica em Portugal na Idade Mdia
A religio Catlica, desde o bero da nacionalidade, est
intimamente ligada cultura portuguesa. No indiferente o facto
de a Pennsula Ibrica ter pertencido ao Imprio Romano. Este,
devido expanso que atingiu, tornou-se demasiado grande e
vasto para ser controlvel, tendo perto da sua capitulao em 476
d.C., a Europa quase dominada na sua totalidade e com um
controlo vasto do Oriente3.
Com a queda do Imprio Romano do Ocidente, deixou de
existir uma figura no plano internacional4 que fosse fonte de
concrdia e lograsse de legitimao unanimemente aceite. Emerge
a figura do Romano Pontfice5, que ser durante toda a Idade
Mdia o vrtice da comunidade dos Reinos6 Cristos, a designada
Respublica Christiana.
Aps a Independncia do Reino de Portugal face ao Reino
de Castela, que se consumou materialmente em 11437, s em 1179
foi formalmente exarada a sua existncia jurdico-constitucional
num acto do Papa Alexandre III, a Bula Manifestus Probatum.
3 Vide, Sebastio CRUZ, Direito Romano (Ius Romanum), 4 edio, vol, I,
Coimbra Editora, Coimbra, 1969, pp 80e ss. 4 Plano internacional circunscrito ao antigo Imprio Romano, com poucas
excepes. 5 Aps um perodo de terrveis perseguies aos Cristos pelo Imprio
Romano, o Imperador Constantino consagra a religio Catlica como religio
oficial do Imprio. notrio que esta inverso de posicionamento em relao
aos Cristianismo reveladora de uma religio de convenincia que o
Imprio utilizar na sua ambio tentacular. Vid. Salvatore CALDERONE,
Constantino e il Cattolicesimo, Florena, 1962, pp 125 192 e Marla SORDI,
Storia di Roma. Il Cristianesimo e Roma, Bolonha, 1965, pp 375 396. 6 Contra a designao de Reino, postulando a existncia de Estados desde a
Grcia Antiga, Vide Diogo FREITAS DO AMARAl, Histria das Ideias
Polticas, 5 reimpresso da edio de 1998, vol. I, Almedina, passim. 7 Ano da assinatura do tratado de Zamora, entre D. Afonso Henriques e
Afonso VII de Leo e Castela, a 5 de Outubro de 1143.
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Neste acto est patente a auctoritas do Papa no plano
jurdico-constitucional8 e espiritual j que, segundo a mxima
Paulina nulla potestas nisi a Deo9, sendo o Papa o vigrio de Cristo
na terra. Cada Monarca teria de ser, como nos diz Frei Heitor
Pinto, imitador de Cristo ornado de todas as virtudes, abrasado
no fogo da divina caridade, para que ensine e governe no
somente com leis e palavras mas com obras e exemplos10. Ou
seja, verifica-se que na Idade mdia a teleologia do poder ser
baseada na realizao da justia e do bem comum. O monarca
visto como um pai que deve tratar os seus sbditos (filhos), com
misericrdia e rectido vertidas na lei e nos bons costumes.11
Do outro lado do prisma, ou melhor, na ordem social mais
terrena, povo, a religio o motor de muitas comunidades no que
concerne ajuda e esclarecimento de questes, verbi gratia, ensino, e
tarefas administrativas, onde, com parcos recursos humanos o Rei
no tinha meios para suprir as necessidades da populao onde
por vezes a nica pessoa que conheciam era um clrigo.12
A religio marcava fortemente quase todas as actividades
quotidianas, sendo praticamente transversal a todas as camadas da
populao, formando um corpo indivisvel onde o Rei era a
cabea que comandava todos os membros.13 Relevam as posies
aristotlica e tomista sobre a natureza do regime, a defesa e
teorizao da monarquia apresentado o reino de Deus como
arqutipo poltico14. Esse comando, terico, exercia-se na prtica
8 Mesmo antes da existncia Constituies formais pode justificar-se a
existncia de Constituies no escritas onde exista um poder poltico, neste
caso de legitimao Divina. Vide. Paulo OTERO, Instituies Polticas e
Constitucionais, vol. I, Almedina, Lisboa, 2007, passim. 9 Para o desenvolvimento das doutrinas justificativas do poder, vide RUY DE
ALBUQUERQUE/MARTIM DE ALBUQUERQUE, Histria do Direito
Portugus, 12 edio, vol. I, Edio Sintra, Rio de Mouro, 2005, pp. 459- 474. 10 Cfr. Frei Heitor PINTO, Imagem da vida Crist. Dilogo da Justia, vol I, p.
160. 11 Crf. Antnio BARBAS-HOMEM, A lei da Liberdade, vol. I, Principia,
Lisboa, 2001, pp 122-131. 12 As freguesias so um exemplo paradigmtico da influncia fundamental da
Igreja Catlica na modulao da cultura da comunidade, Vide. Diogo
FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 3
edio, Lisboa, 2006, pp. 509 520. 13 O denominado organicismo e paternalismo poltico. Vide. Antnio
BARBAS-HOMEM, op cit. pp. 26 e 27. 14 Extrado da Cristologia, onde todo o Povo de Deus comunga com o Corpo
mstico de Cristo, Cfr. Catecismo da Igreja Catlica, Grfica de Coimbra, 2
edio, Coimbra, ponto 218, Vide. Martim DE ALBUQUERQUE, O poder
poltico no Renascimento Portugus, ISCPU, Lisboa 1968, pp. 47-62, 123-135 e 205-
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pela unio de todos religio (hodiernamente seria uma religio
de Estado). Factor de coeso territorial, a religio permitiu
congregar diversos ncleos populacionais da poca da ocupao
Romana. profunda a importncia ao nvel scio-cultural atravs
da dinamizao dos centros de estudo, claustrais, episcopais e a
prpria Universidade. No obstante todos os abusos reportados
ao clero, estes devem ser objecto de uma interpretao histrica,
devido complexidade de laos entre as diversas ordens15 e as
prerrogativas concedidas Igreja eram o reflexo (na maioria das
vezes do papel desempenhado pela mesma na comunidade).16
2. A Igreja Catlica e Portugal nos alvores do protestantismo Idade Moderna.
na transio para a Idade Moderna que a Europa sofre
profundas transformaes religiosas, fruto dos novos desafios
lanados no mbito dos descobrimentos, com a redefinio das
abordagens evangelizadoras e do estatuto jurdico dos fiis v.g
ndios.17 Mas com a reforma protestante que a Europa deixar
de militar na unidade teolgico-poltica. o fim da Respublica
Christiana.
Com o dealbar da navegao por outros povos (Ingleses,
Espanhis e Holandeses), surge um conflito latente que ficar
marcado pela questo do mare clausum.
Neste, mais uma vez, salienta-se a postura de cariz catlico
da denominada Escola Espanhola18 na questo supracitada.
Vislumbra-se, nesta poca, o nascimento do Estado
como paradigma da poca Moderna, que conduzir supremacia
do Soberano face ao Papa. As guerras religiosas, a teorizao do
Estado, a invocao da Razo de Estado, entre outras mudanas
15 Historicamente, Nobreza, Clero e Povo. 16 Cfr. RUY DE ALBUQUERQUE/MARTIM DE ALBUQUERQUE, op
cit, pp 24 32. 17 O verdadeiro confronto de civilizaes ocorre com os descobrimentos, Cfr,
Antnio BARBAS-HOMEM, op cit, p 140. 18 Composta por Francisco de Vitria, Domingo de Souto e Francisco de
Suarez. Para um conhecimento aprofundado do da querela jurdica poltica e
religiosa entre dois hemisfrios do Cristianismo. O Catolicismo e o
Protestantismo. Vide. Paulo MERA, Um aspecto da Questo Hugo Grcio
Serafim de Freitas (condio jurdica dos mares no Direito Romano) in Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, II, 1916, pp. 464 e ss.
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no pensamento europeu maioritrio conduziro igualdade
(formal) entre os Estados19,20.
Importa realar a fidelidade de Portugal Doutrina
catlica. O exemplo paradigmtico encontra-se na denominada
Segunda Escolstica que tinha em Portugal grandes defensores21.
Face reforma protestante presente em grande parte da Europa,
desenha-se em Portugal uma corrente que pugnar pelos valores
da tradio catlica alicerados na concepo da moral da
poltica22. A contra-reforma edificada com auxlio de muitos
telogos portugueses que adaptam a moralidade crist medieva s
novas concepes teolgicas do renascimento, nomeadamente
pela afirmao da subordinao ao poder do Romano Pontfice.
margem das querelas doutrinrias a Igreja continuava a
ter o domnio exclusivo da conformao moral das gentes,
culminando, negativamente, no Santo Ofcio23. Foi a face que
transpareceu nesta poca da Igreja em Portugal, todavia
desenvolveu-se um trabalho ao nvel assistencial com a amplitude
da Santa Casa da Misericrdia abarcando praticamente toda a rede
hospitalar portuguesa24.
A subordinao ao Papa pelo poder poltico no foi
sempre a tnica dominante nas relaes internacionais. A questo
dos jesutas fomentada pelo Marqus de Pombal apenas um dos
exemplos na tentativa de afirmao da Igreja nacional face Santa
S25.
19 Martim DE ALBUQUERQUE, O poder poltico no Renascimento Portugus, pp.
150 a 213. 20 Sem esquecer a importncia fulcral da Paz de Vesteflia (1648), Vide por
todos, Jorge MIRANDA, Curso de Direito Internacional Pblico, Principia, 3
edio, 2006, Estoril, pp. 9 14, MARTIM DE ALBUQUERQUE, OS
Descobrimentos e os Direitos do Homem, in Jornal de Letras. 21 Tais como D. Jernimo Osrio, Molina, Francisco Suarez, pertencentes
escola peninsular 22 Entre outros autores, destaca-se o Bispo de Silves, D. Jernimo Osrio e
Barbosa de Homem. Crf. Discursos de la Iuridica y verdadera RAzon de Estado,
Contra a fomentacion por mdios ilcitos, p. 263 23 No raras vezes manipulada pelo poltico no sentido de eliminar os
opositores e inconvenientes para a estabilidade Real. Vide., Teresa
BERNARDINO - Sociedade e atitudes mentais em Portugal (1777-1810).: Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1985, p. 100 e ss. 24 Cfr. Laurinda, ABREU, Padronizao Hospitalar e Misericrdias: apontamentos
sobre a reforma da assistncia pblica em Portugal. Revista Portuguesa de Histria, 1996,
31 (2), pp. 287-303. 25 Cfr. Sergio Ferlito, La lege Portoghuese di Libert Religiosa in separata da revista
da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLIII n 2,
Coimbra Editora, 2002, Lisboa, pp. 1402- 1406.
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A aco da Igreja era ampla, abarcando quase toda a
sociedade portuguesa. At ao despontar do liberalismo em
Portugal as relaes entre os dois Estados (Santa S e Portugal)
so pautadas pelo estabelecimento de acordos que visam quase
sempre estabelecer obrigaes recprocas decorrentes da aco do
padroado em Portugal e posteriormente nos territrios alm-
mar26.
Digno de nota a celebrao de apenas duas concordatas
durante as Constituies de cariz liberal (excluindo a Constituio
de 1911) 27. Com as Constituies de pendor formal, foram
positivadas normas ainda que incipientes sobre a regulamentao
das relaes entre o Estado e a Igreja28.
3. A Igreja Catlica e Portugal na aurora do constitucionalismo liberal
No de somenos importncia o facto de a Igreja ser um
pilar fundador do Ancien Regime, correspondente ao pensamento
da unidade axiolgica edificada em torno do ideal cristo. A
nacionalidade confunde-se com a Igreja Catlica e o esprito
cristo est imerso na cultura portuguesa. Logo na transio para a
Monarquia Constitucional deram-se passos no sentido de no
haver um corte repentino no passado de comunho entre a Igreja
e o Estado29. Neste sentido haver, em Portugal uma relativa
26 Houve um total de 16 acordos (concrdias) at primeira constituio de
1822. Para um aprofundamento do contedo dos acordos, Vide. Estudos sobre a
nova Concordata, Santa S Repblica Portuguesa 18 de Maio de 2004, Universidade
Catlica Editora, 2007, Lisboa, pp 357 - 359 27 No obstante ser classificada como a ltima constituio liberal, para as
relaes entre a Igreja e Portugal, esta ser abordada autonomamente visto ser
a matriz da separao intempestiva entre Igreja e Estado que estar na base da
Concordata de 1940, vid. Infra 4 28 Uma excepo a Concordata de 1848, que reatou as relaes entre
Portugal e a Santa S firmada por D. Maria II aps um grave conflito
perpetrado pelo Ministro da Justia no Decreto de 30 de Maio de 1834 que
visava extinguir todos os conventos e ordens religiosas. Verifica-se uma tenso
permanente entre as correntes pr-modernas e tradicionalistas no
constitucionalismo oitocentista em grande parte devido tentativa de
controlar jurisdicionalmente a Igreja, por parte do Estado. Cfr, Sobre este
ponto, Jnatas MACHADO, Liberdade religiosa numa comunidade constitucional
inclusiva Dos direitos da verdade aos direitos dos cidados, Coimbra Editora, 1996,
Coimbra, pp. 112 e ss. 29 Face aos ideais liberais tinha perdido relevncia a comunho poltica e
religiosa do Estado e da Igreja.
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secularizao da sociedade com preponderncia para afastar do
plano poltico a Igreja30.
A revoluo liberal ps em causa o regalismo e a ausncia
de igualdade entre os diversos estratos da comunidade. O
pensamento liberal radicava, sobretudo, na revoluo francesa que
viria a ter um forte pendor anti-clerical na medida em que,
lancetava o passado sem deixar qualquer marca de identificao
com o presente31.
Altera-se o modo de observar a origem do Poder. Em
Portugal, opta-se por enveredar pela via moderada, que conduzir
ao constitucionalismo liberal32. Contudo opera-se o figurino de
origem do Poder; este j no se encontra apenas na legitimidade
Papal mas sim na Nao (art. 121. C. 1822). Acentua-se o
carcter derivado da autoridade do Rei, resultando o seu poder da
Nao. Ensaia-se, explicitamente por limitao negativa a
proibio de ingerncia do Rei na esfera judiciria (Cfr. 124. C.
1822) 33. Em Portugal, consagra-se a religio catlica como religio
de Estado em sede Constitucional. A monarquia constitucional
influenciada pelo iderio liberal mas, sem descurar a forte tradio
e implementao da religio catlica no seio da comunidade,
concede alguma tolerncia para as demais confisses, mas
proclama a religio Catlica como religio de Estado, (o
Prembulo, o art. 25. e o art. 237. so exemplos paradigmticos)
34.
Concilia-se a posio dominante da Igreja em toda a
sociedade com os novos vectores liberais. As restantes
Constituies da Monarquia liberal (1826 e 1838) tinham de
comum declararem a religio catlica apostlica de rito romano,
religio oficial do Estado (art. 6. da C. 1836 e art. 3. da C. 1838).
A distino, nas diversas Constituies, operava-se apenas no
modo de manifestao da religio perante as pessoas. 30 Cfr, Jnatas MACHADO, op cit, pp. 92 95. 31 de relevar para assuno de uma liberdade no plano religioso assente na
igualdade entre os homens, vide art. 1. da Declarao de Direitos do Homem
e do Cidado. Os homens nascem e so livres e iguais em direitos. 32 Pelas discusses travadas nas Cortes Constituintes e pela imprensa da poca
possvel descortinar trs tendncias do modelo poltico-constitucional a
eleger: O constitucionalismo ingls, o modelo francs, no sector mais radical,
e os gradualistas, que perfilhavam o figurino da Constituio de Cdis de
1812. Cfr, Jos GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituio, Almedina, 7 edio ( 4 Reimpresso), 2003, p. 129. 33 Cfr, Jos GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 132 e 133. 34 As referncias encontram-se logo Santssima Trindade alude um modo
inquestionvel Igreja Catlica, pois esta estabeleceu-a como dogma desde o
Conclio de Constantinopla em 553. Cfr. Catecismo da Igreja Catlica, op. cit., p.
72.
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Apesar de, aparentemente, a consagrao do catolicismo
como religio de Estado estabelecer um regime favorvel de quase
exclusividade, este retirava qualquer margem de manobra
Igreja no sentido da intromisso do Estado no seio da
organizao e actividade administrativa ser um limite prpria
actuao livre da Igreja. Sendo considerada uma religio oficial,
eram concedidos Igreja uma srie de privilgios e Coroa um
conjunto de prerrogativas que, mais do que favorecer,
dificultavam a liberdade e a autonomia da aco da Igreja. Se o
culto e o clero eram subvencionados (embora mal) pelo
oramento de Estado, e aos bispos era reconhecida uma particular
capacidade de representao poltica como membros vitalcios da
Cmara dos Pares do Reino, Igreja, era retirada liberdade de
exerccio com o beneplcito rgio35.
Saliente-se o facto de este tratamento diferenciado s ter
sido exequvel devido existncia de uma margem muito residual
de crentes de outros credos.
4. O grave conflito entre Portugal e a Igreja na Proclamao da Repblica da 1910
A proclamao da Repblica foi acompanhada de um
gravssimo conflito religioso, alicerado num anticlericalismo de
natureza jacobina com fortes influncias do positivismo (jacobino)
ideolgico do Partido Republicano. Este esprito presidiu
elaborao da Constituio de 1911 (C. 1911), apesar de no estar
explicitamente expresso.36
O cerne do conflito surge com a Lei de Separao de 1911,
por meio da qual se verifica uma drstica separao entre o
Estado e a Igreja37. Pode defender-se que esta lei era filha
ilegtima da idntica Lei francesa de Combes (visceralmente
35 Indispensvel publicao e circulao dos seus documentos. Eram ainda
cerceadas outras liberdades com as contnuas ingerncias do Estado na
organizao e expresso da vida em Igreja. 36 A liberdade religiosa, de conscincia e a igualdade poltica e civil de todos os
cultos estava apenas consagrada formalmente, (arts. 3., 4. e 5.,
respectivamente). Os princpios constantes desta Constituio rapidamente se
transformaram em letra morta. Assim, por todos, Jnatas MACHADO,
op.cit., pp. 120 e ss, Jorge MIRANDA, A Constituio e a Concordata: Brevssima
Nota, in Lusitania Cannica, Estudos sobre a nova Concordata. op. cit., pp.
101-112; JORGE MIRANDA, O princpio da igualdade e tributao dos ministros de
culto, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Joaquim Moreira da
Silva Cunha, Coimbra Editora, Lisboa, 2005. pp. 437-463. 37 Cfr. Sergio FERLITO, op. cit., p. 1410.
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jacobina e anticlerical) 38. Ou seja, verifica-se um recrudescimento
dos valores mais radicais herdados da Revoluo Francesa39.
Seguiu-se um perodo difcil de declarado conflito institucional
que contribuiu em larga medida para o descrdito da primeira
Repblica e havia de conduzir revoluo de Maio de 1926 e ao
consequente Governo ditatorial40.
Um curioso relato que contrasta fortemente com o
discurso oficial do regime republicano surge de um escritor
espanhol, Unamuno, que na sua viagem por Portugal dois anos
antes da revoluo de 1910, caracteriza o povo portugus como
profundamente catlico nas suas mltiplas expresses msticas, do
popular ao pseudo-erudito41
5. O ambiente do estatuto jurdico de uma nova poltica religiosa
Com a aprovao da Constituio de 1933, inaugura-se um
novo captulo nas relaes entre a Igreja e Portugal, tendo a
Constituio encerrado um cariz compromissrio com forte
pendor totalitrio42. A questo religiosa favoreceu a adeso por
parte dos grupos catlicos ao ideal corporativista e nacionalista do
regime de Salazar que canalizaram o seu descontentamento face
primeira Repblica43,44. A Liberdade Religiosa foi consagrada
38 Assim, D. Eurico Dias NOGUEIRA, A concordata de 1940: Contributo para a
paz em Portugal e aspectos a modificar in Lusitania Cannica, Relaes Igreja
Estado em Portugal, Universidade Catlica Editora, Lisboa, 2002, p. 347. 39 Com uma posio oposta vide Jnatas MACHADO, op cit, passim 40 Sendo certo que houve alguma atenuao do regime de suspeita e de
desrespeito face Igreja a partir da primeira guerra mundial. Entre outros. o
Presidente Sidnio Pais inverteu tenuemente a marcha e restabeleceu as
relaes diplomticas com a Santa S (promovidas pelo cientista-poltico Egas
Moniz), Cfr D. Eurico Dias NOGUEIRA, op cit., p. 248. 41 Cfr D. Carlos AZEVEDO (coordenao), Histria religiosa de Portugal, vol.
III, Circulo de Leitores, Rio de Mouro, 2002, pp. 148 e 149. 42 H um trplice compromisso entre o constitucionalismo liberal, as
tendncias polticas de Salazar Nacionalismo poltico e autoritarismo. Assim
Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo I, Coimbra Editora, 3
edio, 2003, Lisboa, pp. 298 304. 43 Paulo OTERO, A concepo unitarista do Estado na Constituio de 1933, in
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pp. 415 434, Sobre a
Constituio de 1933 em geral Vide, Paulo OTERO, Legalidade e Administrao
Pblica. O sentido da vinculao da Administrao juridicidade, Almedina, Coimbra,
2003, pp. 110 132; 355 357; 424 426; 567 569. 44 Para a construo do corporativismo necessrio atentar s Encclicas:
Rerum Novarum, de 1891, e Quadragesimmo Anno, de 1931, onde se propes um
via intermdia entre o socialismo e o capitalismo.
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amplamente no s na sua vertente individual (art. 8. da
Constituio de 1933), como na prpria liberdade de organizao
das confisses e separao das Igrejas do Estado, inscrito numa
constituio portuguesa pela primeira vez (art. 45. e 46.,
respectivamente), mas que praticamente no foram cumpridos.
A manipulao urdida pelo regime permitiu que o
fenmeno religioso fosse aproveitado como elemento de
estabilizao social, nacionalizando com aproveitamento poltico,
o carcter conservador dos portugueses.
Apesar de formalmente separadas, mantinham-se em
estreita colaborao moral, sem o distanciamento requerido.45
6. A Concordata de 1940: Antecedentes e caractersticas.
A Concordata surge num ambiente de aproximao
recproca em regime de separao concordatado. Ao estabelecer
um regime favorvel para a Igreja, o Estado poderia controlar a
sua liberdade, j que, tendo a Igreja o controlo dos crentes, mais
possibilidades tinha o regime de permanecer no poder. A Igreja
foi ainda mais manietada aps a reviso Constitucional de 1951,
devido incluso (art. 45., CRP) da designao Religio da
Nao Portuguesa46. Foi um passo atrs que afastou o tratamento
atribudo pelo Estado Igreja Catlica e s demais confisses
religiosas, na medida em que as relaes entre Igreja e Estado
seriam objecto de uma conveno internacional (Concordata),
enquanto com as demais confisses no catlicas apenas se
estabeleceria acordos para regular as manifestaes extrnsecas
dos cultos47. Alm disso a personalidade jurdica das associaes
e organizaes catlicas continuava a ser reconhecida ope legis, e as
45 Assim, D. Carlos AZEVEDO, Momentos e temas em confronto nas relaes Igreja -
Estado em Portugal in op. cit, pp. 9 14; Manuel BRAGA DA CRUZ, A
Concordata com a Santa S cinquenta anos depois, Communio, 1991, pp. 272 280 e
Jorge MIRANDA, O princpio da igualdade e tributao p. 448. 46 Apesar do parecer negativo da Cmara Corporativa, elaborado por Marcello
Caetano. 47 Atente-se no facto de a Constituio de 1933 tratar com desigualdade as
relaes com a Igreja e as demais confisses. Tratando as outras confisses
como no catlicas e limitando os acordos manifestao extrnseca dos
cultos a Constituio violava uma norma (art. 4.) que propugnava a
igualdade na aplicao da lei. claramente uma desigualdade que atentava
contra os princpios eclesiais. O Estado tentava, mais uma vez, amarrar a
Igreja sua doutrina.
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associaes doutras confisses s poderiam ser reconhecidas
casuisticamente48.
Na reviso Constitucional de 1971, o nome de Deus foi
introduzido na Constituio (art. 45., CRP), no artigo sobre
liberdade religiosa. Esta seria objecto, no final do Estado Novo,
de uma lei, a Lei n. 1/71, de 21 de Agosto. Surgida por imposio
do crescimento de outras manifestaes da pulverizao do
religioso, em tese, possibilitaria um tratamento diferenciado
dependendo da sua representatividade49. Contudo, a
Constituio de 1976 que garantir a liberdade religiosa sem
limites no tratamento das confisses, na medida em que uma
Constituio de pendor totalitrio (C. 1933) nunca poderia ter
uma abertura liberdade.
Nos 48 anos de totalitarismo, houve sempre vozes no seio
da Igreja catlica que se ergueram contra o regime opressor,
sendo de destacar as intervenes da Aco Catlica, a
manifestao a partir de 1958 do Bispo do Porto, D. Sedas Nunes,
que numa das suas cartas exprimiu a sua opinio sobre a
Corporativismo. Criticou fortemente o corporativismo
implementado pelo Estado Novo, porque aquele no
correspondia ao corporativismo defendido pela Igreja50. A
interveno mais meditica foi, por ventura, a do Bispo do Porto,
D. Antnio Ferreira Gomes. Na intitulada declarao de voto ou
Pro-memria51 feita uma crtica dura ao regime e actuao de
Salazar. Como consequncia, o bispo do Porto ser exilado
durante 10 anos (1959 1969) Pode defender-se que s
compreendendo a dinmica das relaes entre o Estado e a Igreja
possvel entender que no concebvel a queda da Primeira
Repblica e a ascenso do regime autoritrio, sem referncia
poltica religiosa republicana e insatisfao de grandes pores
da comunidade portuguesa (maioritariamente tradicional e 48 O que, de per si, no discriminatrio. S o na medida do tratamento
francamente desajustado que a religio catlica tinha face s demais religies,
tratando-a com superioridade. Esta no deve ser aferida pelo Estado. O
Estado deve apenas reconhecer a religio com mais laos histricos, e trat-la
em conformidade, no com tamanha desproporo, que s atenta contra a
liberdade dos crentes face ao poder poltico. 49 Para um maior desenvolvimento, vide, D. Carlos AZEVEDO
(coordenao), op cit, pp. 480 506. 50 De destacar as crnicas de Ruy Belo e as intervenes que milhares de
leigos tiveram na denncia da poltica do Estado Novo mas que muitas vezes
no era seguida pela hierarquia. O corporativismo do Estado Novo tinha, em
teoria, sido inspirado pelo corporativismo propugnado pela Doutrina Social
da Igreja. Cfr. D. Carlos AZEVEDO, Momentos e tema.. op. cit., pp. 11 26;
Compndio da Doutrina Social da Igreja, principia, 2005, Estoril, pp. 258 e ss. 51 Mais conhecida por Carta a Salazar.
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agrcola). De igual modo no possvel compreender a Revoluo
de 1974 sem analisar a tenso crescente da conscincia catlica,
aps a II Guerra Mundial e sobretudo aps o Conclio Vaticano
II52.
7. O Conclio Vaticano II. A mudana do paradigma da Igreja
O ambiente poltico e eclesial presente ao tempo da
aprovao da Concordata de 1940 era, como j se disse, um
regime de separao concordatado53. Perante o confisco54 de
bens operado em 1834 (para as ordens religiosas) e em 1911 (para
o clero diocesano), a concordata era uma manifestao da
(re)aproximao entre o Estado e a Igreja. Seria uma forma de
compensar o tratamento arbitrrio de que esta padecera
anteriormente.
Um marco que poria em causa a actualidade da Concordata
e da actuao do regime viria a ser o acontecimento do sculo na
Igreja, o Conclio Vaticano II. O verdadeiro aggiornamento proposto
por Joo XXIII na abertura conciliar permitiu reposicionar o
magistrio da Igreja catlica. Isto , o Conclio Vaticano II
significou mais do que uma renovao teolgica e doutrinria,
tendo consubstanciado uma viragem para a modernidade. Importa
realar a importncia prima facie da passagem da precedncia da
verdade sobre a liberdade para uma precedncia da liberdade
sobre a verdade. Esta inverso encerra uma importncia primacial
porque lanou o mote para a construo de Liberdade como fonte
luminescente da dignidade da pessoa humana, encontrando-se
positivada nos documentos conciliares, designadamente na
52 Cfr. Manuel BRAGA DA CRUZ, O Estado Novo e a Igreja Catlica, Bizncio,
Lisboa, pp.32 48 e 191 193. 53 Vide, supra 6. 54 Para uma diferena entre confisco, expropriao e indemnizao, vide,
Antnio Carlos dos SANTOS, Maria Eduarda GONALVES, Maria Manuel
Leito MARQUES, Direito Econmico, Almedina, 5 edio, Coimbra, pp. 43 e
46. De notar que a propriedade era um Direito Sacrossanto nas Constituies
liberais, mas para a Igreja olvidou-se esse principio paladino dos liberais. Vide,
art. 6. da C. 1822, art.145. - 21 da Carta Constitucional de 1926; art. 23. da
C. 1838; art. 3. - 25 da C. 1911. Classificando o direito como Sacrossanto nas
Constituies liberais, Assim, Jos GOMES CANOTILHO/ VITAL
MOREIRA, Constituio da Repblica Portuguesa anotada, art. 1. a 107., vol. I,
Coimbra editora 4 edio, Coimbra, 2007, pp. 798 811.
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Declarao Dignitates Humanae. Consagra de modo solene e
categrico o reconhecimento da liberdade religiosa a todos os
homens55.
A Declarao alerta para o facto de todo o homem ter o
dever de procurar a religio, sem quaisquer meios coactivos, de
uma maneira livre. condenada a impossibilidade do exerccio
pblico dos actos religiosos56. Em sintonia, encontra-se a
Constituio Pastoral Gaudium et Spes, que pela primeira vez no
estabelece um paralelismo entre a sua condio de sujeito de
Direito Internacional e as relaes com os Estados, uma vez que o
magistrio do Conclio Vaticano II no privilegia propriamente
essa condio, para fundamentar as suas relaes com os Estados.
Sendo embora Igreja Universal, agrupamento ou sociedade
visvel e comunidade espiritual, a Igreja tenta ser fermento na
vida social do corpo poltico. Difundindo, como diz a Gaudium et
spes - os reflexos da sua luz, sobretudo enquanto cura e eleva a
dignidade da pessoa humana, consolida a coeso da sociedade e d
um sentido mais profundo actividade quotidiana57. No Conclio
opera-se uma inverso da justificao do exerccio da liberdade
religiosa concedida Igreja Catlica. Se at ao Conclio a doutrina
que era patente nas relaes entre o Estado e a Igreja, era
elaborada numa centralidade institucional, isto , tomando como
referencial a configurao scio-jurdica da sociedade perfeita58,
agora, prevalece preferencialmente uma centralidade
personalista, ou seja, a especificidade das relaes entre os
Estados e a Igreja consubstancia-se na colaborao prestada pelas
entidades, ambas vocao integral da pessoa humana59. Aps a
55 Cfr. Declarao Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa. p. 2. E Vide. Joo
XXIII, Encclica Pacem in Terris, 11 de Abril 1963: AAS 55 (1963), pp 260 e
261. 56 A Declarao no distingue catlicos ou protestantes ou qualquer outra
manifestao religiosa, tendo como limite a perturbao da ordem pblica.
claramente contrria aos princpios constantes da Constituio de 1933. No
advoga a supremacia de qualquer religio. , portanto, uma injustia contra a
pessoa humana e contra a prpria ordem estabelecida por Deus, negar ao
Homem o livre exerccio na sociedade, uma vez salvaguardada a justa ordem
pblica. Cfr. Declarao op. cit., p. 3, 2. 57 Gaudium et Spes (traduo) A Igreja no mundo actual, Editorial Apostolado da
Orao, 7 edio, Braga, p. 65, ponto 40. 58 Antes do Conclio a projeco externum do seu Direito era baseada na
socialidade perfeita, apesar de se assumir como que a Igreja tinha essa
duplicidade. A sua essncia era divina e humana. Assim, Ruy Leito, Sobre a
natureza das Concordatas, tese de mestrado apresentada na Faculdade de Direito
de Lisboa em 1945 (indita). 59 Cfr. Gaudium et Spes (traduo) A Igreja no mundo actual, op. cit., p.135, ponto
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II Guerra Mundial, assiste-se ao ltimo estdio do Estado
Moderno, que nasceu face falncia dos Estados totalitrios,
inspirados remota ou mais proximamente pelo Estado hegeliano.
Este ltimo estdio caracterizado pelo ideal de Estado
democrtico, de Direito, social, laico e pluralista. Com a
revalorizao da dignidade da pessoa humana numa sociedade
democrtica, j no possvel o Estado tecer consideraes sobre
os valores de esprito. A criao cultural, as convices morais,
artsticas, as opinies polticas, etc, no podem ser objecto de
doutrina de Estado. Contudo o Estado recorre a um sistema de
valores imanente sociedade mas que transcende o prprio
Estado60. E a, o Estado socorre-se da matriz que conforma uma
comunidade, que constitui o filamento cultural. No caso
portugus, o Estado, pelo que foi exposto, deve recorrer, entre
outras, matriz crist. O Estado plural e laico, mas o Estado
constitudo por pessoas que desenvolvem a sua actividade atravs
da cultura impregnada na prpria sociedade61.
No que concerne ao Direito Internacional, este sculo
prdigo em proclamaes da dignidade da pessoa humana como
direito inalienvel, e consequentemente, a liberdade religiosa. A
Declarao Universal dos Direitos do Homem, em 1948,
proclama no art. 18. a liberdade religiosa nas suas diversas
manifestaes. De considerar a Acta de Helsnquia, adoptada por
35 Estados, incluindo a Santa S, que tambm proclamou o
direito liberdade religiosa62.
Sobre a eliminao das formas de intolerncia e de
discriminao fundadas na religio ou nas convices, debrua-se
a Declarao da Assembleia Geral das Naes Unidas, de 25 de
Novembro de 1981. de particular importncia para Portugal o
estabelecido no art. 13. do Tratado de Roma, j que a par da
DUDH, os tratados da Unio63 entram na ordem jurdica
portuguesa, estando apenas sujeito ao crivo da Lei Fundamental64.
60 Enquanto entidade poltico-administrativa. 61 Para uma abordagem geral, Cfr. G. THILS, Le statut de la communnaut
ecclesiale dans le droit des tats modernes, p. 387. Paulo OTERO, Instituies
polticas op. cit., pp 428 449 e JOO XXIII, Enciclica Pacem interris,
11.04.1963, AAS 55 (1963), pp. 291-292. 62 O documento sistematizou os direitos em trs seces, sendo a terceira
sobre a liberdade religiosa. 63 Direito primrio da Unio Euro-Comunitria. Expresso utilizada pela
Professora Maria Lusa Duarte. Vide. Maria Lusa DUARTE, op. cit., Passim. 64 A DUDH encontra-se num plano supra-constitucional (art. 16. CRP) e o
Direito da Unio Europeia tem uma parametricidade similar s normas de
Direito Interno (art. 8. n. 4 da CRP).
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Verifica-se que o paradigma do final do Estado Novo no
que concerne Igreja, encontrava-se esgotado e francamente
desactualizado. A Igreja tinha mudado, agora encontrava no
Estado um parceiro para a independncia e no um suserano no
qual a Igreja ficava manietada pelo poder poltico65.
8. As implicaes fiscais presentes na Concordata de 1940
A Concordata de 1940, de 7 de Maio,66 tem diversos
artigos que, prima facie, poderiam redundar em privilgios
infundados. Contudo, estes devem ser entendidos luz do
momento histrico que lhes deu origem. O artigo VIII, referente
s isenes fiscais, dispe:
So isentos de qualquer imposto ou contribuio, geral ou local, os
templos e objectos nele contidos, os seminrios ou quaisquer estabelecimentos
destinados formao do clero, e bem assim os editais e avisos afixados
porta das igrejas, relativos ao ministrio sagrado; de igual iseno gozam os
eclesisticos pelo exerccio do seu mnus espiritual.
Os bens e entidades eclesisticos, no compreendidos na alnea
precedente, no podero ser onerados com impostos ou contribuies especiais.
Concordata foi aditado o Acordo Missionrio, que tinha
como ultima ratio tutelar o padroado no alm-mar.
O artigo 11. do Acordo Missionrio rezava assim67:
Sero isentos de qualquer imposto ou contribuio, tanto
na Metrpole como nas colnias :
a) todos os bens que as entidades mencionadas no artigo
868 possurem em conformidade com os seus fins:
b) todos os actos inter vivos de aquisio ou de alienao,
realizados pelas ditas entidades para satisfao dos seus fins, assim
65 Gaudium et Spes (traduo) A Igreja no mundo actual, op. cit., p. 135, ponto 76. A
viso da Igreja centra-se no servio e caridade. Estes dois vectores da
mensagem evangelizadora s podem ser conduzidos se no houver uma
interaco que no redunde em controlo por parte do Estado em relao
Igreja catlica. 66 Publicada no Dirio do Governo, 1. srie, n. 158 de 10 de Julho de 1940. 67 Apesar de se ter utilizado o pretrito, o Acordo Missionrio (as relaes
jurdicas que ainda existiam, mantm-se) ficou ressalvado com a Concordata
de 2004. Vide art. 31. da Concordata de 2004. 68 Dioceses, circunscries missionrias, outras entidades eclesisticas,
institutos religiosos das colnias assim como os institutos missionrios,
masculinos e femininos, que se estabelecerem em Portugal continental e ilhas
adjacentes.
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como todas as disposies mortis causa de que frem beneficirias
para os mesmos fins.
Alm disso, sero isentos de todos os direitos aduaneiros
as imagens sagradas e outros objectos de culto.
Como j foi aludido, o estabelecimento deste regime foi
fruto da compensao que o Estado se viu na obrigao de
conceder. Como muito do patrimnio que tinha sido confiscado
Igreja69 j era patrimnio classificado, no era materialmente
possvel a restituio dos bens em espcie. A Indemnizao
afigurou-se como uma das solues possveis, mas os montantes
seriam de valor to elevado que rapidamente foi afastada essa
hiptese.
A soluo que correspondeu ao entendimento possvel
atribuiu Igreja uma amplitude generosa no que concerne sua
actividade eclesial, concedendo desagravamentos fiscais, isto ,
mais do que isenes. Estas pressupem um reconhecimento
administrativo (subjectivo ou objectivo), enquanto que, nas
situaes de excluso da tributao, esta operada ope legis70. Ou
seja, no necessria qualquer norma habilitante que reconhea a
personalidade jurdica. uma norma no necessita de
regulamentao porque o Estado devolve, neste caso, ao Direito
Cannico, a ereco de pessoas morais. A letra do preceito deixa
antever uma iseno71 objectiva72. Isto , as isenes s
seriam aplicadas nos prprios templos e seminrios e no nas
pessoas morais (colectivas) que as administravam73,74. No artigo
69 Vide, supra 7, 1. 70 Crf. Isabel MARQUES DA SILVA, Implicaes fiscais in op. cit., pp. 210-222;
Manuel PIRES, Aspectos fiscais in op. cit., pp. 201-207. 71 A iseno entre aspas indica a excluso de tributao. 72 Para estabelecer a melhor interpretao a tomar. Vide, entre outros, Joo
Baptista MACHADO, Introduo ao Direito e ao Discurso Legitimador, 16.
reimpresso, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 175 185; Jos de OLIVEIRA
ASCENSO, O Direito - Introduo e teoria geral, 13. edio refundida,
Almedina, Coimbra, 2007, pp. 391-430. 73 Uma interpretao tendo em conta a ratio do preceito, atendendo-se aos
elementos histrico e teleolgico, postergando-se o literal. Nesse sentido o
STA, pelo menos desde 1965, veio afirmando reiteradamente que as isenes
previstas no artigo VIII da Concordata de 1940 tm carcter subjectivo ou
pessoal e no carcter objectivo ou real Cfr entre outros, Ac. Do STA de 30
de Junho de 1993 (rec. N. 4776); Ac. Do STA de 18 de Fevereiro de 1988
(rec. N 4776) e Ac. Do STA de 4 de Junho de 2003 (rec. N. 593/2003). A
ereco de pessoas morais (ou colectivas, como mais usual em Portugal)
regida pelo Cdigo de Direito Cannico e a Lei Fundamental do Estado do
Vaticano (A nova Lei Fundamental do Vaticano apenas foi publicada em
2000, vide, Lei fundamental do Vaticano in,
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11. do Acordo Missionrio prev-se que todos os bens no
estejam sujeitos a tributao. Se se reportar poca da redaco
do artigo facilmente se percebe a amplitude dos desagravamentos
fiscais concedidos Igreja.
Importa sublinhar que este regime resultava tambm da
especificidade do posicionamento da Igreja catlica gerada ao
longo de sculos (como foi apresentado anteriormente)75 e do seu
amplssimo papel e aco na sociedade portuguesa em domnios
variados, como a assistncia, a beneficncia, a educao, a cultura.
Face ao exposto, possvel afirmar que o estatuto da Igreja
catlica no enfermava de privilgios, no obstante a relao entre
as duas entidades estar corrompida pelo posicionamento do
Estado Novo e da respectiva Constituio de 193376.
II. Relao da Igreja Catlica e Portugal no Ps 25 de Abril.
9. A Constituio de 1976: a Constituio Democrtica.
A Revoluo de Abril de 1974 terminou com 48 anos de
vigncia do regime poltico anterior, o Estado Novo,
consubstanciando-se na descontinuidade material da Constituio
de 1933. Seria o prenncio da liberdade e a efectivao do respeito
pela dignidade da pessoa humana. Desde o incio, a legitimidade
revolucionria teve igualmente como ponto de referncia a
DUDH.
Apesar da turbulncia fracturante, vivida no perodo que
precedeu a aprovao da Constituio, e das tentativas de
enformar a Constituio num sentido socializante, prevaleceu a
liberdade, a participao democrtica, o respeito pelo direitos do
Homem e a efectiva ateno propriedade privada (nas revises
subsequentes)77. Com a primeira Constituio verdadeiramente
http://www.vatican.va/vatican_city_state/legislation/documents/scv_doc_20001126_leg
ge-fondamentale-scv_po.html). 74 Cfr. Manuel PIRES, Iseno de Impostos, Comentrio ao artigo VIII da Concordata
de 1940, in Concordata entre a Santa S e a Repblica Portuguesa, Almedina,
Coimbra, 2001, pp. 135 e ss. 75 Vide, Supra, 1-7. 76 Assim, Manuel PIRES, Benefcios Fiscais e a Igreja Catlica, in Lusitania
Canonica, Relaes Igreja... op. cit., p. 153. 77 Para uma perspectiva da transio para a Constituio de 1976, Ver Jorge
MIRANDA, Manual Tomo I, op. cit., pp. 329-252; Jos GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoriaop. cit., pp. 195-219. Mais
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democrtica, passa a garantir-se a liberdade religiosa sem
discriminao de confisses e ainda sem limites especficos,
servindo a separao entre o Estado e a Igreja como garantia da
liberdade e da igualdade.
10. O Princpio da igualdade, a igualdade na tributao. A capacidade contributiva
Um dos princpios primazes num Estado de Direito a
igualdade. H de comum na tradio constitucional portuguesa78 a
positivao deste Direito, como caracterstica indelvel do
liberalismo. Contudo, a frmula empregue na Constituio
Portuguesa de 1976 (CRP), constante do art. 13., deixa notar a
componente jusracionalista enformada pela moderna tcnica
jurdica. O seu n. 1, segundo o qual todos os cidados tm a
mesma dignidade social perante a lei, apresenta o trao da
igualdade natural interligado com a igualdade jurdica. Todavia o
social presente na frase faz emergir a distncia face ao pensamento
liberal. Neste, bastava a igualdade formal, isto , igualdade perante a
lei. O foco centrava-se no aplicador da lei. Agora exige-se uma
igualdade material, uma igualdade na lei79. Mais do que dirigido para
o aplicador do preceito, a igualdade na lei impende sobre os
rgos criadores da norma, sendo objecto de uma estruturao,
partindo o Estado de sujeito passivo da igualdade para criador
dessa mesma igualdade80. Esta probe igualizaes arbitrrias ou
infundadas, material ou racionalmente. E probe discriminaes,
feitas com base em critrios subjectivos, ou com base em critrios
objectivos mas aplicados em termos subjectivos. A igualdade da
lei obriga o legislador tambm a adoptar distines a fim de criar
desenvolvidamente no que concerne s revises constitucionais que
permitiram abrir a Constituio iniciativa privada em 1982 e 1989,
expurgando muito do cariz socializante que enformava a Constituio, Vide,
numa abordagem econmica. Eduardo PAZ FERREIRA, Direito da Economia,
AAFDL, reimpresso de 2008, Lisboa, 2001, pp. 101-168. 78 Com um pendor decisivo nas Constituies liberais. 79 O pensamento liberal centrava-se na universalidade da lei e na prevalncia
de lei na medida da abrangncia de todo o universo destinatrio da norma e a
prevalncia da lei como predomnio da vontade geral sobre o interesse
particular. Assim, Srgio VASQUES, O Princpio da Equivalncia como critrio de
igualdade tributria, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 15- 38. 80 Atentando no possvel vazio semntico do princpio da igualdade, Maria
de GLRIA GARCIA, Princpio da igualdade: Frmula vazia ou frmula carregada de
sentido?, BMJ, 1986, n. 368, in Maria da Glria Garcia (Lisboa, 2005), Estudos
sobre o princpio da Igualdade, 29-73.
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um mnimo de igualdade de oportunidades, ou a priori, ou nos
resultados a atingir.
Modernamente possvel ento encontrar dois corolrios
da igualdade fiscal. O primeiro esta conquista das revolues
liberais, a generalidade ou universalidade dos impostos. Significa
este princpio que todos os cidados esto sujeitos ao pagamento
de impostos, no havendo entre eles distino de classe, ordem ou
de casta. Esta generalidade implica sobretudo a proibio de
distines assentes em critrios meramente subjectivos, como os
enunciados no art. 13/2 da CRP. A denominada proibio da
discriminao tem vindo gradualmente a perder importncia, j
que a tipificao de conceitos insusceptveis de discriminao de
lei, deixa de colher, baseado em factores subjectivos, porquanto
no moderno Estado Social existe um comando Constitucional que
impele o legislador a tomar medidas na erradicao desta
realidade81.
No contexto supracitado, a igualdade tributria assenta
numa particularidade do grande princpio da igualdade. No
entanto, o fenmeno da tributao tem contribudo de forma
decisiva para a transformao do prprio princpio da igualdade.
Reveste particular importncia o tema da igualdade na tributao,
porque, como esta consiste na ablao coactiva da propriedade
privada, necessrio atender ao critrio da igualdade para
materializar a justia que deve presidir supresso de um direito
fundamental (propriedade privada) 82. Ora, a materializao da
justia consubstanciada no desgnio do Estado Social carece de
um critrio uniformizador para garantir a igualdade tributria. Ou
seja, decorre da igualdade a uniformidade dos impostos, isto ,
todos devem estar adstritos ao pagamento de impostos com base
num mesmo preceito. O critrio que hoje unanimemente
entendido o da capacidade contributiva83. Pode traduzir-se este
princpio numa adaptao da frmula clssica, o princpio da
igualdade fiscal, que exige que o que essencialmente igual seja
tributado de forma igual, e o que seja essencialmente desigual, seja
tributado de maneira desigual, na medida dessa desigualdade.
81 Assim, Srgio VASQUES, op. cit., p. 34. 82 No displicente a colocao do Direito de propriedade entre os direitos
econmicos, No est colocado como Direito Fundamental, apesar natureza
anloga, art. 17. CRP, o que representa a delimitao fora do quadro
sacrossanto atingido no iderio liberal. Cfr, Jos GOMES CANOTILHO,
VITAL MOREIRA, Constituio da Repblica op. cit., pp.799-810. 83 No critrio adstrito igualdade tributria, encontram-se dois corolrios. O
princpio da generalidade (igualdade fiscal subjectiva) e o princpio da
distribuio de riqueza (igualdade fiscal objectiva). Cfr. Nuno S GOMES,
Manual de Direito Fiscal , Vol. II Lisboa, p. 125.
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Exige-se tambm um tratamento proporcional, das situaes
relativamente iguais afigura-se para o legislador, ora em mera
faculdade, ora em obrigao. E a comparao entre aquilo que
igual ou desigual est sujeita ao critrio da capacidade
contributiva, que remonta antiguidade clssica, e est nsito na
prpria Bblia84.
O critrio da capacidade contributiva assenta em duas
funes primaciais: uma funo garantstica, no sentido de que s
devem ficar sujeitas a tributao os que podem pagar (ability to
pay), e uma funo solidarista, no sentido de que desde que haja
capacidade de pagar todos devem contribuir para as despesas
pblicas na medida da sua capacidade85. Ou seja, neste critrio no
possvel atender a critrios extrafiscais discriminatoriamente
arbitrrios. Contudo, a imperiosa necessidade de harmonizar os
diversos preceitos constitucionais, perante incumbncias
prioritrias do Estado em matrias do domnio econmico-social
(art. 81.), concedem ao legislador a possibilidade de assentir
isenes e outros desagravamentos fiscais derrogatrios dos
regimes tributrios.
11. Benefcios fiscais e isenes e a excluso de tributao.
Em termos formais, encontra-se perante uma iseno
sempre que a lei subtrai tributao, atravs da previso
normativa de um facto impeditivo, situaes e sujeitos que de
outra forma, ficariam dentro do mbito da previso da norma
tributria86. Ocorre, pois, sempre que uma situao jurdica que
deveria ser tributada e no o , por razes de extra-fiscalidade87.
84 Gn 14, 18-20; Lv 30, 27; Reis2 23, 35; Lc 21, 1; Mc 12, 41. 85 Cfr. Nuno S GOMES, op. cit., p. 200. 86 Cfr.J.L SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra editora,
Coimbra, 3. edio,2007, p. 449. 87 Deve ser aplicado com proporcionalidade. A medida deve ser necessria para
o fim que se visa observar, isto , prossecuo do objectivo extra-fiscal em
causa, ter de mostrar-se adequada ao objectivo, na medida em que a medida
que lesa em menor grau o princpio da igualdade tributria. Ter que existir
uma relao com o objectivo de meio-fim, e ter de mostrar-se ainda
proporcional em sentido estrito aos ganhos extra-fiscais que se obtenham em
contrapartida com a medida. Cfr. Srgio Vasques, op. cit., pp. 86 e 87; para um
aprofundamento do princpio da proporcionalidade em Direito
Administrativo, Vide. Diogo FREITAS DO AMARAL, Curso op. cit., vol. II,
pp. 127- 132.
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Importante realar a natureza de excepo da iseno fiscal
face a uma determinada regra, previamente formulada atravs de
expressa previso legal. Em suma, est-se perante uma iseno
fiscal sempre que se trate de uma norma com um objectivo extra-
fiscal. Estas surgem de um modo casustico sendo
abundantemente utilizados no sentido de promover um
comportamento altrusta de uma organizao privada ou fomentar
as prticas culturais, artsticas, etc. A sua legitimao advm dos
factos supracitados. A legitimao ter sempre em conta a
permanente tenso entre as isenes fiscais e o princpio da
capacidade contributiva que consagra a distribuio dos encargos
tributrios88.
H um juzo valorativo empreendido pelo Estado, na
medida em que a evoluo para um Estado Social de Direito
compreendeu a valorizao de comportamentos que
complementam a funo v.g., social, acometida ao Estado como
incumbncia prioritria deste89.
Para uma percepo do conjunto dos desagravamentos
fiscais necessrio proceder definio dos vrios tipos de
desagravamentos fiscais.
O conceito mais lato de desagravamentos fiscais
compreende dentro de si vrias figuras. Assim, dentro dos
desagravamentos fiscais podemos distinguir as no sujeies
tributrias ou as excluses tributrias dos benefcios fiscais90.
As no sujeies tributrias so normas fiscais estruturais
que estabelecem delimitaes negativas da incidncia, so
geralmente medidas legislativas com alguma estabilidade e
durabilidade.
Os benefcios fiscais so normas excepcionais, com
carcter temporrio, criadas para a tutela de interesses pblicos
extra fiscais de natureza social ou econmica, com valor superior
aos impostos que excepcionam.
O art. 2. n. 2 do EBF enuncia as possveis manifestaes
dos benefcios fiscais: as isenes, as redues de taxa, as
88 Tudo isto deve ser acompanhado do clculo permanente da receita perdida
(despesa fiscal) e de uma ponderao exacta dos limites que devem
acompanh-los. Na verdade o denominado benefcio fiscal sempre um
benefcio para alguns contribuintes, levando, algumas vezes, onerao de
outros contribuintes. 89 Com as sucessivas revises constitucionais, atenuou-se e restringiu-se as
incumbncias prioritrias do Estado, atribuindo-se sociedade cvel um papel
crescente. 90 Ambos explicitados nos arts. 2. e 3. do Estatuto dos Benefcios Fiscais
(EBF). Decreto-Lei n. 108/2008, que republica o Estatuto dos Benefcios
Fiscais.
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dedues matria colectvel e colecta, as amortizaes e
reintegraes aceleradas.
Existe ainda uma diferena, que, embora procedimental,
pode ter implicaes na autonomia das instituies. Se nos casos
da concesso de benefcios fiscais se atribui genericamente
poderes de fiscalizao Direco- Geral do Impostos91, nas
situaes de no sujeio tributria tal no acontece, porque esto
fora do mbito de incidncia do imposto.
Tanto na Concordata como na Lei Liberdade Religiosa
encontram-se estas duas figuras tributrias com algumas
diferenas de regime.
12. A Concordata e a ordem Constitucional portuguesa luz da subjectividade da Santa S na Comunidade
Internacional.
A personalidade jurdica da Santa S na comunidade
internacional apresenta-se como algo difcil de negar. Todavia, a
sua posio carece de fundamentao, sendo necessrio atender
importncia histrica, efectividade da presena internacional e
organizao administrativa como critrios norteadores da
justificao da personalidade jurdica da Santa S. tanto mais
importante esclarecer esta prerrogativa internacional, quanto o
debate sobre a liberdade religiosa atinente aos instrumentos
jurdicos usados no estabelecimento das respectivas relaes com
as confisses religiosas.
Praticamente desde a fundao do Igreja ficou estabelecido
que existiria uma estrutura que dependeria do sucessor designado
por Cristo92. A presena na comunidade Internacional da Igreja
manifesta-se, temporalmente, desde que a Igreja catlica se tornou
pela declarao do Imperador Constantino (380 d.C.), religio
oficial do Imprio Romano, desde esse momento a Igreja nunca
perdeu a sua personalidade jurdica internacional participando
ininterruptamente nas relaes internacionais, sobrevivendo
reforma protestante (que fracturou a Europa), revoluo
Francesa mas sobretudo denominada questo Romana93. Apesar
91 Cfr. O art. 6. do EBF, a contrario, Quando no se concede benefcios fiscais,
nas situaes de no sujeio tributria, consequentemente no esto sujeitas a
fiscalizao tais entidades.
92 A base jurisdicional ltima da fundao da Igreja encontra-se em Mt. 16, 16.
Presente em todos os documentos eclesiais com especial referncia para o
Catecismo da Igreja Catlica, op. cit., pp. 8-20 e 190-193. 93 Antes na ascenso ao poder de Victor Emanuel I, o Papa detinha um amplo
poder temporal, j que era soberano nos Estados Pontifcios. A sua autoridade
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da pequena poro territorial detida pelo Vaticano, a Santa S
exerce todas a as prerrogativas de um Estado. Sendo detentor,
como qualquer Estado soberano, de funes legislativas, judiciais
e executivas94, com as limitaes decorrentes dos micro-Estados.
Discute-se o suposto privilgio da Igreja Catlica. Sendo a Igreja o
reflexo jurdico-institucional da Santa S, aquela apresenta
caractersticas que mais nenhuma confisso possui. A
universalidade, a par da unidade e da independncia, que
caracterizam a Igreja e lhe permitem actuar com igualdade na cena
internacional, podendo afirmar-se que difcil a qualificao da
posio da Igreja na cena Internacional como de privilgio95.
Uma ltima caracterstica reside na conceptualizao do
Estado do Vaticano/Santa S como unio pessoal onde a Santa S
e o Vaticano encontram na pessoa do Romano Pontfice a
complementaridade essencial para a representao externa da
Igreja e do Vaticano96. Como corolrio da subjectividade
era comparvel a qualquer Chefe de Estado. Contudo o poder temporal era e
sempre ser acessrio do poder espiritual. O primeiro era garantia de
independncia do segundo. Cfr. August FRANZEN, Breve histria da Igreja,
editorial presena, 1996, pp. 322 e ss; Salmo CAETANO DE SOUSA, A
Santa S e o Estado da Cidade do Vaticano: Distino e complementaridade,
in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, So Paulo,
N/d, p. 298. Mesmo desaparecendo a soberania temporal do Papa, aps a
conquista violenta de Victor Emanuel I em 1870, a Santa S no perdeu, ipso
facto, a subjectividade internacional. Como se aludiu, o Vaticano (ou os estados
pontifcios) eram o reflexo da presena da Igreja no mundo. Mas, como ainda
o Direito Internacional Publico vivia em larga escala dos Estados, Santa S
foi estabelecido um territrio onde teria total jurisdio e independncia, o
Vaticano. Decorrendo dos acordos de Latro firmados com a Itlia em 1929.
Ao ius legationis e ius tractum do Papa, atribui-se uma parcela de territrio onde
pudesse ser exercido pelo Papa o Magistrio Petrino com independncia. 94 O Direito Cannico tem a particularidade de ser uma ordem jurdica que
no tem poder coactivo externo apesar de projectar os seus efeitos no
denominado ius publicum ecclesiasticum externum. 95 O Cdigo de Direito Cannico, pea chave no ordenamento jurdico da
Santa S/Vaticano/Igreja, estabelece no cnone 330 e ss a hierarquia da Igreja,
permitindo a unidade e impedindo a desagregao que poderia originar a
perda da subjectividade internacional. 96 Questo controvertida. Havendo autores que no consideram o Vaticano
um Estado, Cfr, Jorge MIRANDA, Curso de Direito Internacional Pblico, op. cit.,
pp. 212 214; Andr GONALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS,
Direito Internacional Pblico, Almedina, Coimbra, 1993, pp. 269 e ss., Autores
que consideram o Vaticano um Estado, Cfr. Salmo CAETANO DE SOUSA,
op. cit., pp. 288 314, Mario TEDESCHI, Vaticano (Stato della Citt del) in
Enciclopdia del Diritto, XLVI, 1993, pp 284 e ss, , , Natale ADDAMIANO -
Chiesa e stato : dalle origini del cristianesimo ai patti lateranensi, Mario
Bulzoni Editore, Roma, 1969. Passim; Estabelecendo as prioridades da Santa
S nas relaes internaionais, princpio da no beligerncia, promoo e defesa
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internacional da Santa S aparece o regime concordatrio, isto , a
Igreja detm na qualidade de sujeito com personalidade
internacional jus legationis e jus tractuum, que lhe permite o
estabelecimento de convnios com os Estados, sendo as
Concordatas um instrumento de paradigmtico97. Ou seja, as
Concordatas so tratados internacionais firmados entre a Santa S
e os Estados.
A Concordata, visando estabelecer as obrigaes e direitos
da Igreja Catlica num determinado Estado, afigura-se de
natureza primacial, nomeadamente em Portugal, onde a populao
maioritariamente catlica (85%)98, alm de toda a influncia e
importncia no campo cultural, assistencial, moral, etc., que a
Igreja teve ao longo dos sculos (e ainda tem) como foi referido
anteriormente99.
A natureza da Igreja em Portugal no se compadecia com
uma lei geral sobre a liberdade religiosa (Lei n. 16/2001), devido
s especificidades que a Igreja apresenta, nomeadamente em
questes ligadas ao patrimnio, aos feriados religiosos ou
questo fiscal, que se apresenta com algumas nuances face ao
regime comum ( o que est subjacente ao art. 58. da LLR)100.
de realar que a Concordata, no domnio fiscal e em praticamente
todos os domnios, teve como fonte de inspirao a LLR, o que
denota vontade expressa de estabelecer o mais possvel um regime
prximo entre a Igreja e as demais comunidades religiosas.
Quanto insero da Concordata na ordem jurdica
Portuguesa, desde logo parecem existir dois princpios
fundamentadores do contedo da Concordata: o primeiro a
proclamao da independncia e autonomia da Igreja Catlica e
do Estado Portugus, cada um na sua ordem. O segundo, que
decorre do primeiro, o princpio da cooperao (que s
da Dignidade da Pessoa Humana, entre outros, Vide, Tauran, D. Jean-Louis - Intervenco do secretrio para as relaes da Santa S com os Estados in
http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/documents/rc_seg-
st_doc_20020422_tauran_po.html 97 Contra o modelo concordatrio actual. Pugnando pelo alargamento do
modelo concordatrio a outras religies, Vide, Vitalino CANAS, Os acordos
religiosos ou a generalizao da frmula concordatria, in Estudos em memria do
Conselheiro Lus Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, pp. 281-334. 98 Cfr, Jorge MIRANDA, A Constituio e a Concordata: Brevssima Nota, in
Lusitania Canonica, Estudos sobre a nova Concordata: Santa S - Repblica
Portuguesa, 18 de Maio de 2004,Universidade Catlica Editora, Lisboa, 2006;
Cfr, VERA JARDIM, Uma Concordata do Conclio e do Estado Democrtico, in
Lusitania Canonica op. cit., p. 53. 99 Vide, supra, pontos 1 a 7. 100 Regime comum s demais religies, arts. 31. e 32. da Lei n. 16/2001 (Lei
da Liberdade Religiosa, LLR).
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possvel havendo separao), que parte da responsabilidade mtua
da Igreja e de Portugal no servio do bem comum, para a
construo de uma sociedade que promova a dignidade da pessoa
humana, a justia e a paz101. Esto ambos presentes no
prembulo, prembulo esse que, estranhamente, no apresenta
qualquer referncia ao Conclio Vaticano II
Este princpio da cooperao tem mltiplas concretizaes
ao longo do texto concordatrio. Assumindo diferentes sub-
princpios, alguns destes coincidem com fins que o Estado
tambm prossegue, como a cooperao nas relaes e em
organizaes internacionais, a assistncia e a solidariedade social, o
ensino e a preservao do patrimnio cultural da a importncia
da cooperao, num Estado de Direito Democrtico baseado no
respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, sendo um
Estado laico sem ser laicista.
Outros princpios como o do respeito pelas tradies
nacionais (arts. 3 e 22.), a garantia da liberdade institucional da
Igreja e reconhecimento do respectivo exerccio da sua misso de
forma livre (art. 2., n.s 1 e 4), a garantia da liberdade individual e
da prtica religiosa dos catlicos, e ainda o reconhecimento da
funo social da Igreja, integram igualmente texto em causa.
sobretudo este ltimo princpio, o do reconhecimento da
funo social da Igreja, que mais interessa nesta anlise.
Concretiza-se na atribuio de direitos e benefcios s pessoas
jurdicas cannicas, com fins de assistncia e solidariedade (art
12), no empenho do Estado na afectao de espaos a fins
religiosos (art 25), e nos benefcios fiscais da Santa S,
Conferncia Episcopal, dioceses e demais jurisdies eclesisticas
e outras pessoas jurdicas cannicas (arts. 26. e 27.) - mas no
dos sacerdotes. , portanto, com base neste princpio que se
estruturam os benefcios e isenes tributrias da Igreja Catlica.
De duvidosa constitucionalidade o art. 9. da Concordada
de 2004. A igreja tem liberdade para a criao, extino,
modificao e extino de dioceses, parquias e outras jurisdies
eclesisticas mas ter sempre que notificar os rgos do Estado e
a nomeao e remoo de Bispos ter que cumprir a respectiva
formalidade de notificao (art. 9, in fine) 102. Poder estar em
causa o n. 4 do art. 41., in fine, que estatui a liberdade de
101 A Santa S e a Repblica Portuguesa, afirmando que a Igreja Catlica e o
Estado so, cada um na prpria ordem, autnomos e independentes;, Cfr.
Antnio de SOUSA FRANCO, Princpios Gerais da Nova Concordata, in
Lusitnia Cannica... op. cit., pp. 17 e ss. 102 Assim, Jorge MIRANDA, A Constituio e a concordata, in Lusitania
Canonica, op. cit., pp. 111 e 112.
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organizao interna das Igrejas e consequente proibio da
ingerncia do Estado na organizao interna da Igreja103.
Na actual ordem Constitucional, a norma nuclear o art.
41., que condensa num s preceito toda a dinmica que um
Estado deve ter em relao s religies sob a epgrafe Liberdade
de conscincia, de religio e de culto:
1. A liberdade de conscincia, de religio e de culto inviolvel.
2. Ningum pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de
obrigaes ou deveres cvicos por causa das suas convices ou prtica religiosa.
3. Ningum pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das
suas convices ou prtica religiosa, salvo para recolha de dados estatsticos
no individualmente identificveis, nem ser prejudicado por se recusar a
responder.
4. As igrejas e outras comunidades religiosas esto separadas do
Estado e so livres na sua organizao e no exerccio das suas funes e do
culto.
5. garantida a liberdade de ensino de qualquer religio praticado
no mbito da respectiva confisso, bem como a utilizao de meios de
comunicao social prprios para o prosseguimento das suas actividades.
6. garantido o direito objeco de conscincia, nos termos da lei.
Estes trs direitos aqui previstos decorrem uns dos outros
pela ordem em que so expostos. A liberdade de conscincia
consiste essencialmente na liberdade de opo pelos prprios
valores ticos ou morais da conduta prpria ou alheia. A liberdade
de religio a liberdade de ser ou no praticante de um
determinado credo religioso. A liberdade de culto consubstancia-
se no direito individual ou colectivo de praticar os actos externos
de venerao104 associados a uma determinada religio.
Atendendo sobretudo liberdade religiosa, que mais
interessa para o presente trabalho, esta norma consiste numa
concretizao do princpio da igualdade (art. 13 n.2 da CRP),
reiterando a proibio de discriminao ou privilgio por motivos
religiosos.
O n. 4 vem dar expresso ao princpio da separao entre
o Estado e as Igrejas. ele prprio um lime material reviso da
Constituio [art. 288. al. c)].
103 Pode inferir-se que o dever de notificao (de jurisdies eclesisticas) se
deve ao facto de no n. 2 do art. 26. da Concordata estar estatuda uma
excluso de tributao. O Estado ao atribuir essa iseno no deixa de
ingerir na organizao interna na medida em que arroga-se ao direito de querer
ser informado sobre as jurisdies eclesisticas. 104 Venerao, aqui, em sentido lato.
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Deste princpio decorrem dois corolrios: o princpio da
no confessionalidade do Estado e a liberdade de organizao e
independncia das igrejas e confisses religiosas. O primeiro
probe qualquer ingerncia religiosa na organizao ou governo do
Estado ou poderes pblicos e exige ainda a neutralidade do
Estado105. O segundo garante o oposto, isto , a proibio da
ingerncia do Estado na organizao interna e funcionamento das
confisses religiosas. Trata-se sobretudo de admitir uma
independncia recproca106.
Esta laicidade no equivale no entanto a uma irrelevncia
ou desconsiderao da religio. O Estado no assume fins
religiosos, no professa nenhum credo religioso, nem submete
nenhuma Igreja ao seu regime administrativo. Mas no ignora a
funo social, as vivncias religiosas e tradies inerentes, nem o
apoio social educacional e de incluso que as confisses religiosas
tm107.
Uma ltima nota para o facto de a Concordata ser um
tratado como qualquer outro108. No Direito portugus ela vigora,
actualmente por via do art. 8 n. 1 da CRP, que uma clusula de
recepo automtica, aplicando-se sempre que para tal esteja
habilitada, podendo ser invocada junto dos rgos e agentes do
Estado como atributiva de direitos e impositiva de deveres109.
Quanto relao com as normas de Direito interno, como
normas de Direito Internacional, as normas da Concordata
105A constituio impe que haja uma separao entre o Estado e as Igrejas,
ou seja, a neutralidade confessional. Diferente a posio laicista, onde se
rejeitam as manifestaes religiosas, no estabelecendo quaisquer tipo de
relaes com nenhuma religio. Esta posio atenta contra o princpio da
igualdade (art. 13. CRP) porque este obriga diferenciao do que se mostra
inequivocamente diferente. Neste caso, a Igreja tem uma funo crucial,
designadamente na assistncia caritativa, logo o tratamento sem ser desigual e
diferenciado. Vide, numa posio de menor abertura s relaes com as
diferentes comunidades religiosas, J.L Gomes CANOTILHO/ VITAL
MOREIRA, Constituio da Repblicaop. cit., pp. 604 617. A igualdade
administrativa da actividade do Estado, Vide, Diogo FREITAS DO
AMARAL, Curso de Direito Administrativo, op. cit., pp. 122 127. Sobre a
distino entre laico e laicista, Vide, Jorge MIRANDA, Manual op. cit., tomo
IV, pp. 405 e ss. 106 Referncia a este princpio tambm no prembulo da Nova Concordata.
alis com base nesta independncia recproca e autonomia do Estado e da
Igreja que se fundamenta todo o Acordo internacional. 107 Assim Jorge MIRANDA E Rui MEDEIROS, anotao ao art. 14. da
CRP, Constituio Portuguesa Anotada Tomo I, Coimbra editora, 2005, pp. 447 e
448. 108 Apenas de um ngulo jurdico. 109 Jorge MIRANDA, A Concordata e a ordem constitucional portuguesa, Direito e
Justia, vol. V, 1991, pp. 158 e ss.
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