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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

ANDR LUIZ DOS SANTOS FRANCO

AS ARMAS DE OUTUBRO: militares e polticos no movimento belicista de 1930 no sul do Brasil

CURITIBA 2010

ANDR LUIZ DOS SANTOS FRANCO

AS ARMAS DE OUTUBRO: militares e polticos no movimento belicista de 1930 no sul do Brasil

Dissertao apresentada, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Ps-Graduao em Histria, da Universidade Federal do Paran. rea de concentrao: cultura e poder. Orientador: Prof. Dr. Dennison de Oliveira.

CURITIBA 2010

Catalogao na publicao Sirlei do Rocio Gdulla CRB 9/985 Biblioteca de Cincias Humanas e Educao - UFPR

Franco, Andr Luiz dos Santos As armas de outubro: militares e polticos no movimento belicista de 1930 no sul do Brasil / Andr Luiz dos Santos Franco. Curitiba, 2010. 187 f. Orientador: Prof. Dr. Dennison de Oliveira Dissertao (Mestrado em Histria) Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran. 1. Histria militar Brasil 1930. 2. Militares polticos relaes. 3. Poder militar poder poltico Brasil 1930. I. Titulo. CDD 322.5

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES. PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA Rua Gal. Carneiro, 460, 7 andar, sala 716, fone/fax + 55 (41) 3360-5086, 80.060-150, Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected] Website: www.poshistoria.ufpr.br

PARECER DA BANCA EXAMINADORA Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do Programa de PsGraduao em Histria da Universidade Federal do Paran (PGHIS/UFPR) para realizar a arguio da Dissertao de Mestrado de Andr Luiz dos Santos Franco, intitulada: As armas de outubro: militares e polticos no movimento belicista de 1930 no sul do Brasil, aps terem inquirido o aluno e realizado a avaliao do trabalho, so de parecer pela sua ______________, completando-se assim todos os requisitos previstos nas normas desta Instituio para a obteno do Grau de Mestre em Histria. Curitiba, treze de agosto de dois mil e dez.

Prof. Dr. Dennison de Oliveira (Orientador) Presidente da Banca Examinadora

Prof. Dr. Ricardo Costa de Oliveira (UFPR) 1 Examinador

Prof. Dr. Angelo Jose da Silva (UFPR) 2 Examinador

A minha amada e saudosa me: Maria Auxiliadora. Pela vivncia do compromisso solidrio, pelo aprendizado da humildade e pelo exemplo de amor e f.

AGRADECIMENTOS Fazer esta dissertao foi, acima de tudo, um ato de satisfao. Espero ter conseguido reproduzir em suas laudas o prazer que senti na realizao de cada uma de suas fases. Este trabalho foi concretizado luz da efetiva colaborao de muitas pessoas que passo a mencionar. Inicialmente, minha gratido dirige-se ao meu orientador, Prof. Dr. Dennison de Oliveira, por todo o zelo intelectual, a pacincia e o comprometimento destinados orientao de mais este trabalho. Sua anlise precisa sobre os meandros do ofcio do historiador facilitou enormemente a construo desta obra. Sua inestimvel contribuio com crticas argutas foi imprescindvel a cada passo dessa pesquisa. Agradeo tambm aos professores ngelo Jos da Silva e Ricardo Costa de Oliveira, pelos oportunos apontamentos apresentados na minha banca de qualificao. Aos professores Euclides Marchi, Ftima Regina Fernandes, Helenice Rodrigues da Silva, Marcella Lopes Guimares, Renan Frighetto e Renato Lopes Leite, pelas inquietaes intelectuais apresentadas nas disciplinas obrigatrias e optativas cursadas na linha de pesquisa Cultura e Poder. Estendo meu obrigado a todos os amigos que, de uma forma ou de outra, contriburam para a execuo desse trabalho, ou com suas crticas e opinies, ou com a companhia e conversas descomprometidas ao longo desses longos dois anos. Por fim, agradeo a minha amada esposa Claudia Simone Nogueira da Costa dos Santos Franco, que sempre me apoiou na rdua misso de tornar realidade esta dissertao, bem como a meu querido filho Andr Luiz dos Santos Franco Jnior, que compreendeu a ausncia do seu pai nesse perodo. Sem vocs, minha conquista no teria sentido.

RESUMO

O tema deste trabalho est focado em uma reflexo histrica acerca das relaes de poder entre militares e polticos que conduziram o movimento belicista de 1930 no sul do Brasil, buscando diagnosticar as diferentes armas discursivas de legalidade e legitimidade manifestadas por esses atores sociais. Os objetivos esto calcados na investigao da comunidade de imaginao, cujo alcance ultrapassou os limites da cultura poltica vigente, bem como na abordagem de um novo vis cultural dessas relaes de poder, desvendando o processo de utilizao da manifestao blica como alternativa hegemonia poltica dos grupos dominantes daquele perodo. Na realidade, As armas de outubro enfoca o fim da Primeira Repblica e o comeo da desordem para alcanar a ordem. Neste sentido, procura-se inovar ao centrar a anlise na observao da cultura blica que circulou por caminhos formais e informais. Os textos produzidos pela imprensa peridica escrita nos diferentes nveis de poder, assim como os documentos confeccionados por instituies governamentais, permitem compreender como as percepes desse movimento armado estavam inseridas nos diversos discursos sobre a legitimidade da quebra da legalidade. Desta forma, diante da pluralidade de estudos historiogrficos sobre esse evento, mostra-se um cenrio tericometodolgico que aborda a tenso existente entre as matrizes interpretativas das culturas militar e poltica na constituio de uma aliana de poder que veio a convergir em uma representao blica comum, onde o imaginrio legalista foi alterado, permeando todas as instncias de poder sulinas. O olhar sobre o dramtico palco, repleto de incertezas e tenses, no complicado jogo poltico-militar, permite reviver os trgicos acontecimentos que fizeram sibilar os projteis das armas nos campos de batalha do sul. A anlise das fontes primrias do perodo desvenda como o intercmbio dos poderes poltico e militar alicerou esse movimento belicista na regio meridional brasileira. Palavras-chave: movimento belicista de 1930, relaes de poder entre militares e polticos, comunidade de imaginao, histria cultural, histria militar.

ABSTRACT

The theme of this work has focused on a historical reflection of power relations between the military and politicians who led the warmogering movement of 1930 in southern Brazil, seeking to diagnose the different arms discursives of legality and legitimacy expressed by these social actors. The goals are shaped by the research community's imagination, whose range exceeded the limits of political culture and the approach of a new cultural bias of these relations of power, revealing the process of using the outbreak of war as an alternative to the hegemony of the political groups dominant that period. In fact, As armas de outubro focuses on the end of the First Republic and the beginning of the disorder to achieve order. In this sense, we seek to innovate by focusing the analysis on the observation of the culture war that has circulated for formal and informal ways. The texts produced by the periodical press written at different levels of power, and the documents made by government institutions, enable us to understand how perceptions of armed movement were entered in the various discourses on the legitimacy of breaking the law. Thus, given the plurality of historiographical studies about this event, shows a scenario theoretical and methodological approaches the tension between the headquarters in interpretation of military and political cultures in the formation of an alliance of power that come to converge on a representation of war common, where the imaginary has changed legalistic, permeating all levels of power southern fringes. The look on the dramatic stage, full of uncertainties and tensions in the complicated political-military game, allowing you to relive the tragic events that made the bullets of arms pinging on the battlefields of South. The analysis of the primary sources of the period reveals how the exchange of political and military cemented that warmogering movement in the Brazilian southern area. Keywords: the warmogering movement of 1930, power relations between the military and politicians, community of imagination, cultural history, military history.

RESUMEN

El tema de este trabajo se ha centrado en una reflexin histrica de las relaciones de poder entre los militares y polticos que llevaron al movimiento belicista de 1930, en el sur de Brasil, tratando de diagnosticar las diferentes armas discursivas de la legalidad y la legitimidad expresada por los actores sociales. Los objetivos son moldeados en la investigacin de la comunidade de la imaginacin, cuyo alcance supera los lmites de la cultura poltica vigente y el enfoque de uma nueva tendencia cultural de estas relaciones de poder, que revelan el proceso de usar de la manifestacin blica como una alternativa a la hegemona de los grupos polticos dominante de ese perodo. De hecho, As armas de outubro se centra en el final de la Primera Repblica y el comienzo de la desorden para lograr la orden. En este sentido, tratamos de innovar, al centrar el anlisis en la observacin de la cultura blica que ha circulado por medios formales e informales. Los textos producidos por la prensa peridica escrita en diferentes niveles de poder, y los documentos realizados por instituciones de gobierno, nos permiten comprender cmo las percepcines de eso movimiento armado que se inscribieron en los diferentes discursos sobre la legitimidad de violar la ley. As pues, dada la pluralidad de los estudios historiogrficos sobre este evento, muestra un escenario terico y metodolgico de la tensin entre las principales interpretacines de las culturas polticas y militares en la formacin de una alianza de poder que viene a converger en una representacin blica comn, donde el imaginario legalista ha cambiado, que impregna todos los niveles de poder del sur. La mirada en el teatro dramtico, lleno de incertidumbres y tensiones en el complicado juego poltico-militar, lo que le permite revivir los trgicos acontecimientos que hicieron sonar los proyectiles de las armas en los campos de batalla del sur. El anlisis de las fuentes primarias de la poca revela cmo el intercambio de los poderes poltico y militar cimentou esse movimiento belicista en la regin meridional brasilea. Palabras clave: movimiento belicista de 1930, relaciones de poder entre los militares y polticos, comunidade de la imaginacin, historia cultural, historia militar.

LISTA DAS FIGURAS 1. Mapa poltico da regio sul do Brasil.............................................................................................48 2. Mapa poltico do Rio Grande do Sul..............................................................................................59 3. Mapa poltico do Paran.................................................................................................................67 4. Mapa com o resultado final das eleies presidenciais de 1930....................................................76 5. Dispositivo defensivo proposto pelo comandante da 5 Regio Militar.......................................103 6. Municpio de Santo ngelo s vsperas da ecloso do movimento armado de 1930..................110 7. Aes blicas em Porto Alegre (03/10/1930)...............................................................................114 8. Organizaes militares do noroeste gacho em 1930..................................................................121 9. Embarque do 8 Corpo Provisrio na estao ferroviria de Santo ngelo em 1930..................131 10. Aes blicas em Curitiba (05/10/1930)....................................................................................146 11. Formatura geral das tropas rebeldes em Curitiba (05/10/1930).................................................147 12. Manifestao de populares em Curitiba (05/10/1930)...............................................................149 13. Populares procurando alistamento no 15 B.C. (07/10/1930)....................................................154 14. Avano blico das tropas rebeldes pela regio sul do Brasil em outubro de 1930.....................158 15. Peas de manobra no combate da fazenda Morungava-PR (16/10/1930)..................................164

SUMRIO INTRODUO..................................................................................................................................1 1 A EXPECTATIVA........................................................................................................................16 1.1 Comunidade de imaginao.......................................................................................................16 1.2 Relaes e escalas de poder........................................................................................................24 1.3 Metamorfose da legalidade militar...........................................................................................31 2 A CRTICA....................................................................................................................................35 2.1 Experincias de ruptura.............................................................................................................36 2.2 Experincias de continuidade....................................................................................................39 2.3 Reflexo crtica...........................................................................................................................44 3 O CENRIO..................................................................................................................................47 3.1 O sul gacho e paranaense.........................................................................................................47 3.2 Os planaltos missioneiro e curitibano.......................................................................................57 4 O ELENCO....................................................................................................................................71 4.1 Atores e a fraude eleitoral..........................................................................................................71 4.2 Atores entre heris e mitos........................................................................................................82 5 A PEA BLICA..........................................................................................................................97 5.1 Primeiro ato: a conspirao final..............................................................................................97 5.2 Segundo ato: o tornado gacho...............................................................................................113 5.3 Terceiro ato: a ofensiva paranaense.......................................................................................139 CONSIDERAES FINAIS.........................................................................................................168 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.........................................................................................177

INTRODUOQuer na biografia ou na histria contada diretamente, o objetivo do autor ou devia ser manter a ateno do leitor. Barbara W. Tuchman. A prtica da histria.

Esta dissertao visa a analisar as diferentes armas discursivas dos atores sociais (GOFFMAN, 1996)1 envolvidos na formulao e execuo do movimento belicista de 1930 no sul do Brasil, aliadas as suas imagens (CAPRETTINI, 1994)2 a respeito dos conceitos de legalidade e legitimidade. O estudo prope a compreenso dos sujeitos histricos inseridos, ao mesmo tempo, em uma realidade estrutural marcada por mudanas nas relaes de poder do sistema poltico do estado brasileiro, bem como em uma conjuntura sociocultural especfica, formada por militares e polticos dissidentes, que foi construda no interior de uma comunidade de imaginao sulina. Esses atores valorizaram a cultura blica como alternativa vivel para alcanarem o poder, com ntidas pretenses de supremacia militar e poltica da regio sulina no cenrio nacional. Apesar das diferentes representaes da legalidade dentro desse grupo dissidente, a adeso ao discurso blico e o alinhamento com a ruptura constitucional acabaram sendo identificados como a melhor estratgia para a realizao das pretenses individuais e coletivas desses militares e polticos. Nessa vertente, a cultura blica (VIDAL, 1978)3 circulante percorreu caminhos formais e informais (MARTINS, 2002, p. 76). Os primeiros estavam baseados nos documentos governamentais, com forte nfase legalista na valorizao da ordem e do progresso. A fora desta narrativa formal abrigava o imaginrio coletivo de significativa parte da sociedade, independentemente da sua posio social ou cultural. Polticos situacionistas e de oposio, militares fieis instituio Exrcito Brasileiro e ex-militares tenentistas, caudilhos e coronis, bem como a maioria da populao sulina formavam um grupo social que compartilhavam o mesmo imaginrio discursivo tpico daquela comunidade de imaginao (BAZCKO, 1985, p. 321). Os segundos alicerados pelos editoriais produzidos pela imprensa peridica escrita, com um vis discursivo sobre a legitimidade ou no do uso da fora blica para obteno das reformas polticas. Nestes caminhos, a narrativa obedeceu a uma dinmica especfica do cotidiano poltico, estruturado no contato e/ou contgio social nos diferentes nveis de poder. Segundo Wiese e Becker (1976, p. 128-136), a noo de contato/contgio social compreende contatos fsicos, psquicos e1

So sujeitos que se movimentam na sociedade, a partir de objetivos estrategicamente definidos com vistas a exercerem alguma dimenso de poder em condies de debate/embate pblico. 2 So representaes mentais de uma realidade visualizada de que se pretende criar um efeito de verossimilhana, bem como a construo de um discurso feito de analogias e similitudes com padres conhecidos. O lugar representado numa imagem sempre uma projeo do mundo, e muitas vezes de um mundo idealizado, aperfeioado ou engrandecido at aos limites da imaginao. 3 Est atrelada ao pensamento militar, aliando teorias e doutrinas castrenses s polticas e estratgias blicas.

2 fsico-psquicos. So fenmenos de curta durao, que no constituem processos sociais de associao e dissociao, mas que podem desencade-los, originando novas relaes sociais. Esses espaos sociais de comunicao 4 (dentro e fora do mbito governamental) proporcionaram tais contatos/contgios que asseguraram intercmbios e intersees das representaes desses atores sociais numa dimenso de poder blico institucionalizado. Para Martins (2002, p. 76), esta verso do poder social geralmente concorre com o poder institucionalizado do Estado, particularmente nas instncias do executivo e do legislativo. Para dar conta desse objeto de pesquisa, o presente estudo lana as seguintes hipteses de anlise. 1. Militares e polticos dissidentes pensaram e conduziram o movimento belicista de 1930 em meio a um contexto de diferentes discursos e imagens sobre legalidade e legitimidade, tanto no interior do Exrcito Brasileiro quanto dentro da ordem poltica nos nveis municipal e estadual. Ao longo da segunda metade da dcada de 1920, os desdobramentos da crise da poltica dos governadores5 (SOUZA, 1969, p. 187)6 alteraram a correlao de poder dos estados centrais da federao, gerando uma srie de tenses e conflitos polticos que desembocaram na insurreio blica de 1930. No sul do Brasil, a oligarquia intermediria gacha gradualmente reforou seus laos polticos e militares com as oligarquias perifricas do Paran e de Santa Catarina, sob a bandeira da legitimidade da utilizao da fora blica como alternativa legalista, consubstanciada pela reunio das lideranas locais no vinculadas poltica dos governadores e de militares insatisfeitos, servindo na regio sulina brasileira. 7 Esta aliana entre polticos sulistas e militares descontentes foi abordada por Fausto (1995, p. 103) e McCann (2007, p. 370-371), contudo no foi desenvolvida uma discusso sobre a metamorfose legalista do perodo. 2. No sul do Brasil, com um recorte sobre os planaltos missioneiro gacho e leste paranaense, ficou evidenciada essa transformao legalista, por meio da formao de diferentes discursos e imagens da ordem institucional vigente.8 Na observao de Capellani (2004), a ordem institucional responsvel por operar as atividades de todas as outras instituies sociais, regulando as prticas dessas instituies. Estas vises narrativas foram observadas no contexto do imaginrio social do perodo pr-1930, evidenciando uma rede de significaes de poder entre militares e polticos locais, materializada por documentos governamentais (caminhos formais) e editoriais de peridicos (caminhos informais), cruzando-se em torno de uma nova perspectiva cultural de ruptura do status quo vigente, alicerada pelo vis blico (BORGES, 2007, p. 171). Para Bazcko (1985, p. 309), por4 5

So espaos de negociaes e de constante tomada de decises dos atores sociais. A poltica dos governadores foi caracterizada pela hegemonia poltica de So Paulo e Minas Gerais e pela sua conduo do processo poltico, por meio do compromisso dos outros estados para a escolha do presidente da Repblica. 6 Ver ainda Fausto (1969, p. 233); Denys (1993); Franco (1980) e Geraldo (2004). 7 Ver ainda De Decca (1988); McCann (2007); Ramos (1961); Silva (1972) e (1975); Sodr (1979) e (1986). 8 Ordem institucional caracteriza-se por um conjunto de regras que rege e organiza a sociedade.

3 meio de seu imaginrio social que um grupo designa a sua identidade, elabora uma determinada representao de si, estabelece a distribuio dos papis e das posies sociais, exprime e impe crenas comuns, formula uma espcie de cdigo de bom comportamento. 3. Com o diagnstico da insero estrutural dos atores sociais (identificao das relaes sociais na origem histrica), pode-se analisar a insero social (contatos sociais) de militares e polticos dissidentes, operacionalizando a categoria de grupo (representao interna) com intuito de demarcar o quadro cultural dos segmentos compostos por estas personagens sociais. Este quadro ser capaz de desvendar, dentro do movimento armado: a. os diferentes discursos e representaes que estavam em jogo na conspirao pr-1930; b. os pontos de aproximao e distanciamento das relaes de poder entre seus membros; c. os contedos de homogeneidade e heterogeneidade desse grupo dissidente. Nesse quadro, est contemplada a dimenso social e cultural das diferentes imagens elaboradas por militares e polticos a respeito da legalidade do desencadeamento de um movimento blico para alcanar o poder nacional. Da mesma forma, revela-se a dinmica das lutas internas em torno dos diferentes discursos e representaes da ruptura institucional. Segundo Santos (1986), esta ruptura institucional vista como uma consequncia da crise de paralisia decisria. Esta estagnao de deciso abriu caminho para que alguns grupos procurassem romper o impasse existente por meios violentos e pela mudana ilegal das regras do jogo poltico. 4. Para tanto, foram selecionados dois grupos de memrias que exemplificam a transmisso das representaes dessas personagens sobre a cultura poltica e militar do sul do Brasil: a imprensa escrita do perodo e a documentao governamental produzida por militares e polticos que participaram do evento. Cada um a sua maneira, construiu um discurso, uma imagem, uma viso sobre a ruptura da ordem para alcanar a paz social e o progresso econmico. Partindo destas fontes primrias, avanou-se alm da bibliografia pertinente ao perodo, procurando solucionar as seguintes dvidas: Por que o discurso blico ocupou o lugar central no pensamento do grupo dissidente? Como a comunidade de imaginao reconheceu o discurso blico? Qual a relao dos discursos da legitimidade armada, proferidos por militares e polticos dissidentes, com o perfil legalista de 1930? Qual foi a importncia do sul do Brasil nesta representao blica? Aps delimitar as hipteses de trabalho, cabe destacar as motivaes que conduziram ao estudo do movimento armado de 1930. A pesquisa em histria tem seu pressuposto alicerado em motivaes que esto alm de seus prprios limites. luz desta assertiva, a presente dissertao sedimenta seu enfoque temtico sobre duas vises complementares. A primeira perspectiva defende a ideia de que o estudo histrico tem a funo de estruturar percepes passadas das experincias humanas na busca de subsdios para uma anlise contempornea das identidades e dos processos

4 socioculturais. Desta forma, a dinmica da produo historiogrfica tem sua gnese nas inquietaes atuais do historiador (RSEN, 2001). Na segunda viso, observa-se a histria como um prisma complexo, configurado em experincias vividas socialmente dentro de uma determinada realidade cultural. Assim, o processo histrico construdo por pessoas reais, com sentimentos de euforia e de tristeza tambm reais. Neste sentido, visualiza-se que o ato de fazer pesquisa histrica est relacionado recuperao da efetiva ao dos diferentes grupos e personagens que atuaram num passado determinado, procurando compreender as motivaes que levaram o processo histrico a tomar uma dada direo. Fazer histria, na realidade, o resgate das injunes que permitiram a concretizao de uma possibilidade e no outras (VIEIRA; PEIXOTO; KHOURY, 1990, p. 11). Nesse perfil motivacional, vlido enquadrar as inquietaes pessoais e profissionais deste pesquisador guisa de esclarecimentos ao leitor sobre as origens desta interpretao histrica. Valendo-se da insero social, cabe ressaltar que, como oficial de carreira do Exrcito Brasileiro, formado na Academia Militar das Agulhas Negras, carrego comigo traos e costumes tpicos da principal instituio blica do pas. Nesse ambiente castrense, a histria militar invadiu meu imaginrio, aguando minhas expectativas intelectuais. Ao concluir o bacharelado em histria na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, fui impregnado pelas categorias sociais da histria cultural, fato que provocou uma verdadeira metamorfose na minha viso sobre as variveis da histria militar no contexto dos imaginrios culturais. A lgica terico-metodolgica de utilizar conceitos da histria cultural no passado blico nacional o primeiro indcio motivador deste trabalho de mestrado. Uma segunda vertente motivacional foi a possibilidade de travar contatos/contgios sociais com personagens integrantes da sociedade do sul do Brasil. Como oficial da Fora Terrestre permaneci em Santo ngelo por quatro anos (2002-2005) e atualmente estou servindo em Curitiba desde 2007. Nestas oportunidades, foi possvel observar e estudar as caractersticas prprias de cada regio sulina, bem como abstrair suas analogias, particularmente no que tange ao sentimento de apreo para com o Exrcito Brasileiro. O convvio com lideranas locais evidenciou a simpatia genuna que estas sociedades mantm, em dias atuais, para com a Fora Terrestre. A insero social militarizada deste autor aliada aos seus contatos/contgios civis com a comunidade sulina no abarca, na sua totalidade, as motivaes deste estudo histrico. A efetiva presena de inmeros aquartelamentos do Exrcito Brasileiro nas regies missioneira gacha e curitibana paranaense completa o quadro motivacional pessoal que abriu as portas do passado blico meridional do Brasil. A percepo de que a sinergia da populao da atualidade com o mundo castrense est intimamente ligada materialidade dos quartis da Fora Terrestre corroborou

5 minha convico de que as aes armadas do passado ainda ressoavam no imaginrio coletivo da comunidade sulina. Na realidade presente, a poltica de defesa nacional elegeu a regio amaznica como ponto mais vulnervel do pas, transferindo as principais hipteses de emprego da Fora Terrestre do extremo sul para o norte e noroeste do Brasil. Mesmo com esta lgica belicista, o nmero de aquartelamentos do Exrcito Brasileiro no diminuiu nas regies missioneira, com pouco mais de 20 organizaes militares, e curitibana, com 25 quartis da fora verde-oliva. Em muitos casos, a presso poltica, social e cultural impediu a sada dessas unidades militares, cuja identidade com a comunidade de imaginao local ultrapassa a lgica blica de defesa ao nvel federal. A prpria histria do Exrcito Brasileiro corrobora a validade motivacional do estudo sobre as relaes de poder entre militares e polticos no movimento armado de 1930. Na independncia poltica do Brasil, a Fora Terrestre atuou como baluarte da manuteno da unidade nacional, evitando, pelo fragor das armas, que nsias separatistas regionais tivessem xito naquele momento histrico. J no primeiro Imprio, o Exrcito Brasileiro estava intimamente alinhado com os interesses da coroa nacional, imbricando uma intensa interdependncia entre os anseios castrenses e polticos. Com isso, a maioria dos seus oficiais passou a ocupar cargos civis de projeo nacional, formando um estrato significativo da elite poltica imperial. Esta promiscuidade entre as lideranas militares e polticas acabou enfraquecendo o poder blico do exrcito nacional, ao mesmo tempo, fortaleceu, no plano interno, as milcias locais e regionais, sob a alcunha da Guarda Nacional. Subjugado a um plano secundrio no perodo do segundo Imprio, cedendo inclusive espao poltico para a Guarda Nacional, a partir de 1850, a Fora Terrestre iniciou seu vis de alta com a hecatombe da Guerra da Trplice Aliana, na segunda metade do sculo XIX. Logo aps esse expressivo conflito blico, as elites militar e civil do Imprio Brasileiro entraram em atrito, pois os militares que detinham o poder da fora blica no aceitavam mais ser mandados pelos polticos que dispunham do poder da fora poltica. Nesse contexto, impulsionada pelo sucesso armado nos campos de batalha do Paraguai, a elite castrense procurou retomar sua participao poltica no cenrio nacional. Contudo, diferentemente da lgica adotada no primeiro Imprio de alinhamento com a corte, as lideranas militares postaram-se contra Dom Pedro II e a ordem imperial. Assim, o Exrcito Brasileiro e seus integrantes passaram a valorizar os ideais positivistas, fomentando em coraes e mentes castrenses a certeza de que somente pela ordem um pas poderia alcanar o seu progresso. Esta formao discursiva ultrapassou os muros dos quartis e ganhou os palanques polticos, unindo militares da Fora Terrestre aos civis de oposio ao Estado Imperial. Estava pronto o palco da proclamao da Repblica, com a efetiva presena do exrcito nacional.

6 O protagonismo poltico dos militares nos anos iniciais da Repblica Velha foi materializado pelos presidentes Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, porm a ntida inabilidade para participar do jogo de artimanhas polticas e a ineficincia para resolver os problemas econmicos internos enfraqueceram os governos castrenses. As elites civis, que apoiaram a ecloso da Repblica, viramse alijadas do poder central, por isso fomentaram dissidncias regionais que foram violentamente combatidas pelo brao forte do Exrcito Brasileiro, tabernculo da integridade territorial nacional. Apesar da vitria no campo militar, os governos dos marechais acabaram sendo derrotados na esfera poltica, abrindo espao para a volta ao poder da elite civil agroexportadora, que chefiou o pas, amparada no pacto federativo da poltica dos governadores. Essa estrutura civil de revezamento entre estados da federao no governo central, com base em So Paulo e Minas Gerais, foi quebrada pela presena do marechal Hermes da Fonseca, no cargo de presidente da Repblica. O retorno de um militar s entranhas do poder poltico foi uma estratgia empregada pelas elites dominantes para conter o aumento da autonomia das unidades da federao. Com isso, o presidente utilizou o seu principal instrumento de coero Exrcito Brasileiro para acabar com as revoltas regionais, estabelecendo a ordem interna em sinergia com os ideais positivistas que ainda tocavam fundo no imaginrio coletivo da populao da caserna. O xito belicista do marechal Hermes da Fonseca no garantiu a volta completa dos militares ao campo poltico nacional, pois a liderana desses militares junto Fora Terrestre causava srias preocupaes na elite civil, que no desejava ter seus interesses afetados por instituies e por grupos sociais nacionalistas, como no caso do Exrcito Brasileiro e dos militares. Alm de evitar a presena dos militares na poltica, tambm ocorreu um expressivo movimento para restringir ao mximo a penetrao das questes polticas nos quartis e, principalmente, nas escolas militares. Apesar deste notrio esforo da elite civil dirigente, a poltica passou a integrar o cotidiano dos militares, forjando uma ecloso de revoltas e rebelies jamais vistas em terras brasileiras. Nesse contexto, surgiram militares (jovens oficiais) que acreditavam que a fora das armas legitimava a chegada ao poder poltico, haja vista a desestruturao e a fragmentao da estrutura civil de governabilidade da Primeira Repblica. Assim, ao longo da dcada de 1920, a Fora Terrestre e seus componentes protagonizaram os movimentos tenentistas que assolaram o pas com combates fratricidas. A constatao da indefectvel importncia da presena do Exrcito Brasileiro na vida poltica nacional justifica o resgate histrico das injunes que permitiram a concretizao do movimento armado de 1930. Neste ocaso belicista, militares da caserna e ex-militares tenentistas uniram-se aos polticos dissidentes do sul do Brasil para galgarem o poder central. Mais uma vez, o Exrcito Brasileiro e seus integrantes ocuparam o papel de protagonistas no jogo poltico do pas.

7 Alm dessa percepo, outra questo impulsionou o presente estudo, tornando-se o ponto central: entender como a ciznia poltica, daquele momento histrico, ultrapassou a estrutura cultural da legalidade institucional e precipitou a disputa para a fora das armas. Para Hall (2000, p. 331-347), a estrutura cultural atua com padro institucionalizado do cotidiano social. Partindo dessas inquietaes, procurou-se trilhar os caminhos que conduziram aliana entre militares e polticos dissidentes das oligarquias dominantes da Primeira Repblica brasileira. Da mesma forma, entender como a comunidade de imaginao presente no sul alicerou o projeto de chegada ao poder destes atores sociais. A anlise das biografias dos principais atores desse grupo dissidente apresenta alguns pontos que os alinham histrica e politicamente. Velhas origens comuns se sobressaem, por exemplo, nas trajetrias de Getlio Vargas e Oswaldo Aranha: ambos tiveram sua estreia poltica nos quadros do Partido Republicano Rio-Grandense. Por sua vez, o general Ges Monteiro, na poca de aluno da Escola Militar de Porto Alegre, manteve contato com estudantes de direito que se filiariam ao mesmo partido gacho.9 Controvertidas interpretaes de cunho poltico-ideolgico fomentam o recente debate sobre o papel dos grupos dirigentes na sociedade brasileira. A bipolaridade poltico-partidria entre esquerda e direita tem passado por diversas transformaes, deixando indefinidos os papis sociais e os limites de atuao de cada cultura poltica (BERNSTEIN, 1998). A troca de valores, crenas e informaes, como horizonte de possibilidades, identificada por Velho (2001) em diferentes tipos de mediao, prpria, portanto, dos atores sociais. A perspectiva de viver diferentes papis sociais, num processo de metamorfose, d aos indivduos e aos grupos especficos a condio de mediadores quando conseguem estabelecer, de modo sistemtico, essas prticas. O maior e o menor sucesso de seus desempenhos lhes dar os limites e o mbito de sua atuao como mediadores (VELHO, 2001, p. 25). J Bernstein (1998, p. 350) afirma que a cultura poltica pode ser utilizada de vrias formas, no sendo uma chave universal para explicar comportamentos. O autor conceitua cultura poltica como um cdigo ou conjunto de referentes criados e consolidados por partidos, famlias ou naturalizados pelas tradies locais da poltica. 10 Tal crise de identidade dos grupos dirigentes, na qual convivem conceitos de ruptura e permanncia, acarreta incertezas quanto aos futuros projetos de assuno de poder que invariavelmente afetaro todo o conjunto da sociedade. Observa-se um cenrio de crise de identidade poltico-ideolgica que culminou num rearranjo dos grupos dirigentes dentro dos diferentes panoramas culturais de poder. Neste contexto, novas e

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Ver Love (1975); Fonseca (1987); Coutinho (1955, p. 65); Svartman (1999, p. 73). Nesta mesma vertente, Sani (1998, p. 307) argumenta que a cultura poltica de uma dada sociedade normalmente constituda por um conjunto de subculturas, isto , por um conjunto de atitudes, normas e valores diversos, amide em contraste entre si.10

8 velhas personagens (militares e polticos)11 aglutinaram-se em torno de um imaginrio de conquista do poder.12 Disputando entre si, o grupo dissidente formulou diferentes discursos e imagens da legitimidade da fora bruta, materializados pelos textos produzidos por militares e polticos nos peridicos locais13 e nas correspondncias oficiais ou no, evidenciando uma rede comum de significaes que deram origem cultura blica do movimento de outubro de 1930. Nesse sentido, acredita-se que os interesses de um grupo social tm sua origem apenas em suas relaes com outros grupos, seja do ponto de vista do confronto ou das alianas. Assim, para efeitos do estudo sobre o poder e, consequentemente, para entender a relao entre os indivduos e o grupo, torna-se oportuno compreender como os indivduos agem no interior do grupo social ao qual pertencem, especialmente quando participam ativamente da definio e da realizao dos interesses do mesmo ou apenas quando, de maneira direta ou indireta, conferem legitimidade poltico-militar a tal definio (FARIA, 2003, p. 78). Estas relaes de poder foram materializadas nos diferentes discursos elaborados por polticos e militares sulinos, especialmente aqueles localizados nas regies dos planaltos missioneiro gacho e leste paranaense.14 Cabe detalhar ainda outra questo que agiu como motivadora deste trabalho: a anlise sociocultural a partir da histria poltico-militar. Esta interpretao buscou fornecer respostas para temas que j ganharam certos engessamentos tericos e metodolgicos. Ao construir este objeto histrico, no se pretende incorporar novas vises da pesquisa histrica de uma forma antiga. Buscaram-se outras possibilidades de investigao para alcanar uma anlise prxima da complexidade do real social. De maneira geral, observa-se que a histria militar tem sido vista como mais um ramo da histria poltica, onde so privilegiados grandes personagens e fatos, cujos valores norteiam o processo histrico.15 Acrescenta-se, ainda, que possvel encontrar na historiografia da poltica brasileira duas formas bsicas de abordar a histria militar. A primeira abarca um universo mais amplo de intelectuais que confere aos militares um papel praticamente determinante, enquanto condutor do processo histrico. Este lugar de destaque est diretamente relacionado associao do chefe militar ao homem de estado, esfera da cultura poltica do poder responsvel pela tomada de decises.16 A segunda abordagem basicamente restrita aos prprios militares que utilizam a11

Lderes oligrquicos regionais das velhas e novas geraes (coronelismo e caudilhismo), bem como oficiais superiores legalistas e capites e tenentes rebeldes. 12 O mundo da imaginao faz parte da sociedade na qual vivemos, podendo materializar-se em conflitos blicos. A anlise do imaginrio de uma sociedade pode descortinar as relaes de poder inerentes formulao de conceitos representativos. 13 Revista do Globo - RS (1931); Dirio da Tarde (1930); A Tarde (1930) e Gazeta do Povo (1930) - PR. 14 Relatrios dos intendentes de Santo ngelo (1925-1930); Mensagens dos Presidentes do Estado do Paran (19271930); Boletins Internos do Comando da 5 Regio Militar e 5 Diviso de Infantaria (1927-1931); Almeida (1932); Tourinho (1980); COUTINHO (1955). 15 Opondo-se a essa viso da histria militar, ver Azma (1996); Corvisier (1999); Castro; Izecksohn; Kraay (2004). 16 Dentre os quais se destacam: Bello (1972); Carone (1977); Carvalho (1990) e (2005); Coelho (1976).

9 histria militar para uma pragmtica viso da arte da guerra.17 Obviamente, existem tangncias entre esses dois extremos, contudo legtima a afirmativa de que a historiografia brasileira pouco explorou a formao das comunidades imaginrias blicas. Inseridos neste enfoque, possvel perceber traos caractersticos de uma sociedade no bojo dos conflitos armados. Nesse contexto, acredita-se que uma pesquisa histrica sobre os discursos e imagens polticomilitares dos formuladores e executores do movimento cvico-militar de 1930, integrados s representaes coletivas da populao sulina brasileira, evidencia um universo extremamente rico para identificar, na histria militar, um novo vis reflexivo para a histria cultural. O conjunto destas representaes facilita a compreenso do pensamento dos atores que aliceraram o evento armado de 1930, bem como a observao da sua identidade blica. Esse vis identitrio estava integrado prpria comunidade de imaginao existente no sul do Brasil. A identidade blica foi forjada socialmente e desenhou as escolhas polticas e militares desse grupo dirigente dissidente. A reivindicao desta identificao blica foi inserida num quadro de dividendos polticos e militares do extremo meridional brasileiro. A construo dessa identidade belicista se fez no interior dos contextos sociais que determinaram a posio dos agentes e por isso mesmo orientam suas representaes e suas escolhas no mundo das armas. Deve-se considerar que a identidade se constri e se reconstri constantemente no interior das trocas sociais. (COUCHE, 1999, p. 181-183). Acredita-se, portanto, que as caractersticas culturais de uma sociedade em um determinado perodo podem ser causadoras de conflitos blicos, bem como a guerra pode realizar transformaes culturais contundentes nas sociedades diretamente envolvidas nas disputas armadas. No bojo desta anlise, busca-se realizar uma abordagem mais complexa da tradicional relao entre polticos e militares, descortinando as dimenses estruturais, sociais e culturais, que, em conjunto, agem nos processos de representao da realidade e de tomada de decises. Procurando construir uma reflexo em torno dessas questes, foram selecionadas algumas fontes com intuito de realizar leituras referentes ao imaginrio social que sustentou a comunidade de imaginao, alm das fronteiras da legalidade institucional. Com isso, a Revista do Globo (RS) e os jornais Dirio da Tarde e Gazeta do Povo (PR) foram discursos significativos desse momento histrico. Em 1930, alguns destes peridicos apresentaram severas crticas ao governo federal, outros, realizaram a defesa do sistema poltico vigente, todos emitindo opinies e pareceres, evidenciando a tentativa de cooptao da opinio pblica regional. Estes veculos de comunicao tambm demonstraram os diferentes discursos e imagens sobre a legalidade institucional e a legitimidade armada que as lideranas militares e polticas apresentavam em cada estado.

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Ver Calgeras (1967); Carvalho (1962); Magalhes (1998).

10 Os relatrios e livros publicados por militares e polticos da regio sul do Brasil tambm foram selecionados como fontes. Primeiramente, porque apresentam uma forma de abordagem diferente daquela a que se tem acesso nos peridicos. Mas, principalmente, por permitir a reflexo sobre os diferentes discursos e imagens que os militares e polticos assumiram no bojo do movimento blico de 1930. Tanto defendendo a manuteno da legalidade institucional, quanto fomentando a chegada ao poder por meio das armas, a participao dos militares, em especial do Exrcito Brasileiro, e dos polticos, com destaque para os Estados do Rio Grande do Sul e Paran, foi extremamente ativa neste processo. Os documentos governamentais so os relatrios dos intendentes gachos e dos presidentes paranaenses. Estes discursos oficiais descortinam as formas simblicas de legalidade manifestadas pelos articuladores do movimento armado de 1930, percorrendo os nveis de poder no sul do Brasil.18

Os boletins internos das foras governamentais e revoltosas apresentam a viso dos militares

legalistas contrrios ao golpe de 1930, bem como dos rebeldes adeptos da insurreio. Nesta vertente, tambm ser utilizado o livro do General Gil de Almeida (1932), comandante da 3 Regio Militar (Porto Alegre) que manteve cerrada comunicao com a guarnio militar de Curitiba. As obras de Tourinho (1980) e Coutinho (1955) enfatizaram a metamorfose legalista do processo de institucionalizao do Exrcito Brasileiro. Neste sentido, busca-se observar como a comunidade de imaginao atravessou as fronteiras da legalidade institucional da Fora Terrestre, dentro e fora dos quartis, afetando a imagem simblica 19 que a organizao militar adquiriu perante a sociedade da Primeira Repblica. A proposta desta dissertao pode ser resumida nos objetivos que se pretende alcanar ao longo do seu desenvolvimento: - entender as relaes entre militares e polticos nas diferentes esferas do poder na regio sul do Brasil, s vsperas do movimento belicista de 1930, diagnosticando as armas discursivas utilizadas por estes atores sociais que legitimaram o uso da fora; - compreender os diversos processos de integrao entre militares e polticos, no final da dcada de 1920, bem como a rede de contatos/contgios sociais que conduziu estas personagens ao interior de uma comunidade de imaginao blica, cujo alcance foi alm dos limites discursivos da legalidade institucional; - esmiuar os embates blicos, ocorridos durante o movimento armado de 1930, caracterizando a ntima ligao das atividades militares com a cultura sulina, desvendando o

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Esta investigao sobre a organizao das formaes simblicas de militares e polticos dissidentes por meio dos diferentes discursos produzidos tanto a nvel estadual quanto ao nvel das localidades foi inspirada pelo estudo da legislao escravista presente em Gebara (1986). 19 Imagem simblica a representao do Exrcito Brasileiro idealizado como baluarte da ordem e do progresso, uma imagem compensatria das disputas polticas da Repblica Velha.

11 processo de utilizao da autodeterminao da cultura blica como alternativa aos determinantes polticos e sociais daquele perodo. Para alcanar esses objetivos, procura-se avanar no estudo terico-metodolgico das histrias cultural e militar para que se possa explicar aquela realidade do passado. Para tanto, utiliza-se o olhar da histria cultural sobre as manifestaes culturais dos lderes polticos e militares nas esferas do poder, capturando suas formulaes discursivas e simblicas sobre aquela situao concreta. Acredita-se que tais construes discursivas e simblicas sejam a chave dos processos de tomada de deciso das diferentes personagens do grupo dirigente dissidente. 20 Assim, verifica-se que a linguagem da cultura poltica pode ser utilizada retoricamente para criar um senso de comunidade e, ao mesmo tempo, estabelecer novos campos de luta social, poltica e cultural (HUNT, 1992, p. 22). A histria militar uma ferramenta importante para entender os embates armados, com o cuidado em avanar alm da armadilha do reducionismo de abordagens tcnicas e instrumentais dos conflitos blicos. Defende-se uma conduta armada sempre atrelada cultura poltica do poder. Com isso, buscam-se os aspectos informais da cultura poltica, aqueles invisveis do exerccio do poder. 21 Desta forma, observam-se os movimentos alicerados por armas, tanto pelo seu vis de consecuo de fins polticos quanto pelos valores que povoam o imaginrio social de determinada coletividade. O ponto de tangncia entre essas duas correntes historiogrficas reside na comunidade de imaginao blica. Em termos tericos, essa comunidade surgiu a partir da luta entre diferentes discursos e imagens concorrentes, ou seja, a legitimidade de um poder duramente disputada entre indivduos ou grupos, sendo que as relaes de fora necessitam de uma relao de sentido (BAZCKO, 1985, p. 298-299). No caso do grupo sulino, remeter questo da legitimidade do uso do seu poder blico, chamando ateno de gachos e paranaenses para os acontecimentos e as atitudes do governo federal, buscar uma justificativa imagtica para a quebra da legalidade das instituies vigentes. A comunidade de imaginao blica esteve apoiada em uma rede de significao 22 que se tornou hegemnica na forma de pensar a ruptura da legalidade institucional como alternativa para a manuteno da ordem e do progresso do Brasil, por parte dos militares e polticos dissidentes. Neste aspecto, a cultura poltica atuou como uma espcie de mecanismo sutil para a manuteno da ordem, do significado e da coeso social (DESAN, 1992, p. 86). importante observar que esses atores reforaram, por meio dos discursos formais e/ou informais, um sistema cultural que estava imerso no espao social destas noes, formando assim20 21

Sobre a histria cultural, ver Hunt (1992); Falcon (2002); Burke (2006); Pesavento (2004). Sobre abordagens culturais na histria militar, ver Mommsen (1995); Franco (2003). 22 A rede de significao facilitou a atuao dos atores sociais na busca de um objetivo comum de conquista do poder, conformando uma comunidade imaginria. A rede de significao facilitou determinadas aes dos atores sociais, principalmente a circulao de informaes.

12 uma espcie de escudo contra todos aqueles que questionassem o seu poder. Com isso, militares e polticos trabalharam no imaginrio da sociedade sulina com intuito de representar a ruptura da legalidade para o restabelecimento da ordem, garantindo o progresso sulino. Para Castoriadis (1987, p. 130), haver sempre uma dimenso da instituio da sociedade encarregada desta funo essencial: restabelecer a ordem, garantir a vida e a operao da sociedade contra todos e contra tudo o que, atual ou potencialmente, a coloca em perigo. Desta maneira, os diferentes discursos e imagens da legalidade institucional puderam legitimar a utilizao das armas. Parafraseando Baczko (1985, p. 321), a aliana entre militares e polticos sulinos pressupe no s uma presena coletiva e um princpio de estruturao, mas tambm uma comunidade de imaginao. Alm da perspectiva conceitual da comunidade de imaginao, procura-se investigar o tema proposto em relao extensa bibliografia existente sobre a conhecida Revoluo de 1930. 23 Neste aspecto, verifica-se que a literatura disponvel 24 pouco avanou sobre os diferentes discursos e imagens criadas por militares e polticos sobre a legalidade institucional antes e durante a ecloso do movimento armado de 1930. A especificidade destas novas questes foi pouco abordada na bibliografia25 sobre o tema, apesar desses atores j terem sido exaustivamente estudados por diversos historiadores e jornalistas. Poucos estudos da Revoluo de 1930 discutiram as interpretaes do movimento armado a partir do conceito de representao (BORGES, 2007, p. 181-182). Apesar de vrias obras terem analisado os peridicos da poca detalhadamente, bem como os documentos governamentais, nenhuma delas tentou refletir como os discursos de militares e polticos reforaram o imaginrio blico da comunidade sulina, tornando-se uma alternativa vivel aos determinantes polticos. Devido a esta ausncia de abordagens histricas mais especficas, acredita-se na necessidade de interpretar estas fontes a partir do imaginrio que as manipulava e das representaes que se conformaram na sociedade do sul do Brasil. Dessa forma, estabelece-se um recorte para analisar algumas representaes referentes comunidade de imaginao blica, presente no movimento armado de 1930, em sua relao de poder com militares e polticos dissidentes. Assim, observam-se, nas fontes primrias, tentativas de manipular a opinio pblica no que tange s representaes sobre a legalidade institucional, principalmente no mbito poltico-militar do poder. Ressalta-se ainda a imperiosa necessidade de alertar ao leitor sobre a ausncia do termo Revoluo de 1930 neste trabalho. Apesar do termo revoluo aparecer em diferentes citaes23

A Revoluo de 1930 um dos temas que mais suscitaram debates entre historiadores do perodo republicano, havendo, portanto, uma produo enorme sobre a questo. Porm, dois importantes balanos gerais do evento e seus antecedentes foram realizados, ambos reunindo autores de diferentes matrizes tericas e interpretativas: A Revoluo de 1930: seminrio realizado pelo CPDOC/FGV. Braslia: UnB, 1983; Simpsio sobre a Revoluo de 1930. Porto Alegre: Erus, 1983. 24 Ver Borges (2007); Capelato (2007); Cerqueira; Boschi (1977); De Decca (1988). 25 Ver Carvalho (2005); Coelho (1976); Fausto (1995); Lima Sobrinho (1983); Meirelles (2005).

13 das fontes primrias e secundrias utilizadas nesta exposio cientfica, no objeto de estudo desta abordagem epistemolgica. A preocupao norteadora desta dissertao entender os instrumentos culturais que foram utilizados por determinados atores sociais para metamorfosear a lgica poltica legalista em uma legtima ao blica. Desta forma, a abrangncia da terminologia revoluo no se enquadra perspectiva belicista-cultural esmiuada nesta pesquisa, pois abriria espao para outras variveis sociais que no fazem parte da especificidade deste tema. 26 Assim, o evento ocorrido em outubro de 1930 no sul do Brasil no se apresenta como uma revoluo (tanto no seu aspecto mais restrito quanto geral), mas sim como movimento armado ou belicista. No desenvolvimento dessa proposta, esta pesquisa se estrutura de acordo com o seguinte plano de exposio: a primeira parte, intencionalmente terica, realiza uma breve anlise dos diferentes conceitos das cincias humanas que aliceram o enfoque temtico em questo. Nesta abordagem, busca-se o aprofundamento do suporte conceitual j apresentado nesta introduo, com destaque para o entendimento do seu vis operacional. Com isso, tem-se a expectativa de esmiuar a dinmica prpria de interpretaes sobre uma comunidade de imaginao, sustentada por suas inseres, representaes e imaginrios sociais. A perspectiva das relaes e escalas de poder entre militares e polticos outra faceta conceitual que sustenta toda a presente dissertao, aliada metamorfose da legalidade militar que assolou a comunidade de imaginao sulina e o prprio Exrcito Brasileiro, antes e durante o processo insurrecional. A segunda segmentao mantm o tom terico, contudo se preocupando em apresentar o espao de experincias historiogrficas sobre o movimento armado de 1930. Nesta vertente, analisam-se as obras mais representativas da historiografia nacional que avanaram sobre o tema da formao de uma aliana poltico-militar durante a insurreio de 1930. As vises de continuidade e de ruptura da hecatombe blica so privilegiadas neste segmento, demonstrando a ausncia de consenso acerca do que realmente levou ao sibilar dos projteis das armas de outubro no sul do Brasil. Aps uma pequena anlise crtica sobre as experincias historiogrficas, entra-se no terceiro captulo destinado apresentao do cenrio belicista. O recorte espacial utilizado ao longo do desenvolvimento desta dissertao caracteriza-se fundamentalmente pelos estados do Rio Grande do Sul e do Paran, no nvel governamental estadual e pelos planaltos missioneiro gacho e leste paranaense, no espao regional e local. Desta maneira, descortina-se, em termos macros, a dicotomia entre os governantes sul-rio-grandense e paranaense, em relao ao apoio ao governo federal, demonstrando que a regio sul era um caldeiro pronto para explodir. Ainda, adentra-se26

Uma viso mais ampla do conceito de Revoluo de 1930 foi apresentada por Silva (1996, p. 26-27). Para o autor, a Revoluo de 1930 foi um processo percorrido por contradies e conflitos e que redundou numa transformao radical das relaes intra e interclasses, da forma de atuao do Estado burgus e do modelo de acumulao e interveno poltica das fraes hegemnicas.

14 num olhar micro sobre a municipalidade do planalto das Misses do Rio Grande do Sul em analogia com o planalto leste do Paran. Em consonncia com o espao das injunes militares e polticas, foi necessrio restringir o recorte temporal que sustentou toda a anlise proposta. Ao longo dos captulos expositivos, descortinam-se momentos distintos para abordar as relaes de poder no sul brasileiro. O perodo entre os anos de 1926 a 1928 marcou os primeiros anos do governo de Washington Lus, da ascenso de Getlio Vargas e de Affonso de Camargo aos governos dos estados do Rio Grande do Sul e do Paran, da momentnea unio poltica do grupo dirigente dissidente e da constatao do perfil militarizado das sociedades sulinas. Em outro corte temporal, os anos de 1929 e 1930 ganham nfase, pois descortinam o esfacelamento institucional do Exrcito Brasileiro, o surgimento de atores mitificados, a consolidao do grupo dirigente dissidente com a crise da poltica do cafcom-leite e a legitimidade do uso das armas durante o movimento armado de 1930. O quarto momento tem a misso de apresentar as especificidades das personagens que estruturaram o grupo poltico-militar que sustentou a insurreio armada. Expostos no cenrio blico sulino, esses atores foram dispostos em polticos dissidentes, cujas oligarquias entraram em conflito com o poder central, e em militares descontentes, desde os tenentistas da dcada de 1920 at os oficiais e praas insatisfeitos com a estrutura organizacional do Exrcito Brasileiro. Neste segmento, tambm coube espao para apresentar os polticos situacionistas sulinos, que se mantiveram aliados ao governo federal, bem como os militares legalistas que no abriram mo das suas convices de amor ordem institucional, por meio da garantia da lei constitucional. As idiossincrasias deste elenco multifacetado so expostas juntamente com uma abordagem emprica dos eventos que antecederam o movimento armado. As contradies das fraudes eleitorais, bem como a mutao de heris e o surgimento de mitos forjam a ligadura entre estas personagens, aproximando-os e afastando-os luz dos interesses especficos da cada ator e/ou grupo social. Na ltima parte, o objetivo observar a pea blica em si. Com uma estruturao baseada em trs atos. O primeiro abordando a conspirao final que alicerou a ecloso do movimento armado, diagnosticando todo cabedal discursivo que alimentou a transformao da legalidade poltica na legitimidade blica. O ato seguinte inicia-se com os primeiros disparos das armas de fogo em PortoAlegre e a ressonncia que este tornado rebelde alcanou em todo Rio Grande do Sul, com especial destaque para as misses gachas. O sucesso militar dos revoltosos sul-rio-grandenses permitiu o incio do ato derradeiro: a ofensiva paranaense e a vitria do movimento armado de 1930. Em todos os atos, o teatro das relaes de poder subsidiado por ricas fontes primrias e secundrias que possibilitam os contrapontos necessrios ao entendimento das aes desenvolvidas naquele instantneo histrico.

15 A anlise desse final de processo, a par do seu desenrolar a nvel estadual, d-se no nvel das localidades, independentemente da sua opulncia. Tanto nas capitais estaduais, quanto nos menores municpios do interior sulino, emergiram combates reais que marcaram o processo de metamorfose do imaginrio legalista militarizado. A hegemonia sociocultural do grupo dirigente dissidente foi alcanada ao longo dos conflitos eleitorais, cuja formao simblica de mitos e heris sustentou a lgica do uso da fora bruta, em cidades como Porto Alegre, Curitiba e Santo ngelo. Com a ecloso do movimento armado, polticos, militares e sociedade tomaram posicionamentos em sintonia com a sua comunidade de imaginao, fazendo sentido as aes belicistas do perodo. O desenvolvimento dos cinco captulos buscou apresentar de maneira metafrica a estrutura de uma pea teatral blica, cujas partem compem a expectativa sobre o espetculo, a crtica acerca de anteriores encenaes, o cenrio espacial e temporal de atuao das personagens, o elenco e a importncia dos atores que protagonizaram as aes, os textos enquadrados dentro da lgica da comunidade de imaginao vigente e a prpria pea em si que descortina as disputas polticas e o sibilar das metralhas de outubro de 1930. Cabe ressaltar que a utilizao deste recurso vai ao encontro do jogo poltico-militar que marcou a comunidade de imaginao do perodo, pois deixou espao, mesmo com a delimitao do cenrio sulino e de textos especficos, para a metamorfose dos atores sociais, que assimilaram de forma diferenciada s questes de ordem, de legalidade e legitimidade que a realidade do final da Repblica Velha lhes colocava. Outro objetivo desta narrativa foi deixar a redao da dissertao um pouco mais leve, sem comprometer a apresentao dos resultados reflexivos e empricos da pesquisa. fundamental ressaltar que este trabalho o fruto de solitrias horas de pesquisa e redao, mas que somente teria o formato final que se descortina graas s revises seguras e responsveis do meu orientador, Dennison de Oliveira, bem como de conversas e debates com outros professores da linha de pesquisa Cultura e Poder. A todos sou grato pelas trocas de ideais e sugestes ao longo desta prazerosa caminhada. Boa leitura.

16 1 A EXPECTATIVACabe portanto ao historiador a tarefa de dizer o que a histria humana, e quais so as foras que realmente nos impulsionam. Barbara W. Tuchman. A prtica da histria.

O historiador tem a expectativa de contextualizar o acontecimento passado imerso no espao de suas experincias e no horizonte de suas possibilidades. Koselleck (Apud DOSSE, 2001, p. 91) observou o acontecimento no mago de uma estrutura antropolgica da experincia temporal e de formas simblicas historicamente institudas. Neste aspecto, esta pesquisa entende que os acontecimentos histricos ocorridos em 1930 no so possveis sem atos de linguagem, bem como as experincias que adquirimos a partir deles no podem ser transmitidas sem uma linguagem (KOSELLECK, 2006, p. 267). Destarte, a problemtica do sentido do acontecimento reside na sua individualizao, pois sua identidade sofre as influncias da temporalizao, da ao e da individuao dinmica. Desta forma, procura-se, nesta dissertao, avanar alm do nvel da pura descrio do fato histrico, valendo-se do carter operacional dos conceitos histricos, sua capacidade estruturante e ao mesmo tempo estruturada por situaes singulares (DOSSE, 2001, p. 91). Assim sendo, o suporte conceitual a principal ferramenta para as cincias humanas trabalharem os acontecimentos, associando linguagem e histria. Alm disso, a percepo de que as conspiraes polticas e o fragor dos conflitos blicos tm algo em comum com o mundo teatral percorre toda a lgica narrativa desta dissertao. Portanto, neste captulo inicial, apresenta-se o escopo terico conceitual, que sustenta a fase emprica da presente pesquisa, sob a perspectiva da estreia de uma pea no teatro. Toda a expectativa que um programa teatral gera antes da sua primeira apresentao resgatada na composio deste segmento de abertura. 1.1 Comunidade de imaginao Antes de partir para a caracterizao do conceito central deste estudo a comunidade de imaginao preciso entender as variveis da insero social dos principais atores que forjaram a reflexo armada sobre o movimento oposicionista de 1930. O estudo conceitual da penetrao social das personagens desta dissertao tambm atende terceira hiptese de trabalho que visava identificao das relaes sociais no seu escopo histrico, com base na insero social de militares e polticos sulinos. A compreenso das origens sociais desses atores sociais s vsperas do conflito belicoso da dcada de trinta permite integrar a estrutura social e suas personagens, introduzindo o sujeito e sua vontade individual dentro da ao social.

17 A insero social do grupo dirigente dissidente pode ser apresentada a partir da interseo de duas variveis: a questo da classe da qual faz parte e a do grupo com o qual est comprometido. Assim, observar o conjunto de personagens poltico-militares pela varivel da classe social qual pertencem, descortina o fato desses atores apresentarem origens socioculturais distintas entre si. Os polticos, invariavelmente, so oriundos das classes sociais dominantes, vinculados s oligarquias polticas estaduais e regionais. Com uma proporo numericamente significativa no conjunto dos atores que confrontaram a poltica dos governadores e uma viso elitista hegemnica, prpria das classes detentoras do poder poltico e econmico, os polticos dissidentes no conseguiram evitar, ao longo do processo histrico de ciso das oligarquias, que clivagens ideolgicas e interesses locais especficos atrapalhassem um pensamento monoltico no que tange ao seu projeto de poder. Com a classe social dos polticos buscando alternativas para superar suas divergncias, outros atores aglutinaram-se ao conjunto de dissidentes: os militares. Apesar de no ser caracterizada como uma classe social, os militares tiveram importncia significativa no desencadeamento da luta poltica para o movimento armado. Nesse sentido, o conceito de classe social no pode explicar na sua totalidade o conjunto das personagens que romperam com o pacto federativo da Repblica Velha, simplesmente porque polticos e militares no pertenciam a mesma classe social. Para Lange (1996, p. 47), os militares so caracterizados como um determinado grupo de membros de uma sociedade, cuja posio econmica e social no foi consequncia das relaes de propriedade, mas sim da forma que possui a superestrutura correspondente aquele grupo. Com isso, os militares, por mais representativos, no podem ser entendidos como uma classe social, mas sim como uma camada social. Para complementar a ideia de classe faz-se necessrio abordar outra varivel: grupo. O conceito de grupo perpassa clivagens ideolgicas dos segmentos de classe e tem a capacidade de agregar elementos vinculados s camadas sociais distintas. Esse conceito abre a possibilidade de comportar atores de procedncia diferente. Tal possibilidade assegurada pela constante parcialidade das identidades ideolgicas e dos interesses que o grupo estrutura no seu interior (SVARTMAN, 1999, p. 24). No caso especfico do grupo dirigente dissidente em questo, observam-se personagens comprometidos com uma viso legalista militarista que se vilipendiaram, poltica e ideologicamente, rompendo com a legalidade institucional, tomando o rumo da luta armada, em uma aparente ruptura com o imaginrio social vigente (BAZCKO, 1985; CASTORIADIS, 1982). Diagnosticar a insero social do grupo dirigente dissidente com base nas duas variveis acima destacadas permite, simultaneamente, perceber os fatores que caracterizam sua homogeneidade, como atores que alcanaram o poder federal em aparente discordncia com a forma de organizao poltico-militar que reinava no Brasil da Repblica do caf-com-leite. Ao

18 mesmo tempo, percebem-se sensveis diferenas de percepo do imaginrio social legalista militarista entre os diversos segmentos de polticos e militares que configuravam o grupo dirigente dissidente. Essa operacionalizao do conceito de grupo confere praticidade aos eventos passados, esclarecendo e exemplificando os argumentos expostos pelas hipteses introdutrias. A insero social dessas personagens deve ser consubstanciada pela efetiva ao que foi desencadeada ao longo do processo histrico de ruptura com o sistema governamental federal vigente. Para tanto, este trabalho percorre as decises histricas tomadas e efetivadas nos trs nveis de poder. As perspectivas socioculturais que so aliceradas pelas formas de representao social adotadas e a relao dialtica com o imaginrio social das populaes que embasavam os nichos de poder do grupo dirigente dissidente. Com isso, defende-se a viso de Svartman (1999, p. 24), segundo a qual, a ao no campo das ideias, ou do universo da cultura, possui uma funo, um papel histrico vinculado sua insero social. Os contatos/contgios sociais vivenciados por militares e polticos sulinos fornecem subsdios para se interpretar as representaes do grupo em consonncia com a comunidade de imaginao que demarcava a atmosfera cultural destes atores sociais. As variveis desses encontros geraram diversas apropriaes imagticas que explicam os contedos de homogeneidade e heterogeneidade no interior do grupo dissidente e da prpria sociedade do sul do Brasil. Para Chartier (1990), as representaes so determinadas pelos interesses especficos do grupo social que as fomenta. Cabe ressaltar que no se pode pensar na influncia das representaes somente no plano discursivo, muito pelo contrrio, elas so capazes de forjar estratgias e prticas que legitimam o grupo tanto na imposio em relao a outros grupos quanto no que tange a sua identificao. Desta maneira, as percepes coletivas do social no so discursos neutros, pois produzem estratgias e prticas [...] que tendem a impor uma autoridade custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os prprios indivduos, as suas escolhas e condutas [...] (CHARTIER, 1990, p. 17). Com isso, chega-se constatao de que as representaes sociais elaboradas pelo grupo dirigente dissidente foram, ao mesmo tempo, consubstanciadas na sua realidade social e nessa atuaram intensamente. A investigao das representaes do sujeito histrico em questo foi entendida dentro de um campo de concorrncias e de competies cujos desafios se apresentaram em termos de poder e dominao. As representaes so importantes para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impe, ou tenta impor, a sua concepo do mundo social, os valores que so seus, e o seu domnio (CHARTIER, 1990, p. 17). Desta forma, as representaes coletivas so consideradas, ao mesmo tempo, matriz e efeito das prticas construtoras do mundo social. O imaginrio social tido como um sistema de ideias-imagens de representaes coletivas passa a ser considerado o outro lado da realidade. Nesse caminho, percebe-se que os conceitos de

19 imaginrio e representao sociais esto atrelados ao terico e alicerados pelas prticas sociais. Isto , o papel social desempenhado pelo grupo dirigente dissidente reforou dialeticamente uma das dimenses da sua prpria realidade social, fornecendo as bases para a metamorfose do imaginrio social legalista militarizado. Projetando uma investigao mais profunda sobre o enfoque temtico deste trabalho, acreditase ser necessrio observar o cerne do conceito de imaginrio social. A anlise da influncia do imaginrio sobre uma determinada sociedade deve ser delimitada, com o risco de se perder o aprofundamento necessrio para a interpretao do tema. Por isso, partindo do macro sistema social estadual, a pesquisa chega s sociedades curitibana paranaense e missioneira gacha. Estas microestruturas foram tambm privilegiadas, porque apresentam, antologicamente, uma gama de situaes que sintetizam todo o processo de metamorfose do imaginrio social experimentado pelo Brasil sulino no final da dcada de 1920. Para tanto, busca-se o referencial terico e filosfico de Castoriadis (1982) e sua abordagem sobre o imaginrio social por meio de uma perspectiva institucional de uma sociedade sustentada pelo conjunto das suas significaes imaginrias. Nesse contexto, o autor afirma que,a instituio da sociedade toda vez instituio de um magma de significaes imaginrias, que podemos e devemos denominar de mundo de significaes. Porque o mesmo dizer que a sociedade institui cada vez o mundo como seu mundo ou seu mundo como o mundo, e dizer que ela institui um mundo de significaes, que ele se institui instituindo o mundo de significaes que o seu correlativamente ao qual somente um mundo existe e pode existir para ela (CASTORIADIS, 1982, p. 404). (grifo nosso)

A instituio da sociedade brasileira, no nvel estadual e mais especificadamente das regies curitibana paranaense e missioneira gacha, na perspectiva local, est totalmente inserida no pensamento de Castoriadis (1982), pois a formao institucional dessa sociedade esteve atrelada a um mundo de significaes imaginrias tanto no campo poltico-militar como no sentimentalreligioso. Na macroestrutura regional, os conflitos blicos ocorridos no Paran, particularmente na Repblica, como a revolta federalista, o cerco da Lapa, o Contestado e a rebelio tenentista, construram um conjunto de valores polticos e militares que legitimavam um magma de significaes imaginrias da imposio da ordem pelo sibilar das armas. Como capital do estado paranaense, a comunidade curitibana vivenciou cada uma dessas escaramuas blicas, por meio dos caminhos formais e informais que assolavam a populao com narrativas simblicas que instituram a lgica armada no modelo poltico vigente. No patamar da microestrutura, o vis sentimental-religioso inserido na formao cultural da sociedade missioneira gacha tem seu alicerce eucarstico baseado na significativa presena dos padres jesutas e na sua influncia sobre a religiosidade dos ndios guarani. O aspecto sentimental

20 est atrelado ao extermnio da maioria dos ndios missioneiros durante a Guerra Guarantica da segunda metade do sculo XVIII. Com isso, fundamenta-se que a instituio da sociedade local das Misses foi a instituio de um conjunto de significaes imaginrias que acabou condicionando, num determinado momento histrico, a um nico imaginrio social: o poltico-militar. A unificao do mundo de significaes imaginrias das destacadas sociedades paranaense e gacha em torno do vis poltico-militar proporcionou a unidade social dessas populaes. Tal perspectiva sociolgica encontra amparo na afirmao de Castoriadis (1982, p. 405): a instituio da sociedade instituio do fazer social e do representar/dizer social. Desta forma, o autor defende a ideia de que qualquer sociedade somente se reconhece como tal a partir do seu efetivo funcionamento (fazer social) e da sua respectiva identificao (representar/dizer social). Diante desta assertiva, percebe-se que, no final da dcada de 1920, a instituio da sociedade sulina tinha na presena militar a instituio do fazer social e no discurso poltico republicano de ordem e progresso a instituio do representar/dizer social. Trazendo a prtica para a teoria filosfica de Castoriadis (1985, p. 103), pode-se afirmar que a instituio da sociedade sulina foi a instituio da significao imaginria do paradigma polticomilitar. Essa significao imaginria social faz ser as coisas como tais coisas, coloca-as como sendo aquilo que so - ou aquilo que, sendo posto pela significao, indissociavelmente princpio de valor, princpio de ao. Apesar da veracidade espao-temporal desta afirmativa, visualiza-se o fato do mundo das significaes imaginrias ser extremamente mutante e sensvel s transformaes no fazer e no representar sociais. Nas palavras de Castoriadis (1982, p. 411),[...] no se pode reduzir o mundo das significaes institudas s representaes individuais efetivas [...]. As significaes no so, evidentemente, o que os indivduos se representam consciente ou inconscientemente, ou aquilo que eles pensam. Elas so aquilo, mediante e a partir do que os indivduos so formados como indivduos sociais, podendo participar do fazer e do representar/dizer social, podendo representar, agir e pensar de maneira compatvel, coerente, convergente mesmo se ela conflitual (o conflito mais violento que possa dilacerar uma sociedade ainda pressupe um nmero infinito de coisas comuns ou participveis). Isso faz com que (e certamente tambm requer) uma parte das significaes imaginrias sociais encontre um equivalente efetivo nos indivduos (em sua representao consciente ou no, em seu comportamento, etc.) e que as outras a se traduzam de uma certa maneira direta ou indireta, prxima ou longnqua. (grifo nosso)

O mundo das significaes poltico-militar que instituiu a sociedade sulina no pode ser entendido como um mero somatrio das representaes individuais da populao local da capital paranaense ou do noroeste do estado do Rio Grande do Sul. Esse mundo poltico-militar foi forjado ao longo de diversos conflitos blicos internos e externos vivenciados pela regio brasileira do sul, com a participao ativa dos indivduos no fazer social. Contudo, somente na fase republicana, esse

21 fazer social militarizado foi atrelado, pelo grupo dirigente regional, ao representar social de legitimidade, de legalidade, de ordem e de progresso.27 Nesse aspecto, busca-se, ao longo desta pesquisa, demonstrar que o conflito blico de 1930 apresentou caractersticas, no nvel local, de ruptura e de permanncia com o status quo vigente. Mesmo rompendo com algumas representaes sociais como legalidade e ordem, o movimento armado manteve a sociedade sulina coerente e convergente com a legitimidade do seu fazer social militarizado, fazendo com que uma parte das significaes imaginrias sociais afetadas pela ao armada civil-militar encontrasse seu equivalente no grupo dirigente dissidente que conduziu a marcha blica do final da dcada de 1920. Alm da anlise da microestrutura local pela lente das significaes imaginrias sociais de Castoriadis (1982; 1985), utiliza-se tambm o olhar aguado de outro terico do imaginrio social: Baczko (1985). Valendo-se da teoria deste autor, configura-se a assertiva de que o imaginrio social legalista militarizado da sociedade regional sulina foi forjado no fogo da representao social blica que conduziu e orientou as prticas coletivas, principalmente, ao longo da Repblica Velha. Dentro deste enfoque especfico, destaca-se a percepo de Baczko (1985) sobre os imaginrios sociais. Para o autor, tais categorias sociais[...] constituem outros tantos pontos de referncia no vasto sistema simblico que qualquer coletividade produz e atravs da qual [...] ela se percepciona, divide e elabora seus objetivos. [...] assim que, atravs dos seus imaginrios sociais, uma coletividade designa sua identidade; elabora uma certa representao de si; estabelece a distribuio dos papis e das posies sociais; exprime e impe crenas comuns; constri uma espcie de cdigo de bom comportamento, designadamente atravs da instalao de modelos formadores tais como o do chefe, o bom sdito, o guerreiro corajoso, etc (BAZCKO, 1985, p. 309-310). (grifo nosso)

Com as palavras de Baczko (1985), corrobora-se a afirmativa de que foi atravs do imaginrio social militarizado que a coletividade sulina designou sua identidade blica, elaborou uma representao social legalista militarizada impondo a crena de que a presena militar era condio sine qua non para a ordem e o progresso regional, alm de permitir que o grupo dirigente local instalasse um modelo de chefia (caudilhismo/coronelismo) atrelado ao guerreiro corajoso (militarismo). Nesta micro perspectiva poltico-militar sulina, observa-se que no se podem separar os atores sociais e os seus atos de suas representaes que, na verdade, definem comportamentos, inculcam valores, atribuem mritos, corroboram ou condenam atitudes/ decises (BAZCKO, 1985, p. 306). Cabe destacar que o estudo pormenorizado do imaginrio social legalista militarizado de Curitiba e do noroeste do estado do Rio Grande do Sul tem o primordial intuito de desvendar as origens do movimento armado de 1930, bem como observar como aquele microssistema poltico27

Sobre a manipulao do grupo dirigente local republicano do mundo poltico-militar missioneiro, ver Franco (2003).

22 militar sulino possibilitou instituir uma realidade sobre a qual se instaurou e, a partir de um determinado momento histrico, tornou-se instrumento de sua prpria transformao. A anlise deste microssistema permite verificar o processo de organizao do grupo dirigente dissidente do nvel mais restrito ao mais geral de estruturao. A adaptao dos conceitos mais gerais s realidades e condies locais permitiu, ao grupo dirigente dissidente, a necessria continuidade a nvel regional, dando proposio da classe dominante um carter unificador. Concomitantemente, forneceu os instrumentos fundamentais para, a nvel estadual, romper com os laos da poltica do caf-com-leite. Nesse sentido, este trabalho pretende percorrer o caminho que levou o imaginrio social local a decompor os sentidos da coletividade que migraram atravs de formaes discursivas, ao mesmo tempo, homogneas e heterogneas do grupo dirigente dissidente, criando uma percepo aparentemente saturada da presena militar institucionalizada na capital paranaense e no noroeste gacho que proporcionou a manuteno do status quo vigente. Com isso, acredita-se que a sociedade sulina produziu, na Primeira Repblica, uma representao social blica capaz de legitimar a ordem estabelecida. Para Baczko (1985, p. 310), o imaginrio social , pois, uma pea efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exerccio da autoridade e do poder. Neste vis, procura-se alicerar o jogo poltico que reformulou os planos do grupo dirigente curitibano e missioneiro no que tange percepo sobre as mutaes no imaginrio social local, buscando antes de tudo a manuteno do controle da sociedade. O imaginrio blico sulino, apesar de forjado e manipulado ao longo da Repblica Velha, somente foi enraizado na sociedade, aps a construo de uma comunidade de imaginao belicista, de uma comunidade de sentido. O mito do estabelecimento da desordem armada para manter a ordem progressista s foi legitimado porque havia um terreno social e cultural alinhado a esse discurso simblico. Na ausncia de tal base, a tentativa de cri-los, de manipul-los, de utiliz-los como elementos de legitimao, cai no vazio, quando no no ridculo (CARVALHO, 1990, p. 89). Como j visto na fase introdutria, a comunidade de imaginao blica caracterizava os grupos sociais da regio sul brasileira que compartilhavam do mesmo imaginrio armamentista. A comunidade de imaginao mantm um substrato alicerado por um conjunto de relaes imagticas que atuam como memria social de uma cultura. Assim, a imaginao forjada por esta comunidade uma produo coletiva, pois depositria da memria que os grupos recolhem de seus contatos com o cotidiano. Nessa dimenso, identificam-se diferentes percepes dos atores em relao a si mesmos e de uns em relao aos outros, possibilitando verificar como eles se visualizam como partes de uma sociedade. Por isso, a comunidade de imaginao tem a capacidade de fornecer sentido ao grupo

23 social, designando sua identidade, por meio das suas representaes sociais, determinando os papis sociais, reforando vises comuns, estabelecendo uma conduta discursiva semelhante. Dessa forma, os integrantes da comunidade de imaginao formulam vises de mundo e modelam condutas e estilos de vida, em movimentos contnuos ou descontnuos de preservao da ordem vigente ou de introduo de mudanas (BACZKO, 1984, p. 54). A comunidade de imaginao utiliza este campo discursivo como fator regulador e estabilizador da sociedade, alm de permitir que os modos de sociabilidade existentes no sejam considerados definitivos e como os nicos possveis, e que possam ser concebidos outros modelos e outras frmulas (BACZKO, 1985). A comunidade imaginria permite observar a vitalidade das criaes dos sujeitos: o uso social das representaes e das ideias. Os discursos simblicos revelam o que est por trs da organizao da sociedade. A eficcia poltico-militar das formulaes imagticas blicas na alvorada da dcada de trinta dependeu da existncia da prpria comunidade de imaginao, comunidade de sentido. As significaes imaginrias blicas despertadas pelos discursos do grupo dirigente dissidente determinaram referncias simblicas que definiram, para militares e polticos da mesma comunidade, os meios inteligveis de seus intercmbios com as instituies. Parte-se do suposto que o sucesso do uso do discurso da legitimidade blica em especial, por militares e polticos s vsperas e durante o movimento armado de 1930, teve como base uma comunidade de imaginao criada anteriormente em funo das aes belicosas ocorridas na regio sul do Brasil. Desta maneira, o discurso de ordem e progresso construdo e constantemente recriado por peridicos gachos e paranaenses, fonte privilegiada na presente anlise, alicerou sua aceitao, apropriao e reconstruo, na existncia da comunidade de imaginao blica sulina. Ou seja, uma predisposio da sociedade do sul do Brasil em identificar-se com as ideias de legitimidade do conflito armado. O surgimento e propagao do discurso belicista por parte do grupo dirigente dissidente foi uma maneira de cooptar a populao sulina a partir da comunidade de imaginao blica, bem como garantindo sua prpria identidade coletiva. Nas palavras de Baczko (1984, p. 53),o nascimento e a difuso dos signos imagticos e dos ritos coletivos traduzem o desejo de achar uma linguagem e um modo de expresso correspondente a uma comunidade de imaginao social, assegurando um modo de comunicao das massas que buscam dar a si mesmas uma identidade coletiva, reconhecer-se e afirmar-se em suas aes. Mas, por outro lado, o mesmo simbolismo e o mesmo ritual fornecem uma paisagem e um suporte aos poderes que se instalam sucessivamente e que buscam se estabilizar. Com efeito, notvel que as elites polticas se dem conta rapidamente do fato de que o dispositivo simblico constitui um instrumento eficaz para impressionar e orientar a sensibilidade coletiva, para impressionar as massas seno para manipullas (grifo nosso).

24 Dentro desse perfil terico, observa-se que o discurso simblico belicista somente foi eficaz porque se assentou na comunidade de imaginao blica existente no sul do Brasil. Se ela no existisse, o referido discurso no faria sentido naquela vida coletiva (BACZKO, 1985, p. 325). Assim, a comunidade de imaginao uma categoria vivel para teorizar as prticas desenvolvidas pela sociedade do sul do Brasil em 1930. A comunidade sulina exemplificada luz do seu imaginrio social, cuja mxima conceitual nada mais do que a representao social da realidade, ou seja, da prtica social. A sinergia das categorias apresentadas depende da presena do conceito de grupo e de suas diversas inseres sociais, facilitando a constatao de que a prtica blica estava relacionada ao grupo dirigente dissidente que os atores sociais (militares e polticos) pertenciam, cujo imaginrio e representaes refletiram o espectro maior da comunidade de imaginao na sociedade sulina. A unio de militares e polticos em 1930 forjou um novo grupo social, cuja identidade coletiva foi legitimada pela experincia dos conflitos blicos passados, aliados aos discursos de rompimento com a cultura poltica da Primeira Repblica. 1.2 Relaes e escalas de poder A eficcia da narrativa blica funciona como pedra de toque da identidade histrica do movimento armado de 1930, sendo verificvel pela operacionalizao dos conceitos na pesquisa emprica. O imaginrio e a representao sociais sustentaram a elaborao da comunidade de imaginao que somente foi descrita pelas prticas reais, pois certos objetos, acontecimentos e processos apresentam caractersticas semelhantes. Assim, os conceitos vo desde ideias sobre objetos muito simples at as abstraes de alto nvel, bastante distanciadas do patamar do concreto. O pensamento e o desenvolvimento em todos os domnios da atividade humana dependem da exatido dos conceitos. Desta forma, este estudo apropriar-se dos conceitos como representaes mentais que apreendem caractersticas distintivas existentes num nmero significativo de elementos pertencentes realidade da prtica social passada. Constata-se, pois, que as problemticas para as quais aponta o conceito de comunidade de imaginao somente tem sentido na sua articulao com as relaes de poder. Sem deixar de lado o repertrio cultural do indivduo, deve-se compreender como as representaes sociais coletivas atuam sobre os atores sociais, ajudando-os a modificarem ativamente uma determinada situao estimuladora, dentro de um processo de resposta a estas representaes. Entender as mutaes do pensamento e do comportamento destes atores como verdadeiras transformaes complexas, qualitativas, de uma forma de pensamento em outra que, necessariamente, no precisa ser totalmente diferente da realidade anterior. Para Swidler (1986, p.

25 273), a cultura coletiva modela a ao individual por fornecer fins ou valores na direo em que a ao dirigida, ento fazendo dos valores o central elemento causal da cultura. Acredita-se que quanto mais complexa a ao militar e menos direta a soluo, maior era a importncia que o discurso poltico desses atores assumiu na sua insero social dentro do grupo. Foi o discurso do progresso sustentado pela ordem legal que habilitou as personagens a buscarem ajuda para a soluo dos problemas, a atenuarem atitudes impulsivas, a planejarem antes de executar e a controlarem o prprio comportamento, pois a integrao entre o discurso e os signos foi o meio mais eficaz de contato social entre os sujeitos da comunidade de imaginao. O discurso poltico e a ao militar possuram funo primordial na metamorfose do imaginrio social, alvo desta pesquisa, estruturando a prpria lgica de sua gnese dentro do processo histrico. Esta complexa relao entre discurso e ao o resultado de um desenvolvimento sociocultural profundamente enraizado na ntima ligao entre as histrias poltica e cultural. Cabe ressaltar tambm que as funes simblicas includas nesse imaginrio influenciaram decisivamente no comportamento do grupo em questo e da prpria sociedade brasileira. Tendo por base esta constatao, observou-se um investimento considervel do grupo dirigente dissidente na construo de smbolos capazes de dar sustentao poltico-militar metamorfose almejada. Tais smbolos davam direo comum s escolhas realizadas pelos membros do grupo em questo, escolhas que no imaginrio coletivo tinham a funo de legitim-las para conferir representatividade e coeso do grupo dirigente dissidente. Obviamente, o grupo em questo no configurou a transformao do imaginrio social apenas baseado em fatos imediatos. Na realidade, existiu um longo processo de construo antecedente que tornou disponveis fragmentos do passado, que, consequentemente, transformaram-se em uma nova forma de sintetizar as experincias poltico-militares com os fatos desencadeados nas vsperas do movimento armado de 1930. Alm da metamorfose ocorrida dentro das relaes interpessoais do grupo dirigente dissidente, tambm aconteceu a transformao da sociedade que recebeu influncia direta desse grupo. Ao se perceberem co