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Re(vi)vendo a arte ao vivo - Um arranjo graforrágico de memórias rotas, gerado por Lucio Agra, com interferências de Otávio Donasci e referências de Renato Cohen. Este texto pretende defender duas idéias que se articulam: a primeira sustenta que não é possível compreender o momento contemporâneo da arte de São Paulo sem que se perceba as suas fontes geradoras e que estas se situam na singular confluência entre experimentos simultaneamente construtivos e desconstrutivos, levados a cabo principalmente durante os anos 80; a segunda percebe que esta singularidade vem à tona em um momento no qual a música pop passa a ser relevante para a produção artística, instaurando uma nova noção de arte plástica e cênica. O principal defensor da segunda idéia foi Renato Cohen (1953-2003) que a expôs, não de forma tão simplificada, em seu livro Performance como linguagem 1 . Como se poderá observar ao longo do texto, seus argumentos em favor do environment dos anos 80 como ambiência ideal para o desenvolvimento da performance irão convergir para a minha própria perspectiva e a do co-autor deste texto, Otávio Donasci, performer e video-maker, criador das Videocriaturas, híbridos humano- eletrônicos desenvolvidos dos anos 80 até hoje 2 . Foi a partir do convite para participar da “Máquina Futurista”, trabalho intermídia, realizado na mostra Arte e Tecnologia do Itaú Cultural (1997) 3 , que meu contato com Renato Cohen desdobrou-se em um constante diálogo e uma parceria que nos levaria a outras aventuras como KA (1998) baseado no texto-experimento do poeta russo do início do séc. XX, Velimir Khlébnikov, apresentado no Museu Ferroviário de Campinas 4 ; Dr. Fausto liga a luz (1999) a partir de texto de Gertrude Stein; o trabalho conjunto no Curso de Publicado, de forma reduzida, em edição bilíngüe (inglês/francês) na revista canadense Parachute número 116, segundo semestre de 2004. O tema dessa edição foi São Paulo, com curadoria de Suely Rolnik. A versão aqui estampada é o texto original. 1 COHEN, Renato Performance como linguagem SP, Perspectiva, col. Debates vol. 219, 1989 2 http://www.videocreatures.net 3 http://www.pucsp.br/~cos-puc/budetlie 4 http://www.iar.unicamp.br/~projka/ (não mais disponível)

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artigo escrito por mim em parceria com Otávio Donasci, contando um pouco da performance nos anos 80 em SP. Publicado origialmente em francês e inglês na revista canadense Parachute (116)

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Re(vi)vendo a arte ao vivo - Um arranjo graforrágico de memórias rotas, gerado por Lucio Agra, com interferências de Otávio Donasci e referências de Renato Cohen.

Este texto pretende defender duas idéias que se articulam: a primeira sustenta que não é possível compreender o momento contemporâneo da arte de São Paulo sem que se perceba as suas fontes geradoras e que estas se situam na singular confluência entre experimentos simultaneamente construtivos e desconstrutivos, levados a cabo principalmente durante os anos 80; a segunda percebe que esta singularidade vem à tona em um momento no qual a música pop passa a ser relevante para a produção artística, instaurando uma nova noção de arte plástica e cênica.

O principal defensor da segunda idéia foi Renato Cohen (1953-2003) que a expôs, não de forma tão simplificada, em seu livro Performance como linguagem1 . Como se poderá observar ao longo do texto, seus argumentos em favor do environment dos anos 80 como ambiência ideal para o desenvolvimento da performance irão convergir para a minha própria perspectiva e a do co-autor deste texto, Otávio Donasci, performer e video-maker, criador das Videocriaturas, híbridos humano-eletrônicos desenvolvidos dos anos 80 até hoje2.

Foi a partir do convite para participar da “Máquina Futurista”, trabalho intermídia, realizado na mostra Arte e Tecnologia do Itaú Cultural (1997)3, que meu contato com Renato Cohen desdobrou-se em um constante diálogo e uma parceria que nos levaria a outras aventuras como KA (1998) baseado no texto-experimento do poeta russo do início do séc. XX, Velimir Khlébnikov, apresentado no Museu Ferroviário de Campinas4; Dr. Fausto liga a luz (1999) a partir de texto de Gertrude Stein; o trabalho conjunto no Curso de Comunicação e Artes do Corpo da PUC-SP 5(2002) e, ainda no mesmo ano, performances em teleconferência (Constelação) no Sesc Vila Mariana6, 12 horas no ar.

Durante estes anos, a confiança de Renato integrou-me ao convívio de pessoas como Arthur Matuck, Arnaldo Mello, Lali Krotozinsky, Samira Brandão, Rogério Borovik, Vanderlei Lucentini, Otávio Donasci, Ricardo Karman, Wilson Sukorski, Lívio Tragtenberg. Nem todos são da mesma geração, mas a generosidade de nosso amigo impedia que nos visse como pessoas distantes no tempo. Acolheu, no seu curto período de vida, todos os tempos que pôde, tratando-os com a mesma atenção.

Comparecem, aqui, fragmentos de texto do próprio Renato, como se verá, e de conversas com Otávio. Juntos, produzimos algumas horas de gravação, passagens que vão se entremeando, em itálico7.

Por outro lado, devo a Suely Rolnik o desafio desta discussão. No início deste ano, lançou, em uma conversa informal, argumentos desafiadores, dizendo estar

Publicado, de forma reduzida, em edição bilíngüe (inglês/francês) na revista canadense Parachute número 116, segundo semestre de 2004. O tema dessa edição foi São Paulo, com curadoria de Suely Rolnik. A versão aqui estampada é o texto original.1COHEN, Renato Performance como linguagem SP, Perspectiva, col. Debates vol. 219, 19892 http://www.videocreatures.net 3 http://www.pucsp.br/~cos-puc/budetlie 4 http://www.iar.unicamp.br/~projka/ (não mais disponível) 5 http://geocities.yahoo.com.br/proflucio/acindex.htm (não mais disponível). Não está mencionado aqui o trabalho desenvolvido por Renato Cohen na Companhia Ueinzz., com “atores especiais” do Hospital-Dia “A casa” (atualmente autônomos). Isto mereceria um ensaio à parte, por sua amplitude.

6 http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/constelacao (11/2002)7 As conversas com Otávio Donasci foram registradas em MP3, durante o mês de fevereiro de 2004, especialmente para a elaboração deste texto.

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interessada não em uma arte contemporânea “formalista” e sim naquela que optava por interferir na vida. Esse desafio estriba-se na idéia de que não basta apenas ser uma obra que opera por mecanismos diversos da racionalidade tradicional ou ainda das sintaxes tradicionais, mas seria também necessário que esta arte estabelecesse um contrato diverso daqueles gerados em um momento anterior, consagrados pela freqüência de uso. Contrapus o argumento de que o que ela chamava de “formalismo” não se distinguia desta arte “na vida” contemporânea visto que artistas contemporâneos teriam aprendido suas táticas de pôr o pé no mundo com as investigações dos “formalistas”.

Para ajudar a entender essa estranha aproximação invoco uma experiência ao mesmo tempo social e pessoal:

Música ao vivo. Disco ao vivo. Disco de estúdio. Os moleques de 14 a 16 anos de idade que, como eu, viveram suas adolescências durante os anos 70, discutiam temas absolutamente esotéricos como este. Os grupos se dividiam entre os que preferiam os “alive” (meu caso) e os que preferiam o registro de estúdio, feito com mais cuidado, mais elaborado. “Alive” reproduzia a “energia” do palco. E tinha, de quebra, a vantagem de reunir as melhores canções da banda. O disco de estúdio, se bem ouvido, podia revelar sutilezas da composição, detalhes do arranjo, seqüências para serem estudadas e imitadas até a exaustão, enfim, quase uma aula de música. Está claro que as duas facções se complementavam e que cada uma representava apenas um ou mais aspectos do amor que nos unia em torno da música e de tudo aquilo que ela gerava: a moda, o comportamento, as atitudes, penteados, roupas, revistas, declarações bombásticas, estética, ética, lógica. Enfim, tudo isso que compõe o que, na nossa geração8, durante seu amadurecimento, nasceu, cresceu e produziu frutos junto com ela: as (sub)culturas pop.

Pois bem, usando o exemplo, eu diria que não é possível entender a arte contemporânea de São Paulo, particularmente, se não entendermos que o ambiente de discussão e criação aqui gerado se fez a partir da contínua convergência entre o álbum ao vivo e o de estúdio (a terminologia que usávamos nos anos 70). Uma enxurrada de novos fatos mudou a face do mundo na década de 80. Um período de paradoxos. O senso comum costuma identificar alguns dados históricos e comportamentais daquele tempo: a apropriação do punk pela moda, o new wave, a era Thatcher/Reagan, o niilismo, o cinismo, os yuppies, a transvanguarda, o neo-conservadorismo – em meio aos neos e néons inúmeros –, o(s) pós-modernismo(s) e, concluindo, a bombástica demolição do Muro de Berlim, o colapso do socialismo, e a entrada do mundo na era digital.

O quadro histórico não chega a errar, mas é incompleto como vivência. Uma época também é rica de experiências individuais, de percepções guiadas pelos sentidos. Os vídeo-clips, a superfície luminosa da tela da TV, as cores das roupas, os movimentos das danças, a sutil variação dos volumes dos instrumentos na música, a inveja que tínhamos da beleza dos japoneses, o elo entre performance e tecnologia. Sendo também experiências históricas, suas densidades individuais alimentam esse texto, mesmo não sendo este seu propósito principal.

De outra perspectiva, é evidente que a performance – a live art – no Brasil, não constitui novidade nos anos 80. Se quiséssemos ser minuciosos, muito mais do que um artigo seria necessário para assinalar, desde os esforços inusitados dos Modernistas, particularmente Flávio de Carvalho, até os experimentos dos 60. A invenção absoluta de

8 Esta seria a assim chamada “geração 80”, rótulo que prefiro evitar, por estar demasiadamente contaminado de significações as mais diversas. Genericamente, refiro-me aos que nasceram entre a segunda metade da década de 50 e a primeira da década de 60. Estas pessoas freqüentaram a Universidade durante os anos 70 e vêm desenvolvendo sua produção artística da década de 80 para cá.

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Hélio Oiticica, com os Penetráveis, os Bólides, os Parangolés. Os trabalhos rituais e sensoriais das duas Lygias: Clark e Pape. Os popcretos de Augusto de Campos e Waldemar Cordeiro.

Nos anos 70 pode-se citar vários experimentos, dentre os quais os do português/brasileiro Arthur Barrio, a Corpobra – o nu de Antônio Manuel no MAM do Rio –, os happenings do M.A.R.D.A. de Rogério Duprat e Décio Pignatari, os escândalos irônicos dos integrantes da Galeria Rex. Um exemplar do Estado de São Paulo de 20 de novembro de 1976 noticia os tumultos provocados no sacrossanto Teatro Municipal pela I Feira Paulista de Arte. Alguém urina no Palco. Há uma apresentação dos Dzi Croquettes. E Maurice Vaneau, na época dirigindo o teatro, defende a liberdade dos artistas.

A enumeração não se pretende rigorosa e segue um desenho caótico. Mas serve para demonstrar que não temos pouca história no capítulo da arte que mais interfere na vida. Alguma coisa que os ingleses têm chamado de “Live Art”, que se conhece bem como performance, e que vou chamar aqui, exclusivamente para os propósitos desse texto, de “arte ao vivo”9.

Renato Cohen inicia sua pesquisa na década de 80 e percebe que se trata de um momento crucial da performance no Brasil. Uma nova configuração dos fatos está vizinha no horizonte. Novas perguntas precisam ser respondidas. Tentar entender em que medida se deu o trânsito entre manifestações artísticas situadas na esfera da transformação formal para manifestações artísticas que não mais entendem transformações formais sem que estas representem uma transformação também nos indivíduos que as geraram e nos que as contemplam; compreender como se construiu um percurso no qual a principal “arte ao vivo”, o teatro, deixou de ser a referência para novas ações artísticas e de que forma ele acaba por retornar, talvez sem suas marcas originais. Perceber, ainda, porque não há uma história da relação música/performance tão bem contada assim. Afinal, até mesmo a palavra performance, no inglês, pode significar, simplesmente, o ato de representar um papel ou executar uma peça musical10.

* * *

“Antes de existir computador existia a tevê”. O verso da canção de Arnaldo Antunes enumera seqüências de “antes” até chegar ao “silêncio”, “a primeira coisa que existiu”, o silêncio, palavra que dá título à composição. Embora em fins dos anos 70 e durante boa parte dos 80 somente existisse a TV, era como se o computador já tivesse se tornado pessoal. Explico melhor: os PCs trouxeram uma transformação há muito esperada pelos artistas11. O computador já existia, porém suas rotinas de operação, sobretudo após a popularização de sistemas operacionais domésticos, baseados em interfaces (supostamente) compreensíveis para um leigo, fizeram implodir todo um processo que anteriormente necessitava dos meios tradicionais para se realizar.

9 “A live-art é arte ao vivo e também arte viva” Renato COHEN Performance como linguagem SP, Perspectiva, col. Debates vol. 219, 1989, pg. 38)10 Este é um conjunto de questões certamente marcadas por um caráter geracional. Renato Cohen faz perguntas semelhantes na introdução (“Do percurso”) de seu Performance como linguagem: “...muitas outras perguntas que, transportadas para o que se via no Brasil, abriam outras indagações: por que as outras artes alcançavam grandes progressos e o teatro continuava tão estagnado? A prática do teatro teria que ficar isolada das outras artes? Será que a única alternativa para a caretice era Brecht?”(op. cit., pg. 2011 Embora não seja este o assunto do texto, sempre me pareceu que o “vazio” pós-modernista tinha um pouco a ver com esse lapso de tempo que antecedeu o surgimento do computador pessoal.

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Sendo assim, a ambiência12 que aqui se descreve tem muito a ver com essa espécie de “tempo vazio”, por assim dizer, um momento que parecia exigir uma nova tecnologia que no entanto tardava a aparecer. É um tempo de expectativa.

Talvez a principal imagem que funcione como ícone deste tempo é mesmo a videográfica13. O tipo de figuração eletrônica gerada pela efêmera tecnologia do vídeo-texto, por exemplo, formava, no colorido e na organização gráfica, um perfeito conjunto “gestáltico” dos anos 80. Embora seja algo difícil de ser percebido por gerações que não viveram o período, trata-se de uma estética pregnante o suficiente para que possa ser lembrada por qualquer um que tenha presenciado aqueles anos. E é constatável através de imagens televisuais, cinematográficas14, de produção gráfica e outras. Os primórdios da “live art” em São Paulo, portanto, estão permanentemente marcados pela “signagem da televisão” (Décio Pignatari) e do vídeo.

Essa é a razão da presença do outro interlocutor deste texto, um artista que fundiu o vídeo e da performance: Otávio Donasci.

Fazendo um pouco de história aqui, uma das primeiras coisas de que me lembro na área de Performance seriam o Madame Satã e o José Roberto Aguillar fazendo aquela performance da melancia, o “Rock da Melancia”. Isso era o Aguillar e a Banda Performática.

No seu roteiro sobre os anos 80, compreendidos nos termos da passagem de “Eros a Thanatos”15, Renato Cohen assinala, na alvorada do “punk” (Inglaterra e Estados Unidos), o desenvolvimento inicial da “live art”. A música é a “principal linguagem de propagação” do punk e do new wave. Sendo um momento marcado pela “releitura”, várias referências da arte do século XX são convocadas para uma espécie de cena que não é mais tão somente musical (pois não exige, necessariamente esse conhecimento), teatral (pois embora faça uso de elementos teatrais, este não é o foco principal) ou coreográfica (todos os elementos de dança são espontâneos e não-programados). Estas referências informam a visualidade gráfica (caso da relação entre o anti-design DADÁ e aquele praticado nos fanzines punks), a música (atonalidade, polirritmia), a encenação (figurinos que evocam o expressionismo e até mesmo o romantismo), a coreografia (mesmas fontes mais futurismo e DADÁ); tal resultado é documentado no vídeo-clip, um novo formato no qual Renato Cohen percebe uma tendência a “imitar o processo onírico. O resultado pode ser chamado de ‘surrealismo eletrônico’”.16.

12 Renato Cohen costumava usar o termo environment : “essa palavra, que não tem tradução satisfatória em português, diz respeito ao clima, ao envolvimento, ao meio ambiente. Seria uma espécie de cor de fundo...” (op cit , pg. 144).13 Tomo ícone aqui no sentido da Semiótica de Charles Sanders Peirce (1839 – 1914): um tipo de signo que, em relação ao seu objeto, mantém-se em um estado de extrema semelhança com o mesmo, a ponto de quase confundir-se com ele, gerando uma interpretação do tipo hipotético. Imagens, diagramas e metáforas são os tipos de ícones que Peirce julgava serem perceptíveis a uma mente humana. Chamava-os de hipo-ícones. Ver, a esse respeito, SANTAELLA, Lucia O que é semiótica SP, Brasiliense, col. Primeiros Passos.14 No exterior, Blade Runner(1982) e Fome de Viver(The Hunger, 1983), respectivamente de Ridley e Tonny Scott; Paris, Texas (1984) de Wim Wenders e Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) de David Lynch. No Brasil, Cidade Oculta, de Chico Botelho, poderia ser um exemplo.15 COHEN, Renato op. cit., cap. 5. O capítulo se intitula, justamente, “do environment”. “Eros”marcaria um environment dos sessenta e setenta (hippies) enquanto os oitenta, com o punk e o dark, seriam marcados pelo signo de “Thanatos”. Por outro lado, esboçava-se, na nova década, um também novo conceito de contracultura, assinalado pela expressão inglesa “do it yourself”. Um extraordinário sentido de liberação emanava da proposta (de resto conhecida no país como produção independente), junto à descompressão provocada pela Abertura política . As possibilidades avizinhavam-se infinitas para aqueles que mantinham uma conexão permanente com a informação internacional.

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O vídeo-clip converte-se não somente na mídia ideal para o registro da efêmera performance ou mesmo a construção de uma específica; também será o termo de referência para a criação de novos produtos seguindo a mesma lógica. De forma que se um artista plástico como José Roberto Aguillar, no início dos anos 80, cria uma banda chamada de “performática” e faz um “rock da melancia”, nem o rock, nem o adjetivo da banda soam deslocados, já que progressivamente esta rede de produção/difusão baseada na mídia videográfica se espalha rapidamente. Ao mesmo tempo, a atitude valorizada no gesto de misturar pintura com música numa banda de caráter “performático” trazia, naquele momento, a singular qualidade das coisas inusitadas.

Mas esta era uma equação que não “fechava”. Simultaneamente ao momento descrito por Donasci (início dos 80) eu ainda estava estudando Letras no Rio de Janeiro e costumava andar com a turma das Artes Plásticas. Fomos a um evento no MAM-RJ que proclamava a “volta à pintura”. Na mesa-redonda, expunham os seus motivos artistas como Aguillar, Ivald Granato, Luís Áquila, Rubens Gerschman e Carlos Zílio (dos que me lembro). Seja aprofundando elementos do geometrismo das décadas anteriores, seja militando dentro das correntes da assim chamada “arte conceitual”, ou mesmo ainda fazendo um uso “aplicado” da pintura, todos eles, no entanto, proclamavam a alegria de voltar à arte pictórica. E mais, de produzir sem nenhuma conceptualização prévia. Sem planos. Sem metas. Me lembro de Ivald Granato subir na mesa e tomar banho de água mineral, ironizando a solenidade do evento. Eram feitas declarações “iconoclásticas” contra referências fundamentais da arte recente. E nós, muito jovens, ficávamos bastante desconfiados daquilo. Estava começando a onda da Transvanguarda17, do Neo-Expressionismo e nós seríamos parte disso. Um dos amigos que compunha nosso grupo, o pintor Jorge Duarte, muito polemizador, viria a participar da mostra Como vai você, Geração 80, alguns anos depois, no Parque Laje. Eu mesmo fiz uma performance lá.

A equação que não fechava era a que fazia com que as variáveis de áreas diversas se aproximassem. Juntava artistas cuja militância na vanguarda estava ligada a vertentes construtivas – de pesquisa formal – com outros vinculados às práticas de cunho “comportamental”, derivadas do surrealismo e do DADÁ, filtradas pelo punk e o new wave e concentradas em um espetáculo que trazia a nascente expressão multimídia18.

A história contada por Renato Cohen e por Otávio Donasci não diverge fundamentalmente: 1982 é o ano que, na visão de Cohen, marca a consolidação da performance por aqui. Cita artistas como Aguillar, Ivald Granatto e Denise Stocklos que “realizavam experiências cênicas diferentes do que se acompanhava no teatro”. E, em seguida, coloca a sua atividade de “animador cultural” do SESC Fábrica da Pompéia (então recém-inaugurado) como uma perspectiva privilegiada que lhe permitiu acompanhar eventos fundamentais daquele momento. Alguns deles, ainda em 82, 16 COHEN, Renato op cit pg. 150. O autor faz, em seguida, a ressalva de que este parentesco com o Surrealismo teria mais relação com um artista como Magritte, já que “as imagens guardam uma relação realista com os objetos representados”. 17 Termo de difícil definição, cunhado pelo crítico italiano Achille Bonito Oliva para designar o que ele entendia como um retorno à pintura, baseado principalmente em tendências como o expressionismo, o expressionismo abstrato ou informal e o “tachismo”. A tendência não durou muito e seus produtos são de difícil discernimento. A certa altura, todos os pintores se pareciam uns com os outros, numa uniformidade que pretendia revalorizar a pintura à maneira de artistas como Pollock, mas sem o talento de gente como ele.18 O fenômeno não é exclusivo desse momento e parece constituir-se numa tônica da arte brasileira, sobretudo na segunda metade do século XX, caracterizando aquilo que Haroldo de Campos chamou, certa vez, de “construtivismo brutalista”. Ver, a esse propósito, o seu excelente O arco-íris branco (Rio, Imago, 1997).

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seriam o I Festival Punk de São Paulo (“O começo do fim do mundo”19) e o I Evento de Performances. Na sua cronologia, segue-se o ano de 84, quando apresenta, no já citado Madame Satã, a performance Tarô-Rota-Ator.

A palavra performance estava mais viva naquela época do que está hoje, diz Donasci. Esta estória de trabalhar com música começa muito antes, lá nos anos 60, com Nam June Paik. Ele trabalha com sintetizadores, ele é um músico. As performances do Paik eram performances musicais, às quais ele acrescentou vídeo. Ele chega aqui nos anos 70, através das Bienais e exposições. Me lembro de ter visto, no Videobrasil, o trabalho “Vídeo Garden”, uma instalação. Não houve performance do Paik no Brasil. Mas tinha o Aguillar, o Granato, que faziam a performance multimídia, eletrônica, a que me interessou, a videoperformance.

Cruzando os dados: a persona- travesti tresloucada passeando em uma favela nas Marginais de São Paulo, vivida por Ivald Granato20 poderia ser desdobrada na outra que ele apresentou no debate do Museu de Arte Moderna do Rio no início da década. Anos mais tarde, vendo este vídeo, entendi melhor aquele evento.

Eu me lembro, eu devia ser muito jovem, isso foi no início dos anos 70, mas seria a imagem mais remota de uma performance. Me lembro de um negro que fez um “striking” na São João. Ele corria nu pela rua, quebrando vitrines com uma barra de ferro. Isso não foi tratado como performance, é claro, foi visto como, no mínimo, uma birutice. Isso eu me lembro que me marcou. Foi só uma notícia de jornal. Mas me lembro que era a época do “striking”.

Mais ou menos nessa época o Living Theater aparece no Festival de Inverno de Ouro Preto, Minas Gerais. Auge da Ditadura militar. Tornou-se lugar comum dizer que, enquanto no Brasil vivíamos o ápice da repressão, no exterior vivia-se o apogeu do liberalismo (hippies, contracultura, etc).

O ponto de virada, porém, parece ter sido o meio dos anos 70, quando se inicia o processo de abertura – “lenta e gradual” – do governo Geisel.

A partir de meados dos anos 70 as coisas iam sendo cutucadas e aconteciam pequenas aberturas. É como você ter um pai muito severo e você vai forçando, aos poucos ele cede. Foi indo até explodir, no auge, nos anos 80.

Como um pintor, no caso Ivald Granato, chega à performance? Eu outro dia estava vendo a cronologia das suas obras, ele sempre introduziu a performance como parte de seu trabalho, geralmente nas vernissages. Eu vejo que isso era uma espécie de estratégia de divulgação, no início. 21

* * *

A confusão em torno do termo “performance” é muito grande no Brasil. A fim de tentar definir o objeto de sua pesquisa, Renato Cohen a apresentava dessa forma:

19 Este evento foi a primeira manifestação importante do movimento punk em São Paulo. Os grupos provinham principalmente da periferia da megalópole. O festival não chegou a se concluir, dissolvido pela polícia, depois da denúncia de alguns desavisados que confundiram a dança dos punks com um suposto início de briga. Na ocasião foi gravado um disco, hoje tido como item de colecionador.20 Tratava-se, na realidade, da persona “A safada de Copacabana” que foi se desdobrando por vários lugares diferentes e vários registros (foto e vídeo).21 Uma simples visita ao site de Granato (http://www.art-bonobo.com/ivaldgranato/welcome.htm) pode surpreender pela quantidade enorme de trabalhos performáticos do artista que remontam ao final dos anos 60. Chama a atenção, por exemplo, o famoso evento “Mitos Vadios”, do qual participam, entre outros, Gabriel Borba, o próprio Granato, Barrio, Hélio Oiticica, Antônio Dias, Ligia Pape, Cláudio Tozzi, Rubens Gerschman, Olney Kruse, Gretta Portillos, entre outros. Já em 1974, o Museu de Arte Brasileira da FAAP publicava um texto de análise da obra de Granato, assinado por Carlos von Schmidt.

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“... a performance se colocaria no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guarda características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade”22. Para o que se discute aqui, a questão cênica passa a ser essencial:

“... a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma platéia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracteriza-la”23. Cohen oferece a possibilidade de pensarmos a performance como uma função do espaço e do tempo. Também a difere do happening: “o que caracteriza a passagem do happening para a performance é o aumento da preparação em detrimento do improviso e da espontaneidade.” Até hoje o termo envolve polêmicas quanto à sua abrangência. Mas durante muito tempo era visto até como algo pejorativo. As pessoas viam a performance com preconceito.

Diz Renato:

“A outra dificuldade básica para a análise diz respeito à confusão que se criou em torno do termo no Brasil: é claro que, na sua própria essência, a performance se caracteriza por ser uma expressão anárquica, que visa escapar de limites disciplinares e que comporta tanto as apresentações do falecido faquir Bismarck (que engolia bolas de bilhar na Praça da Sé), quanto um espetáculo de intensa elaboração psíquica como Shaggy Dog (1978) de Mabou Mines.”24

Algo que ajuda este caldo de cultura de muitas ambigüidades é o momento em que passa a circular essa idéia. A performance é um termo e uma prática que se consolidam no início dos anos 80 – nisso estamos todos de acordo, eu, Otávio Donasci e Renato Cohen. Junto dela aparecem o vídeo, o videotexto, os Centros Culturais como a Fábrica da Pompéia, programas de TV animados por performers como Tadeu Jungle no Fábrica do Som, gravado no mesmo local, e transmitido pela TV Cultura aos sábados, em horário nobre. Renato Cohen insiste na importância deste lugar, originalmente uma fábrica de Geladeiras, remodelada pelo olhar visionário de Lina Bo Bardi. Lá, em 1982, realiza-se o evento “14 noites de performance” e, no mesmo ano, “O começo do fim do mundo”. Lá se fazia o programa de Jungle na Cultura e Hamilton Vaz Pereira apresentava A Farra da Terra, mais recente espetáculo do Asdrúbal Trouxe o Trombone, a trupe setentista que agora punha uma banda de rock em cena e se vestia com cores new wave25. O espetáculo também geraria um LP, produzido por Caetano Veloso. Outros termos: produção alternativa. A idéia valia tanto para shows punks como para espetáculos de performance.

“Na trilha dos Centros Culturais, e em conseqüência de um certo sucesso da produção alternativa (principalmente em termos de música, com os grupos punk-new wave), abrem-se novos espaços. Os mais importantes são, por ordem cronológica de aparecimento, o Carbono 14, o Napalm e o Madame Satã.

22 COHEN, Renato, op cit pg. 30.23 Idem, pg. 28. Grifos do autor.24 Idem, pg. 31.25 Tornado célebre pelo espetáculo Trate-me Leão (1974), o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, dirigido por Hamilton Vaz Pereira representou uma postura nova no teatro, mais relaxada, típica dos movimentos artísticos gerados no Rio de Janeiro. Representava um “pensamento jovem das artes”, por assim dizer. Nos anos 80, um de seus integrantes, Evandro Mesquita, formou a banda Blitz, de imenso sucesso comercial. Os demais atores seguiram suas carreiras indo para a TV, como Luis Fernando Guimarães, Regina Casé e Patrícia Travassos. Já Perfeito Fortuna, outro dos atores, seria a principal figura por trás da criação do legendário Circo Voador.

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Nesses espaços assiste-se a performance, video-clips e aos grupos de rock-new wave tupiniquins.”26

O histórico prossegue, dando conta do aparecimento de um “Espaço Performance” criado em 83, no Centro Cultural. No mesmo ano, no MIS (Museu da Imagem e do Som), o I Festival de Vídeo. Renato entende que o ciclo se fecha em 1984, com o I Festival de Performance da FUNARTE. Recepções críticas negativas teriam arrefecido a onda da performance nesse momento.

Também em 1983 ocorre a 17a Bienal Internacional de Artes de São Paulo. Esta é a Bienal da Tecnologia, até hoje lembrada por essa referência. Seu tema e subtítulo – Interartes – figurava na capa negra do catálogo, em letras prateadas difusas, um layout de Televisão. A curadoria estava a cargo de Walter Zanini que, nos 70, trouxera o primeiro equipamento portátil de vídeo para São Paulo.

Na época desta Bienal, proliferava um tipo de espaço muito curioso: o vídeo-bar. Projetores precários ou meia dúzia de televisores eram a atração da casa noturna.

Otávio Donasci: Eu estou aqui, cutucando na minha cabeça, 82... Por exemplo, a J.A.C., “jovem arte contemporânea” do Zanini... Teve quatro ou cinco JACs. Elas já eram festivais de vídeo arte. E era no final dos 70... O que a gente chamava de vídeo bar era um dos mercados para a videoarte. Agora, a videoperformance eu fazia em 80 e o Guto [Lacaz] também usava vídeo na performance. Então a gente tinha essa coisa de sermos videoperformers. Isso ainda em 81. Mas com certeza é na década de 80 que essa mídia é apropriada pelos espaços como o que você mencionou, o vídeo bar, etc. Havia inclusive video-instalações cuja inspiração vinha, entre outros, do Nam June Paik com seu “Vídeogarden”27 Depois foram muito importantes os festivais Videobrasil no MIS que eram patrocinados pela Fotoptica, representada pela Solange Farkas.

De acordo com a precisa cronologia proposta pelo vídeo <art<e>tecnologia.br>, criação de Tamara Ka e Valter Silveira, dirigida pelo último (2002), a história das relações entre arte de vanguarda e tecnologia vem de muito longe no Brasil. Nos anos 50 e 60, a música concreta, eletrônica e eletroacústica muitas vezes recorreu ao happening28. Ao mesmo tempo, as Bienais, iniciando-se em 1951, passam a ser referência fundamental para o desenvolvimento dos novos artistas. A arte concreta do Grupo Ruptura (artes plásticas) e do Noigandres (poesia) nasceriam junto com a performance pioneira de Fávio de Carvalho e seu “Traje de Verão” em 1952. A construção de Brasília, em 60, coincide com a multiplicação de tendências experimentais. Com o AI-5 em 1968, nem a Bienal escapa ao controle da ditadura. A décima edição, em 1969, sofre boicote dos artistas enquanto a tecnologia está na ordem do dia com o homem chegando à lua.

Nos anos 70 é que se desenvolve a “primeira geração de videoartistas” conforme a proposição de Arlindo Machado29. Ivald Granato e Arthur Barrio buscam a arte fora das galerias. Já em 1977, José Roberto Aguilar realiza seu “Circo Antropofágico”, usando monitores de vídeo. O computador, que já fora usado nos anos 60, na música,

26 Idem, pg. 3227 13a Bienal, ainda nos anos 70.28 Em vários momentos de Performance como linguagem Renato Cohen apresenta diferenças entre happening e performance. Seleciono um deles: “A performance é portanto a expressão dos anos 1970/1980, estabelecendo, apesar da confusão no Brasil, uma clara distinção com o happening, havendo em relação a este um aumento de controle sobre a produção e a criação – em detrimento da espontaneidade e um aumento de individualismo – com maior valorização do ego do artista criador – em detrimento do coletivo e do social, privilegiados no happening.” (op cit pg. 158)29 MACHADO, Arlindo, A arte do vídeo São Paulo, Brasiliense, 1988. Ver, do mesmo autor, A televisão levada a sério São Paulo, Ed. Senac, 2002. Arlindo é um dos depoentes no vídeo citado.

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por Conrado Silva, ressurge na “Arteônica” de Waldemar Cordeiro em 71/72 e nos trabalhos gráficos de Erthos Albino de Souza, na Bahia (revista Código, 74 a 80, Le tombeau de Mallarmé, e a versão para o poema cidade, de 1963, de Augusto de Campos, ambos em 1972).

Também em 1972 inauguram-se as transmissões de TV a cores no Brasil. Desde a Copa de 70 a simultaneidade da transmissão “via satélite” fazia parte do cotidiano. Na 13a Bienal (1975), aparece pela primeira vez o termo Vídeo Arte e as primeiras obras desse gênero – remontando a 65 – são exibidas, trazendo os nomes de Nam June Paik e Bill Viola.

Segundo Cacilda Teixeira da Costa, em depoimento ao vídeo citado, 1974 é um ano chave para essas práticas, pois é quando no Rio e em São Paulo chegam equipamentos portáteis de vídeo. Pode-se notar, mesmo por fragmentos desses trabalhos, que a performance fornece a principal motivação para os registros. É o que se vê no grupo do Rio (a partir do equipamento de João Azulay) nos trabalhos de A. B. Geiger, Paulo Herkenhoff e Letícia Parente. E também em São Paulo, a partir do equipamento de Walter Zanini no MAC, com os trabalhos de Aguillar, Norma Bahia e Rita Moreira, Regina Silveira, Gabriel Borba, Geraldo Anhaia Melo.

A segunda geração da videoarte, ainda de acordo com Arlindo Machado, não apresenta o clima de enclausuramento da primeira, certamente provocado pelo auge da ditadura. Ao contrário, parece que o efeito inseminador do I Encontro Internacional de Vídeo Arte no Museu da Imagem e do Som, MIS (1978), uma exposição superlativa, de 69 artistas de 10 países, traz novo fôlego. Do fim dos anos 70 em diante, Tadeu Jungle, Arthur Matuck, Walter Silveira, Paulo Bruscky, Wagner Garcia, Otavio Donasci, Mário Ramiro, entre outros, seriam artistas com interesse tanto na tecnologia como na instalação e na performance. Arlindo também ressalta que esta segunda geração não vem mais tão somente das Artes Plásticas mas principalmente da área acadêmica, dos cursos de Rádio e TV. Isso explica o desenvolvimento do documentário, a criação de produtoras como a TVDO e o Olhar Eletrônico. É interessante notar que esse aspecto da experimentação e da performance não pára de acontecer, mesmo no documentário, como provam os trabalhos das produtoras mencionadas, além de experimentos individuais como os de Lucila Meireles e Cristina Fonseca.

Um nome essencial nesse contexto é Julio Plaza30. Como artista e curador, reúne grupos significativos na Arte Postal (14a Bienal), Arte pelo telefone (MIS, 1982) e na 17a Bienal onde se destaca, como vinha acontecendo, a curadoria de Walter Zanini.

“O propósito da exposição é o de configurar a emergência artística posterior às vanguardas históricas, seja no aspecto de sua ligação com as tecnologias da cultura de massa e de públicos, seja na linha das técnicas alicerçadas nas tradições artesanais.”31 Conquanto assim proposta, era visível a assimetria da exposição, muito mais propensa a conferir destaque às “novas tecnologias”, como passou a ser costume falar. A lista de artistas brasileiros era bastante representativa de tendências contrastantes do momento. De um lado, a pintura com Luis Áquila, Baravelli, Tomoshigue Kusuno e Manfredo de Sousaneto. De outro, artistas ligados às tecnologias como Arthur Matuck. Outros ainda, situados na origem da performance como Flávio de Carvalho (a parte a ele dedicada enfatizava esse aspecto). Alguns, ligados às vertentes construtivas como Regina Silveira e Julio Plaza. No mesmo pavilhão onde os nomes mais importantes do Fluxus chegaram a se apresentar (casos como o de Volf Vostell, Dick Higgins, Ben Vaultier, no que foi, provavelmente, o maior evento Fluxus no Brasil), estavam representados os novos

30 Também lamentavelmente falecido em 2003.31 ZANINI, Walter “Introdução” in ZANINI, W. et al 17a Bienal de Artes de São Paulo, Catálogo Geral São Paulo, Fundação Bienal, 1983.

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momentos tecnológicos na Arte como o Videotexto, que trazia consigo gente da poesia, como Lenora de Barros, Omar Khouri, Paulo Leminski, Paulo Miranda, Alice Ruiz, das artes plásticas como Sérgio Romagnolo, Carmela Gross, Alex Flemming e outros; até mesmo da crítica e da teoria vieram contribuições. Enquanto as salas do Fluxus marcavam os efeitos de uma época bombástica (os anos 60), no videotexto surgiam nomes da nova geração como Jac Leirner. Novas tecnologias também eram promessas que depois desapareceram como o Telidon canadense, arte na tv a cabo, a representação do CAVS - MIT (que nos revelaria John Sanborn), arte-satélite, slow-scan, videofone.

No terreno da interface com a performance, Arthur Matuck experimentaria com slow-scan. A tecnologia vinha sendo pesquisada conjuntamente por artistas da dança como Lali Krotozinsky e Analívia Cordeiro (Slow Billy Scan, 1984). O fim da slow-scan trazido pelo fax e a Internet faria com que, não obstante, todos esses artistas continuassem suas pesquisas, com outros meios, o que permanece até hoje.

Em 1986, o pioneiro Moysés Baumstein faria a exposição Triluz, mostrando ao público os “mistérios” da Holografia . Poetas como Augusto de Campos e Julio Plaza também iriam enveredar por esse tipo de experimento.

É importante assinalar que os termos “performance”, “tecnologias”, “live-art” se misturam e se distribuem ao longo dos textos do catálogo da 17a Bienal. Até hoje esta mistura é perceptível no Brasil. Nota-se, já em 1983, a urgência de capturar este momento de transformações. O panorama em que simultaneamente convivem coisas extremamente díspares (a 17a Bienal ia da arte plumária ao computador) acaba por ser, em sua confusão, um retrato muito vivo daquele momento, também confuso para a experiência de cada um.

Otávio Donasci: O que eu me lembro do Granato foi porque o Tadeu Jungle fez uma gravação dele fazendo uma performance na Marginal. Isso aí virou um VT chamado “Ivald Granato em performance”32 e foi a partir daí que eu o conheci. Assim como conheci o Aguillar fazendo performance.

Mas antes teve ainda aquele pessoal da Galeria Rex, não é isso?Isso eu não peguei, eu peguei o Wesley como professor, de visitar o ateliê dele.

Mas isso eu não vi.Você foi estudar na FAAP em que ano?Na década de 70, 72. Eu tinha como professores o Duchenes, o Rafael, o

Donato Ferrari, tinha o Vilém Flusser – que deu aula lá durante um ano. O Herbert Duchenes foi muito importante nesse momento, ele era canadense, ele trouxe o Flusser para o Brasil e a FAAP, ele é, para mim, o Koellreuter das Artes.

Minha geração, assim como a de Renato, é um pouquinho posterior. Otávio fala de uns seminários sobre videoarte na PUC, no antigo Salão Beta, comandos pelo Arlindo Machado. Eu já peguei o final dessa história, com o Arlindo publicando o livro A arte do vídeo. Acabaria conhecendo as “Videocriaturas” de Donasci por intermédio das aulas de Arlindo no Mestrado de Comunicação e Semiótica, fim dos anos 80. José Wagner Garcia vinha nos visitar e contava das pesquisas com Realidade Virtual no MIT. Eduardo Kac já estava lá, ele que nos anos 80 começara fazendo poesia pornô na Praia de Ipanema. No Rio de Janeiro, o Circo Voador, primeiro aterrissado no Arpoador, depois na Lapa. E, no começo dos anos 80, a única novidade, de fato, no Rio, eram os punks que se reuniam na Praça Mahatma Gandhi. Foi no Circo Voador da Lapa

32 Vídeo de Tadeu Jungle e Walter Silveira para a TVDO, 1984. No início dos anos 80, a TVDO caracterizava-se por um viés mais experimental (Heróis da DecadenSia, VT preparado AC/JC) enquanto o Olhar Eletrônico de F. Meirelles, Renato Barbieri, Marcelo Tas e outros, usava as fórmulas clássicas do documentário e do programa televisivo de maneira absolutamente inovadora.

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que bandas como Legião Urbana, Capital Inicial e Paralamas do Sucesso fizeram seu début.

A nossa conversa sobre a performance, a música, e o vídeo, caminhava para os mesmos referenciais fornecidos no livro de Renato. “A performance é o teatro do artista plástico segundo colocação de Guto Lacaz”33

Enquanto ficáramos, no Rio, discutindo a volta à pintura, não percebemos que ela fora meramente um pretexto. O que se queria era esta dimensão “ao vivo” que deveria ser essencial naquele momento. Nos anos 80 eu (o caçula) me meti com bandas de rock, Renato encenou O espelho vivo – Projeto Magritte (1986), trabalho premiado, e Otávio Donasci aperfeiçoou suas Video-Criaturas. As holografias e o experimentos em vídeo pipocavam em meio aos shows. Em apêndice a seu livro, Renato dá uma cronologia de eventos performáticos, começando pelas já citadas 14 noites de Performance no Sesc Pompéia (envolvendo desde os “Robôs Efêmeros” de Fausto Fawcett até Arnaldo Antunes e Go, passando pela Gang 90 e as Absurdettes, o Teatro do Ornitorrinco, cantando Brecht e Weill, a TVDO, Arthur Matuck, Granato entre outros). Depois seguem-se, em 84, o Ciclo Nacional de Performance (Guto Lacaz, Granato e Matuck novamente, entre outros), o grupo Ponkã no Teatro Eugênio Kusnet, no mesmo ano, o evento Arte Performance no Centro Cultural São Paulo. Em 82: Plan K2 (Sesc Pompéia), Vídeo Teatro de Otávio Donasci (Galeria de Arte São Paulo). A noite do apocalipse final com Aguilar e a Banda Performática acontece em 83, no Centro Cultural, assim como Tempestade em Copo D’água do Ponkã no TBC e O teatro que eu vi na Broadway de Ivald Granato no Carbono 14 e Eletroperformance I de Guto Lacaz no Bar Ponderosa (reencenada na 18a Bienal). Na 17a Bienal, ainda 1983, vêem-se performances diversas do Grupo Fluxus (gerador inicial do happening com Allan Kaprow). A relação proposta por Renato ainda assinala duas performances em 86, no Madame Satã 34.

Essa é a minha referência de performance mais forte: conheci o Renato fazendo uma cena no Madame Satã, pendurado num canto, com olhos virados.

Donasci, provavelmente, refere-se à já citada Tarô-Rota-Ator. Ele diz que casas como o Madame Satã procuravam criar atrações novas a partir da extrema liberdade oferecida por um espaço que se abria para quaisquer experimentos, musicais ou cênicos. Eu mesmo me lembro de que não havia noite no “Satã” que não tivesse ao menos música ao vivo e performance. A estratégia da casa consistia em garantir o espaço mas não encarava a performance profissionalmente. Todo mundo que queria expor o seu trabalho merecia uma chance. O mesmo se deu no início daquela onda de revalorização do rock no Brasil. Toda a indústria musical, obsoleta, esperou um período de transição, no qual o principal fator era o instrumento importado, até que se criasse um mercado de consumo, de gerenciamento de produção, etc. Ao final da década, o espírito amador de

33 Idem, pg. 16134 www.madamesata.com.br A casa, situada no Bixiga, tradicional bairro boêmio de São Paulo, permanece existindo até hoje. As marcas dos seus fundadores, porém, desapareceram de sua história oficial. O website da casa não dá qualquer informação a esse respeito. Minhas lembranças resumem-se ao fato de que seu idealizador e fundador fora seminarista e de que o bairro ocupava o centro da vida noturna da cidade, na época. A maioria das demais boates citadas nesse texto situava-se nas vizinhanças. A uma certa distância dali, embora próximo, fica, até hoje, o Teatro Oficina de José Celso Martinez Correa. (Nota de 2012 – Uma convocação recente de artistas para trabalhar num reerguido Madame Satã tem sido objeto de comentários. Pouco tempo depois de escrever esse texto tive contato com a dissertação de Mestrado de Arthur Toledo Verga intitulada xxxx fanzine Madame Satã, um interessantíssimo e profundo estudo do projeto gráfico da revista que divulgava a casa que se conectava à sua própria concepção, sendo também um testemunho histórico precioso. Menciono, também, de passagem, o livro Madame Satã xxxx de xxxxxxxxxxx)

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seu início era solapado pelas gravadoras e a performance, aos poucos, desaparecia para deixar apenas o nome no ar35.

A boate é um lugar no qual o dono pode vender uma dose de uísque pelo preço da garrafa. No meu tempo de moleque, esse era o lugar para ir ver alguma coisa proibida ou inusitada. É o universo da noite. No Madame Satã apareciam muitos aspirantes a artista que tinham a ver com esse mundo noturno. Marivone Clock fazia um número típico de boates, no qual dançava com uma cobra. Ela queria ser atriz.

* * *

Agora eu estou estudando o espetáculo em si, a raiz do espetáculo. Meu trabalho tem a ver com o “vaudeville” e o circo que eu considero raízes. Quando você vai nos shows e entra nas boates e encontra, por exemplo, o strip-tease, o humorista, a curiosidade de circo, a mulher barbada, essas coisas, se você tirar a raiz de todas essas coisas, você vai encontrar as bases da performance. De certo modo, foi o povo da noite que desenvolveu o entretenimento. Foi desse contexto de entretenimento que nasceu a performance. O cabaré é performático. No cabaré rolaram as performances do passado. Onde os poetas iam ler seus poemas? Cabaré Voltaire, Café Moskau etc. Em determinado momento isso saiu para a rua. Então, o Madame Satã era uma casa noturna “bas-fond”. E de repente esse lugar ficou atraente para os artistas. Dessas figuras noturnas é que se extrai um pouco de vida, por contraste.

Eu mesmo me lembro, quando morava no centro, era criança, eu me lembro que as primeiras imagens que eu fiz, em super 8, com uma Yashica de corda até, eram imagens de néons de hotéis, eram os néons que tinham na Santa Efigênia, as esquinas mal iluminadas. Que atração tem isso? Isso tem uma tristeza e ao mesmo tempo uma verdade que atrai.

O cabaré é essencialmente multimídia. Gesamtkunstwerk para consumo popular. Naqueles anos praticava-se o que depois viria a ser discutido no famoso debate High-Low36.

Conheci alguns membros da Banda Performática como Thomas Brum, filósofo e músico de formação erudita. Arnaldo Antunes, o mais importante nome da poesia de sua geração, exercitava-se na Banda Performática, indo posteriormente para os Titãs (no início denominado Titãs do Iê-iê-iê), banda que fazia o mesmo circuito de casas noturnas já citado (incluindo-se aí, também, o Rose Bom-Bom, Zoster, Ácido Plástico, e muitas outras)37.

Eu tenho um problema com isso: eu não sou um cara que vem de música, então sempre me sinto um pouco deslocado. Se você perguntar para mim: onde estão os performers hoje? Eles foram para a música. De algum modo eles não continuaram na performance porque ela é um buraco. Eles tinham que ter o suporte mais “quadrado” – na minha cabeça – que era a música pop e colavam isso aí nas artes plásticas. Com o passar do tempo, isso tudo virando história, aquilo ganhou peso de história. Virou

35 O Satã operava pela mesma lógica de mercado que se dá em qualquer circuito cultural. Lembro-me de ter tocado algumas vezes lá, apenas pelo prestígio oferecido pela casa. À medida que o grupo obtinha sucesso, as condições iam se tornando mais atraentes, havendo uma espécie de assimilação à imagem da própria casa.36 Questão antiga dos estudos de comunicação (elite/massa), a discussão teve algumas tentativas de ressurreição no contexto do debate sobre o pós-moderno dos 80. 37 Note-se, ainda, que a performance passa a contaminar as próprias bandas, como foi o caso de alguns shows memoráveis como os da Gang 90 e as absurdetes, banda liderada pelo cantor e artista multimídia Júlio Barroso, e Akira S e as garotas que erraram, geralmente hostilizado pelo público por ser “demasiadamente experimental”.

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ícone. Aí eu cheguei à conclusão que o primeiro olhar para a performance, para a vídeo-arte era um olhar primitivo. A década que vai de 80 a 89 foi, no entanto, fundamental para mim. Trabalhei com publicidade, fiz performance – e continuo fazendo.

Donasci acertou em cheio. Em 88, Arlindo Machado lança a primeira edição de seu livro e a videoarte passa para o terreno da História. Não percebemos a energia do momento no qual vivemos. Arlindo assinala que o uso de tecnologias como o vídeo, a slow-scan, o videotexto, a holografia, circularam, nos anos 80, como eventos que atingiam públicos muito restritos. A tecnologia ainda estava “à margem da margem”. No momento em que Geraldo Anhaia Melo, em 1978, discute a situação brasileira embebedando-se diante de uma câmera, tudo parecia possível. Ao mesmo tempo precário e imprevisível. Os anos seguintes exercitariam essa possibilidade.

A década de 90 fez com que estes artistas passassem a refletir sobre o seu trabalho (caso, também, de Renato Cohen). A mesma que traz o computador, introduz a web-cam e recupera novamente a noção de performance, agora excluída de toda a conotação underground. É um tempo que se inicia com a utopia da Internet, o computador é uma nova guitarra.

Hoje, não só a performance é uma parte possível de qualquer trabalho de arte (veja-se, a esse propósito, o último Panorama da Arte Contemporânea, entre dezembro, no MAM de São Paulo, e Janeiro no Paço Imperial, no Rio, principalmente os trabalhos de Adriano e Fernando Guimarães, Sara Ramo e Alex Villar) como se associa, tranqüilamente, às tecnologias de transmissão de dados. Os experimentos pioneiros dos anos 60, ainda na esfera do happening e os artistas que desses experimentos derivam um diálogo com a música nos anos 80, formam precisamente o imaginário de novas gerações, presente nos trabalhos de Cabelo, Marepe, José Damasceno, Thiago Judas, Lia Chaia e outros. Naturalmente não se trata de invocar paternidades. Seria talvez melhor dizer que trata-se de um fluxo. Um fluxo com acréscimo geométrico de mediadores eletrônicos, primeiro analógicos, depois digitais. É curioso que o uso da tecnologia e da performance não se dê de forma tão imperativa como antes. Mas está presente, até como forma de raciocínio em quase todos os trabalhos das novas gerações.

Bibliografia

COHEN, Renato Performance como linguagem São Paulo, Perspectiva, col. Debates vol. 219, 1989.MACHADO, Arlindo A arte do vídeo São Paulo, Brasiliense, 1988.PLAZA, Julio Videografia em Videotexto São Paulo, Hucitec, 1886.ZANINI, Walter et al. 17a Bienal de São Paulo – Interarte – Catálogo Geral São Paulo, Fundação Bienal, 1983.

Infografia

http://www2.uol.com.br/artecidade/novo/ac2/index.htm http://bienalsaopaulo.terra.com.br/teksto http://www.madamesata.com.br http://www.videocriaturas.cjb.net http://www.pucsp/~cos-puc/budetliehttp://www.iar.unicamp.br/~projka/

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http://geocities.yahoo.com.br/proflucio/acindex.htmhttp://www.art-bonobo.com/ivaldgranato/welcome.htm

VideografiaSILVEIRA, Walter <art<e>tecnologia.br> São Paulo, Itaú Cultural, 2002.