andrade, carlos drummond de - daqui estou vendo o amor

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Andrade, Carlos Drummond de - Daqui Estou Vendo O Amo

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  • SUMRIO

    APRESENTAO

    AMAR, de Antologia potica

    O AMOR BATE NA AORTA, de Antologia potica

    QUADRILHA, de Antologia potica

    NECROLGIO DOS DESILUDIDOS DO AMOR, de Antologia potica

    NO SE MATE, de Antologia potica

    O MITO, de Antologia potica

    CANO DA MOA-FANTASMA DE BELO HORIZONTE, de Sentimento do mundo

    CAMPO DE FLORES, de Antologia potica

    ESCADA, de Antologia potica

    ESTNCIAS, de Antologia potica

    CICLO, de Antologia potica

    VSPERA, de Antologia potica

    INSTANTE, de Antologia potica

    CONFISSO, de Claro enigma

    PASSAGEM DO ANO, de A rosa do povo

    OS PODERES INFERNAIS, de Antologia potica

    SONETO DO PSSARO, de Antologia potica

  • CONSOLO NA PRAIA, de A rosa do povo

    O QUARTO EM DESORDEM, de Antologia potica

    ENTRE O SER E AS COISAS, de Antologia potica

    FRAGA E SOMBRA, de Antologia potica

    TARDE DE MAIO, de Antologia potica

    CONTEMPLAO NO BANCO, de Claro enigma

    CANO PARA LBUM DE MOA, de Antologia potica

    RAPTO, de Antologia potica

    MEMRIA, de Antologia potica

    MINERAO DO OUTRO, de Lio de coisas

    PALAVRAS NO MAR, de Jos

    CANTIGA DE VIVO, de Alguma poesia

    AMAR-AMARO, de Antologia potica

  • APRESENTAO

    Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) um dos mais importantespoetas brasileiros e um dos grandes nomes da poesia do sculo XX emqualquer idioma. Sua obra, publicada a partir de 1930 e apenasinterrompida por sua morte quase sessenta anos depois, um depoimentolrico, lcido e poderoso sobre o amor, a poltica, os costumes, a famlia, amemria e o Brasil.

    Este conjunto de poemas cujo mote a manifestao amorosa atesta afora e a atualidade do autor. Em diversos poemas publicado ao longo desua fecunda carreira, Drummond escreveu alguns dos mais penetrantespoemas amorosos da lngua portuguesa. Examinou o nascimento dosentimento amoroso, as aproximaes afetivas, a sensualidade e o fim dosrelacionamentos. Sempre com inteligncia aguda, ironia e a suavemelancolia que lhe eram caractersticas.

    Boa leitura!

  • AMAR

    Que pode uma criatura seno,entre criaturas, amar?amar e esquecer,amar e malamar,amar, desamar, amar?sempre, e at de olhos vidrados, amar? Que pode, pergunto, o ser amoroso,sozinho, em rotao universal, senorodar tambm, e amar?amar o que o mar traz praia,o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, sal, ou preciso de amor, ou simples nsia? Amar solenemente as palmas do deserto,o que entrega ou adorao expectante,e amar o inspito, o spero,um vaso sem flor, um cho de ferro,e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta,distribudo pelas coisas prfidas ou nulas,doao ilimitada a uma completa ingratido,e na concha vazia do amor a procura medrosa,paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossaamar a gua implcita, e o beijo tcito, e a sede infinita.

  • O AMOR BATE NA AORTA

    Cantiga do amor sem eiranem beira,vira o mundo de cabeapara baixo,suspende a saia das mulheres,tira os culos dos homens,o amor, seja como for, o amor. Meu bem, no chores,hoje tem filme de Carlito! O amor bate na porta,o amor bate na aorta,fui abrir e me constipei.Cardaco e melanclico,o amor ronca na hortaentre ps de laranjeiraentre uvas meio verdese desejos j maduros. Entre uvas meio verdes,meu amor, no te atormentes.Certos cidos adoama boca murcha dos velhose quando os dentes no mordeme quando os braos no prendemo amor faz uma ccegao amor desenha uma curvaprope uma geometria. Amor bicho instrudo. Olha: o amor pulou o muro

  • o amor subiu na rvoreem tempo de se estrepar.Pronto, o amor se estrepou.Daqui estou vendo o sangueque escorre do corpo andrgino.Essa ferida, meu bem,s vezes no sara nuncas vezes sara amanh. Daqui estou vendo o amorirritado, desapontado,mas tambm vejo outras coisas:vejo corpos, vejo almasvejo beijos que se beijamouo mos que se conversame que viajam sem mapa.Vejo muitas outras coisasque no ouso compreender

  • QUADRILHA

    Joo amava Teresa que amava Raimundoque amava Maria que amava Joaquim que amava Lilique no amava ningum.Joo foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandesque no tinha entrado na histria.

  • NECROLGIO DOSDESILUDIDOS DO AMOR

    Os desiludidos do amoresto desfechando tiros no peito.Do meu quarto ouo a fuzilaria.As amadas torcem-se de gozo.Oh quanta matria para os jornais. Desiludidos mas fotografados,escreveram cartas explicativas,tomaram todas as providnciaspara o remorso das amadas. Pum pum pum adeus, enjoada.Eu vou, tu ficas, mas nos veremosseja no claro cu ou turvo inferno. Os mdicos esto fazendo a autpsiados desiludidos que se mataram.Que grandes coraes eles possuam.Vsceras imensas, tripas sentimentaise um estmago cheio de poesia Agora vamos para o cemitriolevar os corpos dos desiludidosencaixotados competentemente(paixes de primeira e de segunda classe). Os desiludidos seguem iludidos,sem corao, sem tripas, sem amor.nica fortuna, os seus dentes de ourono serviro de lastro financeiroe cobertos de terra perdero o brilho enquanto as amadas danaro um samba

  • bravo, violento, sobre a tumba deles.

  • NO SE MATE

    Carlos, sossegue, o amor isso que voc est vendo:hoje beija, amanh no beija,depois de amanh domingoe segunda-feira ningum sabeo que ser. Intil voc resistirou mesmo suicidar-se.No se mate, oh no se mate,reserve-se todo paraas bodas que ningum sabequando viro,se que viro. O amor, Carlos, voc telrico,a noite passou em voc,e os recalques se sublimando,l dentro um barulho inefvel,rezas,vitrolas,santos que se persignam,anncios do melhor sabo,barulho que ningum sabede qu, pra qu. Entretanto voc caminhamelanclico e vertical.Voc a palmeira, voc o gritoque ningum ouviu no teatroe as luzes todas se apagam.O amor no escuro, no, no claro, sempre triste, meu filho, Carlos,mas no diga nada a ningum,

  • ningum sabe nem saber.

  • O MITO

    Sequer conheo Fulana,vejo Fulana to curto,Fulana jamais me v,mas como eu amo Fulana. Amarei mesmo Fulana?ou iluso de sexo?Talvez a linha do busto,da perna, talvez do ombro. Amo Fulana to forte,amo Fulana to dor,que todo me despedaoe choro, menino, choro. Mas Fulana vai se rindoVejam Fulana danando.No esporte ela est sozinha.No bar, quo acompanhada. E Fulana diz mistrios,diz marxismo, rimmel, gs.Fulana me bombardeia,no entanto sequer me v. E sequer nos compreendemos. dama de alta fidcia,tem latifndios, iates,sustenta cinco mil pobres. Menos eu que de orgulhosome basto pensando nela.Pensando com unha, plasma,fria, gilete, desnimo.

  • Amor to disparatado.Desbaratado que Nunca a sentei no meu colonem vi pela fechadura. Mas eu sei quanto me custamanter esse gelo digno,essa indiferena gaiae no gritar: Vem, Fulana! Como deixar de invadirsua casa de mil fechose sua veste arrancandomostr-la depois ao povo tal como ou deve ser:branca, intata, neutra, rara,feita de pedra translcida,de ausncia e ruivos ornatos. Mas como ser Fulana,digamos, no seu banheiro?S de pensar em seu corpoo meu se punge Pois sim. Porque preciso do corpopara mendigar Fulana,rogar-lhe que pise em mim,que me maltrate Assim no. Mas Fulana ser gente?Estar somente em pera?Ser figura de livro?Ser bicho? Saberei? No saberei? S pegando,pedindo: Dona, desculpeO seu vestido esconde algo?

  • tem coxas reais? cintura? Fulana s vezes existedemais; at me apavora.Vou sozinho pela rua,eis que Fulana me roa. Olho: no tem mais Fulana.Povo se rindo de mim.(Na curva do seu sapatoo calcanhar rosa e puro.) E eu insonte, pervagandoem ruas de peixe e lgrima.Aos operrios: A vistes?No, dizem os operrios. Aos boiadeiros: A vistes?Dizem no os boiadeiros.Acaso a vistes, doutores?Mas eles respondem: No. Pois possvel? perguntoaos jornais: todos calados.No sabemos se Fulanapassou. De nada sabemos. E so onze horas da noite,so onze rodas de chope,onze vezes dei a voltade minha sede; e Fulana talvez dance no cassinoou, e ser mais provvel,talvez beije no Leblon,talvez se banhe na Clquida; talvez se pinte no espelhodo txi; talvez aplauda

  • certa pea miservelnum teatro barroco e louco; talvez cruze a perna e beba,talvez corte figurinhas,talvez fume de piteira,talvez ria, talvez minta. Esse insuportvel risode Fulana de mil dentes(anncio de dentifrcio) faca me escavacando. Me ponho a correr na praia.Venha o mar! Venham caes!Que o farol me denuncie!Que a fortaleza me ataque! Quero morrer sufocado,quero das mortes a hedionda,quero voltar repelidopela salsugem do largo, j sem cabea e sem perna, porta do apartamento,para feder: de propsito,somente para Fulana. E Fulana apelarpara os frascos de perfume.Abre-os todos: mas de todoseu salto, e ofendo, e sujo. E Fulana correr(nem se cobriu: vai chispando),talvez se atire l do alto.Seu grito : socorro! e deus. Mas no quero nada disso.

  • Para que chatear Fulana?Pancada na sua nucana minha que vai doer. E da no sou criana.Fulana estuda meu rosto.Coitado: de raa branca.Tadinho: tinha gravata. J morto, me querer?Esconjuro, se necrfilaFulana vida, ama as flores,as artrias e as debntures. Sei que jamais me perdoarmatar-me para servi-la.Fulana quer homens fortes,couraados, invasores. Fulana toda dinmica,tem um motor na barriga.Suas unhas so eltricas,seus beijos refrigerados, desinfetados, gravadosem mquina multilite.Fulana, como sadia!Os enfermos somos ns. Sou eu, o poeta precrioque fez de Fulana um mito,nutrindo-me de Petrarca,Ronsard, Cames e Capim; que a sei embebida em leite,carne, tomate, ginstica,e lhe colo metafsicas,enigmas, causas primeiras.

  • Mas, se tentasse construiroutra Fulana que noessa de burgus sorrisoe de to burro esplendor? Mudo-lhe o nome; recorto-lheum traje de transparncia;j perde a carncia humana;e bato-a; de tirar sangue. E lhe dou todas as facesde meu sonho que especula;e abolimos a cidadej sem peso e nitidez. E vadeamos a cincia,mar de hipteses. A luafica sendo nosso esquemade um territrio mais justo. E colocamos os dadosde um mundo sem classe e imposto;e nesse mundo instalamosos nossos irmos vingados. E nessa fase gloriosa,de contradies extintas,eu e Fulana, abrasados,queremos que mais queremos? E digo a Fulana: Amiga,afinal nos compreendemos.J no sofro, j no brilhas,mas somos a mesma coisa. (Uma coisa to diversada que pensava que fssemos.)

  • CANO DA MOA-FANTASMADE BELO HORIZONTE

    Eu sou a Moa-Fantasmaque espera na Rua do Chumboo carro da madrugada.Eu sou branca e longa e fria,a minha carne um suspirona madrugada da serra.Eu sou a Moa-Fantasma.O meu nome era Maria,Maria-Que-Morreu-Antes. Sou a vossa namoradaque morreu de apendicite,no desastre de automvelou suicidou-se na praiae seus cabelos ficaramlongos na vossa lembrana.Eu nunca fui deste mundo:Se beijava, minha bocadizia de outros planetasem que os amantes se queimamnum fogo casto e se tornamestrelas, sem ironia. Morri sem ter tido tempode ser vossa, como as outras.No me conformo com isso,e quando as polcias dormemem mim e fora de mim,meu espectro itinerantedesce a Serra do Curral,vai olhando as casas novas,

  • ronda as hortas amorosas(Rua Cludio Manuel da Costa),para no Abrigo Cear,no h abrigo. Um perfumeque no conheo me invade: o cheiro do vosso sonoquente, doce, enrodilhadonos braos das espanholasOh! deixai-me dormir convosco. E vai, como no encontronenhum dos meus namorados,que as francesas conquistaram,e que beberam todo o usqueexistente no Brasil(agora dormem embriagados),espreito os carros que passamcom choferes que no suspeitamde minha brancura e fogem.Os tmidos guardas-civis,coitados! um quis me prender.Abri-lhe os braos Incrdulo,me apalpou. No tinha carnee por cima do vestidoe por baixo do vestidoera a mesma ausncia branca,um s desespero brancoPodeis ver: o que era corpofoi comido pelo gato. As moas que ainda esto vivas(ho de morrer, ficai certos)tm medo que eu apareae lhes puxe a perna Engano.Eu fui moa, serei moadeserta, per omnia saecula.No quero saber de moas.Mas os moos me perturbam.No sei como libertar-me.

  • Se o fantasma no sofresse,se eles ainda me gostasseme o espiritismo consentisse,mas eu sei que proibido,vs sois carne, eu sou vapor.Um vapor que se dissolvequando o sol rompe na Serra. Agora estou consolada,disse tudo que queria,subirei quela nuvem,serei lmina gelada,cintilarei sobre os homens.Meu reflexo na piscinada Avenida Parana(estrelas no se compreendem),ningum o compreender.

  • CAMPO DE FLORES

    Deus me deu um amor no tempo de madureza,quando os frutos ou no so colhidos ou sabem a verme.Deus ou foi talvez o Diabo deu-me este amor maduro,e a um e outro agradeo, pois que tenho um amor. Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretritose outros acrescento aos que amor j criou.Eis que eu mesmo me torno o mito mais radiosoe talhado em penumbra sou e no sou, mas sou. Mas sou cada vez mais, eu que no me sabiae cansado de mim julgava que era o mundoum vcuo atormentado, um sistema de erros.Amanhecem de novo as antigas manhsque no vivi jamais, pois jamais me sorriram. Mas me sorriam sempre atrs de tua sombraimensa e contrada como letra no muroe s hoje presente.Deus me deu um amor porque o mereci.De tantos que j tive ou tiveram em mim,o sumo se espremeu para fazer um vinhoou foi sangue, talvez, que se armou em cogulo. E o tempo que levou uma rosa indecisaa tirar sua cor dessas chamas extintasera o tempo mais justo. Era tempo de terra.Onde no h jardim, as flores nascem de umsecreto investimento em formas improvveis. Hoje tenho um amor e me fao espaosopara arrecadar as alfaias de muitosamantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,e ao v-los amorosos e transidos em torno

  • o sagrado terror converto em jubilao. Seu gro de angstia amor j me oferecena mo esquerda. Enquanto a outra acariciaos cabelos e a voz e o passo e a arquiteturae o mistrio que alm faz os seres preciosos viso extasiada. Mas, porque me tocou um amor crepuscular,h que amar diferente. De uma grave pacincialadrilhar minhas mos. E talvez a ironiatenha dilacerado a melhor doao.H que amar e calar.Para fora do tempo arrasto meus despojose estou vivo na luz que baixa e me confunde.

  • ESCADA

    Na curva desta escada nos amamos,nesta curva barroca nos perdemos.

    O caprichoso esquemaunia formas vivas, entre ramas. Lembras-te, carne? Um arrepio telepticovibrou nos bens municipais, e dando volta

    ao melhor de ns mesmosdeixou-nos ss, a esmo,

    espetacularmente ss e desarmados,que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

    E mortos, e proscritosde toda comunho no sculo (esta espira testemunha, e conta), que restava

    das lnguas infinitasque falvamos ou surdas se lambiamno cu da boca sempre azul e oco?

    Que restava de ns,neste jardim ou nos arquivos, que restavade ns, mas que restava, que restava?

    Ai, nada mais restara,que tudo mais, na alva,

    se perdia, e contagiando o canto aos passarinhosvinha at ns, podrido e trmulo, anunciandoque amor fizera um novo testamento,e suas prendas jaziam sem herdeirosnum ptio branco e ureo de laranjas.

    Aqui se esgota o orvalho,e de lembrar no h lembrana. Entrelaados,insistamos em ser; mas nosso espectro,submarino, flor do tempo ia apontando,

  • e j noturnos, rotos, desossados,nosso abrao doa

    para alm da matria esparsa em nmeros. Asa que ofereceste o pouso raroe danarino e rotativo, clculo,

    rosa grimpante e finaque terra nos prendias e furtavas,

    enquanto a reta insigneda torre ia lavrando

    no campo desfolhado outras quimeras:sem ti no somos mais o que antes ramos. E se este lugar de exlio hoje passeiafaminta imaginao atada aos corvos

    de sua prpria ceva,escada, assuno,

    ao cu alas em vo o alvo pescoo,que outros peitos em ti se beijariam

    sem sombra, e fugitivos,mas nosso beijo e baba se incorporamde h muito ao teu cimento, num lamento.

  • ESTNCIAS

    Amor? Amar? Vozes que ouvi, j no me lembraonde: talvez entre grades solenes, numcalcinado e pungitivo lugar que regamos de fria,xtase, adorao, temor. Talvez no mnimoterritrio acuado entre a espuma e o gnaisse, onde respira mas que assustada! uma criana apenas. E que pressgiosde seus cabelos se desenrolam! Sim, ouvi de amor, em horainfinda, se bem que sepultada na mais rangente areiaque os ps pisam, pisam, e por sua vez lei desaparecem.E ouvi de amar, como de um dom a poucos ofertado; ou de um crime. De novo essas vozes, peo-te. Escande-as em tom sbrio,ou seno grita-as face dos homens; desata os petrificados; aturdeos caules no ato de crescer; repete: amor, amar.O ar se crispa, de ouvi-las; e para alm do tempo ressoam, remosde ouro batendo a gua transfigurada; correntestombam. Em ns ressurge o antigo; o novo; o que de nadaextrai forma de vida; e no de confiana, de desassossego se nutre.Eis que a posse abolida na de hoje se reflete, e confundem-se,e quantos desse mal um dia (esto mortos) soluaram,habitam nosso corpo reunido e soluam conosco.

  • CICLO

    Sorrimos para as mulheres bojudas que passam como cargueirosadernando,sorrimos sem interesse, porque a prenhez as circunda.E levamos bales s crianas que afinal se revelam,vemo-las criar folhas e temos cuidados especiais com suasegurana,porque a rua mortal e a seara no amadureceu.Assistimos ao crescimento colegial das meninas e como rudeinfundir ritmo ao puro desengono, forma ao espao!Nosso desejo, de ainda no desejar, no se sabe desejo,e espera.Como o bicho espera outro bicho.E o furto espera o ladro.E a morte espera o morto.E a mesma espera, sua esperana. De repente, sentimos um arco ligando ao cu nossa medula,e no fundamento do ser a hora fulgura. agora, o altar est brunidoe as alfaias cada uma tem seu brilhoe cada brilho seu destino.Um antigo sacrifcio j se alteiae no linho amarfanhado um bfalo estampoua sentena dos bfalos. As crianas crescem tanto, e continuamto jardim, mas to jardim na tarde rubra.So eternas as crianas decepadas,e l embaixo da cama seus destroosnem nos ferem a vista nem repugnama esse outro ser blindado que despontade sua prpria e ingnua imolao. E porque subsistem, as crianas,e boiam na ris madura a censurar-nos,

  • e constrangem, derrotama solrcia dos grandes,h em certos amores essa distncia de um a outroque separa, no duas cidades, mas dois corpos. Perturbao de entrarno quarto de nus,tristeza de nudez que se sabe julgada,comparao de veia antiga a pele nova,presena de relgio insinuada entre roupas ntimas,um ontem ressoando sempre,e cincia, entretanto, de que nada continua e nem mesmo talvez exista. Ento nos punimos em nossa delcia.O amor atinge raso, e fere tanto.Nu a nu,fome a fome,no confiscamos nada e nos vertemos.E terrivelmente adulto esse animala espreitar-nos, sorrindo,como quem a si mesmo se revela. As crianas esto vingadas no arrepiocom que vamos caa; no abandonode ns, em que se esfuma nossa posse.(Que possumos de ningum, e em que nenhuma regio nos sabemospensados,sequer admitidos como coisas vivendosalvo no rasto de coisas outras, agressivas?) Voltamos a ns mesmos, destroados.Ai, batalha do tempo contra a luz,vitria do pequeno sobre o muito,quem te previu na graa do desejoa pular de cabrito sobre a relvasbito incendiada em lnguas de ira?Quem te comps de sbia timideze de suplicazinhas infantisto logo ouvidas como desdenhadas?

  • De impossveis, de risos e de nadastu te formaste, s, em meio aos fortes;crescente em vu e risco; disfarastede ti mesma esse ncleo monstruosoque faz sofrer os mximos guerreirose compaixo infunde s mesmas pedrase a crtalos de bronze nos jardins.Ei-los prostrados, sim, e nos seus rostospoludos de chuva e de excrementouma formiga escreve, contra o vento,a notcia dos erros cometidos;e um cavalo relincha, galopando;e um desespero sem amar, e amando,tinge o espao de um vinho episcopal,to roxo o sangue borrifado a esmo,de feridas expostas em vitrinas,joias comuns em suas formas rarasde tarntula cobratouro vermeferidas latejando sem os corposdeslembrados de tudo na corrente. Noturno e ambguo esse sorriso em nosso rumo.Sorrimos tambm mas sem interesse para as mulheres bojudas quepassam,cargueiros adernando em mar de promessacontnua.

  • VSPERA

    Amor: em teu regao as formas sonhamo instante de existir: ainda bem cedopara acordar, sofrer. Nem se conhecemos que se destruiro em teu bruxedo. Nem tu sabes, amor, que te aproximasa passo de veludo. s to secreto,reticente e ardiloso, que semelhasuma casa fugindo ao arquiteto. Que pressgios circulam pelo ter,que signos de paixo, que suspirliahesita em consumar-se, como flor,se no a roa enfim tua sandlia? No queres morder clere nem forte.Evitas o claro aberto em susto.Examinas cada alma. E fogo inerte?O sacrifcio h de ser lento e augusto. Ento, amor, escolhes o disfarce.Como brincas (e s srio) em cabriolas,em risadas sem modo, ps descalos,no crculo de luz que desenrolas! Contempla este jardim: os namorados,dois a dois, lbio a lbio, vo seguindode teu capricho o hermtico astrolbio,e perseguem o sol no dia findo. E se deitam na relva; e se enlaandonum desejo menor, ou na indecisaprocura de si mesmos, que se expande,corpreos, so mais leves do que brisa.

  • E na montanha-russa o grito unnime medo e gozo ingnuo, repartidoem casais que se fundem, mas sem flama,que s mais tarde o peito consumido. Olha, amor, o que fazes desses jovens(ou velhos) debruados na gua mansa,relendo a sem palavra das estriasque nosso entendimento no alcana. Na pressa dos comboios, entre silvos,carregadores e campainhas, roucaexploso de viagem, como lricoo batom a fugir de uma a outra boca. Assim teus namorados se prospectam:um mina do outro; e no se esgotaesse ouro surpreendido nas cavernasde que o instinto possui a esquiva rota. Sero cegos, autmatos, escravosde um deus sem caridade e sem presena?Mas sorriem os olhos, e que clarosgestos de integrao, na noite densa! No ensaies demais as tuas vtimas, amor, deixa em paz os namorados.Eles guardam em si, coral sem ritmo,os infernos futuros e passados.

  • INSTANTE

    Uma semente engravidava a tarde.Era o dia nascendo, em vez da noite.Perdia amor seu hlito covarde,e a vida, corcel rubro, dava um coice, mas to delicioso, que a feridano peito transtornado, aceso em festa,acordava, gravura enlouquecida,sobre o tempo sem caule, uma promessa. A manh sempre-sempre, e dociastutoseus caadores a correr, e as presasnum feliz entregar-se, entre soluos. E que mais, vida eterna, me planejas?O que se desatou num s momentono cabe no infinito, e fuga e vento.

  • CONFISSO

    No amei bastante meu semelhante,no catei o verme nem curei a sarna.S proferi algumas palavras,melodiosas, tarde, ao voltar da festa. Dei sem dar e beijei sem beijo.(Cego talvez quem esconde os olhosembaixo do catre.) E na meia-luztesouros fanam-se, os mais excelentes. Do que restou, como compor um homeme tudo que ele implica de suave,de concordncias vegetais, murmriosde riso, entrega, amor e piedade? No amei bastante sequer a mim mesmo,contudo prximo. No amei ningum.Salvo aquele pssaro vinha azul e doido que se esfacelou na asa do avio.

  • PASSAGEM DO ANO

    O ltimo dia do anono o ltimo dia do tempo.Outros dias viroe novas coxas e ventres te comunicaro o calor da vida.Beijars bocas, rasgars papis,fars viagens e tantas celebraesde aniversrio, formatura, promoo, glria, doce morte com sinfonia ecoral,que o tempo ficar repleto e no ouvirs o clamor,os irreparveis uivosdo lobo, na solido. O ltimo dia do tempono o ltimo dia de tudo.Fica sempre uma franja de vidaonde se sentam dois homens.Um homem e seu contrrio,uma mulher e seu p,um corpo e sua memria,um olho e seu brilho,uma voz e seu eco,e quem sabe at se Deus Recebe com simplicidade este presente do acaso.Mereceste viver mais um ano.Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos sculos.Teu pai morreu, teu av tambm.Em ti mesmo muita coisa j expirou, outras espreitam a morte,mas ests vivo. Ainda uma vez ests vivo,e de copo na moesperas amanhecer. O recurso de se embriagar.O recurso da dana e do grito,o recurso da bola colorida,

  • o recurso de Kant e da poesia,todos eles e nenhum resolve. Surge a manh de um novo ano. As coisas esto limpas, ordenadas.O corpo gasto renova-se em espuma.Todos os sentidos alerta funcionam.A boca est comendo vida.A boca est entupida de vida.A vida escorre da boca,lambuza as mos, a calada.A vida gorda, oleosa, mortal, sub-reptcia.

  • OS PODERES INFERNAIS

    O meu amor fasca na medula,pois que na superfcie ele anoitece.Abre na escurido sua quermesse. todo fome, e eis que repele a gula. Sua escama de fel nunca se anulae seu rangido nada tem de prece.Uma aranha invisvel que o tece.O meu amor, paralisado, pula. Pulula, ulula. Salve, lobo triste!Quando eu secar, ele estar vivendo,j no vive de mim, nele que existe o que sou, o que sobro, esmigalhado.O meu amor tudo que, morrendo,no morre todo, e fica no ar, parado.

  • SONETO DO PSSARO

    Batem as asas? Rosa aberta, a saiaesculpe, no seu giro, o corpo leve.Entre msculos suaves, uma alfaia,selada, tremeluz vista breve. O que, mal percebido, se descreveem termos de pelcia ou de cambraia,o que fogo sutil, soprado em neve,curva de coxa atlntica na praia, vira mulher ou pssaro? No rosto,essa mesma expresso area ou grave,esse indeciso trao de sol-posto, de fuga, que h no bico de uma ave.O mais jeito humano ou desumano,conforme a inclinao de meu engano.

  • CONSOLO NA PRAIA

    Vamos, no choresA infncia est perdida.A mocidade est perdida.Mas a vida no se perdeu. O primeiro amor passou.O segundo amor passou.O terceiro amor passou.Mas o corao continua. Perdeste o melhor amigo.No tentaste qualquer viagem.No possuis casa, navio, terra.Mas tens um co. Algumas palavras duras,em voz mansa, te golpearam.Nunca, nunca cicatrizam.Mas, e o humour? A injustia no se resolve. sombra do mundo erradomurmuraste um protesto tmido.Mas viro outros. Tudo somado, deviasprecipitar-te de vez nas guas.Ests nu na areia, no ventoDorme, meu filho.

  • O QUARTO EM DESORDEM

    Na curva perigosa dos cinquentaderrapei neste amor. Que dor! que ptalasensvel e secreta me atormentae me provoca sntese da flor que no se sabe como feita: amor,na quinta-essncia da palavra, e mudode natural silncio j no cabeem tanto gesto de colher e amar a nuvem que de ambgua se diluinesse objeto mais vago do que nuveme mais defeso, corpo! corpo, corpo, verdade to final, sede to vria,e esse cavalo solto pela cama,a passear o peito de quem ama.

  • ENTRE O SER E AS COISAS

    Onda e amor, onde amor, ando indagandoao largo vento e rocha imperativa,e a tudo me arremesso, nesse quandoamanhece frescor de coisa viva. s almas, no, as almas vo pairando,e, esquecendo a lio que j se esquiva,tornam amor humor, e vago e brandoo que de natureza corrosiva. Ngua e na pedra amor deixa gravadosseus hierglifos e mensagens, suasverdades mais secretas e mais nuas. E nem os elementos encantadossabem do amor que os punge e que , pungindo,uma fogueira a arder no dia findo.

  • TARDE DE MAIO

    Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior deseus mortos,assim te levo comigo, tarde de maio,quando, ao rubor dos incndios que consumiam a terra,outra chama, no perceptvel, e to mais devastadora,surdamente lavrava sob meus traos cmicos,e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantese condenadas, no solo ardente, pores de minhalmanunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobrezasem fruto. Mas os primitivos imploram relquia sade e chuva,colheita, fim do inimigo, no sei que portentos.Eu nada te peo a ti, tarde de maio,seno que continues, no tempo e fora dele, irreversvel,sinal de derrota que se vai consumindo a ponto deconverter-se em sinal de beleza no rosto de algumque, precisamente, volve o rosto, e passaOutono a estao em que ocorrem tais crises,e em maio, tantas vezes, morremos. Para renascer, eu sei, numa fictcia primavera,j ento espectrais sob o aveludado da casca,trazendo na sombra a aderncia das resinas fnebrescom que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carrofnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,sem que ningum, o amor inclusive, pusesse reparo.E os que o vissem no saberiam dizer: se era um prstitolutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.Nem houve testemunha. No h nunca testemunhas. H desatentos. Curiosos, muitos.Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem mscara?Se morro de amor, todos o ignoram

  • e negam. O prprio amor se desconhece e maltrata.O prprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caados;no est certo de ser amor, h tanto lavou a memriadas impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,perdida no ar, por que melhor se conserve,uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

  • FRAGA E SOMBRA

    A sombra azul da tarde nos confrange.Baixa, severa, a luz crepuscular.Um sino toca, e no saber quem tange como se este som nascesse do ar. Msica breve, noite longa. O alfanjeque sono e sonho ceifa devagarmal se desenha, fino, ante a falangedas nuvens esquecidas de passar. Os dois apenas, entre cu e terra,sentimos o espetculo do mundo,feito de mar ausente e abstrata serra. E calcamos em ns, sob o profundoinstinto de existir, outra mais puravontade de anular a criatura.

  • CONTEMPLAO NO BANCO

    I O corao pulverizado rangesob o peso nervoso ou retardado ou tmidoque no deixa marca na alameda, mas deixaessa estampa vaga no ar, e uma angstia em mim,espiralante. Tantos pisam este cho que ele talvezum dia se humanize. E malaxado,embebido da fluida substncia de nossos segredos,quem sabe a flor que a se elabora, calcria, sangunea? Ah, no viver para contempl-la! Contudo,no longo mentar uma flor, e permitidocorrer por cima do estreito rio presente,construir de bruma nosso arco-ris. Nossos donos temporais ainda no devassaramo claro estoque de manhsque cada um traz no sangue, no vento. Passarei a vida entoando uma flor, pois no sei cantarnem a guerra, nem o amor cruel, nem os dios organizados,e olho para os ps dos homens, e cismo. Escultura de ar, minhas moste modelam nua e abstratapara o homem que no serei. Ele talvez compreenda com todo o corpo,para alm da regio minscula do esprito,a razo de ser, o mpeto, a confusadistribuio, em mim, de seda e pssimo.

  • II Nalgum lugar faz-se esse homemContra a vontade dos pais ele nasce,contra a astcia da medicina ele cresce,e ama, contra a amargura da poltica. No lhe convm o dbil nome de filho,pois s a ns mesmos podemos gerar,e esse nega, sorrindo, a escura fonte. Irmo lhe chamaria, mas irmopor qu, se a vida novase nutre de outros sais, que no sabemos? Ele seu prprio irmo, no dia vasto,na vasta integrao das formas puras,sublime arrolamento de contrriosenlaados por fim. Meu retrato futuro, como te amo,e mineralmente te pressinto, e sintoquanto ests longe de nosso vo desenhoe de nossas roucas onomatopeias III Vejo-te nas ervas pisadas.O jornal, que a pousa, mente. Descubro-te ausente nas esquinasmais povoadas, e vejo-te incorpreo,contudo ntido, sobre o mar oceano. Chamar-te viso seriamalconhecer as visesde que cheio o mundoe vazio.

  • Quase posso tocar-te, como s coisas dilucularesque se moldam em ns, e a guarda no captura,e vingam. Dissolvendo a cortina de palavras,tua forma abrange a terra e se desata maneira do frio, da chuva, do calor e das lgrimas. Triste no ter um verso maior que os literrios, no compor um verso novo, desorbitado,para envolver tua efgie lunar, quimeraque sobes do cho batido e da relva pobre.

  • CANO PARA LBUM DEMOA

    Bom dia: eu dizia moaque de longe me sorria.Bom dia: mas da distnciaela nem me respondia.Em vo a fala dos olhose dos braos repetiabom-dia moa que estava,de noite como de dia,bem longe de meu podere de meu pobre bom-dia.Bom dia sempre: se acasoa resposta vier friaou tarde vier, contudoesperarei o bom-dia.E sobre casas compactas,sobre o vale e a serrania,irei repetindo mansoa qualquer hora: bom dia.O tempo talvez ingratoe funda a melancoliapara que se justifiqueo meu absurdo bom-dia.Nem a moa pe reparo,no sente, no desconfiao que h de carinho presono cerne deste bom-dia.Bom dia: repito tarde, meia-noite: bom dia.E de madrugada voupintando a cor de meu dia,que a moa possa encontr-loazul e rosa: bom dia.Bom dia: apenas um eco

  • na mata (mas quem diria)decifra minha mensagem,deseja bom o meu dia.A moa, sorrindo ao longe,no sente, nessa alegria,o que h de rude tambmno claro deste bom-dia.De triste, trbido, inquieto,noite que se denunciae vai errante, sem fogos,na mais louca nostalgia.Ah, se um dia respondessesao meu bom-dia: bom dia!Como a noite se mudarano mais cristalino dia!

  • RAPTO

    Se uma guia fende os ares e arrebataesse que forma pura e que suspirode terrenas delcias combinadas;e se essa forma pura, degradando-se,mais perfeita se eleva, pois atingea tortura do embate, no arrematede uma exausto suavssima, tributocom que se paga o voo mais cortante;se, por amor de uma ave, ei-la recusao pasto natural aberto aos homens,e pela via hermtica e defesavai demandando o cndido alimentoque a alma faminta implora at o extremo;se esses raptos terrveis se repetemj nos campos e j pelas noturnasportas de prola dbia das boates;e se h no beijo estril um soluoesquivo e refolhado, cinza em npcias,e tudo triste sob o cu flamante(que o pecado cristo, ora jungidoao mistrio pago, mais o alanceia),baixemos nossos olhos ao desgnioda natureza ambgua e reticente:ela tece, dobrando-lhe o amargor,outra forma de amar no acerbo amor.

  • MEMRIA

    Amar o perdidodeixa confundidoeste corao. Nada pode o olvidocontra o sem sentidoapelo do No. As coisas tangveistornam-se insensveis palma da mo. Mas as coisas findas,muito mais que lindas,essas ficaro.

  • MINERAO DO OUTRO

    Os cabelos ocultam a verdade.Como saber, como gerir um corpoalheio?Os dias consumidos em sua lavrasignificam o mesmo que estar morto. No o decifras, no, ao peito oferto,monstrurio de fomes enredadas,vidas de agresso, dormindo em concha.Um toque, e eis que a blandcia erra em tormento,e cada abrao tece alm do braoa teia de problemas que existirna pele do existente vai gravando. Viver-no, viver-sem, como viversem conviver, na praa de convites?Onde avano, me dou, e o que sugadoao mim de mim, em ecos se desmembra;nem resta mais que indcio,pelos ares lavados,do que era amor e, dor agora, vcio. O corpo em si, mistrio: o nu, cortinade outro corpo, jamais apreendido,assim como a palavra esconde outravoz, prima e vera, ausente de sentido.Amor compromissocom algo mais terrvel do que amor? pergunta o amante curvo noite cega,e nada lhe responde, ante a magia:arder a salamandra em chama fria.

  • PALAVRAS NO MAR

    Escrita nas ondasa palavra Encantobalana os nafragos,embala os suicidas.L dentro, os naviosso algas e pedrasem total olvido.H tambm tesourosque se derramarame cartas de amorcirculando friaspor entre medusas.Verdes solides,merencrios prantos,queixumes de outrora,tudo passa rpidoe os peixes devorame a memria apagae somente um palorde lua embruxadafica pervagandono mar condenado.O ltimo hipocampodeixa-se prendernum receptculode coral e lgrimas do Oceano Atlnticoou de tua boca,triste por acaso,por demais amarga. A palavra Encantorecolhe-se ao livro,entre mil palavras

  • inertes espera.

  • CANTIGA DE VIVO

    A noite caiu na minhalma,fiquei triste sem querer.Uma sombra veio vindo,veio vindo, me abraou.Era a sombra de meu bemque morreu h tanto tempo. Me abraou com tanto amorme apertou com tanto fogome beijou, me consolou. Depois riu devagarinho,me disse adeus com a cabeae saiu. Fechou a porta.Ouvi seus passos na escada.Depois mais nada

    acabou.

  • AMAR-AMARO

    Por que amou por que a!mouse sabiap r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o sternos ou SODAREPSESEDnesse museu do pardo indiferenteme diga: mas por queamar sofrer talvez como se morrede varola voluntria vgula evidente? ah PORQUEAMOUe se queimoutodo por dentro por fora nos cantos nos ecoslgubres de voc mesm(o,a)irm(,o) retrato espculo por que amou?se era paraou era porcomo se entretanto todaviatoda vida mas toda vida indagao do achado e aguda espostejaoda carne do conhecimento, ora veja permita cavalheir(o,a)amig(o,a) me releveeste malestarcantarino escarninho piedosoeste querer consolar sem muita convicoo que inconsolvel de ofcioa morte esconsolvel consolatrix consoadssimaa vida tambm tudo tambmmas o amor car(o,a) colega este no consola nunca de nncaras.

  • SOBRE O AUTOR

    Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira (MG), em 1902. Um dosmais importantes poetas brasileiros de todos os tempos e sem favornenhum um dos grandes nomes da poesia do sculo XX em qualqueridioma, estreou na literatura em 1930, com os versos de Alguma poesia, enos cinquenta anos seguintes publicou diversas obras fundamentais emverso e prosa, como Sentimento do mundo, A rosa do povo, Contos de aprendiz emuitos outros. Consagrado, estudado e admirado por leitores de todas asidades, Drummond morreu no Rio de Janeiro em 1987, aos 84 anos. Site da coleo Drummond: http://espalhedrummond.com.br/ Catlogo de referncias obra de Drummond:http://www.reuniaobibliografica.com.br/

  • Carlos Drummond de Andrade Graa Drummondwww.carlosdrummond.com.brGrafia atualizada segundo o AcordoOrtogrfico da Lngua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009. Os textos desta edio digital foram selecionados de Antologia potica, Sentimento do mundo, Claro enigma, Arosa do povo, Lio de coisas, Jos (Companhia das Letras, 2012) e Alguma poesia (Companhia das Letras,2013). CapaAlceu Nunes Projeto grficoJoelmir Gonalves RevisoVerba Editorial ISBN 978-85-8086-790-9 TODOS OS DIREITOS DESTA EDIO RESERVADOS EDITORA SCHWARCZ S.A.RUA BANDEIRA PAULISTA, 702, CJ. 3204532-002 SO PAULO SPTELEFONE (11) 3707-3500FAX (11) 3707-3501WWW.COMPANHIADASLETRAS.COM.BRWWW.BLOGDACOMPANHIA.COM.BR

    RostoSumrioApresentaoAmarO amor bate na aortaQuadrilhaNecrolgio dos desiludidos do amorNo se mateO mitoCano da moa-fantasma de Belo HorizonteCampo de floresEscadaEstnciasCicloVsperaInstanteConfissoPassagem do anoOs poderes infernaisSoneto do pssaroConsolo na praiaO quarto em desordemEntre o ser e as coisasTarde de maioFraga e sombraContemplao no bancoCano para lbum de moaRaptoMemriaMinerao do outroPalavras no marCantiga de vivoAmar-amaroSobre o autorCrditos