revista_narrativa_dramatica

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    P R O P O S T A D E L E I T U R A D E M U N D O A T R A V S D A N A R R A T I V A D R A M T I C A

    DRAMTICANARRATIVA

    Proposta de le itur ado mun do atra vs da

    RIO DE JAN EIRO 2006 ARGU S 1 ED I O

    CURADORIA ALCIONE ARAJOADERBAL FREIRE- FILHO

    GUIDA VIANNAJOS DIAS

    NEY MADEIRACAQUE BOTKAY

    CAROLINA DE M ELO BOM FIM ARAJO

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    P R O P O S T A D E L E I T U R A D E M U N D O A T R A V S D A N A R R A T I V A D R A M T I C A

    Diretor responsvel: Jason Prado

    Coordenador pedaggico: Jlio Diniz

    Curador: Alcione Arajo

    Equipe editorial

    Coordenao editorial: Ana Claudia Maia

    Redao: Renata Ramos

    Pesquisa: Renata Ramos e Cam ila Cesarino

    Direo de arte e produo grfica: Barbara N ecyk

    Reviso: Sueli Rocha

    Tiragem : 5.000.

    Leia Brasi l Organizao No Governam ental de prom oo da

    Leitura

    Praia do Flam engo, 100/902 Flam engo

    Rio de Jan eir o CEP: 22210- 030

    Tel/ Fax: (21) 2245 7108

    [email protected]

    www.leiabrasil.org.br

    Todos os direitos foram cedidos pelos autores para os fins aqui descr itos.Quaisquer reprodues (parciais ou integrais) devero ser autorizadas

    previamente.

    Os artigos assinados refletem o pensamento de seus autores.

    Leia Brasil m arca registrada.

    Impr esso na Ediouro Grfica e Editora.

    expediente

    ndiceLer o teatro para assistir o futuro

    Jason Prado 03

    Teatro: educar para sentir, pensar e agirAlcione Arajo 06

    Duas ou trs coisas que eu sei dela,a dramaturgiaAlcione Arajo 10

    O diretor de teatro um m anual ou umabiografia no autorizada?

    Aderbal Freire- Filho 24

    Representar agir

    Guida Vianna 43

    O cenrio teatral, uma breve evoluo

    Jos Dias 52

    O figurino teatral

    Ney Madeira 64

    Msica, teatro e escola

    Caque Botkay 74Observatrio L eia Brasil :

    um projeto de extenso e pesquisa

    Carolina de Melo Bom fim Arajo 84

    Pea Teatral:

    Os Dous ou O Ingls Maquinis ta 89

    Dados Internacionais de catalogao na publ icao (CIP)

    Leia Brasil Organizao No Governam ental de Prom oo da Leitura

    Proposta de leitura do mundo atravs da narrativa dramtica/ Leia Brasil Organizao No Governamentalde Prom oo da Leitura (org) Alcione Arajo, Aderbal Freir e-Filh o, Caque Botikay, Carolin a Bomfim de MeloAra jo, Guida Vianna, Jos Dias e Ney Madeir a. Rio de Janeiro: Arg us, 2206.

    136 p.

    Bibliografia.

    ISBN 978 85 87456 03 8

    1. Educao 2. Lei tura 3. Teatro

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    JASON PRADO

    J se passaram quinze anos desde que iniciamoso Leia Brasil com uma proposta de incent ivar a leitu-ra atravs do emprstimo de livros, levados s esco-las pbl icas conveniadas bordo de um colori do ca-minho-biblioteca.

    Tivssemos ns permanecido com a idia de que

    isso basta para resolver a questo da leitura no pas,com certeza no teramos combustvel para continuarrodando at os dias de hoje. E o que mais importan-te: s neste ano (2006), atendendo a mais de mil esco-las, em 106 cidades de quatro estados que participamde nossos Programas.

    Logo percebemos algumas coisas fundamentaispara pavimentar os rumos de nosso trabalho, como porexemplo a necessidade de estabelecer fortes parceriascom entidades interessadas no desenvolvimento da edu-cao, ou ainda o fato insofismvel de que a promooda leitura no pas passa, necessariamente, pela escola eseus professores.

    Outra coisa que aprendemos e dela que trata-mos aqui que no se pode incentivar a leitura restrin-gindo o termo (e nossas intenes) aos textos escritos.Viver pressupe outras leituras, e compreend-las requera ampliao do olhar e a utilizao de seus cdigos.

    Por isso sempre fizemos incurses por outras su-perfcies alm do texto, e por outras linguagens, almda escrita.

    O acmulo de experincias, as vivncias que experi-mentamos com mais de cem mil professores e o queouvimos de quase mil especialistas e consultores que nosacompanharam nessa trajetria nos conduziu a proporesta nova abordagem em nosso trabalho nos prximosanos: a utilizao das narrativas dramticas como instru-mento de incentivo leitura e combate ao analfabetis-mo funcional no Pas.

    Conquistamos, para isso, o importantssimo avalde nosso patrocinador e a cumplicidade e concordn-

    cia das autoridades educacionais das cidades com quetrabalhamos. E convidamos o premiado escritor e dra-maturgo Alcione Arajo para que fizesse a curadoriadeste nosso projeto.

    A proposta pretenciosa, porm simples como tudoque se prope a ser eficiente.

    Pretendemos oferecer aos professores de nossas es-colas um contato sistemtico com a narrativa dramtica neste ano, especificamente com o teatro como formade instrumentar a ampliao de seus repertrios de leitu-ra, ao mesmo tempo em que focamos essa leitura sobreo humano, ajudando-os, de uma forma mais concreta eintensa, a construir suas referncias internas, ou a subje-tividade, to importante para a vida em sociedade.

    Isso se dar, com maior ou menor intensidade de-pendendo da cidade ou escola, atravs da oferta de espet-culos completamente estruturados (atores, cenrios, figu-rinos etc); da possibilidade de se assistir a algumas leiturasdramticas (onde se pode ver como se d apropriao dotexto pelo diretor, o elenco e a equipe de produo); deleituras feitas com os prprios professores sob a supervi-

    Ler o teat ro para assistir o futuro

    Oteatroitaliano.

    Divulgao.

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    so de diretores consagrados e do envolvimen-to de suas escolas e alunos na montagem de pe-quenas peas desenvolvidas a partir de textos li-terrios especficos, selecionados pelo curador.

    Por fim, mas no menos importante, todo

    este trabalho consubstanciado por esta publica-o, que oferece aos nossos leitores uma viso dotrabalho que pretendemos realizar com sua partici-pao especialssima, alm de importantes textos desuporte escritos pelos mais renomados especialistasem teatro dos dias de hoje, alm de um roteiro dodramaturgo Martins Pena1lido, comentado, e com-parti lhado pelo prprio Alcione Arajo.

    Para acompanhar seu alcance e desenvolvi-mento, estabelecemos uma parceria com o Depar-

    tamento de Educao da Universidade Federal Flu-minense que, atravs da Doutora em Filosofia Ca-rolina Arajo, o estar acompanhandonum projeto de pesquisa acadmica, inte-ressados que esto e estamos na corretaavaliao de seus resultados, no s comoferramenta de combate ao analfabetismofuncional, mas de envolvimento de alunose professores em torno de um projeto deconstruo do conhecimento.

    No sabemos se indito, nem pre-tendemos que fosse.

    Mas sabemos que nico em curso noBrasil e acreditamos em suas premissas.

    Esperamos que no demore para que mi-lhares de professores que tero acesso s suasprticas e orientaes se transformem nos pro-tagonistas de uma nova trama educacional.

    E que seus alunos possam atuar num Brasil comcenrios diferentes desses com que se escreve a histriapresente.

    Com vocs, nossa proposta de leitura de mundoatravs da narrativa dramtica.

    JASON PRADODiretor da ONG Leia Brasil - Organizao NoGovernamental de Promoo da Leitura.

    Detalh

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    Pic

    asso

    .

    1Martins Pena nasceu em 1815, no Rio de Janeiro. Comeou sua

    atividade como dramaturgo com a pea O Juiz de Paz na roa, em 1838.

    Escreveu mais de 19 comdias e 6 dramas, que retratavam os costumes e

    valores de sua poca.

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    DRAMTICANARRATIVA

    Proposta de le itur ado mun do atra vs da

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    O teatro a imitao concreta do comportamento

    do homem e, por isso, suscita uma forma concreta de

    pensar as situaes humanas. At as crianas podem ex-

    perimentar, e apreender, as funes que desempenharo

    na vida adulta processo que os socilogos chamam de

    internalizao dos papis sociais. Alm de veculo de

    transmisso de normas de comportamento e valores para

    a vida, o teatro um instrumento de reflexo, um meio

    de filosofar em termos concretos, um processo cogniti-

    vo, da a sua importncia para o homem. Sua ambio

    a percepo da natureza da existncia, a renovao das

    foras do indivduo e a sua conscientizao para enfren-

    tar o mundo. O teatro a mais social e socializada das

    formas de arte.

    A dramaturgia, base literria da expresso teatral,

    ignorada pelos currculos acadmicos, mesmo nos cur-

    sos de letras, e raramente utilizada nos nveis mdio e

    fundamental do ensino no Brasil. Renuncia-se, assim,

    sua utilizao pedaggica como uma maneira de repre-

    sentar, interpretar e conhecer o homem e a sociedade

    criada pelos homens. A encenao teatral possibi lita acu-

    mular vivncias do que no se viveu.

    O brasileiro famil iarizado com as narrativas dra-

    mticas, seja a telenovela, seja o cinema ainda que

    exibido pelas emissoras de televiso , as histrias em

    quadrinhos. O que lhe menos familiar o teatro.ALCIONE ARAJO

    Teatro:educarpara sentir,

    pensar e agir

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    Tendo o confl ito entr eas personagens com o

    a condio da suaexistncia, e cada um

    tem boas razes para agircom o age, a dram aturgia,

    na concretude das suasaes, ensina a conviver

    com a diversidade dosseres hum anos e a

    divergncia dos interesses.

    Este projeto pretende introduzir as professoras e, por meio delas, os estudantes numa experinciateatral concreta e completa: a adaptao de um textoliterrio para a linguagem teatral e a sua posterior ence-nao. Alm da experincia de escrever uma obra de

    dramaturgia, a encenao incluir o trabalho individu-al de cada ator com a sua personagem, a relao singu-lar de cada personagem com as demais que desen-volver o enredo da pea a movimentao dos atores,o ritmo de cada cena e a harmonizao entre as cenas,os figurinos das personagens, os cenrios de cada ao,as msicas utilizadas para fazer fundo ou pontuar assituaes dramticas.

    No singelo exerccio de descortinar uma fala, pode-se perceber o quanto o dilogo teatral oculta intencio-

    nalmente informaes importantes para se entenderemas circunstncias em que as personagens esto metidas,as necessidades, urgncias e emoes que impulsionama ao e as razes pelas quais as personagens agem.Compreender as razes que levam ao iniciar adescoberta da alteridade a existncia do outro, comseus sonhos e desejos, suas singularidades e seus direi-tos. Um aprendizado que se transfere para a vida real.Tendo o conflito entre as personagens como a condi-

    o da sua existncia, e cada um tem boas razes paraagir como age, a dramaturgia, na concretude das suasaes, ensina a conviver com a diversidade dos sereshumanos e a divergncia dos interesses. nesta ine-

    vitvel diversidade e inexorvel divergncia que se tor-nam urgentes os fundamentos do pacto de convivncia

    social e se afirmam os valores da eqidade, da equa-nimidade, do justo e do tico, os valores que ins-talam a cidadania.

    Alm disso, encenao teatral uma ativi-dade tipicamente de grupo. Autor, diretor, ato-res, atri zes, cengrafos, figurinistas, composi-

    tores, iluminadores, maquiadores, contra-regrae cortineiro indi spensvel que cada um reali-ze a sua parte, e as partes encontrem sua har-monia, para que o conjunto funcione e o espe-

    tculo acontea.Sabemos que um grande problema vem pre-

    ocupando os educadores brasileiros. Pesquisasrealizadas com jovens que prestaram exame ves-tibular constataram que uma boa parte deles con-segue ler um pargrafo de um texto simples, re-Agner. Charge do l ivro PrPrPrPrPr a fra fra fra fra fr ente Brente Brente Brente Brente Br as i l !a s i l !a s i l !a s i l !a s i l !

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    conhece as palavras, as vrgulas e pontos, as frases. Noconsegue, porm, entender o que leu. incapaz de repe-tir aquele contedo com as suas prprias palavras. Enfim,leu, mas no entendeu fenmeno que vem sendo iden-tificado como Analfabetismo Funcional.

    Pensar na superao de tal problema sugere que sedetenha em cada frase do pargrafo, em cada palavra dafrase, e se avalie, passo a passo, o grau de entendimento.A cada passo, ento, deve-se tentar agregar novas faces doassunto ou aprofundar as conhecidas, de modo a consoli-dar, passo a passo, o entendimento o mais profundo eamplo possvel. A leitura de pea teatral pode ser umaestratgia para avanar na compreenso do que se l. Aotentar compreender cada personagem e a situao em queest colocado, faz-se uma espcie de desconstruo de cada

    fala a fim de desvelar o que o dramaturgo, intencional-mente, ocultou e, assim, alcanar o entendimento do queest se falando, de quem est falando, do que est aconte-cendo. E repetir o procedimento a cada fala, de cada cena,de cada ato, de cada pea. Ao final, consegue-se saltar docdigo grfico da escrita para a ao dramtica e fsica ou seja, apreendeu-se o que foi escrito.

    Enfim, o que se pretende sugerir o uso do pro-cesso de trabalho em dramaturgia como estratgia parasuperar o analfabetismo funcional. A leitura de pe-as teatrais induz de maneira ldica e natural atitude intelectiva de compreender o que se lpara compreender o que acontece.

    As virtudes da uti lizao da dramaturgiano se esgotam por a. Alm de reforar e re-novar o prazer pela leitura, percebendo-seque, na sua especificidade e sem o palco,o texto teatral instiga a curiosidade, man-tm a tenso e a expectativa e estimula aimaginao a antever as aes num pal-co imaginrio. Ler uma pea teatral

    uma operao que se basta a si prpria,independente da representao, pois di-namiza os processos mentais como ocorreem qualquer outra prtica de leitura.

    Este projeto pr etendeintroduzir as professoras

    e, por m eio delas, osestudantes num a

    experincia teatral concretae completa: a adaptao deum texto literrio para alinguagem teatral e a suaposterior encenao.

    ALCIONE ARAJO Escritor e roteirista, foi professorde Filosofia. Ganhou prmios importantes como oJabuti e criou um marco da teledramaturgia brasil eira,a srie Malu MulherMalu MulherMalu MulherMalu MulherM alu M ul her. Para o cinema, escreveu osroteiros de Nunca fomos to felizesNunca fomos to felizesNunca fomos to felizesNunca fomos to felizesNunca fomos to felizes e PolicarpoPolicarpoPolicarpoPolicarpoPolicarpoQuaresmaQuaresmaQuaresmaQuaresmaQuaresma. Entre seus livros esto A caravana da il usoA caravana da il usoA caravana da il usoA caravana da il usoA caravana da il usoe Nem mesmo todo o oceanoNem mesmo t odo o oceanoNem mesmo todo o oceanoNem mesmo t odo o oceanoNem mesmo todo o oceano.

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    No comeo do nosso sculo XXI, qua-

    se dois mil e seiscentos anos depois de os gre-

    gos terem criado o que chamamos de teatro

    ocidental, todos ns temos uma idia, ainda

    que plida, confusa ou no verbalizada, do

    que seja a arte teatral no vamos desperdi-

    ar esta intuitiva herana que nos legou toda essa vasta

    histria do teatro, trocando-a por definies retricas,

    reducionistas, imprecisas e, afinal, desnecessrias. Mi-

    lhares de livros foram escritos e publicados, tentando

    definir, com todo o rigor, o que o teatro. Apesar do

    empenho, porm, no se chegou a uma definio que

    seja universalmente aceita e j aproveito a deixa para

    antecipar uma conjectura: ser que esta di ficuldade em

    defini-lo no advm de que a essncia do teatro o ser

    humano, impossvel de ser definido? Seguro de que to-

    dos tm a noo do que seja o teatro, insisto que, em

    lugar de uma definio abrangente e universal, tente-

    mos arrolar experincias teatrais episdicas, insightsou

    intuies que nos permitam fazer convergir as impres-

    ses da idia de teatro.

    Quando uma criana, acusada de desobedincia,

    chora e faz juramentos alegando inocncia, sua nfase

    tem elementos teatrais. Quando a mulher utiliza o co-

    lorido atraente da maquiagem que a faz mais bela e

    atraente, e se veste com trajes mais sedutores, est se

    Duas outrs coisas

    que eu sei dela,a dramaturgia

    ALCIONE ARAJO

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    DRAMATURGIA

    uti li zando do poder teatralda aparncia. Quando oadvogado enfrenta o jri,argumentando a inocn-cia ou a culpa do ru,

    ele se utiliza de vriosrecursos teatrais parapersuadir os jurados eos juzes dos seus argu-mentos. Quando o joga-dor de futebol atingidodentro da rea e exagera nascontores de dor, tentandoinduzir o rbitro a dar penalidade mxima, os torcedo-res do time adversrio o acusam de fazer uma encenao

    teatral. Quando um sacerdote, da imponncia do seualtar, sob a luz colorida de vitrais, faz gestos amplos, ajo-elha-se e se penitencia de forma ritualstica, dizendo pa-lavras profundas sobre a vida e a morte, est se utilizan-do de elementos teatrais. Quando o poltico toma posseem algum cargo e faz solene juramento, com a mo so-bre a Constituio ou sobre a Bblia,de que vai trabalhar para a paz e a pros-peridade do seu povo, ns todos sabe-mos que h elementos teatrais neste ri -tual. O teatro est to disseminado nasnossas prticas culturais que a sua uti-lizao j se tornou rotineira, como tc-nica de comunicao dramtica, em co-merciais de televiso e de rdio, assimcomo na reconstituio de fatos reaisem programas jornalsticos.

    O mais desinformado de ns jdeve ter ouvido algum captulo de ra-dionovela; e a radionovela herdoumuita coisa que era originalmente do

    teatro. A grande maioria de ns j viufilmes; o cinema herdou muita coisaque era originalmente do teatro e tam-bm da radionovela. Vrios de ns jlemos histrias em quadrinhos; e as histrias em quadri-nhos herdaram muito do que era originalmente do tea-tro, da radionovela e tambm do cinema. difcil queentre ns haja algum que no tenha visto um captulode telenovela; pois a telenovela herdou muito do queera originalmente do teatro, da radionovela, da histria

    em quadrinho e do cinema.Embora no se possa dizer

    que o brasileiro f reqen-te o teatro, ele familia-rizado com as narrativas

    dramticas, seja a tele-novela, o cinema, osquadrinhos. Claro quetelenovela e cinema soformas radicalmente dis-

    tintas do teatro, mas her-daram do teatro, adaptando-

    o s exigncias da tela peque-na ou grande , a narrativa dramtica, por sua vez, mui-to diferente da narrativa literria.

    Ns costumamos chamar estas formas de expresso,ou linguagens radionovela, cinema, quadrinhos, tele-novela de narrativas dramticas, todas surgidas a partirde elementos originalmente do teatro que, surgido naGrcia muitos sculos antes de Cristo, foi o pioneiro, oprecursor, o iniciador, o criador da narrativa dramtica.

    quase incrvel que, tendo sur-gido h quase dois mil e seiscentosanos, o teatro vem despertando o in-teresse dos espectadores de todas aspocas, de todas as culturas e de to-das as lnguas. curioso tambm quea arte teatral que vem sendo feita emtodas essas pocas e culturas, seja rea-lizada, nos seus aspectos essenciais,quase da mesma maneira como sur-giu. Isso deve ser um sinal de que eleatinge o espectador no pelos aspec-tos exteriores, que podem mudar depas para pas, de poca para poca,mas por algo mais profundo, l onde

    repousa esse mistrio que faz de nsseres humanos, um lugar no muitolonge daquele onde brotam as sensa-es e emoes. Por isso se diz que o

    teatro um dos maiores meios de expresso humana, deexpresso da humanidade dos humanos a redundantereiterao tem sua razo de ser.

    Como o teatro no precisa de aparatos tecnolgi-cos, sem os quais no existiriam o rdio, o cinema e ateleviso, ele no alcana um grande nmero de pessoas

    Ns costumamoschamar estas form as de

    expresso, ou linguagens radionovela, cinem a,

    quadr inhos, telenovela de narr ativas dram ticas,todas sur gidas a partir deelementos originalmentedo teatro que, surgido na

    Grcia m uitos sculosantes de Cr isto, foi o

    pioneiro, o precur sor, o

    iniciador, o criador danarr ativa dr am tica.

    Divulgao

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    ao mesmo tempo, como conseguem atingir aqueles ve-culos, que tambm utilizam a narrativa dramtica. Essestm um alcance to grande que so chamados veculosde comunicao de massa. So meios de comunicao no necessariamente de criao des-

    tinados a alcanar a massa um amon-toado informe, heterogneo, impesso-al, que iguala milhes e milhes depessoas num mesmo nvel no ne-cessariamente o indivduo, com suapercepo singular e particular. O tea-tro, ao contrrio, pode prescindir dequase todo tipo de tecnologia. Antesda inveno da eletricidade, o palcoera iluminado por tochas. Antes da

    inveno da gravao eletrnica desons, as msicas eram feitas com ins-trumentos e vozes ao vivo; e os ru-dos, por meio de recursos simples: por exemplo, ao agi-tar uma chapa metlica produzem-se sons de relmpa-gos e troves. Por mais contraditrio que parea, justa-mente esta aparente antiguidade do teatro, que o tornamais livre, mais independente e mais moderno. A de-pendncia da tecnologia traz a ameaa de ficar, alm decaro, obsoleto os filmes sonoros ocuparam o lugar dosfilmes mudos do incio do cinema; e os filmes em pretoe branco perderam lugar para os coloridos. O disco long-play e o home-vdeo ficaram obsoletos com o surgimen-to do CD e do DVD. Para alcanar a plenitude de suaexpresso, que revelar, sem medo e sem preconceito, asverdades ltimas dos homens, o teatro precisa ser radi-calmente independente e autnomo. No pode tolerarconstrangimentos nem censuras depender de tecnolo-gia e de grandes investimentos pode significar compro-missos que causam arrepios liberdade do teatro. O tea-tro, na sua abenoada antiguidade, no entrou na era da

    reprodutibilidade tcnica o que acabou contribuindopara o seu encantamento e fascnio: feito ao vivo, porseres vivos, e destinado aos seres vivos; e o ser humanoainda no inventou nada mais fascinante do que o pr-prio ser humano que capaz de se recriar e se reprodu-zir, mas no de se inventar.

    Cada espetculo teatral, feito com a mesma pea eo mesmo elenco, diferente de todos os demais. Cadaapresentao nica, singular. Embora tente repetir lite-ralmente a sua forma, o seu arcabouo, e a arquitetura

    da sua concepo nos figurinos, nos cenrios, na ma-quiagem, nos movimentos e nas falas proferidas umaarte viva, feita e assistida por pessoas vivas, que esto, nopalco e na platia, a cada dia, a cada momento, em no-

    vas circunstncias e emoes. Nada na

    vida se repete como cpia fiel, tampou-co os espetculos teatrais. A intensi-dade da presena viva e fal vel das pes-soas a maior fora do teatro, a suabeleza e a sua essncia. O teatro trocaa possibilidade da eternidade, aspira-o comum s obras de arte, pela in-tensidade do efmero. No tendo, pe-las suas caractersticas, nem a presun-o nem a ambio de atingir um gran-

    de nmero de pessoas ao mesmo tem-po, pode at faz-lo e talvez aspire,apresentando-se para poucos de cada

    vez, num grande nmero de vezes. Nenhuma revoluotecnolgica interferiu na essncia do teatro embora, claro, possa influenciar, segundo opo dos realizado-res, na forma, na aparncia dos espetculos. No na suaessncia por uma razo definitiva: o teatro uma arteque d forma e expresso natureza humana que, apesar

    A intensidade da presenaviva e falvel das p essoas a m aior fora do teatro,

    a sua beleza e a suaessncia. O teatro tr oca a

    possibilidade daeternidade, aspir ao

    com um s obras de arte,pela intensidade

    do efm ero.

    Divulgao

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    de toda a evoluo, nada mudou dos gregos at hoje.Pode-se fazer um espetculo teatral sobre os malefciosde trnsito sem mostrar um nico automvel. O que, defato, importa, quando o teatro trata desse tema, no mostrar automveis, fumaa, poluio, engarrafamentos,

    acidentes mas de que maneira todos esses problemasafetam o homem, repercutem na sua sade, na sua vidaetc. O que importa sempre o homem.

    A expresso teatral est to profundamente imbri-cada na natureza humana e na condio humana, que quase impossvel estabelecer a fronteira de uma ativida-de mais genrica e o teatro propriamente dito. Pode-seperceber a dificuldade observando oldico jogo teatral presente quandocrianas brincam de Papai e Mame,

    de Mocinho e Bandido, ou mimeti-zando as relaes entre os animais nesses jogos infantis, as crianas j es-to assimilando papis que poderodesempenhar na vida adulta noteque a palavra papis veio do teatro.E no teatral a tcnica de reconsti-tuio de cenas de crimes para a pol-cia conferir a plausibilidade e verossi-milhana de depoimentos e confissesdos suspeitos? A essncia do teatro o ser humano, repito. Costumo di-zer que, na sua essncia ltima, umapossibilidade de verbalizar o teatrocom infantil crueza poderia ser: gen-te imitando gente, para gente ver. O ser humano arazo de ser, o objeto da criao e o destino desta arte,sem passar pela intermediao de cmeras, celulidesou vdeo-tapes; telas, tintas e pincis. Desta essncia sin-gela e profunda o teatro no pode escapar, porque esta a natureza mesma da sua expresso. Ontem, hoje e

    sempre, aqui e em qualquer lugar, pode-se fazer teatro j se fez, se faz e se far! eventualmente sem palco,sem iluminao, sem figurino, sem msica, sem ma-quiagem. Mas impossvel fazer teatro sem o homem,que , ao mesmo tempo, a matria-prima, o meio e odestino da criao teatral. Por isso no se pode fazerteatro sem o ator/atriz que, sendo um ser humanocapaz de representar os demais seres humanos oelemento duplamente central do teatro, o que s con-firma a sua radicalidade humana.

    Tendo o ser humano em todo o seu infinito es-pectro de variaes, de cultura, idade, gnero, etnia, classesocial, crena religiosa, costumes, valores, ideologias, so-nhos, desejos, ambies etc. como sua matria prima,como seu meio de expresso e como destinao da sua

    criao, o teatro precisa conhecer o ser humano em todaa sua profundidade. Como sabemos, desde Aristteles,que o homem , e suas circunstncias; ou seja, ningum em absoluto, um ser autnomo sociedade e ao mun-do em que vive, imune frico com o outro e com asua realidade. Para entender o homem, o teatro no podeabdicar de compreender as circunstncias que envolvem

    o homem concreto. Cada homem resultado da interao da sua subjeti-vidade seus sonhos, desejos, afetos,

    frustraes, dios e invejas, confessos,ocultos e at inconscientes com a re-alidade objetiva que o cerca: ondemora, onde trabalha, sua sade, quan-to ganha, as pessoas com quem se re-laciona, o pai, a me, os amigos e ri-vais, suas vitrias e frustraes. O tea-tro se interessa pelos seres humanos,por todos os seres humanos, sem qual-quer exceo: os bons, assim como osmaus, os assassinos e os benfeitores,ladres e filantropos, feios e bonitos,verdadeiros e mentirosos, justos e in-

    justos, anjos e canalhas, gordos e ma-gros, ladres e honestos, loucos e lci-

    dos, santas e prostitutas sob qualquer desses adjetivosh um ser humano, por ele se interessa o teatro. Usandouma metfora religiosa, o teatro admite como hiptesede trabalho que em todo homem repousa um anjo e umdemnio, sem preferncias por um ou outro. A ndole,as circunstncias ou ambas podem fazer aflorar um, ou-

    tro ou ambos para o teatro indiferente qual deles; oautor far suas escolhas segundo sua viso de mundo.Enfim, o teatro no se interessa pelas categorias anjo edemnio, mas pode, eventualmente, tratar de anjos edemnios porque trata do homem. A cada homem, qual-quer que seja o adjetivo com que se possa qualific-lo, oteatro chama de personagem e faz dele o centro do seuinteresse. Por isso o teatro oscila entre o sublime e o rid-culo, entre as estrelas e a lama; to impuro e frgil comoo prprio homem o que, embora parea o seu pecado,

    ...o teatro oscil a entr e o

    sublim e e o r idculo, entreas estrelas e a lam a; toim puro e frgil com o o

    prprio hom em o que,em bora parea o seu

    pecado, a suaextraordinria virtude,pois exatamente porter o corpo na lam a e oesprito nos cus que oteatro tem estado toprximo do homem .

    DRAMATURGIA

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    a sua extraordinria virtude, pois exatamente por tero corpo na lama e o esprito nos cus que o teatro temestado to prximo do homem. O teatro existe porqueexistem personagens, que sero representados por atorese atrizes, que criaro a magia da cena, que jogar luz so-

    bre a experincia de ser um humano nesse mundo.Para os efeitos que aqui se pretendem, convm pr

    de lado a complexidade do espetculo e a parafern-lia para a sua realizao os artigos que se seguema este trataro desses aspectos. Bem sabemos daespecificidade do texto dramtico e de como asua leitura envolve certas particularidades, le-vando at idia de que para alcanar as ques-tes que aborda seja indispensvel a encena-o. evidente que uma pea escrita para

    ser encenada num palco e para que seus perso-nagens sejam representados por atores. Mas, naestratgia que se pretende esboar aqui, importacentrar o foco na dramaturgia, ou melhor, no atode ler e entender uma pea teatral e mergulharnos problemas que discute, em desvelar e enten-der o carter das personagens, acompanhar assuas aes, elaborar os significados e discerniros valores que infundem, de forma explcita ouimplcita, em cada gesto, atitude e comporta-mento.

    Em grego, a palavra drama outro nomedo teatro significa ao. O teatro pode ser enten-dido como a ao de mimetizar, ou seja, de imitarou representar o comportamento humano. Emboraseja escrito com palavras, da mesma maneira com queescreve a literatura, o drama no propriamente litera-tura. Por isso , s vezes, chamado de l iteratura dramti-ca. Mas, na verdade, o que faz com que o teatro sejateatro justamente o que no texto escrito est para almdas palavras, que a ao, ou aquilo que precisa ser re-

    presentado, a fim de que as intenes do autor sejamrealizadas em sua plenitude. Na narrativa literria, o au-tor descreve os cenrios, os figurinos, a atmosfera e, po-dendo invadir a subjetividade das personagens, descreveat as suas intenes, por mais ocultas que sejam. Almdisso, pela sua prpria natureza, tende a relatar aconteci-mentos que j ocorreram e que, no momento da leitura,pertencem ao passado. Enquanto o romancista precisadescrever as caractersticas fsicas de um personagem, suaaparncia, a cor dos cabelos, seu gesto peculiar de ajeitar

    AristtelesemA

    frescodaCapelaCistina.

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    os culos sobre o nariz, a sua maneira de se vestir etc.,numa pea mal o ator entra em cena e tudo ser visto epercebido imediatamente pelo espectador. Da mesmaforma em relao ao ambiente, em lugar da descrioexaustiva do romancista, ao abrir-se o pano, ou acende-

    rem-se as luzes, todo o cenrio fica vista. E, o que mais importante, o romance, o conto, a crnica so nar-rativas lineares medida que l cada palavra, cada fra-se, cada pargrafo, o leitor vai acumulando, linearmen-te, as informaes, com certo grau de abstrao. O tea-tro, por ser uma representao concreta, ou seja, as aesacontecerem efetivamente no palco, pode revelar, aomesmo tempo e no linearmente, inmeros aspectos,nuances e sutilezas que possibilitam transmitir vriosnveis de ao e de emoo. Para exemplificar, quando

    um aluno entra na classe e diz Bom di a, fessora sefor a cena de um romance lido por uma professora, elapode interpretar como uma saudao polida e corts.Se, entretanto, a cena for num palco (no cinema, ou natv), o ator pode dar entonaes das mais variadas, algu-mas delas nada polidas nem corteses, como bem sa-bem as professoras.

    Portanto, na narrativa dramtica, no h descriodo ambiente nem dos figurinos porque o cenrio estinstalado no palco, visvel ao espectador, e os atores jvestem os figurinos adequados s personagens. A con-cretude dos acontecimentos no palco impe um defini-

    tivo presente, um presente contnuo. Tudo acontece alie naquele momento. Os espectadores, ao invs de sereminformados a respeito de uma situao como aconteceao leitor de um romance ou conto, so colocados den-tro da situao que se desenrola, sendo envolvidos porela. O que propicia que o espectador experimente direta-mente a emoo do personagem, em vez de ler uma des-crio dela. Da ser considerada a forma mais concretapara se recriarem situaes e relaes humanas. A atmos-fera, ou clima, da cena est delineada pela luz, pela m-

    sica de fundo, mas, sobretudo, pela relao entre as per-sonagens que a criao dos atores instala ao deixar ema-nar suas emoes e estados de esprito. Tudo o que concreto e objetivo est posto na cena. E o subjetivo resultado da emoo, viva e presente, dos atores, recri-ando os interesses e desejos das personagens. O climasurgido da relao, de atrao ou rejeio, entre persona-

    Divulgao

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    gens, um dos fortes elementos constitutivos da cenateatral. Alguns tericos acham que a essncia do teatro.A trama criada pelo enredo, a rede de relaes ou aindao que se chama de tecido relacional estabelecido entre aspersonagens, que produz e justifica a palavra. No o

    contrrio. Da a concluso de Ezra Pound: O processode expresso no teatro no constitudo por palavras, maspor pessoas que se movem no palco utilizando palavras.

    Umberto Eco diz que todo texto, no apenas o tex-to teatral, uma mquina preguiosa que exige do leitorum duro trabalho de colaborao para preencher os es-paos do no-dito ou do j dito que no ficou claro. Otexto teatral, alm de preguioso tambm furado comoum queijo suo, devido sua relao de dependnciacom o espetculo, que o leva a contar

    ou pressupor o uso de uma miradede signos, ou elementos de comunica-o impossveis de serem grafados, eque esto alm do alcance e at do in-teresse do dramaturgo, como gestos,movimentos, atitudes, maneiras de fa-lar, maneiras de olhar, hesitaes, re-peties, pausas, imprecises, titubei-os etc., que se agregam s palavras es-critas. Ao ler um texto, damos a ele aentonao que imaginamos, de acor-do com o sentido que identificamospara a cena. Na cena, porm, o senti-do que a memria registra est maisvivo na maneira como a frase ditado que como grafada. O texto tea-tral tem essa curiosa caracterstica: uma escrita destina-da a ser falada. uma fala escrita espera de uma voz,uma inteno, um ritmo, uma emoo, enfim esperade um ser humano que lhe empreste corpo e vida.

    Na tentativa de que suas palavras traduzam, com a

    maior clareza possvel, suas intenes, os dramaturgosteatrais sugerem explicitamente nos textos das suas peasquais so essas intenes, utilizando expresses brevesentre parnteses, chamadas rubricas, antes do dilogo quea personagem deve falar. Isto porque a maneira com queo ator fala e age durante a fala revela bastante da prpriapersonagem, da sua inteno e da sua relao com a per-sonagem qual se dirige. No exemplo anterior, do alunoque entra na classe, o autor poderia dar uma das seguin-tes indicaes:

    ALUNO- (Gentil) Bom dia, fessora.ALUNO- (Eufrico) Bom dia, fessora.ALUNO- (Zangado) Bom dia, fessora.ALUNO- (Irnico) Bom dia, fessora.ALUNO- (Sedutor) Bom dia, fessora.

    ALUNO- (Acanalhado) Bom dia, fessora.

    Se o ator de acordo com a interpretao do dire-tor realizar as indicaes da rubrica, teremos as mes-mas palavras, grafadas da mesma maneira, podendo sig-nificar intenes completamente diferentes em cada in-dicao, variando para isso, tons, ritmos, inflexes. E esseleque de possibilidades se amplia ainda mais se essas pa-lavras forem acompanhadas de gestos, olhares e atitu-

    des. De maneira que os espectadores

    se perguntaro se a personagem estsendo sincera, sarcsti ca, fria, caloro-sa, hostil, vulgar ou grosseira. O es-pectador est livre para, seguindo suasensibilidade, perceber qual foi a in-teno. E o teatro, por ser uma obrafeita ao vivo por vivos a para vivos,subsiste das cumulativas e sucessivasinterpretaes dos vrios artistas queparticipam do seu processo de cria-o. E, embora o autor tenha sugeri-do que o Bom dia seja dado comironia cada ator encontrar umaforma muito pessoal de ser irnico.E poder, s vezes, estar mais pertodo acanalhado do que do irnico.

    Sem excluir a hiptese de que o diretor, no seu entendi-mento da pea, da personagem, da cena e da fala busqueuma inteno imprevista, mas nem por isso menos cria-tiva o que est dentro da pluralidade cumulativa deinterpretaes que um espetculo comporta.

    Pretendi com este singelo exemplo esclarecer que adinmica do teatro tanto da criao quanto da fruio muito distinta da leitura de um romance, embora apea teatral seja escrita no mesmo cdigo grfico.

    Chamou-se Dramaturgia a arte de escrever peas te-atrais, e dramaturgo, o seu escritor. A dramaturgia desig-na o conjunto dos elementos constitutivos da narrativadramtica: a criao escrita das personagens; a ma-neira escrita como essas personagens se relacionam,que so as cenas; a maneira escrita - como as cenas se

    Ontem , hoje e sempr e, aquie em qualquer l ugar, pode-se fazer teatr o j se fez,

    se faz e se far! eventualmente sem palco,

    sem ilum inao, semfigurino, sem m sica, sem

    m aquiagem . Mas im possvel fazer teatro sem

    o hom em , que , aom esm o tem po, a matria-prim a, o m eio e o destino

    da criao teatral.

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    sucedem, que a estrutura. A reiterao da palavra es-crita tem a inteno de grifar que o dramaturgo as escre-veu. Criou, portanto, como um escritor: usou a lnguapara registrar num papel sua pea teatral que, depois,num outro momento, distinto daquele em que escre-

    veu, ser encenada por um diretor, representada por ato-res e atrizes, num ambiente criado pelo cengrafo, tra-

    jando figurinos criados pelo figurinista, usando maquia-gens criadas por um maquiador etc. etc... enfim, envol-vendo todo o espectro de profissionais que participamda criao de um espetculo teatral. Mas, voltando aotrabalho do dramaturgo, numa simpl ificao que favo-rea o entendimento preliminar, uma pea teatral umaobra escrita, do gnero narrativo dramtico, constitu-da de cenas que se sucedem, nas quais

    as personagens se relacionam. Drama-turgo o autor da pea teatral; dire-tor o autor do espetculo teatral realizado com a prpria pea e comos atores, cengrafos, figurinistas, m-sicos, iluminadores etc. etc.

    Como o teatro fez do homem de todos os homens o centro do seuinteresse, a dramaturgia faz das perso-nagens de todas as personagens ocentro do seu interesse. Por isso, diz-se que o teatro antropocntrico: alao homem ao centro do mundo, e fazdo palco o altar de celebrao da natu-reza e da condio humanas. Uma personagem no ,nem pode ser um homem real bom que se distinga.O homem s existe, digamos in natura numa socie-dade concreta, sob a passagem concreta do tempo, queo envelhece a cada segundo, tendo a sua dimenso bio-lgica, na qual, a cada instante, clulas nascem e mor-rem, e a sua dimenso cultural, na qual sofre por um

    time de futebol ou acredita numa religio. O homemreal sente dor de cabea, lava as mos antes das refeies,gasta um tempo fazendo as refeies, dorme oito horaspor dia, perde muitas horas com a higiene pessoal, ou-tras tantas diante da televiso... enfim, vive a sua vidaem estado natural. No assim com a personagem defico, que no lava as mos antes das refeies e, namaior parte das peas, no se os v fazendo as refeiese, s vezes, nem se fala em refeio; tampouco vo aobanheiro nem gastam horas debaixo do chuveiro, sim-

    plesmente porque essas trivialidades, comuns a todos oshomens, no so essenciais de novo o teatro como artedo essencial percepo da personagem pelo pblico.Quando, eventualmente, h cenas de jantares ou embanheiros porque algo de muito importante para a per-

    sonagem essencial sua percepo pelo pblico ou sua trajetria a partir dali acontecer durante o banhoou o jantar, porque no se deve montar escrever, ensai-ar e encenar cenas que no sejam essenciais compre-enso das personagens, ou que no contribuam para oentendimento da narrativa.

    Como foi dito, a personagem de fico no , evi-dentemente, uma pessoa real, mas o dramaturgo se em-penha, faz todo o esforo para que ela d a impresso,

    para que o espectador a acolha, como

    se fosse. Na verdade, numa encena-o teatral, o que h de real a pla-tia, porque o que acontece no palco uma mentira, minuciosamente in-ventada, em que todos diretor, ato-res, cengrafo, figurinista etc., se es-foram para fazer crer que, mesmo nosendo real, verdadeira. E o especta-dor, mesmo sabendo que aquele ver-dadeiro no real, suspende tempo-rariamente as suas dvidas e d umvoto de confiana, desde que aquiloque est sendo mostrado seja plaus-vel e verossmil. Uma personagem de

    fico um recorte no que seria a vida de um homemreal, no qual aparecem enfatizadas e realadas aquelascaractersticas que so definidoras da sua personalidade,do seu carter, dos seus desejos, dos seus sonhos e ambi-es, e no somente as caractersticas objetivas, mas tam-bm diria at, sobretudo as subjetivas. E isso precisaser feito com rigor e preciso porque h personagens que

    s aparecem em trs, quatro ou cinco cenas. H casosem que s aparecem em uma cena e, no entanto, preciso que o espectador consiga perceber, intuir ou adi-vinhar o ser humano que se oculta atrs daquelas pala-vras, ou na situao mostrada naquela nica cena. Pode-se deduzir que a personagem descontnua o homemreal contnuo, sua vida no pra, nem mesmo quandodorme, posto que sonha , mas deve ser mostrada comose fora contnua. Isto significa que a personagem evoluidurante a narrativa e esta uma observao importan-

    O texto teatral tem essacuri osa caracterstica:

    um a escrita destinadaa ser falada. um a falaescrita espera de um avoz, um a inteno, um

    ritm o, um a em oo,enfim espera de umser hum ano que lhe

    em preste corpo e vida.

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    te. De uma cena para outra, a personagem sofre mudan-as os acontecimentos da pea mudam o seu estadoemocional e lhe do mais informaes sobre a trama ou seja, sobre o seu mundo; e, em funo do que vaiaprendendo e sentindo, ela vai mudando, de modo que,

    do incio ao fim da pea, todas as personagens devemmudar. Os fatos da pea devem ser tais que levem a mu-danas de conscincia sobre a sua situao, sobre omundo e sobre os homens de atitudes, ou de percep-o da vida um foi desmascarado, outra teve o seu amorreconhecido, um foi preso, outro mor-reu, uma arranjou o emprego que sonha-va, outra foi demitida no trabalho, umaconverteu-se ao espiritismo, outro se re-conciliou com o pai etc. etc. A rigor, as

    mudanas vo acontecendo degrau a de-grau, ao longo da pea; cada fato mudaalguma coisa, ou melhor, em cada cenaa personagem acrescenta alguma coisa asi e/ou sua percepo da trama e domundo, em relao cena anterior oque significa que a personagem evoluimesmo estando fora de cena. De modogeral, pode-se dizer que cada fato mudaalgum, ou muda alguma coisa em to-das as personagens etc. f rustrante parao espectador a narrativa dramtica em que as persona-gens terminam do mesmo jeito que comearam. No mu-daram, no evoluram, no foram premiadas, no forampunidas. Tal situao nega at mesmo o que acontece navida real, na qual um acontecimento que interessa e en-volve, de forma direta e indireta, vrias pessoas, quandodo seu desfecho sempre uns so premiados e outros pre-

    judicados, em diversas propores pode ser que, emcasos excepcionais, haja os que no sofram quaisquerconseqncias, o que no o mais fecundo para a dra-

    maturgia. A frustrao de assistir uma pea em que aspersonagens no se transformam durante sua apresenta-o advm de tal desfecho no acrescentar ao espectadornenhum crescimento humano, nenhum valor.

    Mas h um valor da personagem, que est acima dequalquer outro: a personagem de fico e no apenas deteatro precisa ter vida prpria, no pode ser um bonecoque meramente vocalize as idias do autor, nem pode secomportar como se estivesse sob uma camisa-de-fora quedelimite suas atitudes, seus sentimentos, seus pensamen-

    tos, suas idias, suas palavras. Numa das tentativas de de-finio, o prprio teatro entendido como a relao queos atores portanto, ao vivo, na cena conseguem esta-belecer entre as personagens que interpretam. A essnciado teatro estaria na relao de dio, amor, compreen-

    so, carinho etc. na interao, na maneira como as per-sonagens reagem uma outra, na concretude da situaorecriada no palco o que refora a idia de que o fatoteatral s ocorre na sua realizao cnica. Grandes perso-nagens tm vida to prpria e espontnea, que ultrapas-

    sam, transcendem a prpria trama naqual originalmente sugiram, ganhandovida autnoma e pblica como ocaso, entre outros, de dipo, de Hamlete de Galileuno teatro; de Dom Quixo-

    te, Sancho Pana, Dimitri Karamazov eMadame Bovary, na literatura.

    Will iam Shakespeare

    Montagem romantizada de Romeu e JRomeu e JRomeu e JRomeu e JRomeu e Ju l ie tau l ie tau l ie tau l ie tau l ie ta deShakespeare, em Berl im , 1886. Divulgao.

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    Ser m ais fecunda adram aturgia que, tendo

    um protagonistaarr ebatado e inteligente,

    tenha um antagonistaigualm ente apaixonado

    e astucioso e elesno existem para se

    degladiarem , mas paratentarem realizar seus

    desejos e serem felizes...

    Assim como ocorre com as pes-soas reais, h trs aspectos fundamen-tais na personagem. A primeira a suarelao com o trabalho, ou seja, a re-lao objetiva do homem com o

    mundo, uma atividade que exige ouso da razo. Pela sua natureza hu-mana, o homem um ser que traba-lha e no me refiro apenas a ter umemprego. Um ndio, por exemplo,no tem emprego, mas trabalha: caa,pesca, colhe frutas, constri a oca, aponte, a rede etc. O trabalho a rela-o objetiva do homem com o mun-do. Com o seu trabalho, o homem

    muda algo do mundo que o cerca, transforma a rvoreem mesa, a chapa de ao em navio etc.A outra relao fundamental da personagem com

    o afeto, ou seja, a relao subjetiva do homem com osque o cercam. uma relao misteriosa porque no pas-sa pela razo, uma construo da subjetividade huma-na: o homem ama, mas no sabe explicar porque ama;assim como odeia, tem compaixo, tem mpetos assassi-nos etc. Numa dramaturgia fecunda, as personagens tmrelaes com o trabalho e o afeto, sejam elas explcitasou ocultas, podendo ser deduzidas. Personagens que es-to bem resolvidos no trabalho e no afeto amam o seutrabalho, e amam o (a) parceiro (a), conquistaram o queh de essencial na vida; so as pessoas que chamamos defelizes. Personagens felizes, que ns todos gostaramosde ser na vida real, no so muito teis dramaturgiapelo fato de j terem conquistado, digamos, tudo, ouquase tudo, do que essencial vida, e, por isso, sofre-rem menos inquietaes e menos insatisfaes, alm deterem vontades menos intensas. Parafraseando o poetaque disse, O que mais sinto em mim o que me falta,

    pode-se dizer que a ao dramtica impulsionada pelaslacunas das personagens que, ao sentirem o forte desejode supri-las, so levados ao. Personagens fecundos,com vocao para protagonistas, so os que padecem degrandes infelicidades, grandes insatisfaes, que vivempaixes arrebatadoras sem serem correspondidos, que tmdesejos avassaladores difceis de serem satisfeitos, que tmsonhos difceis de serem realizados, insurgem-se contraa injustia, perseguem grandes utopias. O homem quedeseja ardentemente ficar rico; a mulher que sonha ter

    um beb e no consegue; o rapaz apai-xonado pela moa que no correspon-de ao seu amor, o detetive que decidedesvendar o crime; a cientista que tra-balha dia e noite para encontrar a cura

    de uma doena etc.A terceira caracterstica da perso-

    nagem, no que repete o homem real, que somos seres contraditrios: que-remos e, ao mesmo tempo, no que-remos; amamos e, ao mesmo tempo,no amamos; temos coragem e, aomesmo tempo, temos medo; etc. Isso da natureza humana. Personagenssem contradies so os heris, que,

    em geral, divertem as crianas em desenhos animados ehistrias em quadrinhos. Como, porm, jamais tm con-tradies, jamais tm medo, jamais hesitam e jamais per-dem suas batalhas, tornam-se lineares, previsveis e inu-manos, embora por serem fantasiosos, possam ser even-tualmente teis numa pedagogia de valorizao da auto-estima. Personagens com contradies so mais pareci-dos com os homens reais e, por isso, mais humanos.

    A construo clssica da narrativa dramtica apia-se em uma personagem protagonista, que deseja avassa-ladoramente alguma coisa saber qual a sua verdadei-ra identidade (dipo Rdipo Rdipo Rdipo Rdipo Reieieieiei, de Sfocles), ou identificarquem assassinou seu pai (HamletHamletHamletHamletHamlet, de Shakespeare), ouconvencer autoridades religiosas de que a terra gira emtorno do sol (Galileu GalileiGalileu GalileiGalileu GalileiGalileu GalileiGalileu Galilei, de Bertolt Brecht). Se oprotagonista deseja alguma coisa, quem, ou aquilo queo impede de realizar o seu desejo o antagonista que, svezes, pode ser vrios. Se o protagonista, digamos, dese-

    ja apaixonadamente uma mulher que, por sua vez, sesente atrada por outro homem que, sabendo ou no,dificulta ou impede a realizao do desejo do protago-

    nista, o seu antagonista. Ser mais fecunda a dramatur-gia que, tendo um protagonista arrebatado e inteligente,tenha um antagonista igualmente apaixonado e astucio-so e eles no existem para se degladiarem, mas paratentarem realizar seus desejos e serem felizes: a vida, in-

    justa e cruel, que os colocou em campos opostos. Se oscontendores tm fora, astcia e inteligncia que se equi -valem, a disputa entre eles ser encarniada e ter vitri-as parciais, ora de um, ora de outro, e o desfecho poderser favorvel tanto a um quanto ao outro para o espec-

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    tador, esta a narrativa mais emocionante. E, ao falar nacontenda, nesse caso, de vrias batalhas, tornou-se expl-cito um fundamento da narrativa dramtica: o conflito.O princpio dinmico da dramaturgia o conflito. Semconflito explcito, velado ou oculto, fsico, intelectual

    ou psicolgico no h narrativa dramtica.A funo do antagonista no apenas a de opor-se,

    por capricho ou idiossincrasia, ao protagonista; aconte-ceu de a vida dispor que ambos desejem a mesma coisa,ou a mesma pessoa que, em princpio, se pe como indi-visvel ou impossvel de ser compartilhada. Cada qual aseu modo tentar conquistar a coisa, ou a pessoa. Perdu-rando os insucessos, podem concluir que a vitria deum s ocorrer com o fracasso definitivo do outro, oumesmo com a eliminao do outro s vezes, at mes-

    mo a eliminao fsica. Imagine-se uma outra situao:um alpinista que galga uma montanha. O antagonista no caso, vrios que impede a realizao do seu desejode chegar ao cume, no uma pessoa; a natureza ovento, o frio, a neve, a chuva, a pouca visibilidade e a

    sua habilidade o gancho que no prende com firmeza,a corda que est puda, o p de apoio que escorrega. Umexemplo mais sutil e complexo, embora comum: o ra-paz ama a moa que no o ama. A moa no a antago-nista dele, ela o objeto do seu desejo. O antagonista a

    falta de amor por ele; e ela no comanda o amor, noescolhe a quem ama. Para realizar o seu desejo, ele terpela frente a rdua tarefa de transformar em amor por elea atual indiferena ou mesmo amizade dela.

    A estrutura clssica da narrativa dramtica a ma-neira como os acontecimentos ou as cenas so ordena-dos foi estabelecida por Aristteles, no sculo IV antesde Cristo, e segue vlida e inabalvel, do mais experi-mental teatro europeu ao mais comercial cinema ameri-cano, o que no quer dizer que no tenha sido, e ainda

    possa ser, refutada por quantos queiram escapar da es-trutura clssica. Disse Aristteles que a estrutura da tra-gdia grega a experincia de vinte e cin-co sculos confirma que o conceitopode ser generalizado para quase to-

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    das as peas divide-se em trs par-tes: a apresentao, o desenvolvi-mento e o desfecho.

    Na apresentao, que o incioda pea, expe-se o tema ou o pro-

    blema que ser tratado. De formasimplificada, o protagonista explici-ta, ou nos deixa perceber, qual oseu sonho ou desejo, assim como asrazes, os meios e as possibilidadesde que dispe para realiz-lo. Aomesmo tempo, dado ao espectadorsaber quem o antagonista, ou an-tagonistas, e as suas razes. Ficam,pois, apresentados o objeto da dis-

    puta e os contendores. Desse mo-mento em diante, pode se acompa-nhar os desdobramentos do conflito que a segundaparte, ou etapa intermediria da estrutura, chamada de-senvolvimento.

    No desenvolvimento, que em geral a parte maislonga da narrativa dramtica, ocorrem os conflitos e en-frentamentos entre protagonista e antagonista, que pode,ou no, envolver seus respectivos aliados que se aliam, claro, para tambm tentarem realizar seus prprios de-sejos e sonhos - utilizando seus ardis e as suas estratgias.Vencer o mais forte, o mais habilidoso, o mais inteli-gente, o que tiver mais sorte. O impondervel, que podedeterminar a vida dos homens, tambm pode determi-nar a vida das personagens. Como foi dito, ser maisfecunda a dramaturgia que tendo um protagonista arre-batado e inteligente tenha igualmente um antagonistaapaixonado e astucioso. Isso significa que, do ponto devista do desenvolvimento, podero se suceder cenas ines-peradas, surpreendentes, mirabolantes e emocionantes.Algumas podero ser vencidas pelo protagonista, com

    tal equilbrio na disputa, outras pelo antagonista demodo a manter sempre acesa a expectativa quanto vi-tria final do desfecho.

    E, com o desfecho, chegamos ao final da pea noainda desse texto, mas tambm ele no tarda. Evidente-mente, o desfecho um ponto decisivo para a pea. De-cisivo, sobretudo, porque so as suas ltimas emoes,quase sempre as mais definidoras a ltima impresso a que costumamos guardar para sempre. Entre outrosmotivos, porque ela parece ser a razo e a motivao para

    se ter escrito, dirigido, produzido, ensaiado e exibido oespetculo com essa histria. E, por fim, pela condutadas personagens revela o que o autor pensa sobre a natu-reza e a condio humanas. O teatro, alm de ser ummeio de reproduzir e avaliar normas de comportamen-to, os valores do pacto de convivncia tica e moral e daprpria vida, tambm um meio de se pensar o homeme a sociedade; , enfim, um processo cognitivo. Da asua funo e atributo de, pela concretude com que ex-pe o comportamento humano, ser mais eficaz do quemeios mais abstratos para pensar as situaes que envol-vem o homem. Isso explica o carter tico e moral de quese reveste o desfecho. Exemplifico: se, ao final de umapea, o triunfante protagonista o marido que espanca aesposa, poder causar a repulsa dos espectadores. Da mes-ma maneira que se, ao final, quem acabar feliz for umtipo racista. Com tais desfechos, premia-se a perversidade,glamoriza-se o preconceito e legitima-se a injustia pelomenos no plano da prpria obra. Isto no quer dizer, po-

    rm, que a vitria deva ser sempre do bem e dos bons ainda que este possa ser o desejo do autor, no se trata deuma verdade humana e corre o risco de dar uma dimen-so ingnua e idealizada s personagens.

    Como as pessoas reais, as personagens usam as pa-lavras, e dialogam umas com as outras. Mas sabemosque as palavras dizem com alguma clareza o que pensa-mos, ou seja, o que se d no nvel da razo humana. Aspalavras so teis para o entendimento racional, a com-preenso da lgica de uma argumentao. Nesse senti-

    Marcos Olvisi, Betina Viani e outros em A m o r t aA m o r t aA m o r t aA m o r t aA m orta, de Oswald de Andrade. Programa Teatro Aberto.

    Acervo pessoal de Alcione Arajo.

    DRAMATURGIA

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    do, certamente a maior inveno hu-mana, extraordinria criao coletivade toda a humanidade, de todas aspocas. A razo, porm, apenas umdos atributos do homem, insupervel

    para algumas atividades humanas, massem a mesma eficincia para outras,em especial para aquelas de naturezasubjetiva, que transitam por reas pou-co conhecidas, encobertas por susce-tibilidades radicalmente pessoais, cris-talizadas ao longo da histria de umavida, onde so produzidas as sensa-es, as impresses, as emoes etc. Em certas situaesdeste tipo, o silncio, o olhar ou um gesto podem alcan-

    ar eloqncia maior do que muitas palavras. E mesmoquando uma pessoa fala suas sensaes, impresses e sen-timentos podem criar turbulncias interiores que nadatm a ver com as palavras que esto sendo ditas. Assim

    como quem ouve: certas palavras po-dem atingir as pessoas com fora ca-paz de pr em erupo vulces que pa-reciam extintos. H uma arte de dizero indizvel a poesia que o faz cri-

    ando metforas e suscitando imagensque induzam percepo, pela sensi-bilidade. Por todas estas razes, os di-logos no teatro costumam no serbem compreendidos.

    H uma idia generalizada de queos dilogos so a essncia da narrati-va dramtica. uma idia falsa. Na

    verdade, o dilogo no sequer um critrio absolutopara afianar o carter dramtico de um texto. H quem

    leia as peas lendo estri tamente os dilogos equvocoto grave quanto freqente. E surge uma contradioaparente: o dilogo no importante, mas na leitura deuma pea o que se l so os dilogos. Na realidade, as

    O teatro, alm de serum m eio de reproduzir

    e avaliar norm as decomportamento, os valores

    do pacto de convivnciatica e m oral e da prpr iavida, tam bm um m eio

    de se pensar o homem e asociedade; , enfim , um

    processo cognitivo.

    Mirian Mehler e Othon Bastosem PPPPPequenos bu rguesesequenos bu rguesesequenos bu rguesesequenos bu rguesesequenos burgueses. Acervo pessoal de Alcione Arajo.

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    palavras, o componente li terrio do material dramti -co, so efetivamente secundrias. Sua supervaloriza-o talvez se deva ao fato de se ler uma pea pela leit u-ra dos seus dilogos. Porm, se observarmos o dilogoent re pessoas na vida real, entenderemos melhor a sua

    funo na dramaturgia. M uito mais do que ler os di-logos, ler uma pea perceber o que acontece na rela-o entre as personagens e, ao mesmo tempo, o queacontece no interior de cada personagem. Ora, assimcomo uma pessoa real no apenas o que ela diz, umapersonagem no pode ser completamente percebidapelos seus dilogos. Um exemplo densamente dram-

    tico para facilitar a compreenso.

    Imagine que uma pessoa diga outra: Preciso lhedar uma notcia muito triste. A sua me acaba de mor-rer. Esta uma das notcias mais difceis de dar. Quema enuncia, vive um conflito interior, entre a necessidadee a urgncia de dizer, e a dificuldade de dar a pssima

    notcia. J quem recebe tal notcia, vive instantes de tur-bulncias to intensas que so quase impossveis de des-crever. O sangue corre mais rpido e desaparece das fei-es, que ficam plidas; o corao dispara em descon-trolada taquicardia, os nervos so atingidos e surgem tre-mores pelo corpo, um suor frio surge nas tmporas e nasmos, os olhos crescem dando lugar a uma expresso dehorror. Ao mesmo tempo, desconhecidos processos ps-quicos so acionados. O sentimento de perda se mistura memria, ao mesmo tempo em que imagens aleatrias

    da falecida se sucedem. Cresce um vcuo interior quelembra o mergulho num abismo. E tudo ocorre ao mes-mo tempo, de maneira precipitada, descontrolada, forado domnio da razo. Como a fala uma expressoque passa pela razo, durante esse tempo de turbuln-cia interior quase impossvel falar de forma articula-

    da, sensata, inteligvel. Se alguma manifestao so-nora ocorrer, muito provavelmente sero rudos in-compreensveis, ininteligveis, sem sentido. jus-tamente na capacidade de transmiti r toda essa mi-rade de sentimentos e, sobretudo, na maneia su-til de transitar de um para o outro, que est o ta-lento para representar, de que tanto depende o te-

    atro. S aps ter vivenciado o impacto, depois deter serenado a turbulncia interior, a pessoa que ou-

    viu a notcia poder dizer alguma coisa poder, agorasim, dialogar. E o que dir algum, aps saber da mor-

    te da prpria me? O mais importante para a narrativadramtica no o que dir ela, mas o que sentiu e fezos espectadores sentirem, ao ouvir a notcia. Mais doque as palavras que possa dizer, a reao aps receber

    esta informao revelar sua relao com a me e, emconseqncia, o tipo de pessoa que . O significado dodilogo teatral no apenas o das palavras ditas, o seuvalor retrico exteriorizado, mas o valor que ganha nointerior da personagem, a sua repercusso introspectivaque certamente a induzir a mudanas de atitude quepodero dar novos rumos trama.

    Ler uma pea de teatro no ler os dilogos, mas asrepercusses em cada personagem do que foi dito, a manei-ra particular e pessoal com que cada personagem absorve as

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    Ler um a pea deteatro no ler osdilogos, m as as

    repercusses em cadapersonagem do que foi

    dito, a m aneira particulare pessoal com qu e cadapersonagem absorve aspalavras enunciadas

    as m aneiras de percebere reagir so reveladorasda ndole e do car ter

    de cada um .

    palavras enunciadas asmaneiras de perceber ereagir so reveladoras dandole e do carter decada um. A leitura de

    uma pea no se limita,portanto, s palavras dodilogo, mas estende-se repercusso das pala-vras em cada persona-gem. L-se a subjetivida-de das personagens e asrelaes entre elas, noapenas as palavras. O dramaturgo, dife-rentemente do romancista, no poden-

    do desvelar as intenes das persona-gens, oculta-as na sua maneira de falar,na maneira de silenciar, na sua maneirade perceber e na sua maneira de reagir.Personagens ocultam-se nas falas, nossilncios, nas percepes e nas reaes.Elas se desvelam nas intenes e nasaes.

    Muitas outras informaes esto,se no ocultas, subtendidas nas falasdas personagens. E empenhar-se emdesentoc-las, traz-las luz e enten-d-las o objetivo da leitura de umapea. Imagine a cena em que uma per-sonagem diz outra: Corra at Far-mcia Popular e compra o remdio damame. evidente a pressa para comprar o remdio,pois a ordem para ir correndo. Signif ica que o medica-mento deve ser aplicado ou tomado com urgncia. Quemfala est apressado e parece aflito. Parece que a me noest bem, talvez at esteja passando mal, quem sabe em

    estado grave. E trata-se de doena conhecida, o nomedela no mencionado, nem o do remdio. Sugere al-gum medicamento de uso constante, cujo nome todosconhecem. Por que um medicamento, ao mesmo temporotineiro e importante, no est mo? Parece que apessoa responsvel no notou que estava acabando. Ounotou e, por negligncia ou esquecimento, no comprou.H um indcio curioso na fala: a referncia FarmciaPopular. Designar, numa emergncia, o nome do estabe-lecimento comercial uma informao dramtica. E, na

    nossa cultura, o nomePopular identifica co-mrcio para o povoque, no Brasil, sem-pre entendido como

    pobre. Apesar da ur-gncia, o medicamen-to dever ser compra-do numa farmcia quetem preo acessvel apessoas pobres. Na cor-reria da emergncia,opta-se no pela farm-

    cia mais prxima ou mais completa,mas pela de preo baixo: as persona-

    gens so certamente pobres. O quecria uma possibilidade de muita dra-maticidade: a de que o remdio nofoi comprado por falta de dinheiro.

    Nesse singelo exerccio de des-cortinar uma curta fala, pode-se per-ceber o quanto o dilogo teatral ocul-ta intencionalmente informaes im-portantes para se entenderem as cir-cunstncias em que as personagens es-to metidas, as necessidades e emo-es que impulsionam a ao e as ra-zes para as personagens agirem.

    Uma ltima observao, quepode parecer bvia, mas estou segurode que no o da a insistncia em

    repeti-la toda vez que falo ou escrevo sobre essas duasou trs coisas que sei da dramaturgia. A pea teatral no escrita para ser lida, mas para ser encenada. Todas assuas virtudes e deficincias, que podem eventualmenteno ser percebidas numa leitura silenciosa individual,

    crescem e se destacam quando lidas-interpretadas poratores, em voz alta antes mesmo de ser encenada. Este o momento de, se for o caso, fazer ajustes e correesou mesmo reescrever a pea. E, quando, enfim, ganha opalco numa encenao completa e acabada, as virtudese deficincias agigantam-se... Mas, a essa altura, caberao pblico dar as suas impresses.

    ALCIONE ARAJO Curador do Programa de Leitura da Petrobrasda Bacia de Campos.

    RitualDionisaco.

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    Comeo em estilo mais ou menos bblico, mais ou

    menos auto-ajuda, mas a historinha vale a pena.

    Um jovem marinheiro admirava muito o coman-

    dante de seu navio e resolveu imit-lo em tudo para um

    dia ser to sbio quanto ele. Durante muitos anos, o

    jovem observou todas as aes de seu comandante e dia

    a dia foi se aprimorando no conhecimento dos segredos

    do mar: as direes dos ventos, a observao das estre-

    las, os modos de enfrentar as tempestades, enfim, toda a

    cincia que o velho lobo do mar dominava como nin-

    gum. M as uma coisa intrigava o aprendiz: todas as ma-

    nhs o velho comandante fechava-se na cabine de co-

    mando, tirava do bolso interno do casaco uma chave da

    qual nunca se separava, abria uma pequena gaveta, tira-

    va dela uma folha de papel amarelecida pelo tempo, lia o

    que estava escrito no papel, voltava a guard-lo

    cuidadosamente, passava a chave na gave-

    ta, colocava-a de volta no bolso e s

    ento comeava seu novo dia. Tudo

    isso o jovem marinheiro via por uma fres-

    ta da cabine, emocionado e assustado.

    Imaginava que naquele papel estaria a

    lio suprema, conhec-la ia completar

    sua formao.

    No dia em que o velho lobo do mar

    morreu, o marinheiro, que agora j era seu

    O diretorde teatro, um

    manual ouuma biografia

    no autorizada?

    ADERBAL FREIRE-FILHO

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    imediato e passaria a comandante do navio, quis logoconhecer a ltima e mais preciosa lio. Com a chavefinalmente nas mos, trancou-se na cabine, abriu a gave-ta, pegou o velho papel e, cheio de emoo, preparou-separa ler. Estava escrito: bombordo esquerda e esti-

    bordo direita.No devia ser eu a escrever este manual, ou que

    nome deva dar a esse texto. J perdi a chave da gaveta eno sei mais de que lado bombordo, de que lado estibordo. verdade que no tenho nada da sabedoriado velho comandante dessa histria. A nica coisa queme aproxima dele o tempo de mar.

    Entrei nesse barco, o teatro, exatamente no ms demaio de 1954, no papel de um menino, personagem domelodrama representado por um grupo amador de alu-

    nos de uma faculdade de filosofia. Como eles no ti-nham nenhum menino prodgio estudando (ou ensinan-do) filosofia na faculdade, valeram-se de um medocrealuno do colgio que funcionava no mesmo prdio, eu.Quando escrevo isso, em abril de 2006, j se passarammais de 50 anos.

    Nunca sa desse barco, nunca deixei de navegar. Jpus em dvida todas as regras, j transgredi todas as leis,

    j fiz como devia e como no devia ser feito, j tive airreverncia dos jovens e, mesmo velho lobo desse mar,continuo transgressor. No sei mais as primeiras lies,no devia escrever este manual.

    Mas se, teimoso, aceito o convite e escrevo, traoum rumo: buscar no o caminho das grandes navega-es, mas buscar obstinadamente a memria de que lado bombordo e de que lado estibordo, tudo o que seprecisa saber para viajar. um risco navegar assim comonavego, com essa chave perdida. Escrevo para me salvar.

    Diretor?

    Com um ttulo importante e impreciso diretor essecidado cuida da organizao do espetculo teatral. O nomediretor serve para muita coisa, pode-se ser diretor de umcolgio, de uma empresa e, nesse caso, diretor de vendas,de pessoal, de marketing...

    Chamar o diretor de teatro de encenador talvez o iden-tifique melhor, embora muitos achem encenador umapalavra afetada. Houve um tempo em que, no Brasil, ele sechamou ensaiador. O mundo do teatro faz algumas distin-es entre esses nomes diretor, encenador, ensaiador

    com mais ou menos razo. A expresso francesametteur-en-scnetalvez deva seu uso universal felicidade da sua snte-se: aquele que pe em cena. Enfim, encenador.

    Coerente com a indefinio do ttulo que se d aesse oficial, tambm est a dificuldade de saber com pre-ciso o que resultado do seu trabalho. Como ele notem uma representao concreta no espetculo da es-pcie de representao que tm o autor, o cengrafo, o

    figurinista , especula-se sobre o que , enfim, responsa-bilidade dele. Sabe-se que ele assina o espetculo, isto ,que se atribui a ele, em ltima anlise, a autoria doespetculo, mas isso s o torna suspeito.

    Claro, o autor est representado pela histria, pelospersonagens, pelos dilogos etc.; o pblico v o cenrio,criao do cengrafo, naturalmente; as roupas exibem otrabalho do figurinista. Enfim, a contribuio de todos identificvel: do iluminador, do coregrafo, do compo-sitor. Do ator e do que ele faz, sobretudo, no se tem

    Molire.

    DIREO

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    dvida: eis o homem, eis a mulher. Mas nada material,palpvel, identifica o diretor, digo, o encenador.

    O que ele faz? Ou o que ele no faz?Quando comecei a construir espetculos, a pelo

    comeo dos anos 70, ainda eram os diretores, quase sem-

    pre, os responsveis pela iluminao. A sofisticao dosequipamentos, devida ao desenvolvimento tecnolgico,que no pra de desenvolver refletores de inmeros ti-pos, controles computadorizados etc., exigiu a especiali-zao de tcnicos e artistas que passaram a cuidar desseaspecto do espetculo.

    Tambm eram os diretores que faziam o trabalhoterico de aproximar texto e contexto, buscando, porexemplo, uma bibliografia capaz de elucidar aspectoshistricos, l iterrios etc., da pea a ser montada, cons-

    truindo para os atores e toda a equipe uma ponte en-tre o autor, a pea e a encenao que se fazia. Hoje,muitas vezes, esse trabalho passou para a responsabi-lidade de um outro colaborador, que ganhou at nomenovo, o dramaturgista.

    O diretor de teatro era tambm responsvel por defi-nir o movimento dos atores. Conheo o livro de um dire-tor da velha poca, editado na primeira metade dos anos50, Escola TEscola TEscola TEscola TEscola Teatral de Enseatral de Enseatral de Enseatral de Enseatral de Ensaiadoresaiadoresaiadoresaiadoresaiadores, em que seu autor,Otvio Rangel, se dedica quase exclusivamente a dizercomo marcar os movimentos numa comdia, num dra-ma, numa farsa etc. Quando se estabeleceu uma discus-so para distinguir entre teatro vivo e teatro morto, a pe-los anos 60, 70, essa funo foi muito atacada: seria castra-dora da liberdade criativa dos atores, no se deveriammarcar os movimentos; os atores deveriam obedecer aosseus impulsos, ser livres, sinnimo de vivos.

    Mas depois que passou o primeiro momento dessacrise de afirmao do novo teatro que precisava afirmarsua vida diante do cine-teatro e do tele-teatro ficouclaro (para muitos, no para todos, nada claro para

    todos) que no estava nos movimentos marcadosa causa de um teatro morto. Muitos diretores con-siderados hoje da vanguarda mais radical (sei, avanguarda no determina necessariamente um te-atro vivo, mas...) so quase coregrafos, seus es-petculos so identificados justamente pelos mo-vimentos que eles criam para os atores.

    No entanto, no contexto dessa discussosobre o movimento, apareceram novos pro-fissionais, que comearam responsveis pelo

    que se chamou de expresso corporal e hoje costu-mam assinar sua colaborao no espetculo como di-reo de movimentos.

    Bom, no fazem mais a iluminao, no trazem maisa teoria, nem so mais responsveis pelos movimentos

    dos atores... o que restou aos diretores que possa justifi-car sua responsabilidade pela autoria do espetculo?

    Um parntese histrico(ou m ais histrico ainda)

    Um processo idntico de subdiviso est, antes, naorigem do prprio ofcio de diretor, assim tambm queele nasce.

    Admite-se que os primeiros diretores de teatro fo-

    ram os autores. Quando os gregos escreviam suas trag-dias, eles prprios orientavam os atores sobre a maneiracomo queriam que as representassem. E por muito tem-po a funo de escrever peas de teatro esteve associada de dirigir o espetculo. Costumo dizer, meio sacana, queto novo quanto o ofcio do diretor que pe em cenapeas de vrios autores o ofcio do autor que d seutrabalho por terminado quando acaba de escrever.

    Por essa tese fla-flu de ruptura, o que antes era s oautor, algum que escrevia a pea e orientava sua ence-nao, se subdivide em dois personagens: o que escrevee o que pe em cena.

    Mas essa ruptura no cria logo um diretor de dedi-cao exclusiva, primeiro cola essa funo em algum

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    que j estava antes comprometido com o espetculo. possvel dizer que o primeiro diretor foi pro-

    vavelmente um dos atores, talvez o dono da compa-nhia, o l der da trupe, que orientava os outros na fei-tura do espetculo.

    Depois, correspondendo a uma poca em que ocenrio ganhou extraordinria importncia, o cengrafopassou a exercer a funo de organizador do espetculo,conduzindo os atores para o uso do seu cenrio, comoantes os autores j os tinham conduzido para a perfeitaexpresso (para o uso) da sua pea.

    Enfim, esse cara faz o qu?

    Despojado das atribuies de iluminar o espetcu-

    lo, de orientar a reflexo terica, de definir os movimen-tos dos atores e de outras mais, o que resta ao diretor?Fao duas observaes sobre esse fenmeno.

    A primeira admi tindo que de fato todas essas sub-divises tenham acontecido para dizer que boa essadesmontagem, pois a partir dela pode-se chegar essn-cia do trabalho do diretor. Por natureza, o essencial dotrabalho do diretor impalpvel, impreciso, mas nem

    por isso menos importante. Ele um poeta, como o au-tor. E enquanto o autor faz poesia com palavras, o dire-tor o poeta da cena.

    A segunda observao. Alguns diretores ainda ilumi-nam seus espetculos, outros no trabalham com drama-

    turgistas, os diretores de movimento nem sempre so osresponsveis pela coreografia do espetculo, mas peloaperfeioamento tcnico dos atores, em busca de um cor-po melhor treinado.

    Mas, mesmo imaginando um diretor que delega es-sas e outras funes a colaboradores, ele est apenas con-tando com especialistas para construir o espetculo deque , afinal, o autor. O iluminador, o diretor de movi-mento etc. trabalham afinados com o diretor e tm osconhecimentos tcnicos especficos para bem executar

    essas funes. Claro, preciso ressalvar que a criaoartstica desses colaboradores tambm valiosa, eles noso meros executores.

    A potica cnica, enfim, vale-se das possibilidadesdo palco para expressar o que a pea prope. O ence-nador tenta inteirar-se profundamente da histria quea pea conta, descobrir os seus significados, procurar asrelaes entre suas cenas e seus personagens, apreender

    DIREO

    Zygmunt Turkiw na direo, Nelson Rodrigues no texto e Santa Rosa na cenografia,nos ensaios de A mu lhe r sem pecadoA mu lhe r sem pecadoA mu lhe r sem pecadoA mu lhe r sem pecadoA mulher sem pecado, 1946. Cedoc / Funarte.

    Ziembinsk i, diretor e ator (1908-1978). Cedoc / Funar te.

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    P R O P O S T A D E L E I T U R A D E M U N D O A T R A V S D A N A R R A T I V A D R A M T I C A

    as suas idias, enfim, conhecer a pea e oferecer o palcopara sua expresso. E faz isso, sobretudo, com os ato-res, mas com quantos colaboradores quiser. No im-porta que seja ou no seja ele, diretamente, quem ilu-mine, quem isso, quem aquilo. Muitas funes so ne-

    cessrias para a expresso cnica, mas isoladamente nodefinem sua essncia.

    O processo, os ensaios

    Uma pea de teatro precisa de ensaios para virar umespetculo. Os ensaios concentram o processo de criaode um espetculo.

    Enquanto o autor escreveu a pea a partir da sua ima-ginao, da sua memria, das suas referncias etc., o dire-

    tor, atores e equipe de criao vo trabalhar a partir deuma pea escrita; vo, em certo senti-do, traduzir de uma linguagem a outraaquela pea, vo tir-la do papel e colo-c-la no palco. Claro, usaro tambm aimaginao, a memria, referncias etc.,mas para, de certa forma, recriar. Paraisso, precisam trabalhar coletivamente,estudar, procurar, discutir, experimen-tar, enfim ... ensaiar.

    Aqui devo fazer outro parntesepara dizer que estou falando do casomais geral, de montar peas escritas pre-viamente. M as devo ressalvar que este no o nico caso.Muitas peas so escritas e ensaiadas simultaneamente, oautor inspirando-se nas improvisaes dos atores, em umprocesso de mtua colaborao entre autor, atores, dire-tor. Muitos autores do teatro americano contemporneoescrevem segundo um processo de desenvolvimento dotexto em estreita colaborao com um diretor e, eventual-mente, com um grupo.

    Tambm muitos dos textos que conhecemos e en-cenamos foram ao menos reescritos em ensaios, comopode ser o caso de peas hoje clssicas de Shakespeare eMolire, autores que produziam diretamente para os ato-res de suas companhias. o caso ainda das peas de Ber-tolt Brecht. Brecht diz, por exemplo, de TTTTTurandoturandoturandoturandoturandot ou OOOOOcongresso das lavadeirascongresso das lavadeirascongresso das lavadeirascongresso das lavadeirascongresso das lavadeiras, que uma pea inacabada,apenas porque no chegou a ensai-la (quando, certa-mente, iria reescrev-la).

    Ento, aos ensaios.

    Georges Banu, crtico francs, autor de importantesestudos sobre o teatro de Peter Brook, publicou recente-mente um interessante livro sobre os ensaios de teatro(Les rptitions de Stanislavski aujourdhui, ALes rptitions de Stanislavski aujourdhui, ALes rptitions de Stanislavski aujourdhui, ALes rptitions de Stanislavski aujourdhui, ALes rptitions de Stanislavski aujourdhui, ActesctesctesctesctesSud,Sud,Sud,Sud,Sud, 2005), com captulos que procuram mostrar o tra-

    balho prtico de vrios diretores, de Stanislavski at hoje.Na introduo dessa compilao de escritos e reflexessobre a maneira de ensaiar de alguns dos diretores maisrepresentativos do sculo XX, Banu, citando Kleist, falados ensaios como da elaborao progressiva das idi-as. Diz: o estudo inacabado de Kleist (...) me apareceucomo a referncia terica capaz de fundar a atividadepreparatria do diretor de teatro. Os argumentos do tex-to, com uma evidncia luminosa, apontam para o pro-cesso mesmo dos ensaios guiados por um lder, para

    quem ensaiar se entregar, justamente, elaborao pro-gressiva das idias... esse conceito que quero desta-

    car, o da sala de ensaios como o ateli-er do artista diretor de teatro, ondeele estuda, experimenta, compe, re-faz e finalmente constri o espetcu-lo. Os editores do livro citado, deBanu, dizem textualmente: a sala deensaios para o encenador o que oatelier para o pintor e a escrivani-nha para o escritor.

    possvel, e mesmo necessrio,estudar fora dos ensaios, imaginar cenas fora dos ensaiosetc. Mas igualmente verdadeiro que nos ensaios queo di retor tem os meios ideais para desenvolver seu traba-lho. Diferentemente do autor, que realiza ou pode reali-zar um trabalho solitrio, o trabalho do diretor feitoinevitavelmente em colaborao, com os atores e atra-vs deles que a encenao construda.

    No preciso que o trabalho do diretor se realize

    como ordenao das sugestes dos atores, para que sejauma colaborao. Mesmo que o diretor exera seu ofciocom a plenitude de uma concepo prpria, com a segu-rana que o conhecimento de uma gramtica cnica lhed, com o domnio que tem do sistema que criou e tratade pr em funcionamento, com a necessidade mesmode determinar minuciosamente at uma coreografiapara os atores mesmo assim, nos ensaios que ele pode,elaborando progressivamente suas idias, alcanar os maisricos objetivos a que se prope.

    ... o essencial do trabalhodo diretor im palpvel,im preciso, m as nem porisso menos im portante.Ele um poeta, com o o

    autor. E enquanto o autorfaz poesia com palavras, o

    diretor o poeta da cena.

  • 7/23/2019 revista_narrativa_dramatica

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    P R O P O S T A D E L E I T U R A D E M U N D O A T R A V S D A N A R R A T I V A D R A M T I C A

    Nos ensaios, a convivncia com os atores inclui aspossibilidades de experimentao, as trocas de opinies etc.E, sobretudo, os atores, quando executam as propostas dodiretor, revelam novas possibilidades, fortalecem convic-es, num processo de mo dupla, em que o trabalho de

    ator e diretor se retro-alimentam permanentemente.

    Com o podem ser os ensaios

    Existem quase tantos processos de ensaios quantodiretores. Tadeuzs Kantor, um dos mais celebrados di-retores do sculo XX, disse uma vez: s existe um tea-tro, o meu. Provavelmente, no queria diminui r o tea-tro de outros criadores, mas chamar a ateno para ofato de que s conhecia verdadeiramente o teatro que

    ele prprio fazia.Penso ser possvel encontrar nos variados processosde ensaios alguma coisa que todos, ou quase todos, tmem comum. Estou falando de dois tempos, dois focosprincipais de ateno, duas atitudes, orientados para doisgrandes objetivos: a compreenso e a exposio.

    Atravs de variados meios, diretor e atores buscam,certamente em primeiro lugar, compreender, entender apea que vo montar e, em seguida, expor em cena oresultado dessa compreenso. Essas so as duas linhascondutoras dos ensaios, o denominador comum de to-dos os variados processos de ensaiar uma pea de teatro.Como fazer isso?

    Entre os inmeros mtodos,como eu disse, quase um para cadadiretor, tambm possvel definir al-guns caminhos mais comuns e que, aolongo dos anos, se mostraram eficazes.

    Na verdade, de onde vem ou deonde deveria vir um mtodo? O maisnatural seria que uma maneira de tra-

    balhar, um mtodo, se conformasse naobservao dos resultados obtidos a partir de determina-das prticas. Ou seja, em primeiro lugar descobrimos unsmodos de ensaiar com a inteno de alcanar objetivosespecficos. Depois, verificamos quais procedimentos fo-ram mais ou menos eficazes para os objetivos buscadose assim vamos elegendo os melhores procedimentos. Da,um mtodo. Enfim, pensando com a informtica, essedeveria ser o programa de fazer programas, o mtodo decriar mtodos.

    O grande diretor russo no seu Teatro de Arte deMoscou, nos primeiros anos do sculo XX, desenvol-veu um mtodo que em seguida foi difundido por pra-ticamente todo o teatro ocidental. De tal forma as li-es de Stanislavski influenciaram o teatro ocidental,

    que, a partir da, a prpria palavra mtodo bastou parasignificar o mtodo de Stanislavski. Mesmo que noseja aqui o lugar de expor em detalhes esse mtodo,nem mesmo de adot-lo, inevitvel eleger alguns dosseus procedimentos ou de procedimentos que se esta-beleceram a partir dele.

    Antes de tudo, fundamental a contribuio de Sta-nislavski para a imposio de uma nova tica, capaz depromover o espetculo teatral para alm da superficialrepresentao de um texto fundada em clichs e, em cer-

    to sentido, inconsciente e inconseqente.

    Ensaios de leitur a

    A primeira herana do mtodo de Stanislavski tam-bm o que marca a primeira etapa de um processo deensaios: os chamados ensaios de leitura de mesa. Por lei-tura de mesa deve-se entender o perodo em que atorese diretor, juntos, estudam o texto antes de qualquer ten-tativa de lev-lo cena. Em volta de uma mesa, o textodeve ser dissecado. Por todos os meios possveis, procu-ra-se desvendar a estrutura, os sentidos, as intenes, to-

    dos os segredos, enfim, da pea e daspartes que a compem, suas cenas,seus personagens etc.

    Destaco alguns procedimentosusuais nas leituras de mesa, como mei-os de ajudar no processo de desmon-tagem da pea.

    Um deles dividir a pea em ce-nas. As peas de teatro de um deter-

    minado perodo eram editadas comuma diviso em cenas cujo critrio era a entrada ou sa-da de personagens. Cada vez que mudavam os perso-nagens presentes, considerava-se uma cena nova. Estecritrio ainda pode ser usado, para conhecer a estruturade uma pea. Mas outros critrios podem orientar ou-tras divises de cenas, como, por exemplo, uma divi-so por temas. Outra prtica til a de dar nomes ascenas, dar ttulos que destaquem o que mais impor-tante em cada uma delas.

    Por leitura de m esadeve- se entender o

    perodo em que atores ediretor, jun tos, estudam otexto antes de qualquer

    tentativa de lev- lo cena.

    DIREO

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    P R O P O S T A D E L E I T U R A D E M U N D O A T R A V S D A N A R R A T I V A D R A M T I C A

    Nesse processo, o diretor e os atores, em certosentido, atuam como crticos, eles analisam e disse-cam o texto teatral, como fariam os crticos.

    Seria possvel dizer que um grupode atores e um diretor de teatro esto

    menos qualificados do que um crtico,um especialista em literatura dramti-ca, para esse trabalho e que, portanto,esse seria um trabalho relativamentesuperficial, que seria feito mais apro-priadamente por outros. Posso respon-der com minha experincia pessoal: jli valiosos estudos sobre determinadapea, escritos por alguns crticos reco-nhecidos, e acredito ter absorvido as li-

    es que alguns deles me deram sobreos personagens, as situaes, os senti-dos etc., daquela pea de