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Ponto de Vista

Depois dos embargos infringentesSe cai a “quadrilha”, não há como manter de pé a teoria que sustenta o mensalão, “o mais escandaloso e atrevido crime de corrupção política da história da República”

NÃO SE PODE ESQUECER, como denunciado por dois procuradores-gerais da República, Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, como relatado pelo atual ministro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, e como aprovado, até agora, numa maratona de cinco dúzias de sessões, na corte suprema da Justiça brasileira, o mensalão é “o mais escandaloso e atrevido crime de corrupção da história política da República”. Ele não é, dizem os construtores dessa espécie de grife dos crimes políticos do País, um delito comum, um mero crime de “caixa dois”, uma distribuição clandestina de dinheiro para políticos a partir de empréstimos tomados pelo Partido dos Trabalhadores, como dito pelo ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em cujo governo essa história aconteceu.

Na narrativa dos procuradores Souza e Gurgel, do ministro-relator Barbosa e ain-

da de outros, como os ministros Luís Fux e Gilmar Mendes – que o qualifi caram, respectivamente, como tendo dimensões “oceânicas” e como um marco da descida do País na ladeira abaixo da “escala das degradações” –, o mensalão é um crime sem par. Foi cometido por três quadrilhas: uma, com a alta cúpula do PT – o presi-dente, o tesoureiro e o secretário-geral do partido –; outra, de pessoas ligadas à atividade publicitária, entre as quais um cidadão chamado Marcos Valério, que seria uma espécie de “gênio do mal”; e a terceira, de banqueiros. Essa trinca de bandos criminosos teria praticamente assaltado o Banco do Brasil (BB), retirado de seus cofres cerca de 74 milhões de reais, “sabendo que não era para fazer serviço algum”, como disse o ministro Mendes, em espetacular performance numa das sessões do STF. Teria também desviado boa parte de um contrato com a Câmara

dos Deputados, para serviços no valor de 9 milhões de reais, dos quais teria sido realizado apenas 0,01%.

Pior ainda: o comandanteb geral des-ses três pelotões de malfeitores seria o próprio chefe da Casa Civil da Presidên-cia da República do governo Lula, José Dirceu. Segundo o ministro Barbosa, no acórdão do julgamento, o texto que resumiu as condenações e as penas dos 25 culpados por diversos crimes, Dirceu era a “posição de força no plano partidário, político e administrativo” do governo, “foi fundamental para a outorga de cobertura política aos integrantes da quadrilha”, ele “desempenhou papel proeminente na condução das atividades”, não de um, apenas, mas “de todos os réus”.

Retrato do Brasil tem insistido numa série de investigações iniciada no segundo semestre de 2011, e agora acrescida de um vídeo, que essa história não resiste

Celso de Mello: “Nunca presenciei um comportamento tão ostensivo dos meios de comunicação sociais buscando, na verdade, pressionar e virtualmente subjugar a consciência de um juiz”

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Na armação de suahistória, Barbosa teveduas grandes vitórias:uma em 2007 e outrano ano passado. Mas,hoje, algumas coisasmudaram. E, comose sabe, a mentiratem pernas curtas

a um exame minimamente objetivo (o vídeo está no YouTube, com narrativa do jornalista e escritor Fernando Mo-rais, autor de Olga e Os últimos soldados da guerra fria). O pilar da tese do mensalão é o desvio de dinheiro público. Mas RB afirma que não existe o desvio. Quanto ao desvio de dinheiro do BB, existem abundantes provas, no geral e de detalhe, de que todos os serviços de publicidade correspondentes aos 73,8 milhões de reais supostamente desviados do banco foram realizados. RB apresentou um documento da empresa que repassou os recursos ao BB – a Companhia Brasileira de Meios de Pagamento, cujo nome fantasia era Visanet e hoje é Cielo – enviado à Receita Federal, no qual ela lista, especificamente, uma a uma de 99 ações de publicidade feitas com o dinheiro e diz ter os recibos e comprovantes de que todas elas foram realizadas. Em mais de duas dezenas de milhares de páginas dos autos da própria Ação Penal 470 (AP 470) estão documentos de detalhe na comprovação dessas ações: um dos apensos mostra, por exemplo, até mesmo a contagem das vezes em que um anúncio de promoção da venda de cartões de bandeira Visa pelo BB foi veiculado no circuito de tevê de determinado aeroporto em determinado dia. Quanto ao desvio de dinheiro da Câ-mara que o ministro Barbosa diz, no seu voto de condenação do então presidente daquela casa legislativa, o petista João Paulo Cunha, ter sido comprovado por “três órgãos colegiados de auditoria” – a Secretaria de Controle Interno da Câmara, o Tribunal da Contas da União e o Ins-tituto Nacional de Criminalística –, RB provou que todas as três afirmações são, simplesmente, falsas.

No dia 18 do mês passado, por seis votos a cinco, com o desempate feito pelo decano da corte, o ministro Celso de Mello, o STF confirmou o direito, existente no seu regimento interno, de 12 dos réus apresentarem os chamados “embargos infringentes”, para um novo julgamento de crimes pelos quais foram condenados pela maioria dos juízes, mas com divergência, pela absolvição, de pelo menos quatro dos magistrados. Mello, ao longo de duas horas, leu e interpretou um voto corajoso. Ele queria votar já no dia 12, uma quinta-feira. Mas, numa manobra protelatória, os ministros Marco Aurélio de Mello e Gilmar Mendes esticaram a sessão com votos esparramados e de pou-ca substância e, finalmente, o presidente

Barbosa suspendeu o julgamento, con-vocando nova sessão para a quarta-feira seguinte, a despeito de Celso de Mello ter pedido para votar imediatamente.

A manobra visava pressionar o juiz, no final de semana, através dos grandes veículos da mídia, unanimemente contra o voto pelo direito aos embargos infrin-gentes. Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, do diário Folha de S.Paulo, Mello disse: “Eu imaginava que isso [a pressão da mídia para que ele votasse contra o pedido dos réus] pudesse ocorrer e não me senti pressionado. Mas foi insólito esse comportamento. Nada impede que você critique ou expresse o seu pensamento. O que não tem sentido é pressionar o juiz.” Ele disse ainda: “Eu honestamente, em 45 anos de atuação na área jurídica, como membro do Ministério Público e juiz do STF, nunca presenciei um com-portamento tão ostensivo dos meios de comunicação sociais buscando, na verda-de, pressionar e virtualmente subjugar a consciência de um juiz.”

No seu voto, Mello não apenas apro-vou o direito dos 12 réus a um novo julgamento, em função da divergência no veredito comprovada pela existência de quatro votos contrários, como tam-bém defendeu, explicitamente, que o Brasil tem compromisso assinado com a Organização dos Estados Americanos para garantir a todos – o que vale dizer, no caso, também para os outros 13 condenados com menor divergência de votos – o direito à chamada dupla juris-dição. Como se sabe, todos os réus foram julgados diretamente no STF, portanto, sem uma instância superior à qual apelar.

Eloisa Machado, professora de direito da Fundação Getulio Vargas, disse em entrevista ao diário O Estado de S.Paulo que a aprovação dos embargos infringentes para quem é julgado diretamente no STF é apenas um remendo, não garante o direito, que deveria ser amplo e universal, de recorrer de uma sentença dada apenas numa instância. Diz a professora: “O di-reito à revisão não pode ser dado apenas a um ou outro aspecto de um julgamento; precisa ser do caso como um todo, como aceito pelo Brasil ao assinar a Convenção Americana dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. É preciso incluir na revisão os fatos, a valoração das provas e as penas; e fazer isso por um tribunal diferente, de hierarquia superior”.

O argumento é importante pelo fato de que, muitos dos que se opunham aos embargos infringentes, agora que eles foram aprovados os consideram como elementos importantes para provar, ao final, que o julgamento terá sido justo. Não é verdade. A apresentação desses embargos pelos 12 réus, especialmente pelos nove que foram condenados por formação de quadrilha, pode servir para provar a falsidade da teoria do mensalão. Se uma nova maioria na corte suprema decidir pela não existência do crime de quadrilha, como pode subsistir o grande crime do mensalão? A essência desse suposto crime decorre exatamente da unidade das três quadrilhas criminosas, do fato de Dirceu ser, como a acusação insistiu o tempo todo em dizer, o coman-dante supremo de todas elas, de ele estar na Casa Civil da presidência da República, com capacidade, portanto, de desviar dinheiro público para realizar os diversos crimes pelos quais todos os réus foram penalizados. Se a quadrilha de Dirceu não existe, como pode existir o mensalão?

O ministro Luís Fux foi escolhido por sorteio eletrônico para ser o revisor do caso nessa nova etapa, a ser realizada no final deste ano ou no começo do próximo. Segundo declarações que deu aos jornais, não se tratará de um “rejulgamento” do caso: “Os embargos infringentes são adstritos à matéria objeto da divergência”, afirma o ministro. Ou seja, julgar se houve ou não formação de quadrilha é um as-pecto isolado do caso, não tem a ver com as outras condenações do julgamento. Pelo menos Fux, o presidente Barbosa e os ministros Mendes e Marco Aurélio de Mello já deram também declarações aos

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jornais no sentido de que as penas para os outros 13 réus sem direito a embargos infringentes e mesmo as penas para os 12 com direito a eles, mas decretadas com menos de quatro votos de divergência, poderiam ser aplicadas logo que o STF publique o acórdão com as decisões sobre os embargos declaratórios, ainda neste mês de outubro, por exemplo.

Tome-se o caso de Dirceu. Ele foi con-denado a dez anos e dez meses de prisão, sendo sete anos e 11 meses por corrupção ativa e dois anos e 11 meses por formação de quadrilha. No entendimento de Barbosa, Mendes e Marco Aurélio e, tudo indica, também no de Fux, o STF, agora, com a publicação dos embargos declaratórios já julgados, poderia fatiar a sentença, no sentido de apressá-la. Dar todas as penas aplicadas pelo STF para as quais não cabem os embargos infringentes como “transitadas em julgado”, ou seja, de aplicação imediata. Então, voltando ao exemplo: Dirceu deveria ser preso imediatamente, restando apenas, como disse Marco Aurélio, a definição do regime de cumprimento da pena. No caso, como a pena do ex-chefe da Casa Civil de Lula cairia para sete anos e 11 meses, abaixo, portanto, do piso de oito anos acima do qual se exige a prisão em “regime fechado”, Dirceu, então começaria a cumprir sua pena já, embora, em regime semiaberto, com o dia livre para trabalhar fora, sendo confinado à prisão apenas à noite. Posteriormente, se

seus embargos infringentes contra a con-denação por formação de quadrilha não fossem aceitos, ele seria submetido, então, ao regime fechado.

Qual o motivo para tanta pressa? Quer-se esquartejar a sentença do mensa-lão, como já se esquartejou o julgamento? Essa parece ser a ideia. Barbosa já tinha esquartejado a história antes. Já a havia fatiado e reestruturado no primeiro ato do julgamento, em 2007, para conseguir a aceitação da denúncia do então procu-rador Souza pelo STF, quando o inquérito 2425 foi transformado na AP 470. Souza começava sua acusação, num texto mal escrito e confuso, pelo crime de formação de quadrilha e com um detalhamento das ações de Dirceu, já então apresentado como o todo-poderoso da história. O fatiamento da história, para vendê-la sob uma nova forma aos ministros “da banca-da” – no jargão do STF, os que decidem como votar a partir do voto do relator e do revisor – foi a grande armação de Barbosa. Como disse o semanário Veja, que desde então o transformou em herói, ele “subverteu” a ordem da argumentação do procurador. Em primeiro lugar apre-sentou duas historinhas de corrupção, de desvios de dinheiro público suposta-mente feitos por dois petistas, Henrique Pizzolato e João Paulo Cunha, quando dirigentes do Banco do Brasil e da Câmara dos Deputados.

Barbosa completou sua obra quan-do apresentou sua sentença, em agosto passado. Na denúncia foram apenas cinco dias, 30 horas de debates. Na sentença foram meses, cerca de 300 horas de julgamento, apresentado a todo o País pela TV Justiça, com ele no centro do palco. Na denúncia, ele apresentou as fatias num prato só, de uma sacada. Para a sentença, ele as apresentou por partes, para julgamento uma a uma. Houve protestos. O rela-tor, Ricardo Lewandowski, disse que a manobra era contra o regimento do tribunal. O ministro Marco Aurélio de Mello disse que, na condição de ministros da bancada, “que não so-mos nem revisores nem relatores [da AP 470] e temos inúmeros processos para relatar”, “precisamos ter uma visão abrangente”, principalmente por tratar-se de “um caso em que atos e fatos saltam aos olhos entrelaçados”.

Barbosa espera consumar sua obra agora, com o esquartejamento das pe-nas. Certas coisas mudaram, no entanto. Há dois juízes novos na composição do tribunal. O atual procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não parece apressado como Gurgel, seu antecessor, que já queria prender os réus no final do ano passado. Há certo tempo para se con-testar a armação feita. E, como se sabe, a mentira tem pernas curtas.

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Janot: o atual procurador geral da República não parece tão apressado como seu antecessor, que queria prender os réus no final do ano passado