revista trajectos n.º 18

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TRAJECTOS

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Revista de Comunicação, Cultura e Educação

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TrajecTos

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TrajecTosRevista de Comunicação, Cultura e EducaçãoPeriodicidade: SemestralN.o 18 – Primavera de 2011Preço: € 14,00

Direcção: José Rebelo (Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE ‑IUL) e Muniz Sodré (Univ. Federal do Rio de Janeiro – UFRJ)

Conselho de Redacção: Adelino Gomes (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia – CIES/ISCTE ‑IUL), Alexandre Manuel (CIES/ISCTE ‑IUL), Avelino Rodrigues (CIES/ISCTE ‑IUL), Eduardo Granja Coutinho (UFRJ), José Rebelo (ISCTE ‑IUL), Maria Inácia Rezola (Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa – ESCS), Muniz Sodré (UFRJ), Raquel Paiva (UFRJ), Rui Brites (Instituto Superior de Economia e Gestão – ISEG)

Conselho Editorial: Abílio Martins (PT.COM), Alexandre Melo (ISCTE ‑IUL), António Firmino da Costa (ISCTE‑‑IUL), Eduarda Gonçalves (ISCTE ‑IUL), Fernando Luís Machado (ISCTE ‑IUL), Francisco Costa Pereira (ESCS), Gustavo Cardoso (ISCTE ‑IUL), Idalina Conde (ISCTE ‑IUL), Isabel Babo ‑Lança (Univ. Lusófona do Porto), Isabel Férin (Univ. de Coimbra), Jean ‑Pierre Dubois (Univ. de Paris XI), Jocelyne Arquembourg (Univ. de Paris II, Instituto Francês de Imprensa), Jorge Veríssimo (ESCS), José Jorge Barreiros (ISCTE ‑IUL), José Luís Garcia (ICS), José Machado Pais (Instituto de Ciências Sociais/Univ. de Lisboa – ICS), José Manuel Paquete de Oliveira (ISCTE ‑IUL), Louis Quéré (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris – EHESS), Manuel Castells (Univ. Aberta da Catalunha), Maria Augusta Babo (Univ. Nova de Lisboa), Maria de Lurdes Lima dos Santos (ICS), Maria Immacolata Vassalo Lopes (Univ. Federal de São Paulo – USP), Marialva Barbosa (Univ. Federal Fluminense – UFF), Maurício Lissovsky (UFRJ), Michel Wieviorka (EHESS), Miguel Gil (Prisa/Media Capital), Mohammed El Haji (UFRJ), Paulo Vaz (UFRJ), Pierre Guibentif (ISCTE ‑IUL), Teresa Seabra (ISCTE ‑IUL)

Assistente de Direcção: Liliana Pacheco

Apresentação de originais: Os textos propostos para publicação deverão respeitar as normas indicadas em local próprio (ver Índice).

Arbitragem Científica:Os textos propostos para publicação são submetidos a parecer de especialistas das áreas respectivas, em regime de anonimato. A decisão final de publicação é da responsabilidade da Direcção.

Indexação: EBSCO, Latindex, Scielo e Sociological Abstract

Escola de Sociologia e Políticas PúblicasAv. das Forças Armadas, Edifício ISCTE1649 ‑026 Lisboa – PortugalTel: (+351) 21 7903016 – Fax: (+351) 21 7903017E ‑mail: [email protected]

Edição e Distribuição:Fim de Século – Edições, Sociedade Unipessoal, Lda.Travessa de Santo António da Sé, 10 – 1.º Dto.1100 ‑501 Lisboa – PortugalTel: (+351) 21 8854250 – Fax: (+351) 21 8854259E ‑mail: [email protected]

Revisão: Ricardo Santos

Paginação: Jorge Sêco

Capa: Sérgio Rafael

Frase da capa: Manuel Castells (2004), A Galáxia Internet. Reflexões sobre Internet, Negócios e Sociedade, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 319

Tradução de resumos e palavras ‑chave: Isabela Câmara Salim

Impressão e acabamento: Publidisa

ISSN 1645 ‑5983 ‑18Depósito legal: 180674/02

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Índice

Nota Editorial —————————————————————————— 5José Rebelo e Muniz Sodré

Em AnálisE

As novas gerações de jornalistas em Portugal ————————————— 9José Rebelo

Alguém chamou Ana Gomes de rottweiler? —————————————— 29Tânia dos Reis Alves

Monopólio da fala e espontaneidade das massas ——————————— 45Eduardo Granja Coutinho

Os jornalistas de música e a indústria musical:Entre o gatekeeping e o cheerleading ————————————————— 53Pedro Belchior Nunes

Delinquência juvenil enquanto alimento noticioso —————————— 71Maria José Brites

DiscursiviDADEs

Do espelho à fotografia:Fixação e diferimento ——————————————————————— 89Maria Augusta Babo

Do desenho do espaço ao espaço da escrita:Trajectos da memória e inscrição da identidade no filme Memento ——— 99Maria Irene Aparício

Corpo, graça e consciência ————————————————————— 113Maria Cristina Franco Ferraz

O acontecimento em Gilles Deleuze ————————————————— 119Sofia Nunes

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DossiEr

Apresentação ——————————————————————————— 129JR

Educação, mídia e espaço social ——————————————————— 133Raquel Paiva e Muniz Sodré

Comunicação em rede ou o utilizador utilizado? ——————————— 141Adelino Gomes

Campanhas políticas online:Uma análise das estratégias dos candidatos a deputados às eleiçõeslegislativas de 2009 ———————————————————————— 159Filipa Seiceira

lEiturAs

Porfírio Silva, Das Sociedades Humanas às Sociedades Artificiais ————— 173Pedro U. Lima

Moisés Lemos Martins, Crise no Castelo da Cultura, Das Estrelas para os Ecrãs 175Maria da Luz Correia

AA.VV., Jornalistas, Pais e Filhos ——————————————————— 180José Luiz Fernandes

rEsumos (Abstracts) ———————————————————————— 185

normAs pArA A AprEsEntAção DE tExtos ——————————————— 193

ÍnDicE Dos númEros AntEriorEs —————————————————— 195

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5

A partir deste número 18, a Trajectos – Revista de Comunicação, Cultura e Educação, passará a ter uma dupla direcção que reflecte a crescente colaboração entre a área das Ciências da Comunicação do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE ‑IUL) e a Escola de Comunicação

da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tal decisão implicou alterações significativas na constituição dos restantes órgãos decisores – Conselho de Redacção e Conselho Editorial – com a inclusão de outras personalidades do meio académico brasileiro que, na UFRJ e noutras universidades do mesmo país, leccionam e investigam em temáticas ligadas aos domínios científicos privilegiados pela revista: a comunicação, a cultura e a educação.

Esta vocação luso ‑brasileira da Trajectos não deixará de se aprofundar em cada edição, com o respeito escrupuloso dos princípios que nortearam a sua fundação, nomeadamente no que respeita à recusa da dualidade teoria/empiria. Daí que as suas páginas se mantenham abertas, não só a problemáticas de natureza mais conceptual como à exposição e debate de casos retirados das práticas ou experiências quotidianas. Artigos de universitários mas, também, de jornalistas, artistas plásticos, animadores culturais, etc., continuarão a ser objecto de igual acolhimento.

Significativamente, alguns nomes de referência no panorama do jornalismo em Portugal, colaboradores assíduos da Revista, aceitaram, agora, nela exercer funções de responsabilidade.

A Trajectos assume ‑se, por outro lado, como lugar de publicação para jovens investigadores. Por isso, ao lado de textos assinados por autores consagrados, figuram outros que resultam de dissertações de mestrado ou de teses de doutoramento particularmente relevantes.

É na qualidade e na diversidade dos seus conteúdos e dos seus colaboradores que a Trajectos encontra a razão da sua existência.

José rEbElo (ISCTE ‑IUL)MuNiz sodré (UFRJ)

Nota editorial

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EM aNálisE

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As novas gerações de jornalistasem Portugal

José rEbElo*

* Professor no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, onde dirige o Curso Doutoral em Ciências da Comunicação. Membro do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ISCTE ‑IUL).

1 Todos os entrevistados, evocados neste artigo, nasceram entre 1971 e 1981. As declarações aqui reprodu‑zidas devem ser reportadas à data da realização das entrevistas, isto é, entre 2006 e 2008.

“O jornalista é uma entidade abstracta que não existe; o que existe, são jornalistas” adverte Pierre Bourdieu que insiste: “O mundo dos

jornalistas é um mundo dividido onde há conflitos, concor‑rências, hostilidades” (1996: 92). Qualquer generalização arrisca ‑se, por conseguinte, a ser empobrecedora. Quando não manipuladora ao aplanar diferenças, ao aliviar tensões, ao dissimular estratégias de dominação. A chamada nova geração de jornalistas portugueses encontra ‑se, no entanto, numa situação particular. É que, para além da subjectividade dos seus trajectos, da singularidade dos seus projectos, uns realizados, outros não, esses jornalistas confrontam ‑se, todos, com um mercado em crise, em particular no que respeita à oferta de trabalho. Confrontam ‑se com uma profissão em profunda transformação tanto ao nível tecnológico como ao nível organizacional. Confrontam ‑se com uma imagem mítica cada vez mais afastada das práticas quotidianas. “A identidade do jornalista é, antes de mais, uma identidade sonhada”, baseada num autêntico “sistema mitológico”, diz Jacques le Bohec (2000).

A primeira parte deste artigo é constituída por fragmen‑tos de entrevistas retiradas do livro Ser Jornalista em Portugal (Rebelo et al., 2011) que, no seu conjunto, constituem um mosaico de situações na sua pluralidade e complexidade: des‑fasamentos, desafios, obstáculos que, nuns casos, são ultra‑passados e noutros não; sucessos e insucessos; esperanças renovadas e desalentos sem fim; revoltas e conformismos1.

Poder ‑se ‑á dizer que a amostra não é sociologicamente representativa. Contra ‑argumentamos com o sociólogo Alain Accardo (1998) que, numa investigação sobre os jornalis‑tas franceses em situação de trabalho precário, respondeu a

dúvidas do mesmo teor recorrendo a um velho ditado popular: “Quantas vezes será preciso meter a mão nas chamas para poder afirmar que o fogo queima?”. Importará, isso sim, fazer uso da “imaginação socioló‑gica” de que nos fala Wright Mills (1959): aquele salto mental que, par‑tindo de “problemas pessoais”, nos conduz, por dedução, a “problemá‑ticas públicas”.

Na segunda parte, procuramos aprofundar alguns dos aspectos directa ou indirectamente evoca‑dos nos fragmentos de entrevistas: aumento, muito sensível, da qua‑lificação académica; feminização; mobilidade que, não raramente, é sinónimo de instabilidade/preca‑riedade das relações de trabalho; diminuição do número de jornalis‑tas profissionais com o consequente envelhecimento da profissão; pre‑sença crescente do número de esta‑giários, por vezes utilizados abusiva‑mente como forma de diminuição de custos e de docilização das redacções.

Metodologicamente, conside‑ramos como integrando “as novas gerações de jornalistas” aqueles que nasceram a partir da década de 70

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e que, nos anos de 2006 ou 2009, para os quais dispomos de uma maior quantidade de dados, fornecidos pela Comissão da Carteira Profissio‑nal2 e utilizados na obra acima referida, estavam maioritariamente incluídos na faixa etária dos 25 aos 34 anos.

I – TESTEMUNHOS

Desalento

Ângela Antunes sonhava ser jornalista. Por isso, quando terminou o ensino secundário, inscreveu ‑se em Ciências da Comunicação na Universidade da Beira Interior. A primeira decep‑ção surgiu ao cruzar ‑se com os colegas. Dos que concluíram o curso nesse ano, nem um só foi para jornalismo. No ano seguinte, o jornalismo atraiu um único candidato. Todos os outros licenciados procuraram trabalho em agências de comunicação e de publicidade. “No meu ano”, prossegue Ângela Antunes, “éramos 48 e a maio‑ria o que desejava era comunicação, relações públicas, marketing e publicidade. Diziam que eu era doida em querer jornalismo”.

Mas o sonho manteve ‑se. Cinco anos vol‑vidos e, já na posse do diploma, Ângela Antu‑nes tentou entrar como estagiária no Jornal do Fundão. Não era mau, para começar. Ainda por cima numa publicação prestigiada. Depois de mil vicissitudes, de idas e vindas ao Fundão, de promessas não cumpridas, ei ‑la que consegue obter o tão almejado objectivo. Assina artigos de cultura. Faz reportagens. Ocupa, algumas vezes, as páginas centrais. Trabalhos seus apa‑recem com chamada na primeira página. Sente‑‑se jornalista.

Por pouco tempo, porém. A 31 de Agosto de 2001 terminam os dez meses de estágio. Grande almoço de despedida. Muitas amizades. E as coi‑sas ficam por aí.

Na caminhada de Ângela Antunes segue ‑se um semanário de Castelo Branco, o Povo da Beira. Cobre as eleições autárquicas. Sozinha porque os meios são escassos. Para além dela, a redacção é constituída por dois estudantes inicialmente contratados como gráficos. Dois meses depois, bate com a porta e volta tudo ao ponto zero.

Novas buscas, mais respostas a anúncios, mais testes e é contratada pela revista Presente, do grupo Impala, vocacionada para um público feminino. Das seis pessoas da redacção, apenas duas estão integradas nos quadros da empresa. As restantes, aceitam contratos de sete meses. Findo o prazo legal apenas uma passa a efectiva. A sorte não calha a Ângela Antunes que se vê, outra vez, na rua.

Na altura em que é entrevistada, Ângela Antunes não escondia a sua frustração. Está desempregada. Para trás ficaram cursos de aper‑feiçoamento no Centro de Formação de Jornalis‑tas (Cenjor), à mistura com outras ocupações a título precário, em postos de turismo, no Centro Comunitário da Paróquia de Carcavelos, etc. Vol‑tar ao jornalismo é uma hipótese que mantém. Embora cada vez mais distante. Trabalhar em órgãos de comunicação social de difusão nacio‑nal é uma autêntica miragem: “Já viu bem como é que se arranja trabalho nos jornais de Lisboa?”. Pergunta e responde: “É com cunhas, nome de família, amizades com figuras públicas, pertença a clãs jornalísticos”3. Filha de um técnico oficial de contas e de uma mediadora de seguros, Ângela Antunes considera ‑se “mesmo do subúrbio”. Cresceu em Mem Martins.

À semelhança da imagem positiva que Ângela Antunes guarda do seu estágio no Jornal do Fun‑dão, também Sofia Correia recorda os estágios que fez no Diário de Notícias e no Jornal de Notí‑cias: “Foi cinco estrelas! Encaminharam ‑me, enquadraram ‑me nos assuntos, na notícia, no que é que eu devia fazer. Quando tinha dúvidas estavam sempre disponíveis… Tratavam ‑me de

2 Para uma informação completa sobre a Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, consultar Pedro Mourão, “A Tutela Disciplinar dos Jornalistas”, Trajectos, n.º 17, Lisboa, 2010, pp. 83 ‑92.

3 Cf. sobre este tema artigo de José Luiz Fernandes “Motivações e Modos de Acesso na Profissão de Jornalista”, Trajectos, n.º 12, Primavera de 2008.

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igual para igual. […] Eles davam ‑me trabalho, punham ‑me à prova, não faziam diferença entre mim e os outros.”

Só que, e é mais uma semelhança com Ângela Antunes, o estágio de Sofia Correia não teve con‑tinuidade. Celebrou um contrato de seis meses com a revista Maria, também do grupo Impala, que não chegou a concluir. Seguiu ‑se um con‑trato de ano e meio com o jornal gratuito Destak. No dia da entrevista teve conhecimento de que o dito contrato não viria a ser renovado.

De pouco lhe vale a “vocação” que reivin‑dica: “Descobrimos que temos vocação quando, ao regressarmos a casa, ficamos a pensar no que fizemos nesse dia e no que vamos fazer no dia seguinte. ‘Vou telefonar a este para saber mais coisas sobre tal assunto, contrariar tal pers‑pectiva’. É uma profissão tão intensa, a nível emocional, pronto, que é difícil separarmo‑‑nos dela”.

Ainda uma história de desalento, a de Con‑ceição Ribeiro, também ela jovem jornalista desempregada. Três meses de estágio não remu‑nerado na Semana Informática, uma revista do grupo Cofina. Três outros meses de estágio, igualmente não remunerado, no jornal electró‑nico Setúbal em Rede4. Trabalho pago, só durante seis meses, na secretaria de redacção do diário desportivo O Jogo (uma substituição por licença de parto). Centenas de currículos enviados. Sem resposta: “O Centro de Emprego exige ‑me que, mensalmente, responda por e ‑mail a cinco anúncios de oferta de emprego e envie outros tantos currículos, por correio registado, ou que os entregue em mão. Algumas das cartas vêm devolvidas, pois as empresas nem se dignam a aceitá ‑las. As respostas são raríssimas. Uma ou outra lá me convoca para uma entrevista. Mas, depois, fica por ali… Procuro emprego em todos os sectores, de acordo com a minha formação e a minha experiência, mas nada. Há dias em que é doloroso… E quanto à possibilidade de voltar ao jornalismo… não sei… não vejo…».

Sabe, por experiência própria e pelo que conhece de ex ‑colegas de curso, que há muitas publicações a viverem do trabalho gratuito de estagiários, regularmente substituídos. “Neste sector, há muita gente frustrada. Uns já aban‑donaram definitivamente o jornalismo; outros conseguiram emprego na área da comunicação e relações públicas; outros, ainda, estão a fazer o que conseguem: como administrativos, ou em call centers, ou em caixas de supermerca‑dos…”.

Independência

Após quase dois anos e três empregos curtos e variados, João Bruno Videira foi chamado para a RTP. Conhecia lá alguém que terá puxado o seu currículo “mais para cima da pilha”, explica. Colocado na delegação de Évora, depressa se confrontou com práticas jornalísticas que mere‑ceram a sua profunda discordância. Discordância quanto ao comportamento de alguns jovens jor‑nalistas que, na ânsia de concretizarem os respec‑tivos projectos profissionais, passam por cima de valores éticos e deontológicos: “Quando estamos a trabalhar inseridos num grupo, a nossa capaci‑dade de pensar em consciência diminui, o ruído à nossa volta não nos permite reflectir. Agimos sob impulso e isso, nesta profissão, pode trazer resultados que parecem interessar ao jornalista e ao jornal, mas não correspondem à nossa mis‑são que é a de informar com rigor”. Discordância quanto ao modelo de jornalismo imposto pelas chefias, que exemplifica com o seu caso pessoal: “Só fazia coisas imediatas que não me davam nenhum prazer, todo o trabalho era instantâneo. Fazia peças de um minuto. O limite de tempo é que importava […] Precisávamos de pedir, quase por favor, quando se tratava de levar a cabo um trabalho com mais profundidade. E depois, não havia espaço na antena para emitir esses traba‑lhos… Pequenas mossas, pequenas desilusões

4 Esta prática é comum a muitos outros países. “Espalhou ‑se a ideia de ‘experiência’ adquirida em estágios não pagos – o work placement” precisa Meryl Aldridge num artigo intitulado “Journalistes au Royaume ‑Uni: ‘l’exceptionalisme’ britanique”, publicado no n.º 35 da revista francesa Hermes.

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que nos afectavam. Éramos novos ainda. Na idade de sonhar com mais e mais projectos…”

Resultado: juntamente com antigos colegas da redacção, João Bruno Videira deixou a RTP para criar uma empresa produtora de vídeo. Regresso ao jornalismo? Porque não? Mas como independente. Não sujeito, portanto, aos dita‑mes da hierarquia.

Independência também reclamada por Renato Teixeira que intercalou os estudos em Jor‑nalismo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com a militância partidária: pri‑meiro no grupo Ruptura/FER e depois no Bloco de Esquerda. Desde muito cedo, aliás, que Renato Teixeira encarara o jornalismo como forma de intervenção social e política5. Aos 19 anos, pegou na mochila e na máquina fotográfica e partiu para a Bolívia onde viria a conhecer Evo Mora‑les, futuro presidente da República. No segundo ano do curso, em Julho de 2001, encontramo ‑lo em Génova participando nos protestos contra a cimeira do G8 que se saldou por violentas car‑gas policiais, pelo assassinato do activista Carlo Giuliani e pela destruição de um centro de infor‑mação alternativa instalado numa escola cedida pela autarquia local. Da comparação entre os acontecimentos que testemunhou e os relatos da imprensa portuguesa e estrangeira, a esse res‑peito, ficou ‑lhe a ideia de uma profunda assime‑tria entre o real e a sua representação mediática.

Fundou a Reler, revista dos estudantes da Faculdade de Letras, colaborou, pontualmente, na revista Via Latina e no jornal universitário A Cabra. Terminado o curso, estagiou no Público; depois ingressou, com um contrato de seis meses, na revista Focus. Passou de um jornal conside‑rado de referência a uma revista conotada com o sensacionalismo, a ligeireza. Mas, para Renato Teixeira, tal diferença é mais aparente que efec‑tiva: no Público, garante, foi objecto de censura política e na Focus até consegue fazer qualquer coisa. Sem grandes ilusões, contudo. Embora com algumas reticências, acolhe um princípio enunciado por José Mário Branco no prefácio

a um livro que editou em 2007 intitulado Os Ardinas da Mentira: “no sistema dos media não há possibilidade de não mentir e, portanto, só fora dele é possível fazer jornalismo com digni‑dade e seriedade”.

Resta ‑lhe, por isso, a esperança de vir a afirmar ‑se como jornalista freelance. "De braços caídos é que não”, jura.

Reciclagem

Sara Miranda poderia ter sido um caso de sucesso. Aluna do curso de Ciências da Comuni‑cação da Universidade Nova de Lisboa, ganhou um prémio de ensaio que lhe foi entregue pelo então primeiro ‑ministro Aníbal Cavaco Silva. Ainda não tinha terminado os estudos quando o Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gul‑benkian, que procurava um editor para a sua newsletter, a convidou para exercer essas funções. Em simultâneo, estagiou no Público. Aproximava‑‑se o fim do estágio e eis que, pela mão de Maria Elisa, entra na RTP. Passa pela RTPi, pela RTP África e, num instante, faz parte da equipa do telejornal do principal canal da televisão pública portuguesa. Mas logo se esfumou o encanta‑mento. Uma redacção, sublinha, é pouco aberta à inovação, à mudança: “no final do dia, nem sempre honra nem trata como exemplos inspi‑radores os profissionais que lhe dedicaram uma vida inteira de sacrifícios, de paixão”.

Chocou ‑a, particularmente, o destino dado a uma reportagem sobre um menino raptado por guerrilheiros moçambicanos que, terminada a guerra, é enviado para Portugal. Contou a insó‑lita história desse menino. Em vão, porque a reportagem não foi para o ar. Por razões ideoló‑gicas? Nada disso, assevera: não foi para o ar “por pura indiferença”.

Por isso nunca se sentiu “parte de um corpo”. Esteve na redacção. E pronto.

À data da entrevista (2008), Sara Miranda era directora de estratégia de uma empresa criadora

5 Cf. sobre este tema artigo de Diana Andringa “Da militância como Pecado Mortal: Opiniões sobre a Militância Política dos Jornalistas”, Trajectos, n.º 12, Primavera de 2008.

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e gestora de marcas comerciais. Quando a inter‑rogam sobre um eventual regresso ao jornalismo reage vivamente: “A minha resposta é não, nunca mais. A experiência que tive não me deixou nenhuma vontade de regressar!”

Representações

Sentir ‑se “parte de um todo” não é pretensão de Rebecca Abecassis. Bem pelo contrário. Pouco sensível à ideia tradicionalmente tão propalada de uma profissão caracterizada por elos de soli‑dariedade extremamente profundos entre os seus membros – a tribo –, Rebecca Abecassis limita os seus contactos, na empresa em que trabalha, a SIC, ao mínimo exigido pelo cumprimento das obrigações profissionais. Por isso, e à excepção de um pequeno grupo de colegas nos quais depo‑sita uma “confiança total”, a relação com todos os restantes é “formal, sem grande intimidade”. Insiste: “Raramente vou almoçar com outra pes‑soa para além das duas ou três com quem me dou. Pode acontecer mas é muito raro”. Explica‑ção: é preciso não misturar as coisas; de um lado as amizades e do outro o trabalho.

Nem “tribo” de jornalistas, nem jornalismo como “sacerdócio” ou como “profissão de fé”. “Acaba o dia e vou para casa”, reconhece Rebecca Abecassis que afasta, desde logo, qualquer even‑tual confusão entre vida profissional e vida fami‑liar: “A prioridade é a minha família, não é o meu trabalho. Claríssimo, isto. Portanto, sempre que é possível, estou com a minha família”.

Mas, no que toca ao trabalho, assume ‑se como muito rigorosa evocando, a propósito, a vivência anterior em Londres e em Paris, onde estudou: “Antes de vir para Portugal nunca tirei uma hora de almoço nos sítios onde estagiei ou trabalhei, nunca na vida!” Daí a crítica que faz aos jornalistas que, por cá, “vão tomar café três ou quatro vezes por dia; param para fumar qua‑tro ou cinco vezes”.

Critica, também, muitos jovens jornalistas cujo “único objectivo é aparecer [na televisão] a todo o custo”. “Não sabem escrever, não sabem falar e querem aparecer. Dizem asneiras no ar,

fazem asneiras no ar, etc.” Critica, ainda, os jor‑nalistas que tanto comentam desporto como política internacional: “Acho que é falta de serie‑dade”. Critica a incapacidade de julgamento por parte da hierarquia: “Se não for eu a dirigir ‑me aos meus superiores e a perguntar ‘então o que pensam dos meus programas e o que pensam desta ideia?’ não tenho feedback nenhum”. Des‑valoriza o sindicato de jornalistas que abando‑nou “um bocado por influência e, talvez, des‑leixo”. Ignora a ERC.

Palavra, agora, para Liliana Monteiro: “Fiz uma opção, sacrifiquei as minhas relações. Daqui por uns tempos não sei se ainda será assim. Mas para já foi a minha opção”. Tem 26 anos quando é entrevistada. Aceitou o ritmo “alucinante” das redacções e o desregramento de horários que familiares e amigos não conseguem com‑preender: “amigos esquecidos, pais a reclamar, namorado afastado, tudo por causa disto, tenho plena noção”.

Entre as representações da profissão, tais como são desenhadas por Liliana Monteiro e Rebecca Abecassis, é um abismo que se cava.

Com um entusiasmo desmedido, Liliana Monteiro vive, na Rádio Renascença, “a fúria do próximo noticiário”: “Com o mesmo espí‑rito que ainda tenho e espero conservar durante muitos anos que é, se aparecer o serviço à última hora, nós vamos; se houver coisas para fazer, nós fazemos; se não houver, tentamos procurar”. E remata: “É o básico do jornalismo”.

A casa, sim, como refúgio: “Quando tenho possibilidade de descansar, é o meu cantinho outra vez e o recato da minha casa. E acabo por ficar mesmo por aí”.

Ensino e realidade

São outras as razões que levam Simone Car‑valho a tecer críticas ao ambiente de trabalho no interior das redacções. Já não é a “indiferença” denunciada por Sara Miranda nem o compor‑tamento algo displicente, pouco profissional, detectado por Rebecca Abecassis. Desagrada‑‑lhe, sobretudo, o espírito de competição que

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se instalou entre os jornalistas: “Não se disputa apenas a caixa com outro órgão de comunicação social; disputam ‑se as páginas com o próprio colega do mesmo jornal”.

Não é sindicalizada e sublinha, em jeito de justificação, a ”conotação negativa que, muitas vezes, a palavra ‘Sindicato’ tem em Portugal”. Pensa que uma Ordem dos Jornalistas, despida dessa negatividade, “daria outro peso e outra cre‑dibilidade à profissão”. Não confia nos políticos por serem de direita ou de esquerda, qualifica‑tivo ao qual, visivelmente, não atribui grande significado. Pragmática, confia no político “pela impressão que me causa e pelas propostas que me traz”.

A sua passagem pela universidade suscita ‑lhe reparos já que, afirma, os estágios estão pouco articulados com as aulas e estas demasiada‑mente teóricas: “Aquilo que nos é transmitido em ambiente académico, está desfasado relativa‑mente ao que encontramos no terreno”.

As ilusões quanto às possibilidades de vir a trabalhar na rádio ou, melhor ainda, na televi‑são, rapidamente se desvaneceram pois as con‑versas com os colegas, desde os primeiros anos da licenciatura, fizeram ‑lhe ver a indispensabilidade de um “capital social” para aí chegar. “Capital social” que ela não tinha: “alguns colegas asse‑guravam, logo no segundo ano da faculdade, que iriam trabalhar para a TSF ou para a SIC Notícias.

Após um estágio no Público e breves passa‑gens pela Lusa e pela revista Tempo, Simone Car‑valho chefia a redacção da revista Elite.

II – UMA PROFISSÃO ADMIRADAE CONTESTADA

Na introdução ao seu livro, Le Journaliste et ses pouvoirs, Gérard Spitéri disserta sobre os contor‑nos complexos de uma profissão que suscitaria reacções contraditórias de admiração e de con‑testação: ”Nenhuma outra actividade humana

motiva tantas interrogações, tantas acusações, tantos processos de intenção”, afirma o soció‑logo que sublinha o questionamento a que está sujeito o estatuto social do jornalista (trabalho ou profissão?); as dúvidas frequentemente levan‑tadas quanto à legitimidade com que toma a palavra (em nome de quê e em nome de quem se exprime?); a desqualificação dos seus saberes (que garantias académicas dá para se ocupar de determinado assunto?); a denúncia de indi‑gência no tratamento da informação recolhida (ligeireza, superficialidade, ausência de recuo…); a suspeição de cumplicidade com os poderes (que ligações estabelece com o mundo político, institucional e económico?); a alegada falta de transparência das estruturas sócio ‑profissionais em que se filia (quais os verdadeiros objectivos do sindicato?); o ambiente de irresponsabili‑dade que o rodearia (quem é o juiz dos erros que comete?) (Spitéri, 2004: 1 ‑2).

Tudo se passa como se o espaço do jor‑nal fosse ocupado por usurpadores, prossegue Gerard Spitéri que cita, a propósito, Honoré de Balzac. Em La Revue Parisienne, por ele próprio criada, o escritor insurgia ‑se contra a imprensa que “ataca todos e não é atacada por ninguém” e interrogava ‑se: “Se a imprensa não existisse, seria preciso não a inventar?”.

Recriminações, desconfianças cuja origem remonta, afinal, às folhas volantes, às gazetas – como a Gazette francesa criada, em 1631, por Théphraste ‑Renaudot, a Oxford Gazette cujo pri‑meiro número sai em 1665, a Gazeta de Lisboa que inicia a sua publicação em 17156, a Gazeta do Rio de Janeiro que começa a ser apregoada em 1808, isto é, quando D. João, futuro João VI, chega à capital do Brasil acompanhado de um séquito de 10 000 a 15 000 pessoas, entre fidal‑gos, padres, praticantes de medicina, funcioná‑rios administrativos e militares: “um enxame de aventureiros, necessitados e sem princípios” nota o historiador John Armitage (cit. em Gomes, 2007: 188 ‑189). Virada para este público, a

6 Gazzeta era o nome de uma moeda veneziana do século XVI. Uma gazzeta era o preço, ao exemplar, dos primeiros panfletos informativos lançados no mercado. Cf., de Carlos Ceia, E ‑dicionário de termos literários, http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/G/gazeta.html.

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Gazeta do Rio de Janeiro só insere notícias favorá‑veis à corte: “A julgar pelo seu único periódico”, escreve o mesmo historiador, “o Brasil seria um paraíso terrestre, onde nunca se tinha expressado uma só crítica ou reclamação” (Idem: 217).

Face ao prestígio dos escritores, a quem cabe‑ria a reflexão sobre os grandes problemas da humanidade, os gazeteiros, encarregues de rela‑tar as vicissitudes do dia ‑a ‑dia, eram relegados para um plano secundário. Estatuto de inferio‑ridade que duraria até ao Iluminismo, quando Rousseau e Montesquieu fundam o princípio da liberdade de imprensa (Mathien, 2003: 121 ‑129). O gazeteiro contribui, então, para a emergência, na opinião pública, do direito de saber “sobre o próximo, aquele com quem nos cruzamos, sem o conhecer, e sobre o distante, aquele que não vemos mas que nos governa” (Spitéri, 2004: 305).

Com a propagação das campanhas de alfa‑betização, alarga ‑se, democratiza ‑se o consumo das folhas ‑volantes. Mais ligeiras, efémeras mas eficazes na medida em que rompem com o sistema elitista da livraria e da revista literá‑ria ou científica, ganham poder. Rapidamente, os gazeteiros são vistos como arrivistas, como intriguistas sem escrúpulos, que fazem e desfa‑zem reputações “sem o privilégio do nascimento nem a autoridade de uma obra” (Idem: 306). Era uma reacção de medo que viria a transformar ‑se numa atitude de exaltação: na relação de forças, ganhava o gazeteiro que se tornava jornalista de corpo inteiro, instituía o leitor como actor prin‑cipal da vida pública e o promovia ao plano de eleitor. Emancipava ‑se o pensamento profano. A imprensa implantava ‑se, decisivamente, no centro do poder. Convertia ‑se em lugar de deba‑tes políticos e culturais. Dava voz a editorialis‑tas e a críticos discutidos e reconhecidos. Atraía, para as suas colunas, expoentes dos meios bem pensantes que, antes, a tinham desdenhado. Escritores como Zola, descobriam na imprensa o suporte melhor para a difusão dos seus tex‑tos. E o exemplo era seguido, em Portugal, entre outros, por Feliciano de Castilho, Camilo Castelo Branco, Tomás Ribeiro e Eça de Queirós, cujos nomes viriam a figurar na lista de colaborado‑res da Gazeta de Portugal, inaugurada em 1862.

Exemplo acabado desta aproximação: a Associa‑ção de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, que abre as suas portas em 1882.

Logo acompanhada pela rádio e pela televi‑são, a imprensa assume ‑se como meio de comu‑nicação de massas, como veículo de uma socie‑dade política de massas cuja legitimidade radica no princípio da representação. Com alguns interregnos, em que o modelo representativo é substituído pelos modelos autoritário e totalitá‑rio (Arendt, 1990: 107 ‑138), assim decorre todo o século XX. Até ao desabrochar da “sociedade global” que, à ideia de território, opõe a ideia de espaço ‑mundo: “Lugar sem lugares. Espaço sem fronteiras, aberto, indiscriminadamente, a todos os mecanismos de produção e de consumo” (Rebelo, 2003: 35). Que, à ideia de povo político, opõe a ideia de público disperso “homogeneizado e atomizado, gerador das mesmas práticas sociais; possuidor dos mesmos gostos, sujeito dos mes‑mos projectos” (Idem: 36). Declínio das grandes narrativas racionalizantes, redentoras, substituí‑das que são pelo discurso globalizante e indi‑vidualizante – as duas faces da mesma moeda.

E os grandes meios de comunicação social focalizam ‑se, de pronto, no alvo que agora lhes é fixado: servirem de “lubrificantes das novas relações sociais de produção, de consumo e de troca” (Haye, 1984: 42).

Advento da sociedade da impaciência: a lei‑tura atenta é trocada pelo olhar rápido, em dia‑gonal, pelos títulos dos jornais; a manipulação alucinante do controle à distância, transforma os programas televisivos num caleidoscópio de sons e de imagens; a audição distraída, transfigura as vozes da rádio em ruído de fundo. Advento da sociedade da comercialização: o convencimento, a persuasão impõem ‑se como grandes desígnios a atingir pelos meios de comunicação social, muitos dos quais deixam, paulatinamente, cair o qualificativo. Tornam ‑se, pura e simplesmente, “meios de comunicação” dirigidos por adminis‑tradores. Já não por jornalistas. “Especialistas em comunicação, redactores de jornais de empresas e de colectividades locais ofuscam a imagem do jornalista, ocupam o terreno que lhe per‑tencia, põem em causa a independência como

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valor central da profissão” escreve Erik Neveu, citado por François Simon, antigo jornalista do Le Monde (2005: 41).

“O jornalismo está, hoje, em crise sob o efeito das novas leis do mercado e/ou dos instrumentos que contribuem para uma nova concepção da profissão, por parte das empresas e dos jornalis‑tas mais propensos a comunicar com o público do que a informá ‑lo”, considera Thierry Watine (2002: 187).

III – O JORNALISMO EM PORTUGAL:DA EXPANSÃO À CRISE

Em Portugal assistiu ‑se, com o advento da democracia, ao ressurgimento de uma actividade que tinha sido drasticamente condicionada pelo regime de censura prévia instituído em 1933. Os jornais reconquistaram a liberdade perdida durante décadas e tornaram ‑se palco do debate político que, então, invadiu o espaço público. As nacionalizações, decretadas na sequência de uma tentativa de golpe de estado de direita, em Março de 1975, operaram, por um efeito de arras‑tamento, a transferência para a posse do Estado da quase totalidade de jornais e de estações de rádio juntando ‑se, assim, aos dois canais públicos de televisão que, à época, emitiam em regime de monopólio. A luta pelo poder político passou, em muitos casos, pela luta pelo poder no interior das redacções confundindo ‑se, frequentemente, actividade jornalística e militância partidária.

Generalização do ensino e da inves‑tigação em Jornalismo e Ciências da Comunicação

O primeiro curso superior na área das Ciên‑cias da Comunicação data de 1979, com a aber‑tura de uma licenciatura em Ciências da Comu‑nicação na Universidade Nova de Lisboa. A partir de finais da década de 80 assistiu ‑se, porém, a

uma verdadeira explosão de cursos superiores públicos e privados com designações várias – Comunicação Social, Jornalismo, Ciências da Comunicação. Para tal explosão contribuíram razões internas e externas ao campo dos media, fortemente inspiradas, aliás, pela adesão de Por‑tugal à Comunidade Europeia, em Janeiro de 1986. Das razões internas destaque para: priva‑tização e criação de novos jornais diários de cir‑culação nacional; edição de revistas destinadas a explorar nichos de mercado, em termos de novos públicos ou de novos produtos; prolifera‑ção de estações de rádio e acesso de operadores privados à produção televisiva7. Quanto às razões externas, sobressaem: dinamização da adminis‑tração pública central e local; desenvolvimento do tecido empresarial, com a consequente aber‑tura de novas vias profissionais, em particular nos sectores do marketing, da publicidade e das relações públicas; multiplicação de universida‑des privadas e incremento do ensino politécnico (Rebelo, 2002, 2007 e 2011).

Em particular nos primeiros anos, o ensino superior nesta área avançou aos tropeções com óbvios inconvenientes para os jovens que, nele, procuravam uma saída. Dificilmente tolerada pelo salazarismo, quando não interditada, a área das ciências sociais e humanas limitava ‑se, com raras excepções, à reprodução de correntes tradicionais fechando ‑se a todo e qualquer pen‑samento inovador, susceptível de questionar os pressupostos do regime. Sobretudo no domínio das Ciências da Comunicação, oficiosamente associadas a intuitos políticos oposicionistas, a reflexão, minimamente sistematizada, era nula. Daí o recurso intensivo a professores formados no estrangeiro – muitos deles em situação de exílio político – e a inadequabilidade à reali‑dade social portuguesa de muitos dos conteú‑dos programados, resultantes da transposição automática de saberes adquiridos em contextos diferentes.

Tal situação, gerada num contexto peculiar como o português, contribuiu decisivamente

7 A legislação, abrindo os sectores da Rádio e da Televisão à iniciativa privada, é aprovada pela Assembleia da República em, respectivamente, 1988 e 1990.

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para a indefinição das fronteiras entre um modelo construtivista que privilegia a análise crí‑tica e um modelo positivista mais virado para a observação empírica. Em “La compétence encyclo‑pédique. Un défi épistémologique pour les formations au journalisme”, Nicolas Pélissier e Denis Ruellan comparam exaustivamente os dois modelos: “à separação, o construtivismo opõe a associação (em particular a dos contrários); ao isolamento, a interacção; à redução, a complexidade (que supõe a imbricação dos problemas); à inclusão, a recursividade (as partes estão reunidas num todo que, por sua vez, está contido em cada uma das partes – princípio do holograma); à dedução linear, a indução e a circularidade (a causa pro‑duz o efeito que produz a causa); à modelização analítica, uma modelização sistémica” (Pélissier e Ruellan, 2002: 66).

Suporte de um discurso profissionalizante que exalta a primazia dos factos (como se estes existissem por si, bastando ao jornalista captá ‑los e colocá ‑los à disposição dos destinatários – lei‑tores, ouvintes ou telespectadores), que consa‑gra a “lei da pirâmide invertida” (a estrutura da notícia evolui do mais importante para o menos importante), a “lei dos cinco W” (Who? When? Where? What? Why?), a “lei da proximidade ou de McLurg” (enquanto valor notícia, um europeu equivale a 28 chineses e dois mineiros galeses a 100 mineiros paquistaneses) e a “lei do circuito de leitura” (o olhar do leitor é conduzido pela paginação), o positivismo tende a autonomizar o Jornalismo relativamente às Ciências da Comu‑nicação (Rebelo, 2011: 33). Tende a optar por um ensino essencialmente ministrado por profissio‑nais, a pretexto de conhecerem o terreno, em detrimento dos académicos, acusados de teoriza‑rem no vazio, isto é, sem conhecimento do real. Dicotomia pouco original que, por exemplo, no

Brasil, opôs sindicatos profissionais a universida‑des e que, em Portugal, deu origem a compro‑missos, ou seja, a soluções híbridas que acabaram por não agradar, plenamente, a nenhuma das partes envolvidas.

Apesar dos constrangimentos referidos, o ensino de matérias ligadas ao Jornalismo ou às Ciências da Comunicação, nas suas mais diver‑sas variantes e combinações8, estendeu ‑se, sob a forma de licenciaturas (mais de meia centena no ano lectivo de 2010 ‑2011), às Universidades e Institutos Politécnicos de numerosas cidades do país: Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro, Faro, Covi‑lhã, Braga, Vila Real, Ponta Delgada, Funchal, Beja, Castelo Branco, Guarda, Leiria, Caldas da Rainha, Portalegre, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo, Viseu, Tomar, Abrantes.

O número de pós ‑graduações cresceu expo‑nencialmente, funcionando, sobretudo, em regime pós ‑laboral, com programas dotados de grande plasticidade e concebidos para períodos curtos, de seis a 12 meses, prosseguindo objecti‑vos bem delimitados e correspondendo a neces‑sidades detectadas no aparelho sócio ‑produtivo: expressão, no plano educativo, de estratégias muito em voga de flexibilização do trabalho e de formação ‑ao ‑longo ‑da ‑vida.

Na sequência da aplicação do Protocolo de Bolonha, multiplicaram ‑se os cursos de mes‑trado, tanto no sistema público como no privado e no concordatário.

Verificou ‑se um crescimento semelhante no volume de candidatos a programas doutorais oferecidos por universidades públicas e privadas. E, aspecto que não é de mais salientar, jornalistas profissionais de nomeada inscreveram ‑se nestes programas. Alguns deles já os concluíram com a apresentação e defesa de Teses cujo mérito foi amplamente reconhecido pelos respectivos júris.

8 “Comunicação Social e Cultura”, “Comunicação, Cultura e Organizações”, “Relações Públicas e Comuni‑cação”, “Línguas e Comunicação”, “Design de Comunicação”, “Design Gráfico e Multimédia”, “Novas Tecnolo‑gias da Comunicação”, “Tecnologias e Sistemas de Informação”, “Informática e Comunicações” “Comunicação e Multimédia”, “Audiovisual e Multimédia”, “Educação e Comunicação Multimédia”, “Relações Humanas e Comu‑nicação Organizacional”, “Publicidade e Marketing”, “Marketing e Comunicação Empresarial”, “Relações Públi‑cas e Comunicação Empresarial”, “Engenharia de Redes de Comunicação e Multimédia”, “Engenharia da Com‑putação Gráfica e Multimédia”, “Artes Plásticas e Multimédia”, “Fotografia”, “Vídeo e Cinema Documental”, etc.

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QUADRO 1 – MestradosEnsino Superior Público, Universitário e Politécnico (2010-2011)

Estabelecimento de ensino Cursos Variantes, áreas de especialização

Univ. dos Açores – Ciências da Comunicação e Au-diovisual

Univ. de Aveiro – Comunicação Multimédia

Univ. da Beira Interior– Fac. de Artes e Letras

– Jornalismo– Comunicação Estratégica: Publici-

dade e Relações Públicas– Cinema– Design Multimédia

Univ. de Coimbra– Fac. de Letras – Comunicação e Jornalismo

– Informação, Comunicação e Novos Media

Univ. Técnica de Lisboa– Inst. Sup. de Ciências Sociais e Po-

líticas– Comunicação Social

Univ. Nova de Lisboa– Fac. de Ciências Sociais e Humanas – Ciências da Comunicação – Cinema e Televisão

– Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias

– Comunicação e Artes– Comunicação Estratégica– Estudo dos Media e Jornal.– Estudos Aprofundados em Ciências

da Comunicação

Univ. do Minho– Inst. de Ciências Sociais

– Ciências da Comunicação – Informação e Jornalismo– Publicid. e Relaç. Públicas– Audiovisual e Multimédia

Univ. do Porto– Fac. de Letras – Ciências da Comunicação – Cultura, Património e Ciência

– Comunicação Política– Estudos dos Media e do Jornalismo

Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro– Esc. de Ciências Humanas e Sociais

– Comunicação e Multimédia

– Tecnologias da Informação e Co-municação

– Jornalismo– Relaç. Públicas e Publicid.– Inform. e Documentação– Comunicação Pública, Política e In-

tercultural

ISCTE, Inst. Univ. de Lisboa– Esc. de Sociologia e Políticas Pú-

blicas

– Comunicação, Cultura e Tecnolo-gias da Inform.

– Media e Jornalismo– Comunicação, Poder e Política– Internet e Comunicação em Rede– Cultura e Indústrias Criativas

Univ. Aberta – Comunicação Educacional e Mul-timédia

Esc. Sup. de Comunicação Social de Lisboa

– Jornalismo– Audiovisual e Multiméd.– Publicidade e Marketing– Relações Públicas

Esc. Sup. de Artes Aplicadas de Cas-telo Branco

– Produção Audiovisual para os Novos Media

Fontes: Sítios institucionais dos estabelecimentos de ensino.

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QUADRO 2 – MestradosEnsino Superior Particular, Concordatário e Cooperativo (2010-2011)

Estabelecimentos de ensino Cursos Variantes

Univ. Católica Portuguesa– Fac. de Filosofia de Braga

– Fac. de Ciências Humanas de Lisboa

– Ciências da Informação e da Co-municação

– Comunicação Social

– Ciências da Comunicação– Comunicaç. e Gestão Cultural– Comun. Organiz. e Liderança– Internet e Novos Media– Comunic. Televisão e Cinema– Media e Jornalismo– Comum. Marketing e Publicid.

Media e Jornalismo

Univ. Autónoma de Lisboa – Ciências da Comunicação

Univ. Fernando Pessoa– Fac. Ciências Humanas e Sociais – Ciências da Comunicação

– Ciências da Informação e da Docu-mentação

– Tecnologias da Comunicação– Jornalismo– Market. e Comunicação Estratégica– Relações Públicas e Comunic. Em-

presarial

Univ. Lusófona de Humanidades e Tecnologias

– Escola de Comunicação, Artes e Tec-nologias da Informação

Univ. Lusófona do Porto

– Comunic. Alternativa e Tecnologias de Apoio

– Ciências da Comunicação, Marke-ting e Publicidade

– Comunic. nas Organizações– Estudos Cinematográficos– Jornalismo, Política e História Con-

temporânea– Sistemas de Comunicação Multi-

média– Design

– Comunicação, Audiovisual e Mul-timédia

– Marketing e Publicidade

Inst. Sup. de Ciências da Informação e da Administração

– Comunicação Multimédia

Fontes: Sítios institucionais dos estabelecimentos de ensino.

Quebrava ‑se, assim, um divórcio que, durante anos a fio, separou meios académicos e meios profissionais.

Pouco a pouco, desenvolveu ‑se a investiga‑ção, em particular no âmbito de centros reconhe‑cidos e avaliados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que, no seu conjunto, acolhem mais de 300 investigadores, entre doutorados,

mestres e licenciados. Aguarda ‑se a decisão da FCT relativamente à criação de um Laboratório Associado, iniciativa do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, da Universidade do Minho, e do Laboratório de Comunicação e Con‑teúdos Online, da Universidade da Beira Interior. Iniciativa que pode acelerar a investigação nesta área científica.

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Mais investigadores e, obviamente, mais projectos de investigação que, a partir do ano lectivo de 1999/2000, passaram a merecer a aten‑ção da FCT. No espaço de dez anos, foram apro‑vados 63 dos 218 projectos submetidos à FCT9. O financiamento global rondou os 3,8 milhões de euros, com um pico nos anos de 2006 e 2008. Os projectos, em curso de execução, abrangem temas que remetem concretamente para a reali‑dade portuguesa como, por exemplo, a passagem da televisão analógica à digital, a regulação dos media, o comportamento dos media em contexto de campanha eleitoral e outros de carácter mais

genérico: estudos de género aplicados aos media, media e exercício dos direitos de cidadania, media e subjectivação, etc.

Corolário desta crescente actividade cientí‑fica: surgem nos escaparates novas revistas espe‑cializadas na temática e consolida ‑se a periodici‑dade das já existentes. Generaliza ‑se a submissão de textos à arbitragem científica, exercida por investigadores de qualidade reconhecida. Algu‑mas das revistas são aceites em bases internacio‑nais de dados como Scielo, Latindex, EBSCO e Sociological Abstracts.

QUADRO 3 – Doutoramentos (2010-2011)

Estabelecimentos de ensino Domínio Parcerias/ Protocolos

Univ. de Aveiro – Informação e Comunicação em Pla-taformas digitais

– Design– Marketing e Estratégia

Universidades do Porto, do Minho e da Beira Interior

Univ. da Beira Interior– Fac. de Artes e Letras

– Ciências da Comunicação

Univ. de Coimbra– Fac. de Letras

– Ciências da Comunicação

Univ. do Minho– Inst. de Ciências Sociais

– Ciências da Comunicação

Univ. Nova de Lisboa– Fac. de Ciências Sociais e Humanas

– Ciências da Comunicação

Univ. do Porto– Fac. de Letras

– Informação e Comunicação em Pla-taformas Digitais

Universidade de Aveiro

Univ. Técnica de Lisboa– Inst. Sup. Ciências Sociais e Políticas

– Ciências da Comunicação

Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro– Escola de Ciências Humanas e So-

ciais

– Direcção de Comunicação Em-presarial

ISCTE, Inst. Univ. de Lisboa– Escola de Sociologia e Políticas Pú-

blicas

– Ciências da Comunicação Instituto Politécnico de Lisboa, Escola Superior de Comunicação Social

Univ. Católica Portuguesa– Fac. de Ciências Humanas

– Ciências da Comunicação

Univ. Fernando PessoaFac. de Ciências Humanas e Sociais

– Ciências da Informação

Fontes: Sítios institucionais dos estabelecimentos de ensino.

9 São cinco os critérios de avaliação: mérito científico e carácter inovador numa óptica internacional; mérito científico da equipa de investigação; exequibilidade do programa de trabalhos e razoabilidade orçamental; con‑tributo para a acumulação de conhecimentos e competências do Sistema Científico e Tecnológico Nacional; potencial de valorização económica da tecnologia.

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QUADRO 4 – Centros de Investigação (reconhecidos e avaliados pela FCT10)

Centro Universidade Ano defundação

AvaliaçãoFCT

Centro de Estudos das Tecnologias, Artes e Ciên-cias da Comunicação

(CETAC.COM)

Univ. do Porto(Fac. de Letras)

2001 “Fair”

Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens(CECL)

Univ. Nova de Lisboa(Fac. de Ciências Sociais e Humanas)

1983 “Good”

Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade(CECS)

Universidade do Minho(Inst. de Ciências Sociais)

2002 “Excellent”

Centro de Investigação Media e Jornalismo(CIMJ)

Univ. Nova de Lisboa(Fac. de Ciências Sociais e Humanas)

1997 “Very Good”

Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedades

Univ. de Lisboa 1998 “Fair”

Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias

(CICANT)

Univ. Lusófona de Humanidades e Tecnologias

2000 “Fair”

Laboratório de Comunicação e Conteúdos on-line(LABCOM)

Univ. da Beira Interior(Dep. Comunicação e Artes)

2000 “Very Good”

Unidade de Investigação em Comunicação e Arte(UnICA)

Univ. de Aveiro(Dept. Comunicação e Artes)

1997 “Fair”

Fonte: Sítios institucionais dos Centros de Investigação; sítio institucional da FCT.

10 Para além dos Centros de investigação reconhecidos e avaliados pela FCT, outros há que desenvolvem actividade meritória nas ciências da comunicação, como o Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa; o Centro de Estudos de Comunicação, o Centro de Estudos e Recursos Multimediáticos e o Centro de Estudos sobre Texto Informático e Ciberliteratura, todos da Universidade Fernando Pessoa. O Centro de Investigação Media e Democracia que agrupa universitá‑rios e personalidades ligadas à comunicação social.

QUADRO 5 – Projectos de investigação FCT

Ano Apresentados a concurso Aprovados Financiamento Global (euros)

1999/2000 19 5 419.469

2001 10 2 104.740

2002 15 7 228.100

2004 30 12 316.500

2006 47 15 1.042.744

2008* 64 15 1.203.005

2009 33 7 467.933

Fonte: Sítio institucional da FCT.

* Os projectos passaram a ser reagrupados em três categorias: Ciências da Comunicação, Jornalismo e Ciências da Informação.

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Qualificação e feminização da pro‑fissão de jornalista12

Não admira, pois, que os níveis de qualifica‑ção académica dos jornalistas apresentem valores muito diferentes de faixa etária para faixa etária: grande proporção de jornalistas licenciados na faixa etária dos 25 aos 34 anos (metade do total) e progressiva diminuição a partir daí. Ao ponto do número de jornalistas licenciados, com mais de 64 anos, ser quase residual. Note ‑se, por outro lado, a concentração de jornalistas com o grau de mestrado na faixa etária dos 25 aos 44 anos (cerca de 72%). Note ‑se, ainda, a existência de 22 doutorados portadores de título profissional. Com uma única excepção, todos eles tinham, em 2006, mais de 34 anos, o que se compre‑ende dada a natureza do título que exige estudos muito mais longos.

QUADRO 6 – Revistas Científicas11

Nome Instituição Iníciopublicação

Números já publicados(Junho de 2011)

Revista de Comunicação e Linguagens

Centro de Estudos de Comunicação e Lingua-gens (CECL) 1985 41

Comunicação e Socie-dade

Centro de Estudos de Comunicação e Socie-dade (CECS) 1987 17

Caleidoscópio Centro de Investigação em Comunicação Apli-cada, Cultura e Novas Tecnologias (CICANT) 2001 10

Trajectos Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (CESC/ ISCTE) (em formação) 2002 17

Media & Jornalismo Centro de Investigação Media & Jornalismo (CIMJ) 2002 18

Comunicação Pública Escola Superior de Comunicação Social(Instituto Politécnico de Lisboa) 2005 8

Comunicação & Cultura Universidade Católica Portuguesa 2006 8

Observatório (OBS*) Observatório da Comunicação 2000 11*

Fonte: Sítios institucionais dos Centros de Investigação; Sítio institucional da FCT.

* Passou a ser editada online, em formato Open Access.

11 Acrescentem ‑se algumas revistas de índole mais corporativa como JJ – Jornalismo e Jornalistas, do Clube de Jornalistas e Tendências XXI, da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações. De aspecto gráfico cuidado, conferem particular atenção às relações entre a escola e a profissão.

12 Sobre o tema, Cf. artigo de Isabela Salim “A ‘Feminização’ do Jornalismo em Portugal”, Trajectos, n.º  12, Primavera de 2008.

O Gráfico 1 ilustra claramente a evolução do número de jornalistas licenciados. Acrescente ‑se que alguns dos jornalistas mais jovens, com ida‑des inferiores a 24 anos, se encontravam ainda, à data do processamento dos dados, em fase de estudo, ou seja, não tinham concluído a respec‑tiva licenciatura. Por outro lado, a partir dos 45 anos, o volume de jornalistas licenciados é ultra‑passado pelo de jornalistas cujas habilitações se limitam ao ensino secundário. Distância que se vai acentuando.

Decididamente, quanto mais novos são os jornalistas mais elevada é a sua qualificação aca‑démica. A médio prazo, a profissão tenderá a ser quase inteiramente reservada a titulares de diplo‑mas de nível superior. Maiores níveis de habilita‑ções académicas e acentuada feminização.

Se, em termos globais, predominam, ainda, os jornalistas do sexo masculino (59,3%

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contra 40,7%, em 2009), desagregando, por faixas etárias, verifica ‑se que, nos jornalistas com idade inferior a 35 anos, a percentagem de mulheres é já superior. Não será arriscado admitir, portanto, que, dentro de alguns anos, as redacções sejam maioritariamente femininas. Reproduzir ‑se ‑á, assim, no contexto das redac‑ções, aquilo que já é bem visível nos cursos superiores ligados ao jornalismo onde a presença feminina é absolutamente dominante.

QUADRO 7 – Distribuição dos jornalistas por faixa etária e por grau de escolaridade (2006)13

Faixa etária Básico Secundário Licenciatura Mestrado Doutoramento TOTAL

< 24 2 33 96 – – 131

25/34 11 530 2016 42 1 2600

35/44 16 1003 1226 58 6 2309

45/54 20 457 441 22 8 948

55/64 27 280 210 10 5 532

> 64 9 119 70 7 2 207

TOTAL 85 2422 4059 139 22 6727

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

13 No acto de preenchimento do impresso destinado a solicitar a renovação da Carteira Profissional, ou a pedi ‑la pela primeira vez, alguns dos candidatos não indicaram o seu nível de habilitações académicas. Por essa razão, o total que surge no Quadro (6727) é inferior ao total de jornalistas que, em 2006, estavam devidamente habilitados a exercer as suas funções (7402).

GRÁFICO 1 – Distribuição dos jornalistas por faixa etária e grau académico (2006)

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

Recessão do emprego e recurso a estagiários

Jornalistas jovens mais qualificados, predo‑minantemente do sexo feminino, mas a braços com uma crise – diminuição de recrutamentos, desemprego, insegurança nas relações de traba‑lho – que os atinge em primeira instância. Os dados disponíveis não oferecem dúvidas: após um nítido crescimento até 2004, a curva de

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GRÁFICO 2 – Taxa de feminização da profissão de jornalista, por grupo etário (2006)

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

Nota: Os valores agregam jornalistas profissionais, colaboradores especializados e estagiários.

GRÁFICO 3 – Jornalistas em actividade (1987-2009)14

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

14 Este gráfico deve ser lido com algumas cautelas. Enquanto os dados referentes a 2004, 2006 e 2009 são provenientes da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas e resultam das declarações por estes efectuadas no momento em que solicitam a renovação do título profissional, ou o pedem pela primeira vez, já os dados respeitantes a 1990 e 1997 foram apurados a partir de uma extrapolação de dois inquéritos realizados sob a égide do Sindicato de Jornalistas e os anteriores foram fornecidos pelo próprio Sindicato a quem, na altura, competia emitir os títulos profissionais.

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jornalistas em actividade estagnou de 2004 a 2006, altura em que entrou em recessão.

A queda, iniciada em 2006, explica ‑se mais pela contracção de admissões, pela não reno‑vação de contratos a prazo e por abandonos voluntários do que por despedimentos que, na profissão, registam índices (cerca de 5%) nitida‑mente inferiores aos apontados para a popula‑ção em idade activa15. Daí que a queda afecte, sobretudo, os mais jovens, aqueles que procuram ingressar na profissão ou que, nela, não criaram ainda raízes.

Segundo dados da Comissão da Carteira Pro‑fissional dos Jornalistas (CCPJ), utilizados em Ser Jornalista em Portugal, é notória a descida dos grupos etários mais jovens que, em 2006, repre‑sentavam 16,8% do total dos jornalistas e, em 2009, se ficaram pelos 13,8%. Em contrapartida, cresceu a importância relativa dos jornalistas com idades superiores a 55 anos que passaram de 12,2% para 13,8%. Em valores absolutos e sempre comparando o número de jornalistas por faixa etária, em 2006 e 2009, conclui ‑se que, as maiores perdas (menos 529) ocorreram no grupo de jornalistas com idades compreendidas entre os 30 e os 40 anos seguindo ‑se (menos 292) o grupo de jornalistas com menos de 30 anos.

No formulário da CCPJ para a obtenção do título profissional, pergunta ‑se aos candida‑tos qual o ano em que entraram na profissão. A análise das respectivas respostas permite ava‑liar o grau de mobilidade/antiguidade existente. Assim, por exemplo, dos jornalistas que pediram a revalidação do título profissional em 2009, 322 tinham ingressado na profissão em 1997. Dos que pediram a revalidação em 2006, o número de ingressos em 1997 ascendia a 334. Significa isto que, de 2006 a 2009, cessaram a actividade 12 dos jornalistas que se tinham iniciado na profissão em 1997. Mantendo como referência o ano de 2009, relativamente ao de 2006, dei‑xaram de figurar na estatística dos profissionais no activo: 47 jornalistas que obtiveram uma car‑teira profissional, pela primeira vez, em 1998; 46, em 1999; 72, em 2000; 47, em 2001; 31, em 2002, etc. O período de permanência na profis‑são, nos casos referidos, variou entre os cinco e os 12 anos.

É verdade que, teoricamente, tais saídas podem significar falecimentos, passagens à reforma, despedimentos ou troca da actividade jornalística por outra. Repare ‑se, no entanto, que estamos a abordar um período de, apenas, doze anos (de 1997 a 2009). Pelo que serão raras

15 Não é de descurar a hipótese de, jornalistas no desemprego, se declararem, por razões meramente tácti‑cas, em regime de trabalho livre. De facto, o desemprego pode ser encarado como uma situação desfavorável na procura de um posto de trabalho.

QUADRO 8 – Jornalistas por grupo etário (2006 e 2009)

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

Notas: Os valores agregam jornalistas profissionais, colaboradores especializados e estagiários. Em 2009, 19 jornalistas não indicaram a idade.

Grupos Etários

Anos

2006 2009

n.º % n.º %

Até 29 anos 1.244 16,8 952 13,8

30 a 40 anos 3.267 44,1 2.738 39,7

41 a 55 anos 1.986 26,8 2.254 32,7

Mais de 55 anos 905 12,2 954 13,8

Total 7.402 100 6.898 100

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as passagens à reforma, tanto mais quanto é certo que a maioria esmagadora dos jornalistas é recrutada bastante jovem. Como serão estatis‑ticamente irrelevantes os casos de falecimento. As “baixas” explicar ‑se ‑ão, então, ou por des‑pedimentos ou por troca de actividade. Mas o despedimento não implica perda automática da carteira (pode suceder é que o jornalista despe‑dido não solicite a renovação nos prazos legal‑mente definidos para tal). Concluir ‑se ‑á, então, que a quase totalidade das “baixas” se explica por troca de actividade, facilitada pela diversificação da formação de muitos dos jornalistas que segui‑ram cursos de comunicação, marketing, relações públicas, design, etc.

Curiosamente, e em paralelo à descida do número de jornalistas profissionais, assiste ‑se ao aumento de jornalistas estagiários (habilitados com título provisório): 5,4% do total em 2004, 7,5% em 2006 e 9,2% em 2009. O título provi‑sório é, portanto, o único com um crescimento positivo nos anos considerados: cresce 40,8% entre 2004 e 2006; 14,7% entre 2006 e 2009. Em valores absolutos havia, em 2006, 543 portadores de título provisório e, em 2009, 638.

Reflectindo as características encontradas para os jornalistas profissionais, especialmente os mais jovens, também os estagiários são maio‑ritariamente do sexo feminino e possuem for‑mação superior.

Como seria de esperar, a maioria dos estagi‑ários trabalha como jornalista e poucos são os que se dedicam ao fotojornalismo e à infografia. Não deixa no entanto de suscitar alguma perple‑xidade o elevado número dos que não definem o cargo que exercem. Como se estivessem prontos a exercer qualquer cargo.

“Na impossibilidade de deslocalizar as empre‑sas de comunicação social para o estrangeiro,

GRÁFICO 4 – Ingressos na profissão de 1997 a 2006

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

Nota: Os valores referem-se aos jornalistas profissionais, excluindo, portanto, estagiários e colaboradores especializados.

QUADRO 9 – Estagiários por género(2006 e 2009)

Género 2006 2009

Masculino 249 300

Feminino 304 338

Total 553 638

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

Nota: Em 2006, três jornalistas com título provisório não indi-caram o género.

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social não têm senão o embaraço da escolha face ao afluxo de candidatos ‑jornalistas que se amontoam às suas portas”. A análise pertence a Alain Accardo (1998: 8 ‑9) e reporta ‑se aos jorna‑listas franceses em situação de precariedade. Ela é transportável, sem alterações de monta, para a realidade portuguesa.

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QUADRO 10 – Estagiários por habilitações académicas (2006 e 2009)

Habilitações Académicas 2006 2009

Ensino Básico 12 9

Ensino Secundário 156 159

Ensino Superior/ Licenciatura 378 452

Mestrado 2 10

Doutoramento 1 0

Total 549 630

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

Nota: Em 2006, quatro jornalistas estagiários não indicaram as suas habilitações académicas; em 2009, foram oito os que não o fizeram.

QUADRO 11 – Estagiários por categoria profissional/cargo profissional (2009)

Categoria profissional/Cargo desempenhado N.º

Jornalista 324

Fotojornalista 18

Infografista 1

Repórter de imagem 23

Não definida 273

Fonte: Ser Jornalista em Portugal.

Nota: em 2009, 273 candidatos ao título provisório não definiram a sua categoria profissional.

de maneira a desenvolver um processo de pro‑dução e difusão de informação ‑mercadoria, assente num sub ‑proletariado desqualificado e sem exigências, o patronato dos media, formado sobretudo por patrões da indústria e da finança multinacionais, essencialmente preocupados com a maximização dos lucros, decidiu baixar os custos de produção transformando os órgãos de comunicação social em suportes publicitários e proletarizando uma parte sempre crescente de jornalistas, começando, claro está, pelos mais vulneráveis, isto é, pelos mais jovens. Estes, estão praticamente condenados aos contratos a prazo, renováveis, mesmo para além dos limites legais, que, paradoxalmente, em vez de conduzirem a uma contratação definitiva conduzem ao desem‑prego, até porque as empresas de comunicação

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Introdução

Começa ‑se por retratar a dinâmica que conferiu à divul‑gação dos telegramas o contorno de facto, numa pri‑meira instância, pela WikiLeaks, e, posteriormente, de

facto jornalístico, pelo El País. Esses factos tomaram depois a dimensão de acontecimento, voire même de acontecimento mediatizado.

Já na segunda parte, desenvolve ‑se uma análise textual que contempla a função referencial, onde se tenta perce‑ber como o acontecimento foi recortado no texto; a função interpessoal, que implica averiguar de que forma se expressa a identidade do enunciador; e a função textual, relativa à organização da mensagem em termos de coesão e coerên‑cia internas. Efectua ‑se igualmente uma análise discursiva, prestando ‑se atenção ao modo como as condições sociais de produção e consumo dos textos se encontram incrustadas no material linguístico, permitindo, portanto, ver como as macro ‑estruturas são transportadas para as micro ‑estruturas.

O núcleo empírico deste trabalho consiste num estudo comparativo entre a notícia publicada no diário português Público e a peça, sobre o mesmo tema, inserida no diário espanhol El País.

Contextualização

No dia 15 de Dezembro de 2010, o jornal de referência do país vizinho, El País, publicava, na sua edição online, a notícia de que o primeiro ‑ministro, José Sócrates, e o minis‑tro dos Negócios Estrangeiros (MNE), Luís Amado, teriam permitido que o território nacional fosse sobrevoado por aviões norte ‑americanos com prisioneiros repatriados da

prisão de Guantánamo, e que, para‑lelamente, a base aérea dos Açores fosse utilizada nessas operações. Esta notícia estava suportada em infor‑mações contidas num telegrama de 7 de Setembro de 2007, redigido por Alfred Hoffman, chefe da representa‑ção diplomática dos EUA em Lisboa, poucos dias antes de uma reunião entre George W. Bush e José Sócrates. O conteúdo do telegrama era consi‑derado, pelos círculos diplomáticos, matéria sigilosa que não poderia ser divulgada. Todavia, as informações exaradas nesse, e noutros telegra‑mas, foram tornadas públicas pela WikiLeaks, uma plataforma online criada por Julian Assange, onde se difundem, por fontes anónimas, documentos, fotografias e informa‑ções sobre assuntos sensíveis, que têm atraído a atenção dos media. Pode dizer ‑se que, no plano jorna‑lístico, os anúncios dessa entidade estão a ganhar foros de aconteci‑mento, ou, por outras palavras, estão a progredir na curva ascendente do interesse, daí serem objecto de um tratamento noticioso cada vez mais intenso.

Num outro telegrama de Janeiro de 2007, o embaixador escrevia que as considerações sobre Ana Gomes,

Alguém chamou Ana Gomes de rottweiler?

tâNia dos rEis alvEs*

“Ce qui importe, ce n’est pas de dire, c’est de redire, et, dans cette redite, de dire encore une première fois.”

M. blaNchot, L’entretien infini

* Pós ‑graduada em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, ISCTE ‑Instituto Universitário de Lisboa.

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eurodeputada socialista que tem procurado investigar a verdade sobre os voos da CIA, e divulgá ‑la, não seriam as mais abonatórias por parte de membros do seu partido e do assessor de Sócrates, Roza de Oliveira, que terá mesmo chegado a caracterizá ‑la, segundo o conteúdo dos telegramas, como “uma senhora muito excitada, pior que um rottweiler à solta”.

O nascimento do acontecimento mediático

A divulgação, pela WikiLeaks, dos telegramas referidos, constitui, desde logo, uma ruptura de um “quadro de existência” (Goffman), e repre‑senta uma “falha” (Romano) no fluxo corrente das relações internacionais no plano diplomá‑tico. A emergência desta ocorrência pode, pois, ser considerada um acontecimento, pela sua actualidade, mas também pelo seu carácter ines‑perado, descontínuo, que origina “uma modifi‑cação no estado do mundo fenomenal, desequi‑librante e ressentida pelos sujeitos, produzindo assim um ‘efeito de relevância’” (Rebelo, 2002). É igualmente essencial que a percepção dessa mudança se inscreva numa rede coerente de sentido, engendrando um efeito de pregnância.

Louis Queré, em “Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento” (2005), argumenta haver “aqueles [acontecimentos] que ocorrem no dia ‑a ‑dia, sem que lhes atribuamos um valor particular, e aqueles que se revestem de especial importância”. As informações reveladas pela WikiLeaks podem ser claramente enquadradas na categoria de acontecimento “de especial impor‑tância”, ou, para usar uma outra terminologia, de macro e mega‑acontecimentos, imprevisíveis (Santos, 2005). Trata ‑se de um acontecimento que, regressando à reflexão de Queré, se desdo‑bra para o passado, conduzindo a evocações de ditos e desditos que remetem para um tempo anterior ao tempo presente, e que se alonga para o futuro, recolhendo “a sua individualidade do destino que abre” (Quéré, 2005), dadas as reper‑cussões que tais informações acarretarão para o sistema político e para as representações que

dele se produzem na esfera pública. Esta dua‑lidade temporal faz com que o acontecimento seja, simultaneamente, explicável, por instigar uma multiplicidade de narrativas que gravitam em torno do discurso primeiro nuclear, e expli‑cativo, pois “quando um acontecimento se pro‑duziu (…) o mundo já não é o mesmo: as coisas mudaram” (Queré, 2005), sobretudo na experiên‑cia “daquele a quem o que acontece, acontece” (Lança, 2005). É precisamente esta cadeia nar‑rativa que provoca uma suspensão do inacre‑ditável, ao incluir o acontecimento num “todo contextual”, facultando desse modo a passagem do possível imprevisível ao possível previsível (Arquembourg, 2003).

Mas vejamos como, da sequência que se inicia com o telegrama do chefe da representa‑ção diplomática dos Estados Unidos em Lisboa até à sua divulgação pela WikiLeaks e posterior mediatização, se realiza todo um ciclo de media‑ções que geram um problema público (Gusfield). Numa primeira instância, que podemos locali‑zar como sendo os encontros entre o diplomata Alfred Hoffman e as figuras políticas envolvi‑das nesta controvérsia, presenciavam ‑se apenas factos, sem grande conexão entre si, e especial‑mente relevantes para a esfera da diplomacia; todavia, a partir do momento em que a infor‑mação é materializada em telegramas, os factos convertem ‑se em acontecimentos, corporaliza‑dos pelo testemunho de um primeiro registo escrito; num terceiro momento, que equivale ao ensejo em que esses telegramas são divulgados pela WikiLeaks, minando o carácter de secre‑tismo dos factos aí narrados e, principalmente, o momento em que a imprensa “tradicional” res‑gata essa informação da WikiLeaks para as suas páginas, o acontecimento é sujeito a uma nova visibilidade, sendo elevado à qualidade de acon‑tecimento mediático, deixando então de impli‑car apenas a dimensão diplomática e passando a integrar as várias dimensões inerentes à vida pública. Se o acontecimento já se encontrava, de per se, imbricado num campo problemático, “também novos campos problemáticos se cons‑tituem com a emergência de acontecimentos, nomeadamente a partir do trabalho realizado em

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torno deles” (Quéré, 2005). O acontecimento em análise inscreve ‑se no contexto melindroso dos voos da CIA, e alimenta o problema da relação entre o campo político e a esfera pública; entre o domínio do segredo1 e a publicitação da informa‑ção; entre a decisão política como processo colec‑tivo transparente e deliberado e a decisão como resolução camuflada de um colégio restrito.

Este caso é também um exemplo paradigmá‑tico das dimensões ilocutória e perlocutória ine‑rentes a um acto de fala, para seguir a termino‑logia de John Austin (1911 ‑1960). Na verdade, os enunciados formulados por Jorge Roza de Oliveira e José Lello, referentes à deputada Ana Gomes, não têm como objectivo descrever alguma coisa, mas sim realizar uma acção de facto. Mais do que enunciados constatativos ou descritivos, esta‑mos perante aquilo que John Austin, na esteira dos estudos de Wittgenstein sobre a importân‑cia do uso na linguagem – How to do things with words? (1962), cunhou de acto performativo, em que a enunciação corresponde à prática de uma acção, dada a cesura que provoca na “seria‑ção da conduta ou no correr das coisas” (Quéré, 2005). E esses enunciados vão, por sua vez, gerar uma resposta, verificando ‑se, como o constatou Quéré (Idem) que “o verdadeiro acontecimento não é unicamente da ordem do que ocorre, do que se passa ou se produz, mas também do que acontece a alguém. Se ele acontece a alguém, isso quer dizer que é suportado por alguém. Feliz ou infelizmente. Quer dizer que ele afecta alguém (…) e que suscita reacções e respostas mais ou menos apropriadas.” Reacções e respos‑tas que, a seu tempo, concretizarão novos acon‑tecimentos, expostos ao halo da mediatização.

As fontes, a citação e os aconteci‑mentos

A citação é, indubitavelmente, a pedra ‑de‑‑toque na construção do discurso em torno deste acontecimento. Reconstituindo sumariamente

a cadeia de mediação das informações que são o alicerce deste caso, constatamos que o jornal português Público divulga uma notícia que cita o jornal espanhol El País e que, por sua vez, cita os telegramas de Hoffman colocados na Wiki‑Leaks, sendo que este diplomata cita, também ele, os enunciados de alguns dirigentes políticos com quem se reuniu. Entra ‑se num verdadeiro enredo infindável de citações, em que o essen‑cial deixa de ser o que é dito e passa a ser quem diz. A “coisa de que se fala” (Moscovici) perde paulatinamente o seu valor, esboroada por uma sucessão de citações em que a veracidade do que é dito vai sendo cada vez mais incerta, e em que se torna extremamente complexo identifi‑car o enunciador responsável pelo conteúdo da mensagem.

Os jornais citam, em suma, um documento que, por sua vez, mais não é do que uma citação do que foi dito, dialéctica a que Mikhail Bakhtine (1977) dá o nome de discours rapporté, e que ele esclarece como sendo “le discours dans le discours, l’énonciation dans l’énonciation, mais c’est, en même temps, un discours sur le discours, une énon‑ciation sur l’énonciation”. Esta percepção ganha uma saliência peculiar se tivermos em conta que, neste caso, o “discurso sobre o discurso” é corporizado pelo discurso jornalístico. E, se o trabalho jornalístico se alicerça na mediação de factos, discursos e problemas relevantes para a vida pública, o que o caracteriza intrinseca‑mente é o facto de, pela mediação, manufacturar um novo facto – ponto culminante do trabalho do jornalista como portador de notabilidade. Pelo simples facto de citarem, os jornais con‑ferem um carácter legitimador ao que é citado, autenticando a verdade – nota bene – da ocor‑rência do discurso. Recorde ‑se que, para Antoine Compagnon (1979), a primeira forma de citação encontra‑se já no acto de sublinhar, em que a leitura emerge como uma forma de adesão ou de apropriação do texto. Ocorrendo a citação no espaço jornalístico, mais do que mera reprodução do que é dito, a informação citada vê ‑se investida

1 Note ‑se que a questão do segredo não é um problema sociologicamente insusceptível de complexidade, como o expôs, entre outros autores, George Simmel.

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daquilo que Maria Augusta Babo (1986) designa por “excesso significante”, já que “mais do que repetição de sentido, ela instaura o sentido da repetição”. Ela não é, portanto, apenas imitação, mas, ao integrar ‑se num discurso jornalístico, que se pressupõe interpretativo, pois que não se limita a espelhar a realidade, narrando ‑a e, como tal, interpretando ‑a também, a citação acarreta “perturbações de sentido” e cria ‑se “como texto outro” (Idem), dotado de credibilidade e veraci‑dade, que lhe é transubstanciada pela figura do jornalista. Citar torna ‑se, então, “um produto da ex ‑citação operada previamente no texto ‑leitura. Mas, ao ser reescrita, a citação manifesta ‑se uma in ‑citação, uma inserção a formar um novo texto ou sentido” (Idem).

Por conseguinte, é sobremaneira pertinente avaliar a dinâmica que faz com que, gradual‑mente, em cada patamar da cadeia de citações, vão emergindo novos acontecimentos, em sin‑tonia com uma transformação que se opera no estatuto dos relatores da informação, pois que aquele que era receptor se comuta em fonte para a entidade que o sucede nesse conjunto de inter‑cessões sistemático. A circulação da informação processa ‑se a diversos níveis: a fonte primeira de informação de que há registo é o conjunto de telegramas redigidos por Hoffman. Esses tele‑gramas desempenham o papel de fonte para a WikiLeaks, primeira entidade que outorga uma aura mediática a tal acontecimento político. Todavia, mais tarde, a WikiLeaks será também elevada ao estatuto de fonte, pois a informação difundida posteriormente nos órgãos de comuni‑cação social tem por base esta plataforma virtual. É ela que faz chegar, pelo meio online, informa‑ções à empresa jornalística, nomeadamente ao diário espanhol El País que, além de ser receptor dos telegramas publicitados pela WikiLeaks, se tornará, por seu turno, fonte do diário português Público – jornais esses que darão “guarida às infor‑mações que julga(m) adequadas ao seu projecto editorial e, por extensão, ao(s) seu(s) público(s)” (Rebelo, 2002).

Nesse processo de transmutação do estatuto de destinatário da informação para o lugar de fonte citadora da mesma, produz ‑se uma meta‑morfose no próprio fenómeno do aconteci‑mento. Patrick Charaudeau (1997) escreve, a esse propósito, que “o acontecimento apenas signi‑fica quando é feito acontecimento no discurso”2. O acontecimento que começa por se apresentar em bruto – inexplicável e sem sentido – integra‑‑se no mundo de inteligibilidade social através de uma intensa actividade semântica, inter‑pretativa e investigadora pós ‑acontecimento, que se concretizará depois numa miríade de microacontecimentos (Santos, 2005), dando origem a um sistema autopoiético no sentido em que os elementos se geram uns aos outros. Quando a WikiLeaks divulga os telegramas, ela institui como acontecimento a existência, tout court, desses telegramas e das informações con‑fidenciais neles exarados; contudo, quando o site deixa de ser o depositário das informações, tornando ‑se fonte para a imprensa espanhola, ao acontecimento telegramas ‑que ‑divulgam‑‑informação ‑secreta junta ‑se o acontecimento WikiLeaks. E quando a informação é difundida pelos jornais portugueses, cria ‑se o aconteci‑mento do jornal El País que publica o acon‑tecimento WikiLeaks, que publica o aconteci‑mento “telegramas”. Este sucessivo “discurso do discurso” funda ‑se naquilo que Charaudeau (1997) designa como “dupla operação de recons‑trução/desconstrução”: reconstrução, na medida em que o discurso último se socorre de um dito para o reintegrar num novo acto de enunciação, passando esse dito a estar sob a alçada de um locutor que, pela narração, opera uma transfor‑mação enunciativa do já dito; desconstrução, pois ao anexar ‑se o dito emprestado a um novo acto de enunciação, demarca ‑se o dito trans‑posto (“rapporté”) do dito original. Charaudeau postula a existência de uma “tripla mimesis” em que, num primeiro grau, há um potencial diegético e explicativo do acontecimento con‑siderado no seu estado bruto, a que se segue um

2 “L’évenement ne signifie qu’en tant qu’il fait événement dans un discours”, Patrick Charaudeau (1997).

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trabalho de estruturação e significação operadas pela transposição para o discurso e que desem‑bocará, por último, num trabalho de reconfigu‑ração interpretativa operado pela instância de recepção. Daí a necessidade de não se confundir “acontecimento e surgimento primeiro do acon‑tecimento” (Idem), pois que da “tripla mimesis” nasce um novo acontecimento: o acontecimento construído mediaticamente, qualitativamente diferente do acontecimento bruto.

Citando Louis Queré (2005) “o aconteci‑mento apresenta, pois, um carácter inaugural, de tal forma que, ao produzir ‑se, ele não é, apenas, o início de um processo, mas marca também o fim de uma época e o começo de outra”. Nesta trama, vamo ‑nos distanciando cada vez mais dos acontecimentos que antecedem o aconteci‑mento mais próximo, conferindo àqueles que se distanciam crescentemente um cunho indelével de veracidade. Pode ler ‑se aqui um mecanismo que encontra um paralelo na estratégia discur‑siva que pertence ao campo da manipulação (no jogo posto ‑pressuposto), e que consiste na intervenção sintagmática, através da qual, pelo acréscimo, no eixo horizontal de um sintagma, se vai relegando o anterior domínio do posto para o pressuposto. Ora, se o posto remete para o domínio do saber novo, o qual, mesmo que colo‑cado na negativa, não põe em causa a existência do sujeito, já o pressuposto remete ‑nos para um saber antigo, não sendo passível de negação ou interrogação, sob pena de pôr em causa a inte‑ligibilidade do enunciado. Assim, à medida que se avança na corrente de intermediações, vai ‑se proscrevendo para o domínio do pressuposto o núcleo central da produção discursiva – a auto‑rização de o país ser sobrevoado por voos da CIA e a aversão manifestada por partidários do PS face à deputada Ana Gomes – conferindo a essas ocorrências um certo grau de incontestabilidade, já que se reduz substancialmente a capacidade do auditório para negar esse fundamento do discurso; diferentemente, ao domínio do posto, do saber novo, corresponde um facto cada vez mais circunstancial. Ou seja, “cada vez mais, aquilo que, inicialmente, constituía o único objecto sobre o qual poderia recair a oposição

ou a dúvida, vai ‑se distanciando e imergindo no pressuposto. Até se (con)fundir na evidência” (Rebelo, 2002).

O discurso dos políticos

O primeiro aspecto digno de registo no dis‑curso dos jornais é que existe uma espécie de expertise política, sendo que as figuras invocadas podem ser categorizadas como figuras de auto‑ridade no campo político. Além do Primeiro‑‑Ministro e do MNE, o acontecimento é prota‑gonizado por Jorge Roza de Oliveira, assessor do Primeiro ‑Ministro; Ana Gomes, diplomata e ex ‑embaixadora de Portugal na Indonésia, e cuja participação sobre voos da CIA com pas‑sagem por Portugal levou à abertura de um inquérito pelo Ministério Público, em 2007; e José Lello, actualmente célebre pela oposição pública sistemática aos sectores ligados às sensi‑bilidades mais críticas dos círculos da oligarquia governante do PS, e que, no passado, assumiu já a pasta de Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.

O discurso destes políticos, inquiridos pelo jornal Público sobre a autorização do Governo português à passagem de voos da CIA, pauta‑‑se por um processo de denegação constante. Senão vejamos: interrogado no Parlamento por um líder da oposição, Sócrates respondeu: “Devo dizer que o Governo nunca foi consultado sobre essa possibilidade nem nunca autorizou (…) Posso dizer ‑lhe em nome deste Governo que nunca aconteceu termos sido consultados e ter‑mos autorizado. Estes dois actos nunca existi‑ram”. Sublinhe ‑se, antes de mais, uma estratégia de dissimulação, evidenciada pelo emprego do sujeito colectivo “o Governo”. Também o advér‑bio de negação “nunca” é pronunciado quatro vezes nesta breve resposta, enfatizada ainda pela conjunção “nem”. Deduz ‑se, assim, o recurso a uma denegação, por recusa, manifesta pela nega‑ção da negação, e por insistência, dada a pre‑mência impressa a essa recusa; contudo, parece produzir ‑se o efeito absolutamente oposto: o de fornecer ao destinatário elementos para concluir

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que o enunciador está convicto daquilo que no entanto recusa.

Estratégia idêntica é evidenciada no discurso de Roza de Oliveira que, segundo um telegrama de Janeiro de 2007, teria assumido que alguns voos da CIA sobrevoaram Portugal, o que cons‑tituiria o primeiro reconhecimento por parte de um funcionário do Governo Português. O asses‑sor nega terminantemente tê ‑lo feito: “Não posso ter dito isso, porque nunca tive qualquer conhecimento, pessoal ou impessoal, sobre esse assunto (…) não tinha mais conhecimento do que um jornalista e não ouvi mais que conversas de corredor”. O advérbio de negação “não” é ver‑balizado três vezes, reforçado ainda pelo emprego da partícula “nunca”. Esta réplica, embora con‑sista igualmente numa denegação, por recusa e por insistência, é notoriamente menos assertiva que a retorsão de Sócrates; a expressão “não ouvi mais que conversas de corredor” não autoriza a pressupor um total desconhecimento de Roza de Oliveira face à actuação do Governo. Dife‑rentemente, ela revela ‑nos um saber, ainda que parcial, sobre uma delação que não é totalmente infundada e que se encontra, inclusive, imersa num certo falatório, em “conversas de corredor”. O discurso de Roza de Oliveira constrói ‑se ainda sobre um implícito – o de uma certa presunção de omnisciência dos jornalistas, como se aquilo que não constasse nos meridianos do saber jorna‑lístico fosse, puramente, destituído de existência. O que, porém, é comum a ambos os discursos é – sublinhe ‑se – uma incapacidade de formular orações pelo sentido afirmativo, socorrendo ‑se os enunciadores de expressões peremptórias na sua negação. Não obstante, refira ‑se que “mais do que uma negação, a denegação pode acabar por funcionar como uma afirmação formulada pela negativa” (Rebelo, 2002).

Mais vacilante e ambíguo é o discurso atri‑buído a Luís Amado. Citando um telegrama, o El País escreve que o ministro admitiu que “os ale‑gados voos da CIA poderão ter sobrevoado Por‑tugal, mas acrescentou que o seu Governo não tem que se envergonhar de nada”. Ouvido no Parlamento, o MNE fez questão de assegurar que “se tivesse havido operação ela teria sido pública,

para ficar sob escrutínio público”. Ao invés de uma negação inflexível, categórica, o discurso de Luís Amado alicerça ‑se numa estrutura condicio‑nal, sustentada pela conjunção “se”; além disso, o MNE pontua o seu discurso de vocábulos como “alegados”, de expressões como “o governo não tem que se envergonhar de nada” e de fórmulas verbais no futuro de pretérito do indicativo, que deixam latente uma posição menos imperativa e uma admissão implícita, sui generis, da veracidade das acusações apontadas ao Governo português.

Conclui ‑se que nenhum dos actores políticos assume ter dado luz verde aos voos da CIA, ou sobre isso ter algum conhecimento clarividente. Contudo, as respostas, formuladas na negativa ou no arranjo condicional, revelam ‑se pouco convictas, e sobretudo pouco convincentes.

Analisemos agora o discurso dos dirigentes do PS que terão esgrimido críticas mordazes a Ana Gomes. Num telegrama de Janeiro de 2007, o embaixador escrevia para Washington dizendo que Roza de Oliveira teria classificado Ana Gomes como uma “senhora muito excitada”. É, desde já, relevante notar que a palavra “excitada” tem vastíssimas conotações que se estendem da acepção de mulher desbragada – e há aqui uma clara alusão injuriosa de cariz sexual – à alusão ao descontrolo, à ideia de que a mulher é mais propensa ao descomedido, é desprovida daquela racionalidade capaz de controlar os impulsos. Deixa ‑se, pois, implícita a imagem, já vetusta, da menoridade da mulher, velho preconceito filosófico ‑político, celebrado inclusive na ópera (“La donna è mobile”). Além de ser caracterizada como “muito excitada”, ela é ainda (des)qua‑lificada como “pior que um rottweiler à solta”. Realce ‑se aqui o emprego de uma metáfora que em nada abona a favor de Ana Gomes, já que ela é equiparada a um animal que se singulariza pela sua ferocidade. No entanto, numa escala comparativa de agressividade, a eurodeputada parece estar num grau superlativo, dado que chega a ser “pior que um rottweiler”. E, para aumentar ainda mais a amplitude do seu carácter belicoso, há um prolongamento sintagmático, pois ela é pior que “um rottweiler à solta”. Trata‑‑se, portanto, de um discurso que assenta num

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jogo de sobrelexicalização que visa denegrir a acção de Ana Gomes e desacreditar a sua auto‑ridade política.

No que toca à resposta de Roza de Oliveira, confrontado com a autoria desta frase, constata‑‑se que o seu desdizer é, na verdade, um reafir‑mar. O assessor declarou: “O que posso ter dito, porque tinha um rottweiler na altura, é que a diferença entre Ana Gomes e um rottweiler é que este larga. Era uma expressão que eu usava”. Note ‑se que, nesta aparente negação, Roza de Oliveira não cessa de colocar como parâmetro motriz a comparação que é arguido ter formu‑lado. Ao fazê ‑lo, ele não contesta o pressuposto essencial que fundamenta a comparação, mas revalida ‑a. Há, pois, uma qualidade inerente aos elementos colocados em paralelismo – a feroz perseverança com que se defendem a si e/ou aos seus ideais – que legitima a analogia que, supos‑tamente, refuta no seu discurso. Veja ‑se ainda que esta frouxa objecção assenta numa espécie de falácia informal, pois que se pretende susten‑tar uma conclusão a partir de proposições com‑pletamente irrelevantes e, até mesmo, irrisórias.

A eurodeputada é implicada noutra conversa, entre Hoffman e os dirigentes do PS José Lello e Paulo Pisco. Segundo um telegrama, “Lello expressou uma clara aversão a Ana Gomes, embora tenha dito que o PS não pensava em expulsá ‑la porque seria contraproducente”. Refere ‑se ainda que Lello assegurou que os prin‑cipais líderes do PS, incluindo José Sócrates, são “claramente pró ‑americanos”, e depreciou a ala esquerda do partido que designou de “ale‑gristas”. Em resposta a estas declarações, Lello nega ter apelidado os dirigentes do PS de “pró‑‑americanos”: “Tenho a experiência diplomática suficiente para saber que jamais diria que sou pró ‑americano. O que não sou, isso sim, é anti‑‑americano.” É de frisar o emprego do advérbio de negação “jamais”, que impregna o seu dis‑curso de um tom imperativo, a que acresce uma dupla negação de que não é anti ‑americano. Res‑salta, uma vez mais, uma inabilidade, por parte deste actor político, para expor a sua posição pela positiva, aninhando ‑se este, diversamente, no subterfúgio da negação duplicada, aliada a

um silogismo artificioso em que as premissas são compostas por conjecturas que se situam em extremos diametralmente opostos, remetendo a conclusão para uma auto ‑exclusão em qualquer um dos pólos assimétricos, mas que redunda num desconhecimento da posição efectiva que o actor em causa ocupa no sistema das relações internacionais. Sobre as frases que lhe são atri‑buídas a propósito de Ana Gomes, Lello admite: “Não tenho aversão. Tive e tenho divergên‑cias políticas com Ana Gomes. Isso é público.” Assinale ‑se que Lello não se limita a constatar que tem diferenças políticas com Ana Gomes; ao invés, ele sente a necessidade de afirmar, por antecipação, não ressentir essa animosidade que lhe é imputada. Ora, a negação insistente, inadver tida e de antemão, daquilo que Lello pensa que o auditório poderá ver no seu enun‑ciado, suscita o efeito contrário, reanimando a efectividade do sentimento de aversão que supos‑tamente desmente nutrir.

O discurso do jornal: Público vs El País

Pretende ‑se agora fazer uma análise compara‑tiva do discurso construído pelos jornais Público e El País. Um aspecto comum molda as peças jor‑nalísticas: ambas assentam num duplo implícito, cuja explicitação seria profundamente indeco‑rosa. Com efeito, as notícias fundamentam ‑se no poder da não nomeação, como se todos soubes‑sem aquilo de que se fala, mas que em momento algum é dito. Na verdade, ao falar ‑se dos voos da CIA, o que está subentendido na problemática da autorização dos mesmos pelo Governo português não é a utilização do espaço aéreo nacional, mas sim o facto de a estes voos estarem subjacentes práticas de tortura, veementemente condenadas pelas Convenções que tutelam os Direitos do Homem. Outro implícito que estrutura os artigos prende ‑se com a constatação de uma subalter‑nização, nas relações internacionais, dos países europeus aos países americanos. Essa hierarquiza‑ção nunca é explicitada, embora o jornal El País ofereça alguns dados, como o de Portugal ser um fiel aliado da OTAN, mas que mais não são do

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que eufemismos para o facto de, nesta contenda, não haver um tratamento de aliados, mas sim de subalternos, em que os mais poderosos ordenam e os inferiores se limitam a acatar ou a negociar de forma contrariada. Ao recorrer ‑se ao implícito para assinalar a ausência de autonomia do poder político face a uma ordem oligárquica mundial, os EUA, e para denunciar a cumplicidade do Governo na viabilização da tortura, “[Beneficia‑‑se], simultaneamente, da eficácia da palavra e da inocência do silêncio” (Oswald Ducrot).

Atendendo agora às diferenças mais signifi‑cativas entre os textos, parece lícito inferir que o periódico português pretende manter um certo distanciamento face ao acontecimento narrado, o que fica patenteado pelo constante recurso à citação e pela tendência para transferir para a WikiLeaks e para os telegramas aí divulgados, a responsabilidade do dito. O jornal limita ‑se a dar conta da existência das alegadas afirmações, não as confirmando nem as desmentindo, qual estra‑tégia de salvaguarda do jornalista para proteger o seu papel de palavra enquanto informador e tentar afirmar perante os leitores o seu distancia‑mento (ritual da objectividade – Gaye Tuchman). Não dando como apodíctica a informação divul‑gada pela WikiLeaks, o jornal Público confronta ‑a, empiricamente, com os actores políticos a quem ela é taxada, daí resultando um discurso forte‑mente polarizado em que se podem discernir duas posições diametralmente opostas: por um lado, a plataforma WikiLeaks e os telegramas de Alfred Hoffman que noticiam certos dados em sentido afirmativo; por outro lado, os políticos que vêm desmentir os factos noticiados, num discurso que recorre eminentemente à negação. O leitor confronta ‑se, pois, com um produto altamente contraditório, em que deixa de haver uma linha rigorosa e congruente de elemen‑tos, para se passar a dar um discurso alicerçado na dicotomia do dizer e do desmentir do dito.

Já o diário espanhol emprega um tom mais assertivo e segue um axioma unívoco (consen‑tâneo ao conteúdo dos telegramas) estando o seu discurso despojado do princípio do con‑traditório que pauta a notícia do diário portu‑guês. Uma breve análise do título confirma esta

discrepância, pois enquanto o Público elege uma citação de Alfred Hoffman que reenvia para o discurso de Sócrates (“Aceitar voos era difícil por causa dos media e dos “esquerdistas” dentro do PS”), citação que, no plano da informação, tem um significado muito parco e que deixa latente uma certa ambiguidade, já que o adjectivo “difícil” impregna o título de um valor incerto, não permitindo deduzir sobre a factualidade dessa aceitação, o título do El País reveste ‑se do carácter de uma asseveração (“Sócrates aprobó en secreto los vuelos desde Guantánamo”). É relevante assinalar o uso de uma figura de retórica, a siné‑doque – enquanto o diário português falará do “Governo”, o diário espanhol escreve “Sócra‑tes”, tomando ‑se assim uma entidade plural por uma parte que a constitui. Destaque ‑se também a referência ao secretismo, com notória conota‑ção pejorativa numa governação que se pre‑tende democrática e transparente. O vocábulo “segredo” funciona como palavra ‑choque, na medida em que “contamina” o enunciado, con‑dicionando a reacção dos interlocutores (Cathe‑rine Kerbrat ‑Orecchioni). O subtítulo comprova a diferença insinuada no título. No segundo título que “actualiza o primeiro” (Rebelo, 2002), o diário português escreve: “El País divulgou os telegramas que confirmaram que o Governo deu luz verde à passagem de prisioneiros que saíam da base de Guantánamo”. A informação não é, portanto, a de que o Governo “deu luz verde à passagem de prisioneiros”, mas sim o facto de o jornal espanhol, qual entidade de referên‑cia, credível, (mecanismo de autentificação), ter divulgado os telegramas que veiculam essa informação. Já o jornal espanhol assegura que “Portugal dio luz verde al uso del espacio aéreo luso y la base de Lajes para la repatriación de presos de la cárcel de Estados Unidos. ‑ Lisboa reconoció que fue una decisión difícil”. Para usar uma terminologia de Halliday, pode dizer ‑se que o título do jornal Público se classifica como um processo verbal, na medida em que se relaciona com uma acção que implica dizer algo, enquanto o título do El País se enquadra na tipologia de um processo mate‑rial, pois articula ‑se com o acontecer em que um participante – o Governo – é, para empregar os

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termos do modelo actancial de Greimas, actor, ou força fundamental geradora de uma acção; há depois o objecto, aquilo que o sujeito intenta alcançar com a acção – aceitar voos. Depreende‑‑se que os telegramas publicitados pela WikiLeaks são válidos, para o El País, pelo seu significado, enquanto para o Público eles são tomados como significante.

O El País desenvolve, portanto, um dis‑curso consideravelmente mais comprometido e assume uma posição, corroborando os factos divulgados nos telegramas e fazendo do discurso destes o seu próprio discurso. Esta inferência pode ser constatada tomando em consideração o eixo da modalização, relativa à expressão da atitude do sujeito face às proposições que apre‑senta no enunciado. Enquanto o discurso do jor‑nal português Público recorre a uma fraca moda‑lização, o que o torna, atendendo a esse eixo, bastante transparente, sendo apenas de realçar o emprego recorrente de verbos no futuro de preté‑rito do indicativo como tentativa de o jornalista se distanciar da informação divulgada e proteger o seu papel de palavra enquanto informador, o discurso do El País é altamente modalizado, estando as expressões sistematicamente envol‑vidas num contexto que procura defender o enunciador. Para esse efeito, o jornalista socorre‑‑se de múltiplas estratégias discursivas, tanto em termos lexicais, e mencione ‑se aqui uma modalização de tipo afectiva/apreciativa, visível na frase “la excelente reputación de Luis Amado en la Administración estradounidense”, como em termos de uma forte estrutura relacional que cria entre factos diversos3, sustentada por um recuo temporal para o qual a narrativa convida o leitor. Evocam ‑se, por exemplo, as pressões de Washington como factor com potencial rela‑ção de causalidade na decisão portuguesa de ser conivente com a actua ção norte ‑americana; menciona ‑se a investigação levada a cabo por

Ana Gomes, que rastreou cerca de 94 voos com destino e procedência de Guantánamo; é tam‑bém referenciado que “la oposición de izquierda acusa al Governo de ser cómplice de EE UU en los vuelos ilegales de la CIA y la supuesta violación de la soberania portuguesa”, discurso indubitavelmente mais vinculativo que o do diário português4, e onde pontificam vocábulos extremamente por‑tentosos e asseverantes, como “acusa”, “cúm‑plice”, “vuelos ilegales”, “supuesta violación”, ter‑mos com os quais o jornalista pretende sugerir que o uso do espaço aéreo foi livre e conscien‑temente consentido; produz ‑se desse modo um “espaço de segurança” que reitera a informação que a notícia espanhola pretende transmitir. Como escreve Perelman (1993) “desde que haja elementos do real associados uns aos outros numa ligação reconhecida, é possível fundar nela uma argumentação que permite passar daquilo que é admitido ao que se quer fazer admitir”. Mais do que informar o público, o jor‑nalista espanhol parece querer convencê ‑lo de que os conteúdos divulgados pelos telegramas são de facto verídicos. Há, efectivamente, uma certa dimensão retórica na notícia do El País, pelo efeito de asseveração que ela faz transpa‑recer – persuasão assertiva –, e que consiste na formulação de sentidos de uma forma em que estes não sejam apenas percebidos pelos desti‑natários, mas que sejam também aceites como a verdade ou, no mínimo, como a verdade possível de se atingir pelas palavras (discurso credível).

No que concerne a dictização, que implica estudar a posição ocupada pelo sujeito enuncia‑dor, torna ‑se pertinente referir que, perante esta incessante cadeia de mediações, há uma multipli‑cidade de hipóteses de análise: uma delas é a de haver, nos textos, uma sui generis dissolução do sujeito; por outro lado, podemos estar perante aquilo a que Bakthine denomina polifonia de vozes, ou seja, uma pulverização de sujeitos que

3 Essa cadeia temporal releva daquilo que H. Arendt (citada por Queré, 2005) entende como uma tentativa de “reduzir as descontinuidades e para socializar as surpresas provocadas pelos acontecimentos; (…) restaura‑mos a continuidade (…) ligando a ocorrência do acontecimento a um passado de que ele é o ponto de chegada ou incluindo ‑o num contexto no qual ele se integra coerentemente e surge como, afinal, previsível”.

4 O Público escreve que “o Bloco de Esquerda enviou um requerimento ao primeiro ‑ministro, questionando ‑o”.

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torna improvável a identificação de um sujeito uno e inequívoco. Uma outra hipótese plausível, e que merece uma reflexão mais elaborada, é a de a informação ser o próprio sujeito. Estaríamos, nesse caso, numa espécie de tautologia da informação, em que ela se alimentaria a si própria e se apode‑raria do lugar de sujeito. Não é, portanto, o enun‑ciador que enuncia a informação, mas a informa‑ção que arroga a si mesmo o papel de enunciador, estando como tal imbuída de um valor metafísico. É ela que se impõe aos sujeitos, como sujeito, pro‑jectando um sentido e uma inteligibilidade de forma autónoma. Parafraseando Blumenberg5, a informação não é apenas provida de sentido, mas é particularmente significativa, não tem apenas significação, mas “significatividade”. Transporta consigo, para usar uma expressão de Romano6, “as condições da sua própria inteligência”.

Esta verdadeira parafernália de vozes e a dificuldade de seleccionar quem é o sujeito de enunciação, torna inviável uma análise linear, unívoca do mecanismo de dictização.

Da análise esboçada, parece lícito concluir que, enquanto o discurso do jornal Público pro‑cura uma certa retórica da imparcialidade pela busca da simetria, do equilíbrio e do meio ‑termo, o discurso do jornal El País parece mais propenso a construir uma índole de verdade incontestá‑vel que se impõe à “expressão dos interesses dos dominados, assim remetidos à eufemização do discurso oficial ou à indignidade da raiva impo‑tente” (Bourdieu, 1985).

Conclusão

Como refere José Manuel Santos (2005), “vivemos numa sociedade de acontecimentos”. É o “acontecimento que dá unidade ao mundo”. De facto, para Nicklas Luhmann, recordado pelo autor, a pedra angular da sociedade “não são os indivíduos (Aristóteles), ou acções (Weber), ‘factos sociais’ (Durkheim), valores (Parsons,

Habermas) ou ‘estruturas’ (estruturalismo), mas puros acontecimentos”.

Particularmente significativo quanto aos tele‑gramas divulgados pela WikiLeaks é que, neste caso, o acontecimento é a própria informação. Ou, leia ‑se na perspectiva inversa: a informação, que é força propulsora de mais informação, gera o acontecimento. Mais do que acções ou factos que se inscrevem num plano físico, o conflito é gerado a partir da informação, aqui dotada – permita‑‑se ‑nos dizer assim – de valor “metafísico”. Essa auto ‑suficiência da informação reflecte ‑se num discurso jornalístico altamente nominalizado, autonomizado, com uma forte estruturação do objecto, daí o “desinvestimento do sujeito, ou o facto de a instância de enunciação se retirar”7.

Todo o acontecimento em torno dos voos da CIA e do palavreado injurioso votado à euro‑deputada Ana Gomes não é mais do que uma reconstrução do sistema de informação, infor‑mação essa que assume um certo carácter de meta ‑informação ao tentar interpretar e confe‑rir sentido a informações prévias, inicialmente ocultadas do grande público. Ao serem “desocul‑tadas”, desveladas ao olhar do leitor, essas infor‑mações perpetuam um enredo emparelhado de novas informações e uma série de comentários que, por sua vez, estão na génese de novos acon‑tecimentos. Do acontecimento político – permuta dos telegramas – dimana o acontecimento mediá‑tico – com a revelação do acontecimento político pela WikiLeaks. E, retroactivamente, a difusão dos conteúdos da WikiLeaks pela imprensa aumenta a proporção mediática desse acontecimento já mediatizado, engendrando, como que automa‑ticamente, novos acontecimentos mediáticos.

Além de uma sociedade de acontecimentos, estamos perante uma sociedade que perdeu a ética do silêncio. Na obra A arte de calar (2002), o Abade Dinouart escreve que “só se deve deixar de calar quando se tem algo a dizer que valha mais do que o silêncio”. No entanto, a lógica que impera contemporaneamente, com a ubiquidade

5 Citado por Santos, 2005.6 Citado por Queré, 2005.7 Parret, Herman, em “L’énonciation en tant que déictisation et modalisation”, 1983, citado por Rebelo (2000).

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dos media e a “explosão da comunicação” (Bre‑ton & Proulx, 1991) reenvia para uma cons‑tante incapacidade de calar. O caso em análise é um exemplo paradigmático de um trivial fait divers que se alimenta de um insípido falatório: à excepção de Ana Gomes, que optou por não tecer qualquer comentário ao teor dos telegramas divulgados, cada agente, desde os políticos aos jornalistas, produz conteúdos discursivos sobre cuja autenticidade pouco se sabe. Contra as vir‑tudes oportunas do silêncio – o autocontrole e a prudência ‑, sucedem ‑se discursos despidos de circunspecção, de espera. Pelo contrário, há um querer falar de tudo, escrever sobre tudo, aquilo que Dinouart designa de “histerização da escrita” e “teatralização da palavra”, em geral sem outros conhecimentos além daqueles que adquirimos em rápidas leituras ou nas conversações quoti‑dianas. Dinouart critica essa precipitação, este arrebatamento por escrever, que deixa de cultivar a reflexão e a contenção e que dá azo a uma infor‑mação comandada pelo imediatismo, que redun‑dará na sua brevidade e volatilidade. Parece haver um esquecimento de que, na verdade, “É um mérito calar o que se ignora” (Dinouart, 2002).

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Jornal El País – 15 de Dezembro de 2010

Vuelos CIA

Sócrates aprobó en secreto los vuelos desde Guan‑tánamo

ANEXOS

Portugal dio luz verde al uso del espacio aéreo luso y la base de Lajes para la repatriación de presos de la cárcel de Estados Unidos. Lisboa reconoció que fue una decisión difícil

FRANCESC RELEA

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El primer ministro portugués, José Sócrates, y el ministro de Asuntos Exteriores, Luis Amado, autorizaron el sobrevuelo de aviones estadouni‑denses con prisioneros repatriados de la cárcel de Guantánamo, y el uso de la base aérea esta‑dounidense de Lajes, en las islas Azores, aun‑que el Gobierno luso nunca lo ha reconocido públicamente. Varios cables de la Embajada de EE UU en Lisboa entre los años 2006 y 2009 dan cuenta de las presiones de Washington y la cautela con la que actuó el Ejecutivo portugués para autorizar dichos vuelos. Las denuncias de la existencia de prisiones clandestinas en Europa (Rumania y Polonia) y de vuelos secretos de la CIA, en los que detenidos de origen árabe, sospe‑chosos de terrorismo, eran trasladados clandes‑tinamente en aviones estadounidenses a Guan‑tánamo, habían levantado una gran polvareda en Portugal.

– Cable en el que EE UU pide autorización para usar la base de Lajes para repatriar pri‑sioneros de Guantánamo

– Cable en el que Luis Amado compromete la dimisión si se prueban las acusaciones de los vuelos de la CIA

– Cable del embajador Hoffman a Condole‑ezza Rice: "Portugal es un firme aliado"

– Cable en el que Amado dice: "Ha sido una decisión difícil por las críticas de los medios y de los izquierdistas"

– Cable en el que se dice que Sócrates auto‑rizó los vuelos de repatriación de prisione‑ros de Guantánamo

"Sócrates ha aceptado permitir la repatriación caso por caso de combatientes enemigos desde Guantánamo a través de la base aérea de Lajes", escribe el embajador Alfred Hoffman en un des‑pacho enviado a Washington el 7 de septiem‑bre de 2007, diez días antes de una reunión del presidente George Bush con el primer ministro portugués. "Ha sido una decisión difícil", añade, "debido a las críticas constantes de los medios portugueses y de elementos izquierdistas de su propio partido a la actuación del Gobierno en la controversia de los vuelos de la CIA". El embaja‑

dor subraya que la luz verde de Sócrates nunca se ha hecho pública, y da cuenta de que el fiscal del Estado "se ha visto obligado a analizar una recopilación de noticias de prensa y acusaciones no probadas facilitadas por un miembro del Par‑lamento Europeo sobre las operaciones de la CIA a través de Portugal".

Cuatro días después, otro cable deja en evi‑dencia al ministro de Exteriores, al reseñar que Amado también autorizó la repatriación de pri‑sioneros a través de Lajes, bajo la misma premisa de "caso por caso en determinadas circunstan‑cias". El despacho añade la misma coletilla de que el ministro nunca lo reconoció en público.

El compromiso de Amado

Las presiones de Washington para lograr la autorización de Portugal para el uso de la base en las Azores, como punto de tránsito de vuelos de repatriación de prisioneros de Guantánamo, quedan en evidencia en varios cables envia‑dos desde Lisboa los años 2006 y 2007. En uno de ellos, de septiembre de 2006, el embajador Hoffman informa de una reunión mantenida con el ministro de Asuntos Exteriores. Amado contesta que tiene que consultar con el jefe de Gobierno, y adelanta que costará convencerle. Se compromete ante el embajador a hacer todos los esfuerzos para lograr una cooperación de Portugal, siempre y cuando haya transparen‑cia total de la parte estadounidense. "Si no lo hacemos bien puede ser un tremendo fracaso", advierte Amado.

En Portugal, la oposición de izquierda acusa al Gobierno de ser cómplice de EE UU en los vue‑los ilegales de la CIA y la supuesta violación de la soberanía portuguesa. El 18 de octubre, Amado comparece ante el Parlamento y compromete su dimisión si se demuestran las acusaciones. El ministro asegura que una investigación conjunta de varios departamentos gubernamentales (agen‑cias de inteligencia, inmigración y control aéreo) no ha encontrado ninguna evidencia. Amado

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llega a admitir, según otro cable, que "los presun‑tos vuelos de la CIA podrían haber sobrevolado Portugal, pero añadió que su Gobierno no tiene que avergonzarse de nada".

Casi un centenar de vuelos

A partir de una denuncia de The Washington Post, la eurodiputada socialista y diplomática Ana Gomes (fue embajadora en Indonesia) rastreó hasta 94 vuelos con destino y procedencia de Guantánamo que sobrevolaron España y Portu‑gal, entre otros países. En febrero de 2009, Gomes dijo a este diario que, según la información a la que tuvo acceso, hubo vuelos de traslado y repa‑triación de prisioneros de Guantánamo desde 2002 hasta, al menos, junio de 2006.

Las críticas provocan gran revuelo en las filas del Partido Socialista (PS), según refleja un cable de enero de 2007, que da cuenta de una reunión en la embajada con los dirigentes del PS José Lello y Paulo Pisco, en la que se habla de las acusaciones de Ana Gomes y de un sector del movimiento socialista europeo. "Lello expresó una clara aversión hacia Gomes, aunque dijo que el PS no pensaba expulsarla porque sería contra‑producente para el partido", advierte el cable, que asegura que la eurodiputada está aislada tanto en el PS como en el Parlamento Europeo.

Lello aseguró a sus interlocutores que los principales líderes del PS, incluido el primer ministro, "son claramente proamericanos", y des‑calificó el ala izquierda del partido, a la que cali‑ficó de "alegristas", en referencia a Manuel Alegre, veterano socialista que es el candidato del PS en las elecciones presidenciales del mes próximo.

"Peor que un rottweiler"

Jorge Roza de Oliveira, asesor diplomático del primer ministro luso, fue más lejos en la descalificación de Ana Gomes, a quien describió ante el embajador Hoffman como "una señora

muy excitada que es peor que un rottweiler suelto", según refleja un cable de enero de 2007. Tras aquella reunión de Roza de Oliveira con el diplomático, el testimonio de la Embajada señala que el consejero de Sócrates asumió que algunos vuelos de la CIA sobrevolaron Portugal, lo que "constituye el primer reconocimiento que nos ha hecho hasta ahora un funcionario del Gobierno portugués".

La excelente reputación de Luis Amado en la Administración estadounidense queda reflejada en un cable enviado a la secretaria de Estado, Condoleezza Rice, por el embajador Hoffman pocos días antes de una reunión entre los dos dirigentes políticos. El diplomático destaca la tradicional lealtad de Portugal, "socio funda‑dor de la OTAN", y recuerda que se trata de una nación que apoyó desde el primer momento la intervención de EE UU en Irak y albergó la cumbre de las Azores antes de la guerra [la de la famosa foto de Bush, Blair y Aznar]. Un aliado que "permitió virtualmente libre acceso al espa‑cio aéreo y marítimo portugués para los vuelos de apoyo a las operaciones militares en Irak y Afganistán, con unos 3.000 vuelos al año que pasaban por la base de Lajes".

Amado nunca ocultó a Estados Unidos su respaldo a la repatriación de prisioneros de Guantánamo a través de la base de Lajes, pero siempre subrayó la necesidad de que dichas ope‑raciones se realizaran en el marco de la legalidad portuguesa.

*

Jornal Público – 16 de Dezembro de 2010

Wikileaks Documentos do WikiLeaks revelam teor dos contactos com os Estados Unidos

Aceitar voos era difícil por causa dos media e dos "esquerdistas" dentro do PS

O El País divulgou os telegramas que confirmam que o Governo deu "luz verde" à passagem de prisio‑neiros que saíam da base de Guantánamo.

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NUNO RIBEIRO, MARIA JOSÉ OLIVEIRA E NUNO SIMAS

O primeiro ‑ministro e o ministro dos Negó‑cios Estrangeiros (MNE) autorizaram que o ter‑ritório nacional fosse sobrevoado por aviões norte ‑americanos com prisioneiros repatriados da prisão de Guantánamo, e a utilização da base aérea dos Açores nestas operações, publicou o El País ontem à noite, na sua edição online. O diário espanhol cita diversos telegramas diplomáticos enviados pela embaixada dos Estados Unidos em Lisboa ao Departamento do Estado, que constam dos 251 mil documentos recolhidos pela Wiki‑Leaks, sublinhando que esta autorização nunca foi publicamente reconhecida pelas autoridades portuguesas.

"Sócrates aceitou permitir o repatriamento de combatentes inimigos de Guantánamo atra‑vés da base das Lajes", escreve em telegrama de 7 de Setembro de 2007 o chefe da representação diplomática dos EUA em Lisboa, Alfred Hoffman. "Foi uma decisão difícil devido às críticas cons‑tantes dos meios de comunicação portugueses e de elementos esquerdistas do seu próprio par‑tido à actuação do Governo na controvérsia dos voos da CIA", diz. Esta nota, enviada dez dias antes de uma reunião de George W. Bush com José Sócrates, refere que a autorização nunca foi tornada pública.

Alguns meses depois, questionado no Parla‑mento por Francisco Louçã sobre se o Governo autorizara ou tivera conhecimento "de qualquer transporte de prisioneiros da CIA por território português para o gulag de Guantánamo", assegu‑rou: "Consultei todos os membros do Governo com responsabilidades neste domínio e devo dizer que o Governo nunca foi consultado sobre essa possibilidade nem nunca autorizou [o sobre‑voo do espaço aéreo ou a aterragem na base das Lajes de aviões destinados ao transporte ou trans‑ferência de prisioneiros]. Posso responder ‑lhe em nome deste Governo que nunca aconteceu ter‑mos sido consultados e termos autorizado. Estes dois actos nunca existiram."

11 de Setembro de 2007

Noutro telegrama, enviado em 11 de Setem‑bro de 2007, o embaixador refere a posição de Luís Amado. Hoffman assinala que Amado autorizou o repatriamento através das Lajes sob a mesma premissa, "caso a caso em determina‑das circunstâncias". Já em Setembro de 2006 o embaixador relatara uma reunião com o chefe da diplomacia portuguesa sobre os voos de repa‑triamento, na qual o ministro se compromete a fazer todos os esforços para conseguir uma cooperação de Portugal, desde que haja transpa‑rência total da parte norte ‑americana. "Se não o fazemos bem pode ser um tremendo fracasso", escreve Hoffman, citando uma frase de Amado. Citando um outro telegrama, o El País escreve que o ministro admitiu que "os alegados voos da CIA poderão ter sobrevoado Portugal, mas acrescentou que o seu Governo não tem que se envergonhar de nada".

No passado dia 7, o MNE, ouvido no Parla‑mento, assumiu que foram feitas "diligências" por parte dos EUA, distinguindo "voos da CIA" e voos de repatriamento. No entanto, fez questão de garantir que, "se tivesse havido operação [de repatriamento] ela teria sido pública, para ficar sob escrutínio público." Ao PÚBLICO, a assessora de imprensa do MNE, Paula Mascarenhas, reme‑teu para as declarações de Amado. "Não houve nada que o Estado português tenha tido conhe‑cimento", disse.

O assessor de Sócrates

Já em Janeiro de 2007, o embaixador escre‑via para Washington dando conta de um outro dado relevante: o assessor diplomático de Sócra‑tes, Jorge Roza de Oliveira, tinha assumido que alguns voos da CIA sobrevoaram Portugal, o que "constitui o primeiro reconhecimento que nos foi feito até agora por um funcionário do Governo português", escreve o El País. Ao PÚBLICO, Roza de Oliveira, que já não desempenha aquelas fun‑ções, negou em absoluto que o tenha feito: "Não

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posso ter dito isso, porque nunca tive qualquer conhecimento, pessoal ou impessoal, sobre esse assunto. Como assessor diplomático do primeiro‑‑ministro, não tinha mais conhecimento do que um jornalista e não ouvi mais que conversas de corredor", afirma.

Entretanto, o Bloco de Esquerda enviou um requerimento ao primeiro ‑ministro, questio‑nando‑o sobre se o seu gabinete "teve conheci‑mento de voos, provenientes de Guantánamo, que tenham atravessado o espaço aéreo nacional ou utilizado instalações aeronáuticas". Os blo‑quistas querem ainda saber, em caso afirmativo, quais os voos, quando se realizaram, quem eram os passageiros e qual o destino. E se o Governo autorizou esses mesmos voos.

“Aversão” a Ana Gomes

O que Roza de Oliveira não nega é que tenha tido "milhões de encontros" com o embaixador Hoffman. Num deles, segundo o mesmo tele‑grama, terá dito que Ana Gomes "é uma senhora muito excitada que é pior que um rottweiler solto". O assessor rejeita esta frase: "O que posso

ter dito, porque tinha um rottweiler na altura, é que a diferença entre Ana Gomes e um rottweiler é que este larga" aquilo a que se agarra. "Era uma expressão que eu usava", afirma.

A eurodeputada é protagonista noutra con‑versa, desta vez entre Hoffman e os dirigentes do PS José Lello e Paulo Pisco. "Lello expressou uma clara aversão a Gomes, embora tenha dito que o PS não pensava em expulsá ‑la porque seria con‑traproducente", escreve o diplomata. Na nota, sublinha que Lello assegurou que os principais líderes do PS, incluindo Sócrates, "são claramente pró ‑americanos", e desqualificou a ala esquerda do partido, que qualificou de "alegristas". Ao PÚBLICO, Lello diz não se lembrar da reunião, mas admite que "possa ter acontecido". E nega que possa ter dito que os dirigentes do PS são "pró ‑americanos". "Tenho a experiência diplomá‑tica suficiente para saber que jamais diria que sou pró ‑americano. O que não sou, isso sim, é anti‑‑americano." Sobre as frases que lhe são atribuí‑das sobre Ana Gomes, Lello admite: "Não tenho aversão. Tive e tenho divergências políticas com Ana Gomes. Isso é público."

Com L.B.

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Hegemonia e linguagem

Hegemonia pode ser definida como a capacidade de um grupo social determinar o sentido da realidade, exercer sua liderança intelectual e moral sobre o

conjunto da sociedade. A luta pela hegemonia – pela orga‑nização da cultura – é, nesse sentido, uma luta pela arti‑culação de valores e significações que concorrem para a dire‑ção político ‑ideológica dos indivíduos. Mas essa batalha de idéias não pode deixar de ser pensada, dialeticamente, como uma luta pela sistematização de formas culturais, isto é, de linguagens que expressam tais representações e conteúdos.

Empenhado em compreender como se dão as relações de hegemonia na sociedade burguesa, o pensador italiano Antonio Gramsci atribui grande importância ao estudo das linguagens e das línguas1. Segundo ele, esse estudo deve ter um caráter “despreconceituoso e, sobretudo, ideológico‑‑histórico, e não estreitamente gramatical”: a língua deve ser tratada como uma concepção do mundo, como a expressão de uma concepção do mundo. Toda língua, diz ele, é “um conjunto de noções e de conceitos determinados” e não, simplesmente, uma “veste que sirva indiferentemente como forma a qualquer conteúdo” (1999 ‑2002, v.5: 229). As formas históricas são portadoras de conteúdos históricos.

Nessa perspectiva, “linguagem significa também cultura e filosofia” (Gramsci, 1999 ‑2002, v.1: 398). E, como tal, deve ser compreendida como um campo de força ideológico onde entram em disputa os interesses de diferentes grupos sociais. Nesse campo, dirá Gramsci retomando Marx, “os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam”

(1999 ‑2002, v.1: 237). Nele, as classes e frações de classes esforçam ‑se por impor sua visão de mundo e con‑tar a história a partir da sua própria perspectiva.

Essa compreensão da lingua‑gem como um “aspecto da luta política” (Gramsci, 1999 ‑2002, v.6: 149) encontra afinidade com o pen‑samento do marxista russo Mikhail Bakhtin. Partindo do reconheci‑mento de que “classes sociais dife‑rentes servem ‑se de uma só e mesma língua” e que, portanto, uma mesma palavra pode ser interpretada de maneira diferente por distintos sujeitos históricos, Bakhtin pensará o signo como uma “arena onde se desenvolve a luta de classes” (1997: 46). Isso que Bakhtin – a partir da filosofia da linguagem – chamou de “confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica” (Ibid.), Gra‑msci designaria luta pela hegemo‑nia político ‑cultural. Entendendo a cultura/linguagem como uma das instâncias da luta pela hegemo‑nia, Gramsci sustenta que a dire‑ção político ‑ideológica dos estratos

Monopólio da fala e espontaneidadedas massas

Eduardo graNJa coutiNho*

“Das velhas antenas vêm as velhas tolices.A sabedoria é transmitida de boca em boca.”

bErtolt brEcht

* Professor na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).1 Gramsci usa o termo “linguagem” para denotar um subconjunto do fenômeno mais amplo da língua, que

como tal pode indicar o modo de falar ou de exprimir ‑se de um grupo social.

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dirigentes envolve o empobrecimento, a frag‑mentação e a coisificação da linguagem/cons‑ciência popular e que, portanto, a organização de uma cultura contra ‑hegemônica implica o desenvolvimento da auto ‑expressão das camadas subalternas, o aperfeiçoamento da forma histó‑rica por meio da qual se expressa o conteúdo revolucionário, seja pela “aquisição de novos meios de expressão”, seja pela elaboração de “novos matizes de significado e de uma ordem sintática e estilística mais complexa”.

Fragmentos da consciência

Segundo Gramsci, o ponto de partida para a organização da cultura das massas deve ser a análise crítica do senso comum, que é a “filosofia das multidões”, a qual se trata de tornar ideolo‑gicamente homogênea, coerente, sistemática. Segundo ele, o traço fundamental e mais carac‑terístico dessa “filosofia dos não filósofos” é o de ser “um agregado caótico de concepções dispa‑ratadas” (1999 ‑2002, v.1: 117). Enquanto a fala oficial é sistematicamente articulada por meio de uma matriz de canais institucionais, as formas de consciência do povo são descontínuas e frag‑mentárias. Nelas, pode ‑se encontrar uma infini‑dade de traços deixados pelo processo histórico:

“Pertencemos simultaneamente a uma mul‑

tiplicidade de homens ‑massa, nossa própria per‑

sonalidade é compósita de uma maneira bizarra:

nela se encontram elementos dos homens das

cavernas e princípios da ciência mais moderna

e progressista, preconceitos de todas as fases

históricas passadas estreitamente localistas e

intuições de uma futura filosofia que será pró‑

pria do gênero humano mundialmente unifi‑

cado” (1999 ‑2002, v.1: 94).

Traços dessas diferentes concepções de mundo permanecem na linguagem. Basta pensar, por exemplo, nos provérbios, ditados e lugares comuns de diferentes épocas e contextos cultu‑rais que constituem a consciência fragmentária das massas na atualidade. Boa parte desses ditos,

que estruturam a moral popular, tem origem bíblica (“olho por olho, dente por dente”, “quem não tiver pecado, atire a primeira pedra”, etc.). Outros, expressando uma moral burguesa, são igualmente aplicados à vida cotidiana (“tempo é dinheiro”, “quem poupa tem”, “negócio é negócio”, etc.). O pensamento das massas é cons‑truído a partir dessas formas históricas, estrati‑ficadas em sua consciência. Formas que são per‑manentemente reelaboradas pelos sujeitos atuais por meio de suas falas. Daí o entendimento das narrativas – midiática, literária, religiosa, jorna‑lística, musical ‑popular, etc. – como falas que constroem, a partir de traços que testemunham o passado, historicidades convenientes às pers‑pectivas de diferentes grupos sociais.

Posto que a linguagem é um dado social que estrutura a consciência, cabe indagar sobre as narrativas e as formas de comunicação predo‑minantes na consciência popular na sociedade contemporânea. Isso nos ajudaria a responder à questão colocada por Gramsci: “Qual é o tipo histórico de conformismo, de homem ‑massa do qual fazemos parte?” (1999 ‑2002, v.1: 94). Con‑siderando a centralidade da mídia eletrônica na sociedade civil, sua principalidade na orga‑nização da consciência popular, partiremos da hipótese de que o tipo histórico de conformismo do qual fazemos parte, hoje, não pode ser com‑preendido sem uma análise do modo como os modernos meios de comunicação reelaboram os signos do passado, se apropriam de formas e linguagens populares, reinterpretam a tradição.

A consciência desse homem ‑massa é um mosaico em que, entre traços da cultura oral, da cultura letrada, de crenças religiosas, etc., sobressaem ‑se as idéias, valores e significações criados e recriados pelos meios de comunica‑ção eletrônica. Os clichês e bordões televisivos, reproduzidos em publicidades (“eu gosto de levar vantagem em tudo, certo?”), novelas, programas humorísticos e esportivos são as máximas, os adágios modernos. O acolhimento e a repetição desses provérbios midiáticos pelo homem comum no seu dia ‑a ‑dia evidencia que a hegemonia está contida na própria linguagem. Quem tem o poder de dar nomes, de criar jargões, define como

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os demais vão pensar. É o poder das palavras, exercido pelos que controlam os grandes meios.

Ao invés de permitir a mediação entre os homens – e sua apreensão crítica e transfor‑madora da realidade – o chavão televisivo é uma palavra oca, que tem como função impe‑dir qualquer reflexão e diálogo. Assim, observa Paulo Freire, esgotada a palavra de sua dimen‑são de ação, sacrificada a reflexão, a palavra se transforma em palavreria, verbalismo, blábláblá. Da expressão coisificada não se pode esperar a denúncia do mundo. Nesse sentido, a Pedagogia do oprimido envolve uma reflexão crítica sobre os “slogans dos opressores” (Freire, 2005: 90 ‑99), de maneira a que os homens, livres das formas de consciência que os escravizam, sintam ‑se “sujei‑tos do seu pensar”. Freire parte da convicção de que mesmo as lideranças revolucionárias não podem levar ao povo verdades estabelecidas sob a forma de clichês. O conhecimento deve ser buscado dialogicamente com o próprio povo, reconhecido como sujeito de sua educação. “Obstaculizar a comunicação é transformá ‑los [os homens] em quase ‘coisa’ e isso é tarefa e objetivo dos opressores, não dos revolucioná‑rios” (Idem: 145).

“Cala a boca, Galvão!”

“Bem, amigos da Rede Globo...”, diz o locutor Galvão Bueno sempre que inicia a transmissão de um jogo de futebol. Sua fala incorpora o jeito cordial do homem comum. Valendo ‑se dessa linguagem coloquial popular, Galvão nos inter‑pela como “amigos”; não somente como amigos seus, mas como amigos da Rede Globo. Galvão nos informa que a relação da Rede Globo com os telespectadores é uma relação de amizade, de camaradagem. E ao longo de toda a transmissão não há nada no tom de sua narrativa que indique a verdadeira natureza da relação entre a Globo e seus “amigos”.

Não se trata, aqui, de analisar o papel his‑tórico da Rede Globo na sociedade brasileira. Limitemo ‑nos a observar que a emissora, finan‑ciada pelo grupo norte ‑americano Time ‑Life no

momento em que se articulava a ditadura civil‑‑militar no Brasil, não tem agido desde então como uma amiga da classe trabalhadora. Veja ‑se o tratamento que ela tem dado aos movimentos sociais brasileiros, defendendo, invariavelmente, os interesses das elites nacionais e internacio‑nais. Mas, como diz o ditado, “amigos, amigos, negócios à parte”.

Os negócios da Globo não a impedem, no entanto, de gastar o precioso tempo de sua pro‑gramação (“tempo é dinheiro”, lembre ‑se) com vinhetas que enfatizam sua grande empatia com as massas. Nos anos 90, os amigos da Rede Globo ouviram exaustivamente o slogan: "Globo e você: tudo a ver". Também nas partidas de futebol, toda vez que um jogador chutava a gol e a bola não entrava, era o próprio Galvão quem lembrava ao telespectador: “Globo e você: tudo a ver”. Por que o locutor dizia isso precisamente no momento em que a bola saía pela linha de fundo é uma questão que deixo em aberto para os semiólo‑gos. Mas chamo a atenção para a genialidade perversa da frase.

Em um primeiro nível de leitura, fico sabendo aquilo que já me havia sido anunciado desde o primeiro momento: eu e a Globo temos uma grande afinidade, os mesmos interesses. Somos amigos. A TV da família Marinho gosta das mes‑mas coisas que eu, fala comigo na minha lingua‑gem. Como diriam os intelectuais à sombra do poder, ela dá ao povo o que o povo quer: novela, Big Brother, Faustão, Galvão... Mas esta é, na ver‑dade, segundo Adorno, uma tese cínica. Os con‑sumidores de entretenimento são eles mesmos objetos, ou na verdade, produtos dos mesmos mecanismos que determinam a produção cul‑tural (1985). A indústria cria a demanda para os bens culturais que ela produz. Aos homens não lhes restam muita escolha. Como poderão gostar de Pixinguinha e Hermeto Pascoal se tudo o que eles têm a ver é Britney Spears e Kelly Key?

Em um segundo nível de leitura, a expres‑são “tudo a ver” nos sugere que tudo o que há para ser visto pode ser visto na tela da Globo. O que não passa na Globo, portanto, não é algo a ser visto: é como se não existisse. O slogan sugere ainda que tudo a ser visto é a relação de

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identidade entre a “Globo e você”, a relação de amizade da Globo com o povo brasileiro. Qual‑quer outra identidade – a de classe, por exemplo – não é algo a ser visto, não faz parte da realidade representável. Outro dos slogans globais que marcaram época bate na mesma tecla: “O que pinta de novo pinta na tela da Globo”. É preciso dizer que, ao contrário do que sugere a frase, o “novo” aqui não se refere ao real histórico, ao que acontece de novo na sociedade (esse novo não pinta na Globo), mas às novidades da emis‑sora: novas atrações, novos rostos, novos efeitos, novas formas para um velho conteúdo. As velhas idéias da dominação se vestem com roupas sem‑pre novas, buscando para si uma aparência atra‑ente. Parafraseando Marx, poderíamos dizer que, longe de ser a sociedade que conquista para si um novo conteúdo, é a mídia que sob esse disfarce cria imagens e reforça sentimentos como parte de sua estratégia de controle sobre a sociedade.

Como até mesmo Galvão se cansa de repetir milhões de vezes a mesma frase, a Globo está sempre inovando. Hoje, quando a bola sai pela linha de fundo, deixando frustrados ou alivia‑dos os torcedores, o locutor bonachão profere em tom amistoso: “Globo: a gente se vê por aqui”. O discurso hegemônico se apropria de uma expressão popular – “a gente se vê por aí” – e se veste com a sua forma simpática, espontânea e coloquial para dizer que o povo brasileiro se vê pelas lentes da Globo. Esquece ‑se apenas de dizer que a gente se vê de forma distorcida; que a imagem do povo, assim como sua linguagem, é esvaziada e reificada. O homem do povo é inter‑pelado, nessa linguagem que é sua, como sujeito, quando, na verdade, é tratado como objeto.

Essa apropriação e distorção de signos popu‑lares – a criação de mitos, diria Roland Barthes – é o procedimento típico da ideologia burguesa. O mito, diz ele, é uma “fala roubada” – uma fala esvaziada de seu conteúdo histórico, de seu

passado, de sua memória. Uma fala roubada e resignificada na perspectiva ideológica domi‑nante, uma fala apropriada por uma outra fala, um sistema semiológico assimilado por um outro sistema semiológico (1980). Vejamos o caso exemplar da mistificação por Galvão da canção popular Pra não dizer que não falei das flores ou Caminhando.

Pra não dizer que não falei das flores (1968), do paraibano Geraldo Vandré, foi finalista do III Festival Internacional da Canção (TV Globo). Favorita de um público tendencialmente nacio‑nalista e de esquerda, essa canção teria ganho o festival, não fossem a censura e o DOPS2 proi‑birem. Entretanto, a derrota não impediu que ela se tornasse o símbolo maior da resistência à ditadura militar nos anos posteriores, tendo sido definida, certa vez, como a “nossa Marselhesa”, o hino nacional perfeito, visto que nascido no meio da luta; “foi crescendo de baixo para cima, cantado, cada vez mais espontânea e emocional‑mente, por maior número de pessoas” (Millor Fernandes apud Coutinho, 2002: 72).

Após o AI ‑53, o secretário de segurança do estado da Guanabara proibiu a execução pública de Caminhando, prevendo que a composição iria se tornar um slogan das manifestações estudantis de rua. Na verdade, a canção virou não só um hino dos estudantes contra a ditadura, como do conjunto dos movimentos sociais, conseguindo algo que as canções de protesto, de um modo geral, não conseguiram: sair do âmbito da classe média universitária e atingir as camadas baixas da população, como ficou patente nas históri‑cas manifestações dos trabalhadores do cordão industrial de São Paulo, no final dos anos 70. Ainda hoje Caminhando continua presente nas manifestações populares. Em 1997, os traba‑lhadores sem ‑terra a entoaram minutos antes de ouvirem a sentença de condenação do líder do MST, José Rainha Júnior. E, em Dezembro

2 Sigla do Departamento de Ordem Política e Social, polícia política da ditadura instituída no Brasil pelo golpe militar de 1964. Foi extinto em 1983.

3 Quinto de uma série de Decretos emitido pela ditadura brasileira, dava poderes extraordinários ao Presi‑dente da República e suspendia várias garantias constitucionais. Ao abrigo desse Decreto foi encerrado, durante cerca de ano e meio, o Congresso Nacional.

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do mesmo ano, por ocasião da revolta da Bri‑gada Militar do Rio Grande do Sul, os próprios policiais cantaram, em passeata, o velho slogan musical da esquerda estudantil (Coutinho, 2002):

“A soldados armados, amados ou não

Quase todos perdidos de armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição

De morrer pela pátria e viver sem razão...”

Pra não dizer que não falei das flores é o exem‑plo mais bem acabado de incitação à revolta na MPB4. O seu refrão não deixa dúvidas:

“Vem, vamos embora, que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”

Pois bem, narrando um jogo em que o Bra‑sil perdia e não conseguia se recuperar, Galvão proclamou vigorosamente, incitando a seleção brasileira a se levantar, lutar, reagir.

“Vamos lá Brasil, vamos embora, que esperar

não é saber

Quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”

Eis aí o que Barthes chamaria de “fala rou‑bada”. A fala dos estudantes e trabalhadores que queriam transformar a sociedade é reduzida a um simples significante da fala mítica do locutor. Galvão se apropria da fala histórica de um sujeito revolucionário, esvaziando ‑a de seu sentido polí‑tico e atribuindo a ela novo conceito: o ufanismo nacionalista burguês. Por isso Barthes diz que o mito é uma fala roubada e restituída. Só que a fala que se restitui não é exatamente a mesma que foi roubada: trazida de volta, não foi colo‑cada no seu lugar exato. É esse breve roubo, esse momento furtivo de falsificação que caracteriza a fala mítica.

Na verdade, a função do mito não é apagar/fazer desaparecer a linguagem objeto e, sim, deformá ‑la. Como uma ave que se alimenta de presas vivas, Galvão rapina a fala popular, defor‑mando seu significado histórico. Ele não destrói

sua forma: o que ele realmente destrói é a sua memória, o seu conteúdo contra ‑hegemônico, assim como o faz a Globo ao incorporar anar‑quistas, sem ‑terra, sindicalistas, líderes estudan‑tis em suas novelas. Nesses casos, é apenas a sua imagem que é assimilada e estereotipada. O seu conteúdo histórico, evidentemente, não compa‑rece nas representações da TV comercial.

A redução do sentido à forma que caracteriza a fala mítica – ou, em outros termos, o fenô‑meno de reificação da linguagem do povo – é indissociável da coisificação de sua consciência. Está relacionado ao esmaecimento da memó‑ria popular, ao empobrecimento dos meios de expressão, ao definhamento da arte de narrar a que se referia Walter Benjamin, isto é, da facul‑dade de intercambiar experiências, de transmi‑tir pela narrativa a sabedoria, o conselho tecido na substância viva da existência (1994). Tendo como função a naturalização daquilo que é his‑tórico, o mito reduz, no mesmo movimento, os sujeitos a objetos.

Aponta ‑se, nesse sentido, uma identidade entre os processos de hegemonia e reificação. A  liderança intelectual e moral burguesa tem sido um processo cuja força reside, precisamente, na sua capacidade de mistificação e coisificação das consciências. Para obter o consenso ativo dos dominados, de maneira a incorporá ‑los ao seu projeto de dominação, os grupos dirigentes fazem suas certas tendências e aspirações das massas, despolitizando ‑as, porém; assimilam as falas populares, esvaziando ‑as de sua historici‑dade; apropriam ‑se de seus signos, petrificando‑‑os, integrando ‑os ao sistema de valores da cultura dominante. [São essas formas que estru‑turam a consciência coisificada das massas.]

Esse processo hegemônico sofre, no entanto, uma constante resistência no âmbito da comu‑nicação popular. Embora sem a mesma força e o mesmo tipo de apelo que a mídia negocista, os meios de comunicação populares – incluindo aí não apenas a imprensa alternativa, mas as rodas de samba, a conversa de botequim, os brados de revolta – foram, e continuam sendo, utilizados

4 Sigla de Música Popular Brasileira.

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pelos grupos subalternos na luta pela cultura, como forma de criação e expressão de uma visão de mundo contra ‑hegemônica. Esta mídia mar‑ginal, ainda que não disponha da “vantagem da mistificação”, conta com a “arma da crítica”, com o esforço de “desnaturalização”, de historização daquilo que se impõe, ideologicamente, como uma verdade eterna. Opondo ‑se às idéias e valo‑res da cultura do dinheiro, estes instrumentos de contra ‑hegemonia expressam, certamente, uma contratendência aos fenômenos da reificação (Coutinho, 2009).

Linguagem popular e contra‑hege‑monia

A fala ufanista do locutor da Rede Globo Galvão Bueno, que sempre encontrou resis‑tência na expressão oral cotidiana dos homens comuns, foi amplamente contestada por um movimento surgido espontaneamente nas redes sociais. A história é conhecida. Durante a Copa do Mundo de 2010, Galvão Bueno alcançou o primeiro lugar entre os assuntos mais comenta‑dos do Twitter em escala global. Na abertura do evento, apresentada por ele, os telespectadores brasileiros manifestaram seu repúdio ao locutor tuitando a frase “Cala boca Galvão”. A adesão foi tanta que, em pouco tempo, ela entrou nos “trending topics” (palavras e/ou expressões mais abordadas no microblog no país). Quando usuá‑rios de outros países perguntaram do que se tra‑tava, os brasileiros criaram uma quantidade de explicações – todas elas falsas – mas com o pro‑pósito de fazer com que o termo fosse "retuitado" ao máximo. Disseram que “Cala a boca” significa “salve” e que “Galvão” é uma espécie de ave em extinção. Explicaram ainda que cada mensa‑gem com a frase “Cala a boca Galvão’’ enviada pelo twitter geraria doações em dinheiro para a fundação de defesa dos pássaros “Galvão”. Em pouco tempo, as palavras “Cala a boca Galvão” e “Boca Galvão” ocuparam o 1.º e 3.º lugares

em mensagens mais twittadas, enquanto “FIFA World Cup” e “World Cup” ficaram em 5.º e 6.º. No Brasil, ficou patente a grande resistência da grande maioria dos internautas ao locutor tido como “falastrão”, “histriônico”, “dono da ver‑dade”. As mensagens oscilavam entre a piada mais ou menos ingênua sobre o chato locutor que prolonga dramaticamente as vogais e os erres, e a crítica contundente ao porta ‑voz da Rede Globo e a tudo o que ela representa. Veja‑mos algumas:

“Foraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa, Galvãoooooo

oooooooooooooooooooooo” (Aceoli, 18 ago.

2010).5

“‘Cala a boca Galvão’ é pouco!!! Quando

assisto um jogo narrado por ele deixo no

mudo. Se acha, conhece tudo, sabe tudo, não

aguento a pose que esse cara faz para falar. Ele,

Arnaldo, Falcão e Casa Grande [...] Deus me

livre, só falam merda. Televisão esta insupor‑

tável!!! Quando vou poder ligar meu televisor

e saber que não vou ouvir mais essa raça mal‑

dita… Gugu, Faustão, Xuxa, Didi, Ana Brega

entre tantos… e por incrível que pareça o pior

é esse Galvão. Como eu queria não gostar de

Futebol e Fórmula 1. Sai Mala!!!” (Francisco,

18 ago. 2010)

“Tudo que o povo Brasileiro quer é que

ele cale essa maldita boca [...]” (Thais, 1 set.

2010).

“A TV Globo dominou por muito tempo

a audiência, manipulou eleições, criou perso‑

nagens caricatas como esse Galvão. Agora

chega. Não é somente o Galvão que ‘Cala a

Boca’. São todos os que prejudicam o país que

merecem calar ‑se. Quanto a esse Galvão

Bueno, estar mudo ainda é pouco assim como

tantos outros da Globo que crêem que a infor‑

mação é privilégio de pouco.” (Paulo Raiol,

15 ago. 2010).

5 Essa mensagem e as seguintes se encontram em http://veja.abril.com.br/blog/vida ‑em ‑rede/twitter/cala‑‑boca ‑galvao ‑topico ‑mais ‑discutido ‑no ‑twitter/.

Page 51: revista Trajectos n.º 18

51

“Vamos boicotar a Globo. Basta mudarmos

o canal e não assistir os jogos pela Globo. Há

duas coisas que atrasaram e continuam atra‑

sando o Brasil: a Rede Globo, com Galvão, e

o Corinthians. Acho que o Galvão deve fazer

curso para ser chato. Ele gora tudo. Quando

ele percebe que o time vai perder, começa a

arrumar desculpa. [...] Tenho vontade de bater

na cara dele com chinelo Havaiana. [...]” (João

Ricardo, 7 jul. 2010).

“[...] Fora Rede Globo, fora Galvão Bueno,

que com certeza o nosso país viverá mais

feliz!!!!!!!!!!!!!!!!” (Julio Cesar, 6 jul. 2010).

“Aproveitando o cala a boca pra esse mala

do Galvão Bueno, gostaria de conclamar os

demais visitantes a um iniciar também um

CALA A BOCA FAUSTÃO. Aquele cara lá dá azia

em Sonrisal…” (Regis, 5 jul. 2010).

“A culpa é do Galvão… nossa são litros de

baba em cima de alguns jogadores. Do mesmo

jeito na Fórmula 1, baba baba baba o Massa ou

o Rubinho e o que acontece? Hum???? escorre‑

gam na baba enquanto ele nada em dinheiro!!!

As narrações são um saco, nossa como ele é um

poço de história, sabe tudo de todos os jogos,

de todas as épocas, de todos os jogadores, de

todas as corridas, de todos os pilotos… Nossa!

Como cansa!!! No mesmo bonde vão o Jô Soa‑

res, o Faustão.” (Helen, 4 jul. 2010).

Agora sim ele tá começando a ficar rouco.

Quem sabe um dia sem Galvão e um dia sem

Globo. É coisa linda de deus. (Lucas Galland,

2 jul. 2010).

A pilhéria internacional repercute nos está‑dios de futebol. No primeiro jogo da Copa do Mundo em Johannesburgo, a torcida na arqui‑bancada do Ellis Park desenrola para as câme‑ras do mundo inteiro, uma grande faixa com os dizeres “Cala a boca Galvão”, retirada com

menos de dois minutos de jogo. No Brasil, numa linguagem menos comportada que a do Twitter, 50 mil torcedores bradam em coro no estádio Olímpico (RS): “Ei, Galvão, vai tomar no cu” (http://www.youtube.com/watch?v=hUPB587‑‑QSA)6. O grito da torcida é captado pelo micro‑fone da Globo no momento mesmo em que Galvão, visivelmente constrangido, explica ao telespectador uma promoção qualquer da indústria do futebol. “Coisa linda de deus”? Momento catártico dos homens! O controle discursivo dos senhores da indústria, o poder de quem fala sobre quem ouve, o “monopólio da fala” (Sodré) é por alguns instantes rompido. A massa de receptores condenados ao silêncio pelos meios de informação, impossibilitados de darem respostas pela relação informativa cen‑tralizada, tecnologizada, grita pelos sensíveis microfones da Globo para todo o país o que ela pensa que Galvão deveria fazer. Agora, sim, Galvão poderia dizer com propriedade: “Globo: a gente se vê – ou se ouve – por aqui”.

A expressão oral das massas pode ser sufo‑cada, esvaziada, induzida, mas não se pode impedir os homens e mulheres de conversa‑rem, trocarem idéias, reinterpretarem os signos dominantes. No trabalho e no lazer, “eles se comunicam de formas que escapam ao con‑trole e à supervisão diretos de seus explorado‑res. [...] E nesses ‘espaços’ criam discursos ou gêneros que expressam sensações, sentimentos, idéias, opiniões e aspirações não reconhecidas pelo discurso oficial” (Mcnally, 1999: 39). Essa fala popular que Bakhtin chamaria de carnava‑lizante esvazia as pretensões à universalidade da cultura oficial, lançando por terra os valores fossilizados da fala mítica, monológica, hege‑mônica.

Nesse caso, não se trata, certamente, de consciência de classe. Aqui, a crítica coerente ao porta ‑voz da Globo, ao mistificador e apazi‑guador da consciência popular, vem mesclada à repulsa espontânea ao “mala” prepotente, ao sabichão, ao homem dos clichês. Há nesse

6 O mesmo fenômeno se repete no Maracanã e em outros estádios. Veja ‑se, como exemplo, www.youtube.com/watch?v=4j_5ZjUA2Hk&NR=1.

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grito de guerra algo daquilo que Gramsci cha‑mou de “subversivismo esporádico”. Essa crítica fragmen tária, não sistemática é característica da história das classes subalternas, aliás, dos elementos marginais e periféricos destas clas‑ses, que não alcançaram a consciência de classe “para si”. O “povo” sente que tem inimigos e os individualiza só empiricamente nos chama‑dos senhores. Mas “este ódio genérico (…) não pode ser apresentado ainda como documento de consciência de classe: é apenas seu primeiro vislumbre, é apenas, precisamente, a elementar posição negativa e polêmica” (1999 ‑2002, v.3: 189 ‑190). Segundo ele:

“Não só não se tem consciência exata da

própria personalidade histórica, como não se

tem sequer consciência da personalidade histó‑

rica e dos limites precisos do próprio adversário.

(As classes inferiores, estando historicamente na

defensiva, não podem adquirir consciência de

si a não ser por negações, através da consciên‑

cia da personalidade e dos limites de classe do

adversário)” (Ibid.).

Freqüentemente, no entanto, essa filoso‑fia espontânea das massas atinge aquilo que Gramsci chamou de "senso comum crítico", enquanto manifestações criadoras e progressis‑tas determinadas por formas e condições de vida em processo de desenvolvimento. O grito da torcida no estádio Olímpico é a resposta possível daquelas pessoas unidas, naquele momento, pelo mesmo sentimento. Não se trata aqui do velho slogan cantado nas manifestações de rua: “O povo não é bobo – abaixo a Rede Globo”. O brado da torcida expressa um nível de cons‑ciência mais primário, mas que, no entanto, ao identificar em alguma medida os limites da personalidade histórica do adversário, traz em si o germe de uma filosofia das massas orgânica, coerente e sistematizada.

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Introdução

O jornalismo sobre música popular em Portugal cons‑titui um espaço cultural e profissional ainda pouco reconhecido e legitimado dentro do jornalismo

cultural e de espectáculos. Consequentemente, ele consti‑tui também um objecto de estudo por explorar pelas ciên‑cias sociais e da comunicação. Apesar da existência de títu‑los especializados na cobertura de música popular e de esta assumir um protagonismo cada vez maior nas secções de cul‑tura e espectáculos na imprensa generalista, o jornalista de música não é reconhecido como uma categoria profissional autónoma dentro do jornalismo de espectáculos e, salvo raras excepções, lhe é atribuído um estatuto de opinion ‑maker com um papel activo no gosto e no consumo de música. Contudo, o jornalismo sobre música é uma peça fundamental nas estra‑tégias de promoção das editoras e promotoras de espectáculos em grande parte dos conteúdos que estas pretendem fazer chegar ao público. Mesmo não sendo o seu impacto com‑parável ao de outros suportes como a rádio ou televisão, a imprensa musical pode assumir uma importância enquanto filtro do gosto ao mesmo tempo que cria um discurso em torno do objecto a que se refere. Daí que ela deva ser consi‑derada como um objecto de estudo para uma sociologia da comunicação e da cultura, bem como para os estudos sobre jornalismo e comunicação.

Breve história do jornalismo pop/rock em Portugal

A afirmação de um jornalismo musical em Portugal cen‑trado no pop ‑rock tem a sua génese em finais dos anos 60 e

conhece três fases que, embora não sendo completamente distintas, se podem diferenciar por alguns crité‑rios (conteúdos, linha editorial, cir‑culação e organização profissional) (Nunes, 2004; Castelo ‑Branco et al., 2010). Uma primeira fase que se ini‑cia em finais da década de 60, com o surgimento da primeira publicação especializada na música popular, a revista Mundo da Canção. Uma segunda fase que começa na segunda metade da década de 70, com o apa‑recimento de revistas especializadas sobretudo no género pop ‑rock (Musi‑calíssimo e Música & Som), financei‑ramente sustentáveis por grupos empresariais, e que tem na fundação do semanário Blitz, em 1984, um momento ‑chave na sua evolução. Uma terceira fase que começa na pri‑meira metade da década de 90 com a profissionalização do Blitz e o surgi‑mento, na imprensa generalista, de suplementos ora especializados em música ora de artes e espectá culos, onde a música pop ‑rock assume uma importância fundamental nos con‑teúdos.

A primeira fase corresponde a um período ainda embrionário da escrita jornalística sobre pop ‑rock em Portugal. Na revista Mundo da

* Professor da Universidade Aberta. Investigador do Instituto de Etnomusicologia – Música e Dança, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

OS JORNALISTAS DE MÚSICA E A INDÚSTRIA MUSICAL

Entre o gatekeeping e o cheerleading

PEdro bElchior NuNEs*

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Canção (1969 ‑1985) e no jornal A Memória do Elefante (1971 ‑1974) publicam ‑se os primeiros textos sobre o género. No entanto, e sobretudo na Mundo da Canção, o pop ‑rock é secundário em relação à música portuguesa, sobretudo a nova música portuguesa dos cantores de protesto. Para além disso, a sua circulação é muito condicio‑nada temporal e espacialmente, quer pelo poder político da altura, quer pela escassez de recursos para a sua distribuição. Surgem também neste período o jornal quinzenal Disco, Música e Moda e o suplemento Top Ten do Diário Popular.

Com o surgimento do jornal (mais tarde revista) Musicalíssimo (1978 ‑1982) e da revista Música & Som (1977 ‑1989), ao qual devemos juntar, no mesmo período, a fundação do sema‑nário de espectáculos, o Se7e (1977 ‑1995), o jor‑nalismo centrado no pop ‑rock adquire uma visi‑bilidade regular no espaço jornalístico português. Esta será a segunda fase do jornalismo pop ‑rock. O suporte financeiro é maior do que em tenta‑tivas anteriores, o que permite que estas publi‑cações tenham uma boa tiragem e circulação, e sobrevivam por mais do que um par de anos. Dentro desta fase, a fundação do Blitz (1984‑ ) é um momento ‑chave, dado tratar ‑se do primeiro e único semanário especializado em música, sendo também a publicação mais bem sucedida dentro do género. É nesta fase que se destaca uma geração de jornalistas e críticos que se dedicam à escrita sobre o pop ‑rock. É o caso, entre outros, de Luís Maio, João Lisboa, Ricardo Saló, Rui Mon‑teiro, António Pires e Miguel Esteves Cardoso.

A terceira fase é marcada, por um lado, pela profissionalização dos quadros do Blitz em 1992, que acompanha a sua aquisição por um grupo mediático (Impresa). Por outro, pela presença dos suplementos de música e de artes e espec‑táculos onde a música popular assume sempre grande destaque na linha editorial. É o caso dos suplementos Pop/Rock (1990 ‑1997) e Sons (1997‑‑2000) ambos do diário Público e do DN+ (1998 ‑ ) do Diário de Notícias. Com estas transformações, o jornalismo pop ‑rock ganha maior visibilidade na imprensa, ao mesmo tempo que a sua inte‑gração numa lógica de mercado traz algumas alterações no estilo e na definição de uma linha

editorial. A esta fase também corresponde a afir‑mação de uma nova geração de jornalistas e crí‑ticos, embora a anterior se mantenha no activo. Dela fazem parte, entre outros, Nuno Galopim, Miguel Francisco Cadete, Fernando Magalhães e Vítor Belanciano.

Deve ‑se acrescentar que, ao longo das três fases do jornalismo pop ‑rock, é possível identi‑ficarmos discursos jornalísticos diferentes que, de certa forma, acompanham as tendências mais gerais no jornalismo cultural. Assim, o Mundo da Canção e A Memória do Elefante são ainda muito marcados por um discurso fortemente ideológico de contestação ao regime e das suas implicações na vida cultural da altura. Muitos artigos assu‑mem características panfletárias e de manifesto político ‑cultural ao contestarem géneros como o nacional ‑cançonetismo e divulgarem a nova música dos cantautores de intervenção (Nunes, 2004; Castelo ‑Branco et al., 2010). Esse cunho ideológico (mas já menos político) está ainda presente no Blitz da década de 80, bem como no Se7e, por exemplo na célebre capa em que o grupo pop português Heróis do Mar é denun‑ciado como “fascista”, mas já muito contraba‑lançado por questões estéticas e por um acom‑panhamento do mercado (ainda assim, certos jornalistas definem o Blitz daquele tempo como “jornalismo de militância”) (Nunes, 2004, 2010). Nos anos 90, o jornalismo pop ‑rock assume‑‑se cada vez mais como um guia de consumo, acompanhando a actualidade do mercado dis‑cográfico e desenvolvendo uma relação profis‑sional cada vez mais intensa e frequente com a indústria fonográfica e dos espectáculos. As crí‑ticas a novos lançamentos têm uma formatação cada vez mais rígida e com recurso a uma escala de classificação do disco e a responsabilidade de acompanhar o mercado está mais presente nas opções editoriais. Como em outras áreas do jornalismo cultural e de espectáculos, o jorna‑lismo pop ‑rock evolui de um discurso político‑‑ideológico para um discurso estético ‑ideológico até se assistir a uma relativa “desideologização” do discurso, apesar de as linhas editoriais per‑manecerem influenciadas, em certos casos, por “agendas de gosto” (Idem).

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Jornalismo musical e a indústria discográfica

A maior parte dos estudos sobre jornalismo musical foram realizados no âmbito dos estudos de música popular, de tradição anglo ‑saxónica. Numa análise compreensiva desse acervo de investigação, podemos distinguir modos diferen‑tes de abordagem ao papel do jornalista e/ou crítico de música. Contudo, tais abordagens podem ser incluídas em duas tendências que não são necessariamente exclusivas: uma mais cen‑trada no papel desempenhado pelo jornalista/crítico na criação do gosto e, por conseguinte, na sua participação activa enquanto actor na história da música popular (Chambers, 1985; Savage, 1991; Toynbee, 1993; Regev, 1994; Shuker, 1994; Lindberg et al., 2005); a outra mais preocupada com o determinismo da indústria musical nas práticas jornalísticas (Chapple e Garofalo, 1977; Frith, 1978/1981; Harley e Bots‑man, 1982; Negus, 1992).

O jornalismo musical tem um estatuto, historicamente reconhecido, na legitimação da música popular na hierarquia da produção cultural (Regev, 1994; Shuker, 1994; Lindberg et al., 2005, Klein, 2005). Tal foi possível graças à criação de alianças com artistas, movimen‑tos e tendências estéticas e subgrupos dentro da audiência (jovens da classe trabalhadora, afro ‑americanos) que tiveram um papel funda‑mental na história da cultura popular no pós‑‑guerra (Lindberg et al., 2005). Certos autores referem a importância do jornalismo musical na afirmação de ideologias e de movimentos estéticos, exemplificados no caso da contracul‑tura nos anos 60 e da revolução punk nos finais da década de 70 (Frith, 1978/1981; Chambers, 1985; Toynbee, 1993). Para Chambers (Idem), o jornalismo musical afirma ‑se em paralelo com o desenvolvimento da música popular como uma força política e este duplo processo de legitima‑ção (cultural e profissional) é simbiótico.

Este papel activo do jornalista/crítico de música está bem explícito na função de gatekeeper do gosto que lhe é atribuída por certos auto‑res (Hirsch, 1972/1990; Shuker, 1994). Tal

pressuposto parte da noção de gatekeeping pro‑posta por Kurt Lewin (1947) que a aplica ao jor‑nalismo nas várias fases da edição da notícia. Gatekeeping é o processo através do qual as ideias e a informação são filtrados antes de serem publi‑cados num canal dos media, ocorrendo em diver‑sas fases do processo de construção da notícia, desde o repórter que selecciona as suas fontes de informação até ao editor que decide que assuntos são tratados e impressos. Alguns estudiosos da crítica pop ‑rock atribuem ao jornalista de música, sobretudo na sua vertente de crítico, um papel de gatekeeper do gosto ao seleccionar os artistas sobre os quais deve escrever e contribuir assim para a formação do gosto do consumidor e para a criação de uma comunidade selectiva de ouvin‑tes, eles próprios tornados “opinion ‑makers” pela fruição de determinados géneros e estilos musi‑cais propostos pelo crítico (Hirsch, 1972/1990; Shuker, 1994; Nunes, 2004).

Em contraponto a esta abordagem do jorna‑lismo musical está outra abordagem mais cen‑trada na relação com a indústria fonográfica. No contexto da indústria fonográfica, o jornalismo surge numa posição algo ambivalente. Por um lado, os jornalistas de música estão numa posi‑ção de dupla dependência: das editoras que tor‑nam possível ou facilitam o acesso às matérias jornalísticas (artistas, concertos, discos e outros materiais de promoção) e dos leitores que asse‑guram as vendas do jornal ou revista. Por outro lado, os jornalistas, enquanto produtores/media‑dores culturais, têm que articular a tensão gerada por esta dupla dependência, gerindo a relação entre o comercial e o artístico na música pop. Por fim, o jornalista pertence em primeiro lugar a uma outra indústria – a imprensa escrita – e a uma organização profissional – o título para o qual escreve.

A função ideológica da imprensa musical deve pois ser analisada. A simples assunção de que o crítico de música está alinhado, ora com a indústria, ora com o artista ou com o público, é contestada por certos autores (Stratton, 1983; Shuker, 1994) que vêem, antes, uma certa, mas nem sempre explícita, complementaridade entre o jornalista, o leitor e a indústria:

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“Ao enfatizar a importância dos aspectos

não ‑económicos da produção musical, eles [jor‑

nalistas/críticos] estimulam a discussão ‘cultu‑

ral’ como, por exemplo, sobre o valor estético

de diferentes peças musicais. Este tipo de dis‑

cussão faz diminuir, no consumidor, a consci‑

ência dos condicionalismos económicos sob os

quais as editoras discográficas operam. Simplifi‑

cando, os consumidores tornam ‑se menos cons‑

cientes das necessidades das editoras discográ‑

ficas em vender o seu produto, no contexto do

capitalismo” (Stratton, 1983: 295).

Para Stratton (1982, 1983), a imprensa musical deve saber resolver a tensão entre arte e capitalismo, para poder ser legitimada junto do público. É por essa razão que a imprensa musical, funcionando, à semelhança da rádio, enquanto correia de transmissão da indústria, clama independência ou mesmo oposição em relação a esta. Tal é feito criando ‑se a ilusão de que a arte (valorizada por jornalistas e críticos) é independente dos seus modos de produção capi‑talista. Stratton afirma também que as ideologias subjacentes ao jornalismo musical servem uma função (ideológica) de separação da imprensa, sobretudo na sua função de crítica musical, em relação à indústria musical. O discurso ideológico da crítica de música popular, em toda a sua diver‑sidade, empatiza, regra geral, tanto com o artista como com o leitor na criação da percepção de independência em relação às editoras (Stratton, 1982). Tal demarcação é, no entanto, ilusória:

“A imprensa musical actua para aumen‑

tar a reflexão e a discussão no discurso sobre

a ‘música popular’ (…) O resultado (…) é, na

aparência, tornar as pessoas mais conscientes

dos ‘problemas’ da música popular quando,

na realidade, vai contribuindo para a mistifica‑

ção de tensões fundamentais geradas pela prá‑

tica do capitalismo enquanto modo de produ‑

ção” (Idem: 270).

A fim de sobreviver enquanto empresa rentá‑vel, a imprensa musical tem, pois, que ancorar a tensão entre capitalismo e arte para o consumi‑dor de música. Tal tensão é visível nos discursos da crítica do rock, especialmente na oposição, sugerida por Stratton, entre a “emoção” e a “intrusão de análise”:

“Sugeri que a intensidade da ênfase na

‘emoção’ para definir qualidade é tão grande

que não permite a intrusão de análise (…)

Sugiro que é possível inverter esta frase e suge‑

rir que é o medo da intrusão de análise, na ver‑

dade o medo do capitalismo, que exige o ênfase

na emoção” (Idem: 281).

O cerne da questão é que os critérios para definir o que é um bom disco, sendo gerados em oposição aos valores da indústria musical, também dependem dela e não estariam lá caso não tivessem esse atributo essencial de oposição. Eles resolvem, no fim do processo de produção de música, o problema da música enquanto arte e enquanto commodity1. Ao celebrar a “arte” (como o não racional, emocional) na música popular, os críticos de música revestem o pro‑duto da credibilidade necessária para ser vendido enquanto tal.

Por isso, em oposição à ideia segundo a qual o jornalismo é independente da indústria musical, alguns trabalhos sugerem que os jornalistas tra‑balham, na maior parte das vezes, em benefício da indústria musical (Frith, 1978/1981; Stratton, 1982; Reynolds, 1990; Negus, 1992; Toynbee, 1993). Tanto os jornalistas como as editoras dis‑cográficas partilham um mesmo interesse em manter os consumidores de música a par dos lan‑çamentos mais recentes. Os estudos centrados na indústria musical não deixam muito espaço para a autonomia do jornalismo, antes colocando a ênfase nos mecanismos de cooptação levados a cabo pelas editoras em relação aos jornalistas (Chapple e Garofalo, 1977; Frith, 1978/1981;

1 Para uma análise mais detalhada da relação entre arte e comércio na indústria musical, ver também Keith Negus (1995), “Where the mystical meets the market: creativity and commerce in the production of popular music”, The Sociological Review, 43/2, 316 ‑341.

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Negus, 1992)2. Negus menciona as estratégias dos departamentos de promoção nas editoras com o objectivo de promover os seus artistas. Tais estratégias incluem identificar o crítico certo para escrever sobre determinado artista, estabelecendo um contacto pessoal e socializando:

“De forma idêntica ao staff da promoção

[publicitária], o promotor de imprensa tenta

sensibilizar a comunidade jornalística para

um artista (…) Na altura, em que o material

do artista está pronto para ser lançado, o pro‑

motor de imprensa saberá quem gosta de um

artista em particular e quem poderá escrever a

peça ou a crítica mais interessante e influente.”

(Negus, 1992: 120).

Um dos problemas com estes estudos é que, na sua maior parte, tendem a abordar o jorna‑lismo sobre música do ponto de vista da indústria e nunca do ponto de vista do jornalista, negando, desta forma, as ideologias profissionais que estão subjacentes a essa relação e às práticas que dela resultam (Forde, 2001b). Klein (2005) sustenta que, devido a um conjunto de constrangimen‑tos, os críticos de música acabam muitas vezes por desempenhar, para a indústria, um papel de majorete3 mais do que de gatekeeper. Entre esses constrangimentos, ela menciona a relação pro‑fissional entre a publicação e as editoras disco‑gráficas que poderão comprar publicidade den‑tro da mesma; os constrangimentos de espaço que levam ao decréscimo de críticas negativas; a relação com o artista e o papel do publicista que identifica o crítico certo a quem enviar cópias do novo lançamento. Mas também sugere que os crí‑ticos podem influenciar as decisões da editora em relação a certos artistas (Frith, 1978/1981; Klein, 2005). Que espaço para rupturas existe nesta

relação de dependência mútua entre jornalista e promotores de imprensa?

No caso do jornalismo de música, tem sido dada atenção especial às pressões da indústria, representada pelas editoras discográficas e pro‑motoras de espectáculos (Chapple e Garofalo, 1977; Frith 1978/1981; Negus, 1992; Forde, 2001a, 2001b). É mais ou menos assumido que o nexo jornalista ‑assessor de imprensa é mais importante do que a publicidade e o volume de vendas para compreendermos o grau de inde‑pendência do jornalismo sobre música (Forde, 2001b; Nunes, 2004). Tal será verdade no caso português em que os suplementos de música ou artes e espectáculos, sendo parte de jornais generalistas e de grande circulação, gozam de maior independência em relação à publicidade e ao número de leitores. Onde muitos apontam o poder da indústria musical em controlar a agenda da imprensa (Frith, 1978/1981; Breen, 1987; Reynolds, 1990; Savage, 1991; Negus, 1992; Toynbee, 1993; Shuker, 1994), outros pro‑põem uma abordagem da relação mais centrada na imprensa musical e nas suas estratégias de ges‑tão dessa relação (Forde, 2001b). Embora Negus sugira que a imprensa musical é controlada pelas editoras, é também notório que a sua aborda‑gem privilegia o ponto de vista dos promoto‑res de imprensa e dos agentes de publicidade em detrimento do ponto de vista do jornalista. O nexo inextricável entre a imprensa e a indús‑tria musical é inquestionável mas, para além de tal assunção, seria interessante averiguar como essa dependência é vivida na relação profissional que se estabelece entre ambas as partes. Que tipo de disrupções poderá emergir de uma relação na qual “ao estarem dependentes um do outro no seu dia ‑a ‑dia, o promotor de imprensa e o jor‑nalista facilitam mutuamente o seu trabalho”?

2 Em termos históricos, certos autores identificam os finais da década de 60 e princípios de 70 como uma excepção quando a era de ouro da crítica rock estabeleceu um modelo de autonomia parcial. Tal cedeu lugar, em finais de 70 e princípios de 80, a uma situação de dependência quase total e de diluição de fronteiras entre crítica musical e publicidade. Neste sentido, a agenda da imprensa é determinada pela indústria para estar sincronizada com as datas dos novos lançamentos (Frith, 1978/1981; Reynolds, 1990; Savage, 1991; Negus, 1992; Toynbee, 1993; Shuker, 1994).

3 Cheerleader, no texto original.

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(Negus, 1992: 155). Na sua investigação, cen‑trada nas relações entre jornalistas e promotores de imprensa, Forde (2001b) sustenta que essa relação não será necessariamente unívoca, nem sequer completamente determinista. Ao invés, Forde sugere que existe uma relação complexa de “dependência mútua, caracterizada por com‑placência, compromisso e resistência em ambos os lados da relação (Idem: 5). O produto dessas relações é mais imprevisível do que o sugerido em estudos prévios.

A relação com as editoras discográficas e promotoras de espectáculos é crucial para uma avaliação da independência do jornalismo sobre música do mercado. Dos jornalistas de música espera ‑se que mantenham a independência crí‑tica e que tenham os seus próprios critérios nor‑mativos acerca das matérias a tratar e de como as tratar. No entanto, dependem das editoras discográficas e das promotoras de espectáculos no acesso aos materiais para cobertura. A relação entre ambos será, pois, inevitável. Nesse sentido, determinar se os jornalistas de música são ou não parte de uma indústria musical constitui uma tarefa redundante. A discussão posta, nestes ter‑mos, é demasiado simplista. Certamente que mui‑tos jornalistas clamam com orgulho a sua inde‑pendência em relação à indústria, ao passo que outros não terão problemas em admitir que tanto a imprensa como as editoras discográficas aju‑dam a vender discos, tornando pois difícil o tra‑çar de uma linha divisória entre ambas as partes.

De um modo geral, os jornalistas dependem das suas fontes e desenvolvem uma relação pro‑fissional (embora quase sempre informal) com as editoras e promotoras, de forma a terem acesso, seja a um novo lançamento, a uma entrevista, a uma conferência de imprensa ou a um con‑certo. Se tal pode contribuir, à partida, para que

a imprensa se torne num instrumento que as editoras utilizam na promoção dos seus artistas, não será menos verdade que também deixará uma margem de independência para os jorna‑listas. Pese embora as editoras e promotoras influenciarem, até certo ponto, o que é coberto pelo jornalista, elas não determinam a forma como é coberto. A independência crítica é fun‑damental para o código normativo de conduta dos jornalistas.

Contudo, por muito claro que seja em teo‑ria, tudo isto requer uma análise mais aprofun‑dada. Partindo de informação recolhida através de entrevistas semi ‑estruturadas, iremos anali‑sar como é que esta relação é gerida por ambas as partes4. A independência dos jornalistas de música acontece idealmente quando estes defi‑nem a sua agenda e não permitem que as edito‑ras discográficas e os promotores a influenciem de acordo com os seus interesses. Desde que se torna impossível para os jornalistas actuarem fora da indústria, tal independência tem que ser assegurada através de uma gestão dessa relação – e não da negação da mesma. Mais do que afir‑mar que os jornalistas gozam de independência em relação à indústria ou, pelo contrário, que a influência das editoras e promotoras enfraquece ou até mesmo põe em causa essa autonomia, ire‑mos argumentar que os jornalistas, com as suas ideologias, práticas e recursos (ou formas de capi‑tal) podem ter um papel proactivo nesta relação.

Jornalistas de música e editoras dis‑cográficas

Sobejas vezes os jornalistas de música ten‑dem a ser vistos de forma negativa por supos‑tamente estarem subjugados aos interesses das

4 A metodologia que orientou a recolha de informação neste artigo consistiu em entrevistas semi ‑estruturadas e aprofundadas a jornalistas e ex ‑jornalistas de música, label managers de editoras, promotores de imprensa e de comunicação de editoras discográficas e promotoras de espectáculos. Foram realizadas, ao todo, 32 entrevistas. Os jornalistas de música foram seleccionados do semanário de música e cultura juvenil, Blitz, e dos suplementos de artes e espectáculos, Y (Público), DN+ (Diário de Notícias) e Cartaz (Expresso). Foram entrevistados os label managers e promotores de imprensa e media das editoras ou distribuidoras EMI ‑Valentim de Carvalho, Universal, Loop Recordings, Ananana e das promotoras de espectáculos Remédio Santo e Música do Coração.

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editoras (Harley & Botsman, 1982; Nunes, 2004). Este será talvez o maior estigma que recai sobre a prática de jornalismo/crítica de música. Mas, por outro lado, e no caso português, os jorna‑listas de música são também vistos por alguns como desempenhando um papel importante de “opinion ‑makers” (Nunes, 2004). A sublinhar a relação entre jornalistas e editoras discográficas está a tensão entre dois padrões antagónicos de valores. De um lado, os jornalistas e o seu com‑promisso com o interesse estético e com aquilo que é de interesse para os leitores. Por outro lado, a indústria discográfica, primeiramente preo‑cupada em vender música.

No exercício da sua actividade, os jornalistas de música desenvolvem um contacto diário com editoras discográficas e promotoras de espectá‑culos. Esta é uma relação profissional que acom‑panha o crescimento da indústria musical em Portugal e a profissionalização do jornalismo sobre música. No entanto, uma dependência estreita das editoras estava presente, mesmo nos primeiros tempos do jornal Blitz, em meados dos anos 80. Embora os contactos não fossem tão frequentes e, na realidade, as editoras tenham levado bastante tempo até reconhecerem a importância do Blitz, é hoje amplamente assu‑mido que, nos seus primeiros anos, o Blitz publi‑cou as chamadas «entrevistas de promoção»:

“Isto é, uma editora, seja Portuguesa ou

estrangeira, convidava um jornalista, regra

geral, free ‑lancer da sua confiança para entre‑

vistar um artista (…) Essa entrevista circulava

depois por dezenas ou centenas de canais dos

media (…) O Blitz publicava, nos anos 80, várias

entrevistas de promoção que eram cedidas de

graça pelas editoras. Muitas eram estrangeiras

pelo que só tinham que ser traduzidas e, nessa

altura, alterava ‑se o nome do autor. Note ‑se que

isto não é segredo nenhum.” (jornalista, sema‑

nário de música).

Com recursos escassos e acesso limitado a artista estrangeiros, os jornalistas tinham que se apoiar nas editoras que, de bom grado, cediam estas entrevistas de graça. Ao mesmo tempo,

o Blitz tinha frequentemente pessoal das edi‑toras discográficas entre os seus colaboradores enquanto parte desta estratégia de “informação ao mínimo custo possível”. Apesar destas estraté‑gias iniciais, o Blitz viria a crescer relativamente ao abrigo de pressões da indústria pois foi ape‑nas muito mais tarde que as editoras começaram a aperceber ‑se da sua importância para as suas estratégias promocionais.

O que veio a acontecer subsequentemente foi o desenvolvimento da indústria sustentado pelo estabelecimento das principais compa‑nhias discográficas em Portugal, que é conse‑quentemente acompanhado do crescimento do repertório nacional no catálogo das editoras e da crescente inclusão de Portugal na agenda de concertos de artistas estrangeiros. Estes factores levaram as editoras e promotoras a reconhecer o papel importante dos meios de comunicação e, no caso que aqui diz respeito, dos jornalistas de música, nas suas estratégias de promoção. O papel cada vez mais importante do promotor de imprensa decorre da expansão dos departa‑mentos de comunicação nas editoras discográ‑ficas e promotoras de espectáculos e reflecte a relação próxima entre a indústria discográfica e a imprensa. Em Portugal, as editoras líderes de mercado têm hoje um promotor de imprensa encarregue do contacto diário com os jornalistas. Algumas editoras mais pequenas e promotoras de espectáculos poderão ter um único responsável pela comunicação com os media e, por vezes, um único departamento de promoção encarrega ‑se de todos os contactos com todos os media, sejam relativos à cobertura de artistas, sejam relativos à publicidade aos mesmos. Especializada, ou não, a imprensa é essencial nas estratégias de promoção das editoras (Nunes, 2004, 2010).

A relação entre os jornalistas de música e os promotores de imprensa não pode ser totalmente compreendida sem tomar em consideração as posições distintas que os dois lados ocupam na indústria musical. Os promotores de imprensa actuam com o propósito de vender os seus artistas através da sua promoção na imprensa. Já as res‑ponsabilidades dos jornalistas de música são mais dúbias. Estes têm que tomar em consideração os

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seus leitores para assegurar as vendas da publica‑ção para a qual escrevem. Mas também actuam enquanto “gatekeepers do gosto” assegurando que o objectivo económico de promoção de um artista é filtrado através do seu próprio gosto e de noções do que é bom e importante. O compromisso dos jornalistas de música para com a relevância e valor artísticos é sempre um factor importante quando consideramos a sua relação profissional com a indústria musical. É precisamente porque ambos os lados trabalham com valores dife‑rentes e desenvolvem estratégias diferentes em relação a um mesmo objecto – a música – que os conflitos surgem e tal relação deve ser gerida.

O conflito de interesses entre jornalistas e promotores de imprensa pode ser enquadrado pela tensão, na música popular, entre arte e comércio (Stratton, 1982, 1983; Negus, 1992, 1995). Embora ambas as partes estejam igual‑mente interessadas em manter essa relação, elas não estão dentro do mesmo barco como alguns dos agentes (sobretudo dentro das editoras) supõem. Os promotores de imprensa terão toda a inclinação para ver nos jornalistas um parceiro de trabalho. Em contraste, os jornalistas têm tendência a olhar com desdém a possibilidade de serem parte da indústria, representada pelas editoras e promotoras.

A venda de jornais é apresentada como a razão para colocar em causa essa convergência, mas uma outra justificação reside na ideologia profissional do jornalista de música que pressu‑põe um compromisso para com a música à mar‑gem do seu valor comercial. A maior parte dos jornalistas de música são fãs de música e encon‑tram na sua ocupação profissional a possibilidade de escrever apaixonadamente sobre a música da qual gostam. É, regra geral, aceite que eles gozam de relativa independência e liberdade nas suas escolhas, uma vez que se podem dar ao luxo de escrever sobre artistas com um público muito res‑trito e que vendem não mais do que uma centena

de discos. Tal dedicação à música da qual gostam ou que consideram ser esteticamente relevante colide com os interesses das grandes editoras e das promotoras de espectáculos.

“Há uns anos atrás eu estava a trabalhar para

a BMG e fiz uma recolha de imprensa para con‑

cluir que 90% das críticas eram de lançamentos

dos quais só havia 25 exemplares em Portugal.

(…) E disse para mim próprio: porra!... Eu tenho

uma editora que faz 1 milhão de escudos ao ano,

invisto em publicidade e estes gajos escrevem

sobre algo que vai vender 25 cópias?!” (promo‑

tor de espectáculos)

O jornalismo musical “credível” tem valores diferentes das editoras discográficas. Nem todos os lançamentos das editoras correspondem aos critérios jornalísticos acerca daquilo que deve merecer a atenção. Frequentemente, os grandes sucessos comerciais das editoras são ignorados ou recebem uma atenção mínima na imprensa5. Ao mesmo tempo, artistas marginais que são a maior parte das vezes deixados em segundo plano nas estratégias de promoção das editoras, tornam‑‑se objecto de atenção da parte do jornalista, levando ‑os a contactar antecipadamente as edi‑toras a fim de pedir uma cópia do seu novo disco ou a marcação de uma entrevista. Há uma ten‑dência notória para as editoras e distribuidoras pequenas como a Música Alternativa a Ananana ou a MVM terem o seu catálogo sobrerepresen‑tado na imprensa em comparação com as majors ou com a sua quota de mercado.

Tal sucede porque os artistas dessas editoras vão ao encontro dos gostos e interesses estéticos dos jornalistas de música. Para essas editoras, o trabalho do jornalista de música é crucial:

“Se é um lançamento de uma editora inde‑

pendente que chega cá sem a engrenagem

da indústria americana, então precisa de ser

5 Artistas que entram nas categories “pimba”, “boy e girl ‑bands” e “teen ‑pop” em geral recebem certamente pouca atenção da imprensa mais credível mas isso também acontece com artistas mainstream, vistos como sendo demasiado “comerciais” para os gostos do jornalista. (Exs: Shania Twain ou Bryan Adams).

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legitimada pelos críticos. Precisa dessa forma de

legitimação porque não pode contar com a MTV,

MCM ou os canais europeus de música, que

reflectem a sua carreira prévia no mercado ame‑

ricano” (manager, distribuidora discográfica).

“Às vezes, há mais pressão dos retalhistas

do que das multinacionais, provavelmente por‑

que se contabilizarmos as editoras dos artistas

acerca dos quais escrevemos, já há uma maio‑

ria de importações de retalhistas independen‑

tes em relação às multinacionais.” (jornalista,

suplemento de artes e espectáculos)

Esta função de gatekeeping assegura que o jor‑nalismo musical goza de alguma autonomia em relação aos interesses comerciais da indústria, sobretudo a discográfica: autonomia sempre rela‑tiva por causa da supracitada pressão dos sectores independentes (editoras, retalhistas). Por outras palavras, embora os jornalistas não escrevam necessariamente sobre os artistas que vendem mais, não existirão valores estéticos e culturais (do jornalista) que permaneçam ao abrigo dos valores comerciais (da indústria). Na realidade, as escolhas editoriais dos jornalistas convergirão sempre com os interesses das editoras, sejam eles representados pelas majors ou pelas independen‑tes. Contudo, é significativo que o investimento elevado na promoção, da parte das multinacio‑nais, e o maior apelo comercial dos seus artistas, não se traduz numa maior cobertura na imprensa especializada. A forma como estes valores dife‑rentes são geridos para que as necessidades de ambas as partes sejam satisfeitas, deve merecer uma análise mais aprofundada:

“Se fizeres uma lista, incluindo todas as edi‑

toras, existem cerca de sessenta lançamentos

mas, desses, apenas dez são criticados. E, regra

geral, esses dez aparecem em todos os jornais.

Porquê? Porque foi determinado pelas editoras

que esses constituiriam as apostas e foi para esses

que se tiraram fotografias, fizeram ‑se vídeos,

cópias promocionais, entrevistas. No seu negó‑

cio, as editoras decidem o que deve ser abor‑

dado na imprensa” (promotor de espectáculos)

Apesar de as editoras não conseguirem pro‑mover todos os seus artistas na imprensa, elas serão bem sucedidas na identificação daqueles que devem ser promovidos e que são efectiva‑mente alvo de destaque na mesma. Podemos, pois, assumir que, apesar de operar com prin‑cípios e valores diferentes, os jornalistas e as editoras encontram formas de convergir e de estabelecer compromissos, ao mesmo tempo que mantém a sua independência. Tal é alcançado através de uma relação profissional desenvol‑vida ao longo do tempo e através de um con‑tacto regular.

Promotores de imprensa e media e jornalistas de música

Os promotores de imprensa das editoras con‑tactam quase diariamente com os jornalistas. A relação envolve o envio de cópias de novos lançamentos, material promocional (texto e fotografias) e comunicados de imprensa. Adi‑cionalmente, os promotores de imprensa con‑tactam os jornalistas para marcar entrevistas e, eventualmente, oferecer bilhetes para concertos no estrangeiro. Estas práticas, reconhecidas por todos, ocorrem através de dois tipos de comuni‑cação que são essenciais para um entendimento da relação entre os departamentos de promo‑ção e a imprensa. Em primeiro lugar, existe um contacto formal. Um exemplo desse tipo de contacto é o anúncio de novos lançamentos ou de eventos que são feitos através de comunica‑dos de imprensa ou através do envio de e ‑mails para uma mailing ‑list que incluirá todos os jor‑nalistas da área da música em Portugal. Nesse instante, as editoras e as promotoras de espectá‑culos certificam ‑se de que a informação chega, de forma democrática, ao maior número possível de canais de imprensa. Contudo, o segundo tipo de contacto será bem mais relevante para perce‑bermos a relação ambivalente entre a imprensa e as editoras e promotoras. Este é o contacto informal, diário, através do qual os promoto‑res de imprensa seleccionam um título ou um jornalista a quem enviam a informação em

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primeira instância. Os promotores de imprensa têm a liberdade de dar o privilégio da informa‑ção em primeira mão ou o exclusivo ao jorna‑lista que entenderem ser o mais indicado para fazer a cobertura ou criticar determinado artista ou evento:

“Enviamos primeiramente a informação

para a mailing list. Agora, essa informação de

que dispões, de que os Radiohead vão actuar em

Portugal, tem um valor noticioso inquestioná‑

vel. Podes tentar negociar com um título que

aches ser mais valioso para lhe dares a informa‑

ção em primeira mão para que fique à frente

dos outros títulos.” (promotor de espectáculos)

O seu conhecimento da imprensa e dos meios de comunicação permite ‑lhes identificar o jor‑nalista mais indicado para cobrir determinado artista. Um jornalista poderá ser assinalado se for especializado numa determinada área da música popular, se tiver um gosto particular ou simples‑mente porque goza de uma certa reputação no meio.

Contudo, seria demasiado simplista ver os jornalistas de música como agentes passivos que estão do outro lado da linha à espera de serem contactados pelos promotores de imprensa. Os jornalistas de música podem ser proactivos nesta relação, sendo, bastas vezes, eles que contactam os promotores de imprensa a perguntar por um novo lançamento que ficou esquecido ou não teve a atenção merecida por parte da editora, a fim de agendar uma entrevista ou confirmar uma informação disseminada, em primeira mão, na web ou de boca em boca. Ser “proactivo” é crucial para a independência dos jornalistas, ou, como afirmou um dos entrevistados:

“Os bons jornalistas vão à procura da infor‑

mação. Os maus ficam à espera que esta lhe che‑

gue” (jornalistas, suplemento de arte e espec‑

táculos).

Embora os promotores de imprensa devam identificar o jornalista certo para promover os artistas da editora, o seu interesse não converge

inteiramente com o do jornalista. Há agendas diferentes e prioridades diferentes que devem ser encontradas e os jornalistas não podem perma‑necer simplesmente enquanto receptores nesta relação se quiserem pôr em prática a sua agenda ou a da publicação que representam. Neste sen‑tido, os jornalistas actuam eles próprios, muitas vezes, enquanto relações públicas, tentando sen‑sibilizar os promotores de imprensa para deter‑minado artista que não está a ser suficientemente promovido e que poderá vingar em Portugal se o inverso acontecer:

“Há casos em que os meios de comunicação

nos chamam a atenção para determinado lança‑

mento. Numa semana, posso receber cinco ou

seis chamadas de jornalistas a perguntar por um

álbum que nós não estamos a promover inten‑

samente porque estamos a dar atenção a outra

coisa qualquer.” (ex ‑promotor de imprensa, edi‑

tora multinacional)

“Tenho andado a chatear os promotores

para o [Four Tet] trazer a Portugal. Acho que ele

teria público aqui.” (editor, suplemento de artes

e espectáculos)

O elemento ‑chave neste contacto diário é a informalidade. Os jornalistas e os promotores de imprensa relacionam ‑se informalmente e convi‑vem frequentemente em almoços ou para uma rodada de copos. Esta informalidade faz parte da ideologia profissional de ambas as partes, embora tenda a ser mais legitimada no discurso do pro‑motor de imprensa do que no do jornalista. Pro‑motores e profissionais das editoras discográficas vêem esta informalidade como natural e benéfica para a relação:

“Graças a Deus que assim é [informal]! Não

há nada de extraordinário nisso. Quer dizer,

ambos os lados asseguram a sua independência

e a liberdade para apreciar o trabalho do outro

e, como acontece sobejas vezes, existe a possi‑

bilidade de convergência e é nestas situações

que as pessoas aprofundam esses contactos.”

(manager, editora multinacional).

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“Quanto mais informal for o contacto, mais

portas se abrem, mas também mais depressa o

jornalista diz ‘não lhe vou dar destaque de pri‑

meira página porque não me interessa’ (…)

O contacto diário permite que os laços sejam

reforçados e isso é bom. E depois, há jornalistas

que são fãs de música e ficam doidos quando o

artista de que gostam vem a Portugal. E isso é

muito importante e às vezes nós telefonamos

de propósito para lhes dizer que determinada

banda vem a Portugal” (promotor de imprensa,

promotora de espectáculos).

Uma relação de confiança mútua emerge deste contacto informal o que, bastas vezes, dilui a fronteira entre o pessoal e o profissional6. Um promotor de imprensa usou o termo “jogo de cintura” para descrever uma relação que ambas as partes devem saber gerir de forma a que a inde‑pendência mútua seja assegurada:

“Tem que haver um jogo de cintura e uma

gestão da situação porque, entretanto, já existe

uma relação de amizade que foi criada e que tem

que ser bem gerida e medida.” (promotor de

imprensa, promotora de espectáculos).

O jogo de cintura é posto em evidência quando o promotor de imprensa negoceia um destaque de primeira página com um editor:

“Como é que eu consegui um destaque?

Dei ‑lhes algo que não pude dar a outros. Tão

simples quanto isso. Por exemplo, podes dizer

ao Nuno Galopim ‘Estou a dar cinquenta

bilhetes para o concerto dos Gotan Project’ e

o Galopim, sabendo que há grande interesse

nesse concerto, vai ‑lhe dar destaque. Isto

são formas de influenciar, o chamado ‘jogo

de cintura’, formas de persuasão mas nunca

no mau sentido.” (promotor, promotora de

espectáculos)

Quando essa informalidade não é gerida da melhor forma, tanto o jornalista como o promo‑tor de imprensa arriscam a sua credibilidade por não conseguirem manter a distância necessária entre o seu interesse e o do seu “parceiro de tra‑balho”7. Isto pode ser causado por negligência, como quando a manipulação é demasiado óbvia e paternalista:

“Havia este tipo que era responsável pelo

catálogo da BMG e que me perguntou se eu

gostaria de escrever um artigo a re ‑promover

um certo rapper (…) e eu respondi ‑lhe ‘a pro‑

moção é feita com publicidade por isso ponha

aqui um anúncio se quiser…’. As coisas têm que

ser claras e toda a gente nas editoras sabe o tipo

de discurso que deve adoptar para comigo (…)

Não quero que ninguém aqui seja tomado por

um escritor de anúncios à borla” (editor, suple‑

mento de artes e espectáculos).

A relação de mútua confiança pode, pois, ser temporariamente quebrada, o que acontece

6 O seguinte comentário põe em evidência como essa fronteira entre o pessoal e o profissional é muitas vezes transposta de forma a parecer que o pessoal surge em primeiro lugar: “Lembro ‑me de uma vez ter ganho crédito e respeito da parte de um jornalista com o qual eu já tinha uma excelente relação profissional… Um dia ele estava a dar a primeira página a um artista de outra editora mas que tinha sido anteriormente editado por nós. Ele andava a pedir um slide do artista à editora. Mas, por causa disto ou daquilo, quando o número estava pronto para ir para a impressão, ele ainda não tinha o slide. Por isso, ele ligou ‑me. Eu estava muito ocupado mas percebi o seu desespero a ponto de decidir meter ‑me num táxi e levar ‑lhe o slide. E não foi para ter a cobertura de um artista da minha editora, mas porque percebi que aquela pessoa estava desesperada e precisava da minha ajuda. E claro que não fiz isto a pensar ‘agora vou ter um retorno disto’ até porque isso simplesmente não acontece” (promotor de imprensa, editora multinacional).

7 Esta situação também é comum aos distribuidores ou retalhistas independentes cujas vendas estão depen‑dentes do destaque na imprensa. Um jornalista referiu o caso peculiar de um retalhista a quem informou que ia de férias no dia seguinte, ao que este respondeu, entre o lamento e a lamúria, “vais ‑te embora amanhã? Então e quem é que vai criticar os nossos discos?” (citado por jornalista de suplemento de artes e espectáculos).

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em casos extremos quando uma editora decide “boicotar” determinado jornalista ou publicação recusando ‑se a enviar o material de promoção quando um dos seus artistas teve uma crítica negativa. Os dois lados vêem a situação de forma diferente: para as editoras, estas situações apenas existem quando sentem que o jornalista teve poucos escrúpulos:

“Vamos supor que um jornalista pensa que

a editora deveria promover melhor um deter‑

minado artista e que não está suficientemente

interessada ou que a editora acha que o jorna‑

lista deveria ter dado mais atenção a um certo

artista dessa editora (…) Não é realmente um

conflito, apenas se torna num assunto sério

quando estas questões não são tratadas com

honestidade e transparência.” (manager, edi‑

tora multinacional)

Para os jornalistas, é apenas um problema de retaliação e de pressão por parte das editoras sobre os jornalistas no sentido de estes escreve‑rem críticas mais positivas:

“Quando saiu o novo disco do Michael

Jackson, a Sony decidiu não nos enviar o disco

porque sabia que íamos desancar nele (…) mas

isso não é um problema, nós vamos à loja e

compramos o disco. Mas sim, existe esse tipo

de reacção como, por exemplo, durante alguns

meses, os discos chegam tarde à redacção ou,

simplesmente, nunca chegam, ou as entrevis‑

tas em que estávamos interessados tornam ‑se

difíceis de obter.” (crítico de música pop, suple‑

mento de artes e espectáculos).

Embora situações de “boicote” tenham sido comuns no passado, elas têm tendência a ser menos frequentes. A relação profissional entre as duas partes evoluiu de forma que a manipulação se tornou mais subtil:

“Entre 1984 e 1990, as editoras boicotavam‑

‑nos frequentemente. Corremos alguns ris‑

cos e depois, durante algumas semanas

ou meses, uma determinada editora não

comprava publicidade nem enviava os CDs

– não era um problema, íamos às lojas e

comprávamos. Acho que hoje eles são mais

sofisticados... A pressão existe através da

oferta de bilhetes para espectáculos, atra‑

vés da cedência de entrevistas a uns e não a

outros.” (ex ‑director, semanário de música).

“Houve duas viagens pagas para ir ver os

U2 a Miami (…) Mas o DN não foi escolhido

(…) e mais tarde eu perguntei ‑lhes porque é

que tinham escolhido o Público e o Expresso e

eles responderam ‑me ‘porque vocês não gosta‑

ram do disco’” (editor, suplemento de artes e

espectáculos).

As editoras concedem que uma quebra de relações com a imprensa é indesejável e traduz‑‑se em falta de profissionalismo. Encontram, pois, melhores formas de gerir essa relação a seu favor. Muitas vezes, privilegiar uma publicação sobre a outra constitui uma estratégia subtil e não assumida de ostracização de um jornalista ou publicação, decorrente de uma crítica nega‑tiva. Tal política é ambivalente em benefício da editora: enquanto os jornalistas poderão sentir que estão a ser excluídos de forma injusta do acesso à informação, os promotores de imprensa podem fazer parecer natural essa estratégia, como se o privilégio de determinada publicação fosse um direito legítimo. O conflito é minimizado deixando o jornalista sem outra opção que não seja a de ir aos retalhistas comprar os discos ou os bilhetes para o espectáculo:

“Há dois meses atrás, fomos excluídos da

excursão ao concerto da Madonna… (P: foi

alguém da imprensa?). Todos menos nós! Não

temos dúvidas do que se passou (…) Eles traba‑

lham neste princípio ‘vocês mandam abaixo o

artista que nós promovemos, agora estão lixa‑

dos’. Agora, é óbvio que isto poderá funcio‑

nar para ambos os lados porque nós podemos

comprar uma entrevista que foi feita em outro

sítio qualquer… E não nos é dado o acesso mas

podemos comprar nós os bilhetes.” (ex ‑direc‑

tor, semanário de música).

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O pagamento de despesas na deslocação a concertos e a conferências de imprensa é uma prática particularmente ambígua nesta relação. Dar a informação em primeira mão, marcar entrevistas e ceder os discos são práticas comuns onde os jornalistas se sabem posicionar man‑tendo o devido distanciamento. Em contraste, as viagens ao estrangeiro comissionadas pelas editoras poderão diluir as fronteiras entre o jor‑nalismo e a publicidade, deixando o jornalista numa posição mais dúbia:

“As fronteiras entre o que é e não é cor‑

rupção são muito ténues. Por exemplo, o Luís

Represas gravou um novo disco e foi masterizá‑

‑lo a Londres (…) Embora ele viva em Sin‑

tra, as entrevistas para a imprensa portuguesa

foram feitas em Londres… Encontras razão

para tal?” (jornalista, suplemento de artes e

espectáculos).

“Duvido da capacidade de muitos jornalis‑

tas (o que é compreensível) para julgar negati‑

vamente algo para o qual foram educadamente

convidados e talvez até tenham ficado com um

tempo extra para ir conhecer a cidade. Perce‑

bes o que eu digo?” (jornalista, suplemento de

artes e espectáculos).

Não será, pois, de estranhar quando os pro‑motores de imprensa se referem aos jornalistas de música como parceiros de trabalho, prevendo vantagens em forjar tal parceria e em evitar possí‑veis conflitos. O privilégio de uma fonte constitui o álibi perfeito para os promotores de imprensa promoverem os seus actos da forma que melhor serve os seus interesses. Cria a ilusão de que os jornalistas estão a ser privilegiados de forma legí‑tima quando é objectivo das editoras promover os seus artistas através do canal mais adequado que é alcançado:

“As condições de acesso à informação são

tais que é quase inevitável que a informação

reproduzida seja a informação que a editora

quer ver reproduzida” (ex ‑director, semanário

de música).

A especialização dos jornalistas de música numa determinada área da música popular é vista pelos jornalistas como uma tendência benéfica para as editoras, pois facilita o seu tra‑balho de promoção de artistas ao permitir ‑lhes uma mais fácil identificação do jornalista certo para a cedência de informação em primeira mão:

“A especialização torna esses parceiros ainda

mais interessantes para a indústria musical. Se

tens um título que é especializado na música de

dança e uma editora que tem lançamentos de

música de dança para promover, então eles irão

trabalhar com esse título em particular, certo?”

(editor, semanário de música).

Face a isto, alguns jornalistas tendem a olhar com desdém para a especialização a ponto de oporem o ser jornalista ao ser especialista:

“Prefiro trabalhar com jornalistas do que

com especialistas” (editor, semanário de música).

Não apenas a especialização diminui o âmbito do jornalismo musical mas também faz com que pareça comprometido com os interes‑ses das editoras.

Capital social e simbólico

Enquanto a informalidade é importante na criação de uma relação de confiança mútua, ela também ajuda à ocultação de várias formas de capital no entendimento desta relação. Os pro‑motores de imprensa fazem com que esta relação informal seja natural e, deste modo, dissimule os interesses que representam. Ao colocarem tanta ênfase nesta informalidade, eles também tendem a ofuscar a importância crucial do status dentro da indústria. Para os promotores de imprensa, é essencial saberem quem é quem no jornalismo de música e acabam por estabelecer uma boa parce‑ria de trabalho com os jornalistas mais reputados:

“Nós temos apenas duas ou três cópias de

um novo lançamento e então os jornalistas que

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as recebem têm que ser escolhidos a dedo (…)

A publicação para a qual o jornalista escreve tem

que ser importante porque tem que ter alguma

tradição na cobertura deste género de música.

Isto vai assegurar uma certa visibilidade do lan‑

çamento nos meios de comunicação. E depois,

claro, identificar o gosto do jornalista e estar a

par do seu trabalho ao longo dos anos.” (mana‑

ger, retalhista/distribuidora de música).

A noção de capital, proposta por Bourdieu, é ‑nos extremamente útil para entender esta rela‑ção. Por capital, Bourdieu entende todo o tipo de recursos, não apenas económicos e materiais mas também imateriais (Lindberg et al., 2005). Assim, o capital cultural é o somatório de recursos mate‑riais e imateriais (conhecimento de formas legiti‑madas de cultura, posse de itens culturais, nível de educação, dons de comunicação) que cada um agregou ao longo da vida e que são reconhecidos dentro de um espaço social (que Bourdieu identi‑fica como campos). O capital social, por sua vez, é “o somatório de recursos potenciais que estão relacionados com a posse de uma rede durável no tempo de relações mais ou menos institucio‑nalizadas de conhecimento e reconhecimento mútuo” (Bourdieu, 1986: 51). A sua abordagem é instrumental, no sentido em que os agentes, deliberadamente, constroem sociabilidades com o objectivo de criar esses recursos. Quando o capi‑tal cultural e social é reconhecido dentro de um campo social, pode ser convertido em capital sim‑bólico: “capital simbólico é um crédito, é o poder concedido a aqueles que obtiveram reconhe‑cimento suficiente para estar numa posição de impor reconhecimento” (Bourdieu, 1990: 138).

Neste sentido, a importância do capital social é crucial para ambos os lados (Bourdieu, 1986). A máxima “não é o que conheces mas quem conheces” (Negus, 1992: 116) faz aqui todo o sentido. Para os promotores de imprensa, o conhecimento do espaço social do jornalismo

musical/cultural é essencial se eles quiserem identificar o jornalista certo sempre que há um novo lançamento. Para os jornalistas de música, é importante ter o seu nome reconhecido pelas editoras discográficas e pelos promotores de espectáculos para que estejam numa posição pri‑vilegiada em relação aos seus pares. Ao mesmo tempo, também eles devem saber quem é quem nas editoras e promotoras para poderem assumir uma abordagem proactiva nessa relação.

O capital social surge como o recurso mais importante nesta relação. É, acima de tudo, importante para os promotores de imprensa e para os jornalistas saber quem é quem no lado oposto da relação e ter uma boa rede de contac‑tos. Os promotores de imprensa devem saber quem escreve para que publicação, sobre o que escrevem e qual o seu gosto pessoal. Crucial‑mente, devem desenvolver essa relação informal com os que gozam de maior reconhecimento ou com aqueles que escrevem para as publicações mais sonantes. Inversamente, os jornalistas tam‑bém necessitam de ter uma boa rede de contactos nas editoras e promotoras de espectáculos sendo que beneficiam a longo prazo dessas redes de contactos, apesar de poderem escapar a alguma da pressão exercida sobre eles pelas editoras. Os jornalistas podem conseguir escapar a essa pres‑são, comprando os CDs nas lojas e comprando bilhetes para os espectáculos. Contudo, não é apenas o acesso livre a novos lançamentos, mate‑rial de promoção, entrevistas, bilhetes e despe‑sas de viagem para concertos no estrangeiro que constituem recursos importantes na facilitação do trabalho do jornalista. As relações informais permanecem importantes para o jornalista, por exemplo, porque podem resultar na contratação de jornalistas por parte das editoras para a escrita de press ‑releases8. Também, e da mesma forma que as relações informais ajudam os promotores de imprensa a saber quem são os jornalistas cer‑tos para escrever sobre o seu artista, elas também

8 Esta situação é comum, embora as editoras a abordem de formas diferentes. Algumas editoras exigem que o press ‑release seja assinado pelo jornalista para se assegurarem de que o jornalista não irá criticar o disco ou, caso o faça, seja coerente com o tom em que é feito o press ‑release. Algumas outras optam, no entanto, por edi‑tar press ‑releases não assinadas mesmo quando são escritas por jornalistas de música.

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dão aos jornalistas um conhecimento mais apro‑fundado dos promotores de imprensa, revelando os mais competentes e cooperantes:

“Se os nossos editores simpatizam mais com

um promotor de imprensa porque ele é mais

competente, mais rápido na resposta aos nos‑

sos pedidos como, por exemplo, o de um novo

lançamento em primeira mão, é óbvio que tal‑

vez o promotor de imprensa obtenha um tra‑

tamento preferencial sobre outro que é deslei‑

xado.” (jornalista, semanário de música).

“É muito importante para as pessoas na

imprensa, cujas secretárias estão sempre cheias

com novos lançamentos, perceberem que

quando recebem um CD da Ananana é porque

esse disco é especial. Porque quando recebem

um CD da Ananana significa que há alguém na

Ananana que acha que eles são a pessoa certa

para escrever sobre ele.” (manager, retalhista/

distribuidora).

O capital cultural, muitas vezes convertido em capital simbólico quando reconhecido den‑tro do seu campo, é também importante, estando inextricavelmente ligado ao capital social (Bour‑dieu, 1986). O reconhecimento representa para o jornalista de música o poder do seu conheci‑mento sobre música popular, seja ele especiali‑zado e legitimado cientificamente ou não. Certos jornalistas e críticos fizeram o seu nome ao longo dos anos e adquiriram um estatuto simbólico de opinion ‑makers cujo trabalho é relevante para a indústria discográfica:

“Frequentemente, conhecemos uma certa

banda através dos opinion ‑makers. Isso é muito

importante e sabes, o Nuno Galopim, o Vítor

Belanciano e alguns jornalistas do Blitz são

muito importantes no lançamento em Portu‑

gal de novos artistas ou tendências.” (promo‑

tor de imprensa, promotora de espectáculos).

Pese embora tal reconhecimento seja mediado por um capital cultural elevado, é quando esse capital cultural é reconhecido pelos

leitores e traduzido num aumento de vendas de um disco que o jornalista alcança um determi‑nado estatuto dentro da indústria. Será, pois, justo afirmar que o capital cultural, embora estando presente na relação entre jornalistas e promotores de imprensa, só se torna crucial quando convertido em capital simbólico através do impacto que o trabalho do jornalista tem nas vendas de um disco:

“Não nos podemos esquecer de que, a partir

do momento em que o Nuno Galopim gosta de

um disco a ponto de lhe fazer uma excelente crí‑

tica, acompanhada de uma entrevista ao artista,

as coisas não acabam aí. O Nuno Galopim é

uma referência entre os seus pares e não ape‑

nas um editor. Ele tem um programa de rádio

com influência no consumidor de música. Por

isso, o mais importante é identificar as pessoas

que ocupam certas posições.” (manager, reta‑

lhista/distribuidor).

O capital cultural (conhecimento do jorna‑lista/crítico de música sobre música popular) é, pois, acompanhado da influência do jorna‑lista nas vendas, seja ela no caso de um nicho de venda e distribuição mais especializado ou no âmbito mais alargado das grandes cadeias, constituindo os dois aspectos essenciais para o reconhecimento do jornalista pela indústria. Embora o capital cultural possa ser reconhecido pelos leitores, ele não será importante para o reconhecimento por parte das editoras se estas não puderem colher frutos desse capital, isto é, se não puderem transformá ‑lo em lucro econó‑mico. Tal deixa o jornalista numa posição de subalternidade, onde o cultural e o estético (dois princípios ideológicos que enformam o discurso crítico sobre música) estão dependentes do eco‑nómico (o lucro como princípio da indústria discográfica).

Conclusão

A evolução da indústria musical em Portu‑gal, ao longo dos últimos 20 anos, tem sido um

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processo complexo, onde as editoras e o jorna‑lismo sobre música crescem numa relação simbi‑ótica. A imprensa, como outros meios de comu‑nicação social, tornou ‑se um canal essencial nas estratégias de promoção das editoras discográ‑ficas e promotoras de espectáculos. Adicional‑mente, a implementação em Portugal das prin‑cipais editoras discográficas, o seu investimento em repertório nacional9 e o desenvolvimento de agentes promotores de espectáculos sustentam o crescimento e a profissionalização do jornalismo musical. Embora ambos trabalhem com objecti‑vos diferentes e com ideias diferentes acerca do valor do seu objecto de trabalho, jornalistas e promotores de imprensa relacionam ‑se num con‑tacto quase diário. Tal contacto é mantido a um nível informal, diluindo fronteiras entre o pes‑soal e o profissional. Os promotores de imprensa são, regra geral, mais positivos no seu discurso sobre esta relação, referindo ‑se frequentemente aos jornalistas como parceiros de trabalho que estão no mesmo barco das editoras. Os jornalistas são mais cépticos e tendem a sublinhar a dife‑rença entre os seus objectivos e os das editoras.

Na realidade, ambas as partes desenvolvem estratégias para atingir os seus fins. A informa‑lidade desempenha um papel fundamental ao subentender qualquer persuasão, influência ou manipulação mais óbvias, tornando ‑as naturais para jornalistas e promotores de imprensa. Na medida em que as tensões e os conflitos podem surgir sempre que os interesses são postos em causa, os promotores de imprensa desenvolvem formas mais subtis de influenciar o trabalho dos jornalistas sem terem que recorrer ao tradicional “boicote”. Dar a informação em primeira mão é uma forma eficaz, através da qual editoras con‑quistam a confiança de jornalistas e publicações mais conceituados, e tornam subentendida qual‑quer chicotada naqueles que são excluídos, espe‑cialmente quando tal acontece devido a uma má crítica ou artigo.

Os jornalistas não são agentes meramente passivos nesta relação. O seu compromisso para com critérios de valor e relevância estéticos

determina que, muitas vezes, sejam eles que abordam as editoras e os promotores. Muitas vezes também, as suas escolhas editoriais vão ao encontro dos interesses de pequenas edito‑ras, distribuidoras e retalhistas e não dos das multinacionais. O seu capital cultural (conhe‑cimento da música popular) ilude, em parte, a economia da indústria musical pois os artistas nos quais as editoras mais investem em pro‑moção não são, em boa parte, os que recebem mais atenção (e, menos ainda, aprovação) da parte dos títulos que gozam de maior credibili‑dade. Em face disto, as editoras e os promotores tentam alcançar os seus objectivos, procurando assegurar que os artistas que provavelmente receberão boa cobertura na imprensa sejam bem promovidos. De um modo geral, o capital social do promotor de imprensa, definido pelo seu conhecimento de quem é quem no jorna‑lismo musical e de uma boa gestão da relação com a imprensa, permite ‑lhes ter artistas que sejam “legíveis” na imprensa e cobertos, em simultâneo, pelos principais títulos. Em outras situações, e especialmente no contexto de uma tendência recente para a especialização no jorna‑lismo sobre música, os promotores de imprensa usam o capital social para identificar o jornalista certo para escrever sobre determinado artista.

Nessa relação entre a imprensa e a indústria musical, tanto o jornalista como o promotor de imprensa usam os seus recursos, ou formas de capital social (crucial para ambos), cultural e simbólico (estes últimos mais importantes para o jornalista), a fim de alcançarem os seus fins. Os resultados dessa relação são mais imprevisí‑veis do que tem sido sugerido e há espaço para dinâmicas de consentimento e de resistência em ambas as partes (Forde, 2001b). Mas uma boa gestão desses recursos é essencial para os jornalistas porque estes necessitam de manter a sua independência sob pena de serem vistos como um veículo promocional das editoras. A resposta ao problema da independência do jornalista de música face à indústria não reside na possibilidade de este poder actuar fora do

9 Todas as majors, com a excepção da Warner Music, têm artistas nacionais representados no seu catálogo.

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âmbito da relação com as editoras – não pode. Reside, antes, na capacidade de os jornalistas gerirem essa relação, combinando um bom uso dos recursos (ou formas de capital social e cultu‑ral) com um bom entendimento da forma como funciona essa relação.

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Os jovens entre a rebeldia e o risco

A categoria social juventude é fundamental para com‑preender múltiplas características das sociedades modernas, o funcionamento delas e as suas transfor‑

mações (Dick, 2003: 27). Esta interacção social vai fazer com que a análise dos jovens projecte em si imagens que também resultam do que são os adultos e do estádio evolutivo dessa sociedade e das suas políticas de juventude.

As relações sociais são complexas e com diversas prove‑niências e pontos de chegada. A forma como são vistos os jovens pelos adultos acaba por influenciar os seus comporta‑mentos e a forma como também eles se posicionam perante os outros. Os jovens ajustam as suas atitudes ao modo como são notados e tratados pelos adultos e instituições adultas, bem como pela forma como são vistos e tratados pelos seus amigos e pelo modo como se querem olhar (Fine, 2004: 2).

A sociedade, de certa forma, aprecia os jovens como indi‑víduos a quem é dado um certo crédito, durante um perí‑odo de tempo, para que consigam preparar ‑se para o futuro e também para cometerem os excessos que depois não serão tolerados. Neste caso, a juventude é pensada enquanto uma fase da vida na qual existe um excedente temporal e um crédito. “Ser jovem é ter um capital temporal […]. É o que se chama ‘moratória vital’, um facto inegável” (Dick, 2003: 27), caracterizada por um gosto pelo perigo, pelo desafio e pela audácia, proporcionada por espaços de lazer que se prolon‑gam com o aumento da escolaridade e também pelo atraso que existe na entrada no mercado de trabalho.

A época da juventude está ligada a práticas de sociabilidade e de lazer específicas e, por vezes, exclusivas. O reagrupamento

sistemático e prolongado dos jovens no universo escolar acaba por gerar gostos próprios deste meio. A esta ideia, e no contexto específico deste trabalho, poder ‑se ‑ia acrescentar que os grupos estão para além da escola, muitas vezes confinados aos colegas/vizinhos, também eles igualmente importantes e inter ‑relacionados com as atitudes de cada um dos seus elementos.

A juventude é marcada por um início de uma vida social que começa a ser independente, com as idas ao cinema, à discoteca, a concertos, a festas e a actividades desportivas (Galland, 2004: 228). Os espaços de lazer são preenchidos de diversas formas e frequentemente na pre‑sença de colegas. A importância que os jovens dão à convivialidade pode ser encarada como um atributo gera‑cional associado às culturas juvenis.

A vida social dos jovens está asso‑ciada aos seus pares/colegas, sendo que existem atributos que caracteri‑zam os jovens e os grupos em que se inserem, alguns deles contrastantes com as normas sociais.

As condutas de grupos de jovens designados por tribos1 são entendidas

Delinquência juvenilenquanto alimento noticioso

Maria José britEs*

* Bolseira de doutoramento da FCT, lecciona História do Jornalismo na Universidade Lusófona do Porto e é investigadora do Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ).

1 “Tribo é um elemento de composição de palavras que exprime a ideia de atrito (do grego tribé), isto é, a resistência de corpos que se opõem quando se confrontam. Esta dimensão de resistência grupal, substantiva‑mente ligada à ideia de atrito, encontra ‑se presente no fenómeno das tribos urbanas” (Pais e Blass, 2004: 14).

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como desalinhadas e confrontativas, isto sem esquecer o seu lado exótico. Na realidade, “tribo juvenil” usa ‑se para traduzir sociabilidades de jovens tidas como desestruturadas socialmente (Pais e Blass, 2004: 14). “Muitos comportamen‑tos das ‘tribos’ são vistos como ‘anómicos’, sem sentido. Isso acontece porque as sociedades adquirem uma relativa estabilização em torno de valores com os quais se julgam a si mesmas” (Idem: 17). Robert E. Park aventurou ‑se mesmo a dizer que os gangues exercem maior poder sobre os jovens que os compõem do que a igreja, a escola ou outras instituições (Park, 1984: 112).

Uma tribo urbana apresenta ‑se com um conjunto de regras diferenciadoras e específicas às quais o jovem confia a sua imagem, embora mantenha sempre uma implicação pessoal (Costa et al., 2000: 91). As tribos pressupõem ainda que os seus membros constituam com relativa clari‑dade uma imagem, designadamente ao nível das roupas e da linguagem, e um esquema de atitudes, sendo o seu conjunto uma menoridade urbana, vedada a indivíduos considerados normais que actuam de acordo com as regras dominantes.

Até aos anos 50, as subculturas juvenis foram associadas sobretudo aos fenómenos da delinquência. Na década seguinte, centraram‑‑se atenções nos conflitos geracionais e na de 70 foram reconhecidas pela sua capacidade de resistir mediante rituais. Esta última perspectiva está associada à luta de classes e à reacção dos jovens da classe trabalhadora à cultura domi‑nante, usando rituais identificativos de grupos e também estilos próprios como formas de vestir e adopção de símbolos.

As tribos urbanas pressupõem ainda factores que potenciam a desordem urbana. Uma das sintomatologias das atitudes agressivas tem a ver com a inegável imagem de marca que é fácil de identificar e que funciona como fonte de orgulho (Idem: 91 ‑92). De qualquer modo, esta qualificação de tribos não mostra coincidência entre as entidades atribuídas a esses grupos de jovens e as entidades reivindicadas (Pais e Blass, 2004: 48). Os jovens são o que são. Porém, tam‑bém é verdade que se constroem com o que deles se pensa, com os mitos que lhes são atribuídos

pelas palavras que são detentoras de um poder simbólico, por vezes muito carregado.

Os grupos juvenis têm uma tendência – que os torna mais apelativos – para se situa‑rem à margem da rotina social e do que “pode considerar ‑se oficial numa cultura” (Costa et al., 2000: 27). Estes grupos possuem regras próprias que, mesmo não sendo faladas, são conhecidas e se deslocam no tempo. Em termos simbólicos, estabelece ‑se um círculo delineado e delimitado que cria conjuntos unidos entre os que estão den‑tro e separa os que ficam de fora. Surgem duas identidades: a própria e a dos outros.

Um dos exemplos mais evidentes das mani‑festações juvenis, eventualmente transgressoras, é o caso dos graffiters. Os graffiters mostram uma acção duplamente transgressiva e artística. Não é a expressão artística, o conteúdo, que torna o graffiti transgressivo, mas sim as “telas”/locais onde o graffiter actua. No Código Penal há refe‑rências que inibem a concretização de graffitis. A esta punição legal junta ‑se a penalidade social dos que condenam o surgimento de graffiti no espaço público. Porém, para além desta vertente do graffiti, há também uma outra que não vive à margem da lei, sendo os graffiters convidados a fazerem trabalhos em pavilhões, lojas ou, por exemplo, discotecas.

Olhados como problemáticos e caracteriza‑dos por terem condutas de risco, estes jovens são assim rotulados por saírem dos parâmetros dos adultos. São os hip hoppers, os rappers enraizados em conceitos que se autonomizam face às nor‑mas de vestir, de música e de expressão artísti‑cas dos adultos. Pasquier (2005) considera que a música é um modelo especialmente interessante para laborar sobre os fenómenos da estilização.

Os momentos de lazer também são, cada vez mais, preenchidos pelas comunicações à distân‑cia que implicam interlocutores que podem ser próximos, por relações simples e também por pessoas totalmente desconhecidas.

A questão é que estas práticas são vivencia‑das de forma diferente e mais ou menos intensa de acordo com os meios sociais onde emergem e onde existe uma menor supervisão parental. A  família tem sido um elemento tido como

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basilar, no sentido em que pode potenciar ou diminuir os elementos de risco e, ainda, conso‑ante a forma como se constitui e actua, de ele‑mento de previsão desse mesmo risco.

A dificuldade de determinar o que é o gangue

Muito para além da etiqueta dos jovens rebel‑des, os jovens em risco, entre estes os jovens des‑viantes, constituem um caso específico. A delin‑quência juvenil suscita uma imagem simbólica do que são os delinquentes e os seus actos, mas depois varia a especificidade da norma e da legis‑lação que a determina nas diferentes sociedades, nos diferentes momentos históricos. “Há pro‑blemas públicos que são o resultado de temas problemáticos ou temáticas em discussão nas arenas públicas e políticas, cujas problemáticas pertencem à agenda dos media, das instituições, dos partidos políticos, das associações de cida‑dãos” (Babo ‑Lança, 2005).

O crime de gangues, por exemplo, ganhou o estatuto de um dos mais importantes problemas sociais dos finais do século XX, se se pensar que os cidadãos em geral e os fazedores de políticas se empenharam em lutar contra a possibilidade de mais jovens significarem ainda mais crime e gangues. Porém, a definição de gangue continua a não ser consensual entre os especialistas. E a questão complica ‑se quando é abordada numa perspectiva inter ‑países. É que as palavras e ter‑mos usados para nos referirmos a gangues, têm diferentes significados e cargas emocionais em diferentes línguas. Digamos que um gangue pode ser um grupo de jovens que se dedica a activi‑dades delituosas, acentuando a diferença entre os que pertencem ao grupo e aos que estão de fora dele. Têm uma base territorial e uma lide‑rança forte. Opõem ‑se a regras de conformidade. “A participação num gangue satisfaz as necessi‑dades normais de reconhecimento, de pertença e de estatuto que os adolescentes têm, e que difi‑cilmente encontram a resposta nas zonas urba‑nas socialmente desorganizadas” (Cusson, 2006: 162). Um gangue ou um grupo problemático é

tendencialmente visto como durável e orien‑tado para a rua, com uma identidade ligada ao envolvimento em actividades ilegais (Bjerrega‑ard, 2002: 37; Esbensen e Weerman, 2005: 8).

O número de elementos que compõem um gangue é controverso: “Admite ‑se que é preciso que tenha pelo menos três elementos e que os ‘verdadeiros’ bandos sejam organizados e hierar‑quizados” (Roché, 2001: 64). Um grupo pode ser considerado um gangue quando os seus mem‑bros se situam numa faixa etária entre os 10 e os 20 anos e tomam atitudes de violação da lei ou, pelo menos, assumem comportamentos “impru‑dentes” (Esbensen et al., 2001: 106). Os mesmos autores advogam, porém, que os gangues exis‑tem sobretudo nas cidades e congregam, mais frequentemente, minorias masculinas.

Os gangues, cujo estudo tem contribuído decisivamente para o conhecimento da delin‑quência em meio urbano, encontram ‑se espa‑lhados pela maior parte das grandes cidades mas também estão a desenvolver ‑se em áreas citadinas de menor dimensão. Carregam conota‑ções negativas, sendo este um traço relevante de definição. Outro aspecto decisivo tem a ver com a estrutura organizacional do gangue, havendo encontros com alguma regularidade entre os seus membros, o que potencia o sentido de território. O gangue costuma ter um nome que lhe permite ser identificado pelos que não o integram. Por vezes, os seus membros apresentam critérios de vestuário semelhantes.

Uma minoria de jovens pertence “a grupos orientados para as ruas nos quais o comporta‑mento ilegal é comum, esses grupos são refe‑renciados como ‘jovens gangues’ ou ‘grupos de jovens problemáticos’. Estes grupos constituem um fenómeno muito conhecido nos Estados Uni‑dos e recentemente num número crescente de países europeus” (Esbensen e Weerman, 2005: 5).

Um factor que tem surgido como prepon‑derante em muitos estudos sobre gangues e delinquência juvenil norte ‑americanos é a etni‑cidade. Na Europa, porém, as coisas podem ser diferentes, tendo em conta o estudo de Esben‑sen e Weerman (2005: 25), que aponta para a não existência de desproporcionalidade entre os

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membros de gangues não holandeses e holande‑ses, contrariando, assim, a ideia comum segundo a qual os membros de gangues são indivíduos de origem estrangeira.

Ordenamento legislativo

A nível histórico, algumas ordenações já previam normas rudimentares de protecção de crianças e jovens em relação ao direito penal. Mas foi apenas no século XX que Portugal come‑çou a dar mostras da intervenção protectora do Estado. Essa tendência foi inicialmente protago‑nizada, ainda que de forma não absolutamente definida, pela Lei de Protecção da Infância, de 27 de Maio de 1911, que apresenta um conjunto de regras de direito especiais para menores, introdu‑zindo na ordenação jurídica nacional os primei‑ros tribunais de menores, as tutorias de infância. De assinalar que tal ordenamento começou por vigorar apenas em Lisboa, sendo aprovado em 1912 para o Porto e, em 1925, para o resto do país. Somente décadas mais tarde, em 1962, é que se compilou num só texto legal as normas relativas a crianças com comportamentos delin‑quentes ou outros problemas, dando ‑se origem à Organização Tutelar de Menores (OTM), que viria a ser reformulada em 1978, fortalecendo o modelo intervencionista do Estado.

Em 2001, abriram ‑se duas vias de justiça, através da entrada em vigor, a 1 de Janeiro, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP)2 e da Lei Tutelar Educativa (LTE)3, sepa‑rando desta forma a intervenção jurídica para as crianças e jovens em situações de perigo e para jovens que passam ao patamar de vitimadores, embora sem deixar de ter em atenção “a neces‑sidade de educação para o direito e, quando seja caso disso, a aplicação da medida. Tendo em conta a vulnerabilidade dos jovens, em especial perante os riscos de estigmatização por um pro‑cesso judicial […] só uma decisão rápida pode ter efeitos pedagógicos” (Gersão, 2003: 150).

Considerando que a delinquência juvenil é um problema jurídico mas também social, Boaventura Sousa Santos aponta para a impor‑tância do papel da intervenção da sociedade. O mesmo autor, aludindo a Eliana Gersão, con‑sidera que a LTE “rompeu profundamente, do ponto de vista processual, com o estabelecido na Organização Tutelar de Menores, que previa um processo muito desformalizado, privando os jovens de garantias fundamentais, o que era incompatível com os princípios de um Estado de Direito Democrático” (cit. in Santos et al., 2004: 154 ‑155). Quebrou ‑se a tradição de um modelo paternalista que favorecia qualquer intervenção do Estado em favor da ordem social. A entrada em vigor da LTE veio introduzir profundas mudanças na área da legislação para menores em risco. Maria João Leote relembra a inadequação do modelo “proteccionista” em vigor até 2000, assinalando que “a intervenção tutelar terá hoje outra razão de ser em função das profundas trans‑formações ocorridas nos modos de vida em toda a sociedade” (Carvalho, 2003: 5).

Saindo apenas da legislação de menores, interessa, no presente quadro, lembrar o Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses que apresenta disposições consideradas importantes no contexto das vivências de crianças e jovens em risco: “[…] O jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinquentes menores de idade, assim como deve proibir ‑se de humilhar as pes‑soas ou perturbar a sua dor. […] O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacio‑nalidade ou sexo”.

Enquadramentos episódicos e temá‑ticos

A literatura sobre a cobertura mediática da delinquência/violência juvenil reflecte a cris‑pação do tema verificada sobretudo a partir dos

2 Lei n.º 147/99, de 1 Setembro.3 Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro.

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anos 90, década em que o assunto conquistou maior noticiabilidade.

Esta transposição para agenda mediática deveu ‑se também ao facto de terem ocorrido acontecimentos mais mediáticos, designada‑mente nos Estados Unidos, nos finais dos anos 90, como o tiroteio numa escola em Columbine4.

Aliás, como será possível verificar, uma grande parte dos estudos tiveram como ponto de partida este caso ou pelo menos focam ‑no. Aumentaram de importância algumas pesquisas visando saber se há diferenças de enquadramento noticioso em momentos de rotina comparativa‑mente àqueles marcados por um acontecimento extraordinário.

É o que sucede, por exemplo, na investiga‑ção “Youth and violence in California newspapers”, do Berkeley Media Studies Group, realizada após o tiroteio de Columbine, com base em três jor‑nais: Los Angeles Times, San Francisco Chronicle e Sacramento Bee. A amostra foi recolhida para que se comparasse a cobertura de rotina daquele acontecimento extraordinário. Assim, uma das amostras contemplou a selecção de um jor‑nal ao acaso todos os 13 dias durante um ano, de Junho de 1998 a Maio de 1999, enquanto a outra reuniu os sete dias de Abril de 1999, depois do tiroteio na escola. Verificou ‑se que apenas dois tópicos dominavam a cobertura juvenil em períodos de rotina: a educação e a violência, sendo que as peças sobre violência ocupavam 25% da cobertura. A violência foi o tópico dominante na semana a seguir a Colum‑bine, atingindo 67% da cobertura (McManus e Dorfman, 2000: 4 ‑5).

Quanto à forma como são reportadas as estórias sobre violência juvenil, consideram os autores que, dificilmente, algum jornalista acei‑tará que, na origem da violência, esteja apenas a vontade de magoar alguém. “Sabemos que os jornalistas respondem com a complexidade

apropriada, porque foi o que fizeram na cober‑tura do tiroteio em Columbine. Porém, a maior parte dessa complexidade é deixada de lado durante um ano de cobertura jornalística da vio‑lência juvenil” (McManus e Dorfman, 2000: 6).

Da amostra recolhida ao longo de um ano, os investigadores chegaram à conclusão de que cerca de dois terços das peças tinham um enqua‑dramento episódico e apenas um terço apresen‑tavam um enquadramento temático. Na semana após Columbine, as percentagens inverteram ‑se com as peças com enquadramentos temáticos a crescerem até aos 60% e os enquadramentos episódicos a caírem para os 40%. Na altura de Columbine, as estórias desdobraram ‑se assim em enquadramentos temáticos (McManus e Dorf‑man, 2000: 6).

Orientações metodológicas

Ao longo desta pesquisa, entendemos a delin‑quência juvenil no seu sentido plural, partindo do pressuposto de que há várias delinquências e várias juventudes cujos ecos se vão sucedendo nas páginas dos jornais. As delinquências, julga‑mos, podem constituir apenas pontos de partida para enquadramentos jornalísticos de âmbitos descoincidentes, de níveis diversos, desde o social ao político, e serão, por vezes, amplificadas pela cobertura noticiosa.

A recolha do corpus resultou de duas preo‑cupações de base. Por um lado, ter em conta a dimensão simbólica do conceito de juventude e de delinquência que vai além das considerações meramente jurídicas. Por outro, não negligenciar precisamente o quadro jurídico que tem sido alte‑rado em diferentes momentos, especificamente os diferentes períodos de análise aqui apresen‑tados (2000 e 2001). Esta pesquisa, lembramos, resulta de uma investigação, mais aprofundada,

4 No dia 20 de Abril de 1999, Dylan Klebold e Eric Harris entraram numa escola de Columbine (Littleton, Colorado) com armas de fogo e mataram mais de uma dezena de colegas e uma professora, tendo provocado ferimentos em outras pessoas. Depois de terem concluído aquele que ficou conhecido como o massacre de Columbine e que é tido como o mais violento tiroteio numa escola nos Estados Unidos da América, os jovens suicidaram ‑se.

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de outros momentos em que a delinquência juvenil esteve em notícia em Portugal pelo que, sempre que se justifique, contextualizá ‑la ‑emos no seu quadro mais vasto.

Recorremos a uma breve descrição da época, para melhor compreender os contextos em que os jornalistas trabalharam5; à análise quantitativa e qualitativa do corpus de imprensa recolhido entre os últimos seis meses de 2000 (com aconte‑cimentos extra ‑rotina relacionados com o tema) e os primeiros seis de 2001 (alteração legislativa no direito de menores) no Público e no Correio da Manhã (CM), com incidência nas primeiras pági‑nas; bem como a entrevistas com forças policiais e jornalistas. Procurámos, assim, conseguir uma abordagem mais holística do assunto.

Contextualização histórica do período

O ano 2000 tornou ‑se num dos marcos da cobertura mediática da delinquência juvenil em Portugal, em consequência de dois episódios de impacto nacional: o assalto ao comboio da linha de Cascais e o caso CREL6. Estes dois episódios – particularmente o último – foram objecto de grande politização, fazendo aparecer uma série de discursos políticos, com marcas diferenciadas à direita e à esquerda. Poderá dizer ‑se que, na esfera política, se destacaram mediaticamente, por um lado, os discursos de Paulo Portas (líder do CDS ‑PP) e de Durão Barroso (então líder do PSD) e, por outro, do socialista Fernando Gomes (então ministro da Administração Interna). Os

dois primeiros tiveram um discurso marcado pela reclamação de segurança e da diminuição da menoridade penal, tendo Paulo Portas desen‑volvido uma verdadeira cruzada anti ‑graffiti, especialmente em 2001. Esta acção reflecte um dramatismo em torno do tema juventude e dos seus interesses. Os graffitis foram, e até certo ponto são, associados a jovens rebeldes, com alguma propensão para o desvio. Do discurso de Paulo Portas convém ainda recordar que tinha como uma das suas bandeiras a defesa da dimi‑nuição da idade de imputabilidade dos 16 para os 14 anos.

Já Fernando Gomes, veio a ser substituído na pasta da Administração Interna por Nuno Seve‑riano Teixeira. Embora não seja possível dizer peremptoriamente que Fernando Gomes foi demitido em consequência dos acontecimentos do Verão de 2000, essa foi a ideia retida na opi‑nião pública e nas páginas dos jornais.

A expressão da insegurança dominou este período. De tal forma que o Relatório de Segu‑rança Interna – 2000 destacou, como primeiro ponto, a interpretação da criminalidade e do sen‑timento de insegurança: “Com efeito, a questão da insegurança e, em particular, da insegurança urbana – expressão utilizada para designar quer o medo do crime, quer a falta de adesão ao sis‑tema normativo da sociedade, isto é, a manu‑tenção da ordem social – ascendeu à categoria de preocupação nacional em todos os países desenvolvidos”. A insegurança é essencialmente associada às áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, com incidência na delinquência juvenil:

5 Isabel Babo ‑Lança chama a atenção para “três aspectos na construção dos problemas públicos: 1. a expli‑cação causal da situação problemática; 2. a fixação de responsabilidades no tratamento do problema; 3. a deter‑minação de quem tem o poder de definir o problema” (2005).

6 Ainda na primeira metade do ano 2000, em especial no período que antecedeu o Verão, as notícias já começavam a dar conta de actos de delinquência juvenil, designadamente assaltos aos comboios na linha de Cascais. A visibilidade crescente deste tipo de fenómenos nessa época endureceu o discurso em torno da violên‑cia grupal, da insegurança e da inimputabilidade criminal dos jovens até aos 16 anos. O ponto alto surgiu na madrugada de 19 para 20 de Julho, quando um grupo de jovens lançou o pânico na Circular Regional Externa de Lisboa (CREL), em Lisboa. Levaram a acabo vários assaltos e agressões a pessoas na via pública e nas bombas de gasolina, encontrando ‑se entre as vítimas a conhecida actriz Lídia Franco. De assinalar ainda que as autori‑dades policiais consideram que os períodos de Verão são especialmente problemáticos, uma vez que os jovens já não estão na escola, são maiores as oportunidades de se encontrarem em grupo e, por vezes, não têm opções de diversão, factores que potenciam actos de violência em conjunto.

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“Face aos vários sinais de insegurança que tive‑ram maior incidência nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, foram desenvolvidas acções de recolha de informações relativas à criminalidade grupal, particularmente sobre o fenómeno da delinquência juvenil”. Este mesmo documento dá conta do facto de o número de identifica‑dos como menores de 16 anos ter crescido em 8,5% relativamente ao ano anterior, sendo que os indivíduos com idades entre os 16 e 25 anos representavam 28% do total.

O subintendente da PSP, entrevistado no âmbito desta investigação, atribuiu uma grande importância mediática ao caso CREL que, na sua opinião, terá potenciado o fenómeno da delinquência juvenil, ou pelo menos a sua visi‑bilidade pública, devido à mediatização de que foi alvo:

“Sim, principalmente […] por causa do

fenómeno do gangue da CREL, em Junho de

2000, que teve uma repercussão impressionante

na comunicação social, e em que nós observá‑

mos mesmo determinados tipos de grupos de

jovens, portanto abaixo dos 16 anos, que pelo

que viram na comunicação social e pelos efeitos

que aquilo teve para o grupo em questão… qui‑

seram no fundo procurar também a sua saída do

anonimato e, portanto, através de alguma prá‑

tica de crime mais violento, também… serem

considerados heróis no seu bairro e ao mesmo

tempo saírem do anonimato e aparecerem na

comunicação social como responsáveis por

determinados tipos de actos mais violentos,

quer dizer, ou outro género.”

De destacar ainda que o Relatório de Segu‑rança Interna – 2001 aponta para a associação entre o sentimento de insegurança e a delin‑quência grupal que, embora tenha crescido 34% em relação a 2000, registaria um crescimento menor do que nos dois anos anteriores. O perfil deste delinquente situar ‑se ‑ia numa faixa etária entre os 16 e os 24 anos, do sexo masculino, com recurso à coação física para atingir os fins almejados. A esta criminalidade estaria ligada a delinquência juvenil, associada a crimes contra

o património. Este documento assinala que, em 2001, se assistiu a uma diminuição de 6% dos jovens delinquentes identificados, comparati‑vamente com 2000 (Lisboa com uma diminui‑ção de 30,6%; o Porto e Setúbal, pelo contrário, com um acréscimo de, respectivamente, 58% e 16,2%).

Para além da entrada em vigor da Lei de Pro‑tecção de Crianças e Jovens em Perigo e da Lei Tutelar Educativa, já evocadas, verificou ‑se tam‑bém, em 2001, a publicação, a 9 de Janeiro, da Resolução do Conselho de Ministros n.º 4/2001 que criou o Escolhas – Programa de Prevenção da Criminalidade e Inserção dos Jovens dos Bairros mais Vulneráveis dos distritos de Lisboa, Setú‑bal e Porto.

A nível internacional, realce para a Iniciativa Comunitária Urban II, com início no ano 2000, definindo como acções prioritárias a requalifica‑ção de áreas degradadas, a integração de mino‑rias e a prevenção da delinquência. A adopção do programa de acção Juventude 2000 ‑2006, também uma iniciativa da União Europeia com o objectivo de facilitar intercâmbios, encontros e debates entre jovens e proporcionar ‑lhes con‑tactos com o voluntariado e com diversas formas de participação activa na cidadania, veio indicar que a juventude começava, nesta altura, a figurar na agenda europeia. Já em 2001, surgiu o Livro Branco sobre a Juventude.

Recordemos ainda que em 2001 foram liber‑tados, sob anonimato, os dois autores da morte de James Bulger, na altura com 18 anos de idade. A propósito, diz Cristina Ponte: “De 1995 para 2000, o tratamento habitual da marginalidade juvenil e da criminalidade (a sua construção como insólito, relativamente raro, e proveniente sobretudo das agências internacionais) dá lugar à cobertura de casos do espaço nacional, em cida‑des e em subúrbios” (Ponte, 2005: 253).

Padrões de cobertura dos dois jornais em 2000

O CM é o jornal diário que mais peças apre‑senta sobre a temática da delinquência juvenil.

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Entre as 762 unidades de redacção7 encontra‑das, 549 provinham do CM e 213 do Público. Em qualquer um dos períodos em análise (de 1993 a 2003), o CM dá sempre uma maior cobertura ao assunto do que o Público.

Estes números, contudo, devem ser lidos com reservas pois constituem apenas um indicador que não tem em conta a dimensão das peças, a sua posição, o seu género jornalístico. O ano de maior incidência em ambos os jornais, como verificamos no quadro 1, é o de 2000, em que ocorrem os assaltos na CREL.

Assinale ‑se, desde logo, o aumento, nesse ano, das unidades de redacção encontradas em cada um dos periódicos. O Público ascendeu a 77 e o CM a 163, o que significa um crescimento, para o dobro, relativamente ao semestre anali‑sado do ano anterior.

As peças de primeiras páginas também aumentaram, sendo contabilizadas 17 para o Público e 19 para o CM. No primeiro destes jor‑nais, as reportagens ou grandes reportagens e as notícias são géneros destacados, enquanto que no CM continuam a prevalecer as breves e as notícias. De assinalar ainda, no Público, o recurso à opinião e a cartas de leitores, este último género igualmente muito frequente no CM. Importa

destacar a importância das imagens: em cada um dos jornais, cerca de 30% das peças são ilustradas.

Dos cinco períodos em análise, o segundo semestre do ano de 2000 é o mais diversificado relativamente a fontes, embora ainda perdure uma percentagem considerável de trabalhos sem fontes referenciadas – Público com 21,7% e CM com 33,9% (neste caso, a percentagem mais baixa dos cinco períodos neste diário). As fon‑tes policiais continuam a ser as mais utilizadas (17,1% no Público; 23,2% no CM). Se reunirmos as diferentes fontes por grandes grupos encon‑tramos semelhanças entre os dois jornais. Assim, por exemplo, juntando as fontes governamen‑tais com as policiais, chega ‑se a percentagens muito próximas em cada um deles: cerca de 10%. O mesmo se passa quando se agregam pareceres de especialistas, vozes de vizinhos, amigos/fami‑liares e testemunhos oculares.

O modo como as forças policiais são retrata‑das neste período, sofre algumas alterações em relação a períodos anteriores. No Público, cerca de metade dos trabalhos não apresenta qualquer referência ao modo de actuação das polícias e 35,1% mostra uma polícia actuante8. Curiosa‑mente, no CM a proporção inverte ‑se: quase 50% das peças mostram as forças de segurança

7 Consideraram ‑se todas as primeiras páginas em separado, bem como as peças de opinião e, no interior, a delimitação da unidade de redacção adveio da autonomia e unidade do seu conteúdo, identificado pelo título da peça principal. Ao contrário do que acontecia há alguns anos, em que, por exemplo, os textos eram divididos por subtítulos, actualmente podem ser compostos de textos divididos por subtítulos, por quadros, por pequenas caixas – que quebram a rotina do texto – e que devem ser entendidas como um todo.

8 O somatório de situações apresentando a polícia enquanto vítima de violência, associada à insegurança, é da ordem dos 10%.

QUADRO 1 – Unidades de redacção por anos e por jornais

Anos/Jornal P % CM % Total %

1993 43 20,2 83 15,1 126 16,5

1998 38 17,8 74 13,5 112 14,7

2000 77 36,2 163 29,7 240 31,5

2001 36 16,9 139 25,3 175 23,0

2003 19 8,9 90 16,4 109 14,3

Total 213 100 549 100,0 762 100,0

P – Público; CM – Correio da Manhã.

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em acção enquanto 32,5% nada referem a este respeito9.

Note ‑se que, no Público, o crime de homicídio (a par do de furto) apresentou a terceira percen‑tagem mais elevada, com 11,8% (o mais vezes citado foi o de roubo com 19,6% e o segundo o de dano com 13,7%), e no CM as ofensas con‑tra a integridade física ascenderam a 17,3% (só ultrapassadas pelo roubo com 31,7%).

Cobertura extra ‑rotina: 2000 nas primeiras páginas

As primeiras páginas do início de Verão de 2000, mesmo antes de ter ocorrido o caso CREL, revelam uma cobertura de excepção. Como se houvesse uma espécie de preparação para o que iria ocorrer na CREL.

O DIA EM QUE PORTUGAL ACORDOU ASSUS‑TADO10 e VIOLÊNCIA À SOLTA11, são os títulos de primeira página que marcam o início da cober‑tura do caso CREL acontecido na madrugada de 19 para 20 de Julho de 2000. O simbolismo, o exagero/sobredimensionamento e a dramatiza‑ção estão bem presentes e dão uma dimensão nacional ao assunto. Bastante fortes, os dois títulos apontam para um sentimento de medo e de violência generalizada, sobre a qual não há mão. Violência que está à solta e atinge uma gravidade extrapolável para além do local onde ocorre, na Grande Lisboa. Violência que inquieta todo o país.

O título do Público é acompanhado pela foto‑grafia de uma estação de comboios com dois polícias em destaque e em posição de vigília e o do CM pela fotografia de uma das vítimas, a

mais mediática, a actriz Lídia Franco. Pela pri‑meira vez, em comparação com outros temas, uma vítima é realmente destacada e chega à pri‑meira página (e também no interior, em ambos os jornais, com fotografia e texto próprio em página ímpar).

Para além do já referido, os dois diários cha‑mam para a primeira página o reforço do patru‑lhamento policial na Grande Lisboa. No interior, verifica ‑se que o Público chama este assunto à sec‑ção “Destaque”, dando ‑lhe quatro páginas onde são relatados os acontecimentos, a par e passo, inclusive com a elaboração de uma infografia. É na terceira página que se descobre o editorial de José Manuel Fernandes, intitulado Fechados na rua12. Nas páginas seguintes, encontra ‑se uma peça com um relato de Lídia Franco na primeira pessoa e com direito a uma fotografia. O enqua‑dramento político está também aqui presente com a “oposição unida contra Fernando Gomes” e com a anotação de que PSD e CDS ‑PP aprovei‑tam para reclamar a alteração da legislação de menores e a redução da maioridade penal.

Já o CM, no interior, dedica duas páginas ao caso CREL (metade das do Público). Neste jornal, encontra ‑se igualmente um relato dos acontecimentos e declarações de Lídia Franco. O enquadramento é feito mais no sentido da falta de segurança, designadamente a falha da entrada em vigor do sistema de segurança para bombas de gasolina e na referência a outros cri‑mes semelhantes.

O editor do CM, por nós entrevistado, reco‑nhece a importância deste caso e recorda os mecanismos subjacentes à lógica jornalística que faz com que uns assuntos tenham destaque e outros não:

9 Já no período de 2001, surge, pela primeira vez, um padrão diferente na idade dos envolvidos, com a faixa etária dos 12 ‑16 anos a ter alguma expressão no Público: 25,0%. Dado importante de reter, uma vez que esta é a idade que a lei portuguesa considera para a determinação dos casos de delinquência juvenil. Porém, no Público, continua a ser mais destacada a caracterização sem marcas de idade dos jovens referidos (36,1%). O CM, por seu lado, apresenta 40,3% de jovens entre os 16 ‑21 anos, sem marcas de idade 15,8% e 14,4% com idades compreendidas entre 12 ‑16 anos ou 16 ‑21 anos, algo indefinidas portanto.

10 Público, 21 de Julho, pág. 1.11 Correio da Manhã, 21 de Julho, pág. 1.12 Público, 21 de Julho, pág. 3, Editorial.

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“Nós sabemos que estes casos têm outra

importância e também não podemos fazer jor‑

nais contra os leitores. O jornal vive das vendas.

E, depois, é um facto que raramente acontecem

coisas como aquelas. Numa noite, assaltaram

em cascata não sei quantas bombas de gaso‑

lina. Atacaram. Um desses casos envolvia a Lídia

Franco, uma pessoa conhecida, houve uma ten‑

tativa de violação. Claro que isto causa alarme.

Tem importância.”

O jornalista, que em 2000 estava no CM e trabalhou activamente no caso, recorda ‑o como um dos mais emblemáticos relativamente à cobertura noticiosa da delinquência juvenil. Para este profissional, houve elementos de des‑taque – o envolvimento da actriz Lídia Franco e o novo olhar dos media para os actos ilícitos em grupo – que já vinham acontecendo, mas ainda longe dos holofotes, ou seja, quase como se não acontecessem.

“Há muitos casos, agora aquele de que toda

a gente se lembra e que marcou, não fosse pela

situação da Lídia Franco... O caso da CREL é

paradigmático também porque, na altura, era

uma coisa nova, aquele tipo de razias que os

putos fazem, aquilo já acontecia, mas não era

uma coisa a que estivéssemos atentos, que as

autoridades estivessem particularmente à espera

daquilo. […]

Reportagem atrás de reportagem, no bairro

da Bela Vista, aquilo era assustador. Íamos todas

as semanas à Bela Vista, depois, a polícia pren‑

dia um e, depois, sai um e nós na Bela Vista e na

Amadora, porque, depois, não são miúdos que

moram todos juntos, é um que mora na Bela

Vista, outros são do Barreiro e depois outros da

Cova da Moura.”

Atribuições étnicas

No Público, logo na primeira peça com cha‑mada à primeira página, há referências a negros, pretos, africanos e brancos, sendo que as imagens em que se vê o rosto de forma desprotegida reme‑tem para jovens de origem africana.

Na edição de divulgação das notícias dos assaltos da CREL, a 21 de Julho, o Público refere‑‑se a africanos, negros e cabo ‑verdianos em con‑textos como os seguintes:

“Roubos violentos desfilaram nas auto‑

‑estradas da Grande Lisboa. Todos muito rápi‑

dos. Todos aterrorizadores. Todos limpinhos.

Sete a nove jovens negros, transportados em

carros velozes…”.13

“O grupo de sete pessoas de origem afri‑

cana…”.14

No CM, é utilizada terminologia semelhante:

“… bando de jovens, todos de origem afri‑

cana e com idades aparentemente compreendi‑

das entre os 14 e os 20 anos…”.15

“Sete indivíduos de raça negra”.16

Há um tratamento diferenciado em crimes cometidos por jovens “brancos”, na preocupa‑ção de distorção fotográfica e do próprio enqua‑dramento. Em alguns casos, houve como que uma tentativa de desculpabilização dos nossos, do nosso meio, como aconteceu com o jovem [branco] de Nisa que se suicidou, depois de matar duas pessoas.

Tratando ‑se de uma questão que suscita confrontos simbólicos e reais com temas sociais complexos, também os jornalistas têm dúvidas

13 Público, 21 de Julho, pág. 2.14 Público, 21 de Julho, pág. 3.15 Correio da Manhã, 21 de Julho, pág. 4.16 Correio da Manhã, 21 de Julho, pág. 4.

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quanto à actuação dos media. Refere, na sua entrevista, o editor do Público:

“O problema é que nós tentamos que as

fotografias que não são feitas directamente

sobre o objecto da notícia não permitam iden‑

tificar as pessoas. Obviamente, se estamos a

falar de um gangue e se está na fotografia um

miúdo ele é identificado com o gangue e não

tem nada a ver… Por isso, tentamos que eles

não sejam identificáveis. Mas é um problema

complicado, porque quem escolheu a fotogra‑

fia não recebeu uma boa explicação e perdeu o

contexto da mensagem… […]. Também é difí‑

cil encontrar fotografias sem alguém. Senão, só

fotografávamos objectos. Isso faz parte daquele

número de erros em que caímos. Embora não

seja aceitável.”

Violência em espaço aberto e vítima com rosto

Os espaços abertos são uma referência incon‑tornável quando se fala nos locais de agressão, especialmente em vias de circulação, ao que se juntam preferencialmente as bombas de gasolina, os transportes, as lojas e os bairros17. Os jovens em imagem são associados a um espaço de rua, exterior, muito ligado a actividades ao ar livre.

Neste período, como já dissemos, a vítima mais mediatizada teve um rosto, que foi o da

actriz Lídia Franco. “Pensei que me matavam”18 e “Fiquei com a vida”19 são os títulos que encabe‑çam, na edição de 21 de Julho do Público e do CM, as peças referentes à actriz Lídia Franco. Os dois textos ocupam a parte superior das páginas respectivas e são acompanhados de fotogra‑fias, muito semelhantes, da actriz. Lídia Franco é fotografada num espaço exterior. Usam ‑se expressões como “filme de terror”, no Público, e “Disseram ‑me que vivia num país seguro e eu acreditei. Afinal é tudo mentira” e “foi aterra‑dor”, no CM.

As outras vítimas são referenciadas sem destaque, fazendo pensar que não serão tão mediáticas como os autores e os actos em si mesmos.

A delinquência encontra ainda espaço na primeira página até Setembro e, de Outubro até ao fim do ano, desce de importância: uma pri‑meira página no Público e duas no CM. Surge, aqui, o primeiro indicador, sobretudo válido para o Público, de que, à medida que vai passando o período de influência do caso CREL, a cobertura da delinquência juvenil em termos quantitati‑vos diminui.

Em 2001, o Público regressou à cobertura de rotina mas o CM ainda manteve índices eleva‑dos quanto ao número de unidades de redacção produzidas sobre o tema. Como se este jornal procurasse aproveitar as oportunidades para a ele regressar.

17 Em 2005, o denominado pelos media Arrastão de Carcavelos, também este em espaço aberto, propenso a que se enfatizasse a imagem de insegurança, voltou a associar a actuação violenta de jovens à actuação em bandos. Segundo Carvalheiro, o evento foi elevado “a uma classe especial de criminalidade”. O autor salienta ainda que “é a construção dramática que enfatiza o sentimento de medo, um medo generalizado e fora de controlo” (Carvalheiro, 2008: 238). Cristina Ponte, sobre o mesmo acontecimento, salienta: “As palavras dos títulos repetem ‑se (bandos de jovens, criar pânico, arrastão, “arrastão” à brasileira chega a...), com e sem aspas a indiciar a polémica do enquadramento. Os textos de primeira página dos dois jornais são também semelhantes na tradução de uma situação totalmente fora do controlo, que opõe jovens a banhistas (embora todos vestissem o mesmo traje e “os jovens fossem “frequentadores habituais daquela praia”, como refere fonte policial no interior de uma notícia)” (Ponte, 2006: 13). Este discurso do outro é também ele fortalecido pelo discurso do medo que passa pela partilha do sentimento de insegurança que o elemento nós mostra, por oposição ao outro. “O discurso do medo passa pelas grandes e pequenas notícias, de excepção e repetitivas. Passa pelo espaço de partilha (a praia popular) e pelo lugar distante mas próximo” (Idem: 15).

18 Público, 21 de Julho, pág. 4.19 Correio da Manhã, 21 de Julho, pág. 5.

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2001 nas primeiras páginas

Observando as primeiras páginas de 2001, percebe ‑se de imediato que, em termos de quan‑tidade, o Público voltou ao que fazia nos anos anteriores a 2000, isto é, à cobertura de rotina. Por seu lado, o CM, embora com picos, regista também, em média, uma quebra acentuada20.

De reter a invulgaridade de Fevereiro de 2001. O gráfico 1 mostrou ser esse o único mês em que o Público ultrapassa o CM quanto ao número de unidades de redacção produzidas sobre delin‑quência juvenil. O que se reflecte no impacto que o tema merece nas primeiras páginas de cada um dos jornais. De facto, em Fevereiro de 2001, a delinquência juvenil teve honras de primeira página duas vezes, sobre um total anual de três, no Público, enquanto que, das oito inserções em primeira página, do CM, nenhuma delas tem data desse mês.

O título da primeira página de 10 de Feve‑reiro, do Público, envia para um texto publicado em páginas interiores, centrado na análise do

crime de homicídio em termos transversais, embora aborde a problemática da delinquência juvenil e a sua associação ao furto e ao vanda‑lismo, lembrando que, muitas vezes, estes delin‑quentes juvenis agem inconscientemente e, por isso, podem até ser mais violentos nos seus actos. Já no dia 28 de Fevereiro, dá ‑se destaque a um plano da PSP contra os graffitis. A chamada de primeira página PSP prepara combate "anti‑‑graffiti"21 aponta para um trabalho incluído na secção “Sociedade”. São associadas a esta prá‑tica, essencialmente urbana, motivações como a vingança, a raiva, o aborrecimento, a explora‑ção/risco, a experiência estética e a notoriedade.

Discursivamente, nos títulos analisados, o sujeito jovem e gangue deixa de ter a evidência observada em 2000: o Público opta por chamar à sua “montra” uma abordagem da delinquên‑cia associada ao crime de homicídio, à acção da PSP face aos graffitis e ao Relatório de Segurança Interna – 2000.

Das três inserções em primeira página deste diário, sempre configuradas como chamadas para

GRÁFICO 1 – Evolução de unidades de redacção entre Julho de 2000 e Junho de 2001

20 De salientar que a primeira peça recolhida neste período no Público – Lei separa vítimas de agressores – não tem sequer uma pequena chamada à primeira página, isto apesar de este ter sido um tema recorrente noutras fases da investigação nas quais encontrámos uma urgente reclamação da separação entre jovens vítimas e vitimadores e que encontrou solução após o tumultuoso Verão de 2000. De qualquer modo, o Programa Escolhas (que teve uma primeira página em 2000) e esta nova legislação, não serviram de gancho noticioso.

21 Público, 28 de Fevereiro, pág. 1.

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as páginas interiores, a 3 de Abril (AUMENTO DE CRIMES JUVENIS PREOCUPA GOVERNO22), pela localização no canto superior direito com letras em caixa alta, merece realce maior. Curiosamente, é a que se refere, concretamente, ao crime juvenil embora o texto, publicado no interior do jornal, seja de novo enquadrado no crime em geral, uma vez que se divulga o Relatório de Segurança Interna – 2000. À semelhança do que aconteceu em momentos anteriores, o jornal apresenta dis‑cursos políticos dissonantes entre a visão que o PS e o governo têm da criminalidade, desvalo‑rizando números, e a do PSD e do CDS ‑PP cujo discurso se focaliza no aumento da criminalidade.

Tal como o Público, também o CM bipolariza o discurso entre socialistas, por um lado, e social‑‑democratas e populares, por outro. Ambos os jornais dão eco a declarações de um padre da dio‑cese de Viseu, próximo do CDS ‑PP, que defende a imputabilidade a partir dos 14 anos de idade. O CM convoca especialistas, como Moita Flores. Parece haver um aproveitamento dos dados do Relatório de Segurança Interna, por parte de per‑sonalidades e formações políticas de direita, no sentido de vincarem a sua posição.

Neste período, de 2001, diminui considera‑velmente a designação grupal simbólica, embora, no CM, subsista a presença do sujeito colectivo. DISPARO NOS ‘GANGS’ DE JOVENS23 destaca ‑se numa das primeiras páginas do CM que divulga no interior, sob o título OITO MIL JOVENS ORGA‑NIZADOS EM ‘GANGS’24, dados retirados de um estudo de Barra da Costa. A peça sugere uma evolução da situação de insegurança em Portugal semelhante à dos Estados Unidos, embora, claro está, numa escala diferente, e sublinha o papel da escola25 que “degradada agrava os sentimentos, já de si disfuncionais, da grande maioria dos jovens que moram em bairros degradados”.

Significativamente, a escola, enquanto local de agressão, passou a surgir em quase 10% das referências no CM, ficando apenas atrás de rua/estrada e de lojas.

Uma das primeiras páginas de 2001 do CM destaca a vítima: Jovem esfaqueado nos Olivais recupera no hospital26. Refere ‑se a um rapaz de 13 anos (de uma equipa de jogadores “negros”) que foi agredido por pessoas “brancas” durante um jogo de futebol: invertem ‑se os papéis e o outro ao qual se atribui um comportamento racista e skinhead, assume feições “brancas”. GRUPO DES‑TRÓI CAFÉ NA AMADORA27 é outra das chama‑das de primeira página no mesmo dia e refere ‑se a uma peça que mostra como agressores “bran‑cos”, “pretos” e “mulatos”.

Notas conclusivas

Nos dois períodos em análise, assiste ‑se ao sobredimensionamento do fenómeno da delin‑quência juvenil, durante o caso CREL, para depois se perceber uma espécie de diminuição do fenó‑meno, pelo menos a avaliar pela sua cobertura mediática. Em 2001 ocorreram importantes alte‑rações legislativas em termos judiciais, que não tiveram a mesma repercussão nos dois jornais. O acontecimento insólito, até pela gravidade e grandiosidade, revelou ‑se mais importante, mediaticamente, do que as mudanças legislativas.

Foi nas peças com chamada de primeira página, zona de grande visibilidade e de captação de atenção para a leitura das páginas de interior, que encontramos referências mais estigmatizan‑tes em relação às questões étnicas.

Outro factor que potencia a ampliação dos acontecimentos é a indicação da forma como actuam os jovens delinquentes. Distingue ‑se

22 Público, 3 de Abril, pág. 1.23 Correio da Manhã, 26 de Maio, pág. 1.24 Correio da Manhã, 26 de Maio, pág. 6.25 A escola e a violência escolar, e a insegurança que daí advém, estiveram muito em voga nas peças que

foram desfilando nas páginas dos jornais consultados – especialmente no Público –, mas nem sempre puderam ser seleccionadas por não corresponderem aos critérios definidos.

26 Correio da Manhã, 16 de Janeiro, pág. 1.27 Correio da Manhã, 16 de Janeiro, pág. 1.

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o reforço da utilização de qualificativos como “gang”, inclusive em títulos de primeira página, especialmente em momentos “quentes” como o do caso CREL. Não podemos de forma alguma dizer que os jornais estão a fabricar um aconteci‑mento, mas será de notar a ampliação do mesmo, contribuindo para a criação de estigmas.

O valor ‑notícia da notoriedade provou ser importante para que um assunto conquiste espaço noticioso. Se as vítimas eram relegadas para um plano secundário face aos vitimadores, uma delas teve grande destaque: Lídia Franco durante o caso CREL. Embora haja excepções, a vítima cos‑tuma ser “branca”, denotando ‑se mais uma vez a bipolarização entre nós e o outro, o vitimador.

Locais de movimentação pública, como os espaços abertos, transportes públicos e lojas são sítios referenciados na actuação dos jovens delin‑quentes. Em 2000, as bombas de gasolina consti‑tuíram, também, focos de insegurança.

À luz dos pressupostos encontrados na revi‑são de literatura sobre a cobertura da delinquên‑cia juvenil, estamos, tanto no Público como no CM, perante uma cobertura mais episódica do que temática. Nos “picos” noticiosos houve um maior recurso a fontes diversificadas, ao género reportagem, às primeiras páginas.

Há “picos” em que a delinquência juvenil permanece nas páginas dos jornais, quer nas do interior quer nas “primeiras”. O exemplo mais marcante é o caso CREL que fez com que o Público se mantivesse focalizado na delinquên‑cia juvenil durante um largo período de tempo. A delinquência não é um tema constante no Público. Mas, como se percebeu pela respectiva cobertura, procura não deixar escapar o que con‑sidera ser mediática e socialmente importante. O CM, por seu lado, dá, quotidianamente, conta de casos de delinquência juvenil e procura tirar proveito de picos noticiosos.

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discursividadEs

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Enquanto que a função especular se dá na dimensão pre‑sencial do sujeito a si próprio, já a fotografia, como dis‑positivo de mediação, é retencional. A viragem reten‑

cional interpela os dispositivos de diferimento tais como a fotografia e todo o registo de imagem em geral, onde a ins‑crição é marca exterior e procedimento objectal1.

Ora, se toda a filosofia do sujeito está centrada e apoiada na reflexão como sua configuração por excelência, a foto‑grafia, definida como “espelho com memória”, não só leva aos limites a própria fundamentação na reflexividade como, num movimento de desterritorialização que Deleuze tão bem aponta como ruptura inevitável do auge da territorializa‑ção – neste caso, o máximo de reflexividade coincide com a ruptura dessa mesma reflexividade para outros fluxos confi‑guradores – enceta uma outra configuração que poderíamos definir como objectualizante do corpo próprio.

O ponto de vista semiótico

Aparentemente, a fotografia prolonga o efeito reflexo no tipo de imagem que produz. Poder ‑se ‑ia assim pensar que as imagens fotográficas estariam do lado das imagens especula‑res, dada a sua capacidade de reprodução “fiel” do modelo, isto é, dada a iconicidade de ambas. Tal como o espelho, a fotografia alimenta uma similitude com o representado, hon‑rando a ideologia da representação e da mesmidade. É pelo seu lado icónico que ela foi analisada durante algum tempo. É essa iconicidade que permite a identificação do sujeito, que tem uma função unificadora do eu, tal como a imagem reflectida no espelho, ou o retrato romântico que possui

uma dimensão comemorativa. Ser é parecer e parecer é ser, duplicidade da relação identificatória criadora de uma imagem ‑de ‑si estruturante do próprio processo imaginário. Neste regime de leitura, encontram ‑se os álbuns individuais ou de família, tão caros à burguesia desde o século XIX, celebrando, por cima das apo‑rias temporais, a imperceptível passa‑gem/paragem do tempo. A projecção da ideologia identitária na análise da fotografia remete para essa mesma função comemorativa que ela exer‑ceu como substituta da imagem pic‑tórica. Na verdade, esta aproximação entre imagem pictórica e imagem fotográfica só é possível mantendo o mesmo quadro de referência, o da captação identitária. Daí que alguns teóricos do dispositivo fotográfico tendam a estabelecer uma diferença na fotografia, entre significação e referência. Nesse sentido, a fotogra‑fia, ao contrário da pintura, eviden‑ciando a coisa – mesmo que humana – apaga ou emudece a sua significa‑ção (Dubois, 1992; Schaeffer, 1987; Flusser, 1998).

Mantendo ‑se o processo de identificação, há, no entanto, uma

* Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens (CECL).

1 Cf. Babo, M. A., “Do espelho como reflexão à memória como retenção”, Trajectos n.º 10, Lisboa, ISCTE/ Fim de Século, 2007, pp. 7 ‑20.

DO ESPELHO À FOTOGRAFIA

Fixação e diferimento

Maria augusta babo*

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contínua modificação do mesmo em já outro. Este é o estatuto paradoxal da imagem fotográ‑fica. Ao substituir o retrato como representação identificatória, esta imagem muito especial está sujeita à erosão do tempo, dada a sua imediati‑cidade, a sua colagem inexorável ao momento e ao momentâneo. Também a imagem espe cular releva desta momentaneidade. Mas o que se passa com a imagem fotográfica é que ela será sempre incoincidente com o presente da obser‑vação. O observador, neste caso, o sujeito que assim se olha e se confronta com a sua imagem, está dela desfasado no tempo e no espaço. Para sempre. Dessa dimensão espectral da imagem fala Barthes, a propósito daquelas fotografias que lhe são muito próximas, familiares:

“Quando a meditação (a sideração) cons‑

titui a imagem em ser destacado, quando faz

disso objecto de uma fruição imediata, nada

mais tem a ver com a reflexão, mesmo sonha‑

dora, de uma identidade” (Barthes, 1975: 5).

Na verdade, o que a fotografia transporta para o encontro com o espectador (mais do que observador) é da ordem da memória, da ordem de uma exterioridade mesmo se própria, o que não acontece com a imagem especular, tão dependente que está do próprio corpo e da sua pose. A fotografia, pelo contrário, tem algo de espectral que Barthes sublinha e formula como “regresso do morto” (Barthes, 1981: 24). A impor‑tância da semiologia barthesiana numa teoria da identidade fotográfica consiste neste descentra‑mento que opera, da relação icónica para a rela‑ção indicial, e que poderíamos formular como o descentramento do dispositivo técnico da coor‑denada espacial para a temporal. A semelhança é como que absorvida pela contiguidade, isto é, pela referenciação.

É assim que a encara Emídio Rosa de Oliveira, no seu ensaio sobre este dispositivo técnico: “Toda a fotografia é o resultado de uma marca/empreinte física depositada numa superfície sen‑sível pelas reflexões da luz” (Oliveira, 1984a: 56). A partir daqui, o autor desenvolve uma aná‑lise sobre o carácter indicial da fotografia como

dispositivo de captura, citando P. Dubois, “onde a semelhança se apaga 'face à imperiosa neces‑sidade da contiguidade' ” (Ibidem). A dimensão indicial, tal como ela nos é apresentada por Emí‑dio Rosa de Oliveira, através de Barthes ou de Dubois, não hipostasia de forma nenhuma uma continuidade, ou mesmo uma proximidade que remeteria a fotografia para a imagem especular. A contiguidade que indicia a dimensão impres‑siva do acto fotográfico, particularmente visível na fotografia analógica e na sua desnaturalização por efeitos de solarização, implica, isso sim, uma distância (Idem: 57). Distância e captura exercem a sua função poiética no acto fotográfico.

Face à fotografia de si, o sujeito, ao mesmo tempo espectador e objecto de captura, sen‑tirá sempre esse desfasamento de “ser eu e já outro”. À fotografia como dispositivo de reten‑ção aplicar ‑se ‑ia plenamente esse abismo do sujeito que a linguagem tão bem conhece: “je est un autre” do poeta Rimbaud. É que a foto‑grafia, destinada à fixação do momento, no fluxo contínuo do tempo, confronta o sujeito com a sua passagem, com a dissociação cons‑tante em que este se encontra face à sua ima‑gem. As técnicas de registo e de fixação, quer da imagem quer do som, instauram irremediavel‑mente algo que é da ordem da contra ‑natura: o próprio enquanto fora de si ‑mesmo. Até ao aparecimento das técnicas de registo, voz e figura eram insaisissables, no sentido de ina‑preensíveis. O aparecer irradiava de dentro para fora. Da essência à sua aparência ou aparição. A partir da invenção do registo, fono ou foto‑‑gráfico, o sujeito vê ‑se confrontado com um fora que lhe é devolvido mas dessincronizado, isto é, em diferido. A imagem (pictórica) deixa de remeter para a idealidade intemporal do sujeito, para a sua suposta essência, para passar a designar um momento, fragmento de tempo, sempre já passado, sempre momentâneo, sem‑pre evanescente. Assim da voz, esse sopro ine‑fável e evanescente, também ele registado num momento da sua produção. A fotografia, como todas as outras técnicas de registo, instaura ‑se nesse paradoxo que é a fixação do instante, essa aliança entre o efémero e o registo, que deixa de

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ser da ordem da intemporalidade para marcar bem a sua passagem, nessa mesma resistência.

Toda uma outra vertente da imagem pode ser analisada, a qual, ao contrário de uma dependên‑cia icónica, por semelhança, se inscreve numa dependência indicial, por contiguidade, mais ancorada no real do corpo do que na sua ima‑gem. Assim, por exemplo, na tradição cristã, o verdadeiro ícone (de Cristo) é, não uma repre‑sentação puramente icónica, por similitude, mas antes um rasto, um vestígio do ter estado lá do corpo: Verónica.

Esta imagem a que poderíamos chamar foto‑gráfica avant la lettre estabelece, pelo seu carácter paradoxal, uma viragem na própria economia das visibilidades religiosas. Didi ‑Huberman fala mesmo da instauração de um novo regime de visibilidade que seria um compromisso entre a demasiada visibilidade dos deuses pagãos greco‑‑latinos e a invisibilidade total do monoteísmo hebraico. O regime cristão situar ‑se ‑ia então entre uma iconoclastia rígida e uma tendência idólatra pagã propícia à determinação ao mesmo tempo de presença e representacional da imagem (Didi ‑Huberman, 2008: 76 ‑77).

A inscrição supera, através da contiguidade, a própria representação instaurando ‑se com uma mais‑valia veridictória relativamente ao ícone. Pois o índice é sempre já ocorrência, dado que o registo se impregna de real. A impressão fotográfica está, para a ideologia da presença, impregnada ainda pelo instante.

Da reprodutibilidade

Desde logo, é de salientar uma primeira con‑sequência na imagem captada pelo dispositivo fotográfico: a possibilidade da sua reprodutibili‑dade. Enquanto que a replicação especular, nas tão populares salas de espelhos múltiplos, cria uma mise en abyme do sujeito e a própria diluição da imagem, a fotografia replica ‑se com a mesma nitidez, o mesmo “grão”. Não há, nesta imagem reproduzida, diferença entre original e cópia. Como dispositivo de retenção e fixação da ima‑gem, a fotografia é, por natureza, reprodutível.

Como aliás assinalou Benjamin no seu ensaio (1992), ao contrário do espelho, a fotografia capta a imagem separando ‑a do sujeito. Quer isto dizer que à contiguidade se acrescenta a dimensão de inscrição/empreinte que, se por um lado é um rasto de presença, funciona, por outro, como rasto e como ausência. A câmara fotográ‑fica exerce esse poder fascinante e ao mesmo tempo tido como mágico de fixar e autonomizar a imagem especular, isto é, a imagem que, obtida pela e na presença do próprio referente, se des‑taca e distancia dele. À primeira vista, a fotogra‑fia é um espelho que pode ser manipulado pois retém, fidedignamente, a imagem da realidade que nele se projectou.

Ora, acontece justamente na fotografia algo da ordem da cisão: se procura captar essa aura que só a presença aqui e agora, irreprodutível, do sujeito garante, também se desliga, irremedia‑velmente, daquele momento único e irrepetível. Transportável e reprodutível, o auto ‑retrato foto‑gráfico – objecto que mais precisamente aqui nos interessa – perde a autenticidade de que gozava na pintura. Daí que, para Benjamin, a fotografia tenha participado do declínio da arte. Ao falar de reprodução, afirma:

“Torna ‑se cada vez mais visível a impe‑

riosa necessidade da apropriação do objecto,

obtido na sua mais intensa proximidade, pela

imagem ou, melhor, pelo seu registo. Este, tal

como o disponibilizam jornais ou semanários,

distingue ‑se inconfundivelmente da imagem.

Nesta, o excepcional e a perenidade estão tão

intimamente entrelaçados como, naquele, o

efémero e o repetível. Retirar o invólucro do

objecto, destroçar a sua aura, é a assinatura de

uma consciencialização cujo sentido para tudo

o que é semelhante no mundo se desenvolveu

de forma tal que, através da reprodução, tam‑

bém o capta no excepcional” (Benjamin, 1992:

127 ‑128).

O paradoxo da fotografia é o de jogar inclu‑sivamente com procedimentos que se auto‑‑excluem: por um lado, a presença do rasto, a pre‑sença como rasto, por outro, a reprodutibilidade

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desvirtuante da aura subjectiva, individuante. A reprodutibilidade da fotografia profana esse ídolo ou eidôlon que se crê todo o auto ‑retrato ser capaz de reter. Philipe Lacoue ‑Labarthe reco‑nhece a questão da identidade da arte como sendo aquela à qual a arte ocidental sempre res‑pondeu da mesma forma: “a arte não se identi‑fica a não ser com aquilo que não se pode iden‑tificar” (Lacoue ‑Labarthe, 1979: 14). É por isso mesmo que a reprodutibilidade, inserindo uma lógica da identificação, da identidade e, mesmo, da replicação, vem perturbar, senão destinar a arte ao seu declínio. Lacoue ‑Labarthe extrai de Benjamin a seguinte conclusão: a fotografia participa do declínio da arte porque simples‑mente “a reprodução destrói a autenticidade”. Por sua vez, a autenticidade sustenta ‑se na figura da aura, eminentemente cultual, por oposição, diz Lacoue ‑Labarthe, ao domínio da exposição. O filósofo desmonta este dilema benjaminiano, ao considerar que a arte se imprime já num movi‑mento em direcção ao expositivo que, diríamos, faz sair as obras de uma dimensão religiosa e sagrada – de culto – para uma outra, profana e laica – de espaço público. Ora, a fotografia, con‑clui Lacoue ‑Labarthe, é, por natureza, da ordem da exposição. Assim, ela condensa este paradoxo, prossegue: “no mesmo movimento, destrói a arte cumprindo ‑a” (Idem: 60). O que, no raciocínio do filósofo, poderia ainda ser revertido num outro paradoxo bem hegeliano: “o que há de mais artístico na arte (a essência da arte) não é a arte mas o religioso” (Ibidem). Precisamente, como assinala ainda o autor, Benjamin faz do rosto humano o último reduto do cultual. Se, como refere Benjamin, o retrato jogou um papel ines‑timável nos primórdios da fotografia, também será ele, justamente, a desfigurar o auto ‑retrato e, a partir daí, a obra de arte. E no entanto, ape‑sar de tudo, a análise de “Just another story about leaving” convence ‑nos, a imagem fotográfica de Urs Lüthi é, para além do mais, da ordem do ídolo (Idem: 61).

Justamente, a reprodutibilidade técnica, que constitui para Benjamin o fim da arte, será, para Man Ray, fotógrafo de profissão, o desafio da sua produção artística. Benjamin repudiou

os dadaístas, et pour cause… Pelo contrário, Man Ray sentia ‑se fascinado pela reprodução e pela réplica dos objectos únicos. A esse propó‑sito, é dito, aquando de uma exposição sobre o artista (“L’atelier de Man Ray”, Pinacoteca de Paris, 2008): “O acto de inspiração que levava a criar um objecto único era validado pela réplica desse objecto que permitia então à inspiração ou à ideia ser difundida”. A sua obstinação, na década passada em Los Angeles (1940‑1951), concretizava ‑se na realização de múltiplos a par‑tir de obras únicas. Para ele, como para alguns seus contemporâneos, era a ideia, na origem da obra de arte, que era importante e não a pre‑sença física do objecto. A sua concepção de obra como uma ideia cujo princípio podia ser retido na representação fotográfica e que se poderia igualmente reproduzir à escala industrial é uma das grandes contribuições à arte do século XX.

A proposta de Benjamin tem sido problema‑tizada desde então. Como refere Didi ‑Huberman, que uma imagem fotográfica possa ser reprodu‑zida à exaustão não lhe retira essa origem por contacto que é marca de autenticidade: “Eis pro‑vavelmente o que Walter Benjamin não soube ver no seu famoso texto sobre a reprodutibilidade das imagens: que o elemento do contacto per‑maneça uma garantia de unicidade, de autenti‑cidade e de poder – portanto de aura – para além da sua própria reprodução.” (Didi ‑Huberman, 2008: 72 ‑73) Assim, a questão está deslocada, neste momento, da reprodutibilidade como des‑virtuação da aura imagética para a questão do contacto. Tal questão levar ‑nos ‑ia, então, a deba‑ter as imagens virtuais, essas sim, desprovidas de ancoragem, porque transcritas, codificadas.

A imagem fotográfica como des‑membramento do corpo especular

Poder ‑se ‑á avançar que é talvez devido à sua dimensão indicial e não tanto icónica que a fotografia veio operar uma mutação no qua‑dro da auto ‑representação e na apropriação que o sujeito se fez (fantasmaticamente) do corpo. Na verdade, a fotografia desprender ‑se ‑á cada

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vez mais, ao longo da sua existência, dessa fun‑ção reduplicadora do espelho e isto por várias razões. Ela inventa o carácter escritível da ima‑gem, melhor dizendo, inscritível, dado que se dá como marca de efemeridade, do momento, de uma presença ‑ausência do corpo naquele momento e lugar. Falamos aqui claramente da fotografia ‑retrato ou do retrato fotográfico, tal como é conhecido normalmente, porque é do corpo e do sujeito que se trata.

Segundo W. Ewing, o aparecimento da foto‑grafia “exerceu uma profunda influência sobre o corpo durante mais de um século. E, se prestou indubitavelmente um serviço à humanidade, também é certo que provocou muita inquie‑tude. Pode afirmar ‑se por exemplo que a imagem pornográfica contribuiu para a degradação do corpo, ou que a glorificação publicitária de uma juventude completamente idealizada alimenta expectativas ilusórias sobre a própria realidade corporal” (Ewing, 1996: 27). A fotografia, ao objectivar o corpo, torna ‑o uma realidade em si, destacada do sujeito, desligada do espírito, des‑garrada. Interessante a esse propósito é entender como, a certa altura, nos primórdios da imagem fotográfica tanto se explorou o fenómeno do mesmerismo para encontrar agarrado ao corpo que tão bem se captava na foto, a alma fugidia e vagueante (Enns: 2008).

Neste mesmo sentido em que entendemos o apport do dispositivo fotográfico, A. Bazin (2008: 259) sublinha a génese automática da fotogra‑fia como a subversão da psicologia da imagem; nesse aspecto, ela arrasta consigo pedaços de real, como o faz, à sua maneira, o Santo Sudário, em última análise, menos icónico e mais indicial. A fotografia objectualiza a imagem, incluindo a imagem do próprio, como é o caso no auto‑‑retrato contemporâneo.

Certas fotografias2, muito frequentes no século passado e que punham em circulação os horrores e as deformações da natureza, os limites do humano – o monstro, o aborto, o aleijado, o

siamês –, tinham um público assegurado, como refere e ilustra W. Ewing (1996). Ao fazer circular imagens da monstruosidade do corpo, a fotogra‑fia colocou tais “horrores” no campo de visibi‑lidade, sempre mostrados como o Outro, uma alteridade intocável sem contaminações no pró‑prio corpo. Tal como as teratologias fortalecem os limites, a imagem do corpo que circulava era, digamos até, um reforço identificatório dado que a alteridade se exibia como um absoluto indes‑mentível, ainda que pudesse funcionar, como refere José Gil, “como uma espécie de ponto de fuga do seu devir ‑inumano” (Gil, 1994: 135). Embora situando ‑se no limite do humano, essas fotografias colocam tais exemplares como afir‑mações do inumano. José Gil coloca o monstro como figura do outro, nesse limite do mesmo para além da qual o humano é impensável e inominável. Ora, o que a arte (fotográfica) con‑temporânea nos (de)mo(n)stra é que, através de mínimos procedimentos, é possível mostrar alte‑ridades ínfimas do mesmo, alterações do próprio.

As utilizações sócio ‑culturais da fotografia

Podemos avaliar a multiplicidade de explora‑ções plásticas a que a fotografia se prestou e que fizeram dela o dispositivo especular por excelên‑cia, tornando ‑se um testemunho obrigatório do enaltecimento individual e familiar, para a bur‑guesia do século XIX, mas que hoje não devolve mais essa unicidade idealizada do sujeito.

Embora comparada a um “espelho com memória”, a fotografia tendeu pois a criar um movimento de objectivação do corpo, que des‑pojou o retrato e nomeadamente o auto ‑retrato de motivações narcísicas para o investir de con‑flitos, de tensões, de cisões. Apesar de participar de uma dimensão auto ‑reflexiva, ela foi a pouco e pouco descentrando o sujeito, retirando ao rosto essa prevalência sobre todo o corpo. Mas

2 Cf. Babo, M. A.,“A reflexividade na cultura contemporânea”, Revista de Comunicação e Linguagens – Tendên‑cias da cultura contemporânea, n.º 28, Lisboa, CECL/Relógio d’Água, 2000, pp. 335 ‑347, de onde foram retiradas algumas partes para construir este texto.

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foi mais longe, num processo em tudo inverso ao do espelho como unificador do eu, a foto‑grafia desmembrou de novo o corpo, quer pela fragmentação operada no todo, escolhendo ou salientando os seus pedaços, quer através do recurso à ampliação desmesurada, conferindo ao corpo uma dimensão não ‑humana, uma tex‑tura paisagística, uma objectivação que toca, em muitos casos, a própria abjecção.

Ao contrário dessas fotografias oitocentistas, o foto ‑retrato transgride os limites da identidade, do próprio, trazendo à cena da auto ‑reflexividade justamente o impróprio, demarcando ‑se, pois, dessa função especular alienante mas unificadora que o espelho é suposto cumprir.

Espelho com relógio ou espelho ao retardador são duas das possíveis definições que dá Bernard Stiegler (1996) do dispositivo fotográfico, como já tinham sido definidos os daguerreótipos. O espelho que se lembra ou espelho com memó‑ria cria um tipo específico de “identificação‑‑dissociação” que revela uma experiência da morte na medida em que se dá como espectro.

Todo o desafio que se dirigiu à fotografia foi o de fixar imagens. Na verdade, antes da fotogra‑fia, o campo das imagens restringia ‑se às imagens fabricadas, isto é, produzidas pela mão humana e registadas em diversos materiais e segundo diver‑sas técnicas: da gravura ao desenho, passando pela pintura e mesmo pela escultura. Estávamos no domínio das belas artes. A fotografia, pelo contrário, é o registo do real, de um pedaço de real, de um acontecimento que impregna uma superfície impressionável e nela se marca a par‑tir da acção da luz. Taine definia ‑se como escri‑tor, empregando a metáfora da visão fotográfica “Quero reproduzir as coisas como são ou como seriam se eu não existisse”. Nadar falou, ao exal‑tar a fotografia, de “semelhança íntima”.

É que a fotografia, ao tratar o corpo como objecto de ciência, opera a sua ob ‑jectivação irrecusável. Estas utilizações do dispositivo fotográfico, se não aboliram de imediato com as imagens do ego, trouxeram para o plano das imagens outras marcas, vestígios heterogéneos e distintos dos processos identificatórios, essa tal “identificação ‑dissociação”, neste caso não

só pelo diferimento temporal mas, sobretudo, pela revelação de zonas cegas ou interditas ao olhar. Por outro lado, a descoberta do interior do corpo, nomeadamente com o raio X, veio objectivar e permitir a fragmentação do corpo, devolvendo uma imagem do interior, absolu‑tamente distinta da idealização da identidade enquanto interior. Como descoberta de um corpo invisível que escapa à própria percepção, a fotografia por raios X veio complementar o efeito de dissecação obtido pela medicina desde o século XVII, com a dissecação do cadáver, e introduzir uma outra visão/noção do corpo enquanto corpo ‑carne. Esta perspectiva cientí‑fica transita posteriormente para o campo das artes e abole a comemoração identificatória do corpo ‑rosto ‑olhos ‑alma (cf., por ex., Gunther von Hagens, escultor de cadáveres, alemão). A imagem do corpo em certas práticas artísticas contemporâneas releva dessa dessubjectivação da carne que tem como corolário a sua disseca‑ção e fragmentação que redundam numa objec‑tualização do próprio.

Bacon expôs ‑se à deformação da imago pela desfiguração do corpo e do rosto, pela assunção da carne em lugar de um ideal do eu, à abjecção de si, longe, como ele próprio o disse, do homem renascentista, medida de todas as coisas. É de um outro homem que se ocupa a sua pintura, um homem esfolado, como animal no matadouro, uma pintura pós‑fotográfica.

Os limites da auto ‑representação

Instituindo ‑se como um dos mais efica‑zes recursos do próprio dispositivo carceral, a fotografia contribui, tal como outras técnicas criminológicas, para a tipologização do fácies, permitindo a percepção de traços comuns – testa alta, cavidades oculares profundas, nariz adunco, etc. – ao que veio a chamar ‑se o perfil do psicopata, etc.: “A fotografia torna ‑se 'saber sensorial' aliando ‑se às práticas do saber médico e psiquiátrico e desdobrando ‑se em técnicas de vigilância e de registo social” afirma Emídio Rosa de Oliveira (1984b: 51), fazendo referência

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às técnicas de vigilância trabalhadas por Michel Foucault. Enquanto captura, a fotografia é um dispositivo maquínico que prolonga (e não tanto representa) a dimensão de instinto predador rela‑tivamente a uma qualquer presa e, nesse caso, aparentada aos dispositivos de captura usados na caça: “Ao tropeçar a cada passo com a morte, a figura do caçador evoca a do fotógrafo que ao capturar o fortuito e o que lhe passa resvés, surpreende o real e o resguarda, delimitando ‑o numa forma ‑cerco (a moldura)”, diz ainda Emí‑dio Rosa de Oliveira (Idem: 28).

Embora considerada como um dispositivo de captação do corpo ‑pele e mesmo de captura do sujeito, a fotografia instaura a des ‑subjectivação do corpo ao desligar a imagem das suas marcas identificatórias. Ao corpo ‑pele (Anzieu, 1995) corresponde o corpo ‑carne de Bacon, onde o informe suplanta o corpo como forma a que o imaginário liga a própria ideia de si. É ‑nos pos‑sível, a partir desta imagem rude ou cruel do corpo sem pele, descarnado, passar para a pro‑blematização do corpo como questão fundadora do próprio sujeito.

A arte contemporânea, ao dar nova ênfase ao auto ‑retrato, não vem confirmar um retorno do sujeito, uma qualquer primazia do eu como unidade indefectível mas, pelo contrário, ques‑tionar os seus limites, encenar a sua falência, visibilizar os jogos de espelhos e o equívoco da representação, da imagem, como identitária, da unicidade do sujeito.

A fotografia é a grande inquiridora da refle‑xividade e mostra essa fragilidade em que assen‑tam as múltiplas experiências que marcaram o finalizar do século XX, em torno do auto ‑retrato. Na verdade, o que o auto ‑retrato de finais do século XX nos dá a ver é antes o limiar da refle‑xão, o fim da comemoração identificatória. Assistimos ao descentramento do auto ‑retrato e ao surgimento, diríamos, do alo ‑retrato, nos limites da auto ‑reflexividade. Pela fragmentação do rosto/corpo, pela refiguração ou ficcionaliza‑ção do próprio, pela desfiguração do rosto ou

do corpo, pela mumificação, travestimento ou mascarada, pela animalidade, pela dimensão vis‑ceral, escatológica, enfim, confrontamo ‑nos com o descentramento do sujeito, no limite da auto‑‑representação. Porque um corpo é um limiar, é uma forma, é matéria, é um impenetrável que desaloja qualquer inconfessável ilusão de interio‑ridade, a qual, no rosto, se marca pelo olhar, pela condensação que este sempre operou na auto‑‑representação, a de incluir, ao mesmo tempo, um exterior e um interior. Trata ‑se, globalmente, na experiência do auto ‑retrato em fim de século, do questionamento dessa identidade ilusória, ao mesmo tempo identitária alienante.

Assim, impõe ‑se a interrogação colocada por Lacoue ‑Labarthe à (auto) ‑representação: “se a arte não existisse, nem sequer poderíamos questionar até à vertigem, o abismo do Mesmo” (Lacoue ‑Labarthe, 1979).

O século XXI traz ‑nos novas inquirições sobre a auto ‑representação manipulada pelas tecnologias digitais. W. Ewing3 considera que a “cara” pretende constituir a crítica ao retrato que é, na sua tradição, demasiado convencional. Justamente através da fotografia, o corpo veio opor ‑se ou sobrepor ‑se ao nu em pintura, assim como a cara (fotográfica) o faz relativamente ao retrato pictórico. O nu tem uma dimensão pictu‑ralista e, no interior da pintura, mitológica, que o corpo na fotografia deixa cair. Ewing pretende, assim, desconstruir a fotografia como marca de singularidade. A fotografia de rosto aproveita as novas tecnologias para jogar com a identidade até fazer dela algo de falível, demarcando ‑se e contestando até essa ideologia do retrato como expressão de interioridade do sujeito. Segundo Ewing: “Assume ‑se e rejeita ‑se como mito a crença ainda fervorosa de que o retrato bem con‑seguido capta e revela a essência, o ser interior – a alma do sujeito retratado” (Ewing, 2003). Na verdade, a fotografia do rosto pode ser e é mani‑pulada e manipulável. “Abundam as ilusões e as inverdades”, o que provoca a “descrença no valor facial” (Idem), jogo de palavras, que dá bem

3 Cara a Cara: é o título da exposição que esteve patente na Culturgest, em Lisboa, entre 12 de Outubro e 28 de Dezembro de 2003, comissariada por W. Ewing e N. Herschdorfer.

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a dimensão dos investimentos significantes e, consequentemente, do valor de troca que o rosto possui na sociedade contemporânea.

Nesta nova estética os modelos deixam de permanecer os mesmos. O próprio rosto, antes mesmo de ser manipulado pela técnica fotográ‑fica mais sofisticada, é objecto de operações, de transformações, de implantes, de retoques que põem de lado a sua dimensão “natural”. Ewing descreve as crenças que se foram acumulando sobre o valor de verdade do fácies do indiví‑duo, contestadas pelos fotógrafos actuais. Tais crenças incidem, globalmente, sobre o valor de exteriorização de uma essência que o rosto e, nele, o olhar, transportavam, segundo a ideo‑logia romântica. Pelo contrário, os fotógrafos contemporâneos acreditam que a cara é uma superfície moldável, com uma dimensão de máscara sócio ‑cultural, facilmente modificável, quer pela manipulação cirúrgica, quer até pela tecnologia fotográfica ao dispor; e, por fim, que a beleza facial mediatizada constitui o denomi‑nador comum em vez da excepção. Deste sentido comum que o rosto revela e da sua desconstru‑ção, Ewing parte para a análise do próprio senso comum sobre a fotografia para igualmente o desconstruir. Assim, conclui, a fotografia não é capaz de proceder à captação da alma mas ela habilita ‑se à sua própria produção; as variadas técnicas de manipulação fotográfica desmentem a verdade fotográfica e abrem as portas à criati‑vidade e à manipulação mediáticas.

Constata ‑se que, entre os fotógrafos escolhi‑dos por Ewing e Herschdorfer para a exposição que teve lugar na Culturgest, em 2003, alguns apresentam a face de uma forma simples e directa (Royal Family de Alison Jackson), neutra; outros manipulam a cara, ocultam ‑na, disfarçam ‑na, pintam ‑na, desenham ‑na, recorrem a sósias, às vezes ampliando desmesuradamente as fotos do rosto (Thomas Ruff); ou então, apresentam a cara manipulando em seguida o processo foto‑gráfico (tempo de exposição, desfocagem, dupla ou múltipla exposição, retocagem, tratamento informático da imagem); e, por último, mani‑pulam ambas as dimensões, cara e processo foto‑gráfico (as divindades precolombianas de Orlan).

Todos eles, no entanto, repudiam o retrato con‑vencional.

A fotografia inicial que abriu a exposição foi feita a partir de 2 000 fotos, condensando os traços nelas comuns. Uma espécie de denomi‑nador comum da humanidade, que se aproxima da ideia comum de beleza, ela também feita da síntese desses traços comuns. Outros jogos foto‑gráficos, como a fragmentação e a ampliação retiram à fotografia o seu valor representativo ou comemorativo, para a transformarem numa representação caricatural ou hiper ‑realista. As imagens fotográficas possuem diversos atribu‑tos que dependem do olhar do espectador assim como do olhar do fotógrafo. E, mais ainda, as imagens não são só visíveis, elas tornam ‑se legí‑veis, dada a ancoragem de signos que sobre elas se depositam. Concluindo, com W. Ewing, a fotografia contemporânea, através dos procedi‑mentos aqui enumerados, revela a desfaçatez do rosto: “mas é exactamente essa a intenção: não há nada a dizer, não há nada a esconder, nada para além do que se vê. Não existe enigma, nem máscara” (Idem).

A fotografia, sendo um registo de exactidão – uma captação rigorosa e analítica do indivíduo – revela ‑se também a sua mais espantosa mutação.

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A análise do filme Memento (Christopher Nolan, EUA, 2000) é um mapeamento das relações imagéticas espaço/escrita/memória em evidência em processos

fílmicos como a mise en scène e a découpage, procurando entender, também, as equivalências possíveis com o mundo e a vida, através da sua inscrição nas várias dimensões (e.g. psico ‑neurológica, epistemológica, comunicacional, filo‑sófica, etc.). A taxonomia memória ‑orgânico ‑interioridade e escrita ‑inorgânico ‑exterioridade, enunciada por Maria Augusta Babo (2009), amplifica os limites da nossa reflexão sobre a problemática da identidade e as instâncias memó‑ria/paisagem/interior, em estreita relação com a aporia vida‑‑morte (orgânico/memória – inorgânico/paisagem/inscrição), subliminarmente marcada no cinema da pós ‑modernidade, cinema da imagem ‑cristal, influenciado pela démarche trágica da humanidade ferida pelas imagens indizíveis e irrepresen‑táveis do pós ‑guerra.

A breve referência à história e etimologia do conceito de memória permite compreender a importância de questões como o espaço e o sistema discursivo, na configuração do filme. Frances Yates verifica que, na antiguidade clássica, a arte da memória está associada à retórica. A mnemónica (do gr. mnemoniké [tékhne], «arte de lembrar», pelo lat. mnemoní ca) consistia em gravar na memória um conjunto de loci ou lugares – os topoi. O tipo mais comum de sistema mne‑mónico do lugar era o arquitectural, processo descrito por

Quintiliano (30 ‑95 d.C.) em Institu‑tio Oratoria, no Livro XI. Na Idade Média, a Ars Predicanti sugeria que se colocassem as informações, não em palácios imaginários, mas em lugares reais (e.g. as colunas de uma igreja). Segundo Gorini “é muito provável que a expressão ‘em primeiro lugar’, usada para iniciar um discurso arti‑culado, derive, da [mnemo]técnica” (Gorini, 2006: 97).

Para Santo Agostinho a dimensão cognitiva da memória e a sua relação com as imagens é metaforizada pelo espaço: a memória é um “receptá‑culo” onde se “alojam as impressões” que podemos “recordar e revisitar”. Ao reflectir sobre a Memória dos Sen‑tidos, Santo Agostinho interroga ‑se, na verdade, sobre a Linguagem, na medida em que, ao perguntarmos se uma coisa existe (an sit?), qual a sua natureza (quid sit?) e qual a sua qualidade (quale sit?), retemos as imagens dos sons que formam estas palavras... Em suma, exprimimo ‑nos

* Investigadora do Instituto de Filosofia da Linguagem (IFL). Doutorada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

DO DESENHO DO ESPAÇO AO ESPAÇO DA ESCRITA

Trajectos da memória e inscriçãoda identidade no filme Memento

Maria irENE aParício*

«Alguns átomos dos filmes, para falar como os químicos, combinados com outros elementos do universo humano, podem constituir logo uma «escrita», ime‑diata e universalmente inteligível. Síntese singular dos dois principais produtos da inteligência: linguagem e ciência».

gilbErt cohEN ‑séat, 1946

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frequentemente por palavras, mas pensamos vulgarmente por imagens associadas a espaços e tempos, cujos índices captamos pelos sentidos e registamos pela memória.

No início do século XX, ao reflectir sobre a questão, Henri Bergson reclama a reintegração da memória no sistema de percepção e na esfera do conhecimento. Para Bergson, a memória inter‑cala o passado no presente, contraindo ‑os numa intuição única de momentos múltiplos da durée que, pela sua dupla operação, é a causa que nos faz perceber a matéria em nós. O autor refere a distinção comum entre duas formas de memó‑ria; a memória como recordação, conhecimento inscrito na mente, e a memória como organização das recordações, em função de um espaço ‑tempo, um antes e um depois que instauram o carác‑ter evenemencial das recordações susceptíveis de constituir uma história; “a minha história”. Uma das consequências deste processo é a “data‑ção” dos eventos pelo exercício da memória, e a linearização dos acontecimentos que os torna irrepetíveis, ideia que está em evidência no filme Memento, cujo conceito de memória decorre da escrita que é, podemos talvez dizê ‑lo, “memó‑ria morta”, arquivo, ordenação. Gilles Deleuze interpreta a memória bergsoniana como “coexis‑tência virtual”, na medida em que é a “conserva‑ção do passado, no presente”, e acrescenta que “a durée é essencialmente memória, consciência e liberdade”, questões relevantes em Memento. Para Deleuze, o virtual é o real, na sua dimen‑são de duração mais curta do que o mais curto tempo pensado. E, neste sentido, o virtual per‑mite pensar o mundo e o homem como rede de relações de forças e intensidades afectivas, numa

dialéctica entre pensamento e presença corpo‑ral. Neste contexto, o cinema permite deslocar a memória da “superfície de inscrição” constituída pela mente, e ultrapassar a metáfora da arquitec‑tura e dos espaços tridimensionais, projectando ‑a na superfície bidimensional do ecrã, num pro‑cesso analógico ao da gravura que é, como vere‑mos, marca original da escrita.

O cinema é, por outro lado, uma memória‑‑acção, na medida em que embraia as emoções (e.g. a tristeza, o medo, a raiva, a alegria, etc.) traduzidas em sentimentos susceptíveis de agir sobre o corpo, quer seja através de (in)voluntárias reacções fisiológicas (e.g. o choro, o riso, etc.), quer seja pela reactivação da mente e da imagina‑ção, contribuindo para a emergência de reflexões e/ou comportamentos (uns miméticos, outros nem tanto) que operam o processo de mutação do indivíduo, enquanto ser humano. É evidente que o cinema não age per se, mas é uma marca incontornável no processo de reconhecimento do estatuto identitário, agenciado pela arte desde as imagens de Lascaux, passando pelas inscri‑ções tumulares e a decoração de abóbadas, até às recentes imagens de síntese. O cinema de autor, em particular, opera mecanismos de identidade e alteridade, ao funcionar como matriz da fronteira mais ‑que ‑humana, já então assinalada nas pintu‑ras rupestres. O filme Memento é muito claro na demonstração do modo como o cinema permite estabelecer um mapeamento dos problemas da memória individual1 e da sua relação com a identi‑dade e a alteridade, questões que são subsidiárias da fisicalidade dos seres e do mundo, da matriz do espaço ‑tempo e da durée, envolvendo as pro‑blemáticas da consciência e do eu.

1 O filme de Nolan foi inspirado na história verídica de H. M. (Henry G. Molaison, 1926 ‑2008), cujo caso clínico contribuiu para a compreensão da forma como funciona e está estruturada a memória. A história é simples mas constitui, segundo Eric Kandel, prémio Nobel da medicina em 2000, um dos marcos das neurociências. Aos 9 anos, H. M. sofreu um acidente de bicicleta que lhe provocou epilepsia grave. Aos 17, foi submetido a uma intervenção neurocirúrgica, com o objectivo de reduzir as crises de epilepsia, tendo ‑lhe sido removida parte do encéfalo, após o que H. M. ficou incapaz de formar novas memórias. O caso foi amplamente estudado pela comunidade científica e, a partir de então, descobriu ‑se que o hipocampo (parte do cérebro retirada dos dois hemisférios do paciente) é responsável pela formação de novas memórias. Após a morte de H. M., em Dezembro de 2008, a Columbia Pictures e o produtor Scott Rudin, compraram os direitos para a realização de um biopic. Foram também adquiridos os direitos da obra Memory Ghost: The Nature of Memory and the Strange Tale of Mr. M., baseado na vida de H. M. e escrito por Philip Hilts em 1996.

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Há, também, no processo da memória, a marca da consciência que se revela entre dois géneros de recordação. Por um lado, a recordação de uma leitura, por exemplo, é uma representação; por outro, a recordação da lição exige um tempo para desenvolver um a um, ainda que em imagi‑nação, todos os movimentos da articulação neces‑sária. Já não é uma representação, mas uma acção. Das “duas memórias, uma que imagina e outra que repete, a segunda pode substituir a primeira, e transformá ‑la numa ilusão” (Bergson, 1903: 79) que é o que acontece em Memento. Bergson con‑sidera que a memória ‑acção, “activa e motriz”, deve inibir a primeira ou, no mínimo, aceitar dela unicamente o que pode ser útil no presente, pro‑cesso que designa por associação de ideias. Neste mesmo contexto, é oportuno referir as reflexões de Jean Epstein (1946) que, escassas décadas após a emergência do cinema, considerava o seu efeito produtivo resultado da imagem mental decor‑rente da percepção cinematográfica e que Sergei Eisenstein designa por montagem intelectual, teoria aplicada pelo próprio à prática do cinema.

Gilbert Cohen ‑Séat (1946) observa que igno‑ramos quase tudo sobre o processo das recorda‑ções, mas sabemos que está ligado às emoções e depende de um julgamento, ideia que está na base das experiências sobre percepção cine‑matográfica lideradas pelo autor, no Institut de Filmologie de l’Université de Paris, em meados do século XX. Neste contexto, podemos entender a razão porque alguns filmes agem com a mesma intensidade, qualquer que seja o tempo da sua realização e/ou projecção, o que justifica a afir‑mação de João Mário Grilo, para quem reali‑zar um filme é construir o olhar do espectador, i. e., “montar sentimentos, montar plateias”. Em última análise, o filme confronta ‑nos com a memória e os abismos da nossa natureza, levando ‑nos, por vezes, a consentir o gesto imo‑ral e amoral, ou até criminoso, das personagens.

Finalmente, podemos dizer, também, que a relação autor ‑filme, configurada pelo vínculo entre assinatura, autor e auto ‑retrato, resulta do gesto “evenemencial” que instaura uma interface de natureza especular entre cineasta, filme, real e espectador, em que o primeiro é,

frequentemente, à semelhança do que dizia Arthur Rimbaud – Je est un autre –, “duas pes‑soas”. Os limites da relação entre as instân‑cias humano ‑sujeito ‑autor, escrita ‑inscrição‑‑assinatura e imagem ‑filme ‑auto ‑retrato são visíveis no filme Memento, em que conceitos como memória, espaço ‑tempo e escrita/inscrição confluem num movimento/trajectória da marca à imagem, do nome ao autor.

Da imagem como escrita e espaço de inscrição da identidade

Escreve Olivier Debré (1987) que é nas zonas perceptíveis do plano que o pintor abstracto procura a emoção, e a sua atitude no interior desse espaço imaginário aproxima ‑se do gesto do escriba que procura no signo a análise mesma do espírito. A aproximação sensível da emoção do pintor é, por isso, uma abstracção idêntica à tradução da ideia, pelo escriba. Por outro lado, “o traço escrito ou o traço pintado define ‑nos. A folha branca é, simultaneamente, a imagem do universo e o espelho de nós próprios” (Idem). Idêntico raciocínio pode ser aplicado ao filme, com a diferença de que, neste caso, podemos falar de fusão dos dois gestos. O cineasta procura a emoção no espaço da paisagem, no enquadra‑mento do homem na natureza e na sua relação com o mundo, embraiando a memória e a imagi‑nação. Mas, tal como o escriba, analisa e desenha a ideia através da dimensão gráfica do filme e da inscrição de elementos como a luz e a atmosfera, trajectos da memória através da qual encontra o espírito, a alma das coisas e dos seres, ao mesmo tempo que se encontra a si próprio.

Recorrendo à «gramatologia do espaço ins‑crito» delineada por Anne ‑Marie Christin (1995), o que caracteriza a estrutura da escrita é o carác‑ter misto, na medida em que o sistema se apoia em dois registos: o verbo e o grafismo. Christin evidencia a importância das funções gráficas do sistema que, reportando ‑nos ao caso do filme Memento, são amplificadas no corpo do sujeito, e interroga ‑se se a escrita não será, afinal, o próprio espaço, e do mais material e visível que existe.

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Lembrando que, na Alta Idade Média, a linha da escrita é interpretada como: “Linea vitae sacrae: [...] razão suprema, o Verbo de Deus.” (Idem: 16), figura (da escrita) que se tornou traço sem corpo, Christin conclui que “a escrita perde ‑se” ao ser, mais do que uma imagem, uma fronteira. Christin exemplifica com o fascínio imemorial que o ícone – “rectângulo de madeira de onde surge o rosto de Deus” –, sempre exerceu sobre os homens. Neste sentido, quando “[...] a preo‑cupação de comunicação arrasta [a fronteira] para a contiguidade física, [a tela/o ecrã] é lugar de transubstanciação, superfície mágica. E tal é a virtude do ícone” (Idem: 20). Há, na génese do enquadramento, uma duplicidade do ecrã, cujas manifestações inaugurais remetem para a pintura rupestre onde, por um lado se procura determi‑nar o campo humano de apropriação, abstraído do mundo, por outro se constrói uma “fronteira entre o homem e o além”. Para Christin, tal como para William ‑Lewis (2002), a parede é, de facto, o primeiro ecrã proposto, onde o traço ins‑crito adquire um sentido. Os modelos de repre‑sentação mais diversos podem aí coexistir, e são, desde logo, equivalentes. Essa equivalência apre‑senta um corolário essencial: as figuras heterogé‑neas não se adicionam apenas e simplesmente sobre a parede. O intervalo que as separa não é o “tempo morto” de que fala Jacques Derrida, mas constitui a dinâmica semântica, a sua sintaxe; é a medida mental que garante a sua diferença ao mesmo tempo que justifica o seu agrupamento (Christin, 1995). Jean Pierre Oudart referir ‑se ‑ia a este intervalo no cinema, como ponto de sutu‑ração, que convoca a (re)acção do espectador.

No argumento da escrita como imagem, ideia que nos interessa para compreender o sentido da multiplicidade da inscrição em Memento, Chris‑tin confronta o raciocínio de Derrida, cujo pro‑jecto de arqui ‑escrita considera menos a escrita em si do que uma nova definição de sujeito; introduzindo o outro no eu. Para Derrida, o traço visa o sujeito da enunciação e a linha constitui a “marca sensível de uma ausência”. “A figura ‘devorou’ o espaço, a linha devorou a figura. O imediato está bem morto, o real legitimamente dissolvido no signo […]. O espaço […] é sempre o

não ‑captado, o não ‑presente e o não ‑consciente. […] A arqui ‑escrita como espaço, não pode dar ‑se como tal, na experiência fenomenológica de um presente. Ela marca o tempo morto na presença do presente vivo, na forma geral de toda a pre‑sença” (Derrida, cit. por Christin, 1995: 16 ‑17).

Entre as questões subsidiárias da invenção do ecrã, podemos incluir a desterritorialização da escrita gráfica, colocada pelo filme Memento, e a celebração de uma (outra) escrita da luz, que se impõe como imagem, nem sempre icónica, e cujo processo assinala a possibilidade protésica da inscrição/impressão da imagem como dispo‑sitivo de (re)conhecimento de identidade singu‑lar. Em Memento, há um movimento circular da escrita que se apaga numa imagem para reapare‑cer noutra, marcando as limitações da persona‑gem e do espectador, esculpindo ‑lhes o corpo e a memória. Memento trata de espaços superficiais – a pele, o papel fotográfico, o espelho e, no limite, o próprio cinema –, conjugados na conciliação das perspectivas referidas em epígrafe. Nolan/Shelby é o escriba que procura no signo a análise do espí‑rito; o filme é um plano de aproximação sensível à emoção, desde sempre equacionada pela pin‑tura. É através da escrita que a personagem cria o passado, mas também o presente – e portanto uma identidade –, permitindo ao cineasta a apre‑sentação de uma imagem do processo circular e complexo da memória (ou da sua ausência), e ao espectador, a vivência de uma unidade marcada pela descontinuidade espacial e temporal, que é metaforizada pelo próprio filme. A figura do espelho, literal e metonímica (a escrita, o ecrã, as superfícies, os sons, são reflexos do corpo e da alma), constitui outra forma de equacionar os problemas da identidade, da consciência e das emoções, quer nos limites específicos da narra‑tiva, quer no domínio ambíguo e intervalar que define a condição do cineasta ou do espectador.

Epstein considera que, pela sua especifici‑dade, o filme permite mapear estes problemas, sendo esse facto absolutamente evidente logo a partir dos primeiros momentos em que se per‑cebe que as pessoas não se reconhecem nas suas próprias imagens: “Quem sou eu? Qual é a minha verdadeira identidade? E é com um singular

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decréscimo da evidência de existir que, ao ‘penso, logo existo’, devemos juntar: Mas eu não penso o que sou” (Epstein, 1946: 12). Referindo ‑se ao cinematógrafo como dispositivo que elabora “retratos que fazem medo”, Epstein sublinha que as imagens do cinema permitem o visiona‑mento do próprio fantasma no ecrã, sendo que a continuidade é, por esta via, a falsa aparência de uma descontinuidade, na medida em que a confluência das formas e a suturação dos cor‑tes se produz, não no filme mas na mente do homem. “Trata ‑se de um fenómeno puramente interior. […] No exterior do sujeito que olha, não há movimento, nem fluxo; nem vida nos mosaicos de luz e sombra que o ecrã apresenta sempre fixos. No interior há uma impressão que, como todas as outras dadas pelos sentidos, é uma interpretação do objecto, isto é, uma ilusão, um fantasma” (Idem: 26).

Considerando tais aspectos de problemati‑zação teórica ‑prática, Memento mostra até que ponto o filme constitui, enquanto filme possível da mente, um espaço que participa do interior e do exterior de cada um, umas vezes sugando para dentro, desencadeando a introspecção, outras expulsando ‑nos para fora, deixando as imagens eternamente prisioneiras desse movi‑mento in/out – ora centrífugo, ora centrípeto – que constitui o movimento da memória e do espírito. Citando Bergson: “o movimento a que nos referimos não é um movimento que se pro‑duz, mas um movimento do pensamento; é uma relação entre as relações. [...] O movimento é um facto da consciência, que existe apenas no espaço das simultaneidades» (Bergson, 1909: 58).

FIGURA 1 – Corpo, Escrita e Memória (Memento, Christopher Nolan, EUA, 2000)

No trajecto labiríntico desta acção, qualquer que seja o nível de representação (traço/mancha, imagem, escrita/inscrição), ou a superfície de ins‑crição (tela, filme/ecrã, pele), a imagem ‑escrita constitui uma fronteira onde a suspensão do movimento gestual, aliada à nomeação, assegura a permanência de um (im)perceptível vestígio residual do ego, hic et nunc. Isto é, o filme cons‑titui uma traição do corpo próprio porque é o movimento, não do que o gesto de criar desvela mas, ao contrário, o que esse gesto oculta através da matéria da criação (retratos epsteinianos que nos inquietam); um fundo abissal que perma‑nece insondável, um plano – talvez metafísico – instaurado pela conjunção de formas imagéticas e escritas. O corpo trai a intimidade através do auto ‑retrato que regista o domínio do acidental, do inesperado, e é uma ruptura com a vontade, a irrupção da força do eu, violência que não se pode evitar diante do grande plano (Epstein, 1946) – Shelby ao espelho – “pois, perante a sua imagem, o amor que o homem tem por ela pode ‑se sempre revelar. O rosto [...] é um instru‑mento de sedução, e é ‑o sobretudo pelo olhar. [...] ‘Para quem te estás a olhar? Contra quem te olhas?’“ (Ramos, 2002: 246). Em última análise, podemos ver no reflexo e na inscrição – tal como no close ‑up – a génese do movimento essencial à instauração de um nível subliminar e virtual dos afectos, cujo objectivo não é o da revelação mas o da opacificação pelo gesto de confinar; um movimento duplo que revela uma forma apenas para ocultar outra, como se o espaço do mundo se dobrasse em incontáveis e incoincidendes dimensões da realidade, sedimentadas numa espécie de “memória da humanidade”.

Memento é, assim, o espaço de apresenta‑ção de um mundo complexo da memória que envolve quatro instâncias: o autor (cineasta/sujeito), a personagem (Shelby/sujeito/objecto), o espectador e uma outra que é um mo(vi)mento (tempo) de intersecção (espaço); art in process – puro traço em evolução –, impressão, impres‑sionada (fotografia), escrita (legenda) ou inscrita (tatuagem). Como afirma Bergson, “o princípio de identidade é a lei absoluta da nossa consciên‑cia”, determinando que o que é pensado, no

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momento em que se pensa, não liga o futuro ao presente mas somente o presente ao pre‑sente (Bergson, 1909), questão absolutamente paradoxal em Memento, em que a mise en scène e as opções da narrativa não linear permitem a Nolan encenar o anacronismo do tempo inver‑tido, amplificado, decorrente da incapacidade de “representação” do espaço, configurado num quadro clínico específico de um indivíduo que sofre de amnésia anterógrada.

Em La Memoria – una, nessuna, centomila (Gorini, 2006), no brevíssimo capítulo sobre a memória e o Cinema, Gorini enuncia os principais “erros cinematográficos”, entre os quais refere que a amnésia nunca produz uma mudança radical de personalidade, dos valores e do comportamento, como acontece aos prota‑gonistas dos filmes; “a perda total da identidade e de todas as recordações autobiográficas é pro‑fundamente irrealista” (Idem: 91). Mas devemos salientar que arte e ciência não são idênticas, nem nos sistemas discursivos nem nos desíg‑nios, ainda que ambas possam estar radicadas na mesma realidade. Por isso, o que está em causa em Memento, não é a verosimilhança ou a verdade subjacente à narrativa ou ao regime de representação da imagem do filme, mas a matriz do próprio processo de criação e ima‑ginação, enquanto formas de compreensão da familiaridade ou estranheza das relações espacio‑‑temporais, intrinsecamente dependentes do movimento processual da mente e da memória. Uma abordagem esquemática, mostra o seguinte regime narrativo subjacente à dimensão plástica de Memento (Fig.2):

Leonard Shelby (Guy Pearce) é, simultanea‑mente, o narrador num eixo linear do tempo, que vai do passado ao presente (sequências a preto e branco), e a personagem que vive no mesmo espaço mas noutra dimensão, em retroacção (ima‑gens a cores). Os elementos de ligação são as fotografias polaroid e as mensagens gradualmente tatuadas na pele de Shelby, que constitui o cor‑pus da inscrição, suporte da escrita e da memória. Jean ‑Luc Nancy (2000) observa que os corpos não têm lugar na matéria, nem no discurso, o que significa que “não habitam nem o ‘espírito’

nem o ‘corpo’. Os corpos existem enquanto limite, [...] bordo externo, fractura e intersecção da estranheza no contínuo do sentido, no con‑tínuo da matéria. Abertura, descrição. [...] Um corpo [é um] lugar que abre, que distende, que espaça pés e cabeça: dando ‑lhes lugar para que se dê um acontecimento (fruir, sofrer, pensar, nascer, morrer, fazer sexo, rir, espirrar, tremer, chorar, esquecer...)” (Idem: 18). Sobretudo esque‑cer, ideia que religamos às palavras de Fernando Gil: “o esquecimento na memória é a maneira negativa de apresentar o poder construtor da imaginação, que é uma estrutura do espírito humano” (Gil, 1998: 24). O esquecimento não é, neste sentido, uma perda da memória, é a sua condição essencial, sendo crucial que algumas recordações sejam eliminadas. Há uma ecologia da memória que passa pelo esquecimento. Paul Ricoeur (2004) regista mesmo a essencialidade desta questão, quando se trata da reconciliação com o passado, nos processos mais dolorosos da história da humanidade, através do estabeleci‑mento de um “horizonte da memória”. Movi‑mento de apagamento do traço que estabelece a coerência da memória, esquecer é regressar ritualmente ao presente. É abrir o corpo à possi‑bilidade de uma reinscrição, e a mente à evidên‑cia da reescrição diegética, porque do “vestígio do corpo que o signo e a representação sempre tornam visíveis, releva a letra quando transpor‑tada [...] para o interior do espaço plástico [...]. Ao traço coube marcar os ritmos do corpo, ser

FIGURA 2 – Schemata do regime narrativo do filme Memento (2000) de Christopher Nolan

© Maria Irene Aparício, 2006

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o registo numérico e mnemónico da pulsiona‑lidade [...]” (Babo, 1993a: 75). O vestígio do passado está algures mas Shelby não o recorda: “não me consigo lembrar de me esquecer”. É um vestígio legível que, só na unidade da obra, o filme pode tornar visível. A sequência inicial do filme é paradigmática e instaura, inequivoca‑mente, a direcção do movimento de lisibilidade, ao mesmo tempo que denuncia o dispositivo especular das imagens e da escrita. A “estória” é escrita na imagem, como legenda da fotogra‑fia, e apagada ou reescrita, sempre que a dúvida assalta Shelby, ou ainda inscrita na pele da per‑sonagem que assim regista, para sempre e sem possibilidade de remissão, factos, nomes e núme‑ros supostamente decalcados de uma realidade que vai descodificando, fragmento a fragmento, através de indícios que migram anarquicamente do plano da “realidade” para a mente, jamais lhe permitindo, no entanto, ter acesso à forma global da trama da sua vida. O corpo memoriza, a fotografia e a escrita são “memórias” externas. Escrita, inscrição e imagem são sinais anamné‑sicos imprescindíveis ao retorno/reconstituição do momento inaugural do problema de Shelby; a regressão a espaços e tempos cujas coordena‑das são, à partida, invioláveis. Verifica ‑se, aliás, que o esquecimento de Shelby não é acidental, mas “essencial e constitutivo”, na medida em que, citando Foucault, “regressa ‑se a um certo vazio que o esquecimento tornou esquivo ou mascarou, que recobriu com uma falsa ou defei‑tuosa plenitude, e o retorno deve redescobrir essa lacuna e essa falta” (Foucault, 1969: 65).

Portanto, podemos dizer que há, em Memento, n dimensões onde se imbricam imagem, escrita e inscrição, remetendo para a função da memória

na construção da identidade e os limites pro‑priamente corporais da inscrição/escrita (e.g. gesto/mente, “voz”, tatuagem, etc.). A pele‑‑memória de Shelby não estará, por isso mesmo, muito distante do conceito de “eu ‑pele” definido por Maria Augusta Babo, e que “permite pensar a reversibilidade do corpo”:

“[...] a forma do corpo enquanto pele estabe‑

lece ao mesmo tempo uma pregnância do corpo

no mundo como matéria formada, protuberân‑

cia, mas, por outro, permite pensar o negativo

do corpo que a ergonomia hoje desenvolve.

O par funcional vestígio (do corpo)/forma, leva‑

‑nos a um tratamento específico das formas dos

objectos ‑extensão, objectos que acoplados ao

corpo lhe aumentam a performance, de modo a

ver neles essa marca moldada do corpo ausente‑

‑presente” (Babo, 2001: 260).

A diferença é que, em Memento, não estamos perante um dispositivo que amplifica a potência do corpo ‑pele orgânico ou previne a decadên‑cia, mas diante de uma prótese técnica2: escrita e gesto de inscrição que relevam da angústia de uma “perda” temporal, intra ‑mente, invi‑sível, ao contrário da ruga, da cicatriz ou da alergia, por exemplo, mas igualmente impla‑cável. Em Memento, os nomes são corpóreos e agem. O corpo da letra funde ‑se com o corpo do sujeito, reconfigurando em simultâneo a identi‑dade do eu/outro, exposto como marca pictórica, na pele. Sob a aparente suspensão do eu num tempo presente, enquanto nome logicamente próprio3, que é reinvestido de sucessivos perfis, Shelby configura a sua identidade, assumindo em cada memorando, fotografia e tatuagem, um

2 Veja ‑se sobre esta questão, o capítulo “A Escrita como Techné” in A Escrita do Livro: “Entendida como ‘repre‑sentação do som’, ela [a escrita] é uma técnica ao serviço da linguagem, no sentido de um meio, um instrumento suportado por um saber ‑fazer, que permite a fabricação, a produção do pensamento” (Babo, 1993:72).

3 Nos textos que medeiam entre 1905 e 1918, Bertrand Russell considera que um nome logicamente próprio é um termo cujo verdadeiro papel lógico é referir o objecto. Só os itens com os quais temos contacto directo podem ser nomeados. Um nome logicamente próprio é um rótulo para tal item, não existem no entanto muitos itens desses, uma vez que poucos podem ser descritos como elementos da experiência imediata. Neles incluem‑se (talvez) o eu, o tempo presente, os dados dos sentidos e os universais. Para Julia Kristeva, o nome próprio é a marca última de uma identidade, e constitui uma “abertura de significados em cascata, nos quais se vêm alojar as experiências [...], perceptivas, cinestésicas, fantasmáticas, ideológicas” (Kristeva, 1980: 63).

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registo autográfico de assinatura que lhe permite (re)escrever a sua “estória” que é, também, o plano de representação da sua humanidade. Reli‑gando sistematicamente os eventos do presente às memórias genuínas que asseguram, apesar de tudo, a continuidade psicológica do eu (e.g. Shelby agente de seguros, Shelby esposo, etc.) Memento é um kiasmos onde autor/personagem, obra/mundo constituem os termos cruzados de uma dupla antítese processual de contaminação do dispositivo ficcional e do homem, por con‑tiguidade, através da prefiguração de um estilo que diferencia a obra. Aplicam ‑se as palavras de Federico Ferrari e Jean ‑Luc Nancy: “A obra põe em jogo um (re)conhecimento, não de uma dada identidade (uma obra de X ou Y), mas o reconhe‑cimento do que há ali de identidade, sem a qual, de resto, não haveria diferença entre esta obra e outra qualquer” (Ferrari e Nancy, 2005: 11). É, como diria Foucault a propósito da literatura, uma questão de abertura de um espaço onde “o sujeito da escrita está sempre a desaparecer”, um retorno que se faz “na direcção de uma espécie de costura enigmática da obra e do autor” (Fou‑cault, 1969: 66).

Max Milner (1982) veicula uma ideia interes‑sante sobre a possibilidade da persistência do ves‑tígio invisível da história depositado no tempo:

”A partir do momento em que cada ponto

do universo é concebido como origem de um

raio que se propaga indefinidamente em linha

recta, e que pode, quando captado em deter‑

minadas condições, dar origem a uma imagem,

então é possível objectar que cada momento

da vida de um ser humano ou da história dos

homens produziu uma imagem que existe em

qualquer lado e que seria possível recuperá ‑la

se tivéssemos os meios para a ver, lá onde ela

está” (Milner, 1982:166).

A “memória” perdida, que Shelby procura reconstituir, seria assim um vestígio similar tra‑çado pela escrita e pela fotografia que preservam um conhecimento edificado no agenciamento

mnemónico do mundo e que, em última aná‑lise, pode (des)ocultar a história individual ou universal, a partir das cinzas radicadas num Urphänomen, momento originário do fenómeno, que é, neste caso, decisivo à compreensão do estatuto do eu.

Consequentemente, a apresentação gráfica da continuidade do eu, que não se circunscreve ao sis‑tema físico do corpo mas estende ‑se à obra (e.g. a gravura, a tatuagem, a fotografia, o filme, etc.), constitui um duplo movimento; de humanização do cinema e deposição do estatuto Dixit Divi‑num na arte. O filme interroga a possibilidade de entendimento da criatividade decorrente de uma falha que estimula o processo de imagina‑ção e a invenção de novos mundos. Sondagem do humano, Memento é, deste modo, um movi‑mento de mise en abîme, constituído por “signos, visões fugazes e encadeadas, lisíveis e diáfanas, surpreendentes e naturais, dramas inesperados do detalhe. Tudo nos é exterior, nada nos é indi‑ferente. […] A figura ideal do filme não é mais do que o ‘futuro normal’” (Cohen ‑Séat, 1946: 112). A arte cruza a fronteira da razão, questionando o sentido do mundo e os limites da linguagem, e revela o Daimon no homem, o seu horizonte mais ‑que ‑humano. Ainda que, quando se trata de perceber a influência decisiva da “matéria plás‑tica mental” (e.g. memória, afectos, noemas, etc.) no acto de confinar a arte e a vida, o domínio da relação possa ser difícil de aceitar, na medida em que a atitude positivista continua a ser prepon‑derante no processo de conhecimento.

Da obra como traço residual do tempo e da memória

A primeira sequência de Memento, o grande plano da agitação de uma polaroid, cujo objec‑tivo é acelerar o processo de revelação, constitui a matriz do filme. Um traço da assinatura mar‑cado por formas de apresentação do tempo e da memória cuja génese remonta ao primeiro filme de Nolan4. Segue ‑se o plano da imagem no

4 Referimo ‑nos ao filme Following (UK, 1998).

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processo de revelação, em “projecção invertida” (um velho truque do cinema) em que, ao contrá‑rio do esperado, a imagem não fica mais nítida mas desaparece que é, literalmente, o efeito real do tempo na fotografia e no corpo biológico. Este movimento constitui a metonímia da história cuja linha vertical é uma superfície especular, onde tudo surge reflectido (e.g. o vector tempo, a cor, a percepção, etc.), e onde se entrelaçam objecto(s) e sujeito(s), em camadas de sentido que emergem ou se dissipam.

Do ponto de vista discursivo, Shelby repete as falas, enquanto as imagens se intercalam para projectar a “estória” noutro degrau. O filme é uma escada de Penrose. O regime de iterabili‑dade dos diálogos e das imagens projecta uma representação (repraesentare no seu sentido literal de tornar presente, mas também figurar, imaginar, trazer à lembrança) do eu ‑Shelby e do seu mundo. Uma das questões decisivas no filme é a forma como inscrição e fotografia concorrem para mapear a realidade da personagem, pelo esta‑belecimento de uma ordem, mostrando como a duração do sistema da escrita e a durée das ima‑gens cinematográficas podem alterar a percepção do mundo. Como uma mnemotécnica, o pro‑cesso de “encadeamento em cascata” utilizado por Shelby, vai ligando cada nova informação à seguinte, embora entre elas pareça não haver ligação lógica. As palavras e as imagens fazem‑‑se “agir” no filme, mediante associações, mas “agem”, também, sobre o espectador que tenta restabelecer a linearidade da “estória”. O carácter fragmentário e descontínuo da narrativa coloca a questão da relação directa da memória com a vivência do espaço e do tempo e, de certo modo, também com a noção de individuação e unidade do eu. Um dos excertos dialógicos de Memento é exemplar: “ – Nem sequer sabes quem és!”/“– Isto é o que tu eras, não o que és agora”. A resposta da personagem é a escrita autográfica, representada de forma subliminar através da marcação obses‑siva do corpo, na tentativa de delimitar a iden‑tidade, de contornar o dédalo...

A percepção que Shelby tem do mundo é a imagem paradoxal de um espaço ‑tempo mono‑cromático, exterior à consciência – extensões

do corpo e da mente; fotografias e escrita(s), memórias inscritas. A escrita assume o estatuto de sistema de suporte à continuidade do eu e da vida, de integração no quotidiano, na medida em que é através dela que Shelby desenha os percursos subsequentes e legitima a acção ou reacção perante as situações: “– Não acredites nas suas mentiras. É ele, mata ‑o”; “– Alguém está a ten‑tar manipular ‑me para que mate o homem errado”; “– Nunca atendas o telefone”... Também não é des‑piciendo o facto de Shelby escrever mensagens para si próprio como se fosse “o outro”. A refe‑rência à alteridade é essencial para a afirmação da identidade, na medida em que se lhe opõe, subtraindo a memória do sujeito à tendencial dissolução numa realidade que, perante a alte‑ração do regime processual da memória, não lhe oferece quaisquer coordenadas. O filme é, então, um espelho duplo que procura resolver, pela sucessiva inscrição de vários tipos de ima‑gens, a ambiguidade e a continuidade do eu, por reposição contínua na linha vectorial do tempo. A câmara (a polaroid e a câmara que filma as ima‑gens da polaroid) faz aparecer e (re)estabelece a continuidade pela marcação dos micro ‑eventos do mundo. O cinema traz à presença segredos que estavam soterrados nas coisas: “Singular ins‑trumento este, espelho que permanece um espe‑lho e é uma peneira” (Cohen ‑Séat, 1946: 123).

Sabemos que a noção de alteridade refere, do ponto de vista lógico, uma relação simétrica e intransitiva. É definida como negação pura e simples da identidade. O sujeito é o seu pró‑prio pensamento. O objecto é um olhar de fora. O objecto é sempre o outro; uma sensação, uma atracção, um ímpeto, uma manifestação, um contacto, uma dor, talvez até uma intensidade, na terminologia de Deleuze. Sem localização. A ideia de espaço não intervém. Não há mais do que uma oposição entre o eu e o não ‑eu. É na procura constante dessa ipseidade, da existência singular de si, que Shelby radica um comporta‑mento paranóico e obsessivo de contínuo registo, rodeando ‑se de imagens dos objectos e descrições dos gestos. Derrida sublinha que, seja qual for o modo pelo qual se “efabule uma constituição de si, do autos, do ipse, imaginamos sempre que

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aquele ou aquela que escreve deve já saber dizer eu. [...] A modalidade identificatória deve já estar ou passar a estar assegurada: da língua e na lín‑gua. [...]” (Derrida, 1996: 43). A escrita é, deste modo, uma mise en scène de si.

Em entrevista aos Cahiers du Cinéma (2001), a propósito do filme D’ailleurs Derrida (Safaa Fathy, França, 1999) e do livro Tourner les Mots (Jacques Derrida e Safaa Fathy, 2000), Derrida fala da memória na relação com a imagem e da paixão pelo cinema, do “fascínio hipnótico” que as imagens exercem, independentemente dos filmes. Confessa, no entanto, que não guarda a memória do cinema e faz questão de afirmar que não é “um cinéfilo no sentido clássico do termo”. Para Derrida, a memória do cinema é “registada virtualmente”, auxiliada pela escrita dos títulos num caderno de notas, sem imagens. O paradoxo do indício da negação do cinema como memó‑ria e, por conseguinte, como conhecimento, é notado por Baecque e Jousse que se questionam: “[....] porquê falar com um filósofo que, tendo confessado não ser cinéfilo tem, no entanto, um verdadeiro pensamento do dispositivo cine‑matográfico, da projecção, e dos fantasmas que atraem irresistivelmente todo o espectador, que sucumbe ao desejo de os encontrar?” (Baecque e Jousse, 2001: 2). De facto, para Derrida, o cinema é a possibilidade de reencontro com os fantas‑mas (os seus espectros, como lhes chama), e com os próprios desejos e paixões, no recato da sala escura. Ou, de forma mais radical, o confronto com o cinema que é, citando Manoel de Oliveira, “o fantasma da vida”. Numa reflexão justamente sob o título “A Dança dos Espectros” (2007), João Mário Grilo devolve a Derrida a justeza de um olhar que, por sua vez, devolve ao cinema o seu poder de alimentar a crença:

“[...] Derrida relocaliza o projecto social

do cinema na história da modernidade, como

um formidável espectáculo de massas que, no

entanto, interpela a solidão de cada indivíduo

e promove o cruzamento explosivo entre o

mundo dos espectros – que pelo cinema se nos

tornam estranhamente familiares e tocantes –

e a descoberta de uma excepcional capacidade

de crer [...] § Visão radical, essencial, o olhar de

Derrida sobre o cinema permite, assim, extrair‑

‑lhe a sua verdadeira importância histórica: o ter

produzido uma humanidade capaz de voltar a

crer, mesmo quando confrontada ao paradoxo

irreal dos fantasmas que dançam à sua frente”

(2007: 97 ‑98).

O cinema trata, frequentemente, de um tempo sem espaço, ou vice ‑versa. Um tempo bergsoniano que envolve a memória e a ima‑ginação, mas também o corpo (ou a sua ausên‑cia) e a alma. A condição enigmática do mundo equacionada pelo filme, condiciona a imagem final de Shelby que procura enfrentar a fatali‑dade de espectador da sua própria vida, plasmada no mapa ‑ecrã em forma de poster na parede do quarto de hotel: assomar apenas o limiar infe‑rior do eu, pelo reconhecimento da imagem própria ao espelho, ou antes, do seu espectro, ou através da memória residual e da escrita. Neste caso, e parafraseando Christin, o legível implica “o escrito”. Daí que a revelação que a legibilidade propõe seja da ordem da reminiscência. “O visí‑vel deve a sua eficácia e o seu poder de atracção ao efeito de enigma suscitado pela novidade pura, o legível extrai o seu poder da associação mnemónica gerada entre um dispositivo visual [...] e uma estrutura gráfica que nos permite nela desvendar sentido” (Christin, 2009: 1).

Roger Bastide (1971) dizia que o espírito é uma espécie de luz da consciência que ilumina cada um dos seres, e é essa luz que permite aos homens pensarem e dizerem que são homens. Daí que o espírito seja, nesta acepção, indissociável de toda a experiência e de todo o pensamento. O autor acrescenta que, embora a explicação do espírito seja uma “espécie de mistério”, insondável e inexplicável, ele não deixa de ser de uma “banal positividade”. Quererá talvez dizer que as obras dos homens reflectem o espírito e que, por essa razão, o espírito é uma dimensão tangível. No caso da arte, e neste filme há, efectivamente, vestígios do espírito do autor na obra, e do espec‑tador na última, que provém do movimento cruzado “pensar e dizer”, “dizer e pensar” subja‑cente à percepção e interpretação das imagens.

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Além disso, Memento tem a forma de um espe‑lho que, virando a atenção da consciência sobre si própria, transforma as imagens inefáveis em reflexões sobre a fixação possível do tempo e da identidade. Do ponto de vista plástico, as cenas são superfícies especulares que não guardam a imagem anterior de Shelby. Daí que a escrita no corpo da personagem só possa ser lida ao espelho, porque é, em última análise, a imagem impossível do espectador, logrado pela ilusão da presença do outro, que René Magritte soube genialmente representar na Reprodução Interdita (Retrato de Edward James, 1937). Shelby, coloca ‑se em frente ao espelho como testemunha de si pró‑prio. Não vemos o espelho porque a nossa ima‑gem faz parte desse evento efémero que pode ser revelado – tornar ‑se visível – através do espaço. A Pintura e o Cinema podem mostrar, porque o processo pictórico e/ou projectivo de mise en abîme é tributário da produção de espelhos.

Em Le regard du portrait, Jean ‑Luc Nancy afirma que o objecto de um quadro é, stricto sensu, o sujeito absoluto “separado de tudo o que ele não é, retirado de toda a exterioridade”, questionando, com justeza: “o que é pintar o absoluto? E, por consequência, o que é uma pintura absoluta?” (Nancy, 2001: 12). Desenhar, pintar ou filmar um retrato (i.e. enquadrar), encerra todas as complexas questões filosóficas do sujeito. Memento é, similarmente, um retrato desenhado pelo traço da escrita; um auto ‑retrato. O que se torna inquietante é a noção de sujeito que emerge desse corpus da escrita, desse retrato disperso por memorandos e polaroids que procu‑ram dar coerência ao corpo próprio. É um sujeito tragicamente confrontado, continuamente e sem remissão, com sua própria finitude: Memento (mori), “lembra ‑te dos mortos”. O que é essencial não é a questão: quem matou a mulher de Shelby?, mas sim como recuperar do baú mental perdido no tempo e no espaço vazio e imponderável da ausência, a memória do momento de ruptura com o eu? Que é, como se sabe, um enigma sem solução... Em monólogo, Shelby reflecte:

“– Tenho de acreditar num mundo para

além da minha mente, que os meus actos

contam para alguma coisa, mesmo que não me

consiga lembrar deles. Tenho de acreditar que,

quando fecho os olhos, o mundo não desapa‑

rece. Devo acreditar que o mundo ainda não

desapareceu? Que ainda aqui está? Sim. Todos

precisamos de recordações, para lembrar quem

somos. Eu não sou diferente. Agora... onde é

que eu ia? [Fade out/FIM]”. (Shelby in Memento)

Esta questão reenvia, finalmente, para o pro‑blema filosófico clássico do conhecimento das outras mentes, associado à questão do cepticismo que, por sua vez, coloca o problema de saber se existe um mundo exterior à mente. Cada nova sequência do filme mostra apenas um referente, a matéria de que o filme é feito; enquadramen‑tos, espaços habitados por personagens, pontos de passagem num contínuo fora de campo, isola‑dos no momento da sua captação pela máquina do cinema. O mundo permanece no intervalo, mas apenas como imagem coerente do real. Na sua projecção ficcional, o corpo de Shelby é a tela, o (auto)retrato, uma superfície dinâmica onde o sujeito inscreve o tempo. Marca e bios. O movimento natural e cósmico do tempo no corpo é silencioso, mas os registos imagéticos, são gritos. São formas de reescrever o tempo, reinvesti ‑lo (corpo, auto ‑retrato, desenho/pin‑tura, assinatura).

A pele ‑escrita de Shelby é, por esta via, uma forma de conjurar o tempo e a morte, tal como a personagem do conto de Saki (Hector Hugh Munro) A Tela Humana, e a do romance de Óscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, que esboçam níveis de registo do movimento do tempo, no espaço da arte: desenho (tatuado), pintura, livro sobre o desenho, filme sobre a pintura. No pri‑meiro, a tatuagem inscreve o sujeito na História; no segundo, a mancha/traço/pintura constitui a ambição de o suprimir à marcação implacável da vida, transferindo para a pintura a inscrição do tempo. É o retrato que envelhece e não o homem, numa espécie de movimento transdu‑tor cujo objectivo é impedir a dissolvência do sujeito com o seu corpo. O livro e o filme reflec‑tem e refractam a linha (ir)reversível do tempo, problemática que não é alheia à questão da

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imagem especular enquanto superfície explorada pelas artes e, em particular, pela pintura e pelo cinema. Michel Foucault (1967) fala do espelho como “experiência mista, mitológica”, “lugar sem lugar” situado entre a utopia e a “heteroto‑pia”. “No espelho, vejo ‑me onde não estou, num espaço irreal que se abre virtualmente por detrás da superfície, eu estou além, lá onde não estou, uma espécie de sombra que me devolve a minha própria visibilidade, que me permite olhar ‑me lá onde estou ausente […]” (Idem: 4). Isto é, no tempo presente. O espelho é uma “heterotopia”, na medida em que nele existe “uma espécie de efeito de retorno”, é no espelho que o sujeito percepciona a ausência do lugar onde se vê. Em Memento é a partir do olhar ao espelho sobre o eu, “no fundo do espaço virtual que está do outro lado do vidro”, que se opera um processo de reconstituição da identidade indissociável do lugar. Esse é um dos abismos de sentido em que mergulham as cenas emblemáticas do filme: o filme olha o passado no presente.

Fazendo a analogia com a reflexão de Der‑rida, Nolan procura “rodar as palavras” que “se deixam substituir, desalojar pelos ícones mudos [...], imagens prometidas, imagens capturadas, imagens ainda virtuais, imagens guardadas, ima‑gens excluídas. Como poderemos [...] dizer aqui todas as durées enredadas destas possibilidades?” (Derrida e Fathy, 2000: 17). A palavra deixa ‑se ultrapassar pela velocidade incomensurável da imagem, sendo impossível delimitar a origem e a força da espectralidade anamnésica que se desprende na singularidade de uma polaroid. Em Memento, a palavra torna ‑se imagem. Há uma fusão escrita/imagem que transforma o corpo da personagem no sujeito do corpo, isto é, no seu autor que consubstancia vida e morte. O corpo biológico, determinado no espaço e no tempo, é vida; a escrita é passado, consciência de finitude, mas também condição de passagem do sujeito à figura mediática do autor. Porque a figura habita o imponderável e permite resgatar ao abismo do fim, o ser, doutra forma votado ao total apa‑gamento, profetizado pela morte do corpo. Só é figura o que permanece. É nela que mergulha

tudo o que passa a fronteira da vida, porque a figura escapa a qualquer mutação.

Vimos como Memento se inscreve na temá‑tica da memória e da construção do espaço ‑tempo no cinema, ao descrever os movimentos da sua própria inscrição no eu ‑sujeito – autor, persona‑gem e espectador –, configurados nas escolhas ao nível das soluções de continuidade narrativa (e.g. os raccords, o efeito de real, etc.), bem como na definição das técnicas dramáticas de base (o flashback de exposição, as elipses temporais e narrativas, as paralipses). O filme é, também, exemplo da problematização da mise en scène da complexidade da mente humana e da memória humana, condenada à suspensão por excesso ou defeito, ao mostrar a incomensurabilidade dos afectos e a forma como vamos esquecendo, lem‑brando, desfigurando ou elidindo as pequenas percepções e recordações, e como manipulamos as memórias, moldadas pela crença, a imagina‑ção e as emoções.

Ao mapear as falhas do sentido na ausência da memória, e a impossibilidade de uma imagem contínua do mundo e da vida, o filme eviden‑cia a relevância da escrita da imagem e a imagem da escrita na constituição de uma “memória” externa. Em Memento, a continuidade é um movi‑mento do pensamento que inscreve uma iden‑tidade traçada pela imagem, a escrita ou a voz. Podemos mesmo dizer que escrita e a inscrição são dispositivos “ortotésicos”, no sentido que lhes dá Bernard Stiegler, formas de correcção da deficiência mnésica, movimentos de ordenação e exactidão, mas que reenviam para a escrita e sua dimensão de foto ‑grafein – relação mecânica de aderência do referente à imagem, de exacti‑dão sob a lógica da captura, e não da similitude, da iconocidade ou da semelhança. Nesta matriz, apenas uma cena do filme marca a coincidência de dois tempos num momento ambivalente. O momento em que Shelby queima as fotografias e opera a inversão da história; “Deverei mentir a mim próprio para ser feliz?”. É o limite do regime da indicialidade, tal como o entendemos, a partir do sudário e da verónica e, também, uma enun‑ciação do problema do cepticismo.

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Não temos a ambição de esgotar a com‑plexa problematização da temática da memória no cinema, pela análise de Memento. Mas a sua breve abordagem, no contexto de uma inscrição da identidade no filme, permite ‑nos equacio‑nar a passagem do “corpus anatómico” da obra ao “corpo mnemónico” do autor, projectando a questão da memória e do corpo no interior do grande espelho da vida, do amor e do ódio, enfim, das paixões, onde o sujeito (cineasta ou espectador) utiliza a imagem para velar ou apa‑gar o traçado do tempo – memorizar, recordar ou esquecer – em função do (seu secreto) sen‑tir. Quanto à ligação da escrita autográfica da personagem no interior da obra, com o autor enquanto presença na re(a)presentação, só um movimento de esvaziamento do lugar que se (con)funde com o corpo da palavra e da imagem, a pode, finalmente, desvelar. O Autor continua a ser, “mais do que um sujeito empírico, uma figura, isto é, uma construção que cumpre uma função textual, social, cultural” (Babo, 2003: 12) e, acrescentamos nós, espiritual; um eu que apa‑rece e desaparece, porventura imbricado no jogo da verdade e da ilusão.

Para finalizar esta breve reflexão sobre a temática memória ‑escrita no filme contempo‑râneo, é importante dizer que conceber o filme como espaço ‑tempo da recordação e das emoções é conectar espaços virtuais separados por abismos. Tal como preconizou Deleuze, no percurso sem retorno do cinema moderno, o cinema narrativo não mais representa a realidade, antes denuncia como o acto de narrar falsifica a própria realidade contaminando ‑a com toda a espécie de imagens (umas imaginárias outras imaginadas) onde toda a metamorfose é possível. Isto é, um “F for fake”, a verdade da mentira.

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Leveza e graça são duas noções frequentemente asso‑ciadas aos corpos e movimentos dos bailarinos. Se é entretanto fácil constatá ‑las sensivelmente, o mesmo

não se pode dizer de sua definição ou de sua exploração teó‑rica. Quem se propõe a defini ‑las ou a explicá ‑las, vê ‑se ante um impasse semelhante àquele observado por Santo Agos‑tinho, em sua tentativa de definir o tempo: quando não me perguntam, sei; quando me perguntam, já não o sei. Nosso caso parece ainda mais delicado, na medida em que a pró‑pria explicação corre inevitavelmente o risco de dissolver por completo o fascínio e o encantamento que toda graça sus‑cita. “Graça”, “encanto”, “leveza” são noções difusas, mas ao mesmo tempo evidentes, pertencentes a uma linhagem rara e desafiadora para o pensamento. Assim como o conceito de “atmosfera”, desenvolvido nos textos de José Gil sobre dança (2001: 125), ou como a teorização sobre as nuvens na pin‑tura, efetuada por Hubert Damisch (1972), “graça” convoca, para ser apreendida e tematizada, algo a mais do que a razão.

Encontramos esse sugestivo tema refletido na tradição estética e filosófica alemã, em ensaios como “Sobre Graça e Dignidade”, publicado em 1793 por Friedrich Schiller, ou ainda, no limiar do século XIX, no saboroso texto ficcio‑nal “Sobre o teatro de marionetes”, de Heinrich von Kleist. Retomemos esse segundo texto, em que se trata justamente da graça ligada ao movimento do corpo e à dança. O texto parte da surpresa do narrador ante a assiduidade com que um primeiro bailarino da época assistia a um teatro de

marionetes armado na praça do mercado. O narrador fica ainda mais intrigado quando o persona‑gem lhe diz que todo bailarino que desejasse aprimorar ‑se teria muito o que aprender com marionetes em movimento.

De saída, se estabelece no conto um rico diálogo entre o narrador e o bailarino, em que este último esboça uma ousada tese: os movi‑mentos “mecânicos” dos bonecos, apoiados em seu exato centro de gravidade e no jogo de articulações, aproximam ‑se de tal forma da dança que suas trajetórias confundem‑‑se com o “caminho da alma do bailarino” (Kleist, 1997: 15; ênfase minha)1. Diante dessa tese bem pouco previsível, o narrador retruca que, conforme se informara, no caso das marionetes e de sua manipula‑ção se trata de uma atividade “bas‑tante desespiritualizada” (ziemlich Geistloses). Claro que, tratando ‑se de marionetes, a observação acerca da ausência de “espírito” não seria de se

Corpo, graça e consciência

Maria cristiNa FraNco FErraz*

“Sim, o vagalume, sim, era lindo! – tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo ‑se. Era, outra vez em quando, a Alegria”

João guiMarãEs rosa, As margens da alegria

Para Isadora e Alice

* Professora da Universidade Fluminense. Investigadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

1 Edição bilíngüe, com tradução de Pedro Süssekind. Todas as citações estarão referidas a esta edição, cuja tradução por vezes altero no interesse deste artigo, aproximando ‑a ainda mais do texto original.

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estranhar. Entretanto, o que está em jogo, desde o início do texto, é a curiosa atenção dedicada ao teatro de marionetes por um renomado bai‑larino. Portanto, uma certa polarização entre os movimentos do corpo e a alma ou espírito, bem como a problemática dos vínculos entre corpo, movimento e alma já estão implicados nessa objeção do narrador.

Nesse sentido, desde sua abertura, o conto de Kleist põe em questão a cesura corpo/alma, sugerindo que a reflexão detida sobre a dança propicia uma ultrapassagem de crenças filosóficas (e comuns) fortemente arraigadas. Mais ainda: para tratar do corpo dançando, terá de desalojar a alma de sua interioridade para situá ‑la na exte‑rioridade inumana (como veremos, trans ‑umana) de bonecos, fios, articulações. O texto mostra que essa operação nada tem de banal, merecendo a mais elevada consideração do “espírito”, em seu sentido alemão, inscrito na história da filosofia ocidental.

Avançando a discussão, o bailarino do conto de Kleist aponta uma vantagem (ao menos uma vantagem negativa) que uma marionete bem feita e bem manipulada possuiria sobre um dançarino vivo: a ausência de afetação. E explica: a afetação se dá quando a alma (aqui entendida, filosofica‑mente, como força motriz) se encontra em um ponto diverso do centro de gravidade inerente ao próprio movimento. Para que a afetação não venha a destruir a graça na dança, é portanto necessário superar a disputa ou disjunção entre esse ponto preciso e a atenção, a mente ou a consciência. Ou seja: o desejo e meta do bai‑larino seria ultrapassar a clivagem corpo/alma, concentrando toda a sua alma ‑movimento ape‑nas nos movimentos executados, sem perder ‑se ou desviar ‑se em vaidades, espelhos, no fascínio narcísico da consciência que turva e elimina toda graça.

Coincidir exatamente com o movimento, sem sobras ou deperdições: esta a alma exterior bus‑cada na dança, sem que qualquer interioridade venha curtocircuitar a graça do movimento, sob a forma da afetação. Está assim explicitada a ques‑tão (a do conto e a nossa): a relação entre movi‑mento, dança, graça, encanto e leveza, ligada a

certo deslocamento da consciência ou alma: da interioridade reflexiva para o jogo das articula‑ções, capaz de promover a encantadora confluên‑cia entre o puro movimento e a alma motriz.

A conversa entre o narrador e o bailarino prossegue, tocando em pontos interessantíssi‑mos, ligados a discussões filosóficas e estéticas modernas alemãs, um pouco menos evidentes para o leitor contemporâneo e que não cabe aqui elucidar. Seguindo a trilha traçada no conto (e nesta leitura), o narrador sintetiza a questão que será desdobrada na sequência do texto, tema‑tizando as peças que a consciência costuma pre‑gar na “graça natural dos homens” (Idem: 27), destruindo ‑a por completo, definitiva e irrever‑sivelmente.

Inicia ‑se então um segundo relato: o narrador conta ao bailarino (e a seus leitores) um episódio em que, diante de seus olhos, um jovem perdeu a inocência (em alemão, Unschuld, não ‑culpa, estado aquém do direcionamente da crueldade sobre si mesmo, inerente a toda culpabilidade), nunca mais conseguindo recuperar o paraíso, apesar de todos os esforços. Nada de estranho, pois graça e esforço são, ao que tudo indica, incompatíveis. Eis, em resumo, a saborosa e ins‑trutiva história. Um amigo, jovem de 16 anos dotado de notável encanto natural, estava um dia banhando ‑se na companhia do narrador. Em um gesto fortuito, ao erguer um pé para enxugá‑‑lo, o belo rapaz vê ‑se de relance no espelho e observa a semelhança entre seu gesto gracioso e o de uma estátua antiga, de ampla fortuna crítica e estética na cultura alemã: a cópia romana da estátua grega de um rapaz flagrado no instante em que, absorto, tira um espinho do pé.

Seja para pôr à prova a inteireza da graça que caracterizava o jovem, ou para provocar a ponta nascente de vaidade que a comparação já atestava, o narrador afirma que, desatento, não observara qualquer semelhança entre o gesto de enxugar o pé e a famosa estátua. Ante essa observação, o jovem cora e decide, então, repetir o gesto e mostrar a semelhança graciosa. Mas a tentativa fracassa. Repete uma dezena de vezes, sem conseguir reproduzir o movimento e o momento perdidos.

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Ante o logro, o narrador se esforça para con‑ter o riso. Nada mais havia a fazer: quebrada a graça, resta o cômico. Inevitável lembrar aqui a definição lapidar que o filósofo Henri Bergson ofereceu acerca do cômico, em seu livro O Riso: ensaio sobre a significação do cômico, publicado em 1900 (Bergson, Oeuvres, 2001: 405): “Du mécanique plaqué sur du vivant”2. Curiosamente, Bergson tensiona a oposição entre o mecânico e o vivo, em favor do vivo, chegando a citar, um pouco antes, a tosca rigidez das marionetes, que suscitam riso (Idem: 403).

À diferença de Kleist, quando Bergson aludia ao mecanismo, ligado à repetição automática e à comicidade, estava dialogando com as angústias próprias à passagem do século XIX ao XX, em que uma intensa rotinização e mecanização da vida, que acompanhavam a industrialização e o vertiginoso desenvolvimento de grandes e fre‑néticos centros urbanos, ameaçavam o homem moderno. A aliança homem ‑máquina já não prometia uma alma mais coincidente com o corpo; ao contrário, parecia reduzir o homem ao nível de automatismos desalmados e esvaziado‑res. Claro que, no início do século XIX, Kleist se encontrava distante dessas vivências e impasses.

O conto de Kleist pode ser aproximado de experimentos de criação de autômatos, também presentes na literatura alemã, como, por exemplo, na novela “O Homem de Areia”, de E. T. A. Hoff‑mann, parcial mas significativamente transposta para o balé clássico “Copélia”. Mas não deixa de ser curioso o fato de que, um século antes de Bergson, no texto de Kleist os bonecos de mario‑nete tenham justamente servido como exemplos privilegiados da graciosidade natural, enquanto o homem, com sua racionalidade e consciência pensante (logo, retardatária), parecia de uma vez por todas banido do paraíso da coincidência de si consigo mesmo, do movimento com a “alma”. Essa seria, segundo o texto, uma condição que aproximaria Deus do reino da matéria (portanto, das marionetes), considerados como duas pontas de um amplo movimento anelar.

Entretanto, a passagem do conto em que a mera repetição de gestos, não mais fascinando por seu encanto, se torna risível, aproxima ‑se claramente da visada bergsoniana. Vale a pena destacar outras passagens do livro O Riso que antecedem a definição lapidar acima citada, e que cabem no episódio do belo jovem que perde a graça como uma luva (ou como mão artificial):

“... tenho agora diante de mim uma mecâ‑

nica que funciona automaticamente. Não se

trata mais de vida, mas do automatismo ins‑

talado na vida e imitando a vida. Trata ‑se do

cômico.” (Kleist, 1997: 402)

“Imitar alguém3 é destacar a parte de auto‑

matismo que ele deixou introduzir ‑se em sua

pessoa. É portanto, por definição, torná ‑lo

cômico, e não é de se estranhar que a imitação

faça rir.” (Ibidem)

“Onde há repetição, similitude completa,

suspeitamos o mecânico funcionando por

detrás do vivo.” (Idem: 403)

O cruel acontecimento narrado no conto de Kleist (é sempre cruel testemunhar a quebra fatal da graça) prossegue: a partir daquele momento preciso, o rapaz muda radicalmente. Começa a passar o dia inteiro diante do espelho, perdendo progressiva e irreversivelmente cada um de seus encantos. Na certeira expressão do narrador, pare‑cia que “um poder invisível e incompreensível, tal qual uma rede de ferro” capturava o “jogo livre” de seus gestos (Idem: 33). Em suma: passado um ano, não se podia mais vislumbrar naquele rapaz qualquer traço ou rastro da amável graça que tanto havia deleitado todos os que o cercavam.

Como se pode observar, graça e reflexo no espelho repelem ‑se e se expulsam mutuamente, como bem o sabem os bailarinos. Quando a consciência reflexiva, muito mais lenta do que os movimentos efetuados pelo corpo, se dei‑xam capturar pelas imagens do espelho, cessa a feliz adesão do movimento ao fluir da vida, quebrando ‑se todo encanto. A afetação se

2 Algo como “o mecânico aplicado/colado/chapado sobre o vivo”.3 Mesmo – e sobretudo – a si mesmo.

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introduz, evidenciando o tolo desejo (humano, demasiadamente humano) de ser reconhecido e de agradar, e impedindo o fluir do desejo pelo corpo em movimento, tornado puro agenciar ‑se, como oportunamente mostrou José Gil, no livro Movimento total.

O conto, entretanto, apresenta ainda um ter‑ceiro movimento, introduzindo uma nova narra‑ção. Como numa contradança, o bailarino toma mais uma vez a palavra para, de história em his‑tória (verdadeiros movimentos coreográficos do pensamento), ir elucidando de modo gracioso o tema da graça, da dança, do corpo em relação de imanência com seu movimento e, portanto, com a vida e o mundo. O bailarino passa a narrar a surpreendente história de um urso esgrimista que um nobre russo criava em suas propriedades e que ele fora desafiado a derrotar. O que mais impres‑siona o bailarino é que o urso, com sua seriedade imperturbável, olho no olho, não apenas bloque‑ava todos os golpes, mas sobretudo nunca, em momento algum, deixava ‑se enganar por qual‑quer espécie de finta. Mantinha ‑se única e exclu‑sivamente focado nos movimentos do adversário, “como se pudesse ler dentro de sua alma” (Kleist, 1997: 37; tradução ligeiramente modificada).

É como se o urso pudesse perceber os movi‑mentos em seu estatuto infinitesimal, nascente, tal como Bergson esclarece na obra ‑prima Maté‑ria e memória. Ou ainda, em seu plano virtual (real, sem ser atual), como Gil explora, a partir do pensamento de Bergson e de Deleuze, para tratar da dança. Só se pode ser trapaceado pela finta quando já se perdeu ou se turvou a capaci‑dade de apreender o movimento em seu plano virtual, quando a percepção (consciente) se torna descompassada, “atrasada” com relação aos movimentos reais (mesmo que ainda não visíveis) do corpo. Pois, como também frisou Bergson, “a lógica do corpo não admite os suben‑tendidos” (Bergson, 2001: 257). Estar portanto diretamente conectado ao corpo implica não cair em armadilhas e enganos. Mas em geral é todo o inverso que acontece, por conta da lerdeza da consciência reflexiva e da distância que o “corpo próprio” produziu, no Ocidente, em relação aos efetivos movimentos do próprio corpo.

Cabe aqui lembrar uma importante obser‑vação de um etnólogo, mencionada por José Gil ao final do texto intitulado “O corpo para‑doxal” (Gil, 2002: 146). O missionário Maurice Leenhardt, ao deixar a Nova Caledônia, per‑gunta a um de seus informantes canaque se eles lhes teriam trazido o espírito. Ao que o canaque responde que o espírito eles já tinham; o que os missionários lhe trouxeram foi o corpo. Gil esclarece que, para um canaque que se mistura e funde com as árvores, com as forças de animais, do vento, da chuva, “o corpo próprio do ociden‑tal não existe”. E acrescenta: o corpo do canaque “tira sua potência de ser imanente ao mundo e, assim, poder devir.”(Ibidem). O caso do urso esgri‑mista, sua capacidade de bloquear todos os gol‑pes e não se deixar enganar pela finta nos permite lembrar e dimensionar a distância entre o “corpo próprio ocidental” e os movimentos efetivos do corpo, que já não se destaca dos fluxos da vida e do mundo. A tática da finta repousa justamente na sagaz percepção desse abismo, usando a seu favor a distância entre consciência e movimentos efetivos do corpo.

O conto de Kleist chega ao fim, retomando a tese inicialmente apresentada pelo bailarino e elucidando a vantagem das marionetes sobre os homens. É que, no mundo orgânico, quanto mais fraca e obscura se torna a reflexão, mais a graça, magnífica, resplandece. Ou seja: entre reflexão e graça há um jogo não apenas de opo‑sição, mas de estreita correlação, em um movi‑mento, por assim dizer, pendular: enquanto uma sobe, a outra necessariamente decresce. Daí o fascínio do bailarino pelas marionetes. Apenas em um manequim, radicalmente des‑provido de consciência, ou em Deus, “consci‑ência infinita” (Kleist, 1997: 39), a graça pode ser recuperada. Resta procurar restituí ‑la no corpo que dança, a partir de uma experiência que desmonta as armadilhas do corpo próprio, o que requer, segundo o texto de Kleist, uma “passagem pelo infinito”:

“... assim como [...] a imagem de um espe‑

lho côncavo, após afastar ‑se ao infinito, reapa‑

rece de repente diante de nós: assim também

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sucede que, quando o conhecimento como que

passou por um infinito, reencontra ‑se a graça.”

(Ibidem, tradução alterada).

A leveza e a graça da dança dizem respeito a esse namoro com o infinito, quer no sentido da virtualidade, quer no sentido do atraves‑samento dos espelhos. Como mostrou Gil, a virtualidade – entendida a partir de Bergson como movimentos reais, embora não visíveis (ou “atuais”) – endereça os movimentos dan‑çados para o infinito, o que lhes empresta leveza. A ultrapassagem das imagens no espe‑lho da consciência é, por outro lado, condição de possibilidade para o reencontro da graça, a ser reaprendida pelos homens. Mas, para isso, é preciso fazer com que a consciência passe pela prova do infinito, o que implica sua mutação radical. Como o texto de Kleist afirma, se nas marionetes ela está ausente, em Deus, em sua coincidência com a infinitude, ela se encon‑tra superada. Em um último movimento, resta ainda tentar afinar a discussão proposta por Kleist, no início do século XIX, pelo diapasão do que o pensamento contemporâneo tem extraído das experimentações em dança.

Comentando certas experiências coreográ‑ficas propostas por Steve Paxton, José Gil lem‑bra que, por meio de vários exercícios, Paxton buscava descentrar a consciência reflexiva para propiciar a emergência de uma consciência do corpo. Assim, o coreógrafo fazia com que a consciência perdesse seus pontos de referência habituais, constituindo uma espécie de cons‑ciência gruyère, esburacada, tal como o famoso queijo suíço (Gil, 2001: 139 ‑140). A essa noção e experiência de “consciência do corpo” cor‑responde uma espécie – diz Gil – de “corpo de consciência”, já que “a imanência da consciên‑cia ao corpo emerge à superfície da consciência

e constitui doravante o seu elemento essencial” (Idem: 134).

Apropriando tropicalmente esse achado metafórico, podemos considerar que a consci‑ência reflexiva, a “consciência ‑de”, que marca grande parte de nossa tradição filosófica e nos‑sas práticas habituais, é uma espécie de queijo coalho do Nordeste do Brasil – maciço, denso, compacto. Só esburacando essa instância firme, “curada” e enrijecida, se pode efetivamente começar a dançar, esposando as forças da vida. Resta saber se graça e leveza, aliadas ao movi‑mento, são buscas que comparecem em certas experimentações coreográficas contemporâneas que parecem negar ou curtocircuitar o próprio movimento. O que equivale a indagar qual seria a relação de nosso tempo com o corpo ‑alma e o infinito. Questões inquietantes para nosso tempo, que o texto de Kleist conflagra e sugere.

Referências bibliográficas

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Numa entrevista para o Magazine littéraire, conduzida por Raymond Bellour e François Ewald, em 1988, por ocasião da publicação de Le pli, Leibniz et le

baroque, Gilles Deleuze concluía que em todos os seus livros procurou escrever sobre a natureza do conceito de aconteci‑mento, “o único”, acrescentava, “capaz de destituir o verbo ser e o atributo” (Deleuze, 1990: 194). Por essa mesma razão, Deleuze fez questão em afastá ‑lo de dois domínios específi‑cos, senão previsíveis pelo menos espectáveis: o domínio da história, aproximando ‑o assim da noção nietzscheniana de intempestivo e o domínio dos meios de comunicação, produ‑tor de narrativas lineares e fechadas a par de uma linguagem puramente espectacular.

Sobre a primeira clivagem, acontecimento/história, o autor esclarece que “o que a história apreende do aconteci‑mento é a sua efectuação no estado de coisas, mas o acon‑tecimento no seu devir escapa à história. A história não é experimentação, ela é apenas o conjunto de condições quase negativas que tornam possível a experimentação de qual‑quer coisa que se furta à história” (Ibidem). Porém, o facto de o acontecimento não pertencer à história enquanto dis‑ciplina, não faz dele uma promessa que transcende o real. Pelo contrário, ele concretiza ‑se sempre numa ocorrência histórica e inscreve ‑se no quotidiano, nas cidades e nas ruas, para parafrasear o autor, escapando contudo às condições e causas que o suscitam.

Mas se o acontecimento não deve ser tomado por um evento histórico, também não deverá sê ‑lo por um evento mediático, difundido pelos meios de comunicação. “Em pri‑meiro lugar, os media apresentam frequentemente o princí‑pio e o fim, enquanto o acontecimento mesmo que breve, mesmo instantâneo, continua. De seguida, eles querem o espectacular, enquanto que o acontecimento é inseparável

dos tempos mortos. (...) O mais simples acontecimento faz de nós um vidente, ao passo que os media transformam ‑nos em simples obser‑vadores passivos, ou pior que isso em voyeuristas” (Idem: 218).

Neste sentido, para Deleuze, apenas a arte, a par naturalmente da filosofia, poderá captar o acon‑tecimento. Tal é o exemplo da obra ficcional de Lewis Carroll que lhe permitiu desenvolver em Lógica do Sentido, publicado em 1969, um pen‑samento sobre este conceito, recor‑rendo ao estoicismo e à filosofia de Leibniz para analisar a sua estrutura e o modo como esta afecta as ordens do tempo e do sentido.

Da estrutura dupla

De acordo com Deleuze, a grande descoberta estóica, ao mesmo tempo contra os Pré ‑Socráticos e contra Platão, foi “a autonomia da super‑fície, independentemente da altura e da profundidade; contra a altura e a profundidade; a descoberta dos acontecimentos incorporais, senti‑dos ou efeitos, que são irredutíveis aos corpos profundos assim como às Ideias altas” (Deleuze, 2003: 136). Os

* Crítica de arte independente. Mestre em Ciências da Comunicação, variante Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

O acontecimento em Gilles Deleuze

soFia NuNEs*

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estóicos souberam portanto criar uma separação, já não entre o sensível e o inteligível ou no inte‑rior do sensível entre as substâncias materiais e a sua composição elementar, mas entre os corpos e a superfície incorporal. De um lado, “os cor‑pos, com suas tensões, suas qualidades físicas, suas relações, suas acções e paixões e os ‘estados de coisas’ correspondentes”, de outro “os efeitos incorporais” não qualificáveis e sem propriedades físicas, infinitivos como os verbos que resultam dos corpos, das suas acções, misturas e paixões (Idem: 5 ‑6).

Ora, para o autor, esta distinção não só é constitutiva do conceito de acontecimento, como também organiza a sua estrutura num movimento duplo. “Em todo o acontecimento existe realmente o momento presente da efec‑tuação, aquele em que o acontecimento se encarna num estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que designamos dizendo: eis aí, o momento chegou; e o futuro e o passado do acontecimento não se julgam senão em fun‑ção deste presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna” (Idem: 154). Mas, por outro lado, há em cada acontecer, “o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo o presente, porque ele é livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré ‑individual, neutro, nem geral, nem particular, eventum tantum...; ou melhor, que não há presente além daquele do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado ‑futuro, formando o que é preciso chamar a contra ‑efectuação” (Ibidem). Daí que Deleuze considere não existirem acontecimentos privados e outros colectivos.

“Que acontecimento privado não tem todas as suas coordenadas, isto é, todas as suas singu‑laridades impessoais sociais?” (Idem: 155) A res‑posta encontra vários exemplos e, em parti‑cular, o da morte. Não a morte enquanto facto, entenda ‑se, reduzida ao estado de coisas, mas como Maurice Blanchot a pensou no seu livro L’espace littéraire, 1955, recorda o autor, a morte enquanto um Fora, puro virtual que comporta aquela mesma ambiguidade. Interpretando Blan‑chot, Deleuze considera então que “a morte é ao

mesmo tempo o que está em relação extrema ou definitiva comigo e com o meu corpo, o que é fundado em mim” (Idem: 154), ou seja a dimen‑são do acontecimento que se efectua, “mas tam‑bém o que é sem relação comigo, o incorporal e o infinitivo, o impessoal, o que não é fun‑dado senão em si mesmo” (Ibidem) que forma o momento da contra ‑efectuação, o outro lado do acontecimento. “Cada acontecimento é como a morte, duplo e impessoal em seu duplo” (Ibi‑dem). Parte do momento em que se efectua, se torna presente e se relaciona com o sujeito de enunciação Eu, para dele escapar e dirigir ‑se ao “On”, “à quarta pessoa do singular”, acedendo a um modo de transformação que se desdobra entre futuro e passado e onde “tudo é singular e por isso colectivo e privado ao mesmo tempo, particular e geral, nem individual nem univer‑sal” (Idem: 155).

Apesar de Deleuze valorizar a contra‑efec‑tuação, não deixa todavia de estabelecer uma complementaridade entre os dois momentos, evitando assim qualquer dualidade esquemática, na medida em que cada acontecimento produz‑‑se nos corpos ao mesmo tempo que chega de um Fora, de uma exterioridade incorporal que recai sobre a sua própria efectuação, dominando ‑a. A este plano exterior o autor acabaria mais tarde por chamar de plano de consistência por oposi‑ção ao plano da organização que diz respeito ao fundamento, à estrutura e ao desenvolvimento das organizações formadas. Em última instância este seria o plano da Lei e da regulação: “com um princípio escondido que dá a ver aquilo que se vê, que espera aquilo que se espera..., etc., que mostra a cada instante que o dado é o dado, sob tal estado, a tal momento” (Deleuze, 1980: 325). Contrariamente, o plano de consistência, que podia mesmo ter recebido o nome de não‑‑consistência, segundo o próprio autor, consiste num plano não dado, ou antes, que se afirma necessariamente ao mesmo tempo que se dá, através da contingência, distinta das formas essenciais e dos sujeitos determinados. “Nele não existem mais formas ou desenvolvimentos de formas; nem sujeitos e nem formações de sujeitos. Não existe mais estrutura nem origem.

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Existem apenas relações de movimento e de descanso, de rapidez e lentidão entre elementos não formados. Existem apenas ecceidades, afec‑tos e individuações sem sujeitos que constituem os agenciamentos colectivos” (Ibidem). Sob o plano de consistência, os corpos passam então a definir ‑se por um modo de individuação bastante diferente daquele de uma pessoa, de um sujeito, de uma coisa ou substância, nomeadamente pela ecceidade1. Ela designa portanto um acon‑tecimento, uma individuação que afirma para si a força de um agenciamento de intensidades em detrimento da forma: “Um grau de calor é um grau perfeitamente individuado que não se confunde com a substância ou o sujeito que a recebe. Um grau de calor pode compor ‑se com um grau de branco, ou com outro grau de calor, para formar uma terceira individuação única que não se confunde com a de um sujeito” (Idem: 309 ‑10). Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data, outros exemplos dados em Mille Plateaux, 1980, são assim entendidos como ecceidades, porquanto estarem em relação de movimento, de agenciamento, de poder afectar e ser afectado, determinando a transformação das coisas e dos sujeitos. Neste sentido, enquanto acontecimentos, as ecceidades inscrevem ‑se nos corpos inventando ‑os, do mesmo modo que um corpo não cessa de devir nos agenciamentos colectivos, graus, intensidades, acidentes, liga‑dos a um instante.

Do tempo bifurcante

A par da destituição das formas e sujeitos, a estrutura do acontecimento opera uma outra ruptura que se prende com o tempo e sua deter‑minação cronológica. Vimos anteriormente que os acontecimentos, através da contra ‑efectuação, excedem as suas manifestações presentes,

oscilando entre o passado e o futuro, dimensões distintas que aqui se tornam e devêm indiscer‑níveis na sua coexistência simultânea. A coinci‑dência destes dois planos temporais surge desde logo formulada por Deleuze no primeiro capí‑tulo de Lógica do Sentido quando interpreta as qualidades estranhas e especiais de Alice:

“Quando digo ‘Alice cresce’, quero dizer

que ela se torna maior do que era. Mas por isso

mesmo ela também se torna menor do que é

agora. Sem dúvida, não é ao mesmo tempo que

ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo

que ela se torna um e outro. Ela é maior agora

e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no

mesmo lance, que nos tornamos maiores do

que éramos e que nos fazemos menores do que

nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um

devir cuja propriedade é furtar ‑se ao presente”

(Deleuze, 2003: 1).

Porém, não é só o presente que colapsa aqui, mas também toda a estrutura sucessiva, crono‑lógica e causal do tempo. Falamos, pois, de um tempo que reclama para si outra organização que não se explica mais pela sucessão de pre‑sentes, pela ordem do antes e depois ou da lei causa ‑efeito.

Para pensar esta temporalidade complexa, própria ao acontecer, Deleuze recupera uma segunda distinção herdeira do pensamento estóico que radica na diferença entre os termos Cronos e Aiôn. Segundo o autor, os estóicos pro‑puseram duas leituras diferentes mas simultâ‑neas do tempo: “inteiro como presente vivo nos corpos que agem e padecem, mas inteiro também como instância infinitamente divisível em passado ‑futuro, nos efeitos incorporais que resultam dos corpos” (Ibidem), separando assim o presente do passado e do futuro. Vejamos. De acordo com Cronos, esclarece o autor, só existe

1 O termo ecceidade foi introduzido por Duns Scot que renovou, no século XIV, o problema da individuação, recusando a alternativa tradicional pela matéria/pela forma e designando positivamente a singularidade individual. Mas a homenagem prestada por Deleuze ao autor da escolástica termina aí, pois se, para Scot, a ecceidade era entendida como uma individuação da forma, em Deleuze é tomada como uma individuação intensiva, móvel e própria ao acontecimento. (cf. Zourabichvile, 2005: 106 ‑107 e Lima, 2008)

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presente no tempo, sendo que o passado e o futuro dependem dele e são por si absorvidos. Esta relação de dependência provoca necessa‑riamente uma sucessão de presentes relativos uns aos outros que apenas medem a acção dos corpos ou das causas, afirmando ‑se como presen‑tes corporais. Apesar destes presentes se encai‑xarem, remetendo ‑se reciprocamente, existe porém nesta mesma rede corpos mais poderosos e presentes maiores, divinos, responsáveis pela “unidade das causas corporais entre si” (Idem: 167). Contudo, “o maior presente não é de forma nenhuma ilimitado: pertence ao presente delimi‑tar, ser o limite ou a medida da acção dos corpos, ainda que fosse o maior dos corpos ou a unidade de todas as causas (Cosmos)” (Idem: 168). Como tal, a Cronos cabe regular todos os presentes, vas‑tos ou profundos.

Por sua vez, segundo o Aiôn “somente o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. No lugar de um presente que absorve o passado e o futuro, um futuro e um passado que dividem a cada momento o presente, que o subdividem ao infinito em passado e futuro, nos dois sentidos ao mesmo tempo” (Idem: 169). Assim, se o primeiro diz respeito ao devir ‑louco das profundidades, das paixões, precipitações ou explosões, o segundo refere ‑se ao devir das super‑fícies que abandona o presente distinguindo ‑se dele. E “enquanto Cronos é inseparável dos cor‑pos que o preenchiam como causas e matérias, Aiôn é povoado de efeitos que o habitam sem nunca preenchê ‑lo” (Idem: 170), efeitos esses que se denominam de incorporais ou instantes. Para Deleuze, o Instante surge como a instância paradoxal e, como tal, responsável tanto pela subdivisão do presente naqueles dois sentidos, como ainda pela selecção de singularidades extra‑ídas do presente e dos corpos que duplamente projectados, no passado e no futuro, formam os elementos constituintes do acontecimento puro. Assim, o acontecimento foge do presente para se afirmar enquanto entre ‑tempos subdividido ao infinito. Sem duração precisa, ele é então simultaneamente “o menor tempo, menor que o mínimo de tempo contínuo pensável, porque ele divide ‑se em passado próximo e futuro iminente

e também o tempo mais longo, mais longo que o máximo de tempo contínuo pensável, porque ele não cessa de ser subdividido pelo Aiôn que o torna igual à sua linha ilimitada” (Idem: 66).

De facto, a imagem da linha adoptada neste caso para representar a experiência do tempo do Aiôn adquire especial relevância quando con‑frontada com a figura do círculo, equivalente ao movimento do Cronos e tão problematizada pelo autor. Quem melhor terá concebido para Deleuze a ideia de tempo e realização histórica ancora‑dos à figura do círculo foi sem dúvida a filosofia de Hegel, fundada nos princípios da representa‑ção e identidade. Em Hegel, “todos os começos possíveis, todos os presentes se repartem no cír‑culo único incessante de um princípio que funda e que os compreende no seu centro assim como os distribui sobre a sua circunferência” (Deleuze, 2000: 435). Estamos perante um sistema mono‑cêntrico, cujo sentido último ou fundamento consiste, como o autor explica, em representar o presente, i.e., fazer com que o presente venha à presença e nela se instale, coexistindo com outros presentes em círculos, totalidades infi‑nitas e fechadas sobre si mesmas que se auto‑‑representam e excluem do tempo a diferença.

Tal determinação encontra uma crítica pro‑funda em Deleuze, para quem o tempo não pode ser pensado senão liberto do movimento circular do presente e dos constrangimentos da representação, para se igualar à sua forma não pressuposta, à sua forma emancipada. Este é o tempo fora dos eixos, diz o autor apropriando ‑se de Hamlet, “o tempo enlouquecido, saído da curvatura que um deus lhe dava, liberado da sua figura circular muito simples, (...) revertendo a sua relação com o movimento, descobrindo ‑se, em suma, como forma vazia e pura. O próprio tempo desenrola ‑se (...), em vez de alguma coisa se desenrolar nele” (Idem: 168) e alonga ‑se, diría‑mos, na linha do Aiôn, aí onde só habitam acon‑tecimentos.

Apesar do autor fazer uso da recta, ela não procura nenhum projecto de realização teleoló‑gica, quer tenha a História ou mesmo Deus como fins. Falamos antes de uma linha sem princípio e sem fim que se bifurca a cada momento em que

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é percorrida. Uma trama temporal múltipla que destrói o encaixe dos presentes cíclicos, lineares, contínuos e de relação causal para compreender o acaso no lugar de um objectivo último. Mas como afirmar o acaso na vida sem que este se limite a “certos pontos, abandonando o resto do seu exercício ao desenvolvimento mecânico das consequências ou à destreza como arte da causa‑lidade”? De que modo o acaso se liberta do seu “modelo moral do Bem ou do Melhor, modelo económico das causas e dos efeitos, dos meios e dos fins?” (Deleuze, 2003: 62)

Deleuze responde a partir de Nietzsche para quem o acaso não consiste numa probabilidade repartida por várias vezes, nem numa combina‑ção final desejada ou voluntária. Esse é o enten‑dimento que o mau jogador faz do acaso. “O mau jogador conta com vários lances de dados, com um grande número de lances: dispõe por isso da causalidade e da probabilidade para atingir uma combinação que considera desejável; esta com‑binação é por ele considerada como um fim a atingir, escondido atrás da causalidade” (Deleuze, 2007: 31). O acaso deverá antes ser uma “com‑binação fatal, fatal e amada, amor fati” (Ibidem), nunca uma necessidade. Neste sentido, ele surge como objecto que deve portanto ser afirmado de uma só vez, sem hesitações, a par da sua imprevi‑sibilidade brutal. Consequentemente, um acaso assim não deverá ter regras, não deverá compre‑ender vencedores nem vencidos, nem ser con‑clusivo. Falamos de um ponto desconhecido que, sendo afirmativamente desejado, se subdivide e desloca constantemente sobre a linha do Aiôn, o jogo ideal de Lógica do Sentido.

Ao comentar as aventuras de Alice, Deleuze identifica nelas um tipo de jogo raro, como a corrida a Caucus “na qual damos partida quando quisermos e na qual paramos de correr a nosso bel ‑prazer”, ou o jogo de críquete “no qual as bolas são ouriços, os tacos são flamin‑gos rosados, os arcos, por fim, soldados que não param de se deslocar do começo ao fim da partida” (Deleuze, 2003: 61). Qualquer um dos dois desconstrói o sistema que normalmente regula os jogos mais conhecidos (em última instância a ordem no mundo) e partilha os

mesmos princípios orientadores: a eles não preside nenhuma regra, cada jogada afirma todo o acaso, ramificando ‑o em singularidades que alteram permanentemente o seu rumo, enquanto o transformam em ponto aleatório máximo de distribuição nómada.

Ora, neste jogo ideal se define então o abismo temporal do acontecimento, o qual se situa sem‑pre entre o que é que se vai passar? e o que é que acabou de se passar? Como formulou Deleuze, “o angustiante do acontecimento puro está jus‑tamente em que ele é alguma coisa que acaba de ocorrer e que se vai passar, ao mesmo tempo, nunca alguma coisa que se passa” (Idem: 65).

Do sentido paradoxal

Todavia, não é possível pensar a estrutura do acontecimento sem compreender igualmente as suas implicações na construção do sentido que correm a par do desarranjo cronológico do tempo. Entre os acontecimentos e a linguagem existe uma relação fundamental, já que são enunciados ou expressos por meio de proposi‑ções. Mas nem todas as relações na proposição servem ou apreendem os efeitos que circulam na linha do Aiôn. Os acontecimentos não podem, por exemplo, ser expressos através da designa‑ção, relação que coloca as palavras ou imagens a representar o estado de coisas, através da mani‑festação, enunciado dos desejos e crenças que correspondem à proposição e agem por causa‑lidades nem através da significação, entendida aqui como relação subordinada entre a palavra ou imagem e conceitos gerais (cf. Idem: 13 ‑15). Só o sentido, o expresso da proposição, “irredutí‑vel aos estados de coisas individuais, às imagens particulares, às crenças pessoais e aos conceitos universais e gerais” (Idem: 20) pode efectiva‑mente enunciar os acontecimentos. Importa, no entanto, acrescentar a este respeito que o sentido próprio ao acontecimento é de natureza proble‑mática. Ele é formado por singularidades que se distribuem num campo constituído apenas por problemas e que advêm como “acontecimentos topológicos aos quais não está ligada nenhuma

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direcção” (Idem: 107), nem qualquer implica‑ção ou mesmo conclusão, tal como sucedia nos jogos de Alice.

Porém, a complexidade do conceito de acon‑tecimento intensifica ‑se sobretudo se enten‑dermos que não existe um só sentido para um mesmo acontecimento: “há sempre uma plurali‑dade de sentido, uma constelação, um complexo de sucessões, mas também de coexistências, que faz da interpretação uma arte” (Deleuze, 2007: 4). Assim, se o sentido não se acha nunca num dos dois campos de uma dualidade entre diferen‑tes signos, é sua função, nesse caso, estabelecer uma articulação da diferença entre aqueles dois e desenvolver ‑se numa série de paradoxos ima‑nentes que desfazem, por sua vez, os princípios de identidade e de reconhecimento, devolvendo ao próprio sentido a sua máxima potência.

Através do paradoxo, o sentido desencadeia uma destruição dupla que conduz à falência do bom senso e do senso comum; faculdades que permitem construir a imagem do Eu, do Mundo, de Deus e da Unidade. Ora, estas faculdades de recognição não pertencem de facto ao sentido do acontecimento e vejamos porquê. Cabe ao bom senso ser a afirmação de uma só e única direcção, indo do mais diferenciado ao menos diferenciado, do particular ao regular, do passado ao futuro, cumprindo assim a sua função que é a de previsão (cf. Deleuze, 2003: 78 ‑79). Se o bom senso prevê através do tipo de direcção que conhece, o senso comum identifica graças à sua faculdade de relacionar uma diversidade qual‑quer à forma do Mesmo. Ele é a unidade através da qual um mesmo Eu reconhece um mesmo objecto, viabilizando a concordância absoluta entre o sujeito e o mundo: “é um só e mesmo eu que percebe, imagina, lembra ‑se (...) é o mesmo objecto que vejo, cheiro, saboreio...” (Idem: 80). Entre ambos existe, contudo, uma complemen‑taridade que os reforça, pois o bom senso não consegue fixar nenhuma direcção sem que esta não se identifique a uma forma de permanência de um sujeito e, inversamente, a faculdade de identificação do senso comum não existiria sem uma instância capaz de determiná ‑lo segundo uma só direcção.

Já o sentido paradoxal comporta e afirma várias direcções e possibilidades, quer temporais quer de significação, mesmo que contraditórias, destruindo as funções de previsão e identificação. Por essa razão ele diz ‑se não ‑senso, mas porque se encontra numa relação interior com o sentido é também aquele que devolve sentido aos signos de cada série, comportando uma definição per‑feitamente objectiva não obstante a dualidade que a caracteriza.

Deste modo, ao ser povoado por singularida‑des dependentes de séries divergentes e relacio‑náveis entre si, o acontecimento articula ‑se com o sistema das incompossibilidades. De acordo com Deleuze, o primeiro teórico das incompati‑bilidades alógicas e, por isso, o primeiro grande teórico do acontecimento, foi Leibniz que, atra‑vés da sua tese sobre o compossível e o incom‑possível, ultrapassou os princípios clássicos orga‑nizadores do sentido, do tipo verdadeiro, falso, igual, diferente, etc. A noção de compossibilidade define ‑se “de uma maneira original, a um nível pré ‑individual, pela convergência das séries que formam as singularidades de acontecimentos estendendo ‑se sobre linhas ordinárias” (Idem: 177). Ela caracteriza ‑se assim pela continuidade de singularidades, tendo como critério último a convergência das séries. Podemos então dizer que os acontecimentos são compossíveis quando as séries que se organizam em torno das suas sin‑gularidades se prolongam umas nas outras em todas as direcções. Por sua vez, a incompossibi‑lidade define ‑se pela divergência de tais séries na vizinhança das singularidades componentes. Os acontecimentos são nesse caso incompossíveis logo que as suas séries entrem em divergência e digam respeito a mundos possíveis mas, toda‑via, distintos.

No entanto, Deleuze reconhece uma limita‑ção em Leibniz uma vez que o autor se serve da regra da incompossibilidade para excluir os acon‑tecimentos uns dos outros, atribuindo um uso negativo à divergência que os distingue. A partir da sua teoria, “a representação pode até tornar ‑se infinita, mas não adquire o poder de afirmar a divergência e o descentramento; tem necessidade de um mundo convergente, monocentrado” e de

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fazer assim com que “o infinito seja penetrado pela continuidade de semelhança, pela relação da analogia e pela oposição de predicados” (Deleuze, 2000: 421 ‑22).

É aqui que Deleuze opera um desvio sobre o regime co ‑possível leibniziano, transformando a divergência das séries ou a disjunção dos mem‑bros em objectos de afirmação. Como o autor explica, não se trata mais de uma identidade de contrários, ou seja, de identificar dois contrá‑rios ao mesmo, mas antes reclamar a sua distân‑cia como aquilo que os relaciona um ao outro enquanto diferentes. A esta operação Deleuze chamou de síntese disjuntiva, entendendo ‑a como um vector que atravessa as séries hetero‑géneas de acontecimentos e as afirma na sua dis‑tância paradoxal. Neste sentido, duas coisas dis‑tintas afirmam ‑se de uma só vez, na medida em que a sua diferença é ela própria desejada, pelo que a incompossibilidade torna ‑se consequente‑mente um meio de relação e não mais de exclu‑são. A síntese disjuntiva vem então permitir um sistema de comunicação entre acontecimentos‑‑diferenças, onde uma diferença remete para outra diferença, e assim por diante, numa cadeia

sem fim exprimindo ‑se no seu em ‑si, no em ‑si da diferença, como intensidade irredutível ao conhecimento que apenas exclui da produção de sentido o verbo ser e o atributo, abrindo a experiência a infinitas possibilidades.

Referências bibliográficas

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No dealbar do século XXI, escreve Adelino Gomes, assistiu ‑se à emergência de um novo sistema medi‑ático. Novo nas tecnologias em que passou a apoiar‑

‑se. Novo nas formas de mediação e no tipo de apropriação que possibilitou.

Exemplo flagrante desta mudança de paradigma comuni‑cacional: as eleições para a Presidência dos Estados Unidos, de 2008. Segundo uma sondagem do Pen Research Center, um quarto dos norte ‑americanos seguiu regularmente pela Internet a campanha então em curso. Prática mais acen‑tuada, ainda, junto dos eleitores com menos de 30 anos onde o índice de utilização da Internet ultrapassou os 40%. Internet articulada com o telemóvel constituiu, aliás, o dis‑positivo explorado pelo aparelho oficial da campanha do candidato Obama para mobilizar legiões de jovens. De norte a sul do país, de cidade em cidade, a chegada da caravana era precedida de múltiplas iniciativas levadas a efeito por grupos de jovens recrutados localmente. Ei ‑los, os jovens, assim convertidos em principais promotores do candidato que sentiam próximo. Com quem até, com uma pontinha de sorte, podiam mesmo dialogar. Via telemóvel, ou via Inter‑net. Jovens dispostos em rede que não cessava de se alargar. Porque cada jovem indicava outros jovens. De outras cidades. Prontos a embarcar na aventura.

Adelino Gomes evoca, a propósito, um estudo publicado por Manuel Castells poucos meses depois do referido acto elei‑toral, em que o sociólogo catalão atribui a vitória de Obama à sua capacidade de adaptar o modelo clássico americano de organização comunitária, ao contexto criado pelas novas tec‑nologias de informação e comunicação. Aproveitando a fami‑liaridade dos jovens com as novas tecnologias, acrescenta Adelino Gomes citando Castells, Obama estabeleceu “uma constante e personalizada relação com milhões de apoiantes”.

O conceito de “comunicação de massas”, nota ainda Adelino Gomes, adquiriu, assim, um sentido pleno. Isto é, a comunicação passou a ser autenticamente de “massas” já que

o termo deixou de designar, apenas, aqueles que são objecto da comuni‑cação, para incluir, também, aque‑les que dela são sujeito. As “mas‑sas” como intervenientes activos tanto na esfera de recepção, como na esfera de produção e distribuição da comunicação. Mudança fértil de consequências, esta: nas formas de estruturação e comercialização dos media tradicionais e na reformula‑ção de conceitos fundamentais do jornalismo, nomeadamente os con‑ceitos de gatekeeper/gatekeeping e de audiências televisivas que Adelino Gomes, no seu artigo, analisa deta‑lhadamente.

O gatekeeper, enquanto seleccio‑nador de factos a mediatizar, deixa de estar confinado ao binómio jorna‑lista/empresa de comunicação social para se alargar a todos os que acedem ao fluxo multidireccional da infor‑mação. Ou seja, como muito bem salienta Adelino Gomes, recorrendo a Rosengren, “acesso” e gatekeeping tornam ‑se os “dois lados da mesma moeda”. Por sua vez, o “Mr. Gates televisivo”, feliz antonomásia usada por Adelino Gomes para designar o produtor/distribuidor de conteúdos destinados a uma audiência homo‑génea e passiva que tudo absorveria sem hesitação, confronta ‑se, agora, com o “zaper gated – telespectador” que, munido de um telecomando,

APRESENTAÇÃO

Internet e participação cívica

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se passeia pelos múltiplos canais numa presença “fugaz” e “intersticial” que “contém ameaças latentes, susceptíveis de levar a alterações na programação e na edição noticiosa”.

O novo paradigma assim descrito supõe, no entanto, condições de aplicabilidade – econó‑micas, políticas, sociais, culturais… Daí que, o que sucedeu nas eleições presidenciais norte‑‑americanas, de 2008, quanto ao papel das novas tecnologias de informação e comunicação, esti‑vesse, em grande medida, ausente das legislativas portuguesas ocorridas um ano mais tarde. Foi o que apurou Filipa Seiceira num estudo em que par‑ticipou sobre “Os Deputados Portugueses em Pers‑pectiva Comparada. Eleições, Liderança e Repre‑sentação Política”, integrado na investigação internacional The Comparative Candidate Survey.

Interrogados sobre as formas de campanha eleitoral utilizadas, apenas 19,1% dos candida‑tos que responderam a um inquérito construído para o efeito, indicaram ter disposto de um site em nome próprio – meio de campanha que surge em quarto lugar, atrás da participação em reuni‑ões sociais (63,6% de respostas), atendimento personalizado de eleitores (34,2%) e distribuição de panfletos (29,6%). Desagregando o total dos utilizadores da Internet, nessas mesmas eleições de 2009, por modalidades de utilização, Filipa Seiceira verificou que candidatos e formações políticas deram clara primazia ao e ‑mail como instrumento para divulgar iniciativas de cam‑panha junto de um público previamente iden‑tificado como alvo – realização de comícios e de arruadas, declarações políticas dos candidatos, etc. Em suma, prevaleceu uma informação linear do partido ou do candidato, para o eleitor. De fora, ou com reduzida expressão, ficaram outras modalidades como, por exemplo, os chats, mais vocacionados para relações interactivas.

Conclusão da autora: a utilização escassa e parcial da Internet, nas eleições legislativas de 2009, em Portugal, não alterou significativa‑mente a natureza destas que mantiveram uma estrutura top down de comunicação política, para dizer como Baringhorst, isto é, mantiveram um cariz tradicional, minimizando a efectiva partici‑pação do cidadão eleitor e procurando, isso sim,

seduzi ‑lo/convencê ‑lo, com o objectivo exclusivo de conquistar o seu voto.

É verdade, insiste Filipa Seiceira, que a Inter‑net permite a transmissão de informação sem mediação nem qualquer tipo de controle externo pelo que os partidos ficam, assim, ao abrigo de qualquer distorção das propostas e dos princípios ideológicos que emitem. É igualmente verdade que a Internet reduz consideravelmente os custos de difusão de mensagens, por comparação com os media tradicionais (embora a construção e manu‑tenção de um site suficientemente apelativo exija recursos financeiros não despiciendos). Mas não é menos verdade, reconhece Filipa Seiceira, que a Internet favorece uma maior mobilização dos eleitores incitando ‑os, até, a intervir mais direc‑tamente na campanha, ajudando ‑a financeira‑mente com doações, participação em leilões, etc.

Porquê, então, este alheamento?A resposta encontrada por Filipa Seiceira é

categórica. Todos os estudos levados a cabo, em Portugal, demonstram que o consumo da Inter‑net varia em função da faixa etária, do grau de escolaridade e do estatuto sócio ‑profissional. Globalmente, a taxa de utilização ronda os 44% e a esmagadora maioria dos utilizadores centra ‑se no envio ou recepção de mensagens assim como em programas de entretenimento. Poucos são os que procuram, na Internet, informações de natu‑reza política. Ora, o objectivo dos partidos e dos candidatos em campanha consiste em, por um lado, chegar ao maior número possível de elei‑tores e, por outro, atingir os menos convictos, mais sensíveis, por conseguinte, a estratégias de persuasão. O uso da Internet, porque atinge um público reduzido e potencialmente mais infor‑mado, logo mais determinado quanto à orienta‑ção do respectivo voto, apresenta ‑se pois como pouco rentável…

Poder ‑se ‑á assim dizer que o comportamento de candidatos e partidos políticos portugueses, aparentemente avaros quanto às novas tecnolo‑gias de informação e de comunicação, reflecte o grau de “exclusão digital” da população. Aquela exclusão que, segundo Raquel Paiva e Muniz Sodré, impede o desenvolvimento de uma nova concepção de urbe como lugar de exercício de

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uma democracia participativa caracterizada pela transparência das actividades legislativa, execu‑tiva e judicial, assim como pela intervenção da sociedade a todos os níveis da administração pública, “partilhando ideias e experiências”.

Mas, prosseguem os mesmos autores, só usa computadores quem os pode usar. Só acede à Internet quem a ela pode aceder. Poder que é uma “chance” reservada aos que alcançaram uma dimensão educacional “imprescindível a um novo tipo de socialização e a novas modalidades de participação na força de trabalho”. “A apren‑dizagem é a nossa própria vida”, considera Meszá‑ros, citado por Raquel Paiva e Muniz Sodré, “desde a juventude até à velhice, de fato até à morte, ninguém passa dez horas sem nada aprender”.

Numa digressão transdisciplinar, da socio‑logia à filosofia, passando pela psicologia e pela

mediologia, os dois professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro debruçam ‑se sobre o conceito de “aprendizagem” ou, mais generica‑mente, sobre o conceito de “saber”. Um “saber” ancorado, insistem, num “crer”. Porque, alegam, não há “saber” sem “crer”. E declaram, citando, a propósito, Wittgenstein: “para começarmos a crer nalguma coisa, é preciso que funcione aquele ‘meio vital’ dos argumentos que não consiste numa proposição isolada mas num ‘inteiro sis‑tema de proposições’ mutuamente apoiadas, de tal maneira que ‘a luz se expanda gradualmente sobre o todo’”.

Reclamemos, então, esta “luz [que] se expanda gradualmente sobre o todo”. Que a todos ilu‑mine, por igual.

JR

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Só se aprende no comum

Seja qual for o nome que se atribua ao comum – lugar, local, comunidade – num meio vital determinado, é importante compreendê ‑lo como uma vinculação cons‑

titutiva ao se pesquisar os mecanismos básicos da aprendi‑zagem. O que se entende como “mundo da vida” comporta tanto esse meio quanto a aprendizagem, nos termos de Para‑celso: “A aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juven‑tude até a velhice, de fato quase até a morte: ninguém passa dez horas sem nada aprender” (Meszáros, 2005: 15).

Isso se deve ao fato de que a coesão comunitária está assentada em crenças partilhadas e valores relativos a deter‑minações (bem/mal, justo/injusto, etc.) necessárias à vin‑culação intersubjetiva. Observa Debray que “o universo inter subjetivo é regido por crenças, inverificáveis; o universo objetivo, por saberes, refutáveis (em geral). O primeiro é o domínio do mito, da tese, da opinião, da doutrina, etc.; o segundo, do resultado, da lei, da descoberta, da demons‑tração” (Debray, 1993: 28). Todavia, ele está ciente de que o poder da crença não se acaba; sabe, como Paul Valéry, que “toda estrutura social está baseada na crença ou na con‑fiança” ou, como Hobbes, que até mesmo “governar é levar a acreditar”. O mesmo ocorre com o saber, que jamais se fun‑damenta em si mesmo, e sim na aprovação que lhe é dada pela crença, como bem vira Fichte: “A crença não é o saber, mas a decisão da vontade de dar ao saber seu pleno valor”.

Essa instância vinculativa ou meio vital se constitui pela partilha de um lugar comum construído pela identidade cole‑tiva que é uma ficção destinada a cimentar afetiva e ideo‑logicamente a unidade do grupo. Dizer que a identidade é uma ficção é afirmá ‑la como ilusória (por ser um recurso que acena como uma estabilidade de sentido, quando na prática

o sentido do humano é instável e movediço), embora tendo em vista que a ilusão é capaz de gerar efeitos de realidade.

Um desses efeitos de realidade é o preconceito, entendido, em sentido lato, como uma totalidade plausí‑vel (apesar do freqüente irraciona‑lismo) de julgamentos que serve de base para que possamos crer em alguma coisa e, deste modo, apren‑der. Sustenta Wittgenstein: “Nós não aprendemos a prática do julgamento empírico, aprendendo regras; o que nos é ensinado são julgamentos, assim como seu laço com outros jul‑gamentos” (Wittgenstein, 1987: 57). O pensador, para quem o trabalho filosófico consiste essencialmente em elucidações, está referindo ‑se ao preconceito como parte de toda operação de conhecimento, do modo como adquirimos um saber qualquer, e não de preconceito em sentido negativo como base para a formação das discriminações sociais ou do racismo.

Especulando sobre como chega‑mos a dizer que sabemos ou temos certeza de alguma coisa, ele mos‑tra que “toda verificação do que se admite como verdade, toda confir‑mação ou invalidação acontece no

* Professores da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Investigadores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Educação, mídia e espaço social

raQuEl Paiva E MuNiz sodré*

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interior de um sistema (...) O sistema não é tanto o ponto de partida dos argumentos quanto o seu meio vital” (Idem: 51). Por exemplo, o adulto que diz a uma criança já ter estado em determinado planeta. Crédula ou confiante na autoridade da fonte, a criança rejeitaria a princípio outros argu‑mentos contrários e, apenas diante de uma insis‑tência grupal, poderia terminar se convencendo da impossibilidade de tal viagem. Wittgenstein indaga então se a reiteração por parte de um meio vital não é exatamente a maneira de se ensinar uma criança a crer ou não crer em Deus, e daí, a partir de qualquer uma das crenças, se produzi‑rem razões aparentemente plausíveis.

O pensador não está atribuindo qualquer valor cognitivo à estética (entendida como dimensão do sensível e por ele identificada à ética), mas a sua argumentação aproxima ‑se da estesia lato sensu, como modo ampliado de apre‑ender o mundo. Na terminologia antropológica corrente, esse meio vital equivale a ethos, enten‑dido como consciência viva do grupo que impõe o sentido de costume enquanto maneira regular ou mecânica de agir. Já no círculo discursivo da filosofia, impõe ‑se o termo hexis, que também significa costume, mas sem a idéia de automa‑tismo do ethos, portanto, costume como praxis ou prática de ações com a disposição voluntária e racional para atos justos e equilibrados.

A educação em seus patamares elevados tem a ver com hexis e praxis. Mas em sua base está o ethos grupal, ou seja, a vinculação comunitária que responde pela formação das crenças. Por isso, diz Wittgenstein que, para começarmos a crer em alguma coisa, é preciso que funcione aquele “meio vital” dos argumentos, que não consiste numa proposição isolada, mas num “inteiro sis‑tema de proposições”, mutuamente apoiadas, de tal maneira que “a luz se expanda gradualmente sobre o todo”.

Esse mesmo mecanismo se encontra na base de qualquer conhecimento, tal como esclarece Piaget: “O conhecimento não começa no objeto, e sim nas interações. Enquanto estas são feitas de atos isolados, não coordenados, não podemos falar de objeto nem de sujeito. À medida que as interações dão origem a coordenações, há uma

construção recíproca e simultânea do sujeito por um lado, e do objeto, por outro” (Evans, 1973: 65).

Pode associar ‑se a este argumento o conceito de faculdade mimética, que Benjamin vê como inerente à história ontogenética e filogenética do homem: “A natureza engendra semelhanças: basta pensar na mímica. Mas é o homem que tem a capacidade suprema de produzir semelhanças. Na verdade, talvez não haja nenhuma de suas funções superiores que não seja decisivamente co ‑determinada pela faculdade mimética” (Ben‑jamin, 1993: 108).

Assim, o que faz fixar ‑se uma crença – ou desenvolver ‑se um conhecimento – não é uma qualidade intrínseca de clareza da proposição, mas a solidez do sistema, capaz de estimular, desde a primeira infância, as interações e a facul‑dade mimética. Neste plano, a força da convicção é maior que a da verdade. Não se trata, portanto, de saber o que se diz saber, mas sim de aceitar como solidamente fixado aquilo que já se sabe.

E por que esse saber se fixa? Por confiança na autoridade das fontes, por aquilo que se trans‑mite de uma forma determinada no interior de um comum, um meio, tido como vital, por ser fonte de razoabilidade e afeto, logo de conven‑cimento. Wittgenstein: “É assim que eu creio em fatos geográficos, químicos, históricos, etc. É assim que eu aprendo ciências. E claro, apren‑der apoia ‑se naturalmente em crer” (Wittgens‑tein, 1987: 63). Dizer que se sabe alguma coisa equivale a ter a coisa como certa. Mas a certeza está em quem crê, logo, numa dimensão indefi‑nida ou obscura, e não no fundamento raciona‑lista e transparente da crença.

Contudo, o meio vital nada tem de “natural”. É conformado por modelos existenciais, decor‑rentes, em termos intelectuais e sensíveis, dos sistemas de pensamento, regimes de produção de verdades e ideologias coletivas, que presidem aos saberes e às crenças do senso comum, em outros termos, à comunidade.

Exemplos:

1. Modelo político ‑econômico – Parece ter ficado definitivamente claro que a

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organização econômica e social do capi‑tal é uma totalidade que se impõe ao ser humano, até mesmo nos meandros mais recônditos de sua existência. Pouco importa que, em determinadas regiões do mundo, o capitalismo não seja pleno ou ainda algo a advir. O fato é que o capital se anuncia como a lei estrutural do valor, pela qual se medem as realidades políticas e os padrões existenciais. A vida é o que o capital fez ou faz dela.

2. Modelo jurídico e moral – Não há vida social sem um conjunto de regras que fixe os limites do permitido. Quando se trata de obrigações de comportamento, contro‑ladas por uma vontade geral ou por um Estado, entra em cena a obediência às leis que modernamente decorrem do direito positivo, isto é, de um ordenamento não‑‑divino mas humano e racional. O Poder moderno encontra a sua legitimação nesse direito. Por outro lado, quando se trata da conduta humana encarada sob o ângulo da conveniência social, mas sem ameaça direta ao poder de Estado, entra em cena a moralidade como um conjunto mais ou menos ordenado de regras relativas à repulsa ou à adesão da comunidade a um determinado tipo de conduta. A moral é o tipo de moralidade que, desde os antigos gregos, foi colocada no centro da reflexão ocidental (filosoficamente determinada como ética) como um problema de eluci‑dação dos valores, enunciado em termos de consciência e de liberdade. O valor mer‑cantil do capital produz modernamente a sua lei moral.

3. Modelo antropológico – Toda a socie‑dade delineia de um modo ou de outro os contornos do modelo humano que atribuí idealmente a si mesma. Desde o Renascimento, a modernidade ocidental coloca o homem europeu no centro do seu modelo, primeiro como “civilizado” (frente aos bárbaros ou selvagens), depois

como homo oeconomicus, essa “descoberta” do século XVIII, destinada a se tornar paradigma antropológico universal, acom‑panhando ideologicamente a expansão planetária dos comerciantes, soldados e missionários cristãos.

Pode pensar ‑se em outros modelos, mas os que são aqui apontados contribuem decisiva‑mente para a formação dos saberes e crenças constitutivos do senso comum no meio vital das comunidades modernas. O que se costuma aprender na interação social e na formalização escolar deriva em grandes e pequenas linhas des‑ses modelos que se constroem progressivamente como regimes de produção de verdades ao longo dos séculos.

O meio vital urbano: a cidade é meio vital e macro ‑objeto educativo

Com efeito, a cidade sempre foi um “macro‑‑objeto”, ou seja, um artifício frente ao entorno natural e um artefato cultural estruturalmente isomórfico às relações produtivas e sociais. Dife‑rentemente do campo, esse macro ‑objeto é for‑temente educativo, na medida em que acelera as interações e desenvolve com mais agilidade as possibilidades de elevação dos ganhos do trabalho.

A cidade medieval era “asssociacionista”, no sentido da agregação por um espaço comum de natureza corporativa, onde os indivíduos man‑tinham relações de dependência frente à natu‑reza e de interdependência próxima uns com os outros. A cidade moderna, por sua vez, coincide com o mercantilismo e com a progressiva libera‑ção dos indivíduos para o comércio e o trabalho. Desde a formação do capitalismo comercial, ela é um aglomerado de indivíduos isolados, suposta‑mente “livres”, sob a lei de um mercado de bens e de trabalho. Foi esse o espaço que garantiu o acesso de centenas de milhões de indivíduos (o moderno sujeito da consciência burguesa) à saúde, à educação, à diversidade ocupacional e ao lazer.

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A formação desordenada das megalópoles e as violentas conseqüências da desigualdade social intra ‑urbana, ao longo de todo o século XX, não elidem a centralidade da vida urbana na tarefa de construção da modernidade. Pelo contrá‑rio, torna ‑se cada vez mais claro que o espaço urbano, na contemporaneidade, sintetiza de modo inequívoco as complexas relações entre a vida, o tempo e o trabalho. Na “cidade global”, figura ‑chave da economia ‑mundo, espelham ‑se as principais mutações do modo de produção capitalista.

De um modo geral, porém, em virtude da hipertrofia dos dispositivos de mídia, grande ou pequena, a informação converte ‑se no próprio solo, sócia do espaço urbano, ao modo de uma realidade virtual. Constrói ‑se outra “geografia”, diferente da física: torna ‑se possível “habitar” virtualmente o espaço das redes cibernéticas.

Assim, genericamente descrita, essa realidade poderia evocar fantasias futurísticas, a exemplo de Alphaville a “tecnocidade” imaginária onde o cineasta (Jean ‑Luc Godard, 1965) encena as aven‑turas de um herói em luta contra a ordem tirâ‑nica que tentava exterminar o amor e a liberdade de expressão. Mas a realidade das tecnologias digitais vem tornando obsoleto esse tipo de dis‑topia, na medida em que são progressivamente normalizadas pela gestão territorial, em países de diferentes níveis econômico ‑sociais, com eviden‑tes benefícios para as populações.

Um pequeno exemplo brasileiro é o pro‑jeto “Navega ‑Pará”, desenvolvido pelo Governo do Pará desde 2007, com a finalidade de usar a tecno logia sem fios para estender a Internet a todo o Estado. Para começar, os sensores instala‑dos na rede garantirão o monitoramento da pro‑dução pecuária no Estado e do meio ambiente, antes mesmo que as queimadas sejam detecta‑das por satélites. Os infocentros, instalados em entidades de classe (associações de moradores, paróquias, etc.) nos espaços urbanos, fazem deles verdadeiras “cidades digitais” (conectadas umas às outras por “infovia” estadual) e ao mesmo tempo mobilizadoras das estruturas comunitá‑rias locais. Surgem daí inéditas possibilidades educacionais, como a formação de agentes de

inclusão digital para os infocentros, assim como o acompanhamento pedagógico para os milha‑res de monitores recrutados entre estudantes de graduação das universidades.

Um exemplo desses é significativo exata‑mente por ser pequeno, isto é, por não se pres‑tar a nenhuma espetacularização tecnológica, deixando transparecer a normalização técnica da gestão dos espaços que é capaz de configurar a nova geografia virtual. Esta é, de fato, uma nova realidade. Daí partem as metáforas urbanísticas para a descrição do funcionamento de disposi‑tivos eletrônicos “locativos”, como a “praça vir‑tual”, designativa da interação de grupos sociais diversos por meio de recursos informáticos como e ‑mails, blogs, twitters, etc.

Nessa nova configuração da urbe, divisa ‑se a possibilidade de uma “polis”, entendida como uma democracia participativa assegurada pelo acesso universal às tecnologias eletrônicas. Fala‑‑se, assim, de uma “democracia digital”, carac‑terizada pela transparência da ação parlamen‑tar e pela abertura das decisões executivas. Isso permitiria, entre outras coisas, que a sociedade acompanhasse passo a passo a atuação da admi‑nistração pública ou então que contribuisse para o processo legislativo federal por meio do com‑partilhamento de idéias e experiências.

Por outro lado, dá margem a formas novas de participação coletiva na restauração da vida democrática, como aconteceu no mundo árabe em Janeiro de 2011 quando multidões de cida‑dãos enfrentaram nas ruas tanques e blindados das forças armadas para depor os ditadores de países como a Tunísia e o Egito, além dos milha‑res que foram às ruas na Líbia, na Jordânia, na Arábia Saudita, na Síria e em Bahrein para exigir mudanças nos governos. Tratava ‑se de movi‑mentos de massa sem dogmas, sem partidos e sem organização convencional, tornando evi‑dente, entretanto, que sob as velhas aparências políticas, há uma dinâmica social afeita às novas possibilidades comunicativas. Ao invés de armas de fogo, os manifestantes, jovens em sua grande maioria, estavam munidos de celulares (além de pedras) capazes de conexão com a internet, fazendo circular através de redes sociais como o

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Facebook palavras de ordem poderosas em ter‑mos locais.

No Brasil, são vários os exemplos das possi‑bilidades de participação coletiva ensejadas por essa “democracia eletrônica”. Mas vale citar a campanha popular pela exigência de “ficha limpa” para candidatos a parlamentar no Brasil no primeiro semestre de 2010. A partir das “pra‑ças virtuais”, os milhões de assinaturas e men‑sagens levaram o Congresso, antes renitente, a votar a lei que veda o registro eleitoral a políti‑cos condenados por crime grave. A “Lei da Ficha Limpa”, a despeito das eventuais dificuldades para a sua completa aplicação, é provavelmente a mais notável conquista da sociedade civil brasi‑leira na primeira década deste século. O seu valor ultrapassa a esfera jurídico ‑eleitoral, já que incide de modo educativo sobre todo o campo social. Não se concebe uma modernização política sem um avanço significativo no processo educacio‑nal. E a educação pode efetivamente preceder a política, não necessariamente de forma orto‑doxa, a partir do espaço escolar, mas por uma esclarecida movimentação social articulada com as mutações do “macro ‑objeto” urbano (a mega‑cidade contemporânea) e com as possibilidades mobilizadoras da rede eletrônica.

Evidentemente, não é o “objeto” técnico em si mesmo (o celular, a rede social, a internet) que desencadeia a mudança na esfera pública, como se fosse um “sujeito” autônomo, tanto que regi‑mes autoritários também podem valer ‑se dessas novas tecnologias para reforçar o seu poder. Não é, portanto, o simples ser moderno do objeto que lhe agrega valor social, mas antes a sua inserção numa trama de relações intersubjetivas capaz de dar ‑lhe um curso transformador.

É, assim, uma evidência crescente o fato de que a sociedade reforça as suas possibilidades de autonomia quando todo o mundo está em contato imediato com os outros. Se antes, para ser considerado necessário, um bem tinha de ser racional e público, hoje deve ser principal‑mente mundial. Enquanto os tradicionais ato‑res presentes no multilateralismo (governantes, OCDE, Banco Mundial, etc.) se definiam pelas relações internacionais entre Estados, hoje atores

provenientes “de baixo” invadem a cena multi‑lateral e tipificam relações intersociais, de modo proativo, em fóruns como Porto Alegre, Seattle, Bombaim, etc.

Na prática, as tecnologias se entrelaçam com movimentos sociais, e mesmo com influências externas, que se revelam amadurecidos num determinado momento histórico. No Brasil, a campanha da “ficha limpa” era de iniciativa da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil e de mais 44 organizações da sociedade civil.

É válido, deste modo, associar a imateria‑lidade do espaço virtual à noção de “território cultural”, até agora entendido como um espaço discursivo onde grupos ou minorias tradicio‑nais lançam mão de ferramentas patrimoniais (artesanato, sítios históricos, paisagens, comi‑das, monumentos, etc.) para afirmação de uma diversidade cultural. Mas esse empenho não se resume a uma lógica puramente culturalista, uma vez que as alternativas sociais abertas pela redefinição de significados culturais implicam igualmente a redefinição de aspectos do jogo do poder social, o que é inequivocamente um pro‑cesso político. Em outras palavras, o campo da cultura é também o campo das diferenças sociais, de modo que as discriminações e as exclusões no tocante aos usos da cultura e da educação se defi‑nem como matéria plenamente política.

Daí, a formação progressiva de um consenso coletivo (Estado, mídia e agentes sociais) quanto à necessidade de se evitar as restrições de uso dos recursos tecnológicos nesse novo território semiótico em que implica o espaço virtual criado pelos avanços tecnológicos na área das tecno‑logias de informação e comunicação. Avalia ‑se que mudanças como a ampliação do acesso ao conhecimento, o barateamento dos equipamen‑tos individuais, a generalização da conectividade planetária e o surgimento de novas atividades econômicas nessa área revelam uma aceleração muito maior do que a prevista.

Numa perspectiva educacional, o grande desafio é, em primeiro lugar, cobrir o hiato entre essa vanguarda tecnológica e a retaguarda da educação no plano interno, para tentar ocupar o espaço correspondente no plano internacional.

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Em segundo, reduzir as diferenças de uso da informática por parte de estudantes segundo seus níveis de renda e de escolarização: o uso, que é restrito no ensino fundamental (sendo aí consi‑deráveis as diferenças entre negros e brancos), cresce no ensino médio e tende a universalizar‑‑se apenas no ensino superior.

A preocupação do Estado com o que se tem chamado de “exclusão digital” resulta do reco‑nhecimento de que a chance de usar computado‑res, acessar à internet e participar de treinamen‑tos em informática, é uma dimensão educacional imprescindível a um novo tipo de socialização e a novas modalidades de participação na força de trabalho. Na prática cotidiana, sobretudo entre os jovens, essas novas tecnologias tornaram ‑se imprescindíveis ao trânsito informativo sobre temas e causas, servindo tanto para motivar movimentos sociais quanto para auferir das novas realidades urbanas inéditas possibilidades de trabalho.

A inclusão, por meio do fomento de telecen‑tros e de núcleos de formação continuada, já é reconhecidamente um caminho para a geração de emprego e renda, donde a progressiva subs‑tituição do contraditório político no espaço público em torno da propriedade dos meios de produção, típico dos movimentos sociais no século XX, pelas discussões sobre o acesso ao conhecimento e pela definição dos seus marcos regulatórios.

É possível, entretanto, questionar essa descri‑ção das novas realidades urbanas, apoiada no que Sassen chama de “narrativa da exclusão” (1998). Para ela, as clivagens operadas pelos fluxos socio‑econômicos sobre os espaços tradicionais da cidade (agora, circuitos globalizados) só podem ser classificadas como excludentes se referidas aos privilegiados nos altos circuitos do capital (onde se pratica a oposição winner/loser, característica da ideologia competitiva norte ‑americana), uma vez que os mais jovens não experimentam as novas opções do mercado de trabalho com a mesma consciência de degradação ou desinte‑gração presente em gerações anteriores.

É certo que as ocupações ditas “precarizadas” e prolíficas no setor de serviços (operadores de

telemarketing, balconistas, porteiros, etc.) não cos‑tumam ser promissoras em termos de elevação da renda nem exigem maior qualificação educacio‑nal. Mas, os chamados “territórios da pobreza” fazem uma experiência diferente dos novos espa‑ços urbanos, articulando o consumo cultural (objetos, modas, ritos musicais) com as mutações urbanas. As indústrias culturais e a mídia vêm constituindo, há décadas, um novo tipo de meio vital, com alterações significativas nas formas de sociabilidade e nas dinâmicas familiares, em que se redefinem os campos de força e de autoridade necessários à aprendizagem. A megacidade globa‑lizada, ao modo de um macro ‑objeto educativo, oferece aos mais jovens ambíguas oportunidades de vivências e performances.

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Os últimos anos do século XX e a primeira década do século XXI forneceram numerosos exemplos de uma mudança de paradigma comunicacional. Um novo

sistema mediático foi emergindo. Não apenas das inovações tecnológicas e das novas formas de mediação, mas também, e sobretudo, do modo como os utilizadores destas se apro‑priaram, socialmente.

Sinais desta alteração profunda tornaram ‑se mais claros do que nunca, até então, no início da fase mais quente da campanha eleitoral, em 2008, para a presidência dos EUA. A Internet estava a transformar a forma como os cidadãos norte ‑americanos se envolviam/eram envolvidos na cam‑panha. Resultados de uma sondagem do Pew Research Cen‑ter, em Janeiro desse ano, mostravam a dimensão etária do fenómeno.

Um quarto dos norte ‑americanos consultava regular‑mente a Internet sobre a campanha presidencial em curso. Entre os votantes com menos de 30 anos, este número alcan‑çava os 42 por cento1.

Em Communication Power, escrito poucos meses depois, Castells dedicará meia centena de páginas à análise da vitória de Obama, que atribui à sua capacidade de adaptar o modelo clássico americano de organização comunitária ao contexto

da Internet, “grassrooting the Internet and networking the grassroots”. Apro‑veitando a familiaridade dos jovens (seus principais apoiantes) com as novas tecno logias, explica Castells, Obama estabeleceu “uma cons‑tante e personalizada relação com milhões de apoiantes”, deixando provado no terreno da luta eleitoral “o extraordinário potencial político da Internet” (Castells, 2009: 293‑4; 386).

A articulação em rede electrónica dos meios de massa e de tecnologias individuais, destinadas à comunica‑ção interpessoal (telemóveis, e ‑mail, iPod e ofertas similares, como o Wi ‑Fi, etc.), transforma estas últimas em mass media interpessoais, tam‑bém designados por mass media indi‑viduais (Cardoso, 2009: 29; Proulx, 2010: 25, citando Castells, 2007). A idade da comunicação em rede

Comunicação em redeou o utilizador utilizado?

adEliNo goMEs*

“What are we to call this person, this individual who listens and watches and e ‑mails and texts and seeks information on ‑line, and who talks about what has been seen and heard and learned or understood or who, alternatively, resistes or ignores it? An audience member? A producer? A “prosumer”? A citizen? A player? And how are we to assess such an individual’s power in this mediated world?”

rogEr silvErstoNE, 2007

* Jornalista. Doutorado em Sociologia, especialidade em Comunicação, Cultura e Educação, pelo ISCTE‑‑Instituto Universitário de Lisboa.

1 “With the Internet Comes a New Political ‘Clickocracy’“, José António Vargas, Washington Post, 1.4.2008, p.C01.

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– caracterizada pela possibilidade de envio e troca de mensagens de muitos para muitos2 – segue‑‑se, em termos históricos cronológicos, às idades da comunicação interpessoal, caracterizada pela troca bilateral entre duas ou mais pessoas den‑tro de um grupo; da comunicação de um para muitos, surgida com os caracteres de imprensa de Gutenberg; e da comunicação de massas que envia uma mensagem para um número indeter‑minado de pessoas, que a recebem (em simultâ‑neo, no caso dos média electrónicos tradicionais) em diferentes lugares do mundo.

O actual modelo comunicacional liga “audi‑ências, emissores e editores sob uma matriz de média em rede, que vai do jornal aos jogos de vídeo, oferecendo aos seus utilizadores novas mediações e novos papéis” (Cardoso, 2009: 57).

Pela primeira vez, verdadeiramente, a mass communication envolve a massa. Porque não se trata agora apenas da massa dos que recebem as mensagens, mas também de uma massa que as envia. De um processo “muito mais igualitário”, no qual as massas podem agora… comunicar com as massas, como observa Napoli citando Fonio et al. (Napoli, 2010: 509). Ou, como explica logo a seguir:

“The one ‑to ‑many dynamic at the core of the

meaning of ‘mass communication’ persists here –

there simply are many, many more instances of it. This

proliferation of the one ‑to ‑many capacity represents

the communication dynamic that was largely

absent from previous incarnations of our media

system, in which the capacity to mass communicate

was confined to a select few” (Napoli, Idem).

A ideia que prevalecerá, logo no início da massificação do uso da Internet, é a de que o novo fenómeno tem um potencial suficiente

para induzir uma mutação do conjunto dos media, exigindo uma renovação, no mínimo, da imprensa escrita. Esta deverá repensar as suas formas de organização, de comercialização e mesmo o seu modelo económico. Mas o processo poderá ir mais longe e obrigar à reformulação dos fundamentos do jornalismo tradicional (Lasica, 1997, cit. por Cardoso et al, 2009: 71; Charon, 2010: 261).

As respostas que vão sendo dadas no terreno são as mais diversas. Mesmo no interior de cada grupo empresarial. À medida que a primeira década do novo século se esgota e alguns exem‑plos começam a surgir (Christian Science Monitor, O Globo), cresce sobre a imprensa escrita, espe‑cialmente a diária, o espectro do abandono, par‑cial ou total, do papel, em favor do online.

A função de gatekeeper – seleccionador dos factos que, por força da sua acção, serão dotados de existência pública (noção basilar da teoria do agendamento: um facto não dotado de existên‑cia pública não existe3) – aparece exercida tam‑bém, e cada vez mais, por organizações, compa‑nhias e autoridades. A extrema complexidade da sociedade moderna e pós ‑moderna exige um alargamento do seu número nos vários pla‑nos da sociedade. O que faz com que Mr. Gates arranje, entretanto, vários outros “colegas”. E estes podem ser… as audiências. “Acesso” e gatekeeping, afinal, não passam de “dois lados da mesma moeda” (Rosengren, 1997: 10).

Em cada segundo, o Google conduz milhares de utilizadores em milhares de buscas de infor‑mação, tornando ‑se no gatekeeper do mundo digi‑tal. To Google passa a sinónimo, sob o império da língua inglesa (a língua franca da Internet), de pesquisar informação. O acesso ao ciberespaço está agora nas mãos de um pequeno número de motores de busca, que disputam com o Google

2 Num subtítulo dedicado à relatividade do conceito de “novos média” – no entanto definitivamente adoptado pela generalidade da literatura recente – Scolari interroga ‑se sobre qual o mais adequado modo de definir as novas formas de comunicação na era digital. Como podem os investigadores falar acerca delas? Deveria a “nova coisa” ser chamada ‘comunicação interactiva’? Ou será melhor defini ‑la apenas como ‘comunicação digital’? Ou como ‘hipermédia’? Ou, por que não, “comunicação em rede”? Ou “’comunicação colaborativa’”? Responde que prefere para o conceito a designação, ainda que provisória, de “comunicação digital” (Scolari, 2009: 945‑6). Por nós, seguimos as opções de Castells e Cardoso, entre outros.

3 Traquina, 2000: 20.

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o domínio e ordenamento de uma gigantesca quantidade de informação e de serviços. Estes novos gatekeeper são, pois, máquinas. “E essa é realmente uma diferença interessante”4.

É a própria noção da imprensa escrita como gatekeeper – decidindo que informação o público deve conhecer e não deve conhecer – que já não define estritamente o papel do jornalismo (Kovach e Rosenstiel, 2001: 23). Se o New York Times decidir não publicar uma informação qualquer, publica ‑la ‑á pelo menos um dos sem número de websites, de programas de rádio ou de activistas que se movimentam na vasta área de influência deste jornal. Foi o que ocorreu no escândalo Clinton/Lewinsky, anunciado por um jovem, o blogger Matt Drudge, que embaraçou um gigante mediático – a revista Newsweek. Na posse da informação já há muito tempo, esta revista norte ‑americana de expansão mundial enredara ‑se em reticências éticas que a foram levando a adiar sucessivamente a publicação5.

Não se julgue, porém, que a multiplicação de fontes de notícias, propiciada pelas novas tec‑nologias e pelos novos gatekeepers tecnológicos, tornou obsoleta a aplicação dos critérios de noti‑ciabilidade pelos jornalistas. Nunca como agora se necessitou tanto de dar sentido às coisas, isto é, de desenvolver a capacidade de olhar para cada acontecimento de múltiplos pontos de vista e de ir ao fundo das questões.

O jornalista de hoje (Idem: 24 ‑5) já não decide o que o público deve conhecer: ajuda os públi‑cos a ordenarem a informação que recebem. Isto não implica acrescentar simplesmente interpre‑tação ou análise às notícias. “A primeira fun‑ção do novo jornalista (ordenador de sentido) é antes a de verificar que informação é credível e então ordená ‑la, para que as pessoas a possam

compreender de modo eficaz.” Numa era em que qualquer um pode ser repórter ou comentador na Web – concluem Kovach e Rosenstiel, citando um antigo director do Xerox PARC, lendário think tank de Silicon Valley –, devemos entrar num jornalismo de duas vias: o jornalista torna‑‑se um líder de fórum ou um mediador, em vez de simples professor ou conferencista; e a audiência torna ‑se, não consumidora, mas pro ‑sumidora, um híbrido de produtor e consumidor.

A interacção com a audiência6 tornou ‑se uma parte integrante da narrativa jornalística. Timidamente, alguns jornais passaram a incluir, a seguir à assinatura, o endereço electrónico do autor do texto. Em breve, ao leitor/ouvinte/teles‑pectador/internauta será reservada uma presença constante na edição online de cada meio. Não se trata só, agora, de uma interpelação ao autor para que este incorpore no seu texto as correcções que lhe são sugeridas/exigidas. Mas sim, também, a reacção opinativa imediata, directamente colo‑cada na versão online. Uma espécie de “interacção high ‑tech” a lembrar os primórdios do jornalismo (no caso, nos EUA, nos primeiros anos do século XVII), quando, em bares e cafés, os primeiros gazeteiros recolhiam e davam seguimento a informações sobre partidas e chegadas de navios, rumores e discussões políticas (Idem: 21 ‑2).

Gatekeeping nas redes mediáticas

Na segunda metade do século XX, os con‑ceitos de gatekeeper e de gatekeeping tornaram ‑se quase lugares – comuns da linguagem mediática. Como assinala Karine Barzilai ‑Nahon (2008: 1493 ‑1512), a teoria nascida dos contributos seminais de Lewin e de White forneceu, desde

4 Steve Jones, professor da universidade de Illinois, Chicago, e fundador da Associação dos Investigadores da Internet, “The new gatekeepers”, Christian Science Monitor, 06.05.2004.

5 Sobre a figura, por alguns vista como “revolucionária”, do editor do Druddge Report (www.drudgereport.com) e a polémica sobre a emergência de um jornalismo sem jornalistas, ver Paulo Serra, “O on ‑line nas Fron‑teiras do Jornalismo – uma reflexão a partir do tabloidimo.net de Matt Drudge”, consultável em htpp://www.labcom.ubi.pt/agoranet/02/serra ‑paulo ‑jornalismo ‑online.pdf.

6 “Audiência”, na tradição anglo ‑saxónica; “público”, na escola francesa, neste caso concreto em que trata‑mos de uma nova (e recente...) demanda, pelos jornalistas, do leitor/ouvinte/telespectador ‑cidadão/internauta, longamente esquecido e por vezes mesmo desprezado.

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então, uma heurística popular para descrever o controlo da informação. Até agora, porém, nenhum investigador teorizara o gatekeeping nas novas redes mediáticas e nem mesmo se estabelecera um consenso sobre aquilo em que este consiste.

Num texto de 19 páginas, intitulado Toward a Theory of Network Gatekeeping: A Framework for Exploring Information Control, que seguiremos de muito perto, esta autora interessa ‑se por com‑preender as relações que se estabelecem, no pro‑cesso de gatekeeping em redes mediáticas, entre o gatekeeper e os não gatekeeper, a quem designa por gated7, e cujo papel fora ignorado até então.

Na verdade, o foco de interesse das Ciências da Comunicação fixara ‑se no papel do gatekeeper, em vez de tentar compreender como é que as redes (humanas e tecnológicas) e a informação afectavam as relações entre os gatekeepers e os gated, bem como o impacto daqueles nestes. “O simples facto de não haver vocabulário na literatura que identifique estes agentes ilustra a passividade ou negligência com que os modelos tradicionais tratam os gated”, observa.

Outra razão para este interesse foi o facto de muita da literatura olhar os gatekeepers como actores com poder, “sem aprofundar aquilo que faz de um actor um gatekeeper”. Pergunta a autora, com pertinência: “Qualquer pessoa com poder é gatekeeper?” A resposta, inovadora8, previne ‑nos que nem o gatekeeper é eterno, nem o gated tem necessariamente de permanecer neste estádio.

Barzilai ‑Nahon constrói a sua teoria do “gatekeeping em redes mediáticas” com base em duas teorias complementares: a identificação do gatekeeping e a saliência do gatekeeping em redes mediáticas. A primeira alarga o conceito de gatekeeping (até aqui confinado às teorias tra‑dicionais da Ciência da Comunicação e da Infor‑mação e da Ciência da Gestão) aos contextos de rede, em que se multiplica a sociedade de infor‑mação – redes criadas pelas novas tecnologias,

como a Internet, redes sociais, redes de infor‑mação, etc. A segunda, analisa as relações entre gatekeeper e gated.

A teoria sugere uma interpretação dinâmica e contextual do gatekeeping, referindo ‑se aos gatekeepers como agentes que cambiam os seus papéis em função dos agentes com quem inte‑ragem e/ou do contexto em que estão situados. Um gatekeeper pode ser um gated em certas cir‑cunstâncias e vice ‑versa. Isto permite fazer previ‑sões sobre o comportamento dos gatekeepers em relação a cada classe de gated, bem como sobre a forma como os gated mudam de uma classe para outra e o que é que isso significa para os gatekeepers.

São quatro os atributos que a autora procura nos gated: (a) o seu poder político em relação ao gatekeeper; (b) a sua capacidade de produção de informação (em qualquer modelo de multimédia dentro de uma rede); (c) o seu relacionamento com o gatekeeper; (d) as suas alternativas no con‑texto do gatekeeping. Antes de apresentar esta proposta – o cerne da teoria – Barzilai ‑Nahon detém‑se na caracterização de cada um destes atributos (Barzilai ‑Nahon, 2008: 1497 ‑1501).

Em resumo, e no que respeita à produção de informação (o segundo dos quatro atributos), a autora põe em evidência as mudanças ocorridas no âmbito da sociedade de informação. O apa‑recimento de múltiplos métodos e tecnologias prontas a utilizar e de ferramentas de fácil uso para produzir e conceber conteúdos, conferiu aos gated uma maior autonomia e modificou a inte‑racção gatekeeper ‑gated. Para além disso, o baixo custo da produção de informação e a facilidade com que é alcançada conferem à capacidade de produção de informação um papel importante como atributo na teoria da saliência do gateke‑eping em rede.

Como relevaremos quando nos referirmos ao conceito de agência em José van Dijck (2009), também Barzilai ‑Nahon conclui que “apesar destas novas oportunidades para o gated se

7 Termo que designa “uma entidade sobre quem é exercido um processo de gatekeeping” (Idem: 1493) e que adoptamos, por não encontrarmos outra palavra mais sugestiva em português.

8 Cf. também a perspectiva de Paulo Serra, no já citado “O on ‑line nas Fronteiras do Jornalismo…”

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expressar em redes online, a própria rede não é tão completamente aberta e democrática como pode parecer”. Na verdade, a autora está longe de comungar do optimismo tecnológico que leva, por exemplo, Bruns a definir sem pestanejar gatewatching como um “processo de publicação e de edição de notícias abertas”, disponível para quem quer que seja que tenha acesso à Web e que através desta se pode tornar “editor, contri‑buinte, colaborador ou participante no processo noticioso online – isto é, um produser [utilizador‑‑produtor]”, o que, acredita, irá ter um “impacto duradouro no nosso entendimento, engaja‑mento e domínio das notícias que nos dizem respeito” (Bruns, 2005a: 3, 8)9.

A atenção dos utilizadores da Internet concentra ‑se num número muito reduzido de fornecedores. Cerca de 85 a 90%, por exemplo, utilizam quatro motores de busca. Paradoxal‑mente, “apesar de ser aparentemente fácil pro‑duzir conteúdos, os gated experimentam alguns impedimentos políticos, económicos e sociais para chegar a outros utilizadores. Além disso, em muitos casos, os gated utilizam plataformas criadas por gatekeepers e ficam dependentes da política e da concepção destes últimos” (Barzilai‑‑Naon, 2008: 1499 ‑1500).

Com base na posse de cada um dos quatro atributos atrás indicados – cuja existência e grau de presença é uma questão de “realidade cons‑truída” em vez de realidade objectiva –, Bazilai‑‑Nahon construiu uma tabela de quatro estádios de gated: o zero, que representa o gated tradicio‑nal; o gated inactivo, ou passivo, que possui um atributo; o gated potencial, dois atributos; o gated limitado (bounded), três atributos; e o gated desa‑fiador, todos os atributos.

Nível 0 – gated tradicional – limita ‑se a ocupar o lugar de quem recebe as mensagens, de que o gatekeeper é o emissor. Durante muito tempo, os gated não foram considerados capazes de produzir e criar informação, excepto quando

autorizados pelo gatekeeper, como acontecia nas cartas dos leitores nos jornais ou nos telefone‑mas induzidos para a rádio. Mesmo nestes casos, porém, os gated não deixam de ser essencial‑mente “executores ou implementadores”.

Nível 1 – gated inactivo ou passivo – é divi‑dido pela autora em quatro subdivisões:

1. Audiência cativa (Captive audience): pos‑sui o atributo do relacionamento com o gatekeeper mas apenas para lhe passar o feedback ou corresponder à informação enviada pelo gatekeeper, nos limites que este determina. Não tem poder político de negociação nem pode escolher alternativas;

2. Voz perdida (Lost voice): capaz de produzir informação, mas cujo acesso ao gatekeeper está totalmente na dependência deste, que lhe põe à disposição a infra ‑estrutura e determina os limites da operação (por exemplo, o software de um blogue para criar e desenhar um sítio na Web);

3. Leitor vagabundo (Vagabond reader): pode mudar de um gatekeeper para outro e tem consciência disso, ainda que os estudos mostrem que o impacto da escolha de alternativas é mínimo. Escolher uma alternativa depende de contextos cul‑turais, políticos, sociais e até económi‑cos. A autora recorre ao exemplo do You Tube para sustentar que os utilizadores desta classe “preferem ficar sob a protec‑ção desse gatekeeper e, em contrapartida, focam ‑se na produção de informação em prol da comunidade, ou como mecanismo de auto ‑expressão (...). O utilizador pode não ter conhecimento de outras alterna‑tivas, ou o custo da troca ser tão elevado que uma alternativa prática não constitui opção” (Idem: 1503);

4. Gated esbanjador (Squanderer gated): aquele que tem poder político. É típico deste

9 O fenómeno WikiLeaks traçou novos e polémicos contornos a esta problematização que obrigarão a desenvolvimentos e adaptações. Pensamos contudo que o essencial destas posições de van Dijck e de Barzilai permanecem como valioso instrumento de análise.

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nível não ter conhecimento ou com‑petências técnicas para exercer o poder num contexto de rede. É fiel ao gatekeeper, confiando nele para o representar. Exem‑plos: figuras públicas que confiam em gatekeepers tecnológicos específicos para os representar e traduzir a sua identidade para a sociedade em rede.

Nível 2 – Gated potenciais: dois atributos.

1. O aprendiz explorado (Exploited appren‑tice) tem capacidade para produzir infor‑mação pela troca de informações com o gatekeeper mas a falta de alternativas ou de poder político colocam ‑no numa posição de potencial exploração pelo gatekeeper. Exemplo: um provedor de conteúdos que autoriza um certo número de escritores a expor os seus conteúdos na sua infra‑‑estrutura, mas acompanha a autorização de um conjunto de regras que podem incluir restrições de temas;

2. O utilizador exigente (Demanding user) tem alternativas e um canal de comunica ção com o gatekeeper. É uma ameaça potencial. Não tem poder nem produz informa ção, pelo que o seu único poder de negocia‑ção deriva da capacidade de mudar de um gatekeeper para outro. Precisa de arranjar uma comunidade, uma massa crítica de muitos outros gated como ele, que materializem a ameaça para irem para outro gatekeeper. Apesar de ainda não possuir massa crí‑tica, esta situação é muito sensível para o gatekeeper, dado que é temporária, especial‑mente se o gatekeeper não for dominante. Pode nascer daqui uma dinâmica que force o gatekeeper a compreender e responder às suas necessidades, podendo mais tarde obrigar o gatekeeper a mudar de atitudes10.

Nível 3 – Gated limitados (Bounded gated): três atributos. “A sua saliência é alta e eles minam as fundações do gatekeeping tradicional

ao posicionarem‑se como actores que atraem grande atenção por parte dos gatekeepers”, caso possuam poder político, relação, produção de informação e alternativas.

Gated frustrados (Frustrated gated): só lhes falta o poder político. “Apesar de poderem criar e produzir informação de uma forma indepen‑dente, sem terem de passar por um gatekeeper de conteúdos, a visibilidade e o impacto do seu trabalho são geralmente reduzidos”, pois os gatekeepers controlam a maior parte das aten‑ções da audiência. Normalmente também são dependentes de certos tipos de gatekeeper para as infra ‑estruturas ou do governo ou do regula‑dor. Podem, no entanto, construir um discurso público ou uma agenda e influenciar a tomada de decisões. A autora dá o exemplo da força dos menores na produção de conteúdos do MySpace, um sítio Web de uma rede social. “A crítica pública vinda de pais e outros agentes levantou a questão destas redes servirem de locais de encon‑tro para predadores sexuais online. Como reac‑ção, o MySpace assumiu um papel de gatekeeping protector, auto ‑regulando o conteúdo e criando regras. Isso ofereceu aos membros da comuni‑dade virtual uma sensação de protecção e segu‑rança, afastando a necessidade de os membros procurarem alternativas ao MySpace.”

1. Gated limitados por influência (Influence‑‑bounded gated): só não têm o atributo da produção de informação. São essencial‑mente leitores e ouvintes passivos.

2. Gated limitados por escolha (Choice ‑bounded gated): podem escolher as alternativas, mas não o fazem. É o chamado paradoxo da informação. Por exemplo porque não falam inglês, a língua franca da Internet.

3. Gated ameaçadores (Threatning gated): têm poder político, alternativas e produção de informação, mas não canais de comuni‑cação com o gatekeeper. Constituem uma ameaça devido à sua capacidade de trocar de gatekeepers.

10 Neste nível pode ocorrer ainda um conjunto de combinações (Idem:1504 ‑5).

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Nível 4, gated desafiadores (Challenging Gated), possuem todos os atributos. Desafiam a hegemonia do gatekeeper. A sua possível transfor‑mação em gatekeepers depende da sua capacidade para praticar um acto de controlo de informa‑ção, de exercer esse controlo e do contexto em que esse controlo se exerce. “Ser uma entidade poderosa não garante necessariamente que um gated se transforme em gatekeeper. (...) É o poder discricionário do exercício de gatekeeping junta‑mente com o contexto que transforma alguém em gatekeeper” (Idem: 1505 ‑6).

A autora serve ‑se do exemplo da Wikipé‑dia para explicar o dinamismo da teoria do gatekeeping em rede. A Internet, e mais tarde as tecnologias da Web 2.0, assim como a Wikipédia, levaram muita gente a pensar que o gatekeeping era um termo obsoleto. A Wikipédia começou como um Dormant Gated (Vagabond Reader), criado para ser alternativa ao controlo registado de informação dos provedores de conteúdos das enciclopédias. “Mais tarde, ao oferecer aos uti‑lizadores a capacidade de produzir informação e criar uma alternativa aos gatekeepers tradicio‑nais, transformou ‑se em Potential Gated (Illusive Apprentice). Paralelamente ao crescente criticismo quanto à qualidade da informação produzida, a plataforma da Wikipédia deu origem a um novo atributo, o poder político, permitindo que os gated se deslocassem para o nível Bounded Gated (Threatning Gated).

O sonho de uma tecnologia neutra, colabora‑tiva e ascendente, que permitisse uma indefini‑ção nas tradicionais interrelações de poder entre designers e utilizadores mostrou ‑se problemática na Wikipédia. Com efeito, 80% dos artigos são escritos por 10% dos seus editores voluntários, transformando a Wikipédia, por si só, num gatekeeper” (Idem: 1507).

Do modo como a olhamos, a teoria pro‑posta por Barzilai ‑Nahon evoca, do lado dos

gated, as noções de audiências e dos públicos, de Dayan e de Esquenazi e do “indivíduo, Eu”, de Fiske (Abrantes e Dayan, 2006: 29 ‑49, 85 ‑97 e 187‑196), e do utilizador/produtor (Bruns, 2005a)11.

Assim, o “não ‑público”, isto é, o telespecta‑dor que assiste à emissão televisiva mas perma‑nece silencioso, corresponde, de algum modo, ao gated tradicional que se limita a receber a men‑sagem, permanecendo circunscrito a ser objecto de consumo. A sua passagem a público ocorre quando não apenas reage fortemente a uma emissão, mas dispõe de meios para tornar conhe‑cida esta reacção. Com esta precisão, Esquenazi procura evitar o dilema actividade ‑passividade das problemáticas da recepção (Abrantes e Dayan, 2006: 86).

Feitas estas cautelas, podemos também encontrar aqui uma correspondência da pas‑sagem do estado de não ‑público a público com a passagem do nível de gated tradicional a gatekeeper. O mesmo se aplica à noção do “indiví‑duo, EU” e ao estado de produser. A utilização do TiVo pode constituir um bom exemplo da paleta de opções e comportamentos possíveis do gated12.

Barzilai ‑Nahon questiona a velha concep‑ção estática do gatekeeper. Adapta ‑a à sociedade da informação em rede. Insufla ‑lhe uma visão dinâmica que reflecte a negociação entre gated (que podem ser indivíduos, grupos, organiza‑ções e comunidades) e gatekeeper (mediador entre grupos e comunidades ou controlador de acessos).

A literatura tradicional concebeu o gatekeeper como a principal fonte de produção de informa‑ção, o poderoso distribuidor de informação, enfa‑tizando ao mesmo tempo as poucas alternativas disponíveis para os gated.

A teoria do gatekeeping em rede, ao contrá‑rio, reconhece as possibilidades de uma relação “dinâmica e versátil” entre ambos, “devido a uma troca frequente, duradoura e directa, ao

11 Desenvolvidas na Parte I da tese.12 No exemplo dado por Fiske (2006: 187;190 ‑1), este aparelho, apresentado geralmente como coadjuvante

decisivo da “libertação” do telespectador em relação ao programador, surge na sua outra faceta de aparelho que se substitui ao telespectador, gravando programas em função das preferências do utilizador…

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potencialmente dinâmico intercâmbio de pro‑dução de informação entre gatekeeper e gated; ao crescente aumento de alternativas ao dispor dos vários agentes; (...) e às potencialidades dos gated terem e exercerem poder político” (Barzilai‑‑Nahon, 2008: 1507 ‑1508).

Telespectador: de traditional gated a demanding gated

Aplicando o modelo da teoria da saliência do gatekeeping em redes mediáticas à actividade de zapping, tal como a caracterizámos até aqui, somos tentados a concluir que, durante decénios, o telespectador se situou no nível 0 dos gated tra‑dicionais. Sem poder político, sem alternativas para evitar o controlo do gatekeeper, sem contacto com este e sem liberdade de escolha, sem capaci‑dade para produzir informação, o telespectador limitava ‑se13 a ser o destinatário da informação unidireccional que lhe chegava do gatekeeper.

Nenhuma das combinações exploradas por Barzilai ‑Nahon se aplica por completo ao teles‑pectador que desenvolve a actividade de zapping. Porém, o mero uso do telecomando, que lhe per‑mite escapar do controlo do gatekeeper (a quem pode trocar por outro), autoriza ‑nos a incluí ‑lo com alguma segurança no nível 2, a que a autora chama de gated potencial (dois atributos): tem alternativas e um canal de comunicação com o gatekeeper – ainda que indirecto – através dos resultados diários das audiências.

Na verdade, as simples (mas afinal tão deter‑minantes) flutuações nos níveis de audiência (ratings) “mostram que o telespectador arbitra quotidianamente entre diferentes programas mais ou menos complementares e concorrentes”

e que a sua “mobilidade e relativa instabilidade” acabam por ser postuladas pelos responsáveis das emissões e das grelhas de programas (Chabrol e Perin, 1992: 27).

Em consequência, na escolha do tipo de gated, parece ‑nos aceitável que optemos pela classe leitor/ouvinte/telespectador14 utilizador exigente (Demanding user), uma vez que, munido do aparelho de telecomando, a essência da sua prática de comunicação, que consiste em selec‑cionar o fluxo de imagens disponíveis nos canais a que o seu televisor tem acesso, constitui uma ameaça iminente para o programador.

Observe ‑se, no entanto, que, à semelhança do que ocorre no mundo dos fornecedores de buscas, também no campo televisivo, em par‑ticular na área da informação televisiva em que situamos a nossa investigação, se constata que, embora em números inferiores aos do passado, a maioria dos telespectadores continua a optar pelos canais generalistas à hora dos telejornais.

Embora crescendo em contínuo, as opções proporcionadas pelo cabo não são percepcio‑nadas ainda como ameaça pelas redacções televisivas, mais mobilizadas, por agora, para a conquista das audiências aos canais generalis‑tas concorrentes15. Talvez porque, dia após dia, os estudos de audiências lhes mostram que as audiên cias continuam a privilegiar os programas de informação e, em particular, os telejornais. Aliás, é muito alta a percentagem dos espectado‑res que cessam a actividade de zapping durante o período das notícias.

Da nossa parte, e para efeitos apenas deste estudo, permitir ‑nos ‑íamos chamar ao telespec‑tador que usa com frequência o telecomando zapper gated. Nova subcategoria dentro destes níveis, o zapper gated:

13 Ou parecia limitar ‑se, como De Certeau sustentava, vai já para 30 anos, ao descobrir na leitura (do texto mas também da imagem), “todos os traços de uma produção silenciosa”, pois que, na linha do que dizia Borges sobre a literatura, o que distingue um texto de outro texto é menos o que nele se lê do que a maneira como ele é lido (1990 [1980]: XLIX; 245).

14 Apesar de a autora nunca aplicar a categoria telespectador (ainda que se refira expressamente às catego‑rias leitor e ouvinte), não nos parece abusivo este alargamento ao nosso campo de trabalho.

15 Referência directa a dados por nós recolhidos de um programa de observação participante desenvolvido nas redacções da RTP1,TVI e SIC, nos anos de 2007 (as duas primeiras) e de 2008, e que preenche as partes V e VI da tese.

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1. Possui alternativas ao gatekeeper (outro gatekeeper…), que usa regularmente numa prática de infidelidade que se torna uma das suas marcas identitárias enquanto con‑sumidor;

2. Tem capacidade, ainda que muito limi‑tada, de produção de informação;

3. Estabelece uma relação forte (ainda que indirecta, através dos resultados das audiên cia) com o gatekeeper.

Este terceiro atributo, diferente na substân‑cia do relacionamento descrito na teoria, não deixa de ser menos ameaçador para o gatekeeper, que dele toma conhecimento diariamente, nos estudos de audiências. As manifestações diárias de atenção por parte do gatekeeper e a ameaça potencial que representa a infidelidade do teles‑pectador precisariam, porém, de se consolidar e alargar em massa crítica traduzida numa comu‑nidade de muitos outros gated.

Está longe de ser o caso. A actividade de zapping, embora multitudinária nos números indicados nos estudos a que aludimos anterior‑mente, desenvolve ‑se nos planos individual e familiar. Rosen encontra, aliás, nessa “atomi‑zação” do receptor (“connected ‘up’ to Big Media but not across to each other”) o grande factor que levou a Internet a enfraquecer a Imprensa16.

Nem por ser muda e não organizada colec‑tivamente, porém, a interacção das audiências que desenvolvem a actividade de zapping se afi‑gura menos efectiva. Na verdade, como é fácil de

concluir acompanhando as repercussões do sobe e desce das audiências na programação das esta‑ções generalistas, os resultados desta actividade, traduzidos nos rankings diários, podem forçar o gatekeeper a compreender aqueles comportamen‑tos, levando ‑o a introduzir na programação ou na edição alterações que vão ao encontro dos avisos nele contidos. “O ‘voto’ imaterial expresso pela audimetria – conclui Eduardo Cintra Torres (2006) de uma observação reflexiva de longos anos – vai erguendo e derrubando totens ou ído‑los, delineando o êxito ou o fracasso de pessoas, empresas, criações e géneros, influindo directa ou indirectamente nas vidas de todos, mesmo dos que se põem realmente à margem dessas escolhas”17.

A existência destes telespectadores que exer‑cem a actividade de zapping – para retornar a Dayan – é “fugaz, a sua presença intersticial, a sua temporalidade estroboscópica”. Se existe, porém, um público de televisão, eles não poderão dei‑xar de ser qualificados. São um “quase ‑público”. Uma “multidão virtual” (Abrantes e Dayan, 2006: 47, 79). Porém, presente de forma inédita na preocupação dos destinadores das mensagens.

Agência do utilizador versus liberta‑ção condicionada

Acabamos de ver que o Mr. Gates televisivo se confronta hoje com a ameaça do zapper gated – telespectador que, munido do telecomando,

16 “Audience Atomization Overcome: Why the Internet Weakens the Authority of the Press”. Disponível em http://archive.pressthink.org/2009/01/12/atomization.html. Tão importante como a leitura do texto de Rosen será do nosso ponto de vista, a reacção de Hallin, autor do modelo conceptual (“sphere of legitimate debate”, “sphere of consensus”, e “sphere of deviance”) exposto em The Uncensored War (1986) e de que o académico e blogger se socorre. Hallin não gostou de ler nem Rosen, nem os comentários dos leitores, extremamente críticos para com o campo profissional. “Many of those who posted seem to believe that what is on the Internet is closer to ‘real public opinion´ than what is in the mainstream media, but I’m not sure we really know this. Some of the posts seem based on the assumption that “the people” are always wise, but I would question this (…)”.

17 Ver “Multidões e Audiências” – texto ‑base da intervenção deste crítico e académico nas Conferências da Arrábida, no qual propõe uma leitura das audiências segundo os conceitos de “multidão” de Gustave Le Bon e de “multidão virtual” de Gabriel Tarde (2006:73 ‑84). Numa revisitação de autores clássicos, em particular de Durkheim, o autor veio mais tarde a refinar teoricamente esta análise de uma forma muito elogiada pelo júri, em 22.11.2010, na sua Tese de Doutoramento (“A Multidão e a Televisão: Representações Contemporâneas da Efervescência Colectiva”).

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lhe contesta o antigo monopólio de acesso às fontes de informação e cuja presença “fugaz” e “intersticial” no processo de formação das audiências contém ameaças latentes susceptí‑veis de levar a alterações na programação e na edição noticiosa.

Apontámos as condições específicas em que, do nosso ponto de vista, Mr. Gates poderá con‑tinuar a preservar, de algum modo, um espaço “real” (Schudson, 2009), e por isso precioso, de autonomia profissional.

Mantendo como pano de fundo a actividade de zapping – o grau quase zero da noção de inte‑ractividade nos média –, importa apurar se a capacidade de esforço criativo fora das rotinas e plataformas profissionais (van Dijck, 2009), de que o utilizador das novas tecnologias parece hoje gozar, mercê dos avanços tecnológicos, vai permitir a este – o You anónimo (Time, 2006) – partilhar ou mesmo arrancar o poder de seleccio‑nar a informação até agora nas mãos de uns pou‑cos (programadores, jornalistas, publicitários); ou se o novo paradigma da comunicação em rede (Cardoso, Espanha e Araújo, 2009) não passará, pelo menos por enquanto, de um redesenho, sem outras consequências, das velhas fronteiras entre comércio, conteúdo e informação, nas quais o poder do utilizador permanecerá confinado essencialmente enquanto consumidor.

Tendemos a seguir, na resposta a estas duas questões centrais, as vias prudentes abertas por reflexões recentes de van Dijck (2009), Proulx (2009) e Napoli (2010). Sem negarmos, contudo e antes pelo contrário, a profundidade e alcance dos desenvolvimentos dos últimos 15 anos no sentido do empoderamento das audiências, que olhamos como um extraordinário desafio aos

profissionais antigamente conhecidos como gatekeepers mediáticos18.

Num texto que vamos seguir exaustiva‑mente, van Dijck (2009: 41 ‑58) lança água frí‑gida sobre aqueles que, no início deste novo século, chegaram a prever o “fim do mercado de massas”, anunciado pela ideia de que, graças às novas tecnologias, as pessoas iriam em breve “tomar o controlo total dos seus consumos de televisão”19. A sua tese de que nem todos os uti‑lizadores se tornam co ‑criadores ou produser20 de conteúdos, longe disso, toma como estudo de caso recorrente o YouTube e, como ponto de partida, a eleição já referida do “You”, em tributo aos milhões de utilizadores anónimos da web que dedicaram a sua energia criativa à cultura web em expansão.

Depois de décadas vilipendiando a passivi‑dade de quem permanecia horas no sofá a olhar simplesmente a televisão, a imprensa agora venera os participantes activos na cultura digi‑tal. Mas quem é precisamente esse participante? Quem é o “You” no YouTube e que tipo de agência podemos atribuir a esta nova classe de utilizado‑res dos média? Serão realmente os utilizadores o grande poder colectivo que “não só mudará o mundo, mas mudará também o modo como o mundo muda?”, interroga ‑se a autora, citando a Time21.

Com a emergência das aplicações da Web 2.0, mais especialmente das plataformas UGC, a qualificação de utilizador entrou gradualmente na linguagem dos teóricos dos média. Os utiliza‑dores são geralmente referidos como contribui‑dores activos da internet. Despendem “uma certa quantidade de esforço criativo” que “é criado fora das rotinas e plataformas profissionais”22.

18 Adaptação livre do título de uma conferência de Jay Rosen, em Setembro de 2010, em Paris. Resumo dis‑ponível em http://jayrosen.posterous.com/the ‑journalists – formely ‑known ‑as ‑the ‑media ‑m.

19 Frank Ahrens, “Pausing the Pani, c. DVRs were expected to turn TV upside down, but we’ve stayed tuned”, Washington Post, 20.8.2006, p. FO1.

20 Junção dos termos producer e user, querendo com ela apontar a nova dupla capacidade do velho e passivo destinatário de informação, de utilizador e de produtor dos novos média.

21 Lev Grossman, “Time’s Person of the Year: You”, Time, 13.12.2006.22 Formulação feliz retirada pela autora de um relatório da OCDE datado de 12 de Abril de 2007 sobre Web

participativa, encontrável em http://www.oecd.org/home/0,3305, en_2649_1_1_1_1_1,00.html

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Desde 1980, o termo prosumer23 tem sido empregue por vários académicos para enfatizar como a agência dos utilizadores paira entre as categorias bipolares de produtor versus consu‑midor e de profissional versus amador. Prosumer, produser, produtilizador, co ‑criador – o jargão académico acentua, com uma miríade de novos conceitos híbridos, o grande aumento das capa‑cidades de produção do utilizador.

Precisamos de ter em conta, porém, os diver‑sos papéis dos utilizadores no ambiente mediá‑tico, em que as fronteiras entre comércio, con‑teúdo e informação estão neste momento a ser redesenhadas, defende van Dijck, que se serve do desenvolvimento do YouTube para ilustrar a complexidade da agência do utilizador.

Começado como um sítio de partilha de vídeos em 2005 e gerido por três estudantes numa garagem de Silicon Valley, o YouTube foi comprado pela Google, em Outubro de 2006, pela soma recorde de 1,6 mil milhões de dóla‑res. “Obviamente”, esta compra não pretendeu levar tecnologia inovadora para casa. O Google Videos tinha já um software superior. Do que se tratava era de importar a “comunidades de utilizadores”.

Assim, e em menos de um ano, o YouTube tornou ‑se uma filial (independente) de uma empresa comercial cujo interesse fundamental não estava no conteúdo per se, mas na integra‑ção vertical de motores de busca com conteúdo, redes sociais e publicidade. Prossegue van Dijck, referindo ‑se à agência do utilizador enquanto “compromisso participativo, em contraste com os destinatários passivos” do passado:

“Se queremos compreender o modo como

as transformações sócio‑económicas e tecnoló‑

gicas afectam a actual agitação nas relações de

poder entre utilizadores, anunciantes e empre‑

sas de média, é importante criar um conceito

diversificado de agência do utilizador. Utili‑

zadores como You (...) possuem um potencial

bastante limitado de ‘usurpar poder a alguns’,

quanto mais ‘mudar o modo como o mundo

muda’” (van Dijck, 2009: 42).

Ao contrário de Henry Jenkins (2006) e Deuze (2007), van Dijck é, pois, prudente quanto à emergência de uma cultura verdadeiramente par‑ticipativa como resultado de uma reivindicação das audiências, capacitadas pelo novo ambiente digital. Por três razões:

“(...) Primeiro, o conceito de utilizador é fre‑

quentemente reforçado por um contraste enga‑

noso entre o destinatário passivo, acomodado

na retórica dos ‘velhos média’, e o participante

activo, visto idealmente como alguém muito

versado nas competências dos ‘novos’ média.

Segundo, a participação engloba cidadãos e

activistas comunitários, bem como pessoas que

aplicam a sua competência e talento em prol de

uma causa comum. Mas será que termos como,

por exemplo, ‘comunidades’ e `cidadania (cul‑

tural)’ podem ser inequivocamente transferi‑

dos para comunidades da Internet? E, terceiro,

agora que os cidadãos se tornaram criadores e

árbitros do conteúdo dos média, qual é o papel

dos fornecedores de plataformas na orientação

da agência de utilizadores e comunidades? (...)”

(Idem: 43).

A autora socorre ‑se de Jenkins (1992) para salientar que “os destinatários de conteúdo cultu‑ral – ficção, música, cinema ou televisão – sempre se envolveram em actividades como, por exem‑plo, bandas a tocar versões de músicas de capa ou um clube de fãs a estimular a recriação de con‑teúdo”; evoca a participação crescente dos teles‑pectadores, nos últimos 15 anos, “em concursos, debates e programas de ‘cosmética’”, em especial durante o surto da “televisão realista”; recorda a incorporação na televisão de filmes e vídeos casei‑ros; e reconhece que o baixo preço, a facilidade de manuseio das tecnologias digitais e o amplo

23 Assim cunhado, no entanto, por Alvin Toffler, em O Choque do Futuro, logo no arranque da década ante‑rior, para “enfatizar a emergência de um consumidor de bens mais bem informado e mais envolvido”, escreve Bruns (2005b).

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acesso aos média em rede permitem ao utilizador produzir e distribuir produtos elaborados numa “linguagem multimodal idêntica à que enqua‑dra os produtos culturais anteriormente feitos exclusivamente em estúdios para ‘participação’”.

Mais recentemente, Napoli (2010) veio insis‑tir neste ângulo de abordagem, contestando a focalização nos aspectos revolucionários ou disruptivos da capacidade dos utilizadores em produzirem conteúdos. O fenómeno nem é novo nem é relevante, argumenta, lembrando, à semelhança de van Dijck, a disponibilidade que, ao longo dos anos, foi havendo para se usarem equipamentos domésticos de gravação, câmaras de vídeo, PC’s e, até, num passado mais longín‑quo, a máquina de escrever…

A novidade não está, pois, na produção de conteúdos, mas numa inédita capacidade de distribuição ao alcance do indivíduo: “What is different today is the ability of user to distribute content, to use the Web to circulate their user‑‑generated content (as well as, to media companies’ dismay, traditional media content) to an unprecedented extent” (Ibidem).

Esta mudança de foco, nota o autor, permite enfatizar que, apesar da “dramática fragmentação das audiências mediáticas”, que sucessivos estu‑dos vêm indicando, se torne possível que vídeos caseiros sejam vistos por centenas de milhar, se não por milhões de pessoas em todo o mundo, via YouTube. Ou que uma canção produzida por uma banda sem editora atraia uma audiência potencial semelhante, online. “A globalização da audiência potencial disponível online serve como contrapeso à fragmentação das audiências e dos média”.

E a concluir, a ideia de que já nos fizemos eco, nesta sua formulação inspirada: “In the contem‑porary media environment, the masses often seek to reach the masses…” (Napoli, 2010: 509 ‑10). Ou nesta formulação, mais recente, de Burgueño (2011) e que nos parece de igual modo feliz:

“Por primera vez en la história y de forma masiva el ciudadano pude comunicarse directamente com el ciudadano. Sin intermediários”.

Van Dijck considera um erro “pensar ‑se que a existência de tecnologias digitais em rede trans‑forma toda a gente em participante activa”. Se se arranjar um grupo de 100 pessoas online, uma dessas pessoas vai criar conteúdo, 10 vão ‘inte‑ragir’ com esse conteúdo (comentando ou ofe‑recendo melhorias) e as outras 89 vão limitar ‑se a vê ‑lo”, garante, citando um especialista em novas tecnologias do The Guardian (van Dijck, 2009: 44).

A autora relativiza igualmente a ideia da cidadania cultural atribuída aos participantes digitais24 e chama a atenção para o facto de os utilizadores do YouTube funcionarem essencial‑mente “como fornecedores e árbitros de con‑teúdo – involuntariamente, através do número de downloads, e conscientemente, ao classifica‑rem e comentarem vídeos”, mas os ordenamen‑tos e as classificações são processados com a ajuda de algoritmos. Ora aqui, afigura ‑se ‑lhe “óbvio” admitir a possibilidade de manipulação:

“O YouTube escolhe os vídeos ‘mais vistos’;

lista igualmente os vídeos ‘mais discutidos’ e

possui ordenamentos para os ‘Top favoritos’ e os

‘Top classificados’ – categorias familiares utili‑

zadas pela maioria das estações de rádio comer‑

ciais. É óbvio que os ordenamentos e as classifi‑

cações são vulneráveis à manipulação, por parte

dos utilizadores e por parte dos proprietários do

sítio” (Idem: 45).

Do seu ponto de vista, é exagero presumir‑‑se que as novas tecnologias induzem um maior envolvimento dos destinatários ou levam estes a uma maior cidadania cultural:

“(…) A agência do utilizador engloba dife‑

rentes níveis de participação, que vão dos

24 Além de não se tratar de uma novidade, pois a “grande tradição académica” sempre o fez em relação às audiências televisivas, “o termo ‘comunidade’ em relação a estes sítios parece cobrir uma gama de significados diferentes”, nota van Dijck. A esmagadora maioria destes coincidirá com “grupos de consumidores, ou plata‑formas de entretenimento”.

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‘criadores’ aos ‘espectadores’ e ‘inactivos’.

O mesmo se pode dizer em relação à noção de

‘comunidades’, um termo que se aplica a dife‑

rentes modos de envolvimento do utilizador.

(...) A agência do utilizador, por outras pala‑

vras, engloba uma gama de diferentes utiliza‑

dores e agentes, e é extremamente importante

desenvolver ‑se um modelo mais subtil para

se compreender a sua complexidade cultural”

(Ibidem).

Vale a pena seguir o desenvolvimento que van Dijck faz de duas outras perspectivas: a eco‑nómica e a laboral. Nele, a agência do utilizador é cada vez mais definida em termos de produção e menos de consumo. Também aqui não existe novidade. No modelo norte ‑americano, as mas‑sas, os grupos e os indivíduos exerceram sempre o seu poder enquanto consumidores. Não há razão, pois, para agora serem olhados de soslaio, enquanto utilizadores, mesmo que na pele de criadores activos. Para além de fazerem o upload de conteúdo, os utilizadores fornecem igual‑mente, de boa vontade, informação importante sobre o seu perfil e comportamento aos proprie‑tários dos sítios e aos agregadores de metadados. Antes de conseguirem realmente contribuir com uploads e comentários para um sítio, os utilizado‑res geralmente têm de se registar com o nome, morada de correio electrónico e por vezes acres‑centar mais dados pessoais como, por exemplo, género, idade, nacionalidade ou rendimento.

Uma vez que assinam o respectivo “terms of use”, podem ser extraídos metadados para vários fins. O comportamento que vão ter relativa‑mente aos média pode ser seguido ao minuto através de instrumentos de exploração de dados automatizados (Idem: 47).

Conclusão (Idem: 49): este papel do utilizador enquanto fornecedor de dados “é incomparavel‑mente mais importante do que o seu papel de fornecedor de conteúdo”. É verdade que alguns utilizadores recebem “parte dos ganhos monetá‑rios pelo conteúdo” por eles criado. Mas “o ver‑dadeiro valor acrescentado pelos utilizadores – a

criação de metadados sobre o comportamento social de um lucrativo segmento de consumido‑res – continua a ser altamente invisível e a não estar contabilizado”.

A autora sublinha a “relação triangular” “íntima” que se estabelece entre consumido‑res, anunciantes e produtores: os utilizadores declaram a sua agência criativa na produção de conteúdos, mas os anunciantes e os produto‑res acumulam dados que lhes permitem refinar o conhecimento dos seus comportamentos e perfil. Ora, “uma teoria que realce apenas a pri‑meira destas funções subestima efectivamente a tremenda influência das novas empresas dos média no direccionamento da agência dos utili‑zadores” (Ibidem).

Cardoso, Espanha e Araújo (2009: 15 ‑66) relevam também o novo papel dos utilizado‑res enquanto “inovadores”. Um papel que não se confina à Internet mas abrange também a “individualização” de novos instrumentos tecno‑lógicos como telemóveis, câmaras e leitores de vídeo e MP3 “que cabem numa mão”. E valoriza a importância dada pela indústria à função de “definidor de tendências” ou de “testador activo de inovação” do utilizador. Reconhece, porém, como van Dijck, que os conteúdos gerados pelos utilizadores não são produzidos ainda pela maio‑ria dos utilizadores online.

Van Dijck olha, por fim, a colocação no mer‑cado, pelos UGC, dos produtos criados pelos utilizadores como “uma economia de doações [sublinhado nosso] para a troca de informação”, proporcionada pela integração dos esforços de milhares de amadores no sistema mediático de capital e tecnologia intensiva (van Dijck, 2009: 50).

Napoli (2010: 511 ‑513) situa em 1977 a noção de que as audiências mediáticas “traba‑lham” em favor dos anunciantes. Tal “trabalho” consistia em “aprender a comprar” determina‑das marcas de bens de consumo, criando assim a procura de que a publicidade necessita para os bens que anuncia. Outros25, por seu lado, viam este engajamento das audiências não como tra‑balho para os anunciantes mas para os média,

25 Napoli cita Jhally e Livant (1986), op. cit.

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que convertiam em lucro o tempo de atenção daquelas vendo ecrãs de publicidade vendidos aos anunciantes.

Hoje, o trabalho criativo da audiência tor‑nou‑se em importante fonte de valor económico para as organizações mediáticas, prossegue. Os ganhos de publicidade do YouTube, Facebook e MySpace são retirados, “substancialmente”, da atenção ganha por estes sites com o conteúdo produzido por membros da comunidade de utili‑zadores/audiência, o qual passou a representar o core business model da maior parte das aplicações da Web 2.0. O mesmo quanto a comentários, avaliações e opiniões, por exemplo, sobre livros, na Amazon, ou sobre notícias e acontecimentos, nos websites de jornais tradicionais.

Embora a criação de produtos para os média, por parte das audiências, não constitua novi‑dade, impressiona não apenas a sua disponibili‑dade em o fazerem sem qualquer compensação financeira, mas também a sua “demonstrada boa vontade” em darem autorização para que outros se apropriem das receitas assim geradas. Este facto mostra o valor que as pessoas atribuem ao aumento de possibilidade de atingirem audiên‑cias, conclui Napoli.

Comércio/emancipação – aspectos de uma “cooperação conflitual”

Num olhar analítico mais directo e cru, Proulx (2009)26 considera que estamos perante o anúncio de uma nova forma de capitalismo – a que chama informacional e que se funda preci‑samente sobre uma “economia de contribuição”.

O carácter massivo e a forma benévola como se concretiza essa contribuição constituem um “paradoxo económico”: as empresas da Internet capturam as contribuições com o fim de agregar os dados fornecidos e produzir metadados, dando origem a uma nova forma de valor em regime de capitalismo informacional.

Que razão levará os utilizadores a contri‑buírem gratuitamente para o enriquecimento das empresas proprietárias das principais pla‑taformas? Estarão conscientes da valorização económica dos contributos dos seus conteúdos enquanto utilizadores?

Proulx incorpora, como hipóteses explicati‑vas, as questões da afirmação de identidade e do reconhecimento social, implícitas na reflexão de Napoli. Mas releva, além destas duas (que iden‑tifica com o YouTube e o Facebook), outro tipo de situações decorrentes das relações do utilizador com redes sociais: automatismo (caso das com‑pras na Amazon, por exemplo); solução prática (del.icio.us); representação; altruísmo. O reco‑nhecimento social (Facebook) será, dentre todas, a mais importante, admite.

Há, neste fenómeno, duas lógicas de fundo. A priori contraditórias, mas de momento em “cooperação conflitual”:

1. Lógica comercial/merchandise – E ‑Bay, Facebook, YouTube, et al., irmanadas na apropriação dos laços sociais e na captação capitalista das contribuições dos utiliza‑dores que colocam ao serviço da esfera económica, representada pelas compa‑nhias proprietárias das plataformas;

2. Lógica emancipativa/cidadania – Linux, Wikipédia, jornalismo ‑cidadão, activismo, enquanto alternativas aos modelos eco‑nómicos das indústrias culturais, visando novos modelos de produção de conteúdos e de distribuição com a finalidade de empo‑werment dos utilizadores, via uso de um capital social construído nas redes sociais, com a possibilidade de uma tomada de poder à escala de grupos e comunidades, no sentido de uma democracia participativa.

Proulx deixará cair algumas destas questões e relançará outras, em termos algo diferentes, num texto posterior que assina com Florence

26 Serge Proulx, La pouissance d’agir des contributeurs au Web relationel: refléxions théoriques, 2 ‑3 Junho de 2009, ICS, Lisboa. Notas por nós tiradas ao longo de um Seminário Internacional organizado por José Luís Garcia e Filipa Subtil e subordinado ao título “Trends in Critical Communication Studies”.

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Millerand (2010:13 ‑30). Os autores aludem aos novos formatos inéditos de escrita (mensagens instantâneas, microbloging), adicionados à multiplicação de ecrãs. E interrogam ‑se sobre se os novos usos da web social se não inscreverão numa “mutação cultural mais larga, que poderá pôr em causa o predomínio da cultura do escrito em favor de uma nova oralidade do escrito”; e sobre a necessidade de uma “ética da informa‑ção” na sociedade em rede, “construída a partir do grande número” (“utilizadores ‘amadores’, entendidos aqui no sentido de ‘profanos’”), cuja inteligência entra em oposição com “a autori‑dade dos ‘especialistas’, nomeadamente do ponto de vista do controlo da informação produzida e das responsabilidades legais e sociais associadas”.

Caminhos semelhantes de reflexão percorre Bernard Stiegler (2008, 2009a, 2009b, 2010), quando lança a hipótese de estarmos perante um modo de produção de um novo género no qual, no lugar da linha de produção sequencial (pro‑dutores, investigadores, designers, distribuidores, consumidores), dominante na divisão industrial do trabalho, estão hoje milhões de contribuido‑res. Ligados em redes sociais. E “cuja ambição não é de modo nenhum a tomada do poder, mas que querem simplesmente participar”. Evo‑cando uma iniciativa de Malraux (durante a sua passagem pelo Ministério francês da Cultura, na década de 70) na formação de amadores de arte e não de consumidores, preconiza a passagem do consumidor a amador: “A inovação nascerá não do alto (engenheiros, marketing) mas das redes, das trocas de saber de amadores apaixonados”.

Talvez para temperar o idealismo de que tem sido acusado no debate público em torno destas profecias, Stiegler multiplica referências à ana‑logia com as virtudes curativas ou maléficas dos pharmaka gregos, estabelecida por Platão para contrariar a ira dos sofistas, apostados em asso‑ciar a escrita à perda da memória. O pharmakon Internet pode actuar, seja como “remédio” (na “possibilidade de ruptura” crítica que abre), seja como “veneno” – presente, por exemplo, na disponibilidade, quiçá ingénua, de milhões de cidadãos, descontentes com a oferta graciosa de metadados de que a indústria fará a inevitável

apropriação capitalista, para oferecerem ao marketing global a sua própria individualização – um trabalho “cirúrgico de personalização que pode seguir as pessoas de uma maneira extre‑mamente próxima, com uma eficácia que pode conduzir a uma catástrofe psíquica”.

Em resumo e voltando a van Dijck (2009: 54 ‑55), a agência do utilizador na era digital não pode ser olhada apenas do ângulo de uma dis‑ciplina, uma vez que os lados social, cultural, económico, tecnológico e legal dos sítios dos UGC estão “inextrincavelmente entrelaçados”. O utilizador desempenha “múltiplos papéis”. A agência do utilizador constitui um conceito que envolve “não apenas o papel cultural como facili‑tador da participação e compromisso cívico, mas também o seu significado económico enquanto produtor, consumidor e fornecedor de dados, bem como a sua posição volátil no mercado laboral”.

Uma vez mais encontramo ‑nos envolvidos numa equação complexa, em que a chamada de atenção para certos riscos não pode, ou não deve, minimizar alguma das suas variáveis.

Tendemos a concordar com a síntese de Cardoso, baseada, entre outros, em Giddens (Car‑doso, Espanha e Araújo, 2009: 26 ‑28) quando nota que, à semelhança dos média tradicio‑nais, os novos média irão continuar a desempe‑nhar um duplo papel, enquanto instrumentos de democracia, por um lado, mas e ao mesmo tempo, enquanto potenciais subversores dos espaços que abrem.

Neste quadro de efeitos múltiplos, que a his‑tória da comunicação televisiva dos últimos 25 anos abundantemente ilustra como hipótese a considerar, afiguram ‑se ‑nos muito oportunas as observações já aqui trazidas de Proulx, sobre a “cooperação conflitual”, e de Stiegler, sobre o duplo efeito do pharmakon grego. A que acrescen‑tamos a tese – que tomamos por um alerta – da “relação personalizada [e não individualizada] de massa”, que Estienne aplica para lembrar que os destinatários da mensagem não são indivíduos “únicos” mas segmentos ‑alvo de consumidores (Estienne, 2007: 273, citando Monique Walhen).

Não devemos desvalorizar o alcance das novas práticas colectivas de construção da informação

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156

num quadro descentralizado, reconhece Estienne. Mas é preciso “temperar o entusiasmo militante dos defensores dos instrumentos e das tecnolo‑gias da ‘era participativa’ ou, adoptando a feliz formulação de Erik Neveu no prefácio a esta obra, ‘le versant optimiste des nouvelles mythologies de l’Internet como outil des Lumières’…” (Idem: 11).

A participação dos públicos – sustenta Es‑ tienne – tem vindo a ser aproveitada, no domínio empre‑sarial e económico, como “activo (co)produtor de conteúdos” gratuitos. Fóruns, blogues, fotos, vídeos, comentários preenchem regularmente, hoje, “a oferta editorial” dos sites das empresas mediáticas. O que significa, no mínimo, que “o espírito do “jornalismo participativo” repousa tanto sobre a valorização, como sobre a “explo‑ração da palavra do público” (Idem: 259 ‑299).

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159

Introdução

As campanhas eleitorais caracterizam ‑se por serem dis‑putadas por um conjunto de competidores, sejam eles candidatos apresentados por partidos políticos

ou candidatos independentes, que se mobilizam em torno de um conjunto de temas com o principal objectivo de obter sucesso eleitoral, estando este dependente da capacidade de informar, persuadir e envolver os eleitores (Foot et al., 2006). Para tal, os partidos e os grupos apoiantes de candidaturas independentes não só procuram reunir meios próprios de divulgação das suas mensagens, como também recorrem aos media, que se afiguram como determinantes em todo este processo comunicativo. Os media, à semelhança de múltiplos factores políticos, sociais, económicos e culturais, tais como os sistemas eleitorais e partidários, as regulações referentes ao seu financiamento e as características do eleitorado, influen‑ciam profundamente a forma como as campanhas eleitorais se processam (Norris, 2000; Farrel et al., 2002; Baringhorst, 2009). Consequentemente estas apresentam características diferentes de país para país, como também se encontram em constante evolução, à medida que o contexto onde se inse‑rem se vai transformando.

O aparecimento e desenvolvimento da Internet tem vindo a alterar o contexto da comunicação política e, conse‑quentemente, das campanhas eleitorais, assumindo ‑se como um meio directo para comunicar aos políticos as preferências dos cidadãos, numa fase de campanha permanente em que os eleitores são vistos cada vez mais como "clientes", procurando as organizações políticas reflectir ou satisfazer as respectivas preferências (Ward e Gibson, 2003).

Em Portugal, apesar dos partidos políticos terem inves‑tido na internet mediante a construção de sites desde a segunda metade dos anos 90 (Nunes, 2000; Cunha et al.,

2003), são poucos os trabalhos que analisam a forma como os partidos ou candidatos utilizam esta tecno‑logia enquanto parte integrante das suas estratégias de campanha, não só para divulgar informação como para comunicar com os eleitores.

O objectivo do presente trabalho é, precisamente, contribuir para a análise da utilização da internet em Portugal no âmbito das campanhas eleitorais, tendo como base as elei‑ções legislativas de 2009. Procura ‑se averiguar de que forma os candida‑tos a deputados utilizaram a inter‑net para chegar junto dos eleitores, comunicar com eles e conseguir o seu apoio.

Impactos da utilização da internet nas campanhas eleitorais

Para os actores políticos, princi‑palmente em alturas de campanha eleitoral, é extremamente impor‑tante assegurar o controlo da infor‑mação que é divulgada e a forma como esta chega ao público. Com a utilização da internet, a transmissão de informação dá ‑se sem mediação e sem controlo editorial, pelo que os partidos não necessitam de se

* Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.

CAMPANHAS POLÍTICAS ONLINE

Uma análise das estratégias dos candidatosa deputados às eleições legislativas de 2009

FiliPa sEicEira*

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160

preocupar com a eventual distorção da sua men‑sagem, divulgando propostas e princípios ideo‑lógicos com detalhe e em grandes quantidades, mediante a utilização de sites ou blogues onde incluem notícias, discursos, biografias, clips de video e áudio, etc. (Ward e Gibson, 2003).

Segundo Baringhorst (2009), a comunicação através da internet oferece às organizações polí‑ticas mais poder na definição da imagem que querem transmitir dos seus candidatos. Por outro lado, os custos relativamente baixos da divul‑gação de informação na internet (comparando com os restantes media) e a já referida falta de controlo editorial externo, torna a internet uma importante plataforma para os partidos mais pequenos apresentarem os seus pontos de vista a uma vasta audiência (Ward e Gibson, 2003).

Qualquer indivíduo, com acesso à internet, pode fazer donativos ou aderir a uma campanha a partir de casa (Ward e Gisbon, 2003; Foot e Schneider, 2006). Simultaneamente, os partidos podem recorrer à internet para chegar junto de eleitores com perfis específicos, assim identifi‑cados como eleitores "alvo", e dirigir ‑lhes men‑sagens específicas (Gibson et al., 2003). A este propósito, têm sido largamente debatidas as potencialidades da internet para chegar junto do eleitorado mais jovem que cresceu a utili‑zar as novas tecnologias, mas que se encontra mais afastado da participação política (Ward e Gibson, 2003).

Ainda no âmbito da comunicação entre can‑didatos e eleitores, a internet poderá desenvolver a interactividade entre uns e outros, mediante a disponibilização de ferramentas que permitem estimular a comunicação vertical (Baringhorst, 2009). As campanhas eleitorais constituem ‑se como um complexo processo comunicativo essencialmente top ‑down, em que o processo comunicativo bottom ‑up consiste na procura do feedback dos eleitores através de sondagens, da criação de focus group, dos próprios resultados eleitorais, etc. (Farrel e Schmitt ‑Beck, 2002). A utilização de recursos como o e ‑mail, chats, etc., abre as possibilidades de um maior diálogo entre partidos e eleitores (torna ‑o mais directo), permitindo aos partidos averiguar a opinião dos

cidadãos sobre as suas políticas, debater temas estruturantes, fazer sondagens online e obter fee‑dback das suas propostas, ou seja, gerar novas formas de envolvimento e de participação dos eleitores nas campanhas (Gibson et al., 2003; Ward e Gibson, 2003) e, em última instância, conseguir o seu voto.

Por último, a simples presença de um partido ou de um candidato na internet pode transmi‑tir, por si só, uma ideia de modernização que ajude os partidos a distanciarem ‑se da imagem de desacreditação da política e das suas organi‑zações, muito veiculada nos media tradicionais (Nixon et al., 2003).

Barreiras à utilização da internet nas campanhas eleitorais

O acesso e a utilização da internet estão longe de se encontrar equitativamente distribuídos. Dentro de cada espaço nacional verifica ‑se, com efeito, a tendência para os cidadãos mais velhos, menos escolarizados, do sexo feminino, residen‑tes em bairros mais carenciados ou em zonas rurais periféricas e pertencentes a minorias étni‑cas continuarem a ficar para trás no acesso e na utilização da internet, logo, distanciando ‑se das mensagens políticas difundidas por este meio. Tal discriminação exprime ‑se no conceito de digital divide, profundamente trabalhado por autores como Norris (2000, 2001) e Hindman (2009).

Estudos sobre o tipo de utilização da inter‑net comprovam que não são as questões polí‑ticas que mais motivam os eleitores que a ela têm, efectivamente, acesso (Cunha et al., 2003; Ward e Gibson, 2003). E, quando se interessam por tais questões, recorrem preferencialmente aos sites de agências noticiosas e de estações televisivas (Gibson, 2004), em detrimento dos sites partidários.

Acresce o facto da internet ser um tipo de tecnologia centrado na iniciativa pessoal de procura de informação, o que pressupõe conhe‑cimento prévio da existência dessa informação assim como iniciativa e interesse em consultá ‑la (Ward e Gibson, 2003).

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161

Saliente ‑se, ainda, que os custos associados às campanhas eleitorais na internet, apesar de menores do que os exigidos pela divulgação de informação noutros media, poderão não ser suportáveis por partidos ou formações políticas de pequena dimensão. Um site de elevado nível de sofisticação, com características interactivas, um design apelativo, uma actualização regular, ou seja, o tipo de site que atrai visitantes (Cunha et al., 2003), necessita de recursos significati‑vos, não só em termos financeiros mas, tam‑bém, em termos de recursos humanos (Ward e Gibson, 2003).

Por último, jornalistas e opositores políti‑cos pesquisam na internet histórias polémicas e assuntos controversos de forma a serem uti‑lizados por ou contra este ou aquele candidato (Idem). Pesquisa estimulada pelo facto de, sob o anonimato que a internet proporciona, ser mais fácil fazer circular sem qualquer tipo de restrição, todo o tipo de informações, independentemente da sua veracidade (Baringhorst, 2009).

O caso português: contextualização e hipóteses de trabalho

Na utilização da internet em contexto eleito‑ral, prevalece a tendência dos partidos para privi‑legiarem a difusão de informação, em prejuízo da interactividade, não explorando a comunicação descentralizada e dinâmica que a internet possi‑bilita. Nos sites é incluída a informação habitual de uma campanha política, divulgada noutros media, com o objectivo de fornecer informação para activistas, jornalistas e outras elites (Gib‑son et al., 2003). Assim, assimetrias de poder entre organizadores de campanha e apoiantes não diminuíram com a introdução da internet, mantendo ‑se a estrutura top down da comunica‑ção política (Baringhorst, 2009).

Neste artigo, considera ‑se que, em Portugal, se observa a tendência acima referida, com o pre‑domínio da divulgação de informação face à inte‑ractividade e funcionando a Internet, sobretudo,

como um complemento relativamente aos media tradicionais.

Por outro lado, e no seguimento das discus‑sões em torno do digital divide, entende ‑se que as características sócio ‑demográficas dos candi‑datos portugueses devem corresponder às carac‑terísticas da população portuguesa mais sensível às novas tecnologias de informação e comuni‑cação: predominantemente do sexo masculino, mais jovem e com maiores níveis de escolaridade (OBERCOM, 2010). Espera ‑se, igualmente, que se encontrem especificidades sócio ‑demográficas entre candidatos que privilegiem diferentes modalidades de uso deste meio.

Foram, assim, estabelecidas as seguintes hipó‑teses de trabalho:

Hipótese 1: Seguindo as tendências gerais de utilização da internet nas campanhas eleitorais, mantém ‑se, em Portugal, uma maior utilização deste meio para divulgar informação em detri‑mento da interactividade.

Hipótese 2: Os candidatos a deputados que utilizam a internet nas campanhas eleitorais apresentam as mesmas características sócio‑‑demográficas da população portuguesa que uti‑liza a internet.

Hipótese 3: Existem diferenças de caracteri‑zação sócio ‑demográfica entre candidatos a deputados que recorrem a diferentes modalida‑des de utilização da internet nas suas campanhas eleitorais.

Metodologia

Usam ‑se os dados reunidos no “Inquérito aos candidatos a deputados – Legislativas de 2009”, lançado no âmbito do projecto "Os Deputados Portugueses em Perspectiva Comparada: Eleições, Liderança e Representação Política", coordenado por André Freire e José Manuel Leite Viegas e inserido na rede de investigação internacional The Comparative Candidate Survey1, que decorreu entre 2008 e 2010 no CIES ‑ISCTE ‑IUL.

1 Para mais informações consultar o site http://www.comparativecandidates.org/.

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162

O inquérito foi aplicado a candidatos dos cinco partidos/coligações com assento par‑lamentar (BE, CDU, PS, PSD e CDS ‑PP) entre Fevereiro e Julho de 2010, por via postal, tendo as respectivas moradas sido obtidas junto da Comissão Nacional de Eleições. Devido a falhas na informação disponível, não foi pos‑sível enviar o inquérito aos 1150 candidatos que perfaziam o universo total, tendo ‑se con‑seguido apenas 716 moradas (62,3% do total). Recolheram ‑se 203 respostas (n=203), que cor‑respondem a 28,4% dos inquéritos enviados e a 17,7% do universo. Dado que a taxa de respostas ao inquérito originou um afastamento em rela‑ção à totalidade dos candidatos a deputados, os dados foram sujeitos a uma ponderação em ter‑mos de partido político e sexo.

Modalidades de utilização da inter‑net na campanha eleitoral

Analisando a utilização de sites em compa‑ração com outras formas de campanha eleitoral, observa ‑se que, dos candidatos que responderam ao inquérito, 19,1% teve um site na internet em nome próprio, sendo este o quarto meio de cam‑panha mais utilizado, atrás da participação em

reuniões sociais, do atendimento personalizado de eleitores e da distribuição de panfletos.

Numa perspectiva global, apenas 13,8% dos inquiridos referiram não ter dedicado tempo nenhum a informar ou a comunicar com os elei‑tores através da internet, enquanto 44,4% admi‑tem tê ‑lo feito entre uma e cinco horas.

As actividades nas quais os inquiridos des‑penderam mais tempo foram a distribuição de propaganda eleitoral de porta em porta, as reu‑niões com militantes locais do partido e a par‑ticipação em eventos locais relacionados com negócios, desporto ou cultura.

De forma a analisar mais detalhadamente as possibilidades de exploração da internet, enunciou ‑se um conjunto de modalidades, pedindo ‑se aos candidatos que assinalassem as que tinham utilizado no sentido de chegar junto dos seus eleitores (resposta múltipla). Uma clara maioria dos candidatos que responderam ao inquérito utilizaram, pelo menos, uma das modalidades apresentadas (Fig. 3).

A utilização de listas de e ‑mail para distribuir informação e organizar actividades é, de longe, a modalidade mais utilizada pelos candidatos a deputados, seguida pela utilização de um blo‑gue e a publicidade a páginas na internet ou a e ‑mails em folhetos e brochuras de campanha.

FIGURA 1 – Meios utilizados pelos candidatos, em nome próprio, durante a campanha eleitoral

Fonte: “Os Deputados Portugueses em Perspectiva Comparada: Eleições, Liderança e Representação Política”.

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A realização de chats com eleitores, um dos indicadores da exploração da interactividade2, apenas reuniu 13,4% de respostas. No entanto esta modalidade remete para um público muito específico, uma vez que, devido à especificidade da sua utilização (muitos dos chats necessitam

de uma inscrição prévia), provavelmente estará associada a eleitores já com um elevado envol‑vimento político e uma forte ligação ao partido/candidato.

Analisando a utilização em exclusivo de cada uma das modalidades, constata ‑se que

2 A interactividade pode ser igualmente explorada nos sites e nos blogues. No entanto, não é possível averiguar os níveis de interactividade destes, mediante as questões que foram colocadas no inquérito.

FIGURA 2 – No último mês de campanha política, tempo dedicado a actividades de campanha

Fonte: “Os Deputados Portugueses em Perspectiva Comparada: Eleições, Liderança e Representação Política”.

Fonte: “Os Deputados Portugueses em Perspectiva Comparada: Eleições, Liderança e Representação Política”.

FIGURA 3 – Modalidades de utilização da internet durante a campanha eleitoral

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“listas de e ‑mail para distribuir informação e organizar actividades” é a que atinge valores mais elevados (71%) o que denota uma utiliza‑ção muito instrumental da internet. Este valor diverge dos valores das restantes modalidades que registam percentagens de utilização exclu‑siva muito baixas.

A disponibilização de um vídeo na internet não é utilizada em exclusivo por nenhum can‑didato, remetendo para uma utilização sempre em associação com outra modalidade. Este facto, realça a importância da análise das associações que se estabelecem entre cada uma das modali‑dades em estudo, de forma a obter ‑se o panorama global das principais estratégias online dos candi‑datos. Note ‑se, porém, que, em termos genéricos (Quadro 2), os níveis de associação entre as várias modalidades são fracos.

Fazer publicidade à página ou ao e ‑mail em folhetos e brochuras de campanha é a moda‑lidade que suscita maior número de associa‑ções, principalmente com a página mantida pela sede local de campanha e a página man‑tida pelo partido. Por sua vez, a utilização de um vídeo de campanha apenas se associa à página mantida pelo partido, o que indica que os vídeos se encontram alojados na página do candidato. Simultaneamente, numa perspectiva de exploração da interactividade e remetendo para um investimento mais pessoal por parte

QUADRO 1 – Modalidades de utilização da internet durante a campanha eleitoralrealizadas em exclusividade

n %

Utilização de listas de e-mail para distribuir informação e organizar actividades 49 71

Utilização de um blogue 11 15,9

Fazer publicidade à página na internet ou e-mail em folhetos e brochuras de campanha 2 2,9

Página pessoal elaborada e mantida pela sede de campanha local 2 2,9

Realização de chats online com eleitores 1 1,5

Página pessoal elaborada e mantida pelo partido 1 1,4

Disponibilização de um pequeno vídeo de campanha em nome próprio na internet 0 0

Fonte: “Os Deputados Portugueses em Perspectiva Comparada: Eleições, Liderança e Representação Política”.

do candidato, encontra ‑se a associação entre ter um blogue e ter realizado chats online com eleitores.

Atendendo às associações observadas, podem definir ‑se três vertentes de utilização da internet:

– a primeira, com maior peso percentual, inclui os candidatos que utilizam a inter‑net de uma forma meramente instrumental com o único objectivo de divulgar informa‑ção através de listas de e ‑mail;

– a segunda, engloba candidatos que concen‑tram a sua estratégia online em modalidades associadas à intervenção central do partido (ou das suas estruturas locais), denotando um carácter institucional na estruturação da utilização da internet;

– a terceira, e partindo do princípio que os blogues são utilizados pelos candidatos nas suas características mais distintivas de auto‑ria pessoal e de interactividade mediante a possibilidade de comentários por parte de leitores (Querido e Ene, 2003), remete para deputados com uma estratégia online mais individual e personalizada, mais focalizada no contacto com os eleitores.

Ainda assim, e considerando o peso global de cada uma das modalidades no total da amos‑tra, verifica ‑se que a hipótese 1 é claramente

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165

confirmada, pois os candidatos a deputados tendem, globalmente, a utilizar a internet como um meio de divulgação de informação, principal‑mente mediante a utilização de listas de e ‑mail, não explorando muito a interactividade com os eleitores.

Candidatos offline e candidatos online: caracterização sócio‑‑demográfica

Seleccionaram ‑se os candidatos que utili‑zaram um blogue e utilizaram listas de e ‑mail para distribuir informação (as duas modalida‑des mais frequentes), os candidatos que utiliza‑ram uma página/site e, de forma a analisar mais directamente quem são os candidatos que mais investem na interactividade, seleccionaram ‑se, igualmente, os que realizaram chats online com eleitores.

Destaque ‑se, desde já, a relação estatistica‑mente significativa entre a utilização da inter‑net e o sexo dos candidatos, já que as mulheres revelam uma menor utilização que os homens.

Analisando as modalidades separadamente, conclui ‑se que não existe uma relação estatistica‑mente significativa entre o sexo dos candidatos, por um lado, e a utilização de um blogue ou a realização de chats com os eleitores, por outro. Por sua vez ter uma página/site na internet, ou utilizar as listas de e ‑mail para distribuir informa‑ção, tem maior expressividade entre os candida‑tos do sexo masculino.

A idade média dos candidatos utilizadores e não utilizadores da Internet é bastante próxima (46,9 e 44 respectivamente). Desagregando, por modalidades de utilização, a idade dos candida‑tos, apenas se mostra significativa na utilização de um blogue, tendencialmente utilizado pelos candidatos mais novos: 37,3% dos candidatos com um blogue tem menos de 35 anos e apenas

QUADRO 2 – Associação entre as modalidades de utilização da internet durante a campanha eleitoral (V de Cramer)

Página mantida

pelopartido

Páginamantida pela sede local de

campanha

Listas de e-mail para distribuir

informação

Vídeo de campanha em nome próprio

Chatson-line

com eleitores

Publicidade àpágina/e-mailem folhetose brochuras

Blogue

Página mantida pelo partido – – 0,239** – 0.272*** –

Página mantida pela sede local de cam-panha

– – – 0,467*** 0,141*

Listas de e-mail para distribuir informa-ção

– 0,196** 0,196** –

Vídeo de campanha em nome próprio – 0,178* –

Chats on-line com eleitores 0,181** 0,248***

Publicidade à pá-gina/e-mail em fo-lhetos e brochuras

Blogue

*p<0,05; **p<0,01; ***p<0,001

Fonte: “Os Deputados Portugueses em Perspectiva Comparada: Eleições, Liderança e Representação Política”.

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166

7,8% mais de 56. Confirmam ‑se, assim, estudos recentes que apontam para que, quer os criado‑res de blogues mais populares, quer os leitores de blogues se encontram nas faixas etárias mais jovens (Trammell, 2007).

Quanto à relação com os graus de escolari‑dade dos candidatos, teve ‑se em atenção que esta variável, na amostra em análise, é altamente assimétrica, uma vez que 83,4% dos indivíduos que responderam ao inquérito possuem pelo menos o ensino superior completo. Ainda assim, tal como se esperava, a grande maioria dos can‑didatos com ensino superior utilizou a internet durante a campanha eleitoral, enquanto que os menos escolarizados manifestaram percentagens de utilização menores.

A escolaridade mostra ‑se determinante ape‑nas na utilização de listas de e ‑mail: à medida que a escolaridade aumenta, aumenta a utilização das listas de e ‑mail para distribuir informação e orga‑nizar actividades. O facto de muitas das moda‑lidades terem um número reduzido de casos em muitos dos níveis de escolaridade, influencia

este resultado e deve ‑se à já referida assimetria de distribuição dos candidatos da amostra pelos vários níveis de ensino.

Da análise destes dados resulta que, em ter‑mos globais, os candidatos a deputados seguem os perfis dos utilizadores da internet em Portu‑gal ao nível do sexo e da escolaridade, ou seja, a internet é mais utilizada pelos candidatos do sexo masculino e com maiores níveis de escola‑ridade. O mesmo não se verifica, no entanto, no que respeita à idade, na medida em que esta não parece determinar maiores ou menores níveis de utilização pelos candidatos, contrariamente ao que sucede no conjunto da população por‑tuguesa. Portanto, a hipótese 2 só parcialmente foi confirmada.

Há diferentes variáveis de caracterização que influenciam diferentes modalidades. Assim, ter uma página ou site na internet relaciona ‑se com o sexo dos candidatos ao passo que os blogues se relacionam com a idade. Por sua vez, a utiliza‑ção de listas de e ‑mail para divulgar informação encontra ‑se associada ao sexo e à escolaridade. Já

QUADRO 3 – Utilização da internet durante a campanha eleitoral,por sexo dos candidatos (%)

Masculino Feminino

Uso

da

inte

rnet

Utilizou a internet 74,8 53,9

Não utilizou a internet 25,2 46,1

n 127 76

Mod

alid

ades

de

utili

zaçã

o da

inte

rnet

Teve uma página/site na internet 29,9 10,5

Não teve uma página/site na internet 70,1 89,5

n 127 76

Utilizou um blogue 29,1 20,3

Não utilizou um blogue 70,9 79,7

n 127 74

Realizou chats on-line com eleitores 8,7 9,3

Não realizou chats on-line com eleitores 91,3 90,7

n 127 75

Utilizou listas de e-mail 57,5 42,7

Não utilizou listas de e-mail 42,5 57,3

n 127 75

Fonte: “Os Deputados Portugueses em Perspectiva Comparada: Eleições, Liderança e Representação Política”.

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a utilização dos chats não mostra ser influenciada pelas características sócio ‑demográficas em aná‑lise. Tal como a hipótese 2, também a hipótese 3 foi confirmada parcialmente.

Conclusão

Em Portugal, a exploração da internet por parte dos candidatos a deputados ainda é inci‑piente (a televisão permanece como meio domi‑nante de divulgação de mensagens políticas) e muito centrada na divulgação de informação através do e ‑mail, não havendo uma explo‑ração mais intensa de todas as modalidades de campanha online, nomeadamente das que favorecem a interactividade com os eleitores. A possibilidade de interactividade directa entre candidatos e eleitores é vista como secundá‑ria, o que pode explicar ‑se pela persistência de lógicas tradicionais de campanha que excluem

interacção apostando, antes, na divulgação de informação.

A própria taxa de difusão da internet no nosso país que, em 2009, chegava a 43,9% dos agregados domésticos3, e as desigualdades sociais no seu acesso, podem igualmente condicionar a utilização da internet nas campanhas eleitorais. De facto, a internet remete para um público com características sócio ‑demográficas específicas, mais restrito do que, por exemplo, o público da televisão.

Nas campanhas eleitorais, o objectivo é comunicar de forma a informar, persuadir e envolver o maior número possível de eleitores e conseguir, assim, o seu voto. Ora, se a internet tem um acesso restrito, e se os que a ela acedem utilizam ‑na pouco para obter informações sobre política, a sua eficácia em termos de comunica‑ção política é reduzida. Daí que alguns partidos e candidatos levantem dúvidas sobre as reais van‑tagens da sua utilização durante as campanhas.

QUADRO 4 – Utilização da internet durante a campanha eleitoral,por escolaridade dos candidatos (%)

Até ao ensino secundário incompleto

Secundário completo

Frequênciauniversitária/

curso pós- -secundário

Universitário completo

Uso

da

inte

rnet Utilizou a internet 9,1 75 100 68,5

Não utilizou a internet 90,9 25 0 31,5

n 11 12 10 168

Mod

alid

ades

de

utili

zaçã

o da

inte

rnet

Teve uma página/site na internet 9,1 23,1 20 23,8

Não teve uma página/site na internet 90,9 76,9 80 76,2

n 11 13 10 168

Utilizou um blogue 0 23,1 40 27,5

Não utilizou um blogue 100 76,9 60 72,5

n 11 13 10 167

Realizou chats on-line com eleitores 0 7,7 10 9,6

Não realizou chats on-line com eleitores 100 92,3 90 90,4

n 11 13 10 167

Utilizou listas de e-mail 9,1 41,7 50 55,7

Não utilizou listas de e-mail 90,9 58,3 50 44,3

n 11 12 10 167

Fonte: “Os Deputados Portugueses em Perspectiva Comparada: Eleições, Liderança e Representação Política”.

3 OBERCOM, 2010.

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168

Ao longo deste trabalho, ficou patente que as características sócio ‑demográficas dos candi‑datos são factores que influenciam a utilização da internet nas campanhas. Os candidatos são condicionados pelos seus próprios traços pessoais e expectativas, reproduzindo, de certa forma, as tendências associadas ao digital divide.

Ainda assim, em termos gerais, os valores apresentados pelos candidatos na utilização da internet em campanha eleitoral podem ser con‑siderados apropriados face às utilizações deste meio por parte da população portuguesa com acesso à internet. De facto, os candidatos pri‑vilegiam a utilização de listas de e ‑mails para distribuir informação, sendo o e ‑mail (quer para receber, quer para enviar mensagens) uma das actividades online mais efectuadas pelos portu‑gueses, com valores na ordem dos 80%4. Por outro lado, apurou ‑se que a interactividade não é muito explorada pelos candidatos, com 13,4% a utilizar chats para comunicar com os eleitores e 36,5% a utilizar blogues, o que não se afasta dos padrões de utilização por parte dos cidadãos nacionais: apenas 44% afirma colocar mensagens em chats, blogues, newsgroups, fóruns de discus‑são ou utilizar o Messenger5.

Uma mudança no paradigma de utilização da internet nas campanhas eleitorais, supõe maior reconhecimento das vantagens da inter‑net a nível nacional e esbatimento das diferenças sócio ‑demográficas na sua utilização. Importa, simultaneamente, mudar de atitude face às elei‑ções, de forma a potenciar a interactividade e todos os benefícios que daí possam advir para o sistema político e para a própria representativi‑dade (candidatos mais informados das necessida‑des dos seus eleitores, serão melhores represen‑tantes destes). As tão propaladas lógicas da Web 2.0 podem vir a ser gradualmente mais utilizadas. Mas, se não se proceder a uma mudança na con‑cepção das campanhas, a utilização, por exemplo das redes sociais cairá nas lógicas informativas predominantes nas campanhas actuais.

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4 Idem.5 Idem.

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lEituras

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A fusão dos reinos e outras reflexões sobre o “racionalismo” na ciência

Pedro U. Lima*

No seu novo livro Das Socieda‑des Humanas às Sociedades Artificiais, Porfírio Silva regressa à ideia da fusão dos “reinos” do artificial e do natu‑ral que estava já presente no anterior Cibernética – Onde os Reinos se Fun‑dem. Desta vez, o autor apresenta ‑nos uma perspectiva crítica das aborda‑gens passadas e actuais às Ciências do Artificial e termina com a sua própria proposta de leitura do programa de

investigação em torno desta área fascinante e cada vez mais fortemente multidisciplinar.

Provavelmente, a ideia mais forte que nos fica após a lei‑tura desta obra é a de que as Ciências do Artificial deixaram de apenas imitar a natureza, para passar a procurar recriá ‑la. Esse facto tem levado a uma progressiva diluição das fron‑teiras entre o que se considera o reino do artificial e o reino do natural, justificando a proposta de um novo programa de investigação cujo núcleo duro é a ideia de fusão dos dois reinos. E, talvez ainda mais importante, tem provocado um impacto profundo na forma de encarar a investigação científico ‑tecnológica e os seus métodos de trabalho, muitas vezes sem que os seus principais actores (os investigadores) disso se apercebam. É (também) por isso que este texto é uma leitura agradável e exploratória para aqueles que activamente constroem o devir das Ciências do Artificial, para além do público interessado em geral.

Ao longo do texto são referidas as diversas disciplinas cuja relevância para as Ciências do Artificial é hoje reconhecida – tais como as Ciências da Computação e a Biologia, pas‑sando pelas Ciências Sociais, nomea‑damente a Economia, que o autor considera um importante elo até hoje pouco explorado no desígnio de criar sociedades artificiais que exibam comportamentos e capacida‑des que normalmente associamos às sociedades humanas. Curiosamente, as Ciências da Engenharia são prati‑camente ignoradas, não obstante o percurso de Porfírio Silva o ter levado a trabalhar com engenheiros da área do Controlo e Robótica nos últimos quatro anos. No entanto, é nelas que decorre nos nossos dias um dos mais vivos debates, nem sempre explicita‑mente assumido, entre a abordagem puramente racionalista, que exclui qualquer metodologia que não seja profundamente formal e capaz de prescrever comportamentos a partir de especificações objectivas e quan‑titativas, e a abordagem que aceita as especificações qualitativas e que pro‑cura sintetizar máquinas inteligentes através de metodologias que buscam inspiração noutras ciências humanas e naturais. A razão para esta última

Leituras

* Professor do Instituto Superior Técnico. Investigador do Instituto de Sistemas e Robótica.

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abordagem, aparentemente tão distante da enge‑nharia convencional – que não dispensa a mate‑mática e a demonstração de propriedades – não é uma simples moda, mas tão só uma consequên‑cia de termos atingido um ponto em que o(a)s engenheiro(a)s projectam sistemas artificiais que buscam a interacção natural (ou deveremos antes dizer, a fusão?) com os sistemas humanos. E, para atingirem esse fim, têm que frequentemente pôr em causa os axiomas da engenharia tradicional, tipicamente enraizados em princípios como o da optimização do desempenho, mas em que a função de desempenho se foca em aspectos particulares de sistemas muito bem delimita‑dos. Esta engenharia tradicional conseguiu até hoje resultados fantásticos na construção civil e militar, na medicina, no controlo de aviões e naves interplanetárias ou nos prodigiosos avan‑ços tecnológicos da Física e da Química, mas nunca procurou ir mais além, nomeadamente na construção de sistemas artificiais inteligentes, com poucas e corajosas excepções, pelo simples facto de não o poder fazer com base nos seus princípios puramente racionais.

O livro está dividido em sete capítulos, ao longo dos quais se vão apresentando os funda‑mentos da crítica à abordagem racionalista e aos motivos pelos quais esta levou a falhanços críticos das abordagens simbólicas nas primeiras décadas de investigação em Inteligência Artificial (IA), para depois explicar como alguns investi‑gadores procuraram reagir a estas abordagens através da inclusão da física da percepção e a actuação realizada por agentes encorpados, como os robôs, através da inspiração biológica, mos‑trando finalmente que, ao procurarmos construir sociedades artificiais, teremos certamente, à luz da própria definição do autor, que buscar inspi‑ração e metodologias nas Ciências Sociais, em particular na Economia. Uma crítica profunda do determinismo, sobretudo o que procura funda‑mentar um ponto de vista sobre o livre arbítrio, acaba por desaguar na proposta final (Cap. VII) de uma leitura do programa de investigação que estará em curso nas Ciências do Artificial.

O Capítulo I define as Ciências do Artifi‑cial e apresenta dois casos de estudo (o xadrez

computacional e o futebol robótico) que são depois usados ao longo do livro como exemplos do contraste entre as “velhas” e “novas” abordagens, nomeadamente sublinhando o esquecimento do corpo, do mundo e dos outros de que enfermaram os primeiros anos da IA, e que a robótica evolu‑cionista, social, do desenvolvimento e colectiva vieram confrontar (Cap. II). A noção de institui‑ção, fundamental no contexto do programa de investigação introduzido no livro, é apresentada no Capítulo III, como artefacto mediador entre humanos, entre máquinas, e entre máquinas e humanos, sendo instrumento fundamental para a evolução de sociedades artificiais e redução da complexidade normalmente nela envolvida, bem como para a perpetuação da memória social e o evitar da redescoberta periódica dos mesmos conceitos e procedimentos. Os Capítulos IV, V e VI criam as condições para a formulação final do programa de investigação, ao introduzirem a Economia como uma das Ciências do Artificial, as instituições como marca distintiva das socie‑dades humanas (não partilhada pelas sociedades animais não humanas) e a confrontação com o conceito de determinismo, especialmente da forma como é defendido por Daniel Dennett. Pelo caminho, compreendemos também mui‑tos dos confrontos sociais e políticos dos nossos dias, tais como a visão puramente racionalista do mundo que influenciou não apenas as engenha‑rias mas também a economia e a teoria dos jogos, segundo a qual todos agimos de forma “racional” se procurarmos aumentar o nosso benefício indi‑vidual, mesmo que isso seja feito em prejuízo do colectivo. Contrapõe ‑se a noção de Economia Institucionalista e sublevam ‑se princípios da Eco‑nomia Clássica, tais como a tomada de decisão sem negociação e sem história, para chegar aos modernos conceitos da Robótica Colectiva, como a cooperação na tomada de decisões sequencial e na sua execução, frequentemente procurando maximizar o desempenho do colectivo, mesmo que abdicando de alguns ganhos individuais.

Alguns aspectos do determinismo de Dennett e do recurso às variáveis aleatórias e processos estocásticos, para assumir a incapacidade dos humanos conhecerem completamente o estado

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do mundo antes de cada tomada de decisão e de modelarem com precisão os efeitos das suas acções, são tratados pelo autor de forma discutí‑vel. Se é, por um lado, verdade que a abordagem determinista não deixa de se suportar numa visão do mundo que sustenta o racionalismo, com todos os problemas que lhe são inerentes, não é menos verdade que, tecnicamente, o uso de modelos estocásticos para a observação, modela‑ção do mundo através da informação adquirida pelo robô e tomada de decisão, é uma forma de lidar com o não determinismo que permite pro‑jectar sistemas que demonstram capacidade de “livre arbítrio” informado pela aprendizagem e que podem interagir com os humanos de forma natural para estes. A inerente discretização dos estados do mundo e das acções possíveis, bem como a sua hierarquização, é também uma forma típica da Engenharia lidar com a complexidade.

Concorde ‑se mais ou menos com as ideias discutidas e apresentadas neste livro, a verdade é que ele aborda, com um pouco frequente ecle‑tismo, a fusão dos reinos do artificial e do natu‑ral, de uma forma apelativa para todos os leitores e com uma solidez técnica multidisciplinar que permite antever um futuro auspicioso para o pro‑grama de investigação nele formulado.

silva, Porfírio (2011)

Das Sociedades Humanas às Sociedades Artificiais

Lisboa: Âncora Editora, 247 pp.

A noite da cultura no reino da técnica

Maria da Luz Correia*

Em Crise no Castelo da Cultura, Das Estrelas para os Ecrãs, último ensaio de Moisés de Lemos Martins que reúne o trabalho de uma década

em estudos da comuni‑cação e teoria da cultura, o sociólogo debruça ‑se sobre a crise do humano, o mal de vivre contem‑porâneo, decorrente da experiência tecnológica – da comunicação em rede às biotecnologias –, e da conversão das nos‑

sas vidas à lógica do mercado global1. Na esteira daquilo que designa por “pensamento da dife‑rença” – de Nietzsche a Foucault e a Baudrillard – o autor reconhece como precária a condição de quem atravessa uma noite dos tempos, onde a história se armazena em gigas, as emoções se processam em bits e os corpos se compõem com píxeis. Ora entediados pelo quotidiano regrado, ora estonteados pelos desregrados ecrãs, acei‑taríamos não sem um certo spleen o recuo da palavra diante da torrente de imagens tecnoló‑gicas, a falência da identidade perante o “fluxo” labiríntico das paixões ou, ainda, o fracasso da cidadania face aos imperativos de eficácia da economia global.

A ruína do castelo

À leitura do título, numa afinada linguagem figurativa, é ‑nos apresentado o objecto de pen‑samento com duas metáforas2.

A primeira imagem é a do castelo. O castelo da cultura estaria em crise, quem sabe em risco de ruir, ou então furtando ‑se enigmaticamente aos nossos pés, quando procuramos o seu abrigo, como o esquivo castelo do célebre romance de Franz Kafka... Mas não é ao castelo em vão per‑seguido pelo agrimensor K. que o autor se refere. Moisés de Lemos Martins (p. 165) explicita que

* Investigadora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (Universidade do Minho) e no Centre d’Études sur l’Actuel et le Quotidien (Université Paris Descartes – Sorbonne).

1 Também em edição brasileira, com o título Crise no Castelo da Cultura. Das Estrelas para as Telas (São Paulo: Annablume).

2 Como veremos, as metáforas do castelo e das estrelas resumem de modo figurado o âmbito geral do ensaio. Mas não são as únicas. Ao longo do texto, Moisés de Lemos Martins cultiva persistentemente esse “amor da metáfora”, que para Robert Musil (2008: 257) é uma espécie de emanação da “alma”. É preferencialmente

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do que se trata ali é do castelo do Barba Azul, convocado pelo sociólogo George Steiner numa tentativa de descrever a crise da cultura con‑temporânea: “Todos nos lembramos do conto tradicional em que um tenebroso senhor, de barba azul, guardava um terrível segredo bem aferrolhado no quarto do seu castelo. Era nesse verdadeiro quarto dos horrores que escondia os cadáveres esquartejados das sucessivas mulheres com que se casara”. Esta metáfora do quarto, que tranca um hediondo segredo, reproduz ‑se fre‑quentemente nas narrativas literárias, cinemato‑gráficas, televisivas, fazendo a sua reaparição, por exemplo, numa cena do último filme de Raoul Ruiz, Mistérios de Lisboa. No filme do chileno, é num gabinete secreto que a enigmática perso‑nagem do Padre Dinis, homem de vários rostos, vai esconder um “cadáver esquisito”, composto de objectos e trajes que remetem para as suas diferentes personae: quando o pequeno Pedro aí entra, descobre as vestimentas que o pároco usou nas muitas encenações da sua vida e, ainda, um relicário com a caveira da sua mãe defunta...

À semelhança da última esposa do Barba Azul, ou da criança órfã de Mistérios de Lisboa, Moisés de Lemos Martins quer também abrir a porta interdita do castelo da cultura e a sua chave são as novas tecnologias: é o apetrechamento téc‑nico da existência e, sobretudo, os dispositivos de comunicação, que dão o móbil ao ensaio que se propõe perceber a transladação da civilização moderna para a civilização tecnológica... O cas‑telo é uma fortificação, com uma sólida estrutura e contornos estáveis, podendo facilmente ver ‑se como alegoria dos valores universais da moder‑nidade, das suas essências e transcendências, do

seu ideal democrático, dessa “síntese redentora” de racionalidade e de dever ‑ser que nos alberga‑vam; o gesto de destrancar a porta proibida da técnica revela agora o nosso asilo, como um amontoado de fragmentos e de curvas vagas, onde o sociólogo reconhece “o carácter viscoso, sinuoso, titubeante e labiríntico da condição humana” (p. 187). A “teoria da identidade” e a subsequente “ideia de cidadania” (p. 188), pilares do velho castelo edificado enquanto todo har‑monioso dominado pelo logos e pelo ethos, são agora implodidas pelas múltiplas identificações do pathos, e é nessas ruínas que mora doravante o sujeito politeísta contemporâneo, de que o internauta seria um bom exemplo.

Moisés de Lemos Martins, citando Steiner, explica que desaferrolhar a porta interdita equi‑vale a “abrir a última porta para a noite”, o que nos remete para a condição sombria de quem aceita tragicamente o lado obscuro, insubordi‑nado, irracional do existente, a “parte maldita” para falar como Georges Bataille (2011)3. Se uma tal noite é ocasião de ajuntamento festivo para um sociólogo como Michel Maffesoli (1993: 110, 125), que advoga o retorno da sombra de Dionísio, deus ctónico e filho de uma mortal, “deus de cem rostos” que celebraria connosco o mundo reencantado pelas tecnologias da infor‑mação e da comunicação, ela é para Moisés de Lemos Martins fonte de melancolia4... Podería‑mos, aliás, dizer que na civilização tecnológica que o autor critica, caracterizada pelas figuras do “trágico”, do “barroco” e do “grotesco”, quem retorna é Saturno, o daimon da melancolia... Esta divindade que, como Walter Benjamin (1974: 160) analisou, hesita entre o céu (Urano, o seu

apresentando visões e descrevendo gestos que Moisés de Lemos Martins exprime o estado da cultura contemporânea. No lançamento do livro na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, em Braga, José Bragança de Miranda e João Caraça, que o apresentaram, seriam unânimes na constatação e no elogio ao recorrente recurso à metáfora pelo autor. Por sua vez, o autor faria notar que esta linguagem imagética não é “apenas forma” mas é “fundo” no seu modo de pensar.

3 Sobre esta “parte maldita”, seria oportuno também ter em conta as considerações de Georges Didi ‑Huberman (1995) a propósito do conceito de “informe”, noção de Georges Bataille que reenviaria a um real não humani‑zado, não governável, não definível, insubordinado, um espaço que se desfigura e se reconfigura em permanência.

4 Ao longo do ensaio, Moisés de Lemos Martins, assinala pontos de afinidade e de discordância com o sociólogo francês. A este propósito, o segundo capítulo da terceira parte do livro, Espaço Público e Vida Privada, é particularmente esclarecedor.

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pai), e a terra (Gaia, a sua mãe), e vive entre a elevação dos deuses e o peso dos mortais, con‑cederia ao crepúsculo da época não as mil cores da comunhão dionisíaca, mas antes o blue dos solitários que diz a tensão interior permanente, o seu estado de desconforto, o seu espírito de inquietude, o “sentimento de perda daquilo que não se teve e daquilo que não se terá”, como o escreve o autor (p. 189).

A debandada das estrelas

E nesta noite não há estrelas – pois não são elas a segunda metáfora empregue pelo autor no título? Moisés de Lemos Martins (p. 11) retoma uma frase de Paul Virílio, segundo a qual teríamos deixado de olhar para as estrelas para nos virarmos para os ecrãs. Se recorrêssemos a uma genealogia dos media e da comunicação – como o sociólogo o faz, aliás de modo sucinto e esquemático na primeira parte do livro (p. 49) – e se insistíssemos em declinar a metáfora de uma noite sem estre‑las mais exaustivamente, poderíamos dizer que na passagem do século XIX ao século XX, como o entreviram Walter Benjamin ou Siegfried Kra‑cauer, os astros já tinham empalidecido e, no céu nocturno das metrópoles modernas, as estrelas do céu eram já ensombradas pelos potentes cande‑eiros da luz eléctrica, ou ainda apagadas por essa outra espécie de estrelas, as stars que surgiam ple‑nas de brilho na tela do cinema, diante de uma multidão magnetizada. Em meados do século XX, já não era definitivamente às estrelas cadentes que se pediam desejos mas, antes, ao monitor da tele‑visão que, de imediato, os realizava em incríveis destinos: se para Régis Debray (1992) a televisão ainda é o pivot da nossa “videoesfera”, Moisés de Lemos Martins reconhece a centralidade da cai‑xinha mágica dedicando parte das suas considera‑ções à programação televisiva actual, sobretudo na segunda parte do livro. Em pleno século XXI,

já nem sequer se vê que a noite cai, embrenhado que se está nos labirínticos túneis de luz dos nos‑sos ecrãs múltiplos, gigantescos e minúsculos, indoor e outdoor, focos de luz que mais do que nos acompanhar, orientar ou prometer, parecem dar passos por nós, imiscuir ‑se na silhueta do nosso corpo, no traçado dos nossos laços com os outros, fabricando desejos que não nos lembramos de ter pedido. É esta última ruptura, qual hora mais avançada da noite, cronometrada pelo advento do digital, da comunicação em rede e da reali‑dade virtual, que interessa fundamentalmente ao sociólogo.

Moisés de Lemos Martins (p. 19) nota que as estrelas se inscrevem na tradição ocidental e cristã de uma história de sentido, com uma génese e um apocalipse, emparelhando com a palavra e a promessa. Neste sentido, deixar de olhar as estrelas para olhar os ecrãs equivaleria para o autor a abandonar o regime da represen‑tação, “o sun/bole – imagem que reúne”, funda‑mento da razão ocidental, e a ser seduzido pelo “dia/bole – imagem separada”, desviando ‑nos irremediavelmente do caminho de um encon‑tro com “o outro” (pp. 71, 207)5. A viragem da palavra à imagem, e mais especificamente da luz natural e rara das estrelas à luminosidade sinté‑tica e abundante dos ecrãs, equivale a render ‑se ao estatuto autotélico de um mundo separado que nos fascina e perturba, equivale a ocupar a plateia e o palco da “sociedade do espectáculo”, para o dizer nos termos de Guy Debord (2006: 765 ‑859), ou ainda a participar num mundo onde o real está em falta por ser duplicado em imagens, abismado em “simulacro”, para reto‑mar a perspectiva de Jean Baudrillard (1981) A deslocação da palavra para a imagem tecno‑lógica e auto ‑produzida é uma fractura essencial para Moisés de Lemos Martins, “hermeneuta” que “há meia dúzia de anos para cá” se passou a ocupar mais de “imagens do que de discursos” (p. 61), segundo ele próprio escreve. Com uma

5 Se as constatações de uma civilização da imagem se tornaram lugar comum – para exprimir aquilo que, a nosso ver, é mais exactamente uma “civilização do cliché”, como o escreve Gilles Deleuze (1985: 33) –, tam‑bém a crise da dimensão representacionista da imagem aqui convocada é uma ruptura unanimemente notada por autores que vão de Walter Benjamin, no início do século XX, a pensadores mais recentes como Régis Debray (1992), Jacques Rancière (2003) e Georges Didi ‑Huberman (2000).

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ambivalência que, como o notou Georges Didi‑‑Huberman (2000: 124 ‑132), tem caracterizado os grandes pensadores da imagem, o autor reco‑nhece a natureza perversa e diabólica intrínseca à imagem, a sua força alucinatória e a sua propen‑são à fantasmagoria, mas ele aquiesce também neste ensaio com o seu valor epistemológico, a sua relevância enquanto modo de conhecer a sensibilidade contemporânea, levando ‑nos a acompanhar o seu trilho na cacofonia da cul‑tura visual: das silhuetas tatuadas dos bodmods, ao rosto eufórico de Björk nos videoclips de Hyperballad ou de Hunter, às passagens sombrias e aquosas do videoclip de Mercy Street de Peter Gabriel, realizado por Matt Mahurin, aos frames quase repelentes de Existenz de Cronenberg...

A inversão das marionetas

Poderia ainda procurar ‑se uma terceira metá‑fora para a hibridação do humano e a crise da experiência, de tal modo esta ideia se faz recor‑rente ao longo do ensaio. A metáfora que nos falta para ilustrar a perspectiva de Moisés de Lemos Martins pode bem estar, sugerimo ‑lo nós, no célebre texto Sobre o teatro das Marione‑tas de Henrich von Kleist (1998). Neste conto, escrito no século XIX, o senhor C faz um elo‑gio à graça das marionetas, explicando que, para manipular um desses bonecos puxados por fios, seria o maquinista quem deveria dançar, ao inventar uma linha entre a sua alma e o centro do boneco, e ao insuflar com o seu espírito flu‑tuante o corpo inanimado do boneco. A dança imaginária do maquinista insinuar ‑se ‑ia nos membros do manequim que, por serem inertes e elevados a partir do ar, continuariam na mais perfeita harmonia. Ora, hoje, e como que num acto invertido deste teatro de marionetas, tudo se passaria como se fosse o bailarino quem devesse prolongar a dança programada de um manequim automático: o fio etéreo que unia o espírito do

maquinista à anatomia da marioneta ensarilhou‑‑se e os passos do boneco apresentam ‑se como estados de alma a um bailarino que não dança.

O que é que muda fundamentalmente a nossa existência com o advento do ciberespaço e das suas conexões, ou ainda com a emergên‑cia da biotecnologia e das suas próteses? O que está em jogo na aliança da bios com a techné, no “híbrido de humano e não humano”, de orgâ‑nico e inorgânico e, enfim, do estético com o técnico? Vários autores têm respondido a estas perguntas com o reconhecimento de uma con‑fusão entre o sujeito e o objecto técnico, e com a suspeita de que os processos de hibridação do homem com a máquina se fundariam numa ten‑dência à inversão do mundo em que os “seres humanos são vistos como coisas e as coisas, por sua vez, são vistas como seres vivos”, perspectiva subscrita por Moisés de Lemos Martins (p. 24). Uma tal ideia, atribuída pelo autor a Deleuze & Guattari, tem também eco, por exemplo, em Slavoj Žižek (2006) que, a propósito da relação do homem aos novos media, se refere a uma forma contemporânea de “interpassividade”: seriam os meios de comunicação digitais e ditos interactivos que, ao requisitarem permanente‑mente a nossa acção, nos privariam da dimensão passiva da nossa vivência e gozariam assim, em vez de nós, numa espantosa inversão de papéis. Moisés de Lemos Martins vê no sujeito da civi‑lização tecnológica uma “sensibilidade puxada à manivela”, descrevendo o complexo processo de ajustamento entre o homem e a máquina, a partir da noção de “dispositivo”, termo cunhado por Michel Foucault e, mais recentemente, ques‑tionado por Giorgio Agamben (2007)6. O dispo‑sitivo corresponde, para Lemos Martins, a um “esquematismo de produção crescentemente tecnológica” (p. 121), que capta as nossas emo‑ções, aparelha os nossos corpos, arquiva a nossa história e activa as nossas ligações afectivas, indu‑zindo em última instância uma dificuldade em nos apropriarmos da nossa vida.

6 Segundo Agamben, a profusão de dispositivos tecnológicos na nossa vida quotidiana accionaria um rol de processos de subjectivação que, na sua multiplicidade, nos alienariam da nossa própria subjectividade, induzindo o paradoxo de um mecanismo generalizado de “desubjectivação”.

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Inserido em “estruturas de dominação” e alargando o espaço de “controle”, um pouco à maneira do que aconteceria na sociedade panóp‑tica de Foucault, o omnipresente dispositivo tecno lógico, da televisão com o sensacionalista fait divers ao ciberespaço com a pieguice dos chats e dos status instantâneos, serviria o calculismo da técnica com a sensibilidade da estética, mobili‑zando todos os domínios da experiência para o mercado, enquanto coisas “úteis”. E no “mundo raso da troca total” segundo a expressão do autor (p. 157), os homens, os desejos, os sentimentos, as máquinas, os objectos, tudo se exibiria e seria passível de permuta7, traduzindo ‑se na língua de cidadãos descomprometidos, nesse consensual idioma de um mercado à escala do mundo: e “o mundo fala rapidez, satisfação, narcisismo, com‑petitividade, sucesso, êxito”, como escreve Jean‑‑François Lyotard (2005: 155), filósofo da pós‑‑modernidade que inspira a crítica empreendida pelo sociólogo português à democracia neoliberal.

Segundo Moisés de Lemos Martins, o que decorre do contacto quotidiano com os disposi‑tivos na nossa sociedade de informação é, no fim de contas, a crise do humano, o enfraquecimento da experiência, a deterioração do acontecimento. Para voltar ao texto de Henrich von Kleist, dir ‑se‑‑ia que, perdidos nos fios etéreos que nos ligam à marioneta, tomaríamos parte de um baile em modo automático, ora com a sensação um tanto inquietante de não o poder parar, ora com a impressão algo melancólica de já não saber dan‑çar... Para o autor do ensaio, “as necessidades da nossa época” não encontram resposta na sujeição dócil à engrenagem, mas também não se resolvem com uma demanda da alma perdida de bailarino, que restauraria a harmonia da dança... Pondo ‑se do lado de uma “dialéctica tensional” e de uma “filosofia do acontecimento”, Moisés de Lemos Martins (p. 211) sugere um corpo a corpo des‑consertado entre a marioneta e o maquinista, um

confronto desarranjado entre as acções programa‑das de um e as piruetas improvisadas do outro, enfim, o baile prosseguindo no descompasso8.

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7 Em La Monnaie Vivante, obra que suscita várias considerações ao longo deste ensaio, Pierre Klossowski (2008) descreveria rigorosamente este mundo, onde, em última instância, os próprios indivíduos e os seus fantasmas se tornam moeda de troca.

8 Uma noção importante para compreender esta “dialéctica tensional” proposta por Moisés de Lemos Martins é certamente a sua ideia de “travessia” (pp. 18, 19), conceito que nos remete para a aventura que constitui a “actual experiência tecnológica”, pelo seu “perigo” mas também pela possibilidade aberta ao humano e às suas façanhas.

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MartiNs, Moisés de Lemos (2011)

Crise no Castelo da Cultura, Das Estrelas para os Ecrãs

Coimbra: Grácio Editor, 230 pp.

A hereditariedade no jornalismo

José Luiz Fernandes*

Este livro é o resul‑tado de uma iniciativa da Casa da Imprensa que convidou vários jorna‑listas a escreverem sobre outros jornalistas, os seus pais. O objectivo era o de publicar um conjunto de memórias, históricas e afectivas, de algum

modo coincidente com o slogan que resume a história da instituição: “Obra de jornalistas para jornalistas”. Recorde ‑se que a Casa da Imprensa é uma mutualidade fundada em 1904 e legalizada em 1905 com o nome de Associação de Classe dos Trabalhadores da Imprensa de Lisboa. Cabe aqui uma declaração de interesses: o recenseador é presidente da Mesa da Assembleia Geral da Casa da Imprensa mas, sendo a iniciativa da respon‑sabilidade do Conselho de Administração, está salvaguardado o distanciamento crítico necessá‑rio à análise desta memorabilia.

O foco proposto aos autores foi a herança ética e deontológica recebida dos progenitores, mas sem que isso constituísse factor limitativo da expressão das suas memórias. O resultado é muito desigual, embora todos os depoimentos, como seria expectável, se inscrevam no domínio

do pathos. Em alguns, a figura do Pai predomina sobre a do jornalista. Outros alcançam uma assertiva síntese em torno da dupla figuração Pai – jornalista e da herança recebida. Há quem escreva mais sobre si do que sobre o progenitor e numa ou outra página aflora o fantasma da comparação entre pares.

Dos evocados dizem os evocantes que foram professor, mestre, amigo, companheiro, ídolo, herói, conselheiro, exemplo, mentor, expressando estes qualificativos representações em que coexistem o parental e o profissional. Representações que também se expressam por corajosas declara‑ções de amor como esta: “Pai, mesmo longe, eu construí ‑me à tua medida” (p. 16 – não se refe‑rem nesta recensão nomes de autores, apenas a página das citações).

São 18 os jornalistas evocados pelos seus descendentes. Estes, os autores do livro, são 21, pois há um caso em que a descendência se mul‑tiplica por dois jornalistas e noutro por três. São exemplos de um aspecto pouco estudado do jor‑nalismo em Portugal, i.e., como a proximidade parental pode ser um factor de motivação para a profissão e, também, como tem sido um modo endógeno de acesso ao grupo profissional. No caso dos evocantes, essa interacção entre proxi‑midade, tendo os pais como modelos motivado‑res, e o modo de acesso, através ou por influência da relação parental, é inequívoca.

Há duas evocações que se estendem à ter‑ceira geração. É uma situação que se verifica com frequência entre os jornalistas portugueses, a de três gerações sucessivas de profissionais. Mas, além destas relações directas, ascendentes‑‑descendentes, existem relações familiares que se estabelecem após o ingresso no grupo profissio‑nal entre jornalistas já em segunda geração, ou seja, ligações de carácter conjugal entre jornalis‑tas filhos de jornalistas.

Estas relações de tipo clânico ainda não foram estudadas com o objectivo de determinar even‑tuais consequências de carácter endogâmico na

* Jornalista. Doutorando em Sociologia, especialidade Comunicação, Cultura e Educação, pelo ISCTE – Ins‑tituto Universitário de Lisboa.

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esfera subjectiva dos jornalistas e até nas esferas organizacional e exterior (Rieffel, 2004).

Dos profissionais do jornalismo evocados só um é mulher. Uma desproporção devida às idades dos evocados, na sua maioria jornalistas de uma época em que as mulheres eram uma raridade nas redacções. A proporção entre os evocantes, em que seis são mulheres, indica que alguma coisa se alterou na estrutura de género na profissão. A feminização dos jornalistas em Portugal intensificou ‑se nos anos 80, quando a percentagem de mulheres ultrapassou os 20%, continuando a crescer até alcançar, em 2009, os 40,7%, correspondentes a 2814 mulheres num total de 6917 profissionais (Rebelo, 2011)

Dez dos evocados estão falecidos, sete são reformados ou próximo de sê ‑lo e só um conti‑nua em actividade nas redacções. Como a idade de alguns dos depoentes se aproxima da idade da reforma, temos neste livro uma narrativa sobre uma realidade social com um horizonte retrospectivo até à década de 70 e que num caso de memórias de infância recua até aos anos 40.

É neste contexto histórico e geracional que se deve interpretar o que é afirmado como sendo os valores recebidos em herança, que se resumem nas seguintes palavras ‑chave: liberdade (por opo‑sição a censura), rigor, verdade, exigência, trabalho, esforço, justiça, solidariedade, honestidade, humil‑dade, amor, entrega, paixão.

Alguns depoimentos relatam de forma breve episódios relacionados com as práticas jornalísti‑cas. Os mais relevantes, do ponto de vista socio‑lógico, são os que incidem sobre as motivações e os modos de acesso à profissão, mas dos evo‑cantes e não dos evocados, que sobre estes essa é matéria escassa.

“Estava, portanto, irremediavelmente infec‑tado para o resto da vida” é como um dos depo‑entes sintetiza (p. 42) o resultado das visitas que fazia com o pai ao jornal onde trabalhava. Quinze dos autores referem explicitamente como esse contacto com os ambientes de trabalho foi determinante nas suas vidas. Outros acrescen‑tam como se iniciaram no jornalismo, pela mão dos progenitores e com a cumplicidade dos ami‑gos, em pequenas tarefas secundárias. Outros

clarificam como a “aventura”do jornalismo se substituiu ao prosseguimento dos cursos superio‑res que os conduziriam a outra profissão.

O que é reconhecível em todos os depoimen‑tos, mesmo naqueles que pouco desvelam a tes‑situra das relações interpessoais e familiares, é o processo de osmose de apreensão e compreensão dos valores e métodos profissionais. Um processo semelhante ao que a sociologia do jornalismo já identificou nas redacções. Recorrendo a um termo ao qual o pedantismo cola um tom depre‑ciativo, dir ‑se ‑ia que nestes casos a “tarimba” começou no lar, antes do ingresso “numa licen‑ciatura de rigor e qualidade” nas escolas de “arte‑sãos de jornais” que eram as redacções, como escreve um dos autores (p. 109).

Um processo osmótico e com algo de iniciá‑tico. “Tudo em nossa casa era por causa do jor‑nal já que a causa do jornal era tudo”, escreve outro autor (p. 8). Um processo em que o hábito da leitura surge como primordial e iniciador do futuro gosto pela escrita. Um percurso em que, para a criança, as presenças do Pai são as ausên‑cias do jornalista e estas se revelam porta para a descoberta do mundo existente para além do contexto familiar.

Este livro, na sua brevidade, traz ‑nos um olhar pouco habitual, senão original, sobre o jornalismo pelo lado da instituição familiar. Na sua simplicidade não deixa de nos colocar perante a questão central da natureza do jorna‑lismo: “Trata ‑se de uma paixão? Não só. Ele uma vez explicou ‑me que não é possível viver sempre apaixonado. Trata ‑se de uma forma de vida, de uma forma de ser.” (p.61).

Referências bibliográficas

rEbElo, José (coord.), (2011), Ser Jornalista em Portugal – perfis sociológicos, Lisboa: Gradiva.

riEFFEl, Rémy Rieffel (2004), Sociologia dos Media, Porto: Porto Editora.

AA.VV. (2011)

Jornalistas – Pais e Filhos

Porto: Fronteira do Caos, 116 pp.

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rEsuMos(Abstracts)

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Resumos (Abstracts)

As novas gerações de jornalistas em PortugalJosé Rebelo

Cerca de 4 000 jornalistas entraram na profissão depois do ano 2000. Trata ‑se de uma geração que emergiu em plena crise económica e financeira. Que se confronta com um mercado de trabalho em recessão permanente: empresas que encerram, que se associam, que são integradas em grupos multimédia com a inerente redução de efectivos. Neste grupo de jornalistas, há, decerto, os que mantêm alguma esperança de singrar na profis‑são. Também há os que, pelas razões mais varia‑das, atingiram, rapidamente, posições de chefia. Mas, no grupo dos jovens portadores de título emitido pela Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, avultam aqueles que acumulam estágios e mais estágios sem jamais conseguirem regularizar a sua situação profissional. À seme‑lhança do que se observa noutros países europeus, grassa, nestes eternos estagiários, o pessimismo e a amargura. Grassa, enfim, o desencanto face a uma profissão que, no espaço público, sempre se caracterizou por um estatuto de privilégio.

Palavras ‑chave: Estagiários; Crise; Qualificação

profissional; Acesso à profissão; Representações.

Alguém chamou Ana Gomesde rottweiler?Tânia dos Reis Alves

Anal isa ‑ se a constelação de discursos desencadeados pela divulgação feita pelo El

The new generations of journalists in Portugal José Rebelo

About 4 000 journalists started their career after the year 2000; a generation who emerged during the financial and economic crisis. A generation facing a permanent downturn in the labour market: companies closing, merging, integrating in multimedia groups with the inherent reduction of employees. In this group of journalists, there are certainly those holding some hope of moving forward with the profession. There are also those, for the most varied reasons, who rapidly reached headship positions. But within the group of young people with the license issued by the Portfolio Committee for Professional Journalists, there are many who accumulate internships after internships without ever get to regularize their employment status. Likely to what is observed in other European countries, it rages, in these eternal interns, pessimism and bitterness. It rages also the disenchantment for a profession that has always been characterized by a privileged status in public space.

Keywords: Interns; Crisis; Professional Qualifica‑

tion; Access to the profession; Representations.

Did someone call Ana Gomes Rottweiler? Tânia dos Reis Alves

The article analyses the constellation of discourses triggered by El País of telegrams

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País, a partir da plataforma WikiLeaks, de telegramas que encerravam matéria confidencial. No epicentro desta torrente discursiva está a acusação, segundo o conteúdo revelado num dos telegramas, à eurodeputada do PS, Ana Gomes, de “rottweiler à solta”, formulada por um outro membro do mesmo partido, ligado aos círculos próximos do Governo – Roza de Oliveira.

Palavras ‑chave: Acontecimento; Problema Público; Citação; Denegação; Não ‑dito.

Monopólio da fala e espontaneidade das massasEduardo Granja Coutinho

Este ensaio tem como objetivo refletir sobre a linguagem, entendida como um campo de luta pela hegemonia político ‑cultural. A partir de uma perspectiva teórica de inspiração gramsciana, pretende ‑se mostrar que o procedimento típico da hegemonia burguesa é a reificação das formas culturais (G. Lukács), a criação de mitos (R. Bar‑thes), a subordinação das falas populares ao dis‑curso monológico oficial (M. Bakhtin). Mostra‑‑se, em contrapartida, que a organização de uma cultura contra ‑hegemônica envolve esforço de “desnaturalização”, de historização daquilo que se impõe, ideologicamente, como uma verdade eterna. Nessa perspectiva, analisa ‑se um episódio de grande repercussão mundial, envolvendo um representante emblemático daquilo que se pode chamar de “monopólio da fala”: o locutor de pro‑gramas esportivos Galvão Bueno. Busca ‑se identi‑ficar, na resistência popular ao seu discurso, uma fala carnavalizante que zomba da ordem domi‑nante e das idéias cristalizadas.

Palavras ‑chave: Linguagem; Hegemonia; Contra‑‑hegemonia; Reificação.

holding confidential matters, from the Wiki Leaks platform. At the epicentre of this discursive stream is the accusation to the MEP of the Socialist Party, Ana Gomes, of “Rottweiler on the loose”, pronounced by another member of the party, linked to the circles close to the Government – Roza de Oliveira, according to the content revealed in one of the telegrams.

Keywords: Happening; Public problem; Quota‑tion; Denegation; Unsaid.

Speech monopoly and spontaneity of the massesEduardo Granja Coutinho

This essay intends to reflect about language, which is understood as a field of struggle for political and cultural hegemony. From a gramscian theoretical perspective, intends to show that the typical procedure of the bourgeois hegemony is the subordination of the popular cultural forms to official monologial speech. On the other hand, it discloses the facts that the organization of a counter hegemonic culture involves an effort to historicize what is taken for granted as an eternal truth. In this perspective, an episode of great world ‑wide repercussion is analyzed, involving an emblematic token of what may be called “monopoly of speech”: the sport speaker, Galvão Bueno. Therefore, this essay intends to identify, in the popular resistance to this ideology, a speech that jeers of the dominant order and its crystallized ideas.

Keywords: Language; Hegemony; Reification.

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Os jornalistas de músicae a indústria musical:entre o gatekeeping e o cheerleadingPedro Belchior Nunes

Examina ‑se a relação entre os jornalistas de música e a indústria musical em Portugal, repre‑sentada pelos promotores de imprensa nas edi‑toras discográficas e nas empresas promotoras de espectáculos. A partir de alguns contributos teóricos como, por exemplo, os de capital cul‑tural, social e simbólico, enunciados por Bour‑dieu, acede ‑se a uma análise dessa relação através do discurso captado em entrevistas aprofunda‑das a jornalistas na área da música dita popular (ou pop no contexto português) e a promotores de imprensa nas editoras e nas promotoras de espectáculos.

Palavras ‑chave: Jornalismo Musical; Indústria Discográfica; Gatekeeping; Capital.

Delinquência juvenil enquanto alimento noticiosoMaria José Brites

Os olhares dos media testemunham o estado de uma sociedade e também contribuem para a construção dessa multipluralidade social. As expressões, a linguagem e o enquadramento noticioso sobre a delinquência juvenil forma‑tam conceitos e ideias, constroem a realidade, mas também a reflectem. Partindo da contextu‑alização histórica e da análise quantitativa e qua‑litativa da cobertura da delinquência juvenil no Público e no Correio da Manhã, em momentos de rotina e de extra ‑rotina, bem como da análise de cinco entrevistas a agentes das forças policiais e a jornalistas, procura ‑se identificar contextos e opções jornalísticas bem como representações do fenómeno.

Palavras ‑chave: Delinquência; Cobertura jorna‑lística; Jovens; Enquadramento.

Music journalists and the music industry: in between gatekeeping and cheerleadingPedro Belchior Nunes

The article analyses the relation between music journalists and the music industry in Portugal, represented by the press promoters in record companies and in show companies’ promoters. From some theoretical contributions as, for instance, the social, symbolic and cultural capital, enounced by Bourdieu, we accede to an analysis of this relation from the discourse captured in depth interviews to journalists in the field of popular music (or pop in the Portuguese context) and press promoters in record companies and show promoters.

Keywords: Music Jounalism; Record Industry; Gatekeeping; Capital.

Juvenile delinquency as a news themeMaria José Brites

The views of the media witness the state of a society and also contribute to the construction of this social multi plurality. The expressions, the language and the news framework on juvenile delinquency format concepts and ideas, build realities, but also reflect them. Based on the historical background and the quantitative and qualitative analysis of the news coverage on juvenile crime in the newspapers Público and Correio da Manhã, in routines and extra ‑routines times, as well as the analysis of five interviews with police agents and journalists, we seek to identify contexts and journalistic options as well as representations of the phenomenon.

Keywords: Delinquency; Press coverage; Youth; Framework

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Do espelho à fotografia: fixação e diferimentoMaria Augusta Babo

Aborda ‑se a distância que separa a imagem espe‑cular, presencial e evanescente, da imagem foto‑gráfica, retencional e diferida. No processo de criação identitária do sujeito, a fotografia, des‑tinada à fixação do momento, confronta ‑o com a passagem do tempo, com a dissociação cons‑tante em que este se encontra face à sua imagem. A fotografia encerra algo da ordem da cisão: se procura captar a aura que só a presença aqui e agora, irreprodutível, do sujeito, garante, tam‑bém se desliga, irremediavelmente, daquele momento único e irrepetível que é o acto de captura da imagem. O paradoxo da fotografia é, então, o de jogar com procedimentos que se auto ‑excluem.

Palavras ‑chave:Fotografia; Espelho; Retenção; Sujeito; Presença.

Do desenho do espaço ao espaçoda escrita: Trajectos da memóriae inscrição da identidade no filme MementoMaria Irene Aparício

Memória e identidade são conceitos frequente‑mente explorados por cineastas contemporâneos, nomeadamente Christopher Nolan em Memento (EUA, 2000), filme que nos propõe o tema desta reflexão. O nosso objectivo é compreender a forma como a obra entrelaça as temáticas em epí‑grafe, através de movimentos cruzados de criação e interpretação, recorrendo ao esboço de espaços de natureza diversa (e.g. imagéticos, diegéticos, plásticos, mnésicos, etc.) que interpelam conti‑nuamente o espectador. O filme configura o tra‑jecto de múltiplas inscrições – da escrita da luz no filme ao traço da escrita no corpo – e estabelece um mapa possível de compreensão das relações entre memória, identidade e emoção.

Palavras ‑chave: Filme; Espaço; Escrita; Memória; Identidade.

From the mirror to photography: fixation and deferral Maria Augusta Babo

The article discusses the distance that separates the mirror, presential and evanescent image from the photographic, retentional and deferred image. In the process of identity building of the subject, the photography, aimed at holding the moment, confront the subject with the passing of time, with the constant dissociation that is given to his/her image. Photography holds something on the order of scission: if it seeks to capture the aura that only the irreproducible presence, here and now, of the subject guarantees, it also disconnects itself, inevitably, of that unique and unrepeatable moment which is the act of the image capture. The paradox of photography is, then, to deal with procedures that mutually exclude each other.

Keywords: Photography; Mirror; Retention; Sub‑ject; Presence.

Memory trajectories and identity inscription in the film Memento Maria Irene Aparício

Memory and identity are concepts explored by contemporary film directors, namely Christopher Nolan in the film Memento (USA, 2000). Our purpose is to understand how this film interlaces memos and mementos with space and time, as a movement towards creation and interpretation, falling back upon the sketch of different kind of spaces (e.g. image, narrative, plastics, mnemonic, etc.). The film configures the trajectory of multiple registrations (e.g. writing with light, sketching handwriting, etc.), in order to draw a map of the relationship between, memory, identity, and emotion.

Keywords: Film; Space; Writing; Memory; Iden‑tity.

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Corpo, graça e consciência Maria Cristina Franco Ferraz

O artigo investiga o conceito de graça (Anmut) do corpo, remetido à dança e ao corpo do bailarino. A leitura do texto de Heinrich von Kleist “Sobre o teatro de marionetes” é articulada com reflexões de José Gil acerca do corpo do bailarino e às de Henri Bergson sobre o mecânico aplicado ao vivo, fonte do riso, da comicidade. A exploração desse texto permite cernir as complexas relações entre graça, consciência e imagem, acrescentando à reflexão sobre o corpo o tema oportunamente anacrônico da perda da alma, por efeito de uma consciência refletida nos espetacularizados espe‑lhos da imagem.

Palavras ‑chave: Graça; Corpo; Dança; Consciên‑cia; Imagem.

O acontecimento em Gilles DeleuzeSofia Nunes

Da vasta constelação de conceitos que organizam o pensamento de Gilles Deleuze, destaca ‑se um pela particularidade de descartar o ser das coisas, de desregular as ordens do tempo e do sentido e de devolver ao campo da experiência possibi‑lidades de diferença. Referimo ‑nos ao conceito de acontecimento, desenvolvido de modo apro‑fundado em Lógica do Sentido e que ocupará o presente texto. Seguindo de perto os argumen‑tos deste mesmo livro, procuraremos perscrutar aqui as especificidades do conceito.

Palavras ‑chave: Acontecimento; Aiôn; Contra‑‑efectuação; Efectuação; Síntese Disjuntiva.

Educação, mídia e espaço socialRaquel Paiva and Muniz Sodré

A proliferação dos objetos técnicos na esfera da informação e da educação não deve ocultar o fato de que o conhecimento começa nas inte‑

Grace, body and conscience Maria Cristina Franco Ferraz

This article investigates the concept of grace (Anmut) referred to dance and to the dancer’s moving body. Heinrich von Kleist’s On the Marionette Theatre is articulated with some reflexions developed by José Gil on the dancing body, and with Henri Bergson’s ideas on mecanicity applied to the body as a source of laughter. Two centuries after Kleist’s text, the theme of graciosity connected to the movements of dance helps to emphasize the loss of the soul (delicious anachronical term) and of graciosity as correlated effects of a conscience reflected in the spectacularized mirrors of image.

Keywords: Graciosity; Body; Dance; Conscious‑ness; Image.

The happening in Gilles Deleuze Sofia Nunes

From the vast constellation of concepts that organize the thinking of Gilles Deleuze, there is one that stands out by its particularity of discarding the being of things, deregulating the orders of time and sense, and returning to the field of experiences possibilities of being different. We refer to the concept of happening, developed in depth in Logic of Sense and subject of this text. Following closely the arguments of this same book, we will seek to examine the specificities of this concept.

Keywords: Happening; Aiôn; Counter‑effectua‑tion; Effectuation; Disjunctive synthesis.

Education, media and social space Raquel Paiva and Muniz Sodré

The great increase of media technology within range of information and education should not hold back the fact that knowledge and learning

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rações, portanto, nos jogos de linguagem e na vinculação comunitária. A comunidade reapa‑rece, assim, como uma questão prática e teórica, em razão das suas possibilidades de fluxos para as relações humanas requeridas pela nova socie‑dade do conhecimento. Nessa nova realidade, há fortes indicações no sentido de que os profes‑sores não são mais as fontes únicas de informa‑ção e saber. No Brasil, entre os jovens com baixa escolaridade nas periferias urbanas, a tradicional interação escolar pode ficar atrás do medium cha‑mado Internet, o que demonstra como a tecno‑logia é capaz de preceder a educação formal. Por outro lado, a digitalização dos suportes de trans‑missão cultural exacerba a desvinculação entre a escola e qualquer suporte físico do conheci‑mento, estendendo a possibilidade de escolari‑zação a lugares e tempos novos. A escolarização é cada vez mais um processo heterotópico (o lugar para se aprender pode ser qualquer um, seja uma empresa, um hospital ou a Internet) e transgera‑cional, algo, portanto, a se realizar em qualquer lugar e em qualquer época da vida de um indi‑víduo. A sociedade do conhecimento implica, assim, uma ligação visceral da cidadania com as novas formas públicas de cultura. Tudo isso reclama uma reforma radical dos métodos de escolarização, em que andem necessariamente juntas a educação e a comunicação.

Palavras ‑chave: Educação; Tecnologia; Comuni‑cação; Reforma.

Comunicação em rede ou o utilizador utilizado?Adelino Gomes

As audiências e os novos média ganharam uma centralidade sem precedentes no processo comu‑nicacional. E desafiam, de forma crescente, a agenda unilateral e as funções de produção e de distribuição, exclusivas, até recentemente, do polo da edição (jornalistas e redacções). Nesta abordagem, alargamos o conceito de gatekeeping aos contextos em rede, problematizamos a capa‑

stem from interactions, therefore from language games and community links. Community arises thus as a theoretical and practical issue due to its prospects on human communications required by the arising knowledge society. There is some evidence as for the assessment that school teachers are no longer the unmatched sources of knowledge and information. In Brazilian suburbs or slums undertrained youth use now to put the traditional school interaction behind Internet. That may suggest that media technology is adjustable to low income communities and might even take precedence of formal schooling in peculiar circumstances. On the other hand the digital controlled keying of cultural communication holders enhances disentailing between schooling and material knowledge bearers whatsoever, which gives rise to education on times and places. Schooling is more and more a heterotopical manner of proceeding, meaning the place for learning may be everywhere (a corporation, a hospital, Internet and so on). It is also transgenerational, meaning it is never out of season, so it can be accomplished in any age of a lifetime. Thus knowledge society asks for a close connection between citizenship and the new public ways of culture, which implies a thoroughgoing renovation of training methods in order to put together education and communication.

Keywords: Education; Technology; Communica‑

tion; Community.

Network communication or an user used? Adelino Gomes

The audiences and the new media won an unprecedented centrality in the communication process. And they increasingly challenge the unilateral agenda and functions of production and distribution, which were exclusive, until recently, of the edition pole (journalists and newsroom). In this approach, we broaden the concept of gate keeping to the context

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cidade de agência do utilizador e exploramos hipóteses explicativas para o paradoxo econó‑mico que leva este último a contribuir gratuita‑mente para uma nova forma de valor em regime de capitalismo informacional.

Palavras ‑chave: Gatekeeping em Rede; Gated; Pro‑duser; Agência do Utilizador; Economia de Con‑tribuição; Pharmakon Internet.

Campanhas políticas online: uma análise das estratégias dos candidatos a deputados às eleições legislativas de 2009Filipa Seiceira

O objectivo deste artigo é contribuir para a aná‑lise da utilização da Internet, em Portugal, no âmbito das campanhas eleitorais para a Assem‑bleia da República. Conclui ‑se que os candidatos, quer os que são apresentados por partidos políti‑cos, quer os independentes, optam por modali‑dades como o e ‑mail, para distribuir informação e organizar actividades, em detrimento de outras modalidades que favorecem a interactividade com os eleitores como a construção e manuten‑ção de blogues e a realização de chats.

Palavras ‑chave: Internet; Campanhas Eleitorais; Candidatos; Divulgação; Interactividade.

in network; we problematize the user agency capacity and we explore hypothesis that could explain the economic paradox that leads the latter to contribute freely to a new form of value in an informational capitalism regime.

Keywords: Network gate keeping; Gated; Producer;

User agency; Contribution Economy; Pharmakon

Internet.

Online political campaigns: an analysis of the deputies’ candidates’ strategies to the 2009 legislatives electionsFilipa Seiceira

The goal of this article is to contribute to an analysis of Internet use, in Portugal, in the scope of legislative campaigns. We conclude that the candidates, both the ones representing political parties as the independent ones, choose for modalities as e ‑mail to distribute information and organize activities over other modalities that foster interactivity with voters such as construction and maintenance of blogs and chats.

Keywords: Internet; Electoral Campaigns; Can‑didates; Divulgation; Interactivity.

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Normas para a Apresentação de Textos

1. Os artigos devem ser originais. Quaisquer excepções, devidamente argumentadas pelo(s) autor(es), serão objecto de apreciação pelo Conselho de Redacção.

2. A decisão de publicação pertence ao Conselho de Redacção, após avaliação por especialistas.

3. O nome do autor virá acompanhado de curta indicação curricular: formação académica, situação profissional ou nome da instituição onde desenvolve a actividade principal.

4. Os artigos não deverão ultrapassar os 45 000 caracteres (espaços incluídos).

5. Serão formatados a corpo 12, fonte Times New Roman, espaço 1,5.

6. As transcrições serão colocadas entre aspas e os vocábulos ou expressões em língua estran‑geira, formatados em itálico.

7. A numeração das notas será contínua, do início ao fim do artigo, e as notas situar ‑se ‑ão em baixo da página respectiva.

8. Para além do texto, os autores fornecerão, em português e inglês, um resumo de, aproxima‑damente, 500 caracteres assim como palavras ‑chave.

9. As citações no texto obedecerão ao sistema de citação autor ‑data (Harvard).

Um a três autores

Exemplos: (Bourdieu, 1994: 113) ou (Pélissier e Ruellan, 2002: 20 ‑23)

Mais de três autores

Neste caso, cita ‑se o nome do primeiro e, para os seguintes, utiliza ‑se a expressão et al. Exemplo: (Green et al., 2005)

Várias obras do mesmo autor com a mesma data

Neste caso, deve ser feita distinção através do acoplamento à data de uma letra minúscula, respeitando a ordem natural do alfabeto.

Exemplo: (Dunn, 2003a) e (Dunn, 2003b).

Fontes secundárias

As fontes secundárias devem ser referidas da seguinte forma: “segundo Brown (1966 cit. in Brassett, 1986: 142)” ou “(Brown, 1966 cit. in Brassett, 1986: 142)”.

Autor repetidamente citado

(Idem, 10) ou (Ibidem) no caso de ser citada a mesma obra na mesma página.

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Várias citações na mesma frase

A ordenação é feita pela data, por ordem crescente. Caso haja mais do que uma citação para o mesmo ano, a ordenação passa a ser feita alfabeticamente.

Exemplo: (Bourdieu, 1989; Cantavella, 2000; Patterson, 2000; Rebelo, 2000; Gil, 2004).

10. No final do texto deve ser apresentada uma lista apenas com as referências bibliográficas citadas no texto, obedecendo às seguintes normas de estilo:

Livro

No caso de se tratar de uma 1.ª edição: bourdiEu, Pierre (1994). Raisons Pratiques. Paris: Seuil.

No caso de se tratar de uma 3.ª edição:rEdMaN, Peter (2006). Good essay writing: a social sciences guide. 3.ª ed. London: Open University.

E ‑book

carlsEN, J. and chartErs, S., eds. 2007. Global wine tourism. [e ‑book] Wallingford: CABI Pub. Disponível em: Anglia Ruskin University Library website <www.libweb.anglia.ac.uk> [Acedido em 9 Junho 2008].

Capítulo de livro

saMsoN, William (1970), Problems of information studies in history. In: S. Stone, ed. Humanities information research. Sheffield: CRUS, pp. 44 ‑68.

Artigo de revista

dubois, Jean ‑Pierre (2004), “Direito e técnica: ferramentas e questões”. Trajectos, 5, pp. 129 ‑132.

Artigo em obra colectiva

crary , Jonathan (2001), A visão que se desprende: Manet e o observador atento no fim do século XIX. In: Charney e Schwartz (org.), O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify.

Sítio da Internet

saraMago, José (Dez. 1998), “À quoi sert la communication?”, Le Monde Diplomatique, p. 26, http://www.Monde ‑Diplomatique.Fr/1998/12/Saramago/11410.html [Acedido em 4 Janeiro 1999].

11. Cabe aos autores a obtenção do copyright das ilustrações, quadros ou figuras que reproduzam nos seus textos.

12. As imagens devem possuir uma resolução mínima de 300 dpi.

13. Os originais não serão devolvidos.

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Índice dos Números Anteriores

N.º 1 | JUNHO de 2002

EM ANÁLISEMetodologias e Práticas em Ciências “Indisciplinadas”, de

J. M. Paquete de OliveiraO Ensino e a Investigação das Ciências da Comunicação em

Portugal, de José RebeloPara Dizer da Não Neutralidade da “Objectividade Noticiosa”,

de Sandra AmaralO Hipertexto como Forma de Escrita, de Maria Augusta

BaboNotas sobre Ecrãs e o Virtual, de João Maria Mendes

DISCURSIVIDADES174, Central/Gávea: Os Media Propõem Novo Roteiro de

Leitura, de Geraldo Nunes e Sónia Taddei FerrazTecnociência, Bioética e a Posição Católica em Portugal, de

Helena Mateus Jerónimo

DOSSIER – TELEVISÃOA Televisão, de Peppino OrtolevaAs Categorias Temáticas Dominantes nos Telejornais, de

Nuno BrandãoTelevisão: E Não se Pode Regulá ‑la?, de Diana Andringa

RECENSÕES“Livro de Reclamações – Exercício de Deontologia da Informação,

de Diogo Pires Aurélio”“A Ironia da Comunicação, de Henri ‑Pierre Jeudy”“Linguagem dos Conflitos, de Manuel Carlos Chaparro”

N.º 2 | JANEIRO de 2003

EM ANÁLISEA Falência das Identidades, de Alexandre MeloA Construção Social de “Identidades de Escola”, de Pedro

AbrantesSer Bailarino na Companhia Nacional de Bailado: Entre a

Profissão e a Vida, de Lia Pappámikail Ribeiro d’AlmeidaComunicação da Memória em Sociedade, de Fernando

Barone

DISCURSIVIDADESA Informação Religiosa nos Diários de “Referência” , de Ale‑

xandre Manuel

DOSSIER – NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO

A Crítica Política da Tecnologia como Tarefa da Sociologia Contemporânea, de José Luís Garcia

A Internet e a Sociedade em Rede, de Manuel CastellsPara Compreender o Impacte da Internet no Jornalismo, de

Mark Deuze

À Procura de Interlocutor. Para Conversar, Trocar Informação, Ouvir Música ou Namorar, de Gustavo Cardoso

A Tematização Publicitária da Sociedade de Informação, de Ruth Gregório

Novas Formas de Comunicação em Educação, de Fernando M. S. Ramos

LEITURASO Discurso do Ceptro e a Significação (sobre “A Linguagem,

a Verdade e o Poder – Ensaio de Semiótica Social, de Moisés de Lemos Martins”), por Luís Carmelo

“Comunicação Social e Representações do Crime, de Pierre Guibentif”, por António Cluny

A FECHARBreves Impressões da América, de Tito Cardoso e Cunha

N.º 3 | OUTONO de 2003

EM ANÁLISEEspaço Público no Centro Comercial: O Amoreiras como Porta

de Entrada, de Pedro MonteiroAs Telenovelas Brasileiras em Portugal: Indicadores de Acei‑

tação e Mudança, de Isabel Ferin CunhaO Grande Plano e a Pouca Informação: Um Olhar sobre a

Guerra contra o Iraque, de João Manuel RochaO Corpo, a Sedução, o Erotismo e a Sexualidade na Publici‑

dade, de Jorge Veríssimo

DISCURSIVIDADESA Experiência da Leitura ou a Leitura como Prática, de Maria

Augusta BaboDa Tradução como “Actividade Democrática”, de Miguel

Serras PereiraA Sensibilidade Artificial: Os Modos do Sensível, de José

Augusto Mourão

DOSSIER – QUOTIDIANOSApresentação, de José Machado PaisRegresso à Sociologia da Vida Quotidiana, de Claude JaveauA Criação e o Trágico no Quotidiano, de Michel MaffesoliA Natureza Ambivalente da Vida Quotidiana e a sua Gestão

Técnica, de Adriano Duarte RodriguesOdores, Ruídos e Cores nos Códigos da Vida Quotidiana do

Subúrbio de São Paulo, Brasil, de José de Souza MartinsA Cidade Secreta: Os Espaços Quotidianos dos Jovens, de

Carles FeixaO Simbolismo Social do Tabaco na Vida Quotidiana, de Torben

Bechmann JensenSabores e Saberes Diários: Os Estabelecimentos do Beber

Público, de Pedro de Andrade

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N.º 4 | PRIMAVERA de 2004

EM ANÁLISEFotografia de Ocasião, Imagem Privada, de Paula FigueiredoO Gosto, de Andreia VieiraBranco, de Ana CalhauProdução Mediática e Transversalidade Democrática, de

Raquel Paiva e Muniz Sodré

DISCURSIVIDADESO Adiamento e o Movimento Desconforme em Álvaro de

Campos, “Poeta Sociólogo” e “Theorista Social”, de Mauro Rovai

O Erro de Damásio?, de Porfírio Silva

DOSSIER – A FORMAÇÃO AO LONGO DA VIDAApresentação, de José Manuel Prostes da FonsecaA Regulação Social da Educação, de Teresa AmbrósioO reconhecimento e a Validação das Aprendizagens dos Adul‑

tos: Contributos para a Reflexão Educativa, de Ana Luísa de Oliveira Pires

A Inserção Profissional como Etapa da Aprendizagem ao Longo da Vida: Desafios para o Ensino Superior, de Mariana Gaio Alves

A Aprendizagem Organizacional nas Estratégias de Gestão Empresarial, de Maria José Gonçalves

O “Caso AutoEuropa”, de Alcino PascoalBreves Notas sobre a Formação Profissional no Código do Tra‑

balho, de António Monteiro Fernandes

LEITURAS“O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na Sociedade Contem‑

porânea, de Mário Mesquita”, por Sofia Pappámikail da Costa Marinho

“Novas Formas de Mobilização Popular, de José Rebelo (org.)”, por Sofia Pappámikail da Costa Marinho

“A Guerra em Directo, de Carlos Fino”, por Vanda Ferreira

N.º 5 | OUTONO de 2004

EM ANÁLISEGazeta da Semana: Quando a Utopia Desafiou as Leis do Mer‑

cado ou Pode o Realismo Impedir o Impossível?, de Ade‑lino Gomes

Valores Sociais dos Jornalistas Portugueses: Família, Política e Ciência, de Pedro Alcântara da Silva e Hugo Mendes

A Técnica da Clonagem como Plataforma entre Ficção e Rea‑lidade. Análise Qualitativa das Primeiras Notícias do Jornal Público sobre o Nascimento da Ovelha Dolly, de Maria José Marques

DISCURSIVIDADESA Saturação dos media, de Tito Cardoso e CunhaA Questão da Objectividade nos Media e nas Ciências Sociais,

de Avelino RodriguesPor uma Robótica Institucionalista: Um Olhar sobre as Novas

Metáforas da Inteligência Artificial, de Porfírio Silva

DOSSIER – TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO NO TRABA‑LHO: QUE LIMITES?

Apresentação, de Pierre GuibentifO Direito, uma Técnica Diferente das Outras: A Propósito

das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação, de Alain Supiot

A Investigação da Internet e o Desafio da Responsabilidade, de Gustavo Cardoso

Direito e Técnica: Ferramentas e Questões, de Jean ‑Pierre Dubois

Algumas Notas Interrogativas sobre Direito e Trabalho, de João Freire

Uma Visão Idealista do Direito?, de José RebeloTécnica, Tecnologia e Direito. Ambivalências e Ambiguidades,

de Maria Eduarda Gonçalves

N.º 6 | PRIMAVERA de 2005

EM ANÁLISETeorias e Práticas do Jornalismo: Do Telégrafo ao Hipertexto,

de Mário MesquitaUma Escola de Jornalismo para Jovens das Favelas do Rio de

Janeiro, de Jailson de Souza e SilvaOs Media Portugueses na Internet – Contributos para uma

Cibersociologia, de Tânia de Morais SoaresFronteiras, Identidade e Nação: Portugal Imaginado no

Cinema Europeu de Viagens, de Maria Luís Rovisco

DOSSIER – O ACONTECIMENTOApresentação, de José RebeloEntre Facto e Sentido: A Dualidade do Acontecimento, de

Louis QuéréDa Perca do “Mundo” à Sociedade dos (Mega)acontecimen‑

tos, de José Manuel SantosA Constituição do Sentido do Acontecimento na Experiência

Pública, de Isabel Babo LançaSobre o Facto e o Acontecimento, de Raquel Paiva e Muniz

SodréMedia e Acontecimentos (Com)sentidos, de Cristina PonteAcontecimento e Biografia, de Tito Cardoso e CunhaEntre Facto e Sentido: Contar o Acontecimento, de Jocelyne

ArquembourgO Acontecimento como Invenção Necessária da História, de

José A. Bragança de MirandaO Poder Hermenêutico do Acontecimento e os Media, de

Moisés de Lemos Martins

N.º 7 | OUTONO de 2005

EM ANÁLISEA Imagem em Actos, de Frédéric LambertAs Campanhas Presidenciais nos Títulos do Diário de Notícias,

de Estrela SerranoPublicidade e Tematização: Representações da Sociedade da

Informação na Publicidade Televisiva de Portugal e da Irlanda, de Ruth Gregório

Estratégias de Programação das Televisões Públicas de Espa‑nha e Portugal, de Fernando Sabes Turmo

DOSSIER – VIVER (N)A CIDADEEspaço Público e Cultura Urbana, de Vítor Matias FerreiraA Cidade e os seus Regimes de Inscrição, de Maria Augusta BaboVítima Virtual e Medo do Crime no Rio de Janeiro, de Paulo

Vaz, Mariana Cavalcanti e Carolina Sá ‑CarvalhoCidade Insegura? Para Quem?, de Jairo da Costa SantiagoCidade, Diversidade e Cosmopolitismo, de José LeitãoConsumo Mediático e Identidades dos Descendentes Portu‑

gueses em França, de José Ricardo Carvalheiro

LEITURASRetórica, Hermenêutica e Crítica de Cinema (sobre “Razão

Provisória e Argumentação e Crítica, de Tito Cardoso e Cunha”), por Eduardo Geada

A Entrevista (sobre “A Entrevista no Jornalismo Contemporâneo, de Orlando Raimundo”), por Judite de Sousa

Em Busca de uma “Urbanidade” Sustentável (sobre “Fascínio da Cidade. Memórias e Projecto da Urbanidade, de Vítor Matias Ferreira”), por Ana Contumélias

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197

n.os 8 ‑9 | primAvErA ‑outono de 2006

DISCURSIVIDADES“Na Colónia Penal”: Uma Leitura dos Trópicos, de Maria Cris‑

tina Franco FerrazProlegómenos à Narrativa Mediática do Acontecimento, de

José RebeloO Estranho e o Feio na Televisão Brasileira, de Vera França“Género” e “Autor” na Retórica da Recensão Cinematográ‑

fica, de Sara Pina

EM ANÁLISEA Europa e o Livro Branco sobre (In)Comunicação, de Maria

João SilveirinhaBrasileiros em Portugal: Identidades e Integração, de Maria

Xavier Villas ‑BôasPublicidade Exterior: “Porque a Vida Acontece Lá Fora”, de

Susana GalvãoOs Movimentos Ambientalistas em Portugal, de Pedro Pereira

Neto

DEBATE – OS MEDIA E A POLÍTICAApresentação, de José RebeloA Mediatização da Política: Práticas e Objectivos, de Rémy

RieffelMedia e Mutação Politica, de Muniz SodréAmnésia, Simplismo e Mentira, de José Manuel PurezaA Prova Provada das Últimas Presidenciais, de Adelino

GomesPolíticos, Media e Públicos em Portugal, de Diana AndringaMediatização da Política ou Assimilação Política dos Media?,

de António Cluny

LEITURAS“Os Dias Loucos do PREC, de Adelino Gomes e José Pedro Cas‑

tanheira”, por Cesário Borga“Os Militares na Revolução de Abril. O Conselho da Revolução e

a transição para a democracia em Portugal (1974 ‑1976), de Maria Inácia Rezola”, por José Reis Santos

“Para Compreender o Jornalismo, de Estrela Serrano”, por Rogé‑rio Santos

“O Poder da Comunicação. A história dos media dos primórdios da imprensa aos dias da Internet, de José Augusto dos San‑tos Alves”, por João Luís Lisboa

“Impressivo Prime ‑Time. Do Que Falam as Notícias dos Telejor‑nais, de Nuno Goulart Brandão”, por José Nuno Martins

Os Novos Mundos da Comunicação Digital (sobre “Ciber‑medi@ – Os Meios de Comunicação Social Portugueses Online, de Tânia de Morais Soares”), por João Carlos Correia

N.º 10 | primAvErA de 2007

DISCURSIVIDADESDo Espelho como Reflexão à Memória como Retenção, de

Maria Augusta BaboSentidos e Contextos da Corporeidade Marcada, de Vítor

Sérgio FerreiraImaginar a Nação Angolana: Reflexões em Torno de Yaka e

A Conjura, de Alexandra de Oliveira Dias SantosO Caso Fernanda Karina: As Potencialidades do Aconte‑

cimento, de Vera V. França e Marco Antonio V. de Almeida

EM ANÁLISEO Efeito Território e o Sujeito Cultural: A Metrópole de Lis‑

boa, as Dinâmicas Sociais e a Cidadania Cultural, de Vítor Matias Ferreira

Autochrome: O Centenário da Visão Cromática na Fotografia do Quotidiano, de Paula Figueiredo

A Insólita Existência das Estruturas Arquitectónicas: A Expo‑sição de Candida Höfer, de José Luís Garcia

Comunicação, Redes e Capitalismo Digital, de Filipa Subtil

DEBATE – MEDIA, JUSTIÇA E ESPAÇO PÚBLICOApresentação, de José RebeloLugar e Tempo da Justiça nos Crimes Contra a Humanidade,

de Hermenegildo BorgesUm Relacionamento Possível entre Justiça e Media, de Antó‑

nio ClunyTribunais e Órgãos de Informação: Semelhanças e Diferenças,

de Eurico José Marques dos ReisOnde Está o Mistério do “Saco Azul” de Felgueiras? Ou Como

António Guterres e Cavaco Silva Caíram às Mãos do Apa‑relhismo Partidário, de Eduardo Dâmaso

O Interminável Ficheiro Laib: Limite Severo ao Jornalismo Imposto pelo Modelo de Investigação do Terrorismo Jihadista, de José Vegar

Darfur: A Urgência em Fazer Justiça, de MCRDo Autor ao Protagonista: A Autonomia da Obra Literária,

de Agnès Tricoire

LEITURASOs Cultural Studies (sobre “Introdução aos Cultural Stu‑

dies, de Armand Mattelart, e Érik Neveu”), por Rogé‑rio Santos

“Sigilo Profissional em Risco? Análise dos Casos de Manso Preto e de Outros Jornalistas no Banco dos Réus, de Helena de Sousa Freitas”, por Sara Pina

Trinta Entrevistas para uma Visão do Mundo (sobre “...Assim Acontece na Rádio – 30 Entrevistas sobre tudo... e o resto, de Carlos Pinto Coelho), por Eduardo Marçal Grilo

N.º 11 | outono de 2007

EM ANÁLISEAs Ciências da Comunicação em Portugal: Racionalizar e Inter‑

nacionalizar, de José RebeloUm Novo Paradigma Comunicacional na Viragem dos Séculos

XVIII ‑XIX e a Emergência do Indivíduo Social Moderno, de José Augusto dos Santos Alves

O(s) Público(s) do Fantasporto: Perfis ‑tipo e Modalidades de Apropriação Ritualista do Festival Internacional de Cinema do Porto, de Tânia Leão

DISCURSIVIDADES Problema Público e Processos de Enquadramento: O Caso

Madeleine McCann, de Isabel Babo ‑LançaDitadores e a Sibilina Dictização: Análise de um Discurso

de Hitler em 1934 e de Salazar em 1936, de Oscar Mas‑carenhas

DEBATE – IDENTIDADES/DIFERENÇASApresentação, de J. R.Diferenças nas Diferenças?, de Michel WieviorkaDiferenças Francesas e Refinamentos Políticos, de João

FreireAcerca da Incompreensão das Diferenças, de Isabel GuerraDiversidade nas Pertenças?, de Jean ‑Pierre DuboisBreve Nota sobre as Identidades Múltiplas, de Luís Moita A Sociedade como Dispositivo de Valor, de Armando Ver‑

diglioniMovimentos Alterglobalização e Identidades, de Marinús Pires

de Lima e Cristina NunesVer com Outros Olhos: O Pseudo ‑Arrastão de Carcavelos, de

Diana Andringa

Page 198: revista Trajectos n.º 18

198

LEITURASA Nova Vida da Cibernética (sobre “A Cibernética – Onde os

Reinos se Fundem, de Porfírio Silva”), por Pedro U. LimaCaminhos do Jornalismo Português: Das Esperanças da

Geração de 60 aos Desafios e Constrangimentos do Século XXI (sobre “Jornalistas. Do Ofício à Profissão – Mudanças no jornalismo português (1956 ‑1968), de Fernando Correia e Carla Baptista” e “Os Jornalistas Portugueses – Dos problemas da inserção aos novos dilemas profissionais, de Sara Meireles), por Adelino Gomes

N.º 12 | primAvErA de 2008

DISCURSIVIDADES A Corrupção como Problema Público e a Nova Ética da Con‑

fiança, de Isabel Babo ‑LançaA Imagem dos Imigrantes e das Minorias Étnicas na Imprensa

Portuguesa, de Margarida Carvalho

EM ANÁLISEPublicidade e Media: Da Produção à Recepção de Revistas

Femininas e Masculinas de Estilo de Vida, de Ana JorgeMedia e Mediações na Escola: Práticas de Educadores em

Educação de Infância, de Fernando BaroneUm Outro Jornalismo, ou a Volúpia do Faz de Conta, de

Dinis de Abreu

DEBATE – PERFIL SOCIOLÓGICO DO JORNALISTA POR‑TUGUÊS

Apresentação, de José RebeloA Sociologia Tardou a Olhar para o Mundo dos Jornalistas,

de Alexandre ManuelObjectividade e Cultura Jornalística, de Avelino RodriguesA Entrevista no Jornalismo e nas Ciências Sociais, de Adelino

GomesMotivações e Modos de Acesso na Profissão de Jornalista, de

José Luiz FernandesA “Feminização” do Jornalismo em Portugal, de Isabela SalimApropriação e Representações das TIC e do seu Impacto em

Jornalistas de Duas Gerações, de Pedro SousaDa Militância como Pecado Mortal: Opiniões sobre a

Militância Política dos Jornalistas, de Diana Andringa

n.os 13 ‑14 | outono de 2008 ‑primAvErA de 2009

DISCURSIVIDADESA Reprodutibilidade do Acontecimento: Os Casos “Por Que

Não Te Calas?” e “Dá ‑me o Telemóvel, Já”, de Isabel Babo ‑Lança

O Lugar do Beco: Para uma Tipologia Urbana de Cidade de Vidro, de João Rosmaninho D. S.

Mutações do Discurso Informativo, de Muniz Sodré

EM ANÁLISEA Cobertura Jornalística e as Mulheres na Política Brasileira,

de Raquel PaivaViagens ao Outro Lado da Grande Lisboa, de Isabel Ferin

CunhaOs Meios de Comunicação Étnicos em Portugal, de Isabela

Câmara SalimO Lugar das Notícias na Vida das Crianças, de Cristina PonteEstruturas de Produção do Documentário Português, de

Fernando CarrilhoO DN Jovem entre o Papel e a Net: Dinâmicas, Implicações

e Consequências de uma Transição Extemporânea, de Helena de Sousa Freitas

Deco ‑identidades: A Composição da Aparência como Expres‑são da Identidade Pessoal, de Helena Figueiredo Pina

DEBATE – A ESCOLA. REDESCOBRI ‑LA E RECRIÁ ‑LAApresentação – Educação das Crianças e Jovens: Interacção

entre Contextos e Actores, de Teresa SeabraConfigurações Interactivas na Sala de Aula: Conflito versus

Cooperação, de Carlos Alberto GomesUm Olhar sobre a Formação em Alternância, de Ana Rute SabogaFamílias e Educadoras de Infância: Estratégias Educativas e

Modalidades de uma Relação, de Guida MendesResultados Escolares e Identidades Juvenis – Rapazes e

Raparigas de uma Escola Secundária, de Ana Maria Alves Ribeiro

Contra Ventos e Marés: O Improvável Sucesso Escolar, de Isaura Fernandes

LEITURAS“Young Citizens in the Digital Age: Political Engagement, Young Peo‑

ple and New Media, de Brian D. Loader (ed.)”, por Ana Jorge“O Corpo na Publicidade, de Jorge Veríssimo”, por Francisco

Costa PereiraUm Olhar Prismático sobre as Encruzilhadas do Jornalismo

Português (sobre Estudos sobre os Jornalistas Portugueses: Metamorfoses e Encruzilhadas no Limiar de Século XXI, de José Luís Garcia (org.)), por Inês Lampreia

N.º 15 | OUTONO de 2009

Introdução, de José Rebelo

DIAGNOSESCrise e Crítica, de Tito Cardoso e CunhaCrise Sistémica, Crise do Político, de Jean ‑Pierre DuboisPoder Político, Economia e Democracia, de Miguel Serras

PereiraSonambulismos, de João Carlos Alvim

CARTOGRAFIASA Crise do Futuro, de Viriato Soromenho MarquesCrise(s) e Cidade do Século XXI. Persistência da Crise Urbana?,

de Carlos Vieira de Faria

MEDIAÇÕESDuas ou Três Coisas que Vamos Sabendo Dela ou Por Que é

Que o Jornalismo (Não) Pode Desaparecer, de Adelino Gomes

Imagens, Representações e Jornalismo em Situação de Mudança, de Vera França e Elton Antunes

“Crise” ou Proliferação Virótica de Paradigmas? Algumas Questões de Método no Estudo dos Media na Política, de Fernando Lattman ‑Weltman

POR CÁ A “Crise”: Causas, Consequências e Saídas, de Manuel

Carvalho da SilvaEssa Palavra “Crise”, de Diana AndringaEm Nome da Crise…, de Dinis de AbreuJustiça: Da Crise da Morosidade à Morosidade na Compreensão

da Crise, de António Cluny

N.º 16 | primAvErA de 2010

EM ANÁLISESociedades Humanas, Sociedades Artificiais: Perspectivas da

Convergência, de Porfírio Silva e Javier Bustamante DonasDesign, Comunicação e Novas Tecnologias: Uma Leitura de

Vilém Flusser, de Sara Velez EstêvãoO Jornalista de Investigação: Uma Espécie de Detective e

Historiador ao Serviço da Verdade dos Factos para Lá dos Testemunhos, de Oscar Mascarenhas

Page 199: revista Trajectos n.º 18

199

A Emergência de um Subcampo: Tentativa de Conceptualização da Actividade do Colunista, de Antónia do Carmo Barriga

DISCURSIVIDADESGénese e Genealogia da Exclusão: Práticas Universais Vistas

Através da Imprensa, de José Augusto dos Santos Alves

DOSSIER – ARTE E POLÍTICAArte e Estetização da Política, de Muniz SodréA Recepção é a Arma do Povo?, de João Teixeira LopesRosas em Janeiro: Algumas Notas sobre Arte Política e

Colectivismo, de Isabel SabinoArte e Política na URSS: Visões dos Dois Lados do Muro, de

Luísa CardosoCenas Juvenis, Políticas de Resistência e Artes de Existência,

de Vítor Sérgio FerreiraA Propósito do Mecenato: O Lugar da Cultura na Política do

Século XXI, de Alexandre MeloPolíticas Culturais Locais e Financiamento da Cultura:

Crescimento e Planeamento, de José Soares Neves

REFLEXÕES

O Homem no seu Deserto: Exercício de Ficção Científica, de João Carlos Alvim

LEITURAS“Lufa ‑lufa Quotidiana. Ensaios sobre Cidade, Cultura e Vida

Urbana, de José Machado Pais”, por Graça Índias Cordeiro“Ainda Bem Que Me Pergunta – O 1.º Manual de Escrita

Jornalística Editado em Portugal, de Daniel Ricardo”, por Carla Baptista

“Media e Leis Penais, de Sara Pina”, por Rui do Carmo

N.º 17 | OUTONO de 2010

EM ANÁLISEPúblicos, Informação e Media: A Informação via Media no

Olhar de um Público Qualificado e Jovem, de José Jorge Barreiros

Casa das Histórias Paula Rego: Estratégias Comunicacionais e suas Implicações nos Visitantes, de Raquel Carvalho

Em Defesa dos “Novos Púlpitos”, de Alexandre Manuel

DISCURSIVIDADESConfiguração Mediática e Construção da Memória Colec‑

tiva. A História, a Memória e os Media, de Isabel Babo‑‑Lança

EM DEBATEApresentação: Encruzilhadas da Regulação, de José RebeloAs Especificidades da Regulação Portuguesa da Comunicação

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