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Conversar com o Criador em cima de uma prancha de surfe, dentro de um ateliê ou a mais de 2 mil metros de altura não é uma experiência das mais comuns, mas demonstra que o anseio do homem pela expressão de sua espiritualidade não conhece limites geográficos ou litúrgicos. Essas e outras formas pouco convencionais de comunhão com o sagrado são relatadas na matéria “Se eu quiser falar com Deus”, que você pode acessar esta semana na edição virtual da revista RELEITURA, uma proposta diferenciada de conteúdo.

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Osilêncio do mosteiro trapista no interior do Paraná é cortado no meio da madru- gada. São 2h45 da manhã, e os mon-

ges beneditinos, que vivem em comunidade, dirigem-se ao chamado ofício, momento de reflexão, leitura bíblica e oração que dura cerca de 45 minutos, seguidos de mais meia hora de prece silenciosa na capela. Entre eles, uma figura chama a atenção pelo que representa: o pastor presbiteriano Ricardo Barbosa, de Brasília (DF). Nos quatro dias que passou lá, além de acompanhar a lectio divina dos trapistas, ele se dedicou a meditar em apenas quatro versículos do salmo 37, relacionados à total confiança em Deus. “O ambiente convida a parar, deixando a agitação de lado. Como disse um dos monges, lá a vida é lenta, o que permite que a pessoa pare para orar, meditar, ouvir Deus e saborear o que ele fala”, conta.

Mais do que simples questão de tolerância, a presença de um protestante dentro de uma liturgia e de um ambiente essencialmente cató-licos evidencia o fato de que a busca pela espi-

ritualidade desconhece os limites da geografia religiosa convencional. “Onde encontrar Deus?” é a indagação que ainda hoje faz muita gente peregrinar por lugares sagrados ao redor do mundo em busca do espaço de transcendência e revelação, onde a fé se torne bem real. É o que fazem os cristãos das mais variadas vertentes reunidos na Comunidade de Taizé, na França. Fundada na década de 1940 pelo irmão Roger, ela congrega católicos e protestantes sem privi-légios ou restrições. O que importa é promover o acolhimento, a convivência, a meditação e a comunhão.

No entanto, nem sempre esse espaço é encontrado dentro de um templo. O ilustrador Bruno Bazílio Pereira, de 40 anos, teve uma es-pécie de êxtase quando voava a 2,8 mil metros de altura em sua asa delta. “Não sei se era o ar que me estava faltando, mas meu coração bateu forte e me deu uma emoção tão grande que comecei a gritar: ‘Obrigado, Senhor.’ Em seguida, fiz a oração do Pai nosso”, conta. Era a primeira vez que chegava tão alto e percorria

Se eu quiser falar com DeuS

os espaços de transcendência e de encontro com o divino não estão necessariamente dentro dos templos ou das fórmulas tradicionais

Autor Valter Gonçalves Jr.

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uma distância tão longa, depois de um longo caminho — quinze anos, desde sua primeira aula na escola de voo — até realizar o sonho de manobrar com plena autonomia e desenvoltura uma asa delta.

O sentimento de gratidão, explica ele, cos-tuma acompanhá-lo quando levanta voo, geral-mente em cidades do interior de Goiás, próximas a Brasília (DF), o que lhe permite seguir, pelo alto, até a Capital Federal, onde mora. “O voo, para mim, é uma grande conquista, muito clara, muito óbvia. Há momentos em que sinto essa euforia, tenho essa percepção de Deus. Sinto que não sou eu que estou conseguindo, mas é ele quem está me permitindo isso”, compartilha Bruno, que se define apenas como cristão. “Não sou católico, não sou evangélico, mas tenho e leio a minha Bíblia sempre.”

O ilustrador conta que voar era um sonho de criança, realizado depois de muito tempo e grandes dificuldades: durante anos enfrentou um forte trauma, após quebrar o braço em uma de suas primeiras tentativas com a asa delta. Recentemente, Bruno teve a experiência de voar ao lado de uma jovem harpia — ave de rapina semelhante a uma águia — que, por vezes, se aproximava para pousar em sua asa, a uns 200 metros de altura. “Não tive medo, foi sensacio-nal”, afirma. “Quando a gente percebe que a simples existência é o maior milagre que há, já é suficientemente feliz.”

sobre a pranchaSeja no alto de uma montanha, dentro de

um templo, em casa, numa trilha na floresta ou mesmo praticando um esporte radical, parece

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claro que o ambiente da transcendência depen-de menos do espaço físico do que da experiên-cia metafísica em si. O norte-americano James Jankowiak, que foi por dez anos missionário evangélico no Rio de Janeiro, transformou o surfe em parte de sua vida espiritual. E de um modo que Santa Teresa de Ávila — cujos escritos, no século 16, incentivavam uma vida de preces e comunhão com Deus — jamais poderia imaginar. “Para mim, o indispensável da vida cristã é a ora-ção. Só que orar requer tempo, algo complicado de achar neste mundo pós-moderno com suas exigências. Finalmente encontrei a maneira de evitar as chamadas, as interrupções, os abor-recimentos e a tendência de dormir no meio de um tempo de oração ajoelhado”, confessa Jankowiak, que hoje mora na Guatemala e lá dirige uma denominação cristã, a Igreja Verbo.

“Pode soar esquisito, mas no surfe existe es-paço para um equilíbrio entre orar e pegar onda”, garante. “Na realidade, o surfista passa a maior parte de seu tempo boiando ou remando, não exatamente surfando”, explica. “Remar ou boiar não exigem a maior concentração. É tempo livre para focar em Deus, falar com ele, ficar com ele e emocionar-se em sua presença. Curtir o sol, as ondas, as paisagens feitas pela interação com as nuvens, o mar e a terra é motivo de dar graças a Deus por sua infinita abundância derramada sobre a humanidade.”

Segundo Jankowiak, o surfe lhe proporciona

liberdade em relação às coisas cotidianas. “O Rio de Janeiro, por exemplo, com seus milhões de habitantes, fica a 100 metros de distância na beira da praia, mas eu estou numa expansão líquida, viva, que continua até a África, numa ex-pansão onde minha comunhão com Deus pode se desenvolver sem interrupções”, afirma, sem preocupação sequer com uma boa onda que deixa de aproveitar. Afinal, sempre haverá outra.

Não é difícil chegar à conclusão de que a ex-periência de transcendência, por si, é autônoma e individual, e o máximo que se pode alegar é que a experiência religiosa (entendida, basicamente, como o culto em local considerado sagrado) pode propiciá-la. Mas a recíproca não é necessariamen-te verdadeira. Não se tem notícia, por exemplo, de que Michelângelo, o gênio renascentista, tenha experimentado êxtases espirituais enquanto pintava a Capela Sistina ou esculpia seu Davi.

A escultora inglesa Sue-Jane Mott, de 40 anos, por sua vez, encontrou na arte uma forma de expressar o sentimento de adoração a Deus. Ela expôs sua obra durante a série de eventos organizados no ano passado pelo Pentecost Festival, em Londres, na Inglaterra. Sue-Jane cria delicados potes de cerâmica ornados com citações bíblicas em várias línguas. Para ela, os vasos têm profundo significado: representam “as lágrimas dos justos” em um mundo conturbado e cheio de maldade. “Minha arte é parte da minha relação com Deus”, diz, resgatando com humildade uma longa tradição cristã de expres-sar artística e livremente a adoração e a fé, seja com música, arquitetura, escultura ou pintura.

artistas e profetasOs quadros do pintor russo Wassily Kandinsky

(1866-1944), hoje expostos em grandes mu-seus pela Europa, estão entre os mais caros do mundo: atingem facilmente cifras de dezenas de milhões de dólares. O que pouco se diz é que, para Kandinsky, que começou a carreira inspirado na iconografia das igrejas ortodoxas russas, a pintura era praticamente uma profissão

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seja no alto de uma montanha, dentro de um templo, em casa, numa trilha

na floresta ou mesmo praticando um esporte radical, parece claro que o

ambiente da transcendência depende menos do espaço físico do que da

experiência metafísica em si.

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Se eu quiser falar com DeusTenho que ficar a sósTenho que apagar a luzTenho que calar a vozTenho que encontrar a pazTenho que folgar os nósDos sapatos, da gravataDos desejos, dos receiosTenho que esquecer a dataTenho que perder a contaTenho que ter mãos vaziasTer a alma e o corpo nus

de fé, sendo o artista comparado a uma espécie de profeta com uma missão mística. “O elemento interior da obra é seu conteúdo”, diz ele sobre a criação artística no livro Do espiritual na arte (Editora Martins Fontes): “Deve, portanto, haver vibração de alma. Se esta não existe, não pode nascer uma obra. Em outras palavras, só pode haver uma aparência de obra.”

Sua obsessão por retratar o divino da forma mais fidedigna o levou a mergulhar por completo na arte abstrata e se tornar um de seus grandes propagadores. Para atingir a transcendência do espírito, como dizia, empenhou-se em experimen-tar formas as mais variadas, quase sempre com cores muito vivas. “Na balança de Cristo, o valor do fato não é estimado de acordo com o aspecto exterior da ação em sua rigidez [como o era na Lei Mosaica], mas de acordo com seu aspecto inte-rior”, escreveu Kandinsky, notavelmente inspirado pelos ensinos dos Pais do Deserto, que marcaram os primórdios da experiência cristã. A grande questão de sua arte é a chamada “vida interior”.

Música que fala

Na canção Se eu quiser falar com Deus, o cantor e compositor Gilberto Gil relata com grande sensibilidade o anseio do ser humano pela comunhão com o Criador e os conflitos que precisa enfrentar para experimentar essa transcendência.

Se eu quiser falar com DeusTenho que aceitar a dorTenho que comer o pãoQue o diabo amassouTenho que virar um cãoTenho que lamber o chãoDos palácios, dos castelosSuntuosos do meu sonhoTenho que me ver tristonhoTenho que me achar medonhoE apesar de um mal tamanhoAlegrar meu coração

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Se eu quiser falar com DeusTenho que me aventurarTenho que subir aos céusSem cordas pra segurarTenho que dizer adeusDar as costas, caminharDecidido, pela estradaQue ao findar vai dar em nadaNada, nada, nada, nadaNada, nada, nada, nadaNada, nada, nada, nadaDo que eu pensava encontrar

“A experiência de transcendência existe no mundo religioso e no não religioso, das mais di-versas formas”, afirma o pastor Osmar Ludovico, que busca fomentar a prática da meditação e da contemplação. Para ele, a mística é parte da vida de fé, por isso é impossível dissociar uma coisa da outra. Os arrebatamentos, acredita, integram a experiência humana, ocorrendo a partir de circunstâncias especiais.

O pastor, que dá cursos de espiritualidade cristã, enfatiza a autonomia da experiência de comunhão, mas reconhece que a consciência do sagrado, tão cara ao conceito tradicional de reli-giosidade, pode propiciar essa percepção. Mas é essa transcendência, em última análise, o objeto de tal busca. “No mundo religioso, não importa a confissão, trata-se da presença do sagrado. Na transcendência, por um determinado momento, eu me vejo diante de algo que é muito maior do que eu e que não sei explicar. Sensação de fas-cínio, de maravilhamento, de paz, de algo que é imponderável, inefável, inominável”, define.

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Dâmocles invejava Dionísio, governador de Siracusa, a cidade mais rica da Sicília do século 4. Acreditava que Dionísio era

um bem-aventurado que possuía tudo quanto um homem pode desejar. Até que foi convidado por Dionísio para trocar de lugar com ele por um dia. No banquete noturno, Dâmocles percebeu que havia sobre sua cabeça uma espada que pendia do teto, sustentada apenas por um fio da crina de um cavalo. Imediatamente perdeu todo o interesse naquele lugar de honra. Devolveu o trono ao seu legítimo dono e nunca mais invejou sua posição.

O mito da espada de Dâmocles é geralmente usado para demonstrar a condição vulnerável dos que ocupam o poder. Mas pode também ser usado para demonstrar a morte que a to-dos espreita. Fala da efemeridade da condição humana. A espada de Dâmocles representa a insegurança, a vulnerabilidade, e aponta para a angústia que carregamos no peito em virtude da consciência de finitude.

A miserabilidade do ser humano está no fato de que não somente é finito, como todas as de-mais criaturas, mas também (e principalmente) consciente da inexorabilidade de seu fim. Para-doxalmente, entretanto, essa angústia diante da morte é também a salvação do humano. Tire a imortalidade do homem e ele cai de quatro, dizia Nelson Rodrigues.

A consciência da finitude nos angustia justa-mente porque somos habitados por um senso de eternidade. Esse paradoxo é descrito de maneira magnífica por Álvaro de Campos, pseudônimo de Fernando Pessoa, em seu poema Tabacaria: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

A palavra “espiritualidade” expressa o encon-tro entre o finito e o infinito nas profundezas do ser humano. A espiritualidade é a experiência da busca e/ou encontro do sentido último da existência e, de certa maneira, o encontro com a realidade sagrada ou divina. A espiritualidade implica o anseio de transcendência.

O teólogo existencialista Paul Tillich sustenta que “Deus é a resposta à pergunta implícita na finitude do homem”. Confrontado com a sua limitação, a inevitabilidade de seu fim, a mar-cha lenta em direção à morte, o ser humano começa a se perguntar pela eternidade, pelo sagrado, pelo transcendente, pelo que está além das contingências da vida e das circunstâncias que causam dor e sofrimento. Debilitado pela fraqueza do corpo, assolado pelo sofrimento e pela dor, ameaçado pelas tragédias e catástro-fes, esmagado sob o peso da sombra da morte, o ser humano começa a buscar a Deus. Nessa busca motivada pela angústia, o ser humano se descobre e se percebe um ser espiritual.

A angústia da morte é o casulo que o ser humano rompe para desabrochar para a vida. Ao tomar consciência de sua limitação, finitude e morte, o ser humano se abre para Deus, e no encontro com Deus está a vida. A morte é certa. E a vida é questão de fé.

ED RENÉkivitzTeólogo, escritor e conferencista

a vida é questão de féA miserabilidade do ser humano está no fato de que não somente é finito, como todas as

demais criaturas, mas também (e principalmente) consciente da inexorabilidade de seu fim.

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