revista lÍnguas & ensino

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REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

© 2015 Copyright by

Faculdade de Letras / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Todos os direitos reservados

Faculdade de Letras/UFRJ

Cidade Universitária – Ilha do Fundão – CEP.: 21941-917 – Rio de Janeiro – RJ

Tel.: (021) 3938-9798

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Reitor: Carlos Antônio Levi da Conceição

CENTRO DE LETRAS E ARTES

Decana: Flora De Paoli Faria

FACULDADE DE LETRAS

Diretora: Eleonora Ziller Cameniestzki

Diretora Adjunta de Graduação: Cláudia Fátima Morais Martins

Diretora Adjunta de Apoio Acadêmico: Cláudia Fátima Morais Martins

Diretora de Adjunta de Cultura e Extensão: Martha Alkimin de Araújo Vieira

Diretora Adjunta de Pós-Graduação: Ângela Maria da Silva Corrêa

Produção gráfica/Editoração eletrônica: Gabriel da Silva Cardoso Ramos e Juliano Leandro do Espírito Santo

Capa: Rafael Laplace de Andrade

_____________________________________________________________

Revista Línguas & Ensino. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2015.

Ano I, Vol. 1, 2015.

185 p.; 29,7 cm.

Semestral

___________________________________________________________

Page 3: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor: Carlos Antônio Levi da Conceição

Vice-reitor: Antônio José Ledo Alves da Cunha

FACULDADE DE LETRAS Diretora: Eleonora Ziller Cameniestzki

Vice-diretora: Cláudia Fátima Morais Martins

CURSOS DE LÍNGUAS ABERTOS À COMUNIDADE Coordenação acadêmico-científica: Danúsia Torres dos Santos

Coordenação Executiva: Luis Ricardo de Almeida Queiroz

REVISTA LÍNGUAS & ENSINO Editores: Danúsia Torres dos Santos, Franciane Santos de Sousa, Pedro da Silva Barbosa e Monica Tavares Orsini

DIVULGAÇÃO Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Faculdade de Letras

Av. Horácio Macedo, 2151 – Ilha do Fundão

21941-917 – Rio de Janeiro – RJ

www.portaldeperiodicos.letras.ufrj.br

Page 4: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

REVISTA L ÍNGU AS & ENSINO

REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS DA UFRJ

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ano I −−−− Vol. 1 - 2015

Faculdade de Letras UFRJ

Page 5: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Comissão Editorial Danúsia Torres dos Santos (UFRJ) Franciane Santos de Sousa (UFRJ) Pedro da Silva Barbosa (UFRJ) Monica Tavares Orsini (UFRJ) Conselho Editorial Ana Catarina Moraes Ramos Nobre de Mello (UFRJ) Ana Flavia Lopes Magela Gerhardt (UFRJ) Annita Gullo (UFRJ) Bianca Graziela Souza Gomes da Silva (UFRJ) Christine Siqueira Nicolaides (UFRJ) Cláudia Andréa Prata Ferreira (UFRJ) Danúsia Torres dos Santos (UFRJ) Diego Leite de Oliveira (UFRJ) Érica Schlude Wels (UFRJ) Katia Teonia Costa de Azevedo (UFRJ) Luiz Carlos Balga Rodrigues (UFRJ) Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold (UFRJ) Marilia Santanna Villar (UFRJ) Rogério Casanovas Tilio (UFRJ) Tania Martins Santos (UFRJ) Conselho Consultivo Eduardo Engelsing (Western Washington University) Marcia Paraquett Fernandes (UFBA) Marcos Bagno (UnB) Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB) Matilde Virginia Ricardi Scaramucci (Unicamp) Norimar Pasini Mesquita Júdice (UFF) Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB) Revisão Gustavo Benevenuti Machado (UFRJ) Luciana Faria Mazzei (UFRJ) Paula Regina de Andrade Lessa (UFRJ) Abstracts Equipe docente Christine Siqueira Nicolaides (UFRJ) Vitor Alevato do Amaral (UFRJ) Equipe discente Amanda Lomba Costa André Alves Pontes Carolina Vieira Mariano Carolinne Assis de Oliveira Eduardo da Silva Pimentel Ellen Cláudia de Mello Ferreira Fernanda Meneses Rodrigues da Costa Isabela Pires de Souza Isabela Vitória de Oliveira dos Santos Jean Fellipe Silva Lucciola Guedes João Rafael Villas Boas de Castro Barbosa Ligia Carla das Graças Reis e Silva Lorena Morais Martins Luiza de Almeida Thomaz Gonçalves Maria Eduarda Guimarães Simões Maria Fernanda Pinheiro Barreto Mariana Abreu Mariana Guedes Bartolo Marina Giovhana Vieira Marques Folly Queiroz Nicole Lencina Marques Pedro Luís Sala Vieira Péricles Francisco de Oliveira Júnior Rodrigo da Motta Dias

Page 6: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Suelen dos Santos Barcelos Talita Silva Pereira Tatianne Soares Lima Thaís Fontes Perestrelo Thayna Pinheiro Ferreira Wisley do Carmo Vilela

_____________________________________________________________

Revista Línguas & Ensino. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2015.

Ano I, Vol. 1, 2015.

185 p.; 29,7 cm.

Semestral

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“Todos os artigos deste periódico são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à Faculdade de Letras da UFRJ ou à Revista Línguas & Ensino.” “Ao enviar o material para publicação, os proponentes abrem mão de pretensões financeiras decorrentes da comercialização de exemplares, concordam com as diretrizes editoriais da Revista Línguas & Ensino e assumem que seu texto foi devidamente revisado.” Faculdade de Letras – UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151 – Ilha do Fundão 21941-917 – Rio de Janeiro – RJ www.portaldeperiodicos.letras.ufrj.br / [email protected]

Page 7: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Sumário

8 Apresentação Mônica Tavares Orsini

10 Formando professores: sala de aula e orientação dos monitores no Projeto CLAC Marilia Santanna Villar

24 A formação continuada de professores e sua relevância na promoção da autonomia sociocultural dos aprendizes Vanessa Mota

Christine Nicolaides

40 A literatura no ensino de línguas estrangeiras Ana Cristina dos Santos

60 Uma experiência com o gênero história em quadrinhos em aula de língua estrangeira Carolina Gandra de Carvalho

Elíria Quaresma Fugazza

Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold

73 A técnica do espelhamento ou a consciência da distância entre o português do Brasil e o espanhol Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold

Carolina Ecard

Renata Daniely Rocha de Souza

91 Avaliação oral: práticas alternativas Carlos da Silva Sobral

Julia Ferreira Lobão

Mariana Warderlei Braga

103 Estudo comparativo entre os métodos alter ego 2 e alter ego 2+ e seu uso nos cursos de língua francesa do CLAC/UFRJ Mariana Gomes de Matos

Marília Santanna Villar

06 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 8: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

128 Análise de problemas de referenciação em redação do CLAC Joelma Castelo Bernardo da Silva

Ana Flávia Magela Gerhardt

140 O estudo do parágrafo para a construção do texto argumentativo Cybelle Borges de Abreu

Helena Gomes Teixeira de Faria

Mônica Tavares Orsini

Sabrina de Oliveira

153 A ausência de marcas de concordância verbal em textos escritos por alunos do CLAC: descrição e ensino Aline Fernandes Menezes

Antônio Anderson Marques de Sousa

Juliano Leandro do Espírito Santo

Monica Tavares Orsini

167 Língua e ensino: os possessivos da segunda pessoa do plural no português brasileiro Dalila Mendes dos Santos de Assis

Leonardo Lennertz Marcotulio

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 07

Page 9: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Apresentação

A Revista Línguas & Ensino constitui-se na materialização de um desejo antigo

de docentes, monitores e técnico-administrativos que atuam no Projeto CLAC - Cursos

de Línguas Abertos à Comunidade, projeto de extensão universitária da Faculdade de

Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 1988, o projeto

oferece à sociedade carioca cursos de línguas estrangeiras: alemão, árabe, espanhol,

francês, grego, hebraico, inglês, inglês instrumental, italiano, japonês, latim, russo,

português para estrangeiros e português língua materna, nas modalidades redação e

oficina de língua portuguesa.

Na dinâmica do projeto, os monitores, respaldados pela orientação sistemática

de docentes da Faculdade de Letras da UFRJ, ministram as aulas, concretizando uma

prática pedagógica fundamentada em teorias linguísticas atuais, bem como nas reflexões

de educadores contemporâneos acerca da formação do professor e do ensino de línguas.

O projeto CLAC, portanto, contribui decisivamente para a formação de professores

críticos e qualificados que buscam exercer seu papel social de agentes transformadores.

Neste contexto, a Revista Línguas & Ensino, publicação eletrônica semestral,

hospedada no Portal de Periódicos da Faculdade de Letras da UFRJ, objetiva,

sobretudo, ser um espaço em que docentes de instituições diversas e professores em

formação possam divulgar trabalhos acerca do ensino-aprendizagem de línguas e da

formação do professor, tendo como fundamentação teórico-metodológica as recentes

contribuições de pesquisas desenvolvidas nas melhores universidades nacionais e

estrangeiras.

Neste primeiro volume, encontram-se reunidos 11 artigos, selecionados, de

forma bastante rigorosa, por pareceristas ad hoc, professores universitários dos cursos

de Licenciatura em Letras das principais universidades públicas do país. Deste conjunto,

dois artigos tratam da formação do professor de línguas; seis, do ensino de língua

estrangeira e três, do ensino de português língua materna.

Os artigos dedicados à formação do professor abordam duas realidades distintas.

O primeiro discute o trabalho de preparação e de acompanhamento por parte do

professor-orientador do monitor de língua estrangeira. O segundo relata os resultados de

pesquisa sobre as práticas em sala de aula de um grupo de professores (formados ou em

formação), participantes do curso de aperfeiçoamento denominado PROLEC (Promoção

08 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 10: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

do Letramento Crítico por meio da produção de materiais didáticos), oferecido pela

Faculdade de Letras da UFRJ e coordenado pela professora Christine Siqueira

Nicolaides.

Do total de artigos acerca do ensino-aprendizagem de LE, quatro abordam

questões relativas à metodologia utilizada pelo monitor, tanto no que diz respeito à

seleção de materiais didáticos quanto à escolha de técnicas. Em comum, os referidos

artigos buscam estratégias para o aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem

de LE, tornando-o mais prazeroso e eficiente para o educando. Há ainda um artigo que

focaliza a avaliação, ferramenta indispensável no processo de ensino-aprendizagem,

buscando mecanismos que minimizem o estresse do educando neste momento. O artigo

dedicado ao ensino da língua portuguesa para estrangeiros busca confrontar a norma

presente em livros didáticos voltados para esse contexto com aquela vigente entre

falantes brasileiros, reforçando a necessidade de se ensinar uma norma culta real, ao

invés de um inventário de regras que não reflete o uso da língua a ser aprendida.

Os artigos pertinentes ao ensino de português língua materna remetem à

produção de textos argumentativos, objetivo central do curso de redação oferecido pelo

Projeto CLAC. Os trabalhos mostram a necessidade da articulação das teorias do texto e

da gramática para que o aprendiz produza textos escritos de qualidade.

Desta forma, todos os artigos aqui reunidos dialogam em torno do principal

desafio do professor: promover uma educação de qualidade, acessível a todos, que

possibilite ao educando empoderar-se de um saber linguístico, o que contribuirá para a

sua formação como um cidadão crítico e socialmente produtivo.

Mônica Tavares Orsini

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Departamento de Letras Vernáculas

Rio de Janeiro, abril de 2015

Esse primeiro volume é dedicado à Profª Drª Sílvia Beatriz Alexandra Becher Costa,

que sempre idealizou e sonhou ver a produção e a publicação desse material.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 09

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FORMANDO PROFESSORES: SALA DE AULA E ORIENTAÇÃO DOS

MONITORES NO PROJETO CLAC

FORMING TEACHERS: THE CLASSROOM AND MONITOR

SUPERVISION IN THE CLAC PROJECT

Marilia Santanna Villar1

Resumo

O presente artigo visa a apresentar como o CLAC propicia aos monitores uma experiência que os prepara para sua profissão sob diferentes aspectos: os alunos monitores integram uma equipe de professores em formação, com reuniões regulares para o melhor funcionamento do curso, troca de material e preparo conjunto de diferentes tipos de atividades. Essas atividades não se limitam àquelas usadas em sala de aula, mas estão aí também inseridos os diferentes tipos de projetos desenvolvidos para a Feira Cultural ou para o Fórum CLAC. Mostramos aqui também como se dá o trabalho de orientação que se propõe como um momento de preparação, de acompanhamento do trabalho do monitor. É um espaço em que se busca a valorização de atitudes e escolhas bem feitas, assim como a crítica construtiva, quando esta é cabível. A prática em sala de aula é também acompanhada da sugestão de textos teóricos e a experiência do CLAC vem, assim, complementar a formação pedagógica desse professor em formação. Palavras-chave: formação de professores; competências; prática.

Abstract

This article aims to present how the UFRJ Language Courses Open to the Community (CLAC) provides its monitors with an experience that, under different aspects, prepares them for their profession: the monitors integrate a team of teachers in formation, with regular meetings for a better course functioning, exchange of materials and group preparation of different types of activities. These activities are not limited to those to be performed inside the classroom, but also involve the different types of projects developed for the Cultural Fair and the CLAC Forum. We also describe the process of monitor supervision, an activity that is supposed to be a moment of preparation and orientation of the monitor‘s work. It is a space that seeks to value positive attitudes and well-made choices, as well as the constructive criticism, when suitable. The classroom practice is also followed by the suggestion of theoretical texts, so the CLAC experience complements the pedagogical formation of this future teacher. Keywords: Teacher‘s formation, competences, practices.

10 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 12: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Introdução

A dificuldade da tarefa de formar bons professores consiste,

basicamente, em dois fatores: o professor deve não apenas ser competente

na disciplina que ensina, mas também deve saber ocupar o lugar de

professor na sala de aula. Se, de um lado, esses dois aspectos são óbvios e

transparecem em muitos comentários dos próprios alunos a respeito de seus

mestres — ―Ele sabe a matéria, mas não sabe ensinar‖ — por outro lado, a

formação desse profissional é complexa e necessita de um cuidado especial,

sobretudo no que diz respeito à prática em sala de aula. No presente artigo,

nosso objetivo é refletir sobre a prática docente em formação. O que significa

ter o domínio do conteúdo e saber propiciar aos alunos o acesso a esse

conteúdo? Analisamos aqui, especificamente, o papel do projeto CLAC-UFRJ

e sua contribuição na formação do professor de língua estrangeira.

Como sabemos, grande parte dos alunos que cursam uma

Faculdade de Letras prepara-se para a docência. Sua formação começa,

certamente, muito antes do ingresso no curso universitário por eles escolhido.

Seja como aluno de Ensino Médio, seja como aluno de cursos livres, o

indivíduo já vem sendo observador da prática de seus professores e, mais ou

menos conscientemente, já fez escolhas de muitas atitudes que lhe

pareceram produtivas, abominando outras, que representaram uma

experiência negativa ao longo de sua formação. No curso de Licenciatura, a

grade curricular prevê uma série de disciplinas teóricas que têm como

objetivo preparar o futuro professor, dando-lhe noções de psicologia,

sociologia, leis que regem a Educação no país. Tudo isso para que ele se

sinta amparado na prática de sua futura profissão. A Faculdade de Educação

prevê, igualmente, o estágio supervisionado que é, em muitos casos, o

primeiro contato do futuro professor com a alternância de papéis: ele, que

sempre se via sentado no meio dos alunos, troca de lugar e assume a função

de educador. É sempre uma experiência reveladora, essa do primeiro

encontro com a turma. O estagiário, nervoso, vê o quanto ele sabe — e o

quanto desconhece — e vivencia o fato de que assumir o lugar de professor

implica em uma responsabilidade real.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 11

Page 13: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

No currículo de licenciatura dos cursos de Letras da UFRJ, são

dedicadas 400 horas ao estágio supervisionado, conforme exige a Resolução

CNE/CP/02/2002. O estágio é amparado também pelas disciplinas de

Didática Especial e Prática de Ensino. A presença do estagiário em uma

escola — acompanhando o trabalho do professor regente e seguido de perto

pelo professor da prática de ensino — leva-o ao ambiente que será seu

ambiente de trabalho por longos anos, ao contato com alunos de carne e

osso com qualidades e defeitos reais e tudo isso contribui para que ele, ao

concluir o período de estágio, sinta-se mais preparado para exercer sua

profissão.

Na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, os alunos do curso de Licenciatura encontram, ainda, no projeto

CLAC (Cursos de Língua Abertos à Comunidade), outro espaço para esse

preparo prático para a carreira de professores de língua. O CLAC traz aos

monitores uma experiência ímpar: ainda durante a graduação, eles integram

uma equipe de professores em formação, com reuniões regulares para o

melhor funcionamento do curso, troca de material, preparo conjunto de

atividades e/ou provas. Essas atividades não se limitam àquelas usadas em

sala de aula, são muitas as sugestões de projetos para a Feira Cultural ou

para o Fórum CLAC que nascem desse trabalho conjunto.

A equipe de monitores é acompanhada pelo orientador. Os

encontros semanais que são dedicados não apenas à discussão de

problemas didáticos — como seria a melhor utilização do livro, o uso de

materiais autênticos e esclarecimento de dúvidas relacionadas ao conteúdo

—, mas também são o momento para os monitores apresentarem problemas

de ordens diversas aos quais são confrontados nessa experiência em que,

pela primeira vez, ocupam o lugar do professor. Insegurança, apatia por parte

dos alunos, turmas heterogêneas, alunos que se mostram descontentes ou

até mesmo alunos que exercem certo tipo de assédio em relação ao monitor

ou a colegas do grupo. É aí que outros monitores podem dar sugestões

práticas que funcionaram em determinadas situações; o orientador, pelo seu

papel de mediador e por ser mais experiente, aconselha também. Às vezes,

12 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 14: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

são dicas simples, relativas ao mundo virtual tão presente nesse século XXI

em que a evolução tecnológica avança tão rapidamente. Como fazer com

relação a uso de blogs, Facebook ou e-mail para complementar o trabalho de

sala de aula? Até que ponto essas ferramentas tecnológicas podem ajudar e

até que ponto podem dar ao aluno acesso a informações muito pessoais

sobre os colegas e o monitor responsável pela turma? Às vezes, a criação de

uma página de Facebook só para o CLAC torna-se uma opção interessante,

sobretudo para monitores que trabalham com o primeiro período, com alunos

que ainda não se conhecem e com turmas numericamente muito grandes.

Como se dá essa interação dos monitores entre si e com o orientador?

O trabalho de orientação se propõe como um momento de

preparação, de acompanhamento do trabalho do monitor, em que não se

busca uma ―fiscalização‖ do que está sendo feito, mas a valorização de

atitudes e escolhas bem feitas, assim como a crítica construtiva quando esta

é cabível. Nesse sentido, são sugeridos também textos teóricos para

contribuir com a formação desses monitores. Textos que refletem essas

questões práticas por eles vividas na sala de aula. No caso da monitoria de

língua francesa, muitos textos de especialistas no ensino de FLE (Francês

Língua Estrangeira) ou artigos da revista Le Français dans le monde podem

contribuir. Questões da atualidade no ensino de FLE são discutidas em cada

número da revista, levando-se em conta sempre casos concretos. Assim,

discussões sobre como trabalhar a expressão oral e a leitura de artigos que

falam também do contexto sócio-econômico do aluno, entre outros, são

atividades complementares sugeridas. Em minha experiência como

professora orientadora, tive alunos que salientaram a pertinência dos textos,

dizendo, inclusive, que esses foram úteis para trabalhos que estavam

desenvolvendo para a prática de ensino em francês. E é esse exatamente o

ponto que o presente artigo pretende desenvolver: como essa experiência

prática de monitor do CLAC complementa a formação do aluno que, ao sair

da Faculdade de Letras, será mais um professor não só em um mercado de

trabalho crescente — esse do ensino de línguas estrangeiras —, mas

também de um mercado de trabalho em que tantas vezes o professor se

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 13

Page 15: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

encontra abandonado, seja porque não faz parte de nenhuma equipe e o

coordenador é apenas um conceito, sem que haja um verdadeiro trabalho de

coesão dos professores, seja porque faltam muitas vezes boas condições no

ambiente de trabalho. O material disponibilizado muitas vezes é precário e as

salas de aula, inadequadas. O CLAC representaria, portanto, uma transição

gradativa entre o aluno de graduação e o profissional formado que integrará o

mercado de trabalho fora da faculdade.

Os textos teóricos lidos pelos alunos visam também a que estes

desenvolvam ainda mais seu espírito crítico a ponto de serem mais

autônomos e capazes de prepararem seu curso a partir de sua própria

opinião pessoal. Esse aspecto é bastante importante, porque o planejamento

é discutido com o orientador e com os demais monitores, mas é definido pelo

monitor da turma. Se ele achar pertinente alguma consideração feita pelos

demais e decidir mudar, pode mudar, embora não seja obrigado a fazê-lo. As

trocas de experiências levam ao questionamento, os monitores são obrigados

a se posicionarem diante de um problema e a encontrarem uma solução.

Como exemplo, posso citar uma situação específica, relacionada ao primeiro

período do curso de língua francesa: um monitor que tivera anteriormente o

grupo de primeiro período queixou-se do fato de o tempo verbal ―passé

composé‖ aparecer na última lição e, consecutivamente, na última prova do

francês I. Não haveria tempo hábil para se trabalhar a formação e o uso do

passé composé em uma última aula antes da revisão. Várias sugestões

foram feitas pelos próprios monitores do semestre seguinte. Todos foram

unânimes em começar o passé composé mais precocemente. Mas os

caminhos escolhidos para essa atividade foram distintos: houve quem

preferisse antecipar determinada lição do livro e quem preferisse levar por

fora o material destinado à explicação do passé composé. As decisões foram

respeitadas e os monitores puderam se sentir verdadeiramente no comando

de seus grupos. Talvez os monitores tenham se arrependido da decisão que

tomaram. Talvez não. De qualquer modo, essas experiências são o que

forma o professor e o que dá a ele respaldo para tomar suas próximas

decisões.

14 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 16: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

No CLAC, os monitores desempenham suas atividades,

compreendendo que suas decisões se fazem como uma resposta às

condições a sua volta. Se os alunos de uma turma caminham mais

rapidamente, não se trata de obrigar a outra turma de mesmo nível a seguir o

mesmo ritmo. Cada aluno, cada grupo, cada monitor será levado a

desenvolver sua própria resposta para seus problemas em dada situação.

Sempre contando com a possibilidade de discutir essas questões com o

orientador e com os monitores mais experientes.

Partindo do princípio de que os seres humanos se desenvolvem

pelas relações que estabelecem com seu meio, Perrenoud (1999) vê as

competências não como um caminho, mas como um efeito adaptativo do

homem às suas condições de existência. Desse modo, cada pessoa, de

maneira diferente, desenvolveria competências voltadas para a resolução de

problemas relativos à superação de uma situação, como, por exemplo, saber

guiar-se no caminho de volta para casa a partir de um ponto de referência, o

que mobiliza competências de reconhecimento ou mapeamento espacial;

saber lidar com as dificuldades infantis, o que aciona competências

pedagógicas; saber construir ferramentas, o que estimula competências

matemáticas e lógicas, entre outras (BESSA, p. 151).

A língua estrangeira e a cultura do outro

Para ilustrar melhor como os cursos do CLAC trabalham o

componente cultural no ensino de uma língua estrangeira, volto-me agora,

rapidamente, para a Feira Cultural, evento que voltou a integrar o calendário

do CLAC em 2011. Trata-se de um evento que acontece ao final do ano, em

novembro/dezembro e para o qual os alunos e monitores do CLAC se

preparam ao longo de todo o segundo semestre. As atividades aproximam os

alunos de uma multiculturalidade através do estudo da nova língua que eles

começam a conhecer. No nosso caso específico, a língua francesa. Muitos

projetos incluem Paris e vemos o encanto dos alunos e monitores pelos

clichés que cercam a capital francesa e os lindos e eternos cartões postais da

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 15

Page 17: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Torre Eiffel e Notre Dame. Mas não ficam apenas nos clichés. Buscam

também elementos culturais menos conhecidos, como canções natalinas —

já que a Feira acontece no final do ano — ou certas especialidades

culinárias. A música é sempre bem-vinda, seja com a formação de um coral,

seja com uma pequena apresentação. Mas outros países francófonos

também já foram contemplados com projetos na Feira Cultural do CLAC

como, por exemplo, a Bélgica. Além de informações diversas sobre esse país

pouco conhecido entre nossos alunos, também fizeram jogos interativos e

biscoitos típicos. No dia da Feira Cultural propriamente dita, o mais

interessante é que os alunos dos diversos cursos podem circular e conhecer

mais sobre a cultura de outros países, e os corredores da Faculdade de

Letras transformam-se em um espaço cosmopolita em que se ouvem várias

línguas e se provam sabores distintos. Em meio a origamis e croissants, é

possível se deparar com um ateliê de cupcake com receitas em inglês e, ao

fundo, ouvir uma música em uma língua para você desconhecida. É um

momento de lazer e de crescimento cultural para todos os envolvidos e isso

fica estampado nos rostos dos orientadores e da equipe CLAC, que trabalha

muito para que essas atividades aconteçam nas melhores condições

possíveis.

Além da Feira Cultural, temos também o Fórum CLAC . Por que

criar um evento como o Fórum? Os monitores ficam no Projeto, às vezes, por

dois anos, às vezes por pouco menos do que isso. Ao longo de sua atuação

na monitoria CLAC, são muitos os trabalhos que desenvolvem com seus

grupos. Muitas questões interessam nosso público: desde as mais

tradicionais (como o preparo de avaliações orais e escritas), passando por

atividades práticas em sala de aula (relacionadas, por exemplo, ao uso de

jogos ou Internet), como a análise de questões mais pontuais (análise do

livro didático adotado no CLAC). Todos esses são temas com os quais

nossos monitores são confrontados em sua prática cotidiana. São muitas

vezes trazidos para discussão nas orientações. Assim, a organização de um

Fórum para suscitar novos questionamentos e para divulgar o trabalho

realizado mostrou-se quase que uma necessidade para dar voz aos

monitores, abrindo mais um canal em que os envolvidos com o Projeto

16 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 18: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

podem questionar a prática que fazem. Aqui são facilitadas as trocas de

experiências entre monitores de diversos idiomas. Talvez as inovações

utilizadas por alguns sejam práticas usuais para outros, talvez exercícios

usuais para alguns sejam ―tabus‖ para outros. É esse, portanto, o papel

desempenhado pelo Fórum CLAC: estabelecer pontes entre os diferentes

cursos, mostrar lado a lado a música árabe e a japonesa, a poesia francesa e

a grega e como podemos levar esses elementos para a sala de aula. Além

das conferências e minicursos — cujos temas são selecionados pela

Comissão Organizadora levando em conta a relevância para nossos

monitores —, o Fórum CLAC acolhe comunicações feitas pelos monitores,

com relatos de experiência ou artigos que analisem tais questões com uma

perspectiva prática.

A formação de professor não pode ser feita desvinculada do

trabalho de pesquisa. É por isso que mesmo alunos que não integram

projetos de Iniciação Científica encontram no Fórum o espaço para

desenvolverem um trabalho de pesquisa acadêmica que poderá ser

eventualmente a descoberta de um tema para uma especialização ou

Mestrado. É, assim, que a cada ano, os orientadores encorajam seus alunos

a apresentarem suas experiências nesse espaço. Muitas vezes, o monitor

encontra-se desanimado porque sabe que a decisão de preparar uma

comunicação implica em mais trabalho e ele acredita que o que vai dizer no

Fórum não representa, talvez, nenhuma novidade ou é um problema com o

qual todos estão acostumados. E qual não é a sua surpresa, às vezes,

quando uma comunicação feita traz à tona uma série de comentários dos

colegas que estão, sim, acostumados àquele problema, mas não sabem

como reagir diante dele. Então, não basta o diagnóstico do problema, as

sugestões feitas pelo monitor em sua comunicação ou as sugestões

apresentadas pelos colegas no momento de discussão após a apresentação

são essenciais para o crescimento de todos. Desse modo, o percurso

acadêmico toma consciência de sua própria incompletude e da necessidade

de se estar em formação contínua. Não basta usar uma lógica disciplinar e

acadêmica, o professor deve analisar a complexidade com que convive em

sala de aula. É o que diz Perrenoud (1999) quando fala sobre a escola

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 17

Page 19: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

francesa e o preparo dos professores:

No total, não faltam ocasiões em que os professores estão

confrontados com a complexidade, graças aos estágios em sala de aula,

mas a formação, mais do que trabalhar essa complexidade como seu

principal objeto, está trabalhando com uma lógica disciplinar e acadêmica.

A ―revolução das competências‖ só acontecerá se, durante

sua formação profissional, os futuros docentes experimentarem-na

pessoalmente. A formação contínua está desenvolvendo-se. Está indo na

direção de um desenvolvimento de competências orientado para a

profissionalização (PERRENOUD, 1994a, 1996), para o acompanhamento de

equipes e projetos de estabelecimentos e para a análise das práticas, das

situações de trabalho e dos problemas profissionais (p. 95).

A complexidade da sala de aula nunca será definida na teoria.

Cada aluno é um indivíduo com uma história pessoal própria e encontra-se

inserido em um grupo que também tem uma história coletiva própria — em

certos estabelecimentos, os alunos são mantidos em um mesmo grupo ao

longo de sua formação; em outros, evita-se que as turmas tenham sempre a

mesma configuração. O professor também será diferente em diferentes

grupos, sentindo-se mais à vontade ou mais próximo de uns e menos

próximo de outros. É impossível criar uma lista de atitudes que o professor

deve tomar em um ou outra situação, assim como é impossível elencar todas

as situações-problema com as quais nos deparamos ao longo do exercício

de nossa profissão. Sem levar em conta situações de aprendizado que não

são propriamente um problema, mas que se mostram diferentes da norma.

Como lidar com elas? Não há receitas para nada disso. Nossos monitores

têm, assim, o privilégio de vivenciar uma experiência de ministrar aulas de

língua enquanto se preparam para sua carreira futura. Ao mesmo tempo em

que leem os teóricos que os preparam para esse ofício, vivenciam o ofício

nas salas do CLAC e veem, exemplificada na complexidade da sala de aula,

muitas das situações-problema sobre as quais leem. Isso é certamente uma

confirmação da necessidade de o professor estar em contínua formação,

preparando-se para as turmas em que já leciona, assim como para aquelas

que ainda lecionará; preparando-se para a sociedade em contínua mutação

18 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 20: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

em que vivemos nesse muito agitado século XXI. Assim, nossos alunos

vivenciam que

o professor intervém num meio ecológico complexo, num cenário psicológico

vivo e mutável, definido pela interação simultânea de múltiplos fatores e

condições. Nesse ecossistema, o professor enfrenta problemas de natureza

prioritariamente prática, que, quer se refiram a situações individuais de

aprendizagem ou formas de comportamentos de grupos, requerem um

tratamento singular, na medida em que se encontram fortemente

determinados pelas características situacionais do contexto e pela própria

história da turma enquanto grupo social. (GOMEZ, 1995, p. 102)

Como o monitor tem um retorno sobre sua prática docente?

O curso do CLAC não corresponde a um estágio, mas tem

também a preocupação de dar ao monitor um retorno sobre sua atitude em

sala de aula. É claro que o primeiro retorno é informal, é aquele que parte

espontaneamente dos alunos e, às vezes positivo, às vezes negativo,

costuma afetar muito o professor responsável pela turma. Por vezes, são

elogios vagos, isolados ou coletivos, o reconhecimento ao final de um

período cursado, em que os alunos perguntam ao monitor se ele continuará

com o grupo no semestre seguinte. Por vezes, são sugestões de algum outro

tipo de atividade, pedido de modificação de alguma atitude. O orientador

pode, eventualmente, assistir a algumas aulas e dar sua opinião, fazendo

sugestões. No entanto, pelo menos no curso de francês, a orientação

costuma restringir-se aos comentários feitos pelo próprio monitor ou pelos

alunos. Assim sendo, torna-se imprescindível o documento de avaliação do

monitor por parte dos alunos.

Claro que nem sempre o documento é preenchido com muito

cuidado. Certamente, há alunos que criticam o monitor sem motivos ou

outros que preferem atribuir a nota máxima ao monitor, simplesmente, para

concluir logo esse questionário que acham tedioso. No entanto, há um bom

número de alunos que compreende o objetivo do questionário e o preenche

conscientemente, procurando mostrar os pontos fortes e fracos do curso em

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 19

Page 21: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

si e do monitor responsável por sua turma. Alguns itens avaliados são

bastante objetivos, como pontualidade e frequência. Outros tópicos são mais

vagos como ―relação com os alunos‖ ou ―equivalência do conteúdo visto em

aula e cobrado na avaliação‖.

Talvez, em um primeiro momento, o monitor sinta-se mal

quando vê que não recebeu apenas conceitos ―A‖ e ―B‖, mas que em alguns

quesitos seus alunos o consideram não tão bom quanto ele pensava ser.

Mas, quando há uma certa quantidade de alunos unânimes em avaliar um

monitor com ―C‖ em um dado quesito, isso é algo para ser levado em conta.

Se um bom número de alunos considera o desempenho do monitor como

regular, por exemplo, na preparação de material, não basta que este diga:

―Mas eu preparo tanta coisa além do livro. Eles são injustos‖. É preciso

exatamente que ele tente avaliar em que medida as atividades preparadas

correspondiam ao nível da turma — atividades fáceis demais ou difíceis

demais desanimam. E é preciso ainda que se lembre: não é o número de

páginas de exercícios extras que dirá se aquele é um bom ou um mau

professor. Assim, as fichas de avaliação têm um papel fundamental também

na autoavaliação dos monitores. Estes devem, após a leitura das avaliações,

passar à reflexão sobre sua prática, nunca, porém, deixando-se desanimar

pelas críticas, mas aprendendo a fazer delas um ponto de partida para

mudanças — se necessárias — ainda no semestre em curso e em sua

prática futura.

Portanto, para que as fichas de avaliação dos monitores

possam desempenhar esse importante papel de reflexão, devemos valorizá-

las e talvez até mesmo pensar em estruturá-las de uma maneira mais

adequada. Com relação a esse trabalho de reflexão sobre a prática docente

partindo dos comentários dos alunos no CLAC, é importante que levemos em

conta três aspectos centrais.

Em primeiro lugar, o fato de que os alunos do CLAC deverão

ser devidamente instruídos acerca do objetivo das fichas e levados, assim, a

preencherem atentamente o documento. Em segundo lugar, é necessário

20 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 22: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

que os monitores aprendam a ler essas fichas, alegrando-se com suas

qualidades ali ressaltadas e aprendendo com as críticas que eventualmente

possam existir. Por último, é imprescindível que alunos, monitores,

organizadores e demais membros do CLAC revejam o documento e seu uso

— evitar que as turmas preencham o documento em um dia próximo a

feriado, quando há poucos alunos presentes, tornar mais claros alguns itens

cuja redação deixa margem a dúvidas, propor talvez mais espaço para que

os alunos redijam seus comentários pessoais, mantendo a avaliação pela

atribuição de notas, mas dando ao aluno espaço para explicar não somente

por que atribuiu ―D‖ ou ―E‖ para algum item, mas que ele tenha também a

possibilidade de comentar aspectos positivos do monitor. Essa avaliação

pode, certamente, colaborar ainda mais para o melhor desempenho dos

monitores e para a melhoria do projeto como um todo.

Considerações Finais

No presente artigo, focalizamos o trabalho do CLAC sob alguns

aspectos centrais como o de formação do professor em um sentido mais

amplo — o de facilitador da aprendizagem no grupo, o de mediador de

discussões —. No entanto, existe outro lado da formação do professor que

merece especial atenção: a formação contínua no conteúdo da disciplina de

sua especialidade.

Assim, não podemos deixar de mencionar o papel

desempenhado pelo CLAC no sentido de reforçar o conteúdo aprendido

pelos monitores e auxiliá-los em sua formação contínua como professores e

falantes da língua estrangeira que estão ensinando. Começamos o presente

artigo mencionando o binômio ―domínio do conteúdo‖ e ―domínio de como

ensinar‖. O bom pedagogo é aquele que reconhece suas dificuldades e

pontos fracos, é aquele que procura ajuda quando se depara com dúvidas.

Certamente, a proximidade com outros colegas que trabalham na monitoria e

os encontros semanais com o orientador contribuem para que o monitor

sinta-se à vontade para perguntar sobre suas dúvidas de gramática ou uso

da língua, dúvidas que, às vezes, são comuns a muitos monitores.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 21

Page 23: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Desde o início da instituição Escola, muito já foi dito sobre o

papel do professor: educador, personagem central no processo ensino-

aprendizagem, personagem que ao invés de centralizar o conhecimento deve

levar seus alunos à autonomia. Espaços como o CLAC valorizam esse

profissional e o levam a questionar-se sobre sua própria prática. Mostram

que o domínio do conteúdo não é tudo, que o professor competente é aquele

que conhece sua disciplina, mas que, sobretudo, sabe como trazê-la para

mais perto de seu público alvo. Muitos ex-monitores do CLAC são agora

parte de uma equipe de professores de língua em um estabelecimento de

ensino e estão contribuindo lá também para continuar a levantar

questionamentos sobre o trabalho e o papel do professor nos dias de hoje. E

são esses os questionamentos que podem renovar a prática docente.

Cada geração relança o debate em torno dos programas, de sua sobrecarga;

redescobre a necessidade de levar-se em consideração a globalidade da

pessoa; insiste no sentido dos conhecimentos e de sua contextualização;

tem a sensação de ter, finalmente, posto o dedo sobre o fundo do problema

e ter encontrado a solução. Houve um real progresso? Talvez a abordagem

por competências na reformulação dos programas escolares não seja senão

a derradeira metamorfose de uma utopia muito antiga: fazer da escola um

lugar onde cada um aprenderia livre e inteligentemente coisas úteis na vida...

(PERRENOUD, 1999, p. 96)

22 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 24: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Professora Adjunta de Língua e Literatura Francesa na Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

Referências

BESSA, V. da H. Teorias da Aprendizagem. Curitiba: IESDE Brasil SA, 2008.

GÓMEZ, A.P. O pensamento prático do professor. A formação do professor

como profissional reflexivo. In: NÓVOA, A. (org.) Os professores e sua

formação. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

PERRENOUD. Construir competências desde a escola. Porto Alegre:

Artmed, 1999.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 23

Page 25: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES E SUA RELEVÂNCIA

NA PROMOÇÃO DA AUTONOMIA SOCIOCULTURAL DOS APRENDIZES

THE CONTINUING FORMATION OF TEACHERS AND ITS RELEVANCE IN THE

PROMOTION OF THE SOCIOCULTURAL AUTONOMY OF THE LEARNERS

Vanessa Mota1

Christine Nicolaides2

Resumo

Este trabalho tem a finalidade de analisar crenças de professores e graduandos no que concerne ao processo de ensinagem

3 de línguas através de suas narrativas sobre suas práticas docentes durante um curso de aperfeiçoamento intitulado PROLEC (Promoção do Letramento Crítico por meio da produção de materiais didáticos), na Faculdade de Letras da UFRJ, durante o ano de 2013, financiado pela FAPERJ. As crenças de professores foram analisadas, em especial, sob dois aspectos: o da autonomia (Freire, 2011) e a do letramento crítico de aprendizes (Cervetti et alli, 2001). Os dados mostram que há um caminho longo a ser percorrido na formação continuada de professores para que aprendizes possam fazer usos de práticas sociais de maneira responsável e ética (Rojo, 2009). Palavras-chave: ensinagem; autonomia; PROLEC; letramento.

Abstract The present article aims to analyze undergraduates‘ and teachers‘ beliefs regarding language teaching-and-learning process through their narratives about their teaching practices during a training course entitled PROLEC (Promotion of Critical Literacy by means of the production of didactic material), at the Faculty of Letters of the Federal University of Rio de Janeiro - UFRJ during the year of 2013. The course was financially supported by FAPERJ (Rio de Janeiro State Funding Agency). The teachers‘ beliefs were particularly analyzed in the light of two aspects: autonomy (Freire, 2011) and of critical literacy (Cervetii et alli, 2001). The data shows that there is a long path to be followed in the continuing formation of teachers so that learners can make use of social practices in a responsible and ethical way (Rojo, 2009). Keywords: teaching-and-learning; autonomy; PROLEC; literacy.

24 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 26: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Introdução

Neste trabalho, são analisadas narrativas de participantes do

curso de aperfeiçoamento PROLEC4, que tem a finalidade de aproximar os

estudos da área de Linguística Aplicada, envolvidos na formação de

professores e na ensinagem de línguas, da realidade das salas de aulas de

escolas do estado do Rio de Janeiro, auxiliando professores a repensarem

suas práticas docentes, visando à promoção da autonomia dos aprendizes.

O público alvo deste curso envolve profissionais da área de

ensinagem de línguas de escolas públicas e privadas, embora tenha sido dada

oportunidade de estudantes de nível de graduação em Letras de participarem.

A análise das narrativas dos participantes busca entender se a realidade vivida

por esses profissionais está relacionada com o conceito de autonomia, bem

como compreender a questão do Letramento Crítico, ambos conceitos

discutidos durante o curso de aperfeiçoamento.

Este curso foi divido em cinco módulos independentes, cada um

com quatro encontros semanais, intitulados: ―Elaboração e adaptação de

materiais didáticos‖, ―Questões de letramento e autonomia na elaboração de

materiais didáticos‖, ―Uso de ferramentas tecnológicas no ensino de línguas‖,

―Modelização didática de gêneros‖ e ―Produção de sequências didáticas‖,

ministrados por professores pesquisadores da Faculdade de Letras da UFRJ.

O participante que possui nível superior e que compareceu aos cinco módulos,

apresentando a unidade didática proposta no final de cada um deles, teve

direito a um certificado de aperfeiçoamento, porém, caso não tenha participado

de todos os encontros, recebeu um certificado de participação para cada

módulo cursado.

Para a geração de dados dessa pesquisa foram feitas

observações dos encontros, bem como gravações, transcrições e entrevistas

com os participantes, sobre suas práticas docentes. É relevante ressaltar que

os dados gerados para esse trabalho refletem opiniões e relatos dos

participantes dos dois primeiros módulos do curso de aperfeiçoamento.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 25

Page 27: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Módulos observados e pressupostos teóricos abordados

O curso de aperfeiçoamento PROLEC – UFRJ constituiu-se por

cinco módulos independentes, todos relacionados à formação continuada de

profissionais de ensino do estado do Rio de Janeiro, e possuía uma carga

horária total de 180 horas, durante o ano de 2013. Os dados gerados para esta

pesquisa estão relacionados aos dois primeiros módulos: um referente a

materiais didáticos e o outro sobre autonomia na ensinagem de línguas, ambos

visando desenvolver conceitos e reflexões acerca do letramento crítico entre

aprendizes.

Esse curso teve de início, um total de trinta e três participantes,

entre eles, professores de escolas públicas, privadas e cursos de idiomas do

estado do Rio de Janeiro e alunos da graduação da Faculdade de Letras da

UFRJ.

O primeiro módulo do curso de aperfeiçoamento “Elaboração e

adaptação de materiais didáticos” visava analisar diferentes materiais didáticos

de diferentes instituições de ensino e níveis de aprendizagem e discutir como o

letramento crítico poderia ser trabalhado nas aulas. Foram apresentadas aos

participantes as ideias propostas por Cervetti et alli (2001)5 que abordam a

importância do letramento crítico para a vida em sociedade e como esta

concepção está ligada à ensinagem de línguas; neste artigo, é investigada a

ideia de representação. De acordo com os autores, a realidade não é dada; ela

não pode ser definitiva, e, portanto, não pode ser “capturada” pela linguagem.

Em outras palavras, devemos questioná-la, já que a “verdade” não é absoluta,

mas relativa e dependente de contextos específicos. Em outras palavras,

podemos dizer que a realidade é (re)(co)construída e, com isso, há uma

necessidade de desenvolvimento da consciência crítica.

No seguimento do curso, houve debate com a finalidade de

permitir aos participantes concordarem ou não com as ideias dos autores

mencionados e, com isso, (re)(co)construir o conhecimento. Os debates

giraram, ao longo do módulo, basicamente, em torno de como esses

26 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 28: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

profissionais trabalhavam (ou não) a criticidade dos seus aprendizes e como os

materiais didáticos, bem como as instituições de ensino, os auxiliavam (ou não)

em suas práticas docentes. Há diálogo entre escolas e profissionais da

educação? Os aprendizes possuem atitudes pró-ativas na ensinagem de

línguas? Há espaço para debates e reflexões sobre a formação de cidadãos

críticos e autônomos?

Para clarificar a relevância de tomada de decisões coletivas, o

diálogo e o uso da linguagem socialmente contextualizada, Rojo (2009, p. 108),

reforça que

(...) o fato de que a linguagem não ocorre em um vácuo social e que, portanto,

textos orais e escritos não têm sentido em si mesmos, mas interlocutores (...)

situados no mundo social com seus valores, (...) constroem seus significados

para agir na vida social. Os significados são contextualizados. (...) Tal

teorização tem uma implicação prática, porque possibilita trabalhar em sala de

aula com uma visão de linguagem que fornece artifícios para os alunos

aprenderem, na prática escolar, a fazer escolhas éticas entre o discurso

hegemônico da globalização e os significados antiéticos que desrespeitem a

diferença.

Ao trabalhar com a linguagem socialmente contextualizada,

promovemos a consciência crítica de aprendizes, o que é um tema relevante

nas obras de Paulo Freire e ainda é tema debatido nos PCNs (Parâmetros

Curriculares Nacionais)6, como um dos objetivos principais do ensino na

educação básica. Assim, ao fim do ensino fundamental, espera-se que os

alunos sejam capazes de “posicionar-se de maneira crítica, responsável e

construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de

mediar conflitos e de tomar decisões coletivas.” (p.7)

Entretanto, dialogar, de acordo com as ideias expostas por

Bakhtin (apud FARACO, 2009, p.68) não necessariamente significa que há,

digamos, concordâncias a todo o momento e aceitação de pensamentos, isto é,

das relações dialógicas podem “resultar tanto a convergência, o acordo, a

adesão, o mútuo complemento, a fusão, quanto a divergência, o desacordo, o

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 27

Page 29: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

embate, o questionamento, a recusa.” Através dessas relações dialógicas,

podemos alterar, questionar e melhorar tanto as práticas docentes, quanto as

discentes, com autonomia para que a ensinagem de línguas seja efetivada.

O segundo módulo observado intitulado “Questões de letramento

e autonomia na elaboração de materiais didáticos”, abordava a ensinagem de

línguas voltada para a promoção da autonomia sociocultural de aprendizes. Ou

seja, uma autonomia voltada não só para o indivíduo, mas para as práticas

sociais nas quais o aprendiz está inserido. Embora os termos “independência”

e “autonomia” sejam utilizados, muitas vezes, como sinônimos, resaltamos aqui

a diferença entre eles:

(...) o segundo termo “refere-se a mais uma atitude pró-ativa e vontade de

participar. Para que alguém se torne autônomo, na acepção aqui defendida, é

preciso ainda que, além de ter uma atitude pró-ativa e participativa, ele tenha

consciência dos seus próprios recursos para o desenvolvimento de suas

competências, mas ainda seja consciente do contexto social em que está

inserido. (NICOLAIDES; MATOS; MOTA, 2013, p.187).

Freire (2011) acredita na autonomia como um amadurecimento do

ser para si, porém não podemos esquecer-nos de amadurecermos também

para e com o outro, levando em conta que a educação é como uma

“especificidade humana, como um ato de intervenção no mundo” (p.106).

Assim, fazendo uso da língua em contextos socialmente reais e em diálogo

com o outro, os aprendizes criam consciência de seus papeis sociais de forma

responsável e ética.

Durante o segundo módulo, com o propósito de despertar a

reflexão com relação às práticas colaborativas em sociedade, os participantes

assistiram e debateram sobre o vídeo Ilha das Flores7, que mostra como nós,

seres humanos, estamos, direta e indiretamente, ligados tanto com pessoas

próximas, quanto com pessoas que estão distantes, mas que acabam

influenciando nosso modo de vida, seja pela alimentação, pelo trabalho, pela

educação, entre outros. A sugestão de uma discussão sobre esse filme surgiu

através da leitura de um livro recomendado aos participantes intitulado Línguas

28 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 30: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

adicionais na escola: aprendizagens colaborativas em Inglês (SCHLATTER &

GARCES, 2012). O capítulo “Educação para a vida: o que a escola tem a ver

com isso?” inicia-se com a seguinte pergunta: “A escola pode tornar-se um

palco privilegiado para a integração de conhecimentos com vistas a

compreender o mundo, participar e nele intervir criativamente?” (p.9) Assim, um

debate pode ser iniciado abordando a função da escola para a formação do

cidadão, ou seja, a escola tem papel fundamental para os aprendizes, mas,

para isso, é necessário que eles possam “compreender as relações humanas

como complexas, diversas, situadas e historicamente construídas.” (p.14)

Com o intuito de mostrar que é possível letrar os aprendizes

criticamente, foi pedida a leitura dos capítulos do livro Multiletramentos na

escola de Roxane Rojo e Eduardo Moura (2012). Os participantes foram

divididos em grupos e cada um ficou responsável pela leitura, apresentação e

questionamentos dos capítulos presentes nessa obra, que reúne o que os

autores chamam de “protótipos”, ou seja, “estruturas flexíveis e vazadas que

permitem modificações por parte daqueles que queiram utilizá-las em outros

contextos que não os das propostas iniciais” (p.8). Ao propor o trabalho com os

multiletramentos, os autores analisaram os usos de alguns gêneros em sala de

aula, tais como trabalhar com clássicos infantis, utilizando um blog ou, até

mesmo, trabalhar minicontos multimodais:

(...) trabalhar com os multiletramentos partindo das culturas de referência do

alunado implica a imersão em letramentos críticos que requerem análise,

critérios, conceitos, uma metalinguagem, para chegar a propostas de produção

transformada, redesenhada, que implicam agência por parte do alunado.

(ROJO & MOURA, 2012, p. 8-9)

O aprendiz sendo um ser pró-ativo em sua formação e tendo

oportunidade para por em prática suas ideias, trabalhando colaborativamente

com os demais colegas e profissionais da escola, acaba se tornando um

criador de sentido com os outros, tornando-se mais autônomos através de uma

aprendizagem socioculturalmente dita. A criação coletiva é um importante

alicerce que promove a autoria, a autonomia, a interatividade, o registro e o

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 29

Page 31: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

protagonismo da turma, incentivando os alunos a produzirem e divulgarem o

conhecimento (cf. Rojo, 2012).

Alguns dados relevantes durante esses dois módulos podem ser

observados na próxima seção, na qual há uma seleção de trechos de relatos

dos participantes contando suas experiências com relação à docência,

trocando ideias sobre suas crenças relacionadas aos textos debatidos.

Narrativas de participantes sobre suas práticas docentes

As narrativas presentes nesta seção foram gravadas e transcritas

a partir das intervenções dos participantes ao longo do período em que

ocorreram os dois primeiros módulos do curso, entre os meses de abril e maio

de 2013, na Faculdade de Letras da UFRJ, durante as aulas do curso

PROLEC.

Embora esse curso tenha como público alvo professores de

línguas, tanto de escolas públicas, quanto privadas, houve a participação de

alunos da graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Porém, neste trabalho,

lançamos mão de narrativas de professores de línguas, entre eles Alice, Breno

e Adriana8.

No primeiro módulo, durante um debate sobre materiais didáticos,

o foco principal foi nos livros didáticos aprovados pelo PNLD9. No dia 17 de

abril, alguns participantes expuseram suas opiniões, tanto aqueles que já os

haviam utilizado em diferentes instituições de ensino, quanto aqueles que

gostariam de ter essa oportunidade. Estes, em sua maioria, alunos da

licenciatura que ainda não lecionam. Um comentário da professora Alice nos

chamou atenção:

Transcrição 1 – Excerto do dia 17/04/2013:

(Professora Alice expõe sua opinião durante a aula do módulo de materiais

didáticos acerca da participação dos alunos na escolha dos livros)

30 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 32: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Eu fico pensando na promoção do material didático na perspectiva do aluno...

Por que não entrar numa sala de aula e perguntar ‘o que vocês gostariam de

ler’?

Percebe-se aqui que a professora tem a vontade de que haja

mais oportunidade para que as relações dialógicas (cf. Faraco, 2009) sejam

efetivadas. Tais relações podem dar mais espaço para os aprendizes serem

mais pró-ativos durante as tomadas de decisões envolvendo a ensinagem de

línguas/literatura, o que não costuma ocorrer nas escolas, conforme

declarações dos participantes. A citação de Alice está em consonância com a

seguinte argumentação do professor de língua portuguesa e literatura, Breno,

sobre como é preocupante a aceitação daquilo imposto pelas instituições de

ensino aos docentes, o que, na maioria das vezes, faz com que tanto corpo

docente quanto discente não tenha voz nas tomadas de decisões:

Transcrição 2 – Excerto do dia 17/04/13:

(Professor Breno relata a relação entre coordenação pedagógica e docentes

durante a escolha de livros)

(...) isso é muito bacana, eu já tive a oportunidade de estudar com uma

professora que já fez isso (...) isso é muito legal quando eu tenho uma

coordenação pedagógica que me apoie... Meu sonho é fazer com que minha

lista de livros paradidáticos sejam tiradas da banca da Saraiva... Porque às

vezes eu coloco uma programação e minha coordenadora vira e fala

assim: “você não vai trabalhar Dom Casmurro?” Eu também preciso de

uma organização pedagógica por trás pra que me permita muitas vezes, me

desculpe, chutar o conteúdo, e me dar oportunidade de pegar um Best Seller...

Neste relato, o professor Breno revela um descontentamento

sobre o que é imposto pela coordenação pedagógica na escolha dos livros a

serem lidos pelos aprendizes, indicando a falta de participação de docentes,

complementando a opinião da professora Alice sobre a falta de voz nas

decisões por parte do corpo discente.

Durante o segundo módulo houve debate sobre o que os

participantes entenderiam sobre letramento crítico. Ainda esse mesmo

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 31

Page 33: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

professor, Breno, que se mostrou muito participativo durante o curso, concluiu

seu raciocínio da seguinte maneira:

Transcrição 3 – Excerto do encontro do dia 29/05/13:

(Professor Breno tenta definir o que seria “letramento crítico”)

(...) [letramento crítico] é inserir em seu contexto social... É colocar como leitor

e agente do seu mundo.

Conforme citado, Breno entendeu a relevância de contextualizar o

uso da linguagem e fazer com que os aprendizes possam desenvolver suas

habilidades, não apenas em sala de aula, mas em seu “mundo social com seus

valores” (cf. Rojo, 2009). Isto é, promover a formação de cidadãos críticos, ao

invés de promover um ensino engessado de memorização de regras

gramaticais.

Uma forma de avaliar o entendimento dos participantes sobre os

módulos e os debates, bem como suas práticas docentes, foi através das

unidades didáticas elaboradas pelos participantes ao fim de cada módulo. Em

cada unidade, os participantes foram orientados a levar em consideração

aspectos cruciais, tais como o nível dos aprendizes, o número de alunos,

problemas eventuais que poderiam surgir ao longo da aplicação da unidade,

entre outros. Cada unidade deveria ser composta de três tarefas relacionadas

ao mesmo eixo temático, a critério de cada participante, visando à promoção

do letramento crítico de aprendizes.

Logo após tentar definir o que seria letramento crítico, o

participante Breno comentou sobre sua unidade didática referente ao primeiro

módulo:

Transcrição 4 – Excerto do dia 29/05/13:

(Professor Breno relata sobre as tarefas propostas em sua unidade didática)

Na minha unidade didática, eu trabalhei com produção de texto... Uma

atividade que eu achei interessante... Eu pedi pra eles procurarem na linha do

32 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 34: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

tempo da página do Facebook deles...posts que tenham cometidos

erros...ecos, inversões...

Nesse último relato, percebemos uma tarefa proposta pelo

professor voltada aos erros gramaticais, porém sem promover a criticidade dos

aprendizes sobre esses “erros”, tais como variação linguística, contexto no qual

o post estava situado, entre outros. Verifica-se que o mesmo professor que

mencionou a importância de letrar criticamente inserindo o aprendiz “em seu

contexto social”, ao expor a sua prática docente, parece não ter seguido essa

linha de raciocínio na prática.

Esse relato guarda diferenças bastante acentuadas em relação a

este outro, da professora Adriana, também de língua portuguesa e literatura:

Transcrição 5 – Excerto do dia 29/05/13:

(Professora Adriana relata experiência na qual acredita que tenha promovido o

letramento crítico de aprendizes em uma escola pública do Rio de Janeiro)

Eu também não conhecia essa questão do letramento crítico e eu não sei se o

que eu fiz... e rapidamente relatando... comprei vários jornais e levei pra

escola... uma pet shop no Engenho de Dentro estava maltratando os animais.

Nesse dia, eu confesso que não foi pensando nessa notícia, mas está em

todos os jornais... eu queria que eles lessem vários jornais diferentes... de que

eles fossem buscar as informações... fui colocando no quadro como que foi

abordada essa notícia em diferentes jornais. E depois eu perguntei pra eles o

que eles queriam ver nas capas dos jornais... eles refletiram sobre essa

questão...

No primeiro relato do professor Breno (ver excerto 4), o docente

evidenciou a intenção de avaliar a aptidão dos alunos em reconhecer

inadequações em relação ao uso da norma culta da língua, ao passo que, no

segundo, o objetivo da professora Adriana foi fazer seus alunos refletirem

sobre a questão abordada nas notícias, preocupação que sequer foi citada no

anterior. A professora, mesmo reconhecendo até aquele momento jamais ter

recebido qualquer informação sobre letramento crítico, mostrou-se engajada e

reflexiva sobre suas práticas docentes, e as tarefas por ela propostas aos

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 33

Page 35: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

alunos visavam à reflexão e à produção de criticidade em relação ao mundo no

qual eles estão inseridos. Em contrapartida, não percebemos a promoção do

letramento crítico durante a unidade didática relatada pelo professor Breno,

apesar de sua fala inicial sugerir o reconhecimento da importância desta

promoção. É importante ressaltar a complexidade de se trabalhar o letramento

crítico de aprendizes, em situações reais de uso da língua, para que assim,

haja a promoção da autonomia. Acreditamos que, embora o professor Breno

não tenha relatado uma tarefa com esses propósitos, ele demonstrou em seu

relato conhecer o que seria o letramento crítico, o que nos indica um importante

avanço em sua vida profissional.

A professora Adriana ainda evidencia a crença na sua função de

fomentadora da criticidade e promotora da intervenção crítica dos alunos na

sociedade:

Transcrição 6 – Excerto do dia 29/05/2013:

(Professora Adriana expõe o que considera ser o papel da escola na formação

de aprendizes)

“Na escola, aprendemos a analisar, refletir, negociar, respeitando o outro e

com o outro.”.

Apesar de muitos participantes do curso PROLEC terem, durante

conversas informais, relatado a importância de haver esse tipo de oportunidade

para que docentes e futuros docentes possam refletir e trocar experiências,

nem todos tiveram visões tão otimistas, chegando, até mesmo, a possuir uma

descrença nas possibilidades de reflexão, criticidade e autonomia serem

desenvolvidas em ambiente escolar, como foi relatado pela participante

Cristina:

Transcrição 7 – Excerto do dia 29/05/2013:

(Professora Cristina se mostra descrente sobre a formação de aprendizes de

maneira eficaz)

“A escola não dá conta dessa diversidade que acontece, como que vai dar

conta da vida?”

34 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

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É um desafio muito grande formar cidadãos críticos e promover a

autonomia de alunos, pois isso requer um esforço por parte de governos,

escolas e comunidade acadêmica. É um processo que demanda investimentos

em formação inicial e continuada de professores, bem como mencionado por

Rojo & Moura (2012), é fundamental analisar

(...) o que mudar (ou não) nos currículos e referenciais, na organização do

tempo, do espaço e da divisão disciplinar escolar, na seriação, nas

expectativas de aprendizagem ou descritores de “desempenho”, nos materiais

e equipamentos disponíveis nas escolas e nas salas de aula. (p.31)

Considerações finais

De acordo com Rojo (2009), “um dos objetivos principais da

escola é justamente possibilitar que seus alunos possam participar de várias

práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita (letramentos) na vida da

cidade, de maneira ética, crítica e democrática” (p.107). As afirmações e

relatos de cada participante do PROLEC demonstram a necessidade de ações

de formação continuada que oportunizem o debate e a troca de experiências

nesta direção. Embora docentes demonstrem compreender a importância de

promover o letramento crítico também como forma de ampliar as possibilidades

de intervenção de seus alunos na sociedade em que estão inseridos, ainda é

evidente a descrença nas possibilidades da escola em assumir este papel; o

receio da não aceitação, por parte dos gestores da escola, de uma proposta

que promova a criticidade dos alunos; as dúvidas em relação a como este

processo possa ser conduzido.

Assim, uma formação continuada permite a reflexão sobre as

práticas docentes e sobre a formação de cidadãos críticos que tenham

consciência sobre seus papeis sociais, agindo de maneira autônoma em

sociedade. É importante ressaltar que a promoção da autonomia sociocultural

dos aprendizes não é tarefa apenas do professor – é parceria entre

educadores, educandos, familiares, instituições de ensino e comunidade. O

comprometimento do docente com a continuidade de sua formação se mostra

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 35

Page 37: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

essencial, uma vez que a sociedade se transforma e se reinventa

permanentemente, e os instrumentos à nossa disposição se diversificam cada

vez mais. Rojo & Moura (2012) nos lembram de que é necessário que haja um

engajamento por parte do professor para se atualizar e estar disposto a

trabalhar, juntamente com os aprendizes, levando em conta as diferenças

socioculturais de seus alunos. Para isso, é necessário dar aos aprendizes o

poder de intervir nas decisões que se referem à sua formação e ao seu

desenvolvimento de criticidade e autonomia. Para que isto possa se efetivar, há

a necessidade de se promover mais cursos de aperfeiçoamento e atualização

para profissionais da educação, bem como um estreitamento da distância entre

estudos acadêmicos (instituições de nível superior) e contextos escolares

(instituições de nível básico). Como foi, por diversas vezes, relatado pelos

participantes, as escolas podem e devem incentivar seus profissionais a

refletirem sobre suas práticas docentes e a buscarem novas qualificações.

Com uma formação continuada de qualidade, acreditamos que professores

possam modificar suas atitudes para melhor, apostando sempre no diálogo

com seus aprendizes, para que haja a promoção de sua autonomia

sociocultural. Por fim, “um ser autônomo socioculturalmente é um ser engajado

e pró-ativo para o desenvolvimento de suas competências, sempre

considerando o contexto social ao qual está inserido” (NICOLAIDES; MATOS;

MOTA, 2013, p. 187).

36 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 38: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Mestranda do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ.

2 Professora Pesquisadora do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística

Aplicada da UFRJ.

3 Adota-se aqui o termo “ensinagem”, no lugar de “ensino e aprendizagem”, por entender que

os referidos termos são processos imbricados e não separados, sendo a delimitação entre eles

bastante tênue (v. NICOLAIDES; SZUNDY. 2013).

4 PROLEC (Promoção do Letramento Crítico por meio da produção de materiais didáticos) é

um projeto que está em consonância com outro projeto submetido à FAPERJ pelo Edital “Apoio

à melhoria do Ensino em Escolas da Rede Pública Sediadas no Estado do Rio de Janeiro –

Edital FAPERJ N.º 16/2011, pela mesma equipe de professores pesquisadores, com uma

carga horária total de 180h.

5 Retirado de < http://www.readingonline.org/articles/cervetti/>, acessado em 22 de setembro

de 2013.

6 Ver o documento na íntegra em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_estrangeira.pdf

Acessado em 28 de janeiro de 2014.

7 Filme curta metragem Ilha das Flores. Retirado de <http://www.youtube.com/watch?

v=KAzhAXjUG28>, acessado em 22 de setembro de 2013.

8 Os nomes dos participantes aqui utilizados são fictícios, a fim de preservar suas identidades.

9 Para maiores informação sobre o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD):

http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=668id=12391option=com_contentview=article

Acessado em 28 de janeiro de 2014.

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linguística aplicada de línguas no contexto brasileiro – um paralelo com a

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Page 40: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

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aprendizagens colaborativas em Inglês. Erechim: Edelbra, 2012.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 39

Page 41: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

A LITERATURA NO ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

LITERATURE IN FOREIGN LANGUAGE TEACHING

Ana Cristina dos Santos1

O texto não é pretexto para nada. Ou melhor, não deve ser. Um texto

existe apenas na medida em que se constitui ponto de encontro entre

dois sujeitos: o que escreve e o que lê; escritor e leitor, reunidos pelo

ato radicalmente solitário da leitura, contrapartida do igualmente solitário

ato da escritura. (Marisa Lajolo)

Resumo

Os textos literários (TL) viveram, no ensino de línguas estrangeiras (LE), um período de apogeu para depois serem relegados a um segundo plano, inclusive sendo eliminados da lista de gêneros textuais trabalhados em sala de aula. Motivo que levou muitos professores a considerarem essa modalidade textual complexa, inacessível, de pouca incidência nos usos mais frequentes do sistema da língua e a rotularem de pouco eficaz para o desenvolvimento da competência comunicativa. Hoje há uma recuperação dos gêneros literários no ensino de línguas pela compreensão de suas diversas funcionalidades, entre elas a formação do leitor literário. Porém, essa recuperação não condiz com o uso do TL em sala de aula. Por isso, esse trabalho propõe discutir a importância do tratamento didático do gênero literário nas aulas de LE; especificar o lugar e o papel do TL no processo de ensino e aprendizagem de LE e, ampliar as propostas de utilização do gênero literário na sala de aula. Desse modo, pretende-se despertar o professor para a importância da inserção do TL em sua práxis, como um material adequado à assimilação da cultura estrangeira e, principalmente, como elemento que estimula o desenvolvimento da competência leitora e literária do aprendiz. Palavras-Chave: ensino de línguas estrangeiras; gênero literário; competência literária; tratamento didático do TL.

Abstract

In foreign language teaching, literary texts reached a period of climax, but were later left in the background and even excluded from the list of textual genres used in the classrooms. This is the reason that led many teachers to consider this type of text complex or inaccessible, not frequently found among the most recurrent uses of the linguistic system. These professionals labeled it as not very efficient to the development of communicative competence. Today there is a new attempt to bring literary genres to language teaching, based on the understanding of its diverse functionalities, which include the construction of the reader of literature. However, this new attempt is not in accord with the use of literary texts in the classroom. Thus, this paper proposes to discuss the importance of the didactic treatment of the literary genre in foreign language classes, specify the place and the role of this type of text in the process of teaching and learning foreign languages, and further the proposals for the application of the literary genre in the classroom. Therefore, it aims to make the teacher aware of the importance of the insertion of literary texts in their practices, as an adequate resource of foreign culture assimilation and, mainly, as an element to stimulate the development of the learners‘ reading and literary competences. Keywords: foreign language teaching, literary genre, literary competence, didactic treatment of literary texts.

40 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 42: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Desmistificando o gênero literário no ensino de LE

Para muito de nós, professores de língua estrangeira (LE), o texto

literário (TL) ainda é um gênero textual pouco utilizado nos materiais didáticos

elaborados para a sala de aula. Contribui para essa ausência o fato de que os

livros didáticos de LE, em sua maioria, não apresentarem propostas com esse

gênero. Quando elas existem, aparecem para ensinar um aspecto da cultura da

língua meta aprendida ou para fixar e aplicar um ponto gramatical ou lexical

determinado. Inclusive nas atividades que enfocam a compreensão leitora, as

perguntas propostas não englobam as especificidades do gênero. Com isso,

subutiliza-se o texto literário ao esvaziá-lo de seu significado literário.

Essa subutilização do TL presente nos livros didáticos reflete

diretamente na práxis do professor de LE (cf. Santos, 2004; 2006; 2007; 2009;

2011) de duas maneiras: i) ele insere o texto literário em suas aulas, mas

propõe atividades utilizando uma metodologia diferente da praticada com os

outros gêneros, fazendo com que esse trabalho seja visto pelos alunos como

algo ―diferente‖, como se fosse ―o momento da literatura‖, ou então; ii) ele não

insere o texto literário nas aulas, porque acredita que ao fazê-lo, deve

apresentar questões sobre o movimento estético em que se insere o autor/texto

e, como sua aula é de língua estrangeira e não de literatura, não vê de que

maneira o seu aluno pode se beneficiar com esse tipo de proposta.

Essas práticas, aliadas à exclusão do TL pelas metodologias de

ensino de língua estrangeira2, induzem o professor à utilização de outros

gêneros e exclui o TL de suas aulas. O TL, muitas vezes, fica restrito às aulas

de cultura. Ao não utilizar o TL em sala de aula, o professor de língua

estrangeira acaba por criar vários mitos em torno do uso desse gênero em sala

de aula (cf. Santos, 2014)3, tais como: é um gênero próprio para ensinar

cultura; é difícil de ser trabalhado; não é um texto autêntico; não é próprio para

a prática comunicativa, pois não é produto de um ato de comunicação e, por

fim, as atividades com o TL não devem ocupar o mesmo grau de importância

que as propostas com outros gêneros.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 41

Page 43: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Nos últimos anos, um grupo de teóricos no âmbito do ensino e

aprendizagem de língua estrangeira – entre eles a autora desse trabalho - tenta

desmistificar o seu uso em sala de aula e defende a incorporação definitiva do

gênero literário nas aulas de LE. Há um consenso sobre a importância e o

tratamento didático do gênero literário nas salas de aula. Não se pretende

estabelecer a primazia desse gênero sobre qualquer outro, mas, simplesmente,

encontrar o seu espaço em sala de aula e fazer com que os professores o

utilizem para elaborar atividades para as aulas de língua estrangeira como

fazem com qualquer outro gênero.

A incorporação do gênero literário nas aulas de LE está

consoante com a ideia de que nas aulas de LE se devem elaborar atividades

que englobem os diversos gêneros textuais. Essa diversidade ajuda o aluno a

perceber que a sociedade utiliza os gêneros textuais para diferentes objetivos

discursivos, além de contribuir para o aumento de seu conhecimento

intertextual e sua competência comunicativa, como assinala Bajtín (2002, p.

270): ―Quanto melhor dominamos os gêneros discursivos, [...] mais plástica e

agilmente reproduzimos a irrepetível situação da comunicação verbal; em uma

palavra, maior é a perfeição com a que realizamos nossa livre intenção

discursiva4‖.

Com essa incorporação do TL nas aulas, desmistificam-se algumas

crenças sobre o seu uso. A primeira é que o TL é fundamental para ensinar

cultura. Para propor atividades específicas sobre cultura qualquer outro texto –

literário ou não – estaria perfeito, porque todos os textos são produzidos dentro

de um contexto socio-histórico e adquire os sentidos da cultura que o produziu.

Assim sendo, todo texto é uma ferramenta para o ensino de questões culturais e

não só o literário. A segunda é a visão de que o gênero literário é difícil de ser

trabalhado. Para Mendoza Fillola (2002, p. 114) ―os textos literários costumam

estar um tanto relegados, devido ao fato de considerar que o discurso literário é

uma modalidade complexa e elaborada de pouca incidência nos usos mais

frequentes do sistema da língua‖5. Contudo, o próprio autor afirma que essa

argumentação apresentada pelos professores não se sustenta, pois o TL utiliza

a língua cotidiana e apresenta dificuldades como qualquer outro gênero.

42 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 44: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Acrescenta (2002, p. 149) que como solução basta apenas selecionar o texto

adequado. Estamos de acordo com ele e, segundo as nossas pesquisas sobre

o uso do TL nas atividades de compreensão leitora, o que realmente acontece

é o professor não utilizar o TL, porque não lhe foi ensinado como elaborar

atividades com esse gênero. Assim, ele não sabe como utilizá-lo e, por isso,

escolhe outro texto para propor as atividades.

Por ultimo, há o fato de o professor não considerar o TL como um

texto autêntico. Essa crença leva-o a pensar que esse não é produto de um ato

de comunicação. Tais crenças acarretam o abandono do gênero na sala de

aula, pois várias propostas metodológicas enfatizam a confecção de material

didático utilizando apenas textos considerados autênticos e, portanto, produtos

de atos comunicativos. Para Acquaroni (2007, p. 18) esse é um dos principais

motivos para o professor de LE não confeccionar atividades com o TL:

[com o texto literário] estamos diante do artístico frente ao histórico. Desde esta

perspectiva, pode parecer que a literatura mente; anuncia falsidades. É,

precisamente, de esta apreciação de onde parte a ideia errônea de que a

literatura não constitui um material autêntico6... (grifo da autora).

Essas crenças conduzem ao abandono do TL em detrimento de

outros gêneros considerados pelos professores ―mais autênticos‖. Eliminá-las

é importante para os professores incorporarem o TL como um dos gêneros

textuais passíveis de serem utilizados nas aulas de LE. Por esse motivo,

centramos nossas pesquisas e discussões no único elemento do processo de

ensino e aprendizagem que pode fomentar as atividades com o texto literário: o

professor. Ele é o principal elemento para a difusão de propostas didáticas com

o TL como ―recurso para o ensino‖ e como ―ferramenta na formação de leitores‖

e não sob a concepção de ―objeto de estudo‖ como lhe foi ensinado nas aulas

de literatura em seu curso de formação (cf. Aragão, 2006).

Dessa forma, se não há como influenciar as metodologias de

ensino e tampouco os materiais didáticos existentes no mercado, os

professores são o instrumento que podemos utilizar para a conscientização da

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 43

Page 45: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

necessidade da inserção do TL no processo de ensino e aprendizagem de LE e

para a difusão de propostas que considerem, com mais frequência, a natureza

específica dos textos literários, a fim de desenvolver as competências leitora e

literária do aluno.

As metodologias de ensino e a formação de leitores literários

Em nossa concepção, as propostas para a utilização do TL como

recurso para o ensino e ferramenta na formação de leitores perpassam pela

leitura. É através dela que o aluno desenvolve as especificidades do gênero

literário e, por sua vez, a competência literária7. Essa concepção está de

acordo com a proposta de Mendoza Fillola (2002b, p.111 e ss.) que associa o

ensino de literatura ao de leitura. O autor afirma que o contato com o texto

literário acontece através da leitura realizada. A partir de então, o leitor pode

interpretar e emitir um juízo de valor. Acrescenta que o ensino de literatura exige

uma ampla formação leitora e uma frequente atividade de leitura. Assim, os

professores devem priorizar as atividades que regulam o processo leitor; ensinar

as estratégias de leitura e o modo de relacionar as diferentes produções literárias

e considerar as contribuições pessoais dos alunos para a interpretação dos

textos. Em seu modelo teórico, a competência leitora (que é um componente da

competência literária) é a chave que abre o acesso à interação entre o texto e o

leitor.

Contudo, sabemos que as atividades de leitura elaboradas com o

texto e, principalmente, com o TL têm relação direta com as principais

abordagens metodológicas de ensino de LE. Dessa forma, à medida que

mudavam as perspectivas sobre o conceito de língua e como ensiná-la,

também as relações com o texto, a leitura e a aprendizagem sofriam

mudanças. Segundo Denyer (1999, p. 5), as primeiras abordagens tradicionais

de ensino de língua – Gramática-tradução – utilizavam, exclusivamente, os

textos literários. Nessas abordagens, o foco eram os textos literários dos

autores canônicos cujos objetivos eram conhecer a cultura e praticar a

gramática normativa e o vocabulário. Esses textos eram considerados o

modelo de língua perfeita e deveriam ser memorizados e imitados. Ainda que

44 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 46: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

as atividades partissem sempre do texto, elas não abordavam os processos de

compreensão leitora, pois a apreensão do conteúdo se dava sempre por

questionários fechados, respeitando totalmente o expressado no texto. De

acordo com Kleiman (1989, p. 38), esse tipo de leitura está focada apenas no

texto já que o leitor deve decodificá-lo. O processamento da informação é

unilateral, pois cria uma linha que parte apenas do texto para a interpretação

do leitor, em um processamento unidirecional de leitura. Esse processo é

conhecido como modelo bottow-up ou ascendente de leitura.

Com a entrada dos métodos estruturo-globais no início do século

XX, há um declínio no uso dos textos literários. Esses métodos priorizavam o

uso cotidiano da língua e, consequentemente, a supremacia da língua falada

sobre a escrita. O aluno primeiro aprendia a falar na língua meta e somente

depois, a escrever. Os diálogos elaborados pelos autores dos livros didáticos

eram mais importantes que qualquer outro texto (cf. Denyer, 1999). Os gêneros

textuais de maneira geral eram raramente utilizados, pois somente os diálogos

eram priorizados. Os textos literários passaram a ser utilizados nos níveis mais

avançados da língua apenas para ensinar civilização e cultura. Eram sempre

textos de autores canônicos que pertenciam ao mundo intelectual e/ou artístico

da língua meta. Sob essa concepção, a leitura não era uma prioridade no

processo de ensino. Para Denyer (1999, p. 5), o processo leitor nesses

métodos estava subordinado ao desenvolvimento da habilidade oral e as

atividades sobre o texto eram de aplicação de estruturas, através de respostas

a perguntas objetivas e fechadas. O processamento da informação também é

unilateral, pois parte da interpretação do leitor para o texto e abrange apenas a

opinião do aluno sobre o conteúdo. Esse processamento unidirecional de

leitura é denominado top down ou descendente.

A partir de 1970, surgem os métodos orientados à competência

comunicativa, em que tanto o conhecimento sistêmico quanto a habilidade de

usar a língua passam a ser importantes. Surge, então, o modelo

sociointeracional de leitura, que engloba uma perspectiva multidirecional de

informações. Nele, há uma interação entre os três elementos referentes ao

processo de leitura: texto, leitor e autor. De acordo com a relação estabelecida

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 45

Page 47: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

no texto, a leitura é focada na relação entre leitor-texto ou entre leitor-autor,

mediada sempre pelo texto. Essa relação é primordial para o desenvolvimento

do processo leitor, pois há uma negociação dos significados (cf. Kleiman,

2009). Nesse modelo, a leitura aparece como um ato comunicativo. A partir de

então, os gêneros textuais voltam a ser utilizados no processo de ensino e

aprendizagem de LE.

Para Denyer (1999, p. 5-6), ainda que nos métodos comunicativos

os textos retornem a uma posição de destaque, eles são utilizados somente

como pretextos em atividades cujo objetivo é promover a reação oral. O texto e

a leitura são apenas promotores de situações que permitem a comunicação.

Com isso, o gênero literário se insere nesses métodos como um recurso que

terá a mesma utilidade que qualquer outro gênero textual: fomentar a

comunicação. Dessa forma, subutiliza-se o TL, transformando-o em mais um

recurso para a prática da produção oral, escrita e dos aspectos gramaticais. Os

livros didáticos orientados à competência comunicativa mantêm muitas

atividades de compreensão leitora de nível ascendente ou descendente e,

dificilmente, apresentam atividades que enfocam o modelo sociointeracional de

leitura. Inclusive, quando há atividades com o TL, elas raramente analisam as

particularidades do gênero e os seus aspectos estilísticos.

No final do século XX, tendo como base a Análise do Discurso de

base enunciativa, aparece outro modelo de processamento multidirecional de

leitura: o enunciativo. Esse modelo considera a função do papel social dos

gêneros discursivos e acrescenta questões relevantes para a leitura, tais como:

a (re)construção de sentidos; os efeitos dos recursos das manifestações de

polifonia e a inserção sócio-histórica dos textos, dos discursos e dos sujeitos

(cf. Vergnano, 2010).

Na leitura enunciativa, o leitor reconstrói os sentidos do texto, indo

além de uma leitura mecânica, de decodificação, sem nenhuma reconstrução

dos laços do texto com o seu contexto. A responsabilidade pela comunicação,

compreensão e construção dos sentidos do texto cabe ao leitor, em um

determinado contexto sócio-histórico, de modo que o texto não é visto como

46 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 48: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

um produto final, mas como algo a ser constantemente reconstruído (cf.

Maingueneau, 1996). Desse modo, um texto nunca fica circunscrito a uma

única época, ou momento histórico, pois o ato da leitura acarreta novos

contratos comunicativos8 que não correspondem ao de seu momento e lugar

de produção. Há, portanto, segundo Maingueneau (1996, p. 33), uma

descontextualização do texto.

Recordemos que o contrato comunicativo do gênero literário tem

como característica principal estabelecer novas relações com o mundo, pois a

literatura cria realidades que, algumas vezes, se diferenciam do que

costumamos chamar de real. Assim, a condição sine qua non para instituir o

contrato comunicativo desse gênero é a aceitação por parte do leitor e do autor

de uma regra comum aos contratos dos gêneros literários, segundo o qual

tanto o leitor como o autor/narrador devem ser cúmplices na veracidade dos

fatos narrados.

Essas características do gênero literário fazem com que o modelo

de leitura enunciativa, em nossa opinião, seja o mais condizente para o

trabalho com o gênero literário nas aulas de LE. Uma vez que o TL é produto

de um ato comunicativo e sua leitura ocorre através de uma perspectiva

multidirecional de informação, nada mais lógico que o modelo de leitura

adotado siga a mesma perspectiva. Através desse modelo, o leitor pode

abarcar o valor plurissignificativo das palavras; preencher os espaços vazios do

texto, unir as ideias que existem no texto lido com as existentes nos demais

textos, estabelecendo as relações intertextuais feitas pelo autor e, assim,

construir o significado do texto. Nesse modelo, a leitura do TL é o resultado da

interação entre os sujeitos envolvidos no processo com a negociação e a

reconstrução de sentidos, permeada pela intertextualidade. Contudo, cabe

ressaltar que as atividades de leitura do TL que englobem esse modelo ainda

são raras nos livros didáticos de LE.

De maneira resumida, observamos que, na história do ensino e

aprendizagem de LE, o texto literário esteve presente ou ausente dos livros

didáticos. Porém, a sua presença não é garantia da existência de atividades

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 47

Page 49: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

que desenvolvam a habilidade leitora. Inclusive porque as atividades presentes

nos livros didáticos, em sua maioria, concentram-se no processo unidirecional

de informações ou são pretextos para o desenvolvimento das habilidades e

competências linguísticas diferentes da leitora. Atividades com a perspectiva

multidirecional de leitura raramente são apresentadas nos livros didáticos.

Como as atividades de compreensão leitora elaboradas pelos professores

seguem os modelos vigentes nos livros didáticos, raramente eles elaboram

atividades com base nos modelos sociointeracional ou enunciativo de leitura.

Por isso, nas aulas de LE, ressaltamos a necessidade de focar no

professor a conscientização pelo uso do TL. Ele é quem pode propor atividades

de leitura sob a perspectiva multidirecional de informação - diferentes das

existentes nos livros didáticos -, priorizando a leitura enunciativa e as marcas

linguísticas e estilísticas que diferenciam o gênero literário dos outros gêneros

textuais.

O tratamento didático do texto literário

Ao longo de nosso trabalho, enfatizamos que devemos propor

aos nossos alunos atividades que reconstruam a interação entre o gênero do

texto e o conhecimento do mundo do autor e do leitor. Isso implica elaborar

atividades que ajudem o aluno em seus ensaios preditivos, antecipatórios,

inferenciais e interpretativos. Essa deve ser a base das atividades propostas

pelos professores para o gênero literário. Assim, o TL propicia o

desenvolvimento das marcas linguísticas e estilísticas próprias de seu

gênero.

Apresentamos algumas considerações propostas que

utilizamos nas aulas com esse propósito. Objetivamos com elas ressaltar

que ao escolher um TL, o professor deve estar consciente da existência de

uma razão para utilizar este texto e não outro. Lembremos que nas

atividades com o gênero literário – como nas propostas com qualquer outro

gênero-, o professor não pode ignorar a existência de marcas específicas do

48 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 50: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

gênero textual, uma vez que essas são fundamentais para a construção do

significado do TL.

Com as considerações propostas apresentadas, desejamos

didatizar a literatura, ou seja, conceber o TL nas aulas de LE como recurso

para o ensino e como ferramenta na formação de leitores. Assim, objetivamos

conscientizar o professor ou futuro professor de LE que o TL também é um

gênero textual a ser considerado ao elaborar atividades com textos autênticos

e que, ao escolhê-lo, deve propor atividades que o caracterizem como TL e

também que o diferencie de outros gêneros. Assim, propomos uma leitura

―desescolarizada‖ do TL, ou seja, atividades que não formulem exercícios

gramaticais, ditado, de conjugação, nem qualquer outro tipo de exercício que

―subutilize‖ o TL. Ao destacar as particularidades do gênero literário, as

propostas sugeridas buscam, além de desenvolver a competência leitora,

desenvolver também a competência literária do aluno.

Cabe ressaltar que o professor antes de formular qualquer

atividade, deve conhecer as reais possibilidades dos alunos lerem o texto

proposto e realizar as tarefas. Ao preparar uma atividade com o TL, o professor

deve se ater a determinadas questões para não propor um trabalho que o

grupo não possa realizar: a) que elementos culturais existentes no texto o

aluno domina. O saber enciclopédico sobre uma cultura estrangeira, algumas

vezes, não é suficiente para o aluno perceber o texto como literário; b) propor

textos e atividades de acordo com a competência leitora do aluno, ou seja,

procurar saber qual é o mínimo exigido de compreensão narrativa e quais são

os elementos culturais que poderão ser um obstáculo para a construção do

significado do texto.

Contudo, mesmo depois de verificar as reais possibilidades de os

alunos lerem o texto, algumas dúvidas surgem nos professores com relação ao

quando, o quê e como elaborar atividades com o TL para o seu grupo. As mais

frequentes são: a) que tipo de texto selecionar; se deve ser um fragmento ou

um texto integral; b) se é melhor um texto de épocas distintas ou uma

homogeneidade temporal; c) em que momento apresentá-lo: no início ou no

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 49

Page 51: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

final do período; d) como abordá-los e com que metodologia. Sabemos que não

temos as respostas certas para essas dúvidas, mas, ao longo de nossas

pesquisas, formulamos algumas que podem ajudar aos professores de LE.

Nos níveis iniciais, devem-se escolher textos pequenos: contos,

fábulas, pequenas obras teatrais. Geralmente, como os níveis iniciais de LE

trabalham a descrição, utilizamos textos descritivos cujo conteúdo linguístico

abarque, em sua maioria, os tempos do presente e do futuro. As obras teatrais

são bons exemplos de TL que utilizamos nesse nível por utilizarem os diálogos

quase sempre no tempo presente. No intermediário, o professor pode trabalhar

com contos maiores, os fragmentos de romances ou, inclusive, com uma

pequena obra em sua totalidade. Nesse nível, prevalece a narração, por isso,

utilizamos os textos narrativos: novelas, contos, diários. Optamos por escolher,

nesse nível, textos que utilizem os tempos verbais do passado.

No nível avançado as possibilidades são maiores, pois o aluno já

domina a LE. A escolha, então, recai entre uma obra completa ou contos

maiores. Nesse nível, a argumentação é o foco. Assim, optamos por escolher

um TL que trate de um tema polêmico e sugerimos a leitura de um texto de

outro gênero textual (mas do mesmo assunto) para elaborarmos atividades que

fomentem a argumentação.

Desse modo, a escolha do TL a ser utilizado na sala de aula de

LE está de acordo com a metodologia empregada no curso. Cabe ressaltar

que, em todos os níveis, optamos pela escolha de textos originais e não por

obras adaptadas para o ensino de LE. Acreditamos que o professor, ao

escolher textos com uma linguagem adaptada aos níveis de ensino de LE,

impossibilita o aluno de usar as estratégias de inferência (entre outras) para

negociar o significado das palavras desconhecidas. Recordemos que essa

opção não é dada ao leitor nativo quando da leitura de qualquer texto, então

por que dá-la ao aluno na LE aprendida? Se o TL escolhido possui palavras

que não são de uso dos alunos e cujos significados não podem ser inferidos,

deve-se optar por outro.

50 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 52: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

No nível inicial, é aconselhável que os textos pertençam a uma

mesma época para que o aluno se habitue à leitura desse gênero textual, mas,

nos demais níveis, essa preocupação já não é necessária. Em todas as

atividades elaboradas é necessário que os alunos leiam e compreendam a

ideia global do texto, pois assim são capazes de ir à etapa seguinte: elaborar

uma leitura mais detalhada do TL. O dicionário pode e deve ser utilizado (mas

antes o professor deve ensinar ao aluno como fazê-lo). Nas aulas com o TL, a

metodologia de ensino deve sempre adequar-se a praticada pelo professor

durante as aulas com outros gêneros textuais, para que os exercícios com o

texto literário não se diferenciam dos outros pela metodologia utilizada. Desse

modo, verifica-se que o gênero literário pode e deve estar presente no

processo de ensino e aprendizagem de LE desde o início, bastando para tal

que os alunos estejam alfabetizados na língua meta (esse mesmo princípio

ocorre no ensino de língua materna).

Uma vez analisadas essas questões e selecionado o texto, o

professor deve adotar o modelo de leitura enunciativa. Sua proposta deve

abranger as três etapas da leitura: a pré-leitura, a leitura propriamente dita e a

pós-leitura. A pré-leitura é a etapa na qual se trabalha com o conhecimento

prévio do aluno sobre o tema do texto. É a etapa de observação global do

texto, de antecipação, de deciframento. Tem como objetivos: a) adiantar o

conteúdo do texto através do título, do gênero etc.; b) criar condições que

favoreçam a recepção do texto através dos elementos facilitadores da leitura:

os ritos sociais, a época e as condições históricas que estão presentes na

narrativa. Se o TL a ser lido for um romance, nessa etapa deve-se também

fazer uma exploração da situação inicial da obra, pois tal prática possibilita

determinar o quadro da narrativa, a fim de permitir a formulação de hipóteses e

despertar no aluno o desejo de ler o texto.

A segunda etapa é a leitura propriamente dita. Nessa etapa se

relacionam os conhecimentos prévios do aluno às propostas de atividades que

trabalham as competências leitora e literária. Nessa etapa, as propostas

formuladas não devem abranger perguntas de decodificação e tampouco de

gramática, para que o TL não seja subutilizado. Por último, a etapa da pós-

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 51

Page 53: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

leitura que tem como objetivo incitar o leitor a reagir sobre o texto lido. Nessa

etapa, o aluno relaciona o conhecimento novo adquirido, após a leitura do

texto, com a sua realidade sociocultural ou sua experiência de vida. As

propostas para essa etapa podem ser orais ou escritas. Algumas sugestões de

atividades para essa etapa seriam: a) pedir ao aluno para inventar

consequências para as ações dos personagens, prolongar a história, mudar o

final ou parte do texto; 2) melhorar a percepção do gênero do romance lido,

fazendo o aluno refletir sobre as suas características específicas; 3) introduzir a

experiência do aluno e sua subjetividade no texto lido; 4) favorecer uma

aproximação com a leitura literária na língua materna do aluno, de maneira a

fazê-lo refletir sobre a experiência da leitura.

Para iniciar a inserção do gênero literário na sala aula, utilizamos

dois textos diferentes, um literário e outro não literário. Essa é uma experiência

geralmente proveitosa e acreditamos que o professor possa fazê-la com seu

grupo. Ele deve utilizar dois textos que tratam de um mesmo assunto, mas de

gêneros textuais diferentes, a fim de os alunos observarem as particularidades

de cada gênero e, especificamente, as do gênero literário. Para a atividade, o

professor pode escolher pequenos fragmentos de TL: fábulas, poesias,

microconto ou fragmento de romances. As perguntas devem abranger as

particularidades do TL referente à forma, aos personagens, às figuras de

linguagem e a própria linguagem. A atividade tem como objetivo principal

conscientizar o aluno sobre a diferença entre a linguagem literária e a

linguagem não literária, para mostrar que é possível apresentar um mesmo

assunto de várias maneiras, através de gêneros textuais diferentes,

dependendo do contrato que se estabelece entre o enunciador e o

coenunciador e o objetivo que o texto possui.

Os dois textos ao tratar de um mesmo tema permitem ao

professor elaborar perguntas sobre a organização textual e a linguagem

utilizada nos textos, levando o aluno a perceber as diferenças existentes entre

os objetivos comunicativos de cada um e entre o uso conotativo e o uso

denotativo das palavras. Com essa proposta, o professor trabalha a

plurissignificação das palavras, característica inerente ao gênero literário. A

52 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 54: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

proposta também aproveita a bagagem cultural que o aluno já possui em sua

língua materna, pois ela estabelece as principais diferenças entre os dois

textos. Ademais, exercita a competência literária do aluno ao inserir perguntas

que consideram as especificidades do gênero literário.

No nível intermediário ou avançado, as propostas que utilizamos

já abarcam TL maiores: contos ou romances completos. As atividades se

organizam ao redor de uma série de perguntas ou esquemas que visam

descobrir se o aluno realmente compreendeu a mensagem da obra através dos

personagens, dos lugares, dos diálogos, dos modos de narração e do léxico. O

objetivo da atividade é levar os alunos, após uma leitura detalhada, a interagir

com o texto para buscar informações sobre: a) os personagens: suas relações

com os outros; as relações dos outros com ele; suas características; seu

retrato; os detalhes de suas características; as palavras que podem ser

associadas a ele; a intenção dele e dos outros personagens com ele; b) sobre

a sucessão dos fatos (a sequência lógica da obra): a diferença entre os

acontecimentos positivos (agradáveis) e os negativos (desagradáveis), a ordem

dos fatos ocorridos segundo a sequência cronológica dos acontecimentos; c)

os diálogos dos personagens: verificar se são de forma direta ou indireta; se

estão relacionados com o gênero do texto ou se há outra relação; d) a

compreensão das etapas principais da narrativa: de que maneira o

personagem (ou os personagens) passou (passaram) da situação inicial a final,

podendo apoiar-se no seguinte esquema: situação inicial → complicação →

consequência → resolução → desfecho.

É possível também fazer um quadro de referências com os

principais elementos do texto lido, tais como: os personagens; o lugar da ação;

a época de referência; o estado inicial e final dos personagens; os

acontecimentos e a posição do narrador.

É possível também construir um quadro para cada personagem

do TL que poderia conter:

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 53

Page 55: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

DADOS DE BASE DE IDENTIDADE: nome, idade, profissão, status social,

lugar onde vive.

RELAÇÃO COM OS OUTROS PERSONAGENS: estabelecer os diferentes

laços entre os outros personagens e dizer se é um personagem principal ou

secundário.

APARÊNCIA: modos de vestir; gestos; traços psicológicos.

CARACTERÍSTICA: estabelecidos pelo autor ou inferidos pelo leitor.

O QUE SE PENSA SOBRE O PERSONAGEM: palavras ou pensamentos

dos outros personagens sobre o personagem analisado.

O QUÉ O PERSONAGEM ANALISADO PENSA SOBRE OS OUTROS: sua

opinião sobre os outros personagens.

EVOLUÇÃO DA PERCEPÇÃO DO PERSONAGEM: ao longo do texto, os

diversos elementos que modificam a interpretação do leitor sobre um

determinado personagem.

Essas atividades, ao mesmo tempo em que abrangem as

especificidades do TL, permitem ao professor trabalhar com os conteúdos

fixados para cada nível de aprendizagem da LE. Desse modo, o professor não

utiliza o TL apenas para ―um momento de cultura‖ ou para fixar estruturas

gramaticais ou lexicais. O TL, como produto de um ato comunicativo, permite

como os demais gêneros comumente utilizados em sala de aula, atividades

que desenvolvem as habilidades linguísticas do aprendiz: falar, ler, ouvir e

escrever.

Considerações finais

Observamos que as atividades com o uso do TL devem ser

estimuladas nas aulas de língua estrangeira, não só por se tratar de um gênero

a mais a ser incorporado pelo professor, mas também por expor o aluno aos

diversos usos sociais da língua meta. É também por meio do literário que as

muitas peculiaridades linguístico-comunicativas da LE ganham lugar de

concretização diante dos olhos do aprendiz.

54 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 56: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Contudo, para que esse uso se concretize é necessário que as

crenças dos professores não sejam negativas com relação ao uso do TL em

sala de aula. Por tal motivo, atividades com o TL devem estar presentes desde

a sua formação. Se ainda nessa fase, o futuro professor incorpora o gênero

como mais um material autêntico que o ajuda a desenvolver as habilidades

linguístico-comunicativos, o assimilará como um material de uso mais

recorrente em suas aulas. Para tanto, é necessário o tratamento didático do

gênero nas aulas de LE; ou seja, utilizar o TL nas aulas como recurso para o

ensino e ferramenta na formação de leitores, de maneira a estimular o

desenvolvimento das competências leitora e literária do aprendiz. Desse modo,

o uso do TL é capaz de propiciar o desenvolvimento das marcas linguísticas e

estilísticas próprias de seu gênero e que são fundamentais para a construção

do significado do TL.

Com esse objetivo, sugerimos algumas atividades. Elas são

apenas ideias para que os professores de LE possam criar as suas próprias.

Todas buscam fugir das questões simples que nos ensinam a utilizar o gênero

literário somente para as atividades culturais, gramaticais e lexicais. Elas têm

como objetivo mostrar que o gênero literário é uma ferramenta eficaz para o

ensino de LE e para a formação de leitores.

Assim, não há motivo para excluir esse gênero da sala de aula de

LE. É possível elaborar atividades com o TL sob uma visão enunciativa de

leitura, e fazer o aluno interagir com o texto, renegociando o seu significado

para construir e reconstruir, continuamente, o texto lido. Sob essa perspectiva,

o trabalho com a leitura na sala de aula de LE desenvolve tanto a competência

leitora quanto a literária do aprendiz. E, ao incluir o texto literário nas suas

aulas, os professores darão um passo a mais para criar leitores críticos e

autônomos.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 55

Page 57: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor Adjunto da

Universidade Veiga de Almeida e avaliadora institucional e de cursos pelo Instituto Nacional de

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira-INEP. É membro do GT ANPOLL "Vertentes do

Insólito". Atua no Mestrado em Letras da UERJ, no Programa de Teoria da Literatura e

Literatura Comparada.

2 Ao longo do processo de ensino\aprendizagem de LE, os textos literários ocuparam diversos

papéis: o uso total como matéria primordial para o ensino da língua meta nos métodos

tradicionais; o esquecimento total nos métodos estructuro-globais e a volta do texto literário

como um dos gêneros utilizados nos métodos comunicativos (geralmente inexistente ou sem

proposta de atividades).

3 Pesquisa feita exclusivamente com professores de Espanhol como língua estrangeira (E\LE)

e a ser publicada em SANTOS, Ana Cristina dos. ―O professor de LE e o uso do gênero literário

em sala de aula‖. In: ARAÚJO, Antonia Dilamar; Araújo, Julio Cesar. Os gêneros

textuais/discursivos nas múltiplas esferas da atividade humana: Anais do VII Simpósio

Internacional de Estudos de Gêneros Textuais. Fortaleza: Edições UFC. (no prelo).

4 Tradução nossa.

5 Tradução nossa.

6 Tradução nossa.

7 O conceito deve ser entendido como uma forma de distinguir a capacidade de um indivíduo

para a leitura literária, que lhe permite reconhecer a especificidade de um texto literário,

respeitando o modo e o gênero literário a que pertence o contexto que o caracteriza e a

tradição na qual se inscreve. (Cf. CULLER, Jonathan. In: CEIA, Carlos. Dicionário de termos

literários. Disponível em

<http://www.edtl.com.pt/?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=675&Itemid=2>. Acesso

em: 03 set 2006).

8 Utilizamos a expressão contrato comunicativo conforme Mangueneau (2000) para designar

certo número de regras e de princípios que tornam possíveis uma enunciação. Cabe destacar

que essas mudam conforme o contexto socio-histórico dos enunciadores e o gênero a que

pertence o discurso.

56 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 58: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

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58 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 60: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

UMA EXPERIÊNCIA COM O GÊNERO HISTÓRIA EM QUADRINHOS EM

AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

AN EXPERIENCE WITH THE COMICS GENRE IN THE FOREIGN

LANGUAGE CLASSROOM

Carolina Gandra de Carvalho1

Elíria Quaresma Fugazza2

Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold3

Resumo O gênero histórias em quadrinhos se caracteriza pelas múltiplas mensagens possíveis com base na interação do visual com o verbal, por conter elementos gráficos que reproduzem a fala e o pensamento e por conjugar a representação dos personagens – bem como suas expressões faciais e corporais – com a ação da narrativa. Essa, por sua vez, progride não somente durante a atuação do personagem, mas também na passagem de um quadrinho a outro, sugerindo um deslocamento no eixo temporal e/ou espacial. Outra especificidade do gênero em questão é a presença da carga ideológica que pode direcionar o leitor a atribuir diversos sentidos ao texto, e que pode proporcionar seu aprimoramento cultural. Para verificarmos como se dá a compreensão deste gênero por parte dos aprendizes de LE aplicamos, em turmas do projeto CLAC (Cursos de Línguas Abertos à Comunidade) do curso de espanhol, uma atividade relacionada a uma história em quadrinhos em que pudemos comparar as leituras realizadas com e sem orientação. Essa tarefa consistiu em apresentar ao grupo as características do gênero, contextualizar a história, identificar os personagens e explorar a relação entre os dois códigos (verbal e não verbal). Palavras-chave: história em quadrinhos; língua estrangeira; letramento.

Abstract Comics genre is characterized by its multiple possible messages based on the interaction between the visual and the verbal, the graphic elements that reproduce the characters‘ speech and thoughts, and the conjugation of the characters‘ representation – as well as their facial and bodily expressions – with the narrative action. The latter evolves not only during the character‘s action, but also during the passage from one panel to another, suggesting a movement in the temporal and/or spatial axis. Another specificity of the comics genre is the presence of the ideological charge that may lead the reader to convey diverse meanings to the text, which can foster his/her cultural enhancement. In order to verify how the learners of foreign languages understand this genre, we have assigned Spanish language students of the Language Courses Open to the Community (CLAC) an activity related to a comic strip. During the process, we were able to compare the readings done with and without orientation, which consisted of introducing the students to the characteristics of the genre, contextualizing the story, identifying the characters, and exploring the relation between the two codes (verbal and non-verbal). Keywords: comics; foreign language; literacy.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 59

Page 61: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Introdução

O interesse pela abordagem do gênero história em quadrinhos

surgiu com base no seu crescente uso no contexto educacional. Há algum

tempo, essa realidade era bastante diferente, tendo em vista a resistência que

as instituições e os órgãos fomentadores de cultura tinham em relação às

histórias em quadrinhos (doravante HQs), que acabavam sendo marginalizadas

e preteridas em detrimento de outros gêneros, considerados mais canônicos e

apropriados para o ensino formal. Sob essa perspectiva, atribuía-se mais

relevância aos gêneros literários, tais como poemas, contos e romances.

Nesse sentido, é importante traçarmos um breve percurso histórico dos

quadrinhos, a fim de que se compreenda sua ascensão e valorização ao longo

dos anos, além do seu impacto na sociedade.

Há registros de que, já no século XVII, ilustradores de histórias

infantis e autores de folhetins utilizavam imagens gráficas em suas produções

(VERGUEIRO, 2010). Aliava-se, então, a palavra impressa a elementos

pictóricos com os mais diversos fins. No século XVIII, a imprensa humorística

inglesa se utilizava dos mesmos recursos. No século seguinte, houve o

florescimento definitivo do gênero nos Estados Unidos, mais especificamente,

nos jornais dominicais, agora com teor predominantemente cômico e voltado

para os imigrantes. No século XX, no período do pós-guerra, por motivos

políticos, disseminou-se a ideia de que os quadrinhos eram uma má influência

para os jovens. Nas últimas décadas do século XX, porém, o desenvolvimento

das ciências da comunicação e dos estudos culturais alavancou os meios de

comunicação e, consequentemente, os quadrinhos, que ganharam novo status

e mais relevância nos diversos âmbitos sociais. Dessa maneira, foi mais fácil a

aproximação de tal gênero às práticas pedagógicas.

No Brasil, essa difusão foi acentuada pela inclusão das HQs em

provas de vestibular, nos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e nas

obras aprovadas para a educação básica pelo Programa Nacional do Livro

Didático. Verifica-se também a distribuição de livros paradidáticos que fazem

uso deste gênero, de acordo com o Programa Nacional Biblioteca na Escola.

60 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

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Atualmente, de acordo com Ramos (2010, p. 13), ―vê-se uma outra relação

entre quadrinhos e educação, bem mais harmoniosa‖.

Percebemos, desse modo, a importância de se trabalhar as

especificidades do gênero HQs em aulas de língua, tanto materna quanto

estrangeira, com o objetivo de contribuir para o letramento de nossos

aprendizes.

Tendo em vista o caráter superficial de muitas atividades

promovidas a partir da leitura das HQs, este trabalho busca uma nova

perspectiva de utilização deste gênero em sala de aula de língua estrangeira. A

partir de uma posição mais norteadora do que transmissora, o professor pode

contemplar, juntamente com os aprendizes, características das HQs que

muitas vezes passam despercebidas por conta de um enfoque estritamente

linguístico. Nesse sentido, nos parece especialmente importante que sejam

abordadas outras formas de trabalho que explorem as histórias de maneira

mais aprofundada e completa, e que considerem todos os elementos presentes

na sua estrutura como importantes mecanismos de construção do sentido

global da narrativa.

Focado no ensino da língua, muitas vezes, o professor

desconsidera o potencial – linguístico, social, moral, político e textual – das

HQs e as relega a um mero papel de pré-texto, servindo apenas para ressaltar

ou lançar um tópico linguístico, como se a ocorrência de uma narrativa do

gênero em questão legitimasse e configurasse de maneira concreta o uso de

um ou outro elemento. Entretanto, é importante pensarmos que nossos

aprendizes de língua estrangeira são, antes de tudo, leitores de HQs em sua

língua materna e, nesse contexto, são indivíduos capazes não somente de ler

a história, mas também de compreender a mensagem, o contexto político e

histórico, o fator humorístico, o tempo e o espaço em que ocorre a narrativa. O

mesmo deve ser feito com as histórias em língua estrangeira, porém a falta de

domínio dos elementos linguísticos da L2, considerando-se que o aprendiz

ainda a está adquirindo, pode inviabilizar a proposta. Além disso, vale ressaltar

que aquele ainda está em processo de inserção na discursividade da língua

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 61

Page 63: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

estrangeira (SERRANI, 1997), e é nesse ponto que a presença do professor

enquanto mediador se faz crucial, propondo tarefas de aproximação aos

gêneros discursivos. Nessa perspectiva, o professor estará fornecendo ao

aprendiz a orientação e as ferramentas necessárias para a maior compreensão

possível do texto, enfatizando a percepção e compreensão de todos os

elementos característicos do gênero e como todos têm função importante na

construção do sentido.

O presente trabalho teve, pois, como objetivo verificar como se dá

a compreensão de HQs em língua estrangeira por parte dos aprendizes. Além

disso, pretendemos verificar quais tipos de informação devem ser providas aos

aprendizes para que se desenvolvam as habilidades de compreensão leitora e

para que se estimule a percepção dos múltiplos sentidos que um vocábulo

pode ter, dependendo do (con)texto em que figure.

Baseamo-nos, portanto, na seguinte pergunta-problema: a

orientação promovida pelo professor, conforme proposta anteriormente, tem,

de fato, relevância no processo de leitura do referido gênero, contribuindo para

uma atribuição de sentidos para os textos trabalhados? A hipótese inicial é de

que os aprendizes da atividade com interação têm maior facilidade na

realização da tarefa.

Em primeiro lugar, devemos pensar nas HQs como textos

narrativos, que, como tal, possuem uma sequência de ações dos personagens,

um espaço e contexto definidos bem como deslocamento no eixo temporal.

Além disso, a interação entre os dois códigos – verbal e não verbal –

juntamente a outras especificidades, faz dele um gênero bastante complexo e

rico. Nesse sentido, nosso trabalho se configura como uma proposta de análise

sobre a relevância da percepção para a compreensão de sentido geral das

histórias oferecidas aos aprendizes por meio de debates que antecedem o

momento da leitura propriamente dita.

Retomando a ideia de utilização das HQs com foco na sintaxe da

língua estrangeira e na aquisição de vocabulário, acreditamos que os

62 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 64: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

elementos que se pretendem explorar não precisam ser esquecidos em

detrimento da nossa proposta, mas sim devem ser complementares,

expandidos e integrados às outras questões pertinentes ao gênero a fim de

que o aprendiz possa mobilizar, durante a leitura, conhecimentos variados que

se coadunem para um maior entendimento, evidenciando também um maior

proveito do material.

Metodologia

Selecionamos duas HQs (uma do Quino e outra do Nik)4 que

foram trabalhadas em turmas de níveis inicial e intermediário do curso de

espanhol do projeto CLAC. O fato de as histórias em questão apresentarem

também a linguagem verbal contribuiu para a escolha das mesmas. Os

aprendizes, portanto, deveriam levar em conta a relação entre os elementos

verbais e não verbais para o desenvolvimento das atividades propostas pelas

monitoras.

Após a leitura das HQs apresentadas, utilizamos as perguntas

propostas pelo exercício do livro didático El Arte de Leer Español, para verificar

como se dá a compreensão do gênero HQs em aulas de língua estrangeira,

uma vez que o código linguístico geralmente constitui um empecilho para a

produção de sentido. Estipulamos, então, que algumas turmas realizariam tal

exercício com a orientação do monitor e outras o realizariam sem orientação

com o intuito de comparar os resultados. A orientação consistiu em apresentar

aos grupos as características do gênero, contextualizar as histórias, identificar

os personagens e explorar a relação entre linguagem verbal e não verbal nas

narrativas trabalhadas. Em um momento posterior, comparamos o rendimento

dos dois grupos (os que fizeram com e os que fizeram sem orientação) a fim de

verificar a validade da nossa hipótese inicial.

Foram coletados os dados fornecidos por 65 alunos: 39

responderam às perguntas propostas para a HQ do Nik e 26 responderam às

perguntas propostas para a HQ do Quino.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 63

Page 65: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Fundamentação teórica

Consideramos que na leitura das HQs, assim como de qualquer

outro gênero discursivo, não existe um sentido dado pelo texto. Na verdade, no

momento da leitura o leitor tem um papel tão importante quanto o autor na

construção de sentido do texto (CORACINI, 2005), pois aciona uma série de

conhecimentos necessários para a atribuição e produção de sentido e interage

com o autor e com as outras vozes presentes no texto.

Nas aulas de línguas, no entanto, ainda é muito comum que o

trabalho com a habilidade da leitura se restrinja a perseguir marcas deixadas

propositadamente pelo autor para que o leitor possa capturar o significado

daquilo que lê. De acordo com Coracini (2005, p. 28), no caso específico das

aulas de língua estrangeira, ―apenas o nível de conhecimento da língua parece

ser necessariamente levado em conta‖. Desse modo, cabe ao professor e ao

aprendiz ―apenas reconhecer o significado que subjaz às formas linguísticas‖

(CORACINI, 2005: p. 30), pois ambos acreditam que há uma ―compreensão

literal‖ ou uma única leitura possível de um texto, como se este fosse isento de

implícitos e de ideologias. Além disso, Coracini afirma que a unanimidade da

interpretação é garantida na aula de língua estrangeira devido ao sentimento

de ignorância que o aprendiz tem em relação à LE.

Considerando os aspectos anteriormente apontados, acreditamos

que o professor deve atuar como mediador no fomento da autonomia do

aprendiz-leitor para que este se aproprie das diversas práticas de leitura e de

escrita que circulam nos variados âmbitos sociais. Assim sendo, a noção de

letramento é fundamental nesse processo. Segundo Rojo (2004), ler na vida e

na cidadania é colocar o texto em relação com outros textos e discursos que

podem ser anteriores a ele, podem estar emaranhados nele ou até mesmo ser

posteriores a ele. De modo semelhante, Tfouni (1994: p. 56) considera que a

capacidade do sujeito de colocar-se como autor do próprio discurso constitui ―a

noção-eixo do conceito de letramento enquanto processo sócio-histórico‖.

64 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 66: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Ao afirmar que é preciso levar em conta a situação sócio-histórica

e cultural do aprendiz, Kleiman (2010) se alinha a esse pensamento. Para isso,

deve-se adotar uma concepção social da língua escrita voltada para as práticas

de escrita e de leitura para que se contextualizem de modo mais produtivo os

objetos de ensino.

A partir dos pressupostos discutidos acima, consideramos que é

essencial a inserção dos sujeitos nas práticas letradas da sociedade e que as

instituições de ensino têm o papel de mediar o processo de autonomia do

aprendiz-leitor levando em conta seu conhecimento de mundo, sua formação

discursiva e sua capacidade crítica.

Análise de dados

Tendo em vista a pergunta-problema proposta, parte dos alunos

foi submetida à atividade aplicada sem instrução para a qual foi utilizada a HQ

do Nik, e outra parte, à atividade que foi realizada com instrução servindo-se

da HQ do Quino. Doravante, utilizaremos a denominação I e II,

respectivamente, para nos referirmos à atividade sem instrução e com

instrução, reproduzidas a seguir.

Neste artigo, contemplaremos somente as respostas dadas às

questões 1, da primeira proposta, e 4, da segunda, pois são as que melhor

refletem o desempenho da compreensão leitora por parte dos aprendizes a

partir da relação entre o verbal e o não verbal.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 65

Page 67: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Fig. 1: História em quadrinhos referente à proposta 1.

1. ¿Por qué está aburrido Gaturro?

2. ¿Qué significa dejar una huella en la vida?

3. ¿Qué tipo de huella intentarías dejar? ¿Qué cosas te gustaría realizar?

Entre as três perguntas propostas pelo exercício, julgamos que a

primeira nos forneceria dados sobre a compreensão dos aprendizes a respeito

da metáfora existente no texto.

66 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 68: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Fig. 2: História em quadrinhos referente à proposta 2.

1. ¿Qué significan las expresiones “desocupación”, “ajuste social”, “orfandad

social”?

2. ¿Qué entiendes por “los espantos que promete el porvenir”?

3. En la viñeta, “hoy” y “presente” son usados como sinónimos. Explica sus

diferencias dando un ejemplo en que no sean sinónimos.

4. ¿Qué situación QUINO está representando en esa viñeta? Relaciónala

con los textos anteriores, y explica dónde está el rasgo de humor en ese

texto que lo hace distinto de los demás.

5. ¿Cómo el médico está tratando su paciente? ¿De manera formal o no?

Explica cuál es la razón de ese tipo de tratamiento en la situación retratada.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 67

Page 69: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Na proposta I, buscávamos averiguar se os informantes seriam

capazes de compreender que o personagem estava chateado (aburrido) pelo

fato de o mar desfazer as pegadas que ele tentava deixar, o que chamaremos

aqui de resposta ―prevista‖. A presença do item lexical huella (pegada) na fala

do personagem poderia ser um empecilho para o entendimento da narrativa,

porém, uma leitura dos elementos não verbais contribuiria para a produção de

sentido do texto. Os aprendizes que, por sua vez, não foram capazes de

estabelecer uma relação entre o referido item lexical e os elementos não

verbais produziram o que denominaremos resposta ―não prevista‖. Os

resultados estão apresentados no gráfico:

Gráfico 1: Respostas obtidas com a proposta 1.

Consideramos, com base no gráfico acima, que o número de

respostas ―não previstas‖ foi elevado devido à ausência de orientação prévia

no momento da realização da atividade.

Na proposta II, referente ao gráfico abaixo, esperávamos que os

aprendizes considerassem os sintomas mencionados na tirinha como

problemas da sociedade contemporânea, o que, a partir de uma reflexão

crítica, lhes permitiria construir um significado. Além disso, os aprendizes

deveriam detectar o traço de humor na história, o qual se verifica no discurso

irônico do médico quando ele aconselha o paciente a ver o presente de modo

mais otimista, pois a perspectiva para o futuro é a de que a conjuntura social

não apresentará melhora.

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

RESPOSTAS

Previstas

Não previstas

68 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 70: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Gráfico 2: Respostas obtidas com a proposta 2.

42%

44%

46%

48%

50%

52%

54%

RESPOSTAS

Previstas

Não previstas

O gráfico acima revela o melhor desempenho da compreensão

leitora por parte dos aprendizes na realização da tarefa proposta, visto que há

um número maior de respostas ―previstas‖, reflexo da orientação previamente

fornecida.

Estabelecendo uma comparação entre ambos os gráficos,

verificamos que, na atividade realizada sem instrução, há uma maior frequência

de respostas consideradas não previstas, enquanto que, na proposta realizada

com instrução, o percentual de respostas previstas é predominante. Desse

modo, percebe-se que a orientação fornecida pelo professor cumpriu seu papel

de mediar o processo de formação e autonomia do aprendiz-leitor, que, a partir

daquela, foi capaz de articular seu conhecimento de mundo às especificidades

do gênero HQs, bem como construir significado para um texto em língua

estrangeira.

Considerações finais

De acordo com os resultados obtidos e expostos, acreditamos

que se comprova a nossa hipótese inicial de que a provisão de instruções

prévias ao momento da leitura de fato viabiliza uma produção de sentido por

parte do aprendiz-leitor, que mobiliza diversos conhecimentos e os integra às

especificidades do gênero. Não queremos, contudo, estabelecer uma única

possibilidade de interpretação, dado que todo texto admite mais de uma leitura,

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 69

Page 71: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

pois assim estaríamos determinando que somente as respostas ditas

―previstas‖ estariam produzindo um sentido para o texto. Cabe dizer que os

critérios para estabelecer as respostas como ―previstas‖ ou ―não previstas‖ não

partem do pressuposto de que a interpretação do professor é a única válida ou

deve ser imposta, mas sim porque elas atendiam às necessidades do que se

pretendia analisar em nossa pesquisa.

Temos consciência, todavia, de que nossa análise se baseia

apenas em dados quantitativos, o que pode restringir a pesquisa. Além disso,

este artigo focalizou somente a relação entre o verbal e o não verbal,

característicos do gênero em questão. Por último, acrescentamos que nossa

pesquisa precisa de uma análise mais aprofundada e abrangente para que os

resultados nos permitam ter uma visão mais ampla da questão do trabalho com

as HQs em aulas de língua estrangeira.

70 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 72: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ.

2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ.

3 Coordenadora da Pós Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

4 As duas histórias foram retiradas, respectivamente, da terceira e da quarta unidades do

volume I da coleção El Arte de Leer Español.

Referências

CORACINI, Maria José. A aula de leitura: um jogo de ilusões. In: _. O jogo

discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira. São Paulo:

Pontes, 2005, p. 27-49.

KLEIMAN, Angela. Trajetórias de acesso ao mundo da escrita: relevância das

práticas não escolares de letramento para o letramento escolar. Perspectiva,

2011. Disponível em: https://journal.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-

795X.2010v28n2p375. Acesso em: 28 out. 2013.

PICANÇO, D.C.de L.; VILLALBA, T. K.B. El Arte de Leer Español – Libro del

alumno – Ensino Médio. Volume I. 2 ed. Curitiba: Base Editorial, 2010.

ROJO, Roxane. Letramento e capacidades de leitura para a cidadania. São

Paulo: SEE: CENP, 2004.

SERRANI, Silvana. Formações discursivas e processos identificatórios na

aquisição de línguas. DELTA, vol. 13, n. 1. São Paulo, fev. 1997. Disponível

em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102445019970001000

04&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 20 de out. 2013.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 71

Page 73: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

TFOUNI, Leda. Perspectivas históricas e a-históricas do letramento. Cadernos

de Estudos Linguísticos, 2012. Disponível em:

http://info03.iel.unicamp.br/revista/index.php/cel/article/viewFile/3029/2509.

Acesso em: 25 out. 2013.

VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, A. et alii. (orgs.)

Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto,

2010, p. 7-29.

72 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 74: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

A TÉCNICA DO ESPELHAMENTO OU A CONSCIÊNCIA DA DISTÂNCIA

ENTRE O PORTUGUÊS DO BRASIL E O ESPANHOL

THE MIRRORING TECHNIQUE OR THE CONSCIOUSNESS OF THE

DISTANCE BETWEEN BRAZILIAN PORTUGUESE AND SPANISH

Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold (UFRJ)1

Carolina Ecard (IC/UFRJ)2

Renata Daniely Rocha de Souza (IC/UFRJ)3

Resumo Autores como Kulikowski e González (1999) propõem que o português do Brasil (doravante PB) e o espanhol são línguas moderadamente próximas. Segundo tais autoras, estudantes de espanhol como língua estrangeira desenvolvem certas estratégias, como o uso de ―empréstimos‖, visto que esta transferência estaria legitimada pela proximidade entre o português e o espanhol. Considerando o exposto, neste trabalho, verificaremos se aprendizes brasileiros de espanhol como língua estrangeira, em nível inicial, reconheceriam (ou não) determinados ―erros‖ de sua língua materna em produções textuais de outros aprendizes. Caso não reconheçam, isso poderia supor que estes usuários aceitariam também tais ―erros‖ em suas produções. Para isso, foi aplicado um teste de reescrita a aprendizes com um ano de estudo em espanhol. Nossa hipótese é, portanto, a de que esses aprendizes, em nível inicial, reconhecem mais as interferências de nível sintático. Palavras-chave: transferência; empréstimo; língua estrangeira.

Abstract Authors like Kulikowski and González (1999) suggest that Brazilian Portuguese (henceforth BP) and Spanish are slightly similar languages. According to the authors, Spanish as foreign language students, develop strategies such as the use of ―lexical borrowings‖, once the transfer would be legitimized by the proximity between Portuguese and Spanish languages. Considering the above, in this paper, we set out to verify if Brazilian beginners of Spanish as a foreign language would recognize mistakes caused by the interference of their mother tongue in other learners‘ productions. If they do not recognize them, it might be supposed that they also accept such mistakes in their own productions. For this, a rewriting test was applied to students with a year of studies. Our initial hypothesis is that beginners recognize the interferences at the syntactic level more easily.

Keywords: transfer; lexical borrowings; foreign language.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 73

Page 75: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Introdução

Muitos estudos se dedicam a investigar a relação entre línguas

próximas como o PB e o espanhol. De acordo com González e Celada

(2000), é inegável que o PB e o espanhol possuem uma proximidade

moderada, o que pode repercutir no desenvolvimento da competência

linguística do aprendiz de espanhol como língua estrangeira. Se, por um lado,

tal proximidade pode se apresentar como um benefício nos estágios iniciais

de aprendizagem, por outro, pode ser um fator que dificulta a aprendizagem

nos níveis mais avançados (ALVAREZ, 2002). Segundo Lima (2004), a

proximidade entre as referidas línguas pode desempenhar uma função

facilitadora da aprendizagem de espanhol, língua estrangeira, na medida em

que viabiliza o uso de ―empréstimos‖.

Segundo Mclaughin (1987), o empréstimo das características

compartilhadas é a manifestação de um processo psicológico mais geral que

se sustenta a partir dos conhecimentos já existentes, ou seja, a língua

materna do aprendiz. Corder (1967) trata esses empréstimos como

transferência ou interseção. De acordo com o autor, haveria uma relação

clara ―entre a velocidade da aquisição e a chamada distância linguística‖

(Corder 1967: p. 88), o que indica que quanto mais parecidas a língua

materna e a língua estrangeira, maior poderá ser o acesso à língua materna

para auxiliar na aquisição da língua estrangeira. Assim, entre línguas

próximas, o processo de aquisição pode se dar de modo mais acelerado.

Autores como Mclaughin (op. cit), entendem a transferência

como uma estratégia de comunicação que se emprega quando os

conhecimentos de língua estrangeira não são suficientes; em outras palavras,

é um processo psicolinguístico que serve de apoio para facilitar a aquisição

da língua estrangeira. A transferência se subdivide em positiva e negativa,

sendo esta última também chamada de interferência. É considerada

transferência positiva quando a influência exercida pela língua materna na

língua estrangeira é de caráter benéfico; já quando a influência exercida pela

língua materna na língua estrangeira leva o aprendiz a cometer ―erros‖, que

74 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 76: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

podem gerar fossilizações4 de estruturas, é considerada, então, transferência

negativa ou interferência.

De acordo com as considerações anteriores, as relações entre o

par de línguas em questão pode se caracterizar (i) por meio de uma

proximidade superficial no plano do significante; (ii) através de uma distância

lexical, que envolve contraste em pontos específicos.

A combinação entre as duas características apresentadas

promove, segundo Cintrão (2000, p. 194), ―um descompasso importante entre

a distância percebida e a distância real. Isso favorece que o aprendiz se

arrisque mais a valer-se de empréstimos da língua materna para produzir

enunciados na língua estrangeira.‖

Nos estágios iniciais, os aprendizes de espanhol falantes de PB

parecem passar por um processo de reorganização dos elementos presentes

na língua materna para os elementos presentes na língua estrangeira. A

proximidade entre o PB e o espanhol pode auxiliá-los no contato inicial entre

estas duas línguas, mas, no desenvolver do aprendizado da língua

estrangeira, tal proximidade pode causar acomodação entre os aprendizes,

gerando, então, uma interpretação recorrente entre os alunos de espanhol

falantes de PB: 'é tudo parecido mesmo'.

Analisar mais cuidadosamente o trabalho feito em sala de aula,

desenvolvendo pesquisas que averiguem quais as dificuldades dos

aprendizes podem auxiliar na tarefa de ser professor de uma língua

estrangeira tão próxima do PB. Desse modo, neste trabalho, analisaremos

testes de reescritura dos alunos de nível inicial do curso livre de espanhol,

para alcançarmos um panorama do perfil desses alunos e dos elementos da

língua que estariam disponíveis para eles.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 75

Page 77: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Sobre o par de línguas português – espanhol

Um estudo feito por González e Celada (2000: p. 37) sobre o

par linguístico português-espanhol aponta para o fato de que os estudos

linguísticos de espanhol começaram tardiamente no cenário brasileiro devido

a uma cultura de proximidade com o português: ―tardamos mucho por aquí

para dejar de ver las lenguas, sobre todo las extranjeras, como meros

instrumentos de acceso a otros campos, más nobles, y para permitir que

éstas constituyeran un objeto de estudio y reflexión en y por sí mismas.‖5

De acordo com as autoras, a construção do saber espanhol

como língua estrangeira, no Brasil, necessita sair do lugar comum e,

principalmente, do processo de estagnação em relação às políticas

desenvolvidas para o ensino de espanhol língua estrangeira no Brasil. O

ensino de espanhol deve ir além, contando com a colaboração do professor

que atua em sala de aula. A relação ensino-aprendizagem de espanhol não é

uma questão, apenas, de línguas tipologicamente próximas.

Assumindo postura semelhante, o trabalho de Kulikowski e

González (1999) afirma serem português do Brasil e espanhol línguas

moderadamente próximas e, ao aprender espanhol, estudantes dispõem de

estratégias de criação de cenários, ou seja, no primeiro momento da

aquisição, o espanhol é uma língua fácil, pois tem elementos linguísticos

muito próximos ao português, o que demanda do aprendiz pouco esforço e

dedicação para aprender; não obstante, tal cenário seria desfeito, pois, ao

longo do processo, o aprendiz se depara com estruturas e situações

discursivas diferentes das utilizadas em língua materna, não podendo, assim,

recorrer à esta.

Almeida Filho (2001) afirma que o aluno brasileiro de espanhol

é um falso aprendiz de espanhol, uma vez que já conta com conhecimentos

da língua materna em favor do aprendizado da língua estrangeira. O

espanhol e o português compartilham traços lexicais, sintáticos, entre outros.

Esses traços podem ser explorados nas aulas de espanhol língua

76 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 78: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

estrangeira, mas a aula não deve se limitar a tais dados. No entanto, tal

tarefa não é fácil, pois, no Brasil, foram legitimadas algumas metodologias

que restringiram o ensino de espanhol a uma mera decodificação de itens,

ocupando-se, assim, de uma análise mais superficial das línguas. Tal

procedimento parte dos aspectos compartilhados por tais línguas e, depois,

focaliza as diferenças lexicais . (González e Celada 2000, p. 39).

No senso comum, entendemos a produção em espanhol, como

uma extensão da produção em português, uma vez que as duas línguas

compartilham semelhanças ―como toda la gente sabe‖ (González e Celada

2000, p. 37). O fato de serem próximas pode repercutir no desenvolvimento

da competência linguística do aprendiz de espanhol língua estrangeira. Tal

proximidade entre as línguas favorece os ―empréstimos‖ para preencher

alguma lacuna imediata que o aprendiz possa ter ao adquirir a língua

estrangeira. O ―empréstimo‖, que seria a utilização de um elemento da língua

materna na língua estrangeira, estaria licenciado devido à proximidade das

línguas em questão.

O empréstimo é, segundo Ortiz Alvarez (2002), uma estratégia

benéfica no início da aprendizagem, mas, ao alcançar estágios mais

avançados, tais empréstimos podem se converter em uma barreira ou, até

mesmo, uma estagnação no processo. Além disso, tais semelhanças podem

provocar equívocos na língua estrangeira, uma vez que o aprendiz sai do

sistema linguístico do português esperando encontrar o mesmo sistema

linguístico na língua estrangeira. Tais dificuldades estão atreladas, no

princípio, ao plano lexical; contudo, a distância entre o português e o

espanhol não está apenas no léxico, há distância nos planos morfológico,

sintático e discursivo. No plano lexical, os manuais de gramática e as listas

de palavras parecem estar mais propensos a sanar essas dificuldades. Não

obstante, as questões sintáticas, morfológicas e discursivas parecem ser

relegadas a um segundo plano.

Aprender uma língua estrangeira não é, apenas, conhecer as

palavras correspondentes ou dar conta de situações descontextualizadas do

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 77

Page 79: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

uso da língua. O aprendiz que adquire uma língua estrangeira se inscreve, na

cultura, no modo de pensar e conceber a linguagem. O aprendiz não é um

―turista‖ na língua estrangeira, pelo contrário, é um ser atuante que projeta

linguagem. Reorganizar-se (sistematicamente) em língua estrangeira é

também reorganizar-se a favor de uma identificação enquanto sujeito que

adquire uma língua estrangeira. Uma das finalidades do ensino-

aprendizagem de uma língua estrangeira é o seu papel comunicativo.

Esperamos que uma língua estrangeira se mantenha fiel ao seu papel

comunicativo e que vá além do campo da decodificação de elementos

isolados do texto.

O papel da língua materna: questões de interferência

Sobre o papel da língua materna no processo de aquisição de

língua estrangeira, Corder (1967, p.88) propõe que a primeira apoia o

aprendiz no processo de aprendizagem da segunda, uma vez que há uma

velocidade de aquisição que está ligada a uma distância linguística, isto é,

quanto maior a proximidade, mais acelerado será o processo de aquisição.

Assim, entre línguas próximas, haverá maior acesso à língua materna para

ajudar na aquisição da língua estrangeira.

Conforme explicitado anteriormente, uma das relações entre o

par de línguas em questão é caracterizada por meio de uma proximidade

lexical, que pode ser superficial e/ou por meio de uma distância lexical, que

envolve contraste em pontos específicos. Tais relações, segundo Cintrão

(2004), promovem uma assimetria entre a distância de aquisição percebida e

a real. O aprendiz recorre mais aos empréstimos da língua materna para

produzir na língua estrangeira e, por seu turno, a proximidade legitima o uso

de elementos da língua materna em língua estrangeira.

A nossa pesquisa visa a incrementar a discussão acerca das

interferências linguísticas entre línguas próximas como é o caso do PB e do

espanhol. Para tanto, faremos um recorte, selecionando aprendizes de nível

inicial e focalizando somente as transferências lexicais que os aprendizes

78 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 80: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

testados reconheceriam, visto que estão em um nível inicial de língua

estrangeira, o que favorece, segundo os estudos de Ortiz (op. cit), um vínculo

maior com a língua materna. Utilizamos, conforme já dito, o teste de

reescritura, por se tratar de uma atividade mais sofisticada, em que o aluno

deve reconhecer a transferência de um item linguístico e corrigi-lo em língua

estrangeira. Sendo assim, os dados produzidos pelos informantes podem

contribuir para traçar o perfil do aluno de nível inicial de espanhol e do próprio

nível em questão.

Metodologia

Para a coleta dos dados, foram aplicados testes de reescritura a

aprendizes de espanhol como língua estrangeira de duas turmas do CLAC

(Cursos de Línguas Aberto à Comunidade), que consiste em um projeto de

extensão universitária, no qual alunos da graduação em Letras da FL/UFRJ

ministram aulas para a comunidade em geral. No que tange ao curso de

espanhol, a grande maioria dos alunos são brasileiros falantes de português

e os monitores são orientados por professores da Faculdade de Letras. O

curso está voltado para o desenvolvimento das quatro habilidades

linguísticas: escrita, leitura, compreensão e prática oral.

Perfil dos informantes

Os testes foram aplicados a um total de 14 alunos, com níveis

de escolaridade variados. Tais alunos cursavam o espanhol 3, terceiro

semestre do curso. Nenhum questionário foi aplicado, a fim de verificar se

todos os alunos selecionados para o teste eram, de fato, falantes de

português como língua materna.

O teste

Os alunos deveriam reescrever um texto produzido, em

espanhol, por um aluno do sexto período de graduação em Letras Português-

Espanhol, falante de português. O texto a ser reescrito tinha 16 linhas e 15

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 79

Page 81: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

casos de interferência da língua materna já haviam sido identificados

previamente por nós.

A seguir, transcreveremos o texto utilizado no teste:

El texto hace um resumen sobre las protestas que ocurrieron en las

calles de dos gran centros urbanos brasileños. Por el bajo salário de los

ciudadanos y el aumento del valor de los transportes- que es un derecho del

pueblo- hubo esa reinvindicación.

En cuanto las personas del Senado tienen beneficios y no necesitan

de nada público, sea la salud, la educación o otra cosa, por teneren

condiciones financeras favorables, es pueblo fue a las calles preguntar que

ocurre en relación a eso. Hacerse ciudadanos en un país en que los

derechos de todos, ricos o no, tenían que ser iguales.

Ahora, la populación percebió que tiene el poder de cambiar las

cosas que le dicen respecto. El último movimiento que llevó tantas personas

a las calles sin tener una posición política declarada, en Brasil, fue a más de

veinte años. No hace sentido haber tantas reformulaciones de impuestos si el

valor del salário de los ciudadanos que pagan esos tributos públicos no

cambia, no sube conforme las cobranzas hechas.

No son sólo 20 céntimos, son muchas otras reinvindicaciones,

incluso esa. El pueblo despertó para la realidad, que está pagando un

producto que no funciona, así como la educación, la salud, la seguranza.

Nosotros servimos al gobierno cuando el tenia que servirnos, somos

tratados como niños, pero tenemos fuerza de personas mayores.

Aplicação do teste

Foi entregue, então, aos alunos participantes do teste uma folha

com o texto impresso e linhas em branco. Cada aluno deveria reescrever o

texto inteiro, corrigindo os ―erros‖ encontrados. O professor responsável por

aplicar o teste não poderia indicar se, de fato, havia ―erros‖ no texto, já que

era parte da tarefa o próprio aluno reconhecer os desvios no texto para, só

então, propor a correção. Também não foram dadas instruções específicas

sobre como deveria ser feita esta correção.

80 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 82: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

O teste foi realizado, durante a aula das referidas turmas, em

dias diferentes, aleatórios, já que foram necessárias autorização e

disponibilidade da professora de cada grupo. Não foi estabelecido um tempo

máximo para a execução da tarefa.

Análise dos dados

Após a aplicação do teste, os textos reescritos pelos alunos

foram mantidos em dois grupos (turma 1 e turma 2), para que se pudesse

observar, posteriormente, se haveria disparidade de resultados entre as

turmas e, em caso afirmativo, levantar possíveis justificativas para tal fato. A

partir de então, foram também contabilizadas as correções feitas, bem como

os casos de ausência de correção. Consideramos, aqui, como correção todos

os casos em que o aluno alterou alguma palavra ou expressão do texto

original por outra que julgava ser a adequada em espanhol. Esperava-se que

fossem identificados os casos de interferência da língua portuguesa e que

estes fossem substituídos pela forma correspondente em espanhol. Em

outras palavras, era esperado que o aprendiz reconhecesse traços

morfológicos, sintáticos, lexicais e fonológicos que pertencem ao português,

demonstrando, dessa forma, o grau de consciência que tem das diferenças

entre as línguas citadas.

Os dados recolhidos foram categorizados como ocorrências de

―interferência reconhecida‖ e de ―interferência não reconhecida‖. Foi

denominado ―interferência reconhecida‖ todo elemento (palavra ou

expressão) julgado pelo aluno como não pertencente à língua espanhola; e

―interferência não reconhecida‖ dados em que o aluno não percebeu que

havia interferência da língua materna.

A seguir, apresentamos um gráfico com a distribuição das duas

categorias, em que a análise inicial se baseou:

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 81

Page 83: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Gráfico 1

Somados os dados das duas turmas, os alunos obtiveram um

índice de 46,6% de reconhecimento de interferência, ou seja, reconheceram

quase metade dos casos de interferência presentes no teste.

De maneira geral, os casos de reconhecimento se assemelham

no que tange ao tipo de interferência identificado. Os informantes se atinham

apenas a palavras isoladas, o que parece indicar que não buscavam

elementos que fugissem do plano lexical, como, por exemplo, corrigir

sentenças inteiras, desvios de concordância verbal etc. Podemos relacionar

o tipo de correção feita pelos alunos ao que afirmam González e Celada

(2000) sobre a tradição dos estudos de língua espanhola no Brasil. As

autoras defendem que tais estudos se mantiveram durante anos estagnados

num modelo que propunha o contraste entre itens, termo a termo, de

maneira que o estudo do espanhol permanecia superficial e centrado apenas

nas diferenças mais aparentes.

Na segunda etapa da análise, foi feito o levantamento das ocorrências

de interferência identificada e sua correção. Nas duas turmas avaliadas, os

elementos identificados como não pertencentes ao espanhol foram

basicamente os mesmos, inclusive nos casos em que foram corrigidos de

forma equivocada. Vejamos, então, os dados recolhidos em cada turma.

82 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 84: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Quadro 1

Casos de

interferência

presentes no teste

Correção esperada das

interferências

Correção não

esperada

um un

salário sueldo

reinvidicación reivindicación

en cuanto encuanto

necesitan de nada

por teneren

financeras

hacerse ciudadanos

populación población

percebió percibió

fue a más de veinte

años

no hace sentido

cobranzas

seguranza

tenia tenía

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 83

Page 85: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Quadro 2

Turma 1

Interferência

reconhecida

Corrigida como

esperado

―la populación‖ ―la población‖

―tenia‖ ―tenía‖

―reinvidicación‖ ―reivindicación‖

―um‖ ―un‖

Quadro 3

Interferência

reconhecida

Corrigida de forma

equivocada

―en cuanto‖ ―encuanto‖ (neste caso,

a forma esperada era

―mientras‖)

84 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 86: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Quadro 4

Turma 2

Interferência

reconhecida

Corrigida como

esperado

―la populación‖ ―la población‖

―tenia‖ ―tenía‖

―reinvidicación‖ ―reivindicación‖

―um‖ ―un‖

―salário‖ ―sueldo‖

―percebió‖ ―percibió‖

Quadro 5

Interferência

reconhecida

Corrigida de forma

equivocada

―en cuanto‖ ―encuanto‖ (neste caso,

a forma esperada era

―mientras‖)

Com base nos dados, observamos que, dos 15 casos de

interferência existentes no teste, apenas 7 foram reconhecidos, com uma

média de 1 a 3 correções por aluno. Apenas dois alunos reconheceram mais

de três erros. Podemos ressaltar, ainda, que os resultados encontrados em

ambas as turmas mostraram-se bastante similares.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 85

Page 87: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Apesar de quase metade dos casos de interferência ter sido

reconhecida, na verdade, grande parte dos alunos corrigiu pouquíssimos

itens, fato que pode ser relacionado a não consciência sobre a distância real

entre o espanhol e o português. Os dados parecem indicar que este grupo

de alunos ainda se atém à distância percebida entre ambas as línguas a que

se refere Cintrão (2000), por isso não identificam elementos da língua

materna em meio ao texto em espanhol. No entanto, é válido postular

também que, como são alunos de nível inicial, provavelmente não conhecem

algumas palavras e estruturas do texto, portanto não saberiam se pertencem

ao espanhol de fato.

Ao ler o texto e tentar corrigir o que lhes parecia um ―erro‖, os

aprendizes se mantiveram num nível bastante superficial já que se centraram

basicamente em reescrever apenas palavras isoladas. Em nenhum dos

casos, foram corrigidos, por exemplo, falta de concordância ou expressões

inexistentes no espanhol. Vale ressaltar, inclusive, o fato de que muitos

alunos não reescreveram o texto conforme foi pedido no enunciado da

questão. Eles apenas escreveram os vocábulos separadamente, o que pode

também ser um indicador da falta de reconhecimento de ―erros‖ que

ultrapassam o nível do vocábulo, como seria esperado em casos como ―no

necesitan de nada‖ e ―fue a más de veinte años‖.

Abaixo, listam-se, no quadro 6, os dados de interferência do

português que não foram identificados pelos alunos:

86 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 88: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Quadro 6

Formas não identificadas Correção esperada

necesitan de necesitan

por teneren porque tienen

financeras financieras

hacerse ciudadano ser ciudadano

a más de veinte años hace más de veinte años

no hace sentido no tiene sentido

cobranzas cobro

seguranza seguridad

Considerações finais

Os dados da análise realizada revelam que, nos níveis iniciais,

os aprendizes são capazes de reconhecer interferências em itens isolados,

posto que, apesar de terem reconhecido boa parte dos casos de

interferência do teste (46,6%), não tentaram reorganizar uma sentença

inteira, por exemplo. Segundo Gonçalves (2013), os aprendizes de espanhol,

falantes de PB, apresentam em suas produções textuais alguns equívocos

por não dominarem o significado do elemento linguístico em questão.

Com efeito, a distância entre o par de línguas analisado pode

ser, conforme o que já foi exposto anteriormente, um facilitador no processo

de aprendizagem. No entanto, a semelhança entre as línguas pode interferir

de maneira negativa em situações como a do teste aplicado, impedindo que

os aprendizes possam reconhecer algumas interferências características do

português no espanhol. Provavelmente por este motivo, o índice de

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 87

Page 89: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

reconhecimento de interferência por aluno tenha sido baixo (cada um

identificou de 1 a 3 casos).

Podemos propor, desse modo, a existência de níveis diferentes

de reconhecimento de interferência e, por sua vez, este nível de interferência

seria inversamente proporcional aos níveis de proficiência no espanhol

língua estrangeira. Isto é, quanto mais interferência o aprendiz apresentar,

menor será a sua proficiência em língua estrangeira. No caso do estágio

investigado nesta pesquisa, parece haver um menor reconhecimento de

interferências, o que parece indicar a necessidade de, já nesses estágios

iniciais, ter início um trabalho de conscientização sobre as distâncias entre

línguas tão próximas, como é o caso do PB e do espanhol.

88 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 90: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Coordenadora da Pós Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ.

3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ.

4 Fossilização ou cristalização são os termos usados, geralmente, para denotar o que

parece ser um estado de falha permanente por parte do aprendiz de língua estrangeira ao

adquirir um elemento da língua estudada.

5 Demoramos muito por aqui a deixar as línguas, sobretudo as estrangeiras, como meros

instrumentos para o acesso a outros campos, mais nobres, e para permitir que estas

construam um objeto de estudo e reflexão em e por si mesmas. (Tradução nossa).

Referências

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Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 89

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90 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 92: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

AVALIAÇÃO ORAL: PRÁTICAS ALTERNATIVAS

ORAL ASSESSMENT: ALTERNATIVE PRACTICES

Carlos da Silva Sobral1

Julia Ferreira Lobão2

Mariana Warderlei Braga3

Resumo

Este estudo tem como objetivo problematizar as técnicas tradicionais de avaliação oral. Considerando problemas encontrados durante as avaliações desse formato nas turmas de nível B1 (Quadro Europeu Comum Referência para Línguas) do curso de italiano do CLAC como, por exemplo, o bloqueio momentâneo da competência oral, foram propostas outras abordagens que pudessem saná-los. Percebemos que bons alunos não conseguiam demonstrar suas reais habilidades, fazendo muitas vezes maus exames. Com isso, pensamos em práticas alternativas para que o aluno não se sentisse avaliado. O objetivo é captar o seu desempenho oral em ambiente mais calmo e espontâneo, afastando possíveis erros causados pela ansiedade ou pelo medo gerados pela temida avaliação. Desse modo, o nosso estudo se divide em duas partes: a primeira se fundamenta na leitura de textos teóricos referentes à educação e à psicologia para servir de embasamento para a segunda, que consiste de exercícios gravados com os alunos dentro de sala de aula. Assim, acreditamos ser possível aplicar uma avaliação por meio de uma perspectiva modulada, mais justa e eficaz. Palavras-chave: avaliação oral; italiano; práticas alternativas.

Abstract This study aims at problematizing traditional techniques of oral assessment. Taking into consideration problems that were found in assessments of this format in B1 level classes (Common European Framework of Reference for Languages) of the Italian course at the Language Courses Open to the Community – CLAC (for instance, a momentary block of oral competence), other approaches which could solve such problems have been proposed. We noticed that good students could not demonstrate their real skills, many times doing bad exams. Therefore, we thought of alternative practices so that the student would not feel as if they were being assessed. The goal is to observe their oral performance in a quieter and more spontaneous environment, fighting off possible mistakes caused by anxiety or fear of a frightening assessment. Therefore, our study is divided into two parts: the first one is based on the reading of theoretical texts related to education and psychology in order to serve as a foundation for the second part, which consists of recorded exercises with students in the classroom. Thus, we believe it is possible to apply an evaluation using a modulated, fairer and more effective perspective. Keywords: oral assessment; Italian; alternative practices

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 91

Page 93: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Introdução

Este trabalho traz uma reflexão sobre a avaliação oral aplicada

aos estudantes da língua italiana. Nossa preocupação com a maneira

tradicional de realizar avaliações orais surgiu logo nos primeiros contatos com

o ensino de L2. A partir da constatação de que os alunos apresentavam bom

desempenho oral no decorrer das aulas e sofriam uma espécie de bloqueio

durante as avaliações orais, começamos a pensar de que forma poderíamos

intervir para eliminar ou, pelo menos, diminuir os fatores determinantes do

problema em questão.

Nosso primeiro passo diante da problemática consistiu na busca

de estudiosos que tivessem discorrido sobre o tema e que pudessem, assim,

servir de embasamento teórico ao nosso estudo. São eles: Borneto (1998),

Ciliberti (1994), Mello (1992) e Walczyk (1997). Em seguida, procuramos

desenvolver e aplicar algumas práticas alternativas de avaliação, com o

objetivo de experimentar o que havia sido concebido em teoria.

Tais práticas foram aplicadas em quatro turmas de italiano do

nível B1 – terceiro semestre do curso oferecido pelo projeto de extensão

Cursos de Línguas Abertos à Comunidade (CLAC) – durante o primeiro e

segundo semestres de 2013. A escolha desse nível foi influenciada tanto pela

conveniência, considerando que já lecionávamos para turmas de italiano III,

quanto pelo fato desses alunos já possuírem, supostamente, uma boa

bagagem de conhecimentos referentes à LE, pois já tinham entrado em contato

com uma gama considerável de conteúdos gramaticais, tendo

consequentemente condições de exibir melhor performance oral do que os

alunos de níveis inferiores. Por outro lado, julgamos não ser interessante fazer

a experiência com estudantes de nível B2 (italiano IV), porque eles já estariam

em fase de conclusão de curso e, supostamente, menos sujeitos a grandes

desvios.

Considerando a impossibilidade de dispor de recursos

audiovisuais para a comprovação dos resultados obtidos a partir das

92 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 94: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

experiências, o texto será apresentado de forma analítico-descritiva. Destarte,

descreveremos, primeiramente, as turmas que foram avaliadas, com o objetivo

de formar um perfil do aluno de nível B1. Como segunda etapa, descreveremos

as experiências negativas e positivas ocorridas durante o período,

contrapondo-as e colocando em contraste, dessa forma, níveis de aprendizado

iguais, porém, em diferentes situações.

A avaliação e o filtro afetivo

Para comprovar as práticas defendidas, foram considerados

diversos teóricos das áreas de educação e psicologia.

Primeiramente, trataremos do conceito de avaliação, que vem

explicado em Ciliberti (2012: p.177) da seguinte maneira:

A avaliação constitui uma fase essencial do processo curricular. Essa tem

como objetivo verificar se o resultado atingido por meio da atividade de

aprendizado é qualitativamente e quantitativamente correspondente aos

objetivos de ensinamento. Serve então para distinguir: a) O que foi

planejado; b) O que foi realmente implementado; c) O que os estudantes

aprenderam efetivamente. Além do objetivo de avaliar formalmente os

estudantes na fase final ou em fase intermediária de um programa de

estudos, a avaliação realiza também uma função de observação sistemática

e contínua dos resultados de ensinamento e aprendizado, além de uma

função de promoção para o estudante.

Assim, de acordo com a autora, a avaliação é, antes de tudo, uma

forma de mediação para controlar o aprendizado do aluno. Porém, quando não

é feita de forma adequada, existe a probabilidade de que o aluno se sinta

desconfortável e levante o que chamamos de filtro afetivo.

No curso de italiano do CLAC, a avaliação oral tem o valor total de

cinco pontos e são levados em consideração os seguintes aspectos: fluência,

vocabulário, gramática, contexto e pronúncia. Portanto, a prova oral tem grande

peso na média final, que deve ser igual ou maior que sete. O fato de o aluno ter

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 93

Page 95: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

acesso a tal informação já aciona seu filtro afetivo de modo negativo. Como

podemos ver em Borneto (1998: p.260) o filtro afetivo é ―uma espécie de

barreira interior que é levantada pelo aprendiz para evitar a exposição às

influências que dizem respeito à língua e que são entendidas como negativas

ou perigosas‖.

Assim, cabe ao monitor de língua empenhar-se na busca da

construção de um ambiente confortável para seus alunos, no qual sejam

avaliados os conhecimentos e a performance, sem que haja a interferência do

filtro afetivo, que os impede de testar as reais noções e competências

linguísticas. A ausência do filtro afetivo facilitará o trabalho de educadores e

educandos, uma vez que turmas com baixos níveis de estresse são mais

produtivas.

Segundo Walczyk (1997: p.10),

procedimentos em sala de aula que exercem extrema pressão sobre o aluno

também podem gerar estresse. Há pesquisas mostrando que há prejuízo na

leitura e compreensão do texto quando a atividade é exercida em situações de

pressão de tempo.

E ainda a esse respeito, de acordo com Mello (1992: p.119),

É necessário pensar em estratégias para minimizar a exposição tanto do aluno

quanto do corpo docente a fatores estressantes. Muitas vezes aprender a

identificar quais são os fatores que estão desencadeando o processo de

estresse já muda muitíssimo a situação. A partir do momento que temos

consciência sobre o que se constitui em estímulos estressores para cada um

de nós, temos a possibilidade de enfrentá-los de uma maneira muito mais

efetiva.

De acordo com as reflexões feitas, podemos afirmar que este

artigo aponta para a importância de uma melhora do ambiente de sala de aula

e põe o foco na problemática que diz respeito à avaliação, que traz quase

sempre estímulos aumentadores de estresse.

94 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 96: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Perfil das turmas de nível B1 do CLAC

Na sequência, serão apresentados os perfis das turmas nas quais

foram aplicadas as práticas de avaliação oral, tanto tradicionais como

alternativas.

Turma A, nível B1, 2013.2

Turma constituída por 11 alunos: 2 homens e 9 mulheres, com

idades entre 19 e 25 anos, todos cursando o ensino superior. Entre todos os

alunos, apenas um tinha conhecimento prévio da língua. Oito alunos

pretendiam estudá-la para incrementar o currículo e três tinham intenção de

viajar com o conhecimento da língua.

Turma B, nível B1, 2013.1

Turma constituída por 16 alunos: 8 homens e 8 mulheres, com

idades entre 20 e 36 anos, 13 alunos cursando o ensino superior e 3 alunos

graduados. Entre todos, apenas uma aluna tinha conhecimento prévio da

língua e três manifestaram intenção de utilizá-la como ferramenta de trabalho.

Os demais declararam querer aprender a língua por hobby.

Turma C, nível B1, 2013.2

Turma constituída por 4 alunos: 2 homens e 2 mulheres, com

idades entre 18 e 34 anos, 2 alunos cursando o ensino superior e 2 graduados.

Entre todos, dois possuíam conhecimento prévio da língua. Todos os alunos

pretendiam estudá-la para incrementar o currículo e para viajar.

Turma D, nível B1, 2013.1

Turma constituída por 12 alunos: 2 homens e 10 mulheres, com

idades entre 18 e 60 anos, 2 alunos no nível médio, 7 no superior e 3

graduados. Entre todos os alunos, um possuía conhecimento prévio da língua.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 95

Page 97: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Todos declararam intenção de estudá-la para incrementar o currículo e para

viajar com o conhecimento da língua.

O gráfico 1 apresenta a distribuição percentual por grau de

escolaridade referente ao conjunto de alunos que participaram deste

experimento.

Descrição das experiências

Primeira experiência

A primeira prática de avaliação oral foi aplicada na turma A e

resultou em uma experiência negativa. O monitor colocou um trecho do início

do filme Il sorpasso, que tem a duração de cerca de 10 minutos. Em seguida,

os alunos deveriam falar sobre algumas questões pertinentes ao trecho que

tinham acabado de assistir, como, por exemplo, sobre os personagens, a

descrição do ambiente e os diálogos.

Sem que os alunos esperassem, a câmera foi ligada pelo monitor,

sendo anunciado que seria feita, então, uma avaliação oral, na qual cada

aluno, na frente de todos, deveria falar sobre como, segundo eles, o filme

96 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 98: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

terminaria. Foi explicado, ainda, que o vídeo serviria para que o monitor, junto

aos coordenadores do curso pudesse, assim, melhor avaliá-los.

Com este procedimento, foram introduzidos diversos elementos

tensores, provocando o aumento do filtro afetivo nos alunos, interferindo,

assim, no desempenho de suas capacidades orais. Foi observado que antes de

a câmera ser ligada e a prova oral ser anunciada, os alunos apresentavam

fluência em LE; após isso, todos os alunos sofreram uma espécie de bloqueio

momentâneo e cometeram erros muito elementares, característicos de alunos

de níveis inferiores.

Segunda experiência

A segunda experiência foi desenvolvida na turma B. Nesta, o

formato de avaliação escolhido foi uma prova oral informal, considerando que

os alunos não sabiam que estavam sendo avaliados. Para sua realização foi

trazida uma máquina digital; uma encenação seria feita e registrada com o

pretexto de que o vídeo produzido seria disponibilizado no site Youtube para

que os alunos mostrassem para seus amigos e familiares.

O tema escolhido para a encenação foi o de uma simulação de

entrevista de emprego: os alunos constituíram duplas formadas pelo monitor.

Cada dupla foi formada por um aluno com maior fluência e outro com

rendimento oral mais baixo, para que ambos pudessem trocar experiências. A

simulação fluiu muito bem: o monitor permitiu que os alunos utilizassem textos

de apoio com a recomendação expressa de que seria permitido lançar mão

deles só em caso de esquecimento de uma palavra. Os alunos, por sua vez,

sem saber que estavam sendo avaliados, responderam à tarefa proposta com

muita desenvoltura e bom humor. A gravação foi levada para casa e o

desempenho dos alunos foi avaliado pelo monitor calmamente, podendo rever

o vídeo quantas vezes achasse necessário para uma avaliação mais justa.

Quando informados que o vídeo tinha servido para uma avaliação oral, sem

que eles soubessem, primeiramente os alunos se mostraram surpresos e, em

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 97

Page 99: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

seguida, gostaram muito da ideia, alegando que, por se tratar de uma

―brincadeira‖, não tinham ficado nervosos ou ansiosos.

Terceira experiência

Na turma C, foi aplicada uma avaliação tradicional: somente o

monitor e o aluno avaliado estavam presentes em sala de aula. O tema foi

apresentado de surpresa e os alunos responderam a um pequeno questionário

relativo à saúde, esporte e bem-estar. As perguntas, feitas em italiano, foram

as seguintes:

1 - Você costuma se exercitar? Que esportes pratica?

2 - Como é a sua alimentação? Você costuma ingerir frutas e verduras?

3 - Você tem algum hábito que gostaria de mudar como, por exemplo, fumar,

beber, comer comidas gordurosas, ser sedentário etc.?

4 - Você considera que a saúde mental seja importante para que se mantenha

uma boa qualidade de vida? Por quê?

5 - Que conselhos você daria a uma pessoa sedentária que trabalha demais e,

por isso, vive estressada?

Como visto, as perguntas eram de nível básico e seriam

facilmente respondidas por um aluno de nível B1. Porém, colocadas no

contexto negativo de estresse e ansiedade, com a presença única do monitor,

que estaria ali para corrigir os supostos erros de construção de frase, as

reações foram muito adversas.

Alguns alunos se mantiveram calmos, considerando que este

seria um processo pelo qual teriam que passar para serem avaliados. Outros,

porém, misturaram idiomas, simplesmente não conseguiram responder às

perguntas de forma clara e, inclusive, nessa turma tivemos a experiência de um

aluno, que diante das cinco perguntas e da impossibilidade de respondê-las por

causa do nervosismo, começou a chorar. Surpreendentemente, o aluno em

questão era o que obtinha as melhores notas nas provas escritas, portanto,

detentor de bons conhecimentos gramaticais.

98 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 100: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Quarta experiência

Na quarta experiência, os alunos da turma D foram colocados em

uma situação caracterizada como positiva, na qual foram reduzidos ao máximo

os elementos tensores que pudessem interferir no desempenho oral.

Nessa avaliação, o monitor comunicou aos alunos (com duas

semanas de antecedência) qual seria o tema abordado durante a avaliação

oral. Assim, os alunos tiveram a oportunidade de preparar melhor o que seria

falado, poderiam escrever um texto em casa e memorizá-lo, podendo também

entrar em contato com novas estruturas e itens lexicais da língua estrangeira.

Ao descartar o elemento surpresa, já que os alunos conheciam o

tema que tinha como foco as características e a história de uma cidade da Itália

de escolha própria, os resultados apresentados foram excelentes: observou-se

que além de os alunos falarem de maneira fluente, eles empregaram muito

bem formas que ainda não haviam aprendido durante o curso, revelando que o

exercício de memorização do texto permitiu que eles aprendessem novas

frases e estruturas gramaticais do italiano.

É importante lembrar que, durante a avaliação, o monitor interferiu

muito pouco, permitindo que o tema fosse abordado livremente, justamente

para evitar que os alunos se assustassem com uma possível resposta para

uma pergunta não prevista em suas falas.

O gráfico abaixo sistematiza o desempenho das turmas tendo

como referência notas maiores e menores do que 7, média para aprovação no

CLAC. Foram considerados os seguintes parâmetros: pronúncia, vocabulário,

gramática, fluência e contexto, cada qual valendo 2 pontos.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 99

Page 101: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Discussão dos resultados

A partir das experiências relatadas e dos conceitos de avaliação e

filtro afetivo, podemos concluir que, quando a esfera pessoal do aluno é

atingida e seu filtro afetivo é acionado, ocorre uma espécie de bloqueio

momentâneo que interfere de forma negativa na avaliação do aluno, alterando

e pondo em crise sua confiança com relação ao seu conhecimento de L2.

Pudemos observar que os alunos que costumavam obter bons

resultados, não conseguiam ter uma boa desenvoltura de oralidade devido ao

estresse causado pelas avaliações tradicionais. Faz-se necessário, então, que

as práticas de avaliação oral sejam repensadas e, assim, elaboradas com

grande cuidado, visando um julgamento das reais capacidades do aluno,

aquelas que seriam avaliadas durante todo um semestre e não apenas as

capacidades momentâneas que seriam avaliadas durante alguns minutos de

prova.

Em plena era digital, com tantos recursos de mídia e tecnologia, é

preciso renovar estratégias pedagógicas, andragógicas e de avaliação. O

educador deve ter em vista que é necessário apropriar-se de recursos que

facilitem e inovem a forma de medir competências, considerando que as

100 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 102: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

avaliações tradicionais atendem a outro tipo de exigência, que era muito focada

e requerida em outra época e em outro tipo de sociedade.

Considerações finais

O resultado de nosso estudo mostrou-nos que é preciso dinamizar

estratégias que culminem no desenvolvimento tanto de técnicas quanto de uma

maleável filosofia de ensino que atendam ao perfil multifacetado do homem do

terceiro milênio e que considere toda a gama de instrumentos e experimentos

disponíveis numa sociedade globalizada.

Dito isso, as aplicações de avaliações alternativas voltadas para o

dia-a-dia de nossos alunos foram criadas com o objetivo de solucionar ou

minimizar os estresses apontados durante todo o artigo. Diante dos resultados

obtidos, propomos que as provas orais de L2 sejam feitas nos seguintes

moldes: 1) proposta de apresentação de diálogo criado pelos próprios alunos,

registrada em vídeo, para que o monitor possa avaliar o aluno em um ambiente

mais confortável; 2) atividades extraclasse como, por exemplo, corais, peças

de teatro, ou seja, atividades públicas que ofereçam a oportunidade de

cooperação entre os discentes, trabalhando a expressão corporal e a aquisição

de léxico; 3) observação do aluno nas atividades orais propostas ao longo do

semestre, para que o desempenho em uma prova de 5 minutos não

comprometa o seu desempenho final.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 101

Page 103: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Professor Associado II, no Departamento de Letras Neolatinas e no Programa de Pós-

Graduação em Língua e Literatura Italiana da UFRJ.

2 Graduanda do Curso de Letras/UFRJ.

3 Graduanda do Curso de Letras/UFRJ.

Referências

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Juvenilia Ed. Scolastiche, 1987.

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DIADORI, P. Insegnare italiano a stranieri. Firenze: Le Monnier, 2005.

FERRARI, L. (org.) Espaços mentais e construções gramaticais: do uso

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KRASHEN, S. The input hypothesis: issues and implications. Harlow: Longman,

1985.

MELLO FILHO, J. Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artmed Editora S.A,

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WALCZYK, J. J. (1995). A test of the compensatory-encoding model. Reading

Research Quarterly, 30, 396–408.

102 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 104: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS MÉTODOS ALTER EGO 2 E ALTER

EGO 2+ E SEU USO NOS CURSOS DE LÍNGUA FRANCESA DO

CLAC/UFRJ

COMPARATIVE STUDY BETWEEN ALTER EGO 2 AND ALTER EGO 2+

METHODS AND THEIR USES IN CLAC FRENCH COURSES.

Mariana Gomes de Matos¹

Marília Santanna Villar²

Resumo Analisamos algumas atividades e aspectos didáticos propostos pelos métodos de Francês língua estrangeira (FLE) Alter Ego 2 e sua versão mais recente, Alter Ego +2. As duas tem sido utilizadas nos cursos de francês dos Cursos de Línguas Abertos à Comunidade (CLAC/UFRJ) e correspondem ao nível elementar (A2) de aquisição da língua, segundo o Quadro europeu comum de referência para as línguas (QECRL). Informantes, monitores que utilizam este método para lecionar nos cursos de francês do CLAC, consideram negativa a abordagem de leitura da antiga versão do método, mencionando a pouca exposição do aluno a documentos autênticos; os tamanhos reduzidos dos documentos utilizados ou o caráter acrítico das atividades. A nova versão surpreende, portanto, ao expor, além de novos textos mais longos, originais ou semi-autênticos, propostas de preparatório para o DELF. Deste modo, buscamos refletir se a nova versão de Alter Ego apresentaria uma mudança significativa de abordagem, sobretudo nos exercícios de compreensão escrita, comparando as atividades contidas em cada versão e relacionando-as às propostas do QECRL. Pressupomos que as atividades contidas no novo método estariam em consonância com o exigido pelo quadro, o que, no entanto, não implicaria necessariamente na aplicação de tais atividades no CLAC. Palavras-chave: perspectiva acional; tarefas; língua francesa; texto; compreensão escrita.

Abstract We have analyzed some activities and didactic aspects proposed by the French as foreign language methods Alter Ego 2 and its latest version, Alter Ego +2. Both have been used in the French courses of Language Courses Open to the Community (CLAC / UFRJ) and correspond to the elementary level (A2) of language acquisition, according to the Common European Framework of Reference for Languages (CEFRL). Our sources, that is, monitors who use these methods to teach French language at CLAC, consider the reading approach of the old version of the method negative, mentioning the restricted exposure of students to authentic documents, the reduced size of the documents used or the uncritical nature of activities. The new version surprises, therefore, in exposing, – besides new longer, original or semi-authentic texts – preparatory exercises for the DELF. Hence, we seek to investigate whether the new version of Alter Ego would present a significant change in approach, particularly in written comprehension exercises, by comparing the activities contained in each version and relating them to the CEFRL's proposals. We assumed that the activities in the new method would be in line with those required by the framework, which, however, does not necessarily imply the use of such activities at CLAC. Keywords: Task approach, tasks, French language, text, written comprehension.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 103

Page 105: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Alter Ego e Alter Ego 2+: características metodológicas e algumas

mudanças gerais

Utilizado nos cursos de língua francesa do projeto de extensão

Cursos de Línguas Abertos à Comunidade (CLAC) da Universidade Federal do

Rio de Janeiro (UFRJ) desde o primeiro semestre de 2009, o método de

francês língua estrangeira (FLE) Alter Ego apresenta características

relacionadas à perspectiva acional de ensino e aprendizagem. O mesmo se

pode dizer de sua edição mais recente, Alter Ego +, publicada em 2012 e

usada no CLAC desde o primeiro semestre de 20133.

A princípio, podemos observar que as mudanças na nova versão

se dão sobretudo em aspectos formais. Ela, por exemplo, apresenta uma

unidade didática (chamadas de dossiers) a menos que a sua versão antiga,

que continha nove dossiers. É mantida, porém, a organização da aula (ou

sequência pedagógica) em página dupla (duas páginas para cada sequência,

totalizando duas sequências por lição).

Figura 1: Alter Ego 2, dossier 1, lição 1 Fonte: (Berthet, 2006, p. 12-13); (idem, 2012, p.16-17)

104 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 106: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Figura 2: Alter Ego +2, dossier 1, lição 1 Fonte: (Berthet, 2012, p.16-17)

Para uma mesma lição, contida em um mesmo dossier, foram

propostos novos documentos na versão recente. Isto é, tal como é possível ver

no exemplo acima, enquanto Alter Ego 2 propusera a análise de uma página de

revista, Alter Ego +2 utilizou a página de uma rede social. No entanto, os

objetivos sociolinguageiros previstos pela lição permanecem – por exemplo: as

duas lições pretendem abordar, dentre outras competências, a descrição de

uma pessoa (seu caráter, seus defeitos e qualidades) como objetivo

comunicativo, tal como podemos visualizar no sumário (tableau de contenus),

exposto abaixo.

Figura 3: índice de Alter Ego 2

Fonte: (Berthet, 2006, p.6)

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 105

Page 107: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Figura 4: índice de Alter Ego +2

Fonte: (Berthet, 2012, p.10)

Além disso, vale a pena destacar a mudança do lay-out das

páginas duplas entre uma edição ou outra. Em Alter Ego, por exemplo, as

atividades de fixação do conteúdo gramatical/lexical (chamadas de s‟exercer)

são propostas no final da segunda página dupla da lição (no canto direito da

segunda página, especificamente). Em Alter Ego +, as atividades de s‟exercer

ganham páginas próprias, situadas ao final de cada dossier (ver Figuras 5 e 6).

É válido observar também que, ao final de cada dossier, podemos

encontrar, em Alter Ego+, exercícios simuladores de exames do diploma de

estudos de língua francesa (DELF), reforçando seu objetivo de estar

condizente com as diretrizes descritas pelo quadro comum europeu de

referência para as línguas (QECRL), tal como consta na introdução de Alter

Ego +2: ―Alter Ego+2 [...] visa a aquisição das competências descritas no nível

A2.2 e B1.1 do QECRL[...]. Ele permite se apresentar ao DELF A2‖ (Berthet,

2012, p. 3)4.

Enfim, muitos outros aspectos relacionados à análise de ambas

as edições poderiam ser mencionados e comentados aqui. Por outro lado,

dentre as características citadas, acreditamos ser pertinente abrir um tópico

para descrever a abordagem ou perspectiva pedagógica que permeia todo o

método: a perspectiva acional.

106 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 108: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Figuras 5 e 6: lugar da página s‟exercer em Alter Ego 2 (dossier 1, lição 1) e Alter Ego +2 (dossier 1), respectivamente.

Fonte: (Berthet, 2006, p.14 e 15); (idem, 2012, p. 30 e 31)

Uma breve explicação sobre a Perspectiva acional

Surgida nos anos 2000, a perspectiva acional defende a

aprendizagem de uma língua estrangeira com base na apreensão de todo um

conjunto de atividades e saberes ligados ao cotidiano dos alunos e da(s)

cultura(s) ligada(s) à língua alvo estudada. Assim, as atividades propostas por

essa perspectiva não apresentam caráter apenas linguageiro, isto é, um

aprendizado da língua pela língua, ou do aprendizado da língua como a mera

simulação de comunicação. Com efeito, na perspectiva acional, o usuário da

língua é compreendido também como um ator social que deve cumprir tarefas

(tâches), em circunstâncias e meios dados, no interior de um domínio de ação

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 107

Page 109: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

particular. A tarefa constitui, portanto, o objetivo acional último que o aluno, ator

social, deve desenvolver, de modo a resolver um problema, cumprir uma

obrigação ou alcançar um fim proposto. Logo, podemos entender como tarefa

ações variadas, como pedir uma refeição no restaurante, registrar um boletim

de ocorrência, negociar um contrato, preparar um jornal com a turma, entre

muitos outros.

Desse modo, os atos de fala se realizam através de atividades

linguageiras (compreensão e produção, oral e escrita) que viabilizam a

concretização de muitas outras atividades, fazendo também parte delas. Ou

seja, os atos de fala inserem-se no interior de ações pragmáticas que por si

mesmas dão seu significado ao contexto social. Enfim, as atividades

linguageiras são os meios pelos quais a tarefa, cirscunstância próxima da vida

real, pode se concretizar. Isso se reflete, por exemplo, na definição que o

QECRL5 expõe sobre o conceito de texto.

É definida como texto toda sequência discursiva (oral e/ou escrita) inscrita em

um domínio particular e que dá lugar, como objeto ou como objetivo, como

produto ou como processo, à atividade linguageira em curso de realização de

uma tarefa.‖ (CONSEIL DE L‘EUROPE, 2001, p. 15).

Nessa pesquisa, devido à variedade de suportes propostos pelos

métodos, e a fim de facilitar a análise dos documentos propostos, levaremos

em conta apenas os registros de atividades de compreensão escritas de Alter

Ego e Alter Ego+, correspondentes ao nível elementar (A2) de aquisição da

língua.

A perspectiva acional em Alter Ego 2 e Alter Ego 2 +

A perspectiva acional, podendo ser chamada também de

abordagem orientada para a ação (BICALHO, p. 408), é explicitada desde a

introdução (avant-propos) dos métodos Alter Ego e Alter Ego +, publicados em

2006 e em 2012, respectivamente. Em ambas as edições, os autores expõem

seu ponto de vista positivo em relação ao conceito de tarefas, vistas como

108 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 110: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

motivadoras da implicação do aluno no seu próprio aprendizado e com as quais

ele pode adquirir conhecimentos gerais e estratégias de comunicação, tal como

descrito em Alter Ego 2.

As tarefas propostas se pretendem o reflexo de situações autênticas, em

domínios distintos (pessoal, público, profissional, educativo...), a fim de

valorizar a motivação do aluno e sua implicação no aprendizado. Assim, este

desenvolve conhecimentos, mas também estratégias de comunicação:

interação, mediação... (Berthet,2006, p. 3)

Em Alter Ego +2, neste mesmo trecho, percebemos uma

mudança de nuance em relação ao papel de destaque que o aluno ganha em

seu aprendizado, delineando-se a concepção do estudante enquanto ator

social: não são adquiridas apenas estratégias para utilizar a língua estrangeira,

como a própria ação de usar a língua estrangeira em si, de modo autônomo.

As tarefas propostas se pretendem o reflexo de situações autênticas, em

domínios distintos (pessoal, público, profissional, educativo...), a fim de

valorizar a motivação do aluno e sua implicação no aprendizado. Assim, este

desenvolve conhecimentos mas também estratégias que o levam

progressivamente à autonomia. (Berthet,2012, p. 4, grifo nosso)

Além disso, ambos os métodos têm em comum o fato de

proporem percursos tematizados de aprendizagem, buscando realidades

próximas da vida e do cotidiano. Deste modo, os autores preocupam-se

também com o sentido, as emoções e a experiência de cada aluno, aspectos

estes vistos como meios facilitadores do processo de ensino-aprendizagem.

Outro aspecto pertinente de ser observado é o fato de Alter Ego

se ater ao uso do texto (escrito ou oral) como meio de conhecimento indutivo

de formas gramaticais/lexicais e também de outras atividades, que não

necessariamente serão linguageiras. Assim, por exemplo, a leitura e análise de

um texto escrito (Figura 7) serve como meio não apenas para se aprender o

modo verbal condicional, como também ―para expressar um desejo, fazer uma

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 109

Page 111: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

sugestão‖ (tradução nossa), isto é, o uso desse modo para a expressão de

uma ideia, de uma competência - tal como explicitado na Figura 8.

Figuras 7 e 8 - Texto escrito e conceitualização gramatical em Alter Ego 2 (dossier 5, lição 1) Fonte: (Berthet,2006, p. 78)

Enfim, em Alter Ego 2 as tarefas constituem atividades de

produção (escritas e/ou orais) que apresentam a finalidade de verificar a

aquisição plena dos objetivos socio-linguageiros previstos pela sequência

pedagógica. Além disso, a tarefa (ou etapa de produção) visa a uma situação

semelhante a da vida real (redigir uma intervenção em um fórum), como

podemos perceber na tarefa proposta para a lição abaixo exposta.

110 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 112: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Figura 9 : tarefa de produção escrita em Alter Ego

Fonte: (Berthet,2006, p. 79)

Em Alter Ego+2, podemos observar que estas mesmas

características foram mantidas na lição analisada, havendo apenas algumas

modificações nos enunciados da tarefa de produção escrita:

Figuras 10, 11 e 12: Texto escrito, conceitualização gramatical e tarefa de produção escrita em Alter Ego+2 (dossier 6, lição 1).

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 111

Page 113: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Fonte: (Berther, 2012, p.110 e 111)

Porém, percebemos que em Alter Ego +2 há também um maior

delineamento da perspectiva acional, propondo, além da tarefa, a página

Projet, inserida em cada uma das lições do método6. Tal página reflete a

retomada pela perspectiva acional da ―pedagogia do projeto‖, promovida pelo

pedagogo francês Freinet durante a década de 50. De acordo com Christian

Puren, a pedagogia do projeto não constitui apenas ―um simples pretexto a

propor situações de comunicação simuladas, detentoras de atividades de

fixação final mais ou menos livres desses conteúdos‖, mas um ―agir referencial

de aprendizagem‖ (Puren, 2009, p.126). Isto é, a proposta de trabalho do

projeto, menos direcionada que a da tarefa, constitui uma ampliação da

autonomia dos alunos em seu aprendizado, oferecendo documentos que, com

as competências progressivamente adquiridas em aula, serão objetos de

discussão, negociação e cooperação entre o grupo.

112 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 114: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Logo abaixo, expomos um exemplo de como um projeto é

proposto por Alter Ego +2.

Figura 13 - Tarefa, em Alter Ego 2+, dossier 6, lição 1 (―Para conceber uma iniciativa ligada à cultura francófona, você vai: Tarefa lição 1: examinar iniciativas em função de aspirações comuns.‖)

Fonte: (Berthet, 2012, p. 111)

Na figura 14, expomos o projeto anunciado pela figura anterior, o

qual propõe-se que seja concretizado em três etapas sequenciais. A primeira

(Você reage a iniciativas realizadas em torno da língua francesa e/ou da cultura

francófona) leva os alunos a compreenderem exemplos de documentos

autênticos e de gêneros distintos, todos rementendo à ideia de uma iniciativa

coletiva (um anúncio para um concurso cultural, a agenda cultural de um curso

de línguas e o cartaz de um encontro de degustação de iguarias francesas).

Em seguida, é proposto aos alunos realizarem, em grupos, projetos de

iniciativas semelhantes às analisadas, em função da realidade em que moram

e estudam. Finalmente, colocam-se os projetos em comum, de maneira que os

alunos triem criteriosamente as iniciativas (a mais atraente, a menos custosa, a

mais fácil de concretizar) e escolham aquela que a turma poderia/gostaria de

colocar em prática. Figura 14: Projeto para lição 1, dossier 6, de Alter Ego +2 Fonte: (Hugot apud Waendendries, 2013, p. 34 e 35)

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 113

Page 115: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Alter Ego 2 e Alter Ego + 2: Comentários sobre algumas atividades de

compreensão escrita

No que toca às propostas de atividades ligadas à compreensão

escrita, podemos afirmar que houve uma manutenção do percurso proposto

pelas duas edições do método: os exercícios priorizam a percepção da

estruturação dos textos escritos, propondo, por exemplo, a análise do gênero

textual, dos elementos que o caracterizam, do autor do texto e de seu público-

alvo; a identificação do plano textual, entre outros. Isto se concretiza através da

apresentação de questões do tipo múltipla escolha; de questões discursivas

(com respostas abertas ou fechadas); e de identificação de informações

verdadeiras ou falsas no documento.

Para expandir a análise proposta, comentaremos duas

sequências pedagógicas localizadas no dossier 4, intitulado Médiamania,

presente em ambas as edições (Em Alter Ego 2, a sequência analisada se

encontra na lição 2; em Alter Ego +2, na lição 3). Apesar de não serem os

mesmos, os documentos propostos para o desenvolvimento das sequências

apresentam gênero textual equivalente (fait divers7) e são usados para

alcançar os mesmos objetivos socio-linguageiros (uso de verbos no passado

para falar de um fait divers).

Figuras 15 e 16 (respectivamente): textos para atividades de compreensão escrita em Alter Ego 2 (dossier 4, lição 2) e Alter Ego + 2 (dossier 4, lição 3)

114 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 116: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Fonte: (Berthet, 2006, p. 64); (idem, 2012, p. 78)

Primeiramente, observamos que a extensão dos textos entre uma

edição e outra aumentou (em Alter Ego, os artigos contém, respectivamente,

104 e 98 palavras; enquanto em Alter Ego +, 178 e 172 palavras). Na edição

mais recente, percebemos também uma maior preocupação em contextualizar

o documento escrito, tornando-o (mais) autêntico: os artigos teriam sido

publicados no jornal Metro, no dia 14 de janeiro, na rúbrica Actu France (Em

Alter Ego, o gênero do texto escrito proposto é discriminado apenas no

enunciado da questão de compreensão escrita - página de revista). Estes

dados propiciam que o professor possa, por exemplo, realizar questões de

compreensão global do documento aos alunos (Onde o texto foi publicado?

Quando? Em que seção do jornal? Entre outras). Deste modo, o conhecimento

prévio dos alunos no aprendizado da língua estrangeira é viabilizado e

valorizado. Além disso, essa contextualização torna o método mais condizente

com o descrito em sua introdução e com o CECRL.

Em ambas as edições, podemos afirmar que a primeira questão

de compreensão escrita (nos exemplos analisados) prioriza a compreensão

global ou prévia do documento, mesmo que percebamos mudanças na

formulação das questões em si: na edição antiga, questiona-se de modo

discursivo a natureza do gênero dos documentos analisados (questão 1.2: Diga

de qual gênero de artigos se trata), enquanto que, na edição mais recente do

método, a mesma questão oferece respostas de múltipla escolha (questão 1.1:

Escolha a rúbrica correspondente: economia; jogos; fait divers, sociedade).

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 115

Page 117: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Figuras 17 e 18: Questões de compreensão escrita global em Alter Ego 2 (figura 17) e Alter Ego 2+ (figura 18).

Fonte: (Berthet, 2006, p. 64); (idem, 2012, p. 78)

A questão que se segue prioriza a compreesão detalhada do

documento, demandando em que ordem se encontram as ideias que cada

parágrafo dos artigos expressa (evento principal; circunstâncias do evento;

consequências e causas). Neste caso, o objetivo e o caráter discursivo das

questões é essencialmente mantido, salvo alguns acréscimos de ordem lexical

em Alter Ego + 2.

Figuras 19 e 20: Questões de compreensão escrita detalhada em Alter Ego 2 (figura 17) e Alter Ego 2+ (figura 20) Fonte: (Berthet, 2006, p. 64); (idem, 2012, p. 78).

116 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 118: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

É pertinente afirmar também que as atividades de compreensão

escrita acima expostas refletem o protagonismo do aluno na construção

autônoma do conhecimento, tal como defendido pela perspectiva acional e tal

qual exposto no índice de Alter Ego 2+. Isto porque, posteriormente, ela servirá

como meio de viabilizar a conceitualização gramatical (tempos do passado

para escrever um fait divers). Deste modo, a organização da sequência

pedagógica também corresponde ao previsto pela perspectiva acional, em que

a progressão didática se dá do sentido à forma. É válido notar também que

questões tais quais as analisadas aqui são totalmente previstas nas etapas de

compreensão escrita dos exames do DELF, comprovando mais uma vez a

condizência do método com as diretrizes que ele propõe na introdução.

Críticas de futuros professores às edições de Alter Ego e Alter Ego +

Em entrevista feita via internet com quatro (ex-)monitores de

francês do CLAC/UFRJ (aqui nomeados como informante 1 (I1); informante 2

(I2); informante 3 (I3) e informante 4 (I4)), foi-lhes proposto que expusessem

sua opinião sobre as duas edições do método8, e também que fizessem

comentários de sua prática pedadógica. Foram realizadas perguntas como:

―Com quais edições de Alter Ego você já trabalhou? Quais comparações

podem ser feitas entre as edições mais antigas e as mais recentes?‖

Dentre as respostas que obtivemos, I1 destaca o fato de o lay-out

ser menos ―poluído visualmente‖ que a edição antiga. I4 considera a escolha

de textos e as atividades de produção escrita na nova edição um avanço,

quando comparadas com a edição menos recente, a qual, segundo ele, não

preparava o aluno para escrever o seu próprio texto. Todos os informantes

afirmaram que utilizam material pedagógico extra no preparo de suas aulas

com o método Alter Ego e com Alter Ego+. Dentre aqueles que conhecem e

trabalham com a nova edição (I1 e I4), todos consideraram positivas as

mudanças trazidas pela nova versão do método, apesar de haver ressalvas

quanto ao caráter ―bobo‖ e acrítico de algumas questões de leitura nele

propostas. Por outro lado, I4 menciona positivamente as propostas de análise

estrutural dos textos escritos.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 117

Page 119: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Entretanto, a disposição das atividades de compreensão escrita

não necessariamente é considerada positiva pelos professores de línguas

estrangeiras entrevistados. Foi justamente o fato de estas explorarem a análise

estrutural dos textos que gerou crítica negativa da parte de I2 e I3. Eles

acreditam que esses exercícios deveriam ser mais elaborados e complexos no

antigo método. Por isso eles afirmam recorrer a folhas pedagógicas extras e a

exercícios retirados de outros métodos. I4 declarou acreditar que os textos

propostos em Alter Ego deveriam ser mais longos e mais condizentes com o

cotidiano do aluno, crendo ser positiva a inovação dos textos em Alter Ego 2.

Em outras palavras, podemos afirmar que os informantes, de um

modo geral, creem que os métodos em questão, sobretudo Alter Ego 2,

poderiam propor exercícios de interpretação argumentativa do texto, de modo a

suscitar nos alunos maior participação no que concerne ao seu senso crítico

em relação ao texto lido. A título de exemplo, segue abaixo uma de atividade

de compreensão escrita (capítulo X do romance francês Le petit prince) que

propus para uma turma de francês 4 do CLAC/UFRJ, com a qual se utilizara

também o método Alter Ego +2.

Figura 21: Atividade de compreensão escrita proposta em CLAC/UFRJ

118 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 120: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Réfléchissons un instant...

1.Le roi vous paraît-il un personnage antipathique ou seulement ridicule ? Expliquez en t‘aidant

des exemples pris dans le texte.

2.Quelle est l‘attitude du petit prince face au roi ?

3.Relève dans le texte tous les mots et toutes les tournures du roi qui expriment l‘autorité.

Explique en t‘aidant d‘exemples pris dans le texte.

D‘après-toi, est-ce que ce roi est vraiment une autorité ? Pourquoi ?

Além da extensão textual, chamamos a atenção para o fato de as

questões exigirem uma tomada de posição crítica dos estudantes, sobretudo a

questão 4: pede-se que a autoridade do rei seja problematizada pelo aluno,

esperando justificativa(s) que comprove(m) o seu ponto de vista. Logo,

podemos afirmar que o protagonismo do aluno não consistiria apenas na

realização de tarefas práticas e diretamente relacionadas ao cotidiano (tal

como proposto pela perspectiva acional e pelo QECRL), como também na

análise subjetivamente crítica do conteúdo do texto escrito que lhe é proposto.

Por outro lado, cabe ressaltar aqui os objetivos dos cursos de

línguas oferecidos pelo CLAC. Guiados por professores-orientadores, os

monitores (futuros professores de língua francesa) são encorajados a serem

independentes na preparação e realização de sua aula, ficando a seu critério a

decisão por utilizar conteúdos do próprio livro didático ou material extra, tal

como consta no documento de apresentação do Projeto CLAC/UFRJ:

(...) Este projeto, de cunho essencialmente social, tem como objetivo

desenvolver profissionais reflexivos. Isso quer dizer que o CLAC, enquanto

curso de formação de professores, capacitará seus monitores nos seguintes

aspectos: trabalharem com eficiência e efetividade ao ensinarem um idioma;

estarem mais preparados para o mercado de idiomas por ter experiência em

sala de aula; e serem, acima de tudo, críticos e transformadores de

entraves pedagógicos de sua ação. [...] Os monitores terão total liberdade

para organizar e criar atividades e exercícios para seus alunos.

(Apresentação do projeto CLAC, p.1, grifos nossos).

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 119

Page 121: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Desse modo, as propostas de ensino e aprendizagem descritas

no QECRL (e, portanto, aplicadas nos métodos Alter Ego e Alter Ego +) são

incorporadas de modo singular na realidade do CLAC, sendo previsto que os

professores/monitores tenham um olhar reflexivo sobre, neste caso, o método

com o qual lhes é proposto trabalhar. Daí o teor crítico de seus comentários em

relação às sequências pedagógicas das distintas versões de Alter Ego (ou,

mais especificamente, das atividades de compreensão escrita nelas inseridas).

Consequentemente, no preparo de aulas para o projeto, os monitores têm total

liberdade de aplicar documentos e atividades oriundas de variadas

metodologias, paralelas à perspectiva acional e aos métodos utilizados. Além

disso, é importante lembrar que Alter Ego e Alter Ego + são publicações

francesas, voltadas para um público que visa, entre outros objetivos, a prestar

o exame do DELF. Não é necessarimente este, portanto, o objetivo primário do

curso de língua francesa proposto pelo CLAC.

A propósito, torna-se pertinente ressaltar também que o nível A2

do QECRL, para o qual os métodos aqui analisados preparam, deduz que o

aluno domine a língua de modo a compreender textos de caráter simples ou,

ao menos, de sentido concreto. Logo, a formação de senso crítico não é um

fator esperado para este nível, considerado elementar, respectivamente. Com

efeito, de acordo com este quadro, o nível A2 prevê que o aluno pode

(...) compreender frases isoladas e expressões frequentemente utilizadas em

relação a áreas imediatas de prioridade (por exemplo, informações pessoais e

familiares simples, compras, ambiente próximo, trabalho.) Pode comunicar na

ocasião de tarefas simples e habituais que exigem apenas uma troca de

informações simples e direta sobre assuntos familiares e habituais. Pode

descrever com meios simples, sua formação, seu meio imediato e evocar

assuntos que correspondam a necessidades imediatas (Conseil de l‘europe,

2001, p. 25, tradução nossa).

O caráter elementar de A2 e intermediário de B1 também estão

presentes na descrição do que é esperado para a competência de leitura, de

acordo com a qual o aluno é capaz das seguintes ações perante um texto

escrito:

120 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 122: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Eu posso ler textos curtos bem simples. Eu posso encontrar uma informação

particular previsível em documentos correntes como os anúncios publicitários,

os prospectos, os menus e os horários e eu posso compreender cartas

pessoais curtas e simples (idem, 2001, p.26, tradução nossa).

Aliás, ainda de acordo com este quadro, a análise crítica da leitura

e a extensão longa do texto são exigidos apenas de um estudante de nível B2

(avançado independente): ―Eu posso ler artigos e relatórios sobre questões

contemporâneas nos quais os autores adotam uma atitude particular ou um

certo ponto de vista. Eu posso compreender um texto literário em prosa‖

(idem, p.28, tradução e grifo nossos).

Conclusão

Podemos afirmar que o caráter pragmático das atividades das

sequências pedagógicas de Alter Ego +2 se manteve semelhante àquele

encontrado em Alter Ego 2, estando consideravelmente de acordo com as

diretrizes encontradas no QECRL. Assim, pela análise de algumas atividades

de comprensão escrita encontradas nas duas edições, constatamos que houve

muito mais mudanças em termos visuais e temáticos que nas propostas

pedagógicas dos métodos em si, já que estes se encontram

predominantemente de acordo com a perspectiva acional de ensino-

aprendizagem. Inclusive, Alter Ego +2 a amplia quando propõe a página Projet.

Enfim, ambos os métodos constituem materiais eficientes e ideais aos

professores de FLE desejosos de pôr em prática a perspectiva acional.

Ao mesmo tempo, levando em conta a experiência metodológica

descrita pelos monitores-informantes de CLAC/UFRJ, somos levados a nos

perguntarmos se o estudante (ao menos o estudante brasileiro de língua

francesa) não poderia ir além daquilo previsto pelo próprio Quadro, ousando

em relação ao que ele prevê para seu nível de língua e à sua capacidade de,

por exemplo, ler textos simples e/ou de linguagem concreta. Por outro lado,

reconhecemos que é preciso levar em conta o caráter experimental dos cursos

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 121

Page 123: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

de língua propostos por CLAC/UFRJ, tal como constatado no decorrer deste

artigo.

Neste caso, seria preciso também uma análise aprofundada das

atividades pedagógicas extras propostas pelos monitores do curso, e também

de seus objetivos em relação a estas mesmas atividades. Ou, inclusive, a

análise das respostas dos alunos a estas mesmas atividades, a fim de

compará-las com aquelas previstas pelos métodos. Esses, porém, já seriam

assuntos para um outro artigo.

122 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 124: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Bacharela e licenciada do curso de Letras Português/francês da Faculdade de Letras/UFRJ.

Monitora de língua francesa do projeto CLAC entre 08/2011 e 12/ 2013.

2 Professora adjunta de língua e literatura francesa da Faculdade de Letras /UFRJ. Orientadora

de monitores de língua francesa do projeto CLAC/UFRJ.

3 Enquanto monitora de língua francesa do projeto CLAC, conheci o trabalho dos métodos Alter

Ego1, Alter Ego 2 e Alter Ego +2, não tendo tido contato com Alter Ego +1. Por isso, apenas

Alter Ego 2 e Alter Ego +2 serão analisados neste artigo.

4 As traduções dos documentos analisados e comentados neste artigo são de minha autoria.

5 É válido ressaltar que a perspectiva acional é a privilegiada pelo QECRL.

6 As atividades relacionadas à página Projet são disponíveis para download no site da editora

Hachette, que publicou ambos os métodos: www.hachettefle.fr

7 Fatos diversos, em tradução literal. Esta rúbrica (coluna de jornal) é comumente encontrada

em jornais francófonos e expõe eventos inusitados, trágicos, ou que não estejam ligados às

demais colunas do jornal.

8 As respostas dos informantes podem ser lidas no final deste artigo, nos anexos. As perguntas

realizadas podem ser lidas (ou inclusive respondidas) em:

https://docs.google.com/forms/d/1QJtjqDLU0_VHwT1xwBYjLzqX1ieFtPhEj1gD_yzd3vQ/viewfor

m

Referências

Livros

BERTHET et alliae. Alter Ego 2. Paris: Hachette, 2006. __________. Alter Ego

+ 2. Paris: Hachette, 2012.

BICALHO, Ana Maria. ―Materiais didáticos de francês como língua estrangeira

e a competência multicultural‖. In: SCHEYERL, Denise e SIQUEIRA, Sávio

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 123

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(org.) Materiais didáticos para o ensino de línguas na contemporaneidade:

Contestações e proposições. Salvador: EDUFBA, 2012.

CONSEIL DE L‘EUROPE. Un Cadre Européen commum de référence:

Apprendre, enseigner, évaluer. Paris: Les éditions Didier, 2001.

PUREN, Christian. ―La nouvelle perspective actionnelle et ses implications sur

la conception des manuels de langue‖. In: LIONS-OLIVIERI et alli. L‟approche

actionnelle dans l‟enseignement des langues. Barcelone: Maison des langues,

2009, pp.119-137.

Artigos em periódicos

PUREN, Christian.―De l‘approche communicative à la perspective actionnelle‖.

Le Français dans le monde 347, sept - oct 2006, pp. 37 - 40. _________. ―Les

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Documentos eletrônicos

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http://clac.letras.ufrj.br/adm/PROJETO_CLAC.pdf. Acesso em: 29 set. 2014.

HUGOT, Catherine; WAENDENDRIES, Monique. Projets Alter Ego + 2.

Hachette, Paris, 2013. Disponível em: http://medias.hachette-

livre.fr/media/contenuNumerique/Telechargement/01/2143341413673777.PDF.

Acesso em: 29 set 2014.

124 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 126: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Anexos

Transcrição das respostas dadas pelos monitores-informantes

1. Com quais edições de Alter Ego você já trabalhou?

I1: Alter Ego 1 +

I2: Alter Ego 1 e 2

I3: Alter Ego 1

I4: Alter Ego 2+

2. Se conhecer ou tiver trabalhado com a edição antiga de Alter Ego 1

e/ou 2, responda às questões A e B, justificando-as.

a) Qual a sua opinião sobre as propostas de exercícios de compreensão

escrita dos antigos métodos?

I1: -

I2: Negativa. Os exercícios não buscavam saber se o aluno havia

compreendido o que leu, mas sim se compreendiam o documento em si (o que

era o documento, onde poderia ser encontrado, quem o escreveu...).

I3: Neutra. Acredito que poderiam ser exercícios mais elaborados e complexos.

I4: Negativa. Não tinham atividades que preparassem o aluno para produzir

seu texto.

b) Acredita que uma aula com uso majoritário/único das propostas do

método antigo possa ser eficaz?

I1: -

I2: Não. Em geral, uma aula eficaz usa o livro como um dos instrumentos, é

necessário

material extra. Porém, dependendo do objetivo da aula, somente o livro pode

suprir as necessidades dos alunos e do professor

I3: Não. O método antigo precisa de um complemento, seja de folhas

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 125

Page 127: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

preparadas pelo monitor seja por exercícios retirados de outros métodos.

I4: Não. Acho que seria necessário propor textos mais longos, que sejam

realmente usuais na vida cotidiana.

3. Se conhecer ou tiver trabalhado com a nova edição Alter Ego +1 e/ou

+2, responda às questões C e D, justificando-as.

c) Qual a sua opinião sobre as propostas de exercícios de compreensão

escrita dos dois novos métodos?

I1: Positiva. É positiva, embora alguns deixem a desejar. Deixam a desejar no

sentido que às vezes as perguntas são bobas demais, ou são muito artificiais.

rs. Mas de modo geral, gosto do Alter Ego 1 Plus, acho que é um bom método

de francês!

I2: -

I3: -

I4: Positiva. Acho que a nova versão valoriza mais a compreensão do texto

considerando toda sua produção (quem escreve, para quem, o plano textual,

argumentos...)

d) Acredita que uma aula com uso majoritário/único do novo método

possa ser eficaz?

I1: Sim. Acredito que sim, pois considero o método bem completo, com muitos

áudios e textos. Me agrada bastante!

I2: -

I3: -

I4: Talvez. Não sei, acho que um curso organizado apenas em cima de um

único método pode não ser tão rico, já que sempre há pontos positivos e

negativos.

6. Fale um pouco mais das principais mudanças percebidas em Alter Ego

+.

126 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 128: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

I1: Achei que o Alter Ego 1 Plus ficou visualmente mais "limpo", aconchegante,

as páginas são menos poluídas visualmente!

I2: -

I3: -

I4: Eu não conheço o caderno de exercícios da nova edição. Sobre o trabalho

de compreensão e produção escrita considero que houve um avanço na nova

versão, tanto no que concerne as escolhas dos textos quanto as propostas de

atividades, acho que a nova versão considera o texto em sua totalidade e o

processo de escrita em suas fases de preparação e textualização, apesar de

deixar pouco espaço para isso.

7. Com que frequência você utiliza outros métodos e/ou recursos

pedagógicos no preparo de suas aulas?

I1: Frequentemente

I2: Frequentemente

I3: Sempre

I4:Frequentemente

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 127

Page 129: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

ANÁLISE DE PROBLEMAS DE REFERENCIAÇÃO EM REDAÇÃO DO CLAC

ANALYSIS OF REFERENTIATION PROBLEMS IN CLAC STUDENTS’ WRITING

Joelma Castelo Bernardo da Silva1

Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt2

Resumo O presente trabalho tem por objetivo analisar os problemas relacionados à progressão referencial em redação dissertativo-argumentativa de um aprendiz, utilizando a Teoria dos Espaços Mentais (Fauconnier & Sweetser, 1996). O corpus empregado consiste na produção textual de um aluno do CLAC, pertencente à turma do segundo módulo de redação. A análise foi feita com base em um dos aspectos da microestrutura textual, nomeadamente à progressão da cadeia referencial construída pelo aluno ao longo do texto. Essa análise permitiu detectar quais deficiências são passíveis de ocorrer no texto do aprendiz de redação, sinalizando para elaboração de um planejamento focado no trabalho articulado entre o léxico e à coesão referencial. Palavras-chave: redação dissertativo-argumentativa; microestrutura textual; referenciação.

Abstract This paper aims to analyze the problems related to the referential progression in dissertational and argumentative writing of a student, using the Theory of Mental Spaces (Fauconnier & Sweetser,1996). The chosen corpus consists of a textual production of a student from the UFRJ Language Courses Open to the Community - CLAC, who belongs to the class of the second module of writing. The analysis was based on one aspect of textual microstructure, namely the progression of the referential chain built by the student throughout the text. This analysis made possible the detection of deficiencies that are likely to occur in the text of a student of writing, pointing out the elaboration of a planning focused on the articulation between lexicon and referential cohesion. Keywords: dissertational and argumentative writing; textual microstructure; referentiation.

128 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 130: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar os problemas

relacionados à progressão referencial em redação dissertativo-argumentativa

de um aprendiz, utilizando a Teoria dos Espaços Mentais (FAUCONNIER &

SWEETSER, 1996). Essa teoria cognitiva permite a proposição de um modelo

para explicar como se constrói a cadeia de referências durante o processo de

feitura de um texto, o que ajudará a identificar e entender as falhas no processo

de referenciação que ocorrem nessa redação.

Pressupostos teóricos

O funcionamento da língua não é ponto pacífico para os

linguistas. A pergunta ―Para que serve a linguística?‖ pode ser respondida sob

óticas distintas entre os estudiosos da ciência da língua. Para as teorias

formalistas, a língua é um sistema previsível e acabado, sendo seu enfoque o

estudo do significado como estrutura autônoma. As teorias não formalistas, por

outro lado, entendem o significado como um processo que se constrói à

medida que modelos cognitivos são ativados no momento da interação. Assim,

o estudo do significado para os não formalistas não deve se limitar a descrever

modelos autônomos que explicariam a composição das formas linguísticas,

mas sim utilizar-se destas como pistas para entender os ―exercícios‖ que a

mente faz para tecer o significado.

A construção do conhecimento é uma complexa rede de

processos ativada pela cognição humana e que se materializa por meio da

linguagem. Uma dinâmica de trocas acompanha a decodificação/codificação

das palavras, frases, períodos que compõem a malha textual. Essa dinâmica

consiste em basicamente dois movimentos: 1) top-down: projetar sobre o texto

aquilo que já faz parte das bases do conhecimento do leitor; 2) bottom-up:

retirar do texto informações que passarão a compor novos conhecimentos.

Portanto, a cognição consiste em um fazer da mente humana que resulta em

estruturas linguísticas visíveis.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 129

Page 131: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Os textos são uma das portas de entrada para o estudo da

cognição humana. A partir deles, a Teoria dos Espaços Mentais (TEM) tenta

reproduzir o mapeamento referencial subjacente à estrutura linguística. A

premissa dessa teoria está no fato de que a língua não é uma estrutura

autônoma, e sim parte de uma complexa rede de processos simultâneos

responsáveis pela construção do significado.

Justificativa

O ensino da referenciação como um processo é importante, pois,

apesar de terem estudado que certos termos gramaticais, como os pronomes,

retomam termos anteriores, os alunos desconhecem que esses termos formam

uma cadeia referencial no texto. Essa dificuldade acarreta o abandono do

referente ou até mesmo o emprego de pronomes anafóricos que não se

encontram ancorados a outro termo anterior, entre outras falhas. A fim de

propor uma solução para esses problemas, é preciso recorrer a uma teoria que

forneça instrumentos para entender por que eles ocorrem.

Corpus

O presente trabalho é composto por uma redação escrita por um

estudante do Ensino Médio para o curso de redação dos Cursos de Línguas

Abertos à comunidade (CLAC), atendendo à seguinte proposta: redija um texto

dissertativo-argumentativo sobre o tema ―O ato de escrever‖, valendo-se de

seus conhecimentos e dos textos abordados em sala de aula3.

Metodologia

A TEM pode ser utilizada para explicar como se dá a progressão

referencial em textos dissertativos-argumentativos (KOCH, 2000). Nesse

momento, é importante entender a microestrutura do texto, no que tange à

referenciação. Segundo Koch (1996), coesão ―é um fenômeno que diz respeito

ao modo como os elementos linguísticos presentes na superfície textual se

encontram interligados entre si, formando sequências veiculadoras de

130 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 132: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

sentidos.‖ A nossa tarefa nesse trabalho é buscar entender de que forma

ocorre essa interligação, utilizando os instrumentos da teoria supracitada.

Uma das características de um texto é a manutenção temática,

percebida por meio da repetição de alguns termos na superfície textual. Essas

repetições apontam para uma cadeia de referentes que se interligam por meio

de processos que garantem a continuidade textual. Metaforicamente, isso

significa dizer que cada proposição de um texto semeia o que virá a germinar

em uma proposição seguinte.

Os Espaços Mentais são construtos mentais parciais nos quais

está circunscrito cada um dos SNs do texto. A cada novo enquadre do

referente, ocorre o seguinte processo: há um espaço base (EB), que é o

espaço do reconhecimento da ontologia do referente, e, a partir desse EB, são

criados novos espaços mentais que enquadram as contrapartes desse termo;

os mecanismos de relação entre foco (informação nova) e ponto de vista

(informação velha) servem de elo entre esses espaços criados a partir de um

mesmo referente, fazendo o SN ser o mesmo — à medida que retoma um

termo anterior; e diferente — à medida que recebe um novo enquadre. Esses

processos se dão a partir da dinâmica de troca entre as funções foco e ponto

de vista assumidos por SNs em cada momento do fluxo discursivo. Por meio

dessa dinâmica, é garantida a progressão referencial de um texto.

Os problemas de referenciação procedem de falhas que ocorrem

durante esse processo. A seguir, são discriminados os erros mais comuns com

as respectivas descrições de suas falhas:

Abandono do referente: o referente aparece uma única vez no texto, não desencadeando o processo de continuidade por meio da dinâmica foco e ponto de vista;

Opacidade referencial: geralmente ocorre quando são empregados pronomes e palavras genéricas que não remetem a um ponto de vista que lhes justifique a existência e enquadramento no texto;

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 131

Page 133: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Relação frouxa (pouco nítida) entre as contrapartes de um mesmo referente: nesse caso, a relação foco/ponto de vista acontece, porém o vínculo entre os SNs é fraco devido à falta de exatidão semântica do termo empregado para desempenhar a função de foco;

Problemas de pistas de contextualização: ocorre quando os ESPECs e COMPs dos SNs estão mal empregados, podendo acarretar outros problemas, como a opacidade referencial;

Ambiguidade referencial: ocorre quando há dois termos concorrentes para desempenhar a função de ponto de vista de um mesmo foco;

Ausência do referente: conforme o próprio nome explica, significa que posições sintáticas não foram preenchidas por SNs.

Esses problemas foram devidamente tratados em Almeida (2010),

que propôs uma fonte comum para as ocorrências encontradas em redações

de vestibular da UFRJ: a presunção de monossemia, que consiste na não

percepção do novo enquadre construído nos usos recorrentes de um mesmo

referente em um dado texto, o que faz com que o aluno, ao compor um texto

escrito, empregue o mesmo termo sem perceber sua polissemia. Uma vez que

os alunos chegam ao curso de redação não dominando ou até mesmo

desconhecendo o processo de confecção das referências, durante a feitura de

um texto, é comum encontrar essas falhas em suas dissertações. Serão

utilizados, portanto, os conceitos da TEM apresentados nesse tópico para

explicar qual a origem do problema de referenciação observado na redação a

seguir.

Apresentação da redação

Segue abaixo a redação que é foco de análise neste artigo.

Proposta de redação: redija um texto dissertativo-argumentativo sobre o tema ―O ato de escrever‖, valendo-se de seus conhecimentos e dos textos abordados em sala de aula. (25-30 linhas)

132 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 134: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Reflexão social sobre o papel da escrita

O ato da escrita não significa somente estabelecer a

comunicação banal, mas foi através desse ato que povos, leis e culturas foram formadas. Assim, não se pode cercear como outrora, e sim gerar a reflexão na humanidade. Porque tal reflexão, trazida pela escrita, é o motriz para a evolução do homem como ser social.

Séculos atrás, somente quem ―detinha‖ a escrita eram os religiosos da Igreja Católica. Pois a leitura e a escrita, caso fosse acessível a todos, gerariam a reflexão e a reação dos excluídos da sociedade. Logo, ameaçaria o poder do clero católico.

E séculos se passaram com este esquema. Após a aliança entre rei e clero a fim de legitimar mais poder, a forma de governar ficou mais arbitrária. E um segmento da sociedade pôs fim a isto devido a outros interesses econômicos, políticos sociais. Porém a forma de manipular o povo é que não mudou.

Fatos da história recente comprovam que ainda existam quem utiliza a escrita e o discurso para alienar como, por exemplo, Hitler, que se aproveitou da fragilidade do povo alemão e legitimou a ideologia nazista. E que com esta poderia subjugar os inimigos alemães e tirar seu povo daquela miséria. Adolf quando percebeu sua ascensão proibiu todos aqueles que o era contrários.

E um outro fato é recente na história brasileira fora a Ditadura Militar que reprimia e alienava a população com uma ideologia distorcida do capitalismo feroz. Cerceando a palavra que refutaria seu discurso.

Muito se luta para que na contemporaneidade a palavra, ou escrita, ou o ato de escrever seja livre para se expressar da melhor forma possível. Pois na sua essência a escrita é a única que pode gerar a reflexão.

Análise dos Espaços Mentais na redação “Reflexão social sobre o papel

da escrita”

Apesar de a redação analisada apresentar boas ideias, ela carece

de uma estrutura referencial que a torne mais clara, exigindo que o leitor faça

certo esforço para calcular a relação de sentido entre suas proposições. Esse

problema ocorre, em parte, devido aos problemas relacionados à

referenciação, os quais serão analisados nessa sessão. A argumentação do

aluno busca justificar a tese de que as massas são manipuladas por aqueles

que dominam o ofício das letras. No nível do microtexto, essa ideia núcleo dará

origem à referenciação do termo ―escrita‖ que recebe diferenciadas conotações

ao longo do texto.

No primeiro parágrafo, aparece a primeira referenciação do termo

―escrita‖ no SN ―o ato da escrita‖. No segundo parágrafo, o termo ―escrita‖ é

retomado duas vezes, no entanto, sendo usado para referenciar elementos

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 133

Page 135: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

distintos. O primeiro SN ―escrita‖ em ―quem detinha a escrita eram religiosos da

Igreja Católica‖ se refere à habilidade de escrever que somente o clero

possuía. Já na proposição seguinte — ―Pois a leitura e a escrita, caso fosse

acessível a todos, gerariam a reflexão e a reação dos excluídos da sociedade‖

—, o SN ―a escrita‖ apresenta um novo sentido, o de texto como material

concreto, uma vez que é algo que pode ser acessível e cuja leitura provoca

reflexão. Por último, o termo ―escrita‖ aparece no último parágrafo — ―ainda

existam quem utiliza a escrita e o discurso para alienar‖. Nesse contexto, a

palavra ―escrita‖ ganha o sentido de retórica, ou seja, de discurso que deseja

convencer alguém de alguma coisa. No presente contexto, Hitler utilizou a

―escrita‖ (no sentido de retórica) para convencer os alemães a respeito da

ideologia nazista. A reiteração do termo ―escrita‖ com variados valores

semânticos aponta, em última instância, para não percepção por parte do aluno

de que o termo é polissêmico. Caso essa característica fosse percebida e os

referenciais fossem mais bem definidos, o texto progrediria de modo bem mais

fluido para o leitor.

Em decorrência da presunção de monossemia, um problema de

referenciação encontrado na redação do aluno foi a ausência de referentes.

Isso ocorre no primeiro parágrafo, em que é feita a primeira a referenciação ao

―ato da escrita‖ que deveria ser retomado como argumentos dos verbos

―cercear‖ e ―gerar‖, ocupando a posição de sujeito neste e de objeto direto

naquele. Porém, isso não ocorre, visto que não há o preenchimento dessas

posições sintáticas. O verbo ―cercear‖ aparece sem complemento, e o verbo

―gerar‖ fica impossibilitado de receber sujeito, uma vez que se encontra na

forma nominal de infinitivo. Portanto, o fluxo de referentes é interrompido em

virtude da ausência de referentes.

No terceiro parágrafo, o aluno emprega o vocábulo ―esquema‖

com a intenção de recuperar alguma informação descrita no parágrafo anterior

que não é facilmente identificada. Ela pode ser tanto a inacessibilidade de

textos escritos quanto à restrição da habilidade de escrever. Mais uma vez, a

estrutura de referenciação se encontra debilitada, dessa vez por haver dois

concorrentes para ser ponto de vista, provocando uma ambiguidade

134 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 136: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

referencial. Além disso, a relação entre as contrapartes fica frouxa devido ao

fato de nenhuma dessas informações ser hipônimo de ―esquema‖. Sendo

assim, a imprecisão semântica do foco com relação ao seu ponto de vista

fragiliza a relação entre as contrapartes.

A análise de problemas relacionados à microestrutura do texto

nos levou à origem da dificuldade que há em compreender as informações

veiculadas pela redação. Em suma, os problemas quanto à referenciação do

texto em foco foram: presunção de monossemia semântica, ausência de

referentes, ambiguidade referencial e relação frouxa entre as contrapartes.

Considerações finais

Os problemas de referenciação da redação analisada podem ser

reflexos de algumas deficiências durante a formação escolar do aluno, entre

elas a adoção de metodologias de ensino da língua materna que rejeitam a sua

relação com o contexto extralinguístico e não contemplam a abordagem de

mecanismos linguísticos relacionados a unidades maiores que o período. O

não emprego de vocábulos mais específicos para delimitar o referente no texto

demonstra que o aluno não tem conhecimento dos sentidos que as escolhas

lexicais acarretam na construção global da sua redação. Consequentemente,

são estabelecidas relações frouxas entre as partes que compõem a malha

textual. Nota-se, portanto, que o excesso de informação sobre a forma como se

estruturam palavras e períodos deixa lacunas no que diz respeito à estreita

relação entre forma e significado subjacentes às cadeias de referentes

nominais, no caso analisado.

Entende-se que esses problemas podem ser minimizados através

de exercícios que priorizem o uso do léxico a serviço da construção de

sequências textuais bem articuladas e estruturadas. Fica, portanto, uma

sugestão que pode ser adotada para definir metodologias que priorizem o

ensino do texto como um processo, que envolve dinâmicas muito diversificadas

entre seus constituintes.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 135

Page 137: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Lista de abreviações

COMPs - Complementadores

EB - Espaço base

ESPECs- Especificadores

SN - Sintagma nominal

TEM - Teoria dos Espaços Mentais

Notas

1 Doutoranda em Linguística da Universidade de Lisboa.

2 Professora Associada I da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do

Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da Faculdade de Letras - UFRJ, e do

PROFLETRAS, Programa de Mestrado profissional em Letras.

3 Proposta e redação em anexo.

Referências

ALMEIDA, M. V. B. Polissemia e progressão referencial em redações de

vestibular. Dissertação de Mestrado em Língua portuguesa. Rio de Janeiro:

UFRJ, 2010.

FAUCONNIER, G. & SWEETSER, E. Cognitive links and domains: basic

aspects of mental space theory. In: ________. Spaces, Worlds and Grammar.

Chicago: University Press, 1996, p. 1-28.

KOCH, I. Coesão textual. 8ª ed. São Paulo: Contexto, 1996.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e Linguagem. 6. ed. São Paulo:

Cortez, 2000.

136 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 138: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Anexos

Proposta de redação

Redação I

Monitores: Diego Teixeira / Fernando Noronha / Tatiane Mano

Texto 1

Texto 2

Condições da redação

J. Mattoso Câmara Jr.

Há, portanto, como já foi salientado, uma arte de escrever – que é a redação.

Não é uma prerrogativa dos literatos, senão uma atividade social indispensável, para a qual

falta, não obstante, muitas vezes, uma preparação preliminar.

A arte de falar, necessária à exposição oral, é mais fácil na medida em que se

beneficia da prática da fala cotidiana, de cujos elementos parte em princípio.

O que há de comum, antes de tudo, entre a exposição oral e a escrita é a

necessidade da boa composição, isto é, uma distribuição metódica e compreensível de ideias.

Impõe-se igualmente a visualização de um objetivo definido. Ninguém é capaz

de escrever bem, se não sabe bem o que vai escrever.

Justamente por causa disto, as condições para a redação no exercício da vida

profissional ou no intercâmbio amplo dentro da sociedade são muito diversas das da redação

escolar. A convicção do que vamos dizer, a importância que há em dizê-lo, o domínio de um

assunto da nossa especialidade tiram à redação o caráter negativo de mero exercício formal,

como tem na escola.

Qualquer um de nós senhor de um assunto é, em princípio, capaz de escrever

sobre ele. Não há um jeito especial para a redação, ao contrário do que muita gente pensa. Há

apenas uma falta de preparação inicial, que o esforço e a prática vencem.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 137

Page 139: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Por outro lado, a arte de escrever, na medida em que consubstancia a nossa

capacidade de expressão do pensar e do sentir, tem de firmar raízes na própria personalidade

e decorre, em grande parte, de um trabalho nosso para desenvolver a personalidade por este

ângulo.

A arte de falar não é mais do que uma mise-au-point dos predicados obtidos e

consolidados no exercício da atividade oral de todos os dias. A arte de escrever precisa

assentar, analogamente, numa atividade preliminar já radicada, que parte do ensino escolar e

de um hábito de leitura inteligentemente conduzido; depende muito, portanto, de nós mesmos,

de uma disciplina mental adquirida pela autocrítica e pela observação cuidadosa do que outros

com bom resultado escreveram.

(In: Manual de expressão oral & escrita. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 60)

Texto 3 A Última Crônica

Fernando Sabino

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto

ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta.

Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do

irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu

disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao

circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina,

quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e

perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café,

enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema".

Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os

assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba

de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A

compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela

presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido

pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os

olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a

instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo

mais que matar a fome. Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que

discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta

no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente

ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do

homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados,

a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a

ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no

138 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 140: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha,

contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à

sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em

torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira

qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também,

atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas

brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela

serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a

menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas.

Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os

pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as

velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos

sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha

no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo

botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo

de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila,

ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim

eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

(In: A Companheira de Viagem. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1965. p. 174)

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 139

Page 141: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

O ESTUDO DO PARÁGRAFO PARA A CONSTRUÇÃO DO TEXTO

ARGUMENTATIVO

STUDYING THE PARAGRAPH FOR THE CONSTRUCTION OF THE

ARGUMENTATIVE TEXT

Cybelle Borges de Abreu¹

Helena Gomes Teixeira de Faria²

Mônica Tavares Orsini³

Sabrina de Oliveira4

Resumo Este trabalho tem por finalidade evidenciar a importância do estudo do parágrafo como ponto de partida para a construção do texto argumentativo, estratégia que vem sendo aplicada no curso de Redação do Projeto de Extensão Universitária CLAC (Cursos de Línguas Abertos à Comunidade). Pretende-se, assim, apontar as semelhanças entre a estrutura do parágrafo e a do texto argumentativo, bem como apresentar atividades de produção textual desenvolvidas com base nesta opção metodológica. A escolha pela utilização de tal método se justifica pelo fato de o parágrafo ser um reflexo do texto, já que aquele tem a mesma estrutura deste (FIGUEIREDO, 1999). Dessa forma, o primeiro módulo do curso de Redação focaliza o parágrafo, levando o aluno a dominar as técnicas pertinentes à sua elaboração para, em seguida, passar à construção do texto. Palavras-chave: ensino de redação; linguística do texto; estrutura do parágrafo; argumentação.

Abstract The objective of this paper is to shed light on the importance of paragraph study as the basis to the construction of the argumentative text. This strategy has been applied in the Writing Course of the Federal University of Rio de Janeiro Extension Project CLAC (Language Courses Open to the Community). Thus, the intention is to indicate similarities between the structures of both the paragraph and the argumentative text as well as to present text production activities that have been developed based on this methodology. The choice of such method is justified by the fact that the paragraph is a reflex of the text, since they share the same structure (Figueiredo 1999). Thereby, the first module of the Writing Course focuses on the paragraph, leading the students to master the techniques that are relevant to its elaboration before they move to the construction of the text.

Keywords: teaching of writing; text linguistics; paragraph structure; argumentation.

140 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 142: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Considerações iniciais

Este trabalho tem por finalidade evidenciar a importância do

estudo do parágrafo como ponto de partida para a construção do texto

argumentativo, estratégia que vem sendo aplicada no primeiro módulo do curso

de Redação do Projeto de Extensão Universitária CLAC (Cursos de Línguas

Abertos à Comunidade). Esse curso é constituído de três módulos, tendo

duração de um ano e meio. O primeiro módulo explora a estrutura do parágrafo

como unidade textual e sua produção; o segundo amplia esta visão,

transpondo o conhecimento adquirido pelo aluno acerca da estruturação e

elaboração do parágrafo para a construção do texto argumentativo; o terceiro

objetiva fazer com que o leitor se torne capaz de revisar criticamente sua

própria produção.

Oralidade e escrita no ensino de redação

Ainda que o ambiente escolar frequentemente apresente fala e

escrita como modalidades distintas de uma língua, adotando uma perspectiva

dicotômica em que a fala se caracteriza como contextualizada, dependente,

redundante e não-normatizada; a escrita, como descontextualizada,

independente, condensada e normatizada, estas são práticas sociais

complementares (e não opostas), presentes nos diversos gêneros textuais do

cotidiano. Ambas apresentam ―dialogicidade, usos estratégicos, funções

interacionais, envolvimento, negociação, situacionalidade, coerência e

dinamicidade.‖ (FÁVERO, ANDRADE e AQUINO, 2014: 13).

Nesta perspectiva, o monitor do curso de Redação do CLAC, para

ensinar ao seu aluno técnicas de produção textual, parte do pressuposto de

que as diferenças entre as modalidades linguísticas ocorrem dentro de um

continuum tipológico, conforme propõe Marcuschi (2007), assumindo uma

posição menos preconceituosa em relação à língua. Dessa forma, o primeiro

módulo do curso de Redação procura refletir sobre a valorização da escrita em

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 141

Page 143: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

detrimento da fala, a fim de tornar o processo de aprendizado da elaboração do

texto culto formal menos penoso para o aluno.

Tipos textuais

Os tipos textuais configuram-se numa construção teórica definida

pela natureza linguística de sua composição. Ou seja, são sequências

linguísticas, modos textuais. São eles: narração, argumentação, exposição,

descrição e injunção (PINILLA, RIGONI e INDIANI, 2007). A argumentação,

modo de organização do discurso trabalhado no curso de Redação do CLAC,

busca convencer, influenciar, persuadir alguém.

O parágrafo e o texto argumentativos

Tendo como premissa a valorização do conhecimento linguístico

que o aluno traz para a sala de aula, o primeiro módulo do curso de Redação

explora o conceito de parágrafo argumentativo padrão, assim denominado por

se constituir de introdução, que apresenta a ideia central ou tópico frasal;

desenvolvimento, que contém a argumentação a favor dessa ideia; e conclusão

(Garcia, 1975). Dessa forma, o parágrafo padrão reflete a estrutura do texto

argumentativo, justificando a metodologia utilizada pelo curso (FIGUEIREDO,

1999).

Para trabalhar as semelhanças entre a estrutura do parágrafo e a

do texto, o material didático elaborado pelo monitor propõe a análise

contrastiva de um parágrafo e de um texto argumentativo; ambos produzidos

por alunos do curso5.

Transcreve-se abaixo o parágrafo analisado pelo monitor em

conjunto com a turma. O tema é a importância do lazer na vida das pessoas.

O descanso é a melhor forma de diminuir o ―stress‖ causado por tarefas

extensas e rotineiras. O ser humano necessita de pausas para bem

desempenhar uma tarefa, pois assim pode se recuperar tanto fisicamente

142 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 144: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

quanto emocionalmente. Um bom exemplo disso é a chamada 'siesta'

espanhola, que nada mais é do que uma soneca após o almoço. Estudos

recentes alegam que esse simples hábito pode aumentar tanto a quantidade

como a qualidade do trabalho. É vital haver, portanto, equilíbrio entre trabalho e

descanso, para não sofrermos os malefícios do 'stress'.

(J. de Almeida)

O fragmento se inicia com um tópico frasal, ou tese, introduzindo

o parágrafo - O descanso é a melhor forma de diminuir o „stress‟ causado por

tarefas extensas e rotineiras; observam-se, também, um desenvolvimento

corroborando essa tese e uma conclusão (É vital haver, portanto, equilíbrio

entre trabalho e descanso, para não sofrermos os malefícios do „stress‟.).

O texto argumentativo transcrito a seguir, produzido por um aluno

do segundo módulo do curso de redação, apresenta estrutura bastante

semelhante. O texto trata do casamento na atualidade.

Casamento e separação de mãos dadas na atualidade

Nos dias atuais, casamento vem facilmente entrelaçado com o

risco de separação. Diante de desentendimentos e de diferentes objetivos, a

maioria dos homens e das mulheres, transformados pela sociedade que

defende a desistência e o rompimento como solução adequada e vindoura,

voltam-se para seu individualismo deixando de lado a grande oportunidade de

ensinamento e evolução que a união conjugal fornece.

Na atualidade, as brigas entre casais, por diversas

circunstâncias, encaminham rapidamente as duas partes para a opção do

divórcio. Discussões por conta de liberdade para se sair com amigos, gravidez

indesejada, cuidados com os filhos pequenos, supostos interesses amorosos

relativos a outrem, recados enviados por pessoas próximas entendidos de

maneira precipitada, entre outros são motivos para que se pense no

rompimento. Situações como estas poderiam ser resolvidas apenas com a

confiança no parceiro.

Outra forte ameaça ao casamento é a mudança de objetivos.

Quando um indivíduo passa a planejar metas opostas às do parceiro e começa

a se arrepender das escolhas que fez em prol do relacionamento, abre-se uma

brecha para a ruína do casal. A pessoa muda o foco da vida apenas para si e

para as possibilidades que poderá ter a partir do fim da relação, esquecendo-se

da família e do que construiu. Questões estas em que a solução poderia ser

encontrada em um diálogo sincero.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 143

Page 145: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Concluindo, perante o desejo de casamento, os parceiros

devem refletir inúmeras vezes sobre o valor da compreensão, da manutenção

do amor, do planejamento harmonioso e da força diante das adversidades para

que coisas como a discordância acerca de diversos aspectos não crie um

desequilíbrio em sua relação, mas mostre o quanto é necessário que se

fortaleça constantemente a união a fim de se construir um trajeto de amor,

aprendizado e superioridade.

(E. da Silva) É possível observar a estruturação padrão tanto no nível do

parágrafo quanto no nível do texto. Isto é, pode-se dividir cada parágrafo em

tópico frasal, desenvolvimento e conclusão, como se pode identificar a mesma

segmentação no texto.

No primeiro parágrafo do texto, verificam-se o tópico frasal que

traz a tese que será defendida ao longo do texto como um todo: Nos dias

atuais, casamento vem facilmente entrelaçado com o risco de separação; o

desenvolvimento que apresenta brevemente os argumentos que serão

explorados no desenvolvimento do texto: Diante de desentendimentos e de

diferentes objetivos; e a conclusão que será retomada na conclusão geral do

texto: a maioria dos homens e das mulheres, transformados pela sociedade

que defende a desistência e o rompimento como solução adequada e vindoura,

voltam-se para seu individualismo deixando de lado a grande oportunidade de

ensinamento e evolução que a união conjugal fornece.

Nesse sentido, é importante ressaltar que os parágrafos do

desenvolvimento terão como tópico frasal o argumento propriamente dito e o

parágrafo final retomará, de forma sintética, todas as ideias tratadas no texto –

tese e argumentação – e apresentará uma conclusão, para a qual a

argumentação encaminha, podendo ser uma sugestão de solução para a

questão exposta ou mesmo uma análise lógica da situação, formando a

seguinte equação:

Primeiro Parágrafo = Introdução = Tópico Frasal (Tese) + Desenvolvimento

(argumento 1 e argumento 2) + Conclusão;

144 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 146: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Segundo Parágrafo = Tópico frasal (argumento 1) + Desenvolvimento

(embasamento do argumento 1) + Conclusão;

Terceiro Parágrafo = Tópico frasal (argumento 2) + Desenvolvimento

(embasamento do argumento 2) + Conclusão;

Quarto Parágrafo = Conclusão = Síntese das ideias do texto + Conclusão

Geral.

Para melhor compreensão dos alunos acerca dessas equações, o

monitor utiliza um vocabulário adequado ao nível do grupo: a tese é o que o

autor pensa sobre o assunto em questão, os argumentos são o porquê de o

autor pensar de tal maneira e a conclusão é a síntese de tudo o que será dito

somada à conclusão que o autor chega após analisar sua tese e seus

argumentos. Com isso, a linguagem fica mais simples e acessível, facilitando a

organização do pensamento do aluno, guiando-o na construção de seu

questionamento, sua reflexão.

No decorrer do semestre, são feitas análises de diferentes textos

contendo esta estrutura. O aluno é convidado a identificar a tese e os

argumentos; as diferentes formas de se embasar uma tese, isto é, os diferentes

argumentos que possam sustentar uma opinião.

Atividades práticas

Nesta seção, reúnem-se algumas atividades desenvolvidas ao

longo do curso de Redação do CLAC, expondo o caminho percorrido pelos

alunos: do parágrafo argumentativo para o texto.

O exercício abaixo foi retirado do material didático do primeiro

módulo do curso e tem como objetivo levar o aluno a identificar a estrutura

padrão do parágrafo.

Identifique, no parágrafo seguinte, a introdução (tópico frasal), o

desenvolvimento e a conclusão.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 145

Page 147: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

―As universidades, por uma série de razões, são, atualmente, as únicas

entidades realmente capacitadas a desenvolver pesquisa tecnológica no

país. Primeiro, porque dispõem de mão-de-obra abundante e relativamente

barata. Segundo, porque possuem não só os equipamentos como a

documentação exigida para este trabalho. E, terceiro, porque acumularam

uma razoável experiência através de uma série de projetos específicos,

alguns já em fase de aproveitamento industrial. O grande problema tem sido

criar mecanismos capazes de canalizar os projetos gerados nas

universidades para a indústria. Os problemas da indústria se concentram na

preocupação com prazos, vendas e lucros. A universidade, pelo contrário,

trabalha a longo prazo, muitas vezes indiferente aos aspectos cruciais como

custos, rentabilidade e obsolescência.‖

(Texto extraído de Revista Exame, 22.12.76)

No parágrafo acima, identificam-se as partes que constituem o

parágrafo padrão. O período As universidades, por uma série de razões, são,

atualmente, as únicas entidades realmente capacitadas a desenvolver

pesquisa tecnológica no país constitui o tópico frasal; o desenvolvimento está

contido no trecho Primeiro, porque dispõem de mão-de-obra abundante e

relativamente barata. Segundo, porque possuem não só os equipamentos

como a documentação exigida para este trabalho. E, terceiro, porque

acumularam uma razoável experiência através de uma série de projetos

específicos, alguns já em fase de aproveitamento industrial, no qual vemos os

três argumentos, corroborando a tese do autor, apresentada no tópico frasal;

em seguida, a conclusão, que corresponde ao trecho O grande problema tem

sido criar mecanismos capazes de canalizar os projetos gerados nas

universidades para a indústria. Os problemas da indústria se concentram na

preocupação com prazos, vendas e lucros. A universidade, pelo contrário,

trabalha a longo prazo, muitas vezes indiferente aos aspectos cruciais como

custos, rentabilidade e obsolescência, em que são tecidas as considerações

finais.

Em exercício subsequente, o aluno é convidado a identificar a

estrutura do seguinte texto argumentativo.

146 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 148: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

O texto a seguir é bastante claro quanto à determinação de cada uma de suas

partes e quanto às ideias contidas em cada um de seus parágrafos. Leia-o

atentamente e identifique o tema, a delimitação do tema, a tese e os

argumentos.

A qualidade de vida na cidade e no campo

É de conhecimento geral que a qualidade de vida nas regiões

rurais é, em alguns aspectos, superior à da zona urbana, porque no campo

inexiste a agitação das grandes metrópoles, há mais possibilidades de se

obterem alimentos adequados e, além do mais, as pessoas dispõem de maior

tempo para estabelecer relações humanas mais profundas e duradouras.

Ninguém desconhece que o ritmo de trabalho de uma

metrópole é intenso. O espírito é de concorrência, a busca de se obter uma

melhor qualificação profissional, enfim, a conquista de novos espaços lança o

ambiente urbano em meio a um turbilhão de constantes solicitações. Esse

ritmo excessivamente intenso torna a vida bastante agitada, ao contrário do

que se poderia dizer sobre os moradores da zona rural.

Por outro lado, nas áreas campestres há maior qualidade de

alimentos saudáveis. Em contrapartida, o homem da cidade costuma receber

gêneros alimentícios colhidos antes do tempo de maturação, para garantir

maior durabilidade durante o período de transporte e comercialização.

Ainda convém lembrar a maneira como as pessoas se

relacionam nas zonas rurais. Ele difere da convivência habitual estabelecida

pelos habitantes metropolitanos. Os moradores das grandes cidades, pelos

fatos já expostos, de pouco tempo dispõem para alimentar relações humanas

mais profundas.

Por tudo isso, entendemos que a zona rural proporciona a seus

habitantes maiores possibilidades de viver com tranquilidade. Só nos resta

esperar que as dificuldades que afligem os habitantes metropolitanos não

venham a se agravar com o passar do tempo.

(Texto adaptado do livro Técnicas Básicas de Redação, de

Branca Granatic.)

A tese está explicitada no primeiro parágrafo do texto. Os

argumentos deste texto são baseados no contraste entre a vida no campo e a

vida na cidade, levantando os seguintes pontos: o ritmo de trabalho, a

qualidade dos alimentos e a profundidade das relações interpessoais.

Utilizando cada um desses elementos por meio da técnica do contraste, o autor

do texto prova sua tese, explicitada logo no primeiro parágrafo, a de que a

qualidade de vida no campo é melhor à da cidade.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 147

Page 149: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

É interessante notar que, assim como o parágrafo do primeiro

exercício desta seção compõe-se de três argumentos, que ficam claros pelos

elementos coesivos primeiro, segundo e terceiro, este texto também apresenta

três argumentos, cada um deles desenvolvido em um parágrafo.

Além de exercícios de delimitação de estruturas, ao longo do

curso o aluno é levado a produzir parágrafos e textos, segundo a estrutura

padrão. A seguir, há a transcrição de um exercício, também constitutivo do

material didático do primeiro módulo, que envolve tanto a elaboração de

parágrafo quanto de texto.

1) Dado o seguinte tema (Sociedade):

a) Delimite-o, ou seja, faça um recorte do assunto indicando que aspecto(s)

será(ão) abordado(s);

b) Elabore uma tese, ou seja, uma frase verbal que contenha seu

posicionamento sobre o tema já delimitado.

2) Formule argumentos para a tese elaborada por você no exercício 1.

3) Agora, elabore o parágrafo introdutório do texto argumentativo.

4) Elabore o texto argumentativo. Lembre-se: você já dispõe da tese, de

argumentos e do parágrafo introdutório. A partir desses comandos, transcreve-se a produção de um aluno

do curso.

1. a) A falta de investimentos na saúde e educação e a desestruturação da

sociedade

b) O declínio da sociedade é causado pela falta de investimentos nas áreas de

saúde e educação

(Por que o declínio da sociedade é causado pela falta de investimentos nas

áreas de saúde e educação?)

2) 1º porque sem saúde, as famílias não desenvolvem atividades econômicas

que possibilitem recursos para investir em qualidade de vida: lazer, vestimentas

e alimentação.

2º porque uma população educada desenvolve o pensamento crítico, cobrando

seus direitos e cumprindo seus deveres.

3) No estudo das relações interpessoais, o ser humano tem por costume formar

aglomerados que denominamos sociedade. Existem diversos fatores que

avaliam o grau de desenvolvimento de uma sociedade, por exemplo, a saúde e

148 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 150: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

a educação. Normalmente, o declínio da sociedade é caudado pela falta de

investimentos nessas áreas.

4) A saúde exerce limitações ao bem-estar de qualquer indivíduo,

principalmente os que constituem famílias, pois, sem ela, os indivíduos ficam

limitados de poder exercer atividades econômicas. Assim, ficam

impossibilitados de investir em lazer, vestuários e alimentação.

Já a educação, tem o poder de gerar um pensamento crítico nas pessoas, visto

que, uma população educada possui condições de exigir seus direitos e

cumprir seus deveres. Com direitos e deveres garantidos, o convívio entre as

pessoas se torna melhor e a sociedade se desenvolve como um todo.

Logo, é necessário um investimento em políticas que visam a recuperação da

saúde e da educação. Isso porque, quando não se investe nessas áreas,

outros setores são afetados, tais como a criação de empregos, o cuidado com

o meio ambiente e a relação entre os indivíduos, que se torna muitas vezes

desrespeitosa. Ocorrendo os devidos investimentos a sociedade poderá se

desenvolver e os indivíduos poderão melhorar sua qualidade de vida.

(R. de Carvalho)

Esse exercício reflete bem o percurso seguido pelo curso de

redação. Uma vez que o aluno constrói o texto de forma fragmentada,

consegue perceber a função do parágrafo dentro do texto argumentativo, assim

como pode verificar, na prática, a ideia que aqui se defende, a de que a

estrutura do parágrafo se assemelha a estrutura do texto.

Considerações finais

Este artigo relata a experiência dos monitores do curso de

Redação do CLAC, enfatizando suas conquistas a partir do conhecimento

teórico adquirido no meio acadêmico e do procedimento metodológico adotado.

Ao longo do curso, ao trabalhar atividades diversas, o aluno

percebe a semelhança entre a estrutura padrão do micro texto e do macro

texto. Esta opção metodológica resulta na melhora significativa dos textos

produzidos pelos alunos, visto que eles passam a entender a necessidade de

planejar o seu texto. Além do planejamento, há também uma melhora

significativa na qualidade da argumentação, uma vez que, ao compreender

bem as partes de que se compõe o texto – tanto no nível micro quanto no

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 149

Page 151: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

macro –, o aluno também compreende de forma mais organizada e clara a

relação entre tese e argumentos.

O monitor do curso de Redação do CLAC explora também

distintas formas de produção de tese e de argumentos, o que, em um segundo

momento, no trabalho com a ligação entre os parágrafos, torna mais fácil a

tessitura da coesão textual.

Ao instrumentalizar o aluno, o monitor torna-se um facilitador do

processo de organização do fluxo das ideias. Neste percurso, o aluno passa a

se entender como um escritor e a diferenciar essa posição da posição de

locutor (oral), fator de suma importância para a construção de um texto fluido,

de fácil compreensão e impregnado das características da modalidade escrita.

Assim, a produção de textos escritos cultos formais passa a ser entendido

como um processo consciente e pautado no domínio de técnicas.

Por fim, é importante relatar que o monitor adota a estratégia da

reescritura, ou seja, o aluno é convidado a reescrever seus textos com base

nos comentários feitos pelo ele, procedimento que contribui para que o aluno

se perceba não apenas como um redator, mas também como um revisor de

seus próprios textos.

150 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 152: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Mestranda do programa de Linguística Aplicada da Faculdade de Letras da UFRJ.

2 Aluna do curso de graduação em Letras (Português – Literaturas) – UFRJ.

3 Professor Associado I do Setor de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ.

4 Bacharel e Licenciatura em Letras (Português – Literaturas) – UFRJ.

5 Ressalte-se que a utilização dos textos dos alunos é autorizada por eles. Partir da produção

do próprio alunado para introduzir conceitos e técnicas tem se revelado bastante produtivo.

Referências

ALBUQUERQUE, Camila Faro de e ABREU, Cybelle Borges de. Apostila de

redação 2. RJ, UFRJ:2010. Mimeo.

FÁVERO, Leonor; ANDRADE, Maria Lúcia e AQUINO, Zilda. In: Elias, Vanda

Maria (org.). Reflexões sobre oralidade e escrita no ensino de língua

portuguesa. Ensino de língua portuguesa: oralidade, escrita, leitura. SP:

Contexto, 2014

FIGUEIREDO, Luiz Carlos. A redação pelo parágrafo. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1998.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna: aprendera escrever,

aprendendo a pensar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1975.

LIMA, Bruno C.; ABREU, Cybelle B. de; TEIXEIRA, Diego P.; NORONHA,

Fernando F. S.; FARIA, Helena G. T. de; FEREIRA, Michelli B.; NOGUEIRA,

Rafael G.; LEITE, Tatiane M. F.; PAULA, Mayara N. de.; OLIVEIRA, Sabrina

de. Apostila de redação 1. RJ, UFRJ:2010. Mimeo.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 151

Page 153: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Oralidade e Letramento. Da fala para a escrita:

atividades de retextualização. 8.ed. São Paulo: Cortez, 2007. pp. 15- 43.

PINILLA, Maria Aparecida; RIGONI, Maria Cristina e INDIANI, Maria Thereza.

Reflexões sobre texto e ensino (parte 1). RJ: UFRJ, 2007. Mimeo.

152 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 154: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

A AUSÊNCIA DE MARCAS DE CONCORDÂNCIA VERBAL EM TEXTOS

ESCRITOS POR ALUNOS DO CLAC: DESCRIÇÃO E ENSINO

THE ABSENCE OF VERB AGREEMENT MARKERS IN TEXTS WRITTEN

BY CLAC STUDENTS: DESCRIPTION AND TEACHING

Aline Fernandes Menezes¹

Antônio Anderson Marques de Sousa²

Juliano Leandro do Espírito Santo³

Mônica Tavares Orsini4

Resumo Tendo em vista a variabilidade dos padrões de concordância verbal (doravante CV) refutada pelo normativismo da tradição gramatical, este trabalho tem como principal objetivo a apresentação de atividades que visam à aprendizagem da regra geral de concordância verbal referente à escrita culta. Com base em trabalhos variacionistas sobre o tema (Graciosa, 1991; Vieira, 2011; Brandão e Vieira, 2012; Vieira e Freire, 2014), desenvolvemos uma análise das sentenças produzidas pelos estudantes que apresentam o cancelamento da marca de CV nos referidos textos. Tal descrição viabiliza a elaboração de exercícios específicos, que possibilitam ao aluno identificar a presença das marcas de concordância em contextos linguísticos diversos, sendo assim instrumento fundamental para o aprimoramento da produção de textos escritos formais. Palavras-chave: sociolinguística e ensino; concordância verbal; escrita culta.

Abstract Given the variability of verb agreement patterns (henceforth VA) refuted by the normativism of traditional grammar, the main purpose of this paper is to present activities that aim for the learning of the verb agreement general rule employed in formal writing. Based on variationist papers on the subject (Graciosa, 1991; Vieira, 2011; Brandão and Vieira, 2012; Vieira and Freire, 2014), we developed an analysis of the sentences produced by some Language Courses Open to the Community (CLAC) students in which VA markers are dropped. Such description is an essential tool to the enhancement of formal written text production inasmuch as it enables the development of specific exercises that allow the student to identify the presence of the agreement markers in several linguistic contexts. Keywords: sociolinguistics and teaching; verb agreement; formal writing.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 153

Page 155: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Introdução

No Português Brasileiro, a aplicação ou não da regra canônica

de concordância verbal constitui um fenômeno de natureza morfossintática

que diferencia a fala de indivíduos de maior grau de letramento da fala de

menos letrados. Em virtude deste fato, a ausência de marcas de CV está,

frequentemente, associada ao mau uso do idioma, podendo, assim,

sentenciar um falante a sofrer um preconceito sutil, embora altamente político

e socialmente segregador: o preconceito linguístico.

Por outro lado, as pesquisas linguísticas passaram a observar o

fato por uma ótica diferente: a científica. Os estudos sociolinguísticos, ao

legitimarem as variantes linguísticas, relativizam, por exemplo, conceitos já

cristalizados no imaginário social, como, por exemplo, o de ―erro‖.

No que tange ao fenômeno em estudo, diversos trabalhos

revelam que a marcação de CV não é categórica em nenhuma variedade da

nossa língua, ocorrendo, inclusive, na fala de indivíduos mais letrados. A

análise de Graciosa (1991, apud Vieira, 2011), com dados de fala culta,

mostra que a regra de aplicação da CV não é categórica, havendo fatores

linguísticos que atuam na ausência de marca de concordância.

Neste contexto, este artigo investiga o fenômeno variável da

CV, buscando compreender os fatores que favorecem a ausência de marca

de concordância em textos argumentativos escritos por alunos dos cursos de

Redação 1 e 2 do CLAC (Cursos de Línguas Aberto à Comunidade). A

descrição desses dados permite-nos elaborar um material didático específico

para os contextos que favorecem a não marcação da regra de CV,

contribuindo para a implementação da regra, tida como padrão, na produção

escrita do aluno, já que textos escritos formais, como uma redação, sugerem

a sua aplicação.

154 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 156: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

A concordância verbal na tradição gramatical

É comum, entre os compêndios gramaticais, o objetivo de

ditar/apresentar normas que regulam o bom uso da língua. Assim, é

consensual entre eles o estabelecimento da regra de que o verbo deve se

conformar em número e em pessoa com o sujeito. A esse respeito, Cunha e

Cintra (2001, p. 496) estabelecem que ―a solidariedade entre o verbo e o

sujeto, que ele faz viver no tempo, exterioriza-se na CONCORDÂNCIA, isto

é, na variabilidade do verbo para conformar-se ao número e à pessoa do

sujeito.‖.

Seguindo a mesma ideia, Bechara (2009, p. 656) concebe a CV

da seguinte forma:

Em português, a concordância consiste em se adaptar a palavra

determinante ao gênero, número e pessoa da palavra determinada. Diz-se

concordância verbal a que se verifica em número e pessoa entre o sujeito (e

às vezes o predicativo) e o verbo da oração.

A contribuição da Sociolinguística Variacionista para o ensino da

concordância verbal

Firmada na década de 1960 e liderada pelo linguista

estadunidense William Labov, a Sociolinguística Variacionista estuda a língua

em uso, tendo em vista a legitimação das variantes linguísticas existentes em

qualquer língua natural por meio da descrição dos fatores que determinam

sua concretização (cf. Alkmin, 2007; Mollica e Braga, 2003; Pagotto, 2011)

Partindo do pressuposto de que ―a língua é um objeto

heterogêneo, sistematicamente ordenado, em constante mudança que se

propaga no decorrer de um período de tempo e cujo desenvolvimento é fruto

da correlação de fatores linguísticos e sociais.‖ (Orsini 2003, p. 46), postula-

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 155

Page 157: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

se que usos linguísticos equivocadamente chamados de ―erros‖ são, na

verdade, variantes de um dado fenômeno linguístico.

Com isso, verificamos que, entre língua e sociedade, existe uma

intrínseca relação de influência, em que a segunda determina os casos de

variação e mudança da primeira. Toda comunidade é caracterizada pelo

emprego de diferentes maneiras de falar/ escrever, o que configura as

variedades linguísticas. A língua é, pois, uma instituição social cujo caráter

mutante lhe é inerente. Dentro dessa perspectiva, as variantes são formas

linguísticas que coexistem, sem que haja mudança de significado.

O fato é que, na vida social, invariavelmente, umas formas são

dotadas de prestígio em detrimento de outras. Porém, isso não significa, em

termos linguísticos, que uma variante é melhor ou pior do que outra. Na

verdade, elas são legitimadas pelo sistema linguístico, dado que se realizam

de forma regular / sistemática e são linguística e socialmente condicionadas.

Enquanto fenômeno variável, a concordância pode se

concretizar ou não na fala e/ou escrita dos usuários da língua em função de

fatores diversos de natureza linguística ou social. A título de ilustração,

observemos o seguinte exemplo:

(1) As meninas brincam no quintal.

(2) As menina brinca no quintal.

Em (1), observamos que houve marcação da regra de

concordância verbal, uma vez que as desinências verbais de número e de

pessoa se harmonizam com o sujeito em questão. É, pois, um uso cânone da

regra variável de CV, mas, diferentemente do que muitos pensam, a forma

variante em (2) é tão legítima quanto a forma em (1). Desta forma, é

recorrente na fala popular a presença de marca de plural no constituinte mais

à esquerda, havendo cancelamento de marca nos constituintes seguintes. Tal

comportamento decorre da máxima que atesta que ―marcas levam a marcas,

zeros levam a zeros‖.

156 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 158: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Vieira (2011), ao comparar a frequência da presença de marca

de concordância na fala de analfabetos ou semianalfabetos do norte

fluminense à obtida por Graciosa (1991), confirma que o grau de

escolaridade do falante é fator determinante na presença ou não da marca de

concordância verbal, conforme mostram os gráficos a seguir:

Gráfico 1: Grau de realização da regra de concordância verbal na variedade ―culta‖ carioca e

nos dialetos ―populares‖ do estado do Rio de Janeiro. Vieira (2011, p. 88).

O Gráfico 1 traduz o alto percentual de realização de marca de

CV entre falantes cultos (89%), se comparado ao encontrado nos dialetos

populares do estado do Rio de Janeiro (24%). Ao estudar o fenômeno na fala

de comunidades do norte fluminense, Vieira (1995) aponta alguns fatores

linguísticos como favorecedores da não realização da marca de CV:

a) Posição do sujeito em relação ao verbo: quando anteposto, favorece a

realização da marca de CV; quando posposto, favorece a ausência da marca

de CV;

b) Distância entre o núcleo do sintagma nominal sujeito e o verbo: uma maior

quantidade de material interveniente entre esses constituintes favorece a não

realização da marca de CV;

c) Paralelismo nos níveis oracional e discursivo: para o primeiro, um menor

número de marcas explícitas de plural no sujeito leva à ausência de marcas

de plural no verbo; para o segundo, a ausência da marca de plural em um

verbo que faça parte de uma série discursiva leva à ausência da marca de

plural no verbo seguinte;

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 157

Page 159: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

d) Animacidade do sujeito: sujeitos de referência animada, que, em geral,

recebem papel temático de agente, favorecem a realização da marca de

plural no verbo; sujeitos de natureza inanimada não favorecem essa

marcação;

e) Saliência fônica: no que diz respeito à diferença de material fônico entre as

formas singular e plural, as formas verbais com maior grau de diferença

fônica tendem a manter as marcas de concordância;

Tendo em vista o fato de os alunos em processo de letramento

reproduzirem, muitas vezes, marcas da oralidade em sua produção textual

escrita, nossa hipótese é a de que os fatores favorecedores da ausência de

marca de CV descritos acima atuem de forma decisiva para o cancelamento

da marca de CV nos textos escritos em análise. A fim de confirmar ou não

esta hipótese, fizemos um levantamento das sentenças em que houve

supressão de marca de CV para, partindo desta realidade, elaborarmos

atividades didáticas mais eficientes, que ajudem o aluno a recuperar a marca

de CV em textos escritos que exijam maior grau de monitoramento, no que

tange às normas gramaticais.

Metodologia

Nossa pesquisa pautou-se na análise de um corpus constituído

de 24 textos argumentativos produzidos por alunos do projeto CLAC,

coletados durante o primeiro semestre de 2013, a partir de diferentes

propostas de discussão.

O trabalho se desenvolveu da seguinte forma:

1. Leitura das 24 redações e coleta das ocorrências, em que houve

cancelamento da marca de CV;

2. Análise qualitativa das ocorrências e sistematização dos fatores

linguísticos que parecem atuar no favorecimento da ausência da

marca de CV;

158 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 160: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

3. Análise quantitativa da interferência dos fatores linguísticos no

favorecimento da ausência da marca de CV;

4. Elaboração de atividades que focalizem os contextos linguísticos que

parecem favorecer a ausência da marca de CV na produção dos

textos dos alunos do CLAC.

Vale destacar que os textos foram escritos por alunos dos níveis

I e II do curso de redação cujo público costuma ser bastante variado. No caso

deste trabalho, os alunos, em geral, apresentaram maior nível de

escolaridade: havia poucos alunos de 3º ano do ensino médio, seguidos por

pessoas já graduadas (professores, advogados, psicólogos) e por estudantes

universitários de diversos cursos: letras, pedagogia, ciências sociais,

administração pública e outras áreas.

Análise de dados

Primeiramente, é importante salientar que este estudo não

constitui uma pesquisa variacionista, já que não confronta as variáveis

linguísticas em questão: presença x ausência de CV. Ao contrário, nosso

objetivo é o de focalizar apenas as construções em que houve cancelamento

da marca de concordância para, a partir de um levantamento quantitativo e

qualitativo dos dados, elaborar atividades que contribuam para a apreensão

da regra geral de concordância prescrita pela tradição gramatical.

Nesta perspectiva, foram encontrados 19 dados em que houve

o cancelamento da marca de concordância. Atribuímos o baixo número de

ocorrências ao perfil social dos alunos: o maior grau de letramento dos

alunos contribui para uma maior preocupação do produtor com os aspectos

formais do texto.

Três são os fatores que parecem atuar de forma decisiva para a

ausência de marca de CV, a saber: a) saliência fônica, isto é, a diferença de

material fônico entre as formas singular e plural dos verbos, b) distância entre

o núcleo do SN sujeito e o verbo, em que quanto maior a distância entre

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 159

Page 161: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

esses dois elementos, maiores são as chances de apagamento da marca de

CV, e c) posição do sujeito em relação ao verbo, em que sujeitos pospostos

ao verbo favorecem o cancelamento da marca de concordância.

Do total de ocorrências com ausência de marcas de CV, o fator

distância entre o sujeito e o verbo foi o mais recorrente, com 53% do total,

seguido pelo fator saliência fônica, com 26%. A posição do sujeito em relação

ao verbo mostrou-se significativa em 21% dos dados.

Distribuição do total de ocorrências

de ausência de marca de CV por fator linguístico

Gráfico 2: distribuição percentual de dados com base no fator

condicionante a não marcação de CV

Distância entre o núcleo do sintagma nominal sujeito e o verbo

O fator distância entre o núcleo do SN sujeito e o verbo

mostrou-se bastante produtivo, tendo sido coletadas 10 ocorrências. A

presença de material interveniente entre o sujeito e o verbo faz com que as

marcas de concordância sejam canceladas, por conta do distanciamento

entre esses dois constituintes (exemplo 4), ou ainda que a concordância seja

feita com o termo mais próximo (adjunto ou complemento) e, não, com o

núcleo do sujeito (exemplos 5 e 6).

(4) As variantes da língua, como por exemplo sotaques e gírias,

transforma a língua falada diferente da língua escrita normatizada. (A. C. R.,

Red. 1)

53% 26%

21%

160 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 162: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

(5) A ingestão de bebidas alcoólicas afetam a capacidade do usuário.

(A. C. R., Red. 1)

(6) A proporção dos casos de corrupção no país têm sido tão forte que a

palavra ―política‖ já gera um certo desconforto na população. (L. L., Red. 2)

Em (4), a existência do constituinte de valor circunstancial

(―como por exemplo sotaques e gírias‖) favorece o apagamento da marca de

concordância. Já em (5) e (6), a concordância se estabelece com o termo

mais próximo e não com o núcleo do sujeito, como prescreve a tradição

gramatical.

Saliência fônica

Houve 5 ocorrências de ausência de marca de CV

possivelmente ativada pelo fator saliência fônica. Segundo observa Vieira

(2011, p. 89), quanto menor é a saliência fônica entre as formas singular e

plural dos verbos, mais fácil se torna a supressão das marcas de

concordância. Logo, formas como ―fala/falam‖, em que há baixa saliência

fônica, são mais propícias ao cancelamento da marca de CV do que formas

em que a saliência fônica é maior, como em ―é/são‖.

Em (7), observamos que a supressão da marca de CV é

possivelmente favorecida pela baixa saliência fônica das formas ―tinha /

tinham‖.

(7) Com a escravidão, os negros não tinha direito a estudos. (L. N.,RED.1)5

Posposição do sujeito em relação ao verbo

De acordo com Vieira (2011, p. 90), os sujeitos pospostos

favorecem a ausência de marcas de concordância. Em nosso corpus, foram

identificadas 4 ocorrências, predominando dados com o verbo ser, como

evidencia o exemplo (8), em que o SN sujeito ―educação e instrução dos pais

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 161

Page 163: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

aos filhos‖ foi deslocado para depois da forma verbal ―será‖, favorecendo,

portanto, a não expressão das marcas de concordância.

(8) Para isso, será necessário educação e instrução dos pais aos filhos

para resguardá-los dos riscos da internet. (M. M., Red. 2)

Atividades em sala de aula

Os resultados da análise aqui desenvolvida mostram que é

fundamental a elaboração de atividades didáticas, em que os contextos

linguísticos acima descritos estejam presentes. Assim, propomos exercícios

que contribuam para a implementação da regra geral de concordância verbal

na produção de textos escritos formais, objeto de estudo do curso de redação

do CLAC. Foram elaborados diferentes exercícios, a fim de contemplar os

contextos que parecem atuar no cancelamento de marcas de concordância.

Para tal, foram escolhidos textos (ou fragmentos) de diferentes gêneros,

publicados em jornais de grande circulação.

EXERCÍCIO 1: Após a leitura do texto ―Manifestantes temem

novas ações de violência‖, (a) identifique orações em que o sujeito se

encontra depois do verbo, observando se há ou não marcas de concordância

entre os termos; (b) comente a concordância verbal estabelecida entre o

núcleo do sujeito e o verbo da oração principal do segundo período do texto.

162 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 164: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Após a leitura do texto, o professor deve orientar os alunos na

análise dos segmentos textuais em destaque, identificando o sujeito e o

verbo que entra em concordância com ele. Além disso, o professor deve

discutir a posposição do sujeito no segundo período do texto, fator que pode

levar à ausência da marca de CV.

EXERCÍCIO 2: Identifique o sujeito das frases sublinhadas e, em

seguida, reescreva-as de acordo com a ordem canônica do português

(Sujeito – Verbo), quando possível.

a) Sucesso, aí vai Rita Lee. Cantora comemora disco de ouro.

(Jornal ―O Globo‖, 06/07/2013)

b) Chegou sua vez de ganhar um intercâmbio em Seattle: basta

participar da promoção ―Redação de Ouro‖. (Jornal ―O Globo‖,

07/07/2013)

c)

O exercício 2 explora os chamados verbos inergativos e os

inacusativos, contextos que ainda favorecem a posposição do sujeito no

Português Brasileiro contemporâneo, que se configura numa língua que

prefere a ordem direta – SVO.

EXERCÍCIO 3: Identifique o sujeito da oração em destaque na

propaganda abaixo e, em seguida, levante hipóteses para explicar a ausência

de marca de concordância entre ele e o verbo.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 163

Page 165: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

No exercício 3, o professor deverá levar os alunos a refletir

sobre a baixa saliência fônica entre as formas ―leva / levam‖, fator que

propicia o cancelamento da marca.

Considerações finais

Este trabalho, fundamentado em estudos variacionistas acerca

do fenômeno da concordância verbal de terceira pessoa, objetivou analisar

as sentenças produzidas pelos alunos do curso de redação do CLAC, em que

se verifica a ausência da marca de concordância. Pretendemos, desta forma,

compreender o fenômeno, ao invés de simplesmente tratá-lo como um erro

(cf. Bortoni-Ricardo, 2004). Ainda que o curso pretenda capacitar o aluno a

produzir textos escritos formais, fazendo uso da norma culta, acreditamos

que tal objetivo só será alcançado se partirmos do pressuposto de que

qualquer variante linguística, presente no contexto de aula, é legítima e deve

ser observada pelo professor. Somente por meio desta metodologia, será

possível produzir exercícios que ajudem o aluno a dominar uma regra que

não faz parte da sua gramática internalizada.

164 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 166: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Notas

1 Aluna do curso de graduação em Letras da UFRJ.

2 Aluno do curso de graduação em Letras da UFRJ.

3 Aluno do curso de graduação em Letras da UFRJ.

4 Professora Associada I de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Vernáculas da

FL da UFRJ.

5 Entre parênteses, indicam-se as iniciais do nome do aluno bem como o seu nível.

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166 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 168: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

LÍNGUA E ENSINO: OS POSSESSIVOS DA SEGUNDA PESSOA DO

PLURAL NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

LANGUAGE AND EDUCATION: POSSESSIVE SECOND PERSON PLURAL

IN BRAZILIAN PORTUGUESE

Dalila Mendes dos Santos de Assis1

Leonardo Lennertz Marcotulio2

Resumo O objetivo deste artigo é investigar como se apresenta o quadro de possessivos no português brasileiro (PB), sobretudo em relação à 2ª pessoa do plural (2PL). A partir de uma amostra de fala do PB do século XXI (Corpus do Projeto Concordância, VIEIRA, BRANDÃO e MOTA, 2008), o nosso propósito é verificar se ocorre variação entre as formas seu e de vocês como possessivo de 2PL, como apontado por Lopes (2007), ou se a forma de vocês é a única estratégia possessiva produzida, como defende Perini (2010). Além disso, também voltamos a atenção para o tratamento dado aos possessivos em manuais de Português como Língua Estrangeira (PLE), com o intuito de observar em que medida tais materiais se aproximam / afastam da tradição gramatical e de abordagens mais descritivas que consideram a realidade linguística do PB. Palavras-chave: possessivos; 2PL; de vocês; português brasileiro; PLE.

Abstract This paper aims at investigating the use of possessives in Brazilian Portuguese (PT-BR), especially concerning the 2nd person plural. From a twenty-first century sample of speech in PT-BR (Corpus from of the ‗Agreement Project‘, Vieira, Brandão & Mota, 2008), our intent is to verify if there is a variation between the forms seu (your; plural) and de vocês (of yours; plural) as possessive of the 2nd person plural, as indicated by Lopes (2007), or if the form de vocês (of yours; plural) is the only possessive strategy used, as Perini (2010) argues. We also focus on the ways in which the coursebooks of Portuguese as foreign language (PFL) approach the possessive forms so as to observe the extent to which those textbooks (do not) follow grammatical tradition and other more descriptive approaches to the linguistic reality of the PT-BR. Keywords: possessive; 2nd person plural; of yours; Brazilian Portuguese; PFL.

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 167

Page 169: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Introdução

Para a perspectiva tradicional, os pronomes possessivos são

definidos como itens linguísticos capazes de fazer referência às pessoas do

discurso, apresentando-as como possuidoras de algo. Vejamos abaixo o

quadro de possessivos do português apresentado por Rocha Lima (1999),

Cunha (1992) e Bechara (2010), em função do pronome pessoal

correspondente:

Quadro 1. Quadro de pronomes pessoais e possessivos do português,

adaptado das gramáticas tradicionais de Rocha Lima (1999:113), Cunha

(1992:314) e Bechara (2010:134).

Pronome Pessoal Pronome Possessivo

1 SG: eu meu / minha / meus /

minhas

2 SG: tu teu / tua / teus / tuas

3 SG: ele / ela seu / sua / seus / suas

1 PL: nós nosso / nossa / nossos /

nossas

2 PL: vós vosso / vossa / vossos /

vossas

3 PL: eles / elas seu / sua / seus / suas

Em relação aos pronomes pessoais, observamos que as formas

eu e nós se referem à 1SG e 1PL, respectivamente. Para a 3P, encontramos

as formas ele e ela, para o singular, e eles e elas, para o plural. Já a 2P

mantém os pronomes originais herdados do latim tu e vós, para o singular e

plural, respectivamente. As formas possessivas, por sua vez, se relacionam

aos traços de número e pessoa do pronome pessoal referente. O pronome

meu, por exemplo, corresponde ao pronome pessoal da 1SG eu; teu

corresponde ao pronome pessoal da 2SG tu; os possessivos nosso e vosso

são referentes dos pronomes de 1PL nós e de 2PL vós, respectivamente; por

168 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 170: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

fim, o possessivo seu faz referência aos pronomes pessoais de 3P ele, ela,

eles e elas. As formas possessivas ainda podem apresentar flexão de gênero e

número, em função dos traços do nome com o qual concordam, como em meu,

minha, meus e minhas, embora todas pertençam à mesma célula, pois têm

como referente o pronome eu.

As novas formas pronominais de 2P do português você e vocês,

nas gramáticas analisadas, não são tratadas como pronomes pessoais, mas

como pronomes de tratamento. Pelo fato de essas novas formas terem tido a

sua origem em sintagmas nominais, apresentam o seu paradigma verbo-

pronominal com formas de 3P. Assim, ainda que se refiram semanticamente à

2P, as formas você e vocês apresentam como possessivos os pronomes seu,

sua, seus e suas.

Como se pode ver, as gramáticas tradicionais somente

consideram a variante modelar, com a apresentação dos possessivos simples,

e não incluem em seu quadro de possessivos as novas formas que codificam

posse no português: os possessivos perifrásticos encabeçados pela preposição

de ou, nos termos de Castro (2006), os de-possessivos. Diferentemente da

visão tradicional, de modo a entender a complexidade e a pluralidade que

caracterizam qualquer sistema linguístico, torna-se necessário considerar os

processos de mudança linguística na história do português.

Desde o período arcaico, observamos reorganizações no quadro

pronominal, no que se refere a formas pronominais que ocupam a posição de

sujeito, com reflexos que resultaram em rearranjos no quadro dos respectivos

pronomes possessivos. De uma forma geral, ao lado dos possessivos simples,

oriundos do latim vulgar (VÄÄNÄNEM, 1988), novas formas possessivas – os

de-possessivos – passaram a integrar o quadro de possessivos do português.

O primeiro desses movimentos se dá no português arcaico. Com

a inserção das novas formas pronominais de 3P ele, ela, eles e elas

(TARALLO, 1994), as formas seu, seus, sua e suas, oriundas dos pronomes

reflexivos latinos, passam a se comportar como possessivos correspondentes

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 169

Page 171: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

das novas formas pronominais. Pelo fato de seus traços morfológicos

evidenciarem os traços morfológicos de número e gênero do nome que

acompanham e não serem sensíveis aos traços de número e gênero do

possuidor, o uso das formas possessivas de 3P permitem uma situação de

ambiguidade. Nesse contexto, segundo Mattos e Silva (2001), numa tentativa

de desfazer a ambiguidade referencial (se singular, se plural, se masculino, se

feminino), teria sido introduzida na língua arcaica a primeira série de de-

possessivos: dele, dela, deles e delas.

Além desses de-possessivos de 3P, o português incorporou

outras formas ao longo de sua história. No que se refere à 2P, através de um

processo de gramaticalização iniciado ainda na época medieval, tem-se a

inserção da forma de tratamento Vossa Mercê, produto da reanálise do

sintagma possessivo vossa mercê em forma pronominal de tratamento, que

gerará, posteriormente, o pronome você (MARCOTULIO, 2012; LOPES, 2007).

Em relação à 1P, dá-se um processo semelhante, de

gramaticalização de sintagmas nominais em sintagmas com comportamento

pronominal, com a forma a gente (LOPES, 2007). A inserção dessas novas

formas gramaticalizadas na língua é acompanhada pela introdução de novas

formas de de-possessivos: de vocês, para a 2PL; e da gente, para a 1PL.

É interessante observar que as novas formas possessivas

introduzidas não provocam, necessariamente, o descarte dos respectivos

possessivos originais simples. Tais formas – possessivos simples e novos de-

possessivos – coexistem durante algum tempo, podendo o quadro de

possessivos sofrer novos rearranjos e especializações de uso. Posteriormente,

uma das formas pode ser eliminada da língua.

Em virtude dos rearranjos observados no sistema pronominal

(formas pessoais e possessivas) ao longo da história do português, Lopes

(2007) postula o seguinte quadro para o português brasileiro (PB):

170 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 172: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Quadro 2. Pronomes pessoais e possessivos (simples e de-possessivos) do

PB (adaptado de Lopes, 2007:116).

Pronome Sujeito Possessivo

simples

De-possessivo

eu meu -

tu | você teu | seu de você

ele seu dele

nós | a gente nosso da gente

vocês seu de vocês

eles seu deles

Podemos observar, no quadro acima, que a única pessoa que se

mantém exatamente como nos primeiros estágios do português é a 1SG, com

o pronome reto eu e o possessivo correspondente meu. No que se refere à 3P,

encontramos os pronomes pessoais ele e eles, correlacionados com o

possessivo simples seu ao lado das formas de de-possessivos dele e deles. A

1PL mostra uma situação de coexistência de duas formas pronominais: ao lado

do pronome original nós, tem-se a nova forma gramaticalizada a gente. Para os

possessivos correspondentes, também verificamos a coexistência do

possessivo simples nosso e do de-possessivo da gente. Em relação à 2SG,

observamos a coexistência, para as formas pessoais, da forma original tu, ao

lado na nova forma gramaticalizada você. Em consequência, o quadro de

possessivo também apresenta as formas simples teu (oriunda da 2P original),

ao lado de seu (forma original do paradigma de você), assim como o de-

possessivo de você3. Por fim, a 2PL é representada pela forma vocês (em

detrimento da forma original vós) e pelos possessivos seu (forma original do

paradigma de vocês) e de vocês.

Perini (2010), no entanto, em sua Gramática do Português

Brasileiro, apresenta um quadro mais simplificado que o de Lopes (2007):

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 171

Page 173: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Quadro 3. Pronomes pessoais e possessivos (simples e de-possessivos) do

PB atual (adaptado de Perini, 2010:305).

Pronome Sujeito Possessivo

simples

De-possessivo

eu meu -

você seu -

ele - dele

nós nosso -

vocês - de vocês

eles - deles

De uma forma geral, chama a atenção, no quadro oferecido por

Perini (2010), a não coexistência de formas em uma mesma célula, tanto para

os pronomes pessoais, quanto para os pronomes possessivos. Assim, para a

2SG, consta somente a forma você e o possessivo simples seu; para a 3P

somente são apresentadas as formas de de-possessivos dele e deles; a 1PL

não registra a nova forma gramaticalizada a gente, nem como pronome

pessoal, nem como possessivo; e, por fim, para a 2PL, somente é apresentado

o de-possessivo de vocês.

Em uma discussão já iniciada em Perini (1985), haveria uma

tendência à especialização de formas, numa tentativa de evitar ambiguidades

referenciais na língua. Assim, de todas as formas gramaticalizadas de 2P e 3P

– você, vocês, ele, eles – que apresentam originalmente o possessivo simples

seu, somente uma delas poderá seguir com esse possessivo, como ocorre com

o pronome você, de modo que o possessivo não se torne ambíguo. Todas as

demais pessoas (vocês, ele, eles) apresentam, por consequência, somente de-

possessivos (de vocês, dele, deles).

Temos, assim, duas visões sobre o assunto que merecem ser

contrastadas. Em relação ao possessivo de 2PL, em correspondência à forma

vocês, Lopes (2007) admite uma situação de variação entre seu e de vocês.

172 ▪ Revista Línguas & Ensino | Faculdade de Letras - UFRJ | 2015

Page 174: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Por outro lado, para Perini (2010), o possessivo simples seu se

especializa para a 2SG, e o único possessivo encontrado para a 2PL é o de-

possessivo de vocês. Uma possibilidade de conjugação das duas análises

reside no fato de, como é natural em todos os processos de implementação de

novas formas, a inserção do de-possessivo de 2PL não ter provocado a

eliminação das formas que antes desempenhavam tal função, como o

possessivo simples seu, do paradigma original de vocês, e até mesmo o

possessivo original de 2PL vosso. Assim, é possível que, dentre os dois

possessivos simples, a forma vosso tenha sido eliminada mais rapidamente do

PB, ao passo que se mantém no Português Europeu – PE (CASTRO, 2006). O

quadro postulado por Lopes (2007) mostraria, assim, um estágio em que ainda

convivem a forma simples seu e o novo possessivo de vocês. Posteriormente,

tal como mostra Perini (2010), o possessivo seu passa a restringir-se somente

à 2SG, sendo a 2PL representada apenas pelo de-possessivo de vocês.

Diante do quadro exposto, investigaremos, a partir de uma

amostra de fala, se há ou não variação entre seu e de vocês em relação à 2PL

no PB atual. Além disso, a nossa segunda questão refere-se ao tratamento que

é dado ao quadro de possessivos do PB em manuais de Português como

Língua Estrangeira (PLE). Desejamos, assim, verificar se existem diálogos

entre o ensino de PLE e as pesquisas linguísticas que versam sobre os

rearranjos no quadro de possessivos do português.

Em busca de evidências empíricas: o português brasileiro no século XXI

Com o intuito de averiguar se há ou não variação na forma

possessiva de 2PL, no PB falado do século XXI, recorremos ao Corpus do

Projeto Concordância (CPC), disponível em

http://www.concordancia.letras.ufrj.br/, elaborado por Vieira, Brandão e Mota

(2008).

Utilizamos, neste trabalho, todas as entrevistas brasileiras

disponíveis no CPC, sendo 18 gravações da Zona Sul da capital do Rio de

Janeiro, Copacabana e adjacências, e 18 gravações da cidade de Nova

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 173

Page 175: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Iguaçu, também vizinha da capital, perfazendo um total de 36 entrevistas.

Foram considerados todos os dados de seu e de vocês apenas das falas dos

informantes e não dos documentadores.

É importante deixar claro, no entanto, que conhecemos a

limitação de nossa amostra e que não pretendemos oferecer uma visão

panorâmica considerando a totalidade do PB. Assim, o que estamos

chamando, aqui, de PB, se refere a amostras de fala coletadas, na primeira

década do século XXI, no Rio de Janeiro. Pelo fato de o corpus ser

sociolinguisticamente estratificado, os informantes entrevistados nasceram nas

localidades de Nova Iguaçu e Copacabana, cujos pais são também

provenientes dessas localidades. Portanto, acreditamos que os nossos dados

sejam, ao menos, representativos desses dialetos. Nesse sentido, estamos

conscientes de que a nossa amostra, como qualquer amostra constituída para

estudos linguísticos, será sempre uma fotografia da dinâmica de algum ponto

específico e nunca abarcará nenhum tipo de totalidade.

Outro esclarecimento que merece ser mencionado é o fato de não

ser o nosso objetivo empreender uma análise de cunho variacionista nos

moldes labovianos (LABOV, 1994; 2001). De antemão, pela própria natureza

das fontes, já esperávamos que a quantidade de dados disponíveis seria

ínfima. Em entrevistas sociolinguísticas, como as realizadas pelo Projeto

Concordância, os documentadores fazem perguntas aos informantes sobre

temas diversos, de modo a coletar a maior quantidade possível de material

linguístico para análise. Assim, nessas situações de perguntas e respostas,

dificilmente encontramos ocorrências de formas exclusivas da 2P, tanto

singular quanto plural, e, quando registradas, geralmente apresentam valor

genérico, sem referência definida. Nesse sentido, a existência de diversas

lacunas, em relação à faixa etária, grau de escolaridade e gênero,

impossibilitaria qualquer tentativa de realização de uma descrição que

controlasse fatores extralinguísticos. O nosso único intuito é observar como se

configura o quadro dos possessivos da 2PL no PB do século XXI, de modo a

verificar se existe ou não variação (LOPES, 2007) ou se o PB atual já se

mostra em estágio final do processo de mudança, com predomínio absoluto do

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Page 176: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

de-possessivo de vocês em detrimento do possessivo simples original seu

(PERINI, 2010).

Nas entrevistas analisadas, encontramos um total de 19 dados de

possessivos da 2PL, que podem ser distribuídos da seguinte maneira:

Tabela 1. Ocorrência das formas seu e variantes e de vocês como possessivos

da 2PL entre os brasileiros entrevistados pelo Projeto Concordância.

seu e variantes de vocês

4/19 – 21% 15/19 – 79%

Conforme aponta a tabela 1, de todas as ocorrências registradas, a

utilização do de-possessivo de vocês se mostra como mais produtiva, com 79%

do total dos dados, ao passo que o possessivo seu e variantes contabiliza 21%

dos casos. Vejamos alguns exemplos de de vocês:

(1) a ... aí: eu falei ―como assim não houve feedback de vocês que não sabem explicar se

a gente tá indo pelo caminho certo ou pelo caminho errado‖.

(CPC, Copacabana, Faixa A, mulher, instrução 3)

(2) não sei se perceberam que era português / que era a brasileiro... cara... uns jovens

assim da idade de vocês não mais novo mais novo que você... dezoi::to dez dezesseis a::nos

(CPC, Copacabana, Faixa B, homem, instrução 1)

(3) isso e isso se eles pegarem vocês... então se mãe de vocês tá falando pra vocês não

irem...

(CPC, Nova Iguaçu, Faixa C, mulher, instrução 1)

De modo a exemplificar o estatuto de possessivo da forma de

vocês, tomaremos o dado (3) como representante dos demais dados.

Aplicando o teste sintático da substituição, podemos substituir todo o sintagma

nominal por um pronome pessoal de 3P, o que comprova que de vocês

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 175

Page 177: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

pertence ao sintagma nominal a mãe de vocês (4a-b). Além disso, podemos

substituir o de-possessivo de vocês por um possessivo simples, o que

evidencia o seu estatuto de possessivo (4c):

(4) a. se [mãe de vocês] tá falando pra vocês não irem...

b. se [ela] tá falando pra vocês não irem...

c. se sua / tua / minha / nossa mãe tá falando pra vocês não irem...

Quanto aos dados de possessivos simples seu e variantes,

verificamos que todos os quatro dados encontrados não apresentam

claramente uma leitura de 2PL. Em outras palavras, as ocorrências de seu

constituem casos de ambiguidade de natureza referencial, podendo apresentar

como referentes a 2SG ou a 2PL. Vejamos, a seguir, um exemplo ilustrativo:

(5) Informante: vocês são bem jovens qual sua idade?

Documentador 1: [ah::: é dele né

Documentador 2: vinte e cinco

(CPC, Copacabana, Faixa B, homem, instrução 1)

O dado (5) mostra como o pronome seu pode, de fato, causar

uma dupla leitura, de 2SG ou de 2PL. É possível que seu seja interpretado das

seguintes formas neste caso: (i) como 2SG, que pode corresponder ao

documentador 1 ou ao documentador 2, ou (ii) como 2PL, pois o informante

poderia ter se dirigido a ambos. A dúvida do documentador 1 quanto a quem o

informante se referia – já que havia dois documentadores à sua frente – coloca

em evidência o caso da ambiguidade que esse possessivo pode causar.

Em síntese, podemos concluir que a construção de vocês como

possessivo de 2PL é a estratégia mais produtiva no PB falado do século XXI.

Ainda que levante problemas em relação à natureza do referente, o possessivo

seu ainda é registrado, com produtividade limitada, como estratégia possessiva

para a 2PL. Tal resultado corrobora a visão de Lopes (2007), a partir da qual

haveria variação entre seu e de vocês no PB, em detrimento da exclusividade

da construção de vocês apresentada por Perini (2010).

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Page 178: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Cabe-nos, agora, analisar os manuais de PLE, a fim de observar

como estes optam por apresentar o possessivo de 2PL: se conforme as

gramáticas tradicionais ou se considerando a realidade linguística do PB.

O caso do possessivo de 2PL em Manuais de PLE

A área de PLE consiste no ensino da língua portuguesa para

estrangeiros que não a possuem como língua materna e desejam aprendê-la

como uma segunda língua. Assim como um falante nativo da língua portuguesa

busca a aprendizagem de línguas estrangeiras como inglês, espanhol, francês,

italiano, entre outras, há, hoje, uma demanda pelo aprendizado do português,

principalmente do PB, como outro idioma.

Atualmente, tem ocorrido uma maciça propagação e

fortalecimento da língua portuguesa como língua no mundo digital. Nos últimos

anos, houve um aumento de 990% de usuários da internet e da tecnologia à

procura do português. Na rede social Facebook, essa língua já ocupa o terceiro

lugar de procura e uso, ficando atrás, apenas, do inglês e do espanhol (CRUZ,

2012, p. 20).

Dessa forma, emergem propostas de ações e projetos para

promover a integração da língua portuguesa, isto é, uma polarização de

esforços na difusão do português não só no mundo digital, mas, também, em

salas de aula e cursos para aquisição do português como língua estrangeira.

O português tem ganhado espaço na comunidade global e, assim,

existe a necessidade de os profissionais de Letras se prepararem e serem

preparados para este novo campo que tem ganhado forma e se consolidado

rapidamente. Em vista disso, é importante a estruturação precisa dos materiais

e manuais de PLE para uma melhor forma de ensino.

Assim, decidimos averiguar como se apresentam os pronomes

pessoais e os correspondentes possessivos em manuais de PLE do PB,

atentando especialmente para o caso da 2PL. Para tanto, foram selecionados,

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 177

Page 179: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

para esta análise, dois manuais de PLE: Muito Prazer – Fale o Português do

Brasil (FERNANDES et al, 2010) e Fala Brasil: português para Estrangeiros

(COUDRY e FONTÃO, 1997). O nosso objetivo é verificar até que ponto os

manuais de PLE se aproximam da abordagem tradicional, não mostrando a

realidade linguística do PB, e até que ponto se afastam delas, proporcionando

ao aluno um ensino mais real, calcado nas análises descritivas de fenômenos

do PB.

No primeiro manual, Muito Prazer – Fale o Português do Brasil

(2010), os pronomes são apresentados da seguinte maneira:

Quadro 4. Quadro de pronomes pessoais e seus possessivos correspondentes

apresentado pelo manual de PLE Muito Prazer – Fale o Português do Brasil

(2010:27).

Pronome Pessoal

Pronome Possessivo

Masculino feminino

singular/plural

eu meu(s) minha(s)

tu teu(s) tua(s)

você (ele/ela) seu(s) suas(s)

nós nosso(s) nossa(s)

vós vosso(s) vossa(s)

vocês (eles/elas) seu(s) sua(s)

Apesar de ter como subtítulo Fale o Português do Brasil, o manual

apresenta o pronome vós e a forma vosso como possessivo, embora saibamos

que tais formas não sejam correntes no PB falado atualmente (LOPES, 2007).

Vale chamar a atenção para o fato de o manual unir, por um lado, as formas

você e ele/ela e, por outro, as formas vocês e eles/elas na mesma célula. Um

estudioso da língua portuguesa pode entender que isso foi feito por uma

questão morfológica, mas pode não ser assim entendido por um estrangeiro

que está aprendendo a língua como outro idioma. Acreditamos que a melhor

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Page 180: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

apresentação do quadro dos pronomes deva ―sacrificar‖, em um primeiro

momento, a questão morfológica e privilegiar os traços de pessoa e número,

isto é, as informações que relacionam os pronomes aos participantes do

discurso. Tal como é apresentado, o quadro pode erroneamente sugerir a

leitura de que as formas você e vocês não são de 2P, mas sim de 3P.

Há, assim, avanços e incoerências. Por um lado, consideramos

como avanço o fato de terem sido introduzidas as novas formas pronominais

de 2P você e vocês. Por outro lado, ainda no que se refere aos pronomes

pessoais, a nova forma gramaticalizada de 1PL a gente não consta do quadro,

além de não termos a informação de que, em relação aos traços discursivos

dos pronomes, você ocupa a mesma célula que tu, vocês a mesma de vós e a

gente a mesma de nós. Quanto aos pronomes possessivos, o quadro em

questão em nada difere do quadro apresentado pelas gramáticas tradicionais.

Não observamos a presença de nenhum de-possessivo – a saber, dele, dela,

deles, delas, da gente e de vocês. No nosso caso em particular, o possessivo

referente à forma vocês ainda é apresentado como seu, sua, seus e suas, o

que, como mostramos a partir da análise das amostras de fala do PB do século

XXI, não condiz com a realidade plural do português brasileiro.

O manual Fala Brasil (1997), por sua vez, mesmo sendo mais

antigo, foi o que apresentou um quadro mais próximo ao PB atual:

Quadro 5. Quadro de pronomes pessoais e possessivos apresentado pelo

manual de PLE Fala Brasil (1997:10).

Pronomes Pessoais e Possessivos

eu meus(s), minhas(s)

(tu) teu(s), tua(s)

você seu(s), suas

ele dele [seu(s), suas(s)]

ela dela [seu(s), suas (s)]

nós nosso(s), nossa(s)

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 179

Page 181: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

vocês seu(s), sua(s), de vocês

eles deles [seu(s), sua(s)]

elas delas [seu(s), sua(s)]

Diferentemente do quadro apresentado no manual de PLE Muito

Prazer – Fale o Português do Brasil (2010), o manual Fala Brasil (1997)

apresenta um quadro que se aproxima mais da situação real do PB. Em

relação aos pronomes pessoais, as mesmas formas são apresentadas nos dois

manuais, com a diferença de que neste não há uma subcategorização por

células a partir de um critério morfológico. Em outras palavras, o tratamento

dado é mais neutro e cabe ao professor organizar esse quadro em sala de

aula, mostrando que formas pertencem a que pessoa do discurso. Vale dizer,

também, que nenhum dos dois manuais inclui a forma a gente no quadro dos

pronomes pessoais. Por fim, chama a atenção o fato de o manual Fala Brasil

(1997) não incluir o pronome vós, e, consequentemente, o possessivo vosso,

em seu quadro, o que o aproxima ao PB atual.

No manual Fala Brasil (1997), no entanto, diferentemente do

manual Muito Prazer – Fale o Português do Brasil (2010), já observamos a

inclusão de alguns de-possessivos, como dele e dela, para a 3SG, e deles e

delas, para a 3PL. Vemos, também, que o de-possessivo de 2PL de vocês faz

parte do repertório de possessivos. Cabe observar, no entanto, que nenhum

desses de-possessivos ocupam exclusivamente uma célula ou outra, mas

coexistem com os pronomes originais de 3P seu, sua, seus e suas,

aproximando-se ao quadro apresentado por Lopes (2007).

Em síntese, dos manuais de PLE analisados, podemos dizer que

o primeiro, Muito Prazer – Fale o Português do Brasil (2010), se assemelha

mais às gramaticais tradicionais, ao passo que o segundo, Fala Brasil (1997),

se mostra mais real em relação à realidade linguística do PB, apresentando um

quadro que se assemelha ao apresentado por Lopes (2007).

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Page 182: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

Numa tentativa de conjugar a análise aqui realizada ao quadro

apresentado por Lopes (2007), a nossa proposta é que os manuais de PLE

apresentem os pronomes pessoais e possessivos da seguinte forma:

Quadro 6. Proposta para apresentação dos pronomes pessoais e possessivos

do PB ao aluno iniciante de PLE.

Pronomes

pessoais

Pronomes Possessivos

1SG: eu meu(s), minha(s)

2SG: tu / você teu(s), tua(s) / seu(s), sua(s)

3SG: ele / ela dele / dela / seu(s), sua(s)

1PL: nós / a gente nosso(s) / da gente

2PL: vocês de vocês / seu(s), sua(s)

3PL: eles / elas deles / delas / seu(s), sua(s)

Em nossa proposta, como mostra o quadro 6, o critério utilizado

para agrupar os pronomes pessoais foi a informação discursiva de pessoa e

número contida nos pronomes pessoais. Assim, tu e você ocupam a célula da

2SG e nós e a gente a da 1PL. Como não é corrente no PB, excluímos a forma

vós, estando a 2PL representada exclusivamente por vocês. Quanto aos

possessivos, tal como apresentado em Lopes (2007), uma vez que tu e você

representam a 2SG, o mais justo é apresentar a coexistência das formas

possessivas teu(s), tua(s), seu(s), sua(s). No entanto, diferentemente de Lopes

(2007), pelo fato de o assunto ser complexo e não tão claro na literatura sobre

o tema, decidimos não incluir o de-possessivo de você.

Os possessivos de 1PL seguem a proposta de Lopes (2007):

nosso(s), nossa(a) e da gente. Já em relação aos pronomes possessivos de

3P, incluímos os de-possessivos dele, dela, deles e delas, além de manter as

formas seu(s) e sua(s). Da mesma forma, levando em consideração os

resultados que apresentamos na seção anterior deste trabalho, concordamos

com Lopes (2007), segundo a qual as formas originais da 2PL relativas ao

Revista Línguas & Ensino | Volume I ▪ 181

Page 183: REVISTA LÍNGUAS & ENSINO

pronome vocês – seu(s) e sua(s) – devem fazer parte do quadro da 2PL, razão

pela qual não incluímos somente o de-possessivo de vocês, tal como faz Perini

(2010).

Acreditamos que, se feito dessa forma, garantiremos ao aluno um

ensino mais democrático que considera as complexidades que qualquer

sistema linguístico pode apresentar, através da variação e mudança

linguísticas, e, portanto, que reflita melhor a realidade linguística do português

brasileiro.

Considerações finais

Diferentemente da tradição gramatical, que apresenta somente os

possessivos seu, sua, seus e suas em correspondência ao pronome pessoal

vocês, este trabalho mostra, a partir da análise de um corpus de fala do PB do

século XXI, que é pertinente considerar a inclusão do de-possessivo de vocês

como possessivo da 2PL, tal como postula Lopes (2007). De modo a

proporcionar um ensino mais real, democrático e inclusivo, essa pluralidade de

formas em variação, que caracteriza a heterogeneidade linguística do PB, não

pode, a nosso ver, ser omitida na apresentação do quadro de possessivos nos

manuais de PLE.

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Notas

1 Graduada em Letras pela UFRJ.

2 Professor Adjunto II de Língua Portuguesa, Departamento de Letras Vernáculas, e Professor

Permanente do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do

Rio de Janeiro.

3 A existência do de-possessivo de 2ª pessoa do singular de você é um tema que parece não

ser tão simples assim. Para uma discussão inicial sobre o assunto, ver Guedes (2013).

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