revista justiça & cidadania

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2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 1

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Edição 63 - Outubro 2005

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2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 1

2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

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EDIÇÃO 63 • OUTUBRO DE 2005

aURéliO wandeR BasTOs

aRnaldO esTeves lima

anTOniO caRlOs maRTins sOaRes

anTôniO sOUza pRUdenTe

BeRnaRdO caBRal

caRlOs ayRes BRiTTO

caRlOs máRiO vellOsO

caRlOs anTôniO navega

daRci nORTe ReBelO

denise fROssaRd

edsOn vidigal

ellis heRmydiO figUeiRa

feRnandO neves

fRanciscO viana

fRanciscO peçanha maRTins

fRedeRicO JOsé gUeiROs

hUmBeRTO gOmes de BaRROs

ives gandRa maRTins

JOsé aUgUsTO delgadO

JOsé edUaRdO caRReiRa alvim

lUis felipe salOmãO

maRcO aURéliO mellO

migUel pachá

maximinO gOnçalves fOnTes

paUlO fReiTas BaRaTa

ThiagO RiBas filhO

CONSELHO EDITORIAL

ORPHEU SANTOS SALLESDIRETOR / EDITOR

TIAGO SANTOS SALLESDIRETOR EXECUTIVO

EDISON TORRESDIRETOR DE REDAÇÃO

DAVID RIBEIRO SANTOS SALLESSECRETÁRIO DE REDAÇÃO

FELIPPE BITTENCOURTEDITOR DE ARTE

SIMONE MACHADOREVISÃO

JULIANA DIASEXPEDIÇÃO E ASSINATURA

CLEONICE DE MELOASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIAAV. NILO PEÇANHA,50/GR.501, ED. DE PAOLICEP: 20020-100. RIO DE JANEIROTEL/FAX (21) 2240-0429CNPJ: 03.338.235/0001-86

SUCURSAIS

SÃO PAULOORPHEU SALLES JUNIORAV. PAULISTA, 1765/13°ANDARCEP: 01311-200. SÃO PAULOTEL.(11) 3266-6611

FORTALEZACARLOS MOURARUA JOAQUIM FERREIRA Nº 1200BAIRRO LAGOA REDONDA.FORTALEZA-CETEL(85) 476 -1200 / 9951 - 3773

PORTO ALEGREDARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102ED.PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP 90010 272TEL (51) 3211 5344

BRASÍLIAARMANDO CARDOSOTEL (61) 9968 - 5926

CORRESPONDENTEARNALDO GOMESSCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARKFONES: (61) 3327-1228 / 25

[email protected]

ISSN 1807-779X

SUMÁRIO

ediTORial

a pOsiçãO da OaB dianTe da cRise pOlÍTica

O TRanspORTe clandesTinO nO BRasil e seU impacTO

BasTa de viOlÊncia

vale TRanspORTe: a decisãO dO sUpeRiOR TRiBUnal de JUsTiça

desTiTUiçãO dO mandaTO pOlÍTicO pOR viOlaçãO aO diReiTO da cidadania

aO UsUáRiO O QUe é dO UsUáRiO

a face OcUlTa dO desaRmamenTO

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34

O ELO QUE FALTAVA LIMITES DO IUS PUNIENDI DO ESTADO12

AS DIVERSAS FACES DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

A HORA DO JUDICIáRIO22

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4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

O presidente Carter, quando fracassou na tentativa de resgatar, militarmente, os reféns americanos da Embaixada no Irã, foi à televisão e declarou que assumia, como primeiro mandatário da

Nação, o fracasso, eximindo todos aqueles que participaram da operação. Quem acompanhou os fatos, à época, lembra-se que o fracasso deveu-se a um notável acúmulo de erros do exército americano encarregado da execução e do planejamento daquela ação de resgate. Mesmo assim, o presidente assumiu sozinho a culpa.

Perdeu a eleição para Reagan, mas ganhou –homem de caráter que é-, merecidamente, o prêmio Nobel da Paz por lutar pela paz entre os povos, como mediador sério e eficiente.

Os acontecimentos que geraram a maior crise da história brasileira não têm a grandeza da fracassada operação de resgate, em que as intenções eram muito maiores que a competência dos executores, a ponto de os iranianos só terem sabido que seu território fora invadido e abandonado, com perdas de vidas e equipamentos americanos, em incursão que redundou em autodestruição, com o pronunciamento do presidente Carter. Envolvem, diretamente, o governo e, indiretamente, seu mandatário maior, o presidente Lula.

Em seu primeiro pronunciamento, sobre a magnitude da crise, o presidente Lula não assumiu, todavia, como

Carter o fez, a responsabilidade pela crise. Limitou-se a manifestar indignação com seus mais diretos auxiliares que a provocaram e a dizer que não ele, mas o governo e seu partido deviam desculpas ao povo brasileiro.

Se um empresário, eleito por acionistas para a presidência de uma sociedade de capital aberto, deixasse sua empresa ser tomada por um nível de corrupção e de desvios ainda que menor do que os que os cidadãos, estupefatos, desvendam nos porões dos dirigentes partidários e do primeiro escalão dos auxiliares presidenciais, os acionistas o destituiriam, pois, mesmo que alegasse desconhecimento e inocência, teria desmerecido o mandato pela denominada culpa in eligendo ou culpa in vigilando.

As duas expressões jurídicas -que exteriorizam aspectos da “culpa”, como negligência, imperícia, omissão, imprudência, significam, em linguagem mais popular, que quem escolhe mal seus auxiliares (in eligendo) e vigia mal as suas ações (in vigilando) é o responsável pelos danos por eles causados, razão pela qual, no caso do presidente da empresa, não mais estaria à altura de dirigir a companhia.

No campo do direito administrativo, sempre que o Poder Público lesa o cidadão é obrigado a ressarci-lo, mesmo que a ação estatal não tenha derivado de culpa, nem de dolo (má-fé, fraude etc), mas apenas pela existência de relação de causa e efeito entre o agir do Estado e o dano produzido. Denomina-se, esta terceira modalidade

EU ASSUMO

Ives Gandra MartinsAdvogado e Membro do Conselho Editorial

EDITORIAL

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5

de responsabilidade, “responsabilidade objetiva”. O dano causado, independentemente da intenção do agente, é suficiente para impor o ressarcimento oficial (artigo 37, § 6º da C.F.).

O aspecto, todavia, relevante de tal responsabilidade, é que, em casos de dolo ou culpa do agente público, inclusive, in vigilando ou in eligendo, deve o Estado ingressar com ação de regresso contra ele, ação essa que é imprescritível (art. 37, § 5º da Lei Maior).

Como se percebe, o Direito Administrativo Constitucional não perdoa o agente público que age com dolo ou culpa, lesando o cidadão, tornando-o responsável pelo ressarcimento da lesão aos cofres públicos.

Trago estas considerações a meus leitores desta Revista, porque estou convencido de que, nada obstante ter pessoal admiração pelo carisma do presidente Lula e pela sua coragem e trajetória política, é ele responsável pelo atual estado de coisas, por não ter sabido escolher seus principais auxiliares que negociaram apoios de forma espúria e por não vigiar sua ação na condução dos assuntos públicos.

Reconheço que sua escolha, na área econômica, foi adequada e bem sucedida, tem no Ministério da Justiça um homem de bem e em alguns outros Ministérios pessoas dignas. Mas a área política foi desastrosamente conduzida, desfigurando seu governo para a história. E, nisto, a sua culpa é evidente.

É que alguns deles ainda se inspiraram nos métodos marxistas, e, para Marx –quem leu sua obra dela sabe disto- os meios estão sempre justificados pelos fins, mais ou menos à modo do que dizia o poeta Rotrou “todos os crimes são belos quando o trono é o preço”.

Como os marxistas –tal qual ocorre com o ídolo de alguns petistas, o genocida Fidel Castro- não dividem o poder, era mais fácil comprar aliados do que com eles compartilhar. Os fatos, infelizmente, estão a demonstrar ter sido o caminho seguido. E como, pela teoria gramsciana, as vias democráticas só interessam como meio de acesso ao poder para imposição posterior de seu modelo autoritário, não excluo que a revelação do que ocorria nos porões apodrecidos do governo leve aos marxistas ainda remanescentes a persistirem no plano traçado sob a inspiração do mal humorado filósofo-economista do século XXI, ou seja, suscitar a luta de classes –a exemplo do que faz o paquidérmico e despreparado ditador venezuelano- para viabilizar a implantação de um regime autoritário.

Como creio ainda no patriotismo do presidente Lula e de parte de seus diretos auxiliares, é o momento de cortar, realmente, na própria carne e punir, de imediato, aqueles que ele sabe que são culpados pela crise criada em seu governo. E assumir a culpa de não haver bem escolhido, nem bem vigiado a ação política de seu governo.

Ives Gandra MartinsAdvogado e Membro do Conselho Editorial

6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

CAPA

O Brasil é uma sociedade ainda em transição onde os direitos fundamentais são muito questionados. Como a OAB tem se posicionado e qual deve ser o comportamento dos advogados?

A Ordem tem se posicionado de uma forma muito incisiva em relação à crise política que está graçando no País. Nós entendemos que num momento como este, quando mais se ressalta o viés público do advogado, não se pode exercer a advocacia sendo meio-cidadão. O advogado tem que ser um cidadão por inteiro, e assim tem que se envolver nessas questões porque exerce uma profissão diferenciada. Nós ajudamos a construir a história da República neste país através de atos, não omissões, e os advogados brasileiros sempre tiveram essa posição de participar criticamente da vida republicana do país e na apresentação de soluções que possam melhorar a vida do cidadão brasileiro.

O senhor declarou recentemente que o Brasil vive um dos instantes mais dramáticos de toda sua história e que estamos assistindo a um “strip tease moral”. O que isso significa?

Significa que as coisas estão escancaradas em termos de imoralidades perpetradas por agentes públicos. O Brasil vive uma de suas piores crises (senão a pior) porque, diferentemente das outras, esta nasceu de dentro para fora, não houve um agente exógeno que a despertasse. Ela nasceu fruto de denúncias de um esquema de corrupção feitas por um deputado da própria bancada que dava sustentação ao governo. Tamanha era a relação entre esse deputado e o governo, que o presidente da República afirmou textualmente que daria a esse homem um cheque em branco e iria dormir tranqüilo. Em seguida esse deputado acaba exibindo a podridão dos porões do Palácio. A partir daí começou o strip tease: foi-se tirando cada vez mais a roupa do rei e este, como disse o mesmo deputado, ficou nu. Declarou-se à cidadania brasileira que não só ele como seu governo e seu partido estavam envolvidos num esquema de corrupção absolutamente inédito no Brasil. Mas repito que o que torna grave a crise é a não-existência de um fator exógeno. Não foram as forças de oposição que começaram a crise, e sim o próprio governo. Este a movimentou e a alimentou e continua devendo à população brasileira satisfações de

nesta entrevista que o presidente do conselho federal da OaB, dr. Roberto Busato, concedeu ao diretor da Revista Justiça & cidadania, Tiago salles, durante a realização da xix conferência Nacional dos Advogados em Florianópolis, ficou evidente que a OAB está alerta e tem se posicionado de forma incisiva em relação à crise política que tomou conta do país. disse Busato que o Brasil vive uma de suas piores crises e que esta nasceu com as denúncias de um esquema de corrupção feitas por um deputado da própria bancada que dava sustentação ao governo.

“Não tenho dúvida de que o presidente sabia do que acontecia no Palácio. Se não sabia, fica absolutamente provado que ele não tem qualquer aptidão para governar”.

disse ainda o presidente da OaB que “alguma coisa tem que ser feita no sentido de ‘refundar’ a República”.

A posição dA oAB DIANTe DA CrISe políTICA

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Roberto Busato

presidente do conselho federal da Ordem dos advogados do Brasil

porque não a resolveu. Além disso, não disse até onde ela está enraizada dentro da estrutura do poder.

O senhor acredita que o presidente esteja envolvido?Não tenho a mínima dúvida de que o presidente sabia do

que acontecia no Palácio. Se não sabia, fica absolutamente provado que ele não tem qualquer aptidão para governar. Além de tudo, essa presunção de seu conhecimento se acentua quando observamos as declarações dos membros do Partido dos Trabalhadores, inclusive do próprio Lula, já que eles afirmam que não praticam uma política individual, mas sim coletiva. E sendo uma política coletiva, evidentemente tudo o que fazem é do interesse

e conhecimento de todos. O presidente Lula dessa forma estaria mais do que ninguém comprometido até o último fio de sua barba: visto que ele como a maior expressão, fundador, ex-presidente do PT e a cara desse partido deveria saber o que estava acontecendo. O presidente Lula foi conivente com os atos irresponsáveis dos dirigentes de seu partido e, principalmente, os atos irresponsáveis, criminosos e ilegais dos seus próprios ministros, inclusive aquele mais íntimo que é o José Dirceu.

O senhor declarou também que o Congresso Nacional transformou-se em delegacia de polícia. Por quê?

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Nós estamos com três CPIs em andamento. Isso realmente transformou o Congresso em qualquer outra coisa diferente de uma casa legislativa. O Congresso está parado. A produção daquilo que lhe coube, que é a formulação de leis e a discussão do processo legislativo brasileiro, está parada. E está atualmente, não só através de três CPIs, mas também da Comissão de Ética da Câmara com sessões diuturnas, mostrando que procura apurar o que houve de errado dentro da casa. Isso é um desvio de função, embora a CPI esteja calcada dentro do ordenamento jurídico e seja um instrumento dos mais saudáveis dentro do Estado Democrático de Direito. Obviamente ela deveria ser um instrumento raro no seu exercício, mas estamos vendo que cada vez mais a CPI vem sendo usada, e de forma inédita. Três grandes CPIs estão sendo levadas a todo o Brasil nesse momento, o que demonstra exatamente a crise de imoralidade em que se encontra o poder legislativo nesse momento.

O senhor apresentou durante reunião do Conselho Federal da OAB proposta pedindo a “reproclamação” da República e uma Assembléia

Nacional Constituinte sem vínculos com o Congresso. Por que e como isso se daria?

Nós fizemos no Conselho Federal uma ampla análise da crise institucional brasileira e dissemos que não adiantava ficar apenas nas críticas e que precisávamos ser propositivos. Dividi essas proposições em duas áreas: uma de aspecto imediato e urgente; outra de aspecto mediato, que pudesse aguardar um estudo mais aprofundado. No aspecto imediato, falamos na convocação do Conselho da República para auxiliar o presidente da mesma a debelar a crise política. Entendíamos que esse conselho propiciaria ao presidente um instrumento de credibilidade e resguardo da autoridade moral que deve ter o primeiro mandatário da nação. Dessa forma, nos livraríamos mais rapidamente da crise. Em relação às propostas que poderiam aguardar um melhor estudo, escolhemos a mais radical para mostrar ao Conselho Federal que alguma coisa tem que ser feita no sentido de “refundar” a república. Isso faz parte de um movimento que já havíamos começado em 15 de novembro de 2004, portanto antes de estourar essa crise moral que estamos vivenciando. Escolhi a tese mais radical e profunda para que justamente pudéssemos,

“O presidente lula foi conivente com os atos irresponsáveis

dos dirigentes de seu partido e, principalmente, os atos irresponsáveis, criminosos e ilegais dos seus próprios

ministros, inclusive aquele mais íntimo que é o José dirceu.”

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a partir daí, verificar aquilo que pudesse servir melhor à população, do máximo para o mínimo. E a tese da Assembléia Nacional Constituinte foi lançada como uma das possíveis soluções para melhorar a condição institucional brasileira. Seria com mandato definido de um ano com aproximadamente 100 pessoas com a missão de escrever parte da nova constituição. Para isso teríamos uma emenda constitucional que delimitaria os campos que essa Assembléia Nacional Constituinte iria de reformar na Constituição de 1988: o prazo definido, o número diferenciado de pessoas com filiação partidária ou não. Assim, teríamos a condição de diminuir o impacto do poder econômico sobre a formulação das regras constitucionais e limitaríamos numa segurança jurídica alguns capítulos que merecem ser reformados.

Isso seria mais um “remendo” à Constituição ou a criação de uma nova Carta Magna?

Nós já estamos com cinqüenta e quatro emendas aprovadas, temos mais de setecentas propostas para conhecimento do Congresso e ainda três mil e quinhentas ações diretas de inconstitucionalidade de leis ordinárias que feriram a Constituição. Tudo isso é o remendo. O que nós queremos é reformar uma parte da Constituição em alguns capítulos para que se acabe com esses curativos baseados em interesses casuísticos de momento.

Quais são os principais projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que tratam sobre a advocacia?

Temos vários projetos. Recentemente tivemos um que alterou o estatuto da Ordem em relação à eleição. Uma lei que foi aprovada em um momento absolutamente anormal dentro do Congresso Nacional, no mesmo dia em que o deputado Roberto Jefferson estava fazendo uma manifestação dentro de uma comissão parlamentar. A Comissão de Constituição e Justiça aprovou a alteração do jogo eleitoral dentro da OAB. Temos vários projetos que tratam do exame da Ordem. Existe um trabalho orquestrado no sentido de fazer com que o exame se extinga, o que é um atentado à democracia brasileira. Se perdêssemos o exame da Ordem, não perderíamos apenas a Ordem dos Advogados do Brasil, o País não perderia apenas uma instituição - a única que está fazendo um contraponto moral e ético em relação ao exercício regular do poder no Brasil -, mas perderíamos inclusive a própria profissão de advogado. Perdendo a profissão de advogado estaríamos comprometendo o Estado Democrático de Direito de forma irremediável. Não se esqueça que temos hoje 500 mil advogados e a cada ano as universidades estão

colocando no mercado mais de 120 mil bacharéis. Tudo isso é fruto de uma irresponsabilidade de anos e anos no trato do ensino jurídico, a comercialização chegou a esse descalabro. Hoje o exame da Ordem não quer tolher o exercício da profissão, não visa impedir que se ingresse na Ordem dos Advogados do Brasil, e sim impedir que o incompetente, que o inapto possa levar o cidadão brasileiro a uma aventura jurídica. Visa demonstrar à população a seriedade do trabalho do advogado. Essa é mais uma proteção ao cidadão que se dá através do exame da Ordem. Vemos isso também no concurso púbico, que hoje reprova também em larga escala. Por exemplo, se não tivéssemos o concurso público para a magistratura, com certeza teríamos uma magistratura absolutamente incompetente e inapta, em desserviço à cidadania brasileira.

A justiça no Brasil é considerada muito cara, qual o peso dos honorários nesse custo? O que a OAB tem feito para diminuir o custo judicial?

A OAB defende o acesso amplo da população ao Judiciário, já que somente através dele poderemos diminuir a exclusão social que nos rodeia. O Banco Mundial tem pesquisas que mostram que o dinheiro mais bem gasto para diminuir a miséria e a exclusão social é o utilizado no acesso ao Judiciário. O povo humilde e miserável que tem acesso a esse poder sabe defender seus direitos fundamentais e em conseqüência diminui sua miséria e exclusão. Não é crível que a entidade mais solidária com a cidadania, a advocacia, seja a favor de um aviltamento do cidadão para exercer condignamente seus direitos. Porém, cabe ao Estado propiciar a defensoria pública do cidadão carente que não tem que pagar um centavo de honorários advocatícios. Esse cidadão tem que ter essa assistência condigna por parte do Estado, como tem que ter também saúde pública, ensino fundamental, segurança, emprego, ou seja, tem que ter o respeito a sua dignidade. Portanto, não são os honorários que impedem o acesso ao Judiciário, mas sim a falta de uma estruturação no poder público que dê condições ao cidadão de pleitear um direito fundamental que é o direito de defesa, o de preservar um bem fundamental que esteja em jogo dentro da sua vida em sociedade. Os honorários são cobrados, de acordo com a capacidade do profissional, daqueles que possam pagar e que desejem um profissional capacitado que possa promover sua defesa. Aos carentes cabe ao Estado dar o integral apoio.

O senhor poderia esclarecer quais são os parâmetros para se estabelecer os honorários advocatícios?

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O Código de Processo Civil já estabelece os parâmetros e percentuais de honorários e afirma que os mesmos devem ser fixados de forma condigna. O próprio Estatuto de Ética do Advogado também tem regras similares às do Código para que não aja aviltamento e nem excesso. A tônica é essa. Evidentemente que nós não podemos pensar em uma regra fixa para o estabelecimento de honorários para o Brasil todo. Nosso país é um lugar de profundas diferenças entre suas diversas regiões. Sendo assim, os honorários devem ser cobrados com eqüidade, seriedade, razoabilidade e com honorabilidade por parte do advogado. Honorário vem de “honor”, significa honra, portanto a retribuição financeira ao advogado deve ser tratada dentro desse campo. Deve ser feita com moderação, parcimônia, mas também com dignidade. Não podemos admitir nem achaques contra aqueles que precisam do serviço do advogado nem a remuneração indigna ao advogado brasileiro. É entre esses dois extremos que se vai encontrar a justiça na fixação dos honorários dos advogados.

E como medir o resultado do que está sendo pago?

Pela própria satisfação de ver reconhecido o direito fundamental que está em jogo naquele processo. Pela vantagem econômica que advém da vitória, pelo esforço do profissional em defender condignamente o cidadão, já que não é apenas o sucesso o objeto do contrato. A advocacia é uma atividade de meios, não de fins. É como a medicina onde o médico tem direito à percepção de honorários referentes a uma cirurgia independentemente da sobrevivência do paciente enfermo que esteja sofrendo o ato.

Nos EUA existem punições severas quando o advogado erra na cobrança ou quando cobra pelo que não fez, podendo até perder o direito de advogar. Como isso funciona no Brasil?

Da mesma forma o advogado no Brasil também pode perder sua licença por ter cobrado honorários e não ter prestado o serviço. A Ordem é bastante rigorosa nisso e, aliás, o grande número de processos disciplinares que tramitam nas seccionais e no próprio Conselho Federal em grau de recurso é com relação ao uso indevido da cobrança de honorários advocatícios.

O senhor poderia explicar um pouco como são arbitrados os honorários de sucumbência e como se dá seu pagamento? E qual sua opinião a respeito desses honorários nas ações de cobrança e execução de títulos extrajudiciais?

Os honorários de sucumbência são devidos para recompor a parte daquilo que foi contratado a um advogado. São honorários que visam justamente ressarcir o cliente daquilo que ele contratou para o exercício de sua defesa. Devem ser arbitrados de acordo com as regras do Código de Processo Civil que estabelece que os honorários serão fixados de 10 a 20% e daí estabelece os critérios que o juiz deve respeitar para essa fixação de valores.

Em alguns casos, quando o devedor é o vencedor por exemplo, como o senhor analisa as decisões fixando os honorários sucumbenciais em percentual inferior a 10%? Qual é a posição da OAB referente ao tema?

É uma indignidade em relação à honorabilidade do advogado e uma ilegalidade porque o Código determina o percentual e a OAB vai defender os seus inscritos de forma total. Nós temos orientado as seccionais de que a própria instituição promova a defesa dos honorários advocatícios nos tribunais estaduais e, quando elevar-se aos tribunais superiores alguma questão que envolva honorários, que acione o Conselho Federal da Ordem para dar assistência àquele advogado que teve os honorários fixados ilegalmente e de forma vil. O advogado hoje tem uma estrutura muito grande e muito cara para poder exercer sua atividade. Ele é o único dos agentes do Judiciário brasileiro que não tem férias, enquanto que outros têm até dois meses de descanso. Isso acaba se tornando uma forma de penalizar o advogado que não tem nem mesmo uma previdência como os demais operadores do direito têm, tanto para a aposentadoria quanto para a saúde. Então este profissional sempre encontra o respaldo para ter dignidade no exercício de sua atividade no honorário digno, e honorário digno às vezes incomoda a magistratura que insiste em descumprir o Código de Processo Civil, que por sua vez insiste em descumprir o seu dever ético de fixar os honorários de forma condigna ao advogado.

Em caso recente divulgado na mídia, após ganhar causa de valor milionário (execução de dívida superior a U$ 250 milhões), um cliente, a Bombril S/A, teria destituído o advogado, Augusto Coelho, para celebrar acordo com os devedores e receber em pagamento os bens penhorados sem pagar honorários fixados em sentença judicial. A Justiça declarou a ineficácia do acordo e manteve o leilão para o pagamento dos honorários advocatícios sucumbenciais. Como o senhor analisa essa decisão?

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Essa não é uma vitória isolada, é uma vitória da classe dos advogados, a decisão apenas cumpriu a lei restabelecendo a condição do advogado de receber seus honorários e sua dignidade. Isso é o normal que deve sempre ocorrer nos estados civilizados, nos estados que respeitam o direito do profissional que trabalha para receber o que lhe é devido. A magistratura está entendendo melhor a posição do advogado e fazendo cumprir a lei.

O que é e como funciona o segredo de justiça, qual a sua utilidade?

O segredo de justiça é uma exceção porque, no geral, o processo é público. Como exceção, deve ser absolutamente protegido. O segredo de justiça existe para todos, não existe apenas para uma parte daqueles que estão envolvidos dentro do processo. Hoje, por exemplo, nós vemos um uso ilegal desse instituto do segredo de justiça. Às vezes, o segredo é para o advogado que justamente tem que ter acesso aos autos e ao mesmo tempo é liberado, mesmo tratando-se de segredo de justiça, à mídia e à população, em detrimento

daquilo que se quer proteger. Em caso recente, o do ex-prefeito Paulo Maluf, houve um vazamento horrível de uma prova que estava sendo colhida legalmente. Porém, houve um uso absolutamente ilegal por parte do Ministério Público e por parte talvez da polícia no sentido de divulgar aquilo que estava sendo gravado. O que é pior aí é que não se violentou apenas a figura do indiciado que estava protegido pelo segredo de justiça, mas também a do próprio advogado. Houve uma duplicidade de ilegalidade porque se quebrou o segredo de justiça e se infringiu uma disposição do Estatuto do Advogado que diz que o mesmo tem a inviolabilidade de suas comunicações, inclusive telefônicas.

Um réu, cujo processo esteja em segredo de justiça, pode se defender de outra maneira além dos autos, através da imprensa por exemplo?

Não, todos devem respeitar as regras. Veja, o segredo de justiça é uma exceção e sendo decretado deve ser obedecido por todos que devem mantê-lo. Não é licito que uma das partes quebre o segredo de justiça determinado.

“O segredo de Justiça é uma exceção (...) deve ser absolutamente protegido. (...) existe para todos, não

existe apenas para uma parte daqueles que estão envolvidos

dentro do processo.”

12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

O elo que falta Carlos Ayres Britto (*)

Vamos convir, dar por assente que deter o status de ser humano signifique a faculdade de se perceber em interação com a realidade. Seja a realidade que vige do nosso lado de fora, seja a que se dá no lado de dentro de nós mesmos.

Vamos também aceitar que essa aptidão para perceber o real como algo distinto do sujeito que percebe tenha por matriz o cérebro humano. O cérebro, sim, mas com esta diferenciação: quando

ele interage planejadamente, predispondo-se à escolha dos mais adequados meios para o alcance de um determinado fim a que se propôs, o nome que se lhe assenta é o de “inteligência”, “intelecto”, “mente”, enfim. Já quando o cérebro interage com o real sem nada planejar ou analisar ou metodizar, aí o nome que ele toma é o de “sentimento”, “alma”, “coração”.

Pronto! Eis as duas básicas dimensões do cérebro humano. A dicotomia do intelecto e do sentimento, ou da mente e do coração, ou da inteligência e da alma. (pouco importa a combinação de nomes). Dicotomia que vai responder por expressões como estas: fulano de tal é um homem de inteligência. Um intelectual. Um

ministro do supremo Tribunal federal

carlos ayres Britto

O elO QUe fAltAvA

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13

operador mental. Ou, bem o oposto, sicrano é uma pessoa de alma. Um sentimental. Um homem de coração. E tudo a pressupor essa verdadeira usina de incessantes estímulos que é o cérebro de cada um de nós.

Foi assim vendo as coisas, acredito, que Pascal ajuizou a frase tão cotidianamente repetida: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. A traduzir que o cérebro-sentimento intui com verdades que o cérebro-intelecto não consegue descobrir de todo. Caso típico do amor, da paz, da justiça, Deus, e tantos outros fenômenos que de alguma forma escapam às coordenadas da mente.

que implica demonstração, prova, descrição.Diga-se mais: como o intelecto somente

pode conhecer por forma indireta, ele não se funde jamais com o objeto cognoscível. Fica do lado externo do objeto. Friamente. À distância. Olhando para a coisa investigada e explicando-lhe “professoralmente” os contornos. Ao inverso do que sucede com o sentimento. Este incide “de chapa” sobre o real. Apanha a realidade num súbito de percepção, mas com tal envolvimento psicológico, tamanha carga de “empatia”, que se confunde com a própria coisa apanhada. Como que por osmose. Sem ter como descrever aquilo em que se transfundiu ou de cuja natureza passou a fazer

“com efeito, pense-se no valor da justiça. no ideal do justo. esse que talvez seja o mais profundo anseio dos homens em sociedade. O bem

maior a ser coletivamente alcançado. Um bem tão imprescindível à comunhão humana que se faz de valor fundante do direito.”

É isso mesmo. O que a mente pode é pensar, e pelo pensamento conhecer algumas verdades. Já o sentimento, este seguramente não pensa. O que ele sabe fazer é intuir, e pela intuição também conectar com a realidade. Atrelar-se a ela por uma forma direta. De estalo. Como num salto ou por efeito de um insight. Ali, não. Ali a inteligência opera passo a passo, metodicamente, analiticamente ou por aproximações sucessivas. Muito mais de forma pasteurizada do que in natura. Como num processo. Donde se falar que a maneira puramente racional de conhecer é indireta ou especulativa. Por isso mesmo

parte num dado momento. Fenômeno que bem pode se enxergar nesta sentença de Sartre: “no amor, um mais um é igual a um”.

Pois bem, a ninguém é dado ignorar que o modo rigorosamente lógico de interação com o real desfruta de maior prestígio social. A História tem feito da mente o carro-chefe do sentimento, na pressuposição de que este anuvia aquela. A pura racionalidade (fala-se) é que melhor organiza a convivência política e promove o contínuo avanço da ciência, da tecnologia e dos mais sofisticados métodos de trabalho. Sua primazia sobre o

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sentimento vale como um atestado formal de evolução intelectual, especialização profissional e requintado padrão de civilidade. Em seu nome é que a cultura ocidental chegou à máxima cartesiana do “penso, logo existo” (século XVII), para no século imediato fazer da Revolução Francesa o definitivo marco da imposição de limites aos governantes. Do império da lei. Da declaração dos direitos e garantias do indivíduo perante o Estado (a liberdade à frente). Tudo isso é fato. Tudo isso é inegável, por constituir a mente um tão imprescindível quanto poderoso mecanismo de trabalho. Mas não parece menos verdadeiro que a mente sozinha é incapaz de “dar conta do recado”, quando se trata de passar da exaltação retórica dos valores para o plano da empírica vivência deles. E essa é a questão

central. Questão realmente central, porque nessa passagem do discurso para a prática dos valores é que se tem verificado uma lacuna, um hiato, um descompasso que outra coisa não traduz senão a falta de um necessário elo na corrente evolucionista da humanidade: o elo do sentimento. O anel do coração. O halo da alma. Com efeito, pense-se no valor da justiça. No ideal do justo. Esse que talvez seja o mais profundo anseio dos homens em sociedade. O bem maior a ser coletivamente alcançado. Um bem tão imprescindível à comunhão humana que se faz de valor fundante do Direito. Fonte e ao mesmo tempo a embocadura do Direito que se veicula pelo conjunto de leis de todo povo soberano. Mais até, valor que empresta seu nome a um dos Poderes

“pois sem afetividade não há efetividade dos

valores que dão sentido à experiência humana. Que

o diga a presente crise das instituições político-

partidárias brasileiras, tão marcada por homens que parecem pensar demais e

sentir de menos.”

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15

16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

A atividade legislativa do Estado na esfera penal não pode ser ilimitada ou direcional, pois diante de um Estado social e

democrático de Direito é inadmissível uma atuação ilimitada do Estado. No âmbito jurídico-penal do Estado, determinados princípios e critérios normativos limitam o poder punitivo:

a) os princípios consagrados na Carta Política;

b) os princípios jurídicos de correlação entre o Direito Penal e o ordenamento jurídico conjunto;

c) os princípios singulares estruturais de fundamentação e legitimação do Direito Penal. Sem os limites jurídicos, estaríamos diante de um Direito Penal autoritário, antidemocrático, não-pluralista e inconstitucional. O Direito Penal apresenta como característica natural ser um ordenamento legal e juridicamente limitado, sujeito a garantias normativas e tem como escopo garantir direitos e liberdades.1

Ferrajoli ao tratar dos princípios

limites do ius puniendi Do eSTADo

e modelos do Direito Penal elenca: a) princípio da retribuição ou

conseqüência da pena em relação ao delito;

b) princípio da legalidade em sentido lato ou estrito;

c) princípio da necessidade ou da economia do Direito Penal;

d) princípio da lesividade ou da ofensa do resultado;

e) princípio da materialidade ou exterioridade da ação;

f) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade penal pessoal;

g) princípio acusatório ou da separação entre o juiz e a acusação;

h) princípio do ônus da prova ou da verificação;

i) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falsidade. São princípios do modelo garantista do Direito Penal. Como diz Ferrajoli, “as regras do jogo fundamental” do Direito Penal se convertem em princípios jurídicos do moderno Estado de Direito.2 Na realidade são limitações ao ius puniendi estatal.

Jakobs advogava também

limitações ao direito de punir, diante da perspectiva de legitimação da intervenção na criação de normas que punam comportamentos sem referência precisa a bens jurídicos determinados, ou que supõem manifesta antecipação de sua proteção jurídico-penal. Lembro o trabalho “Criminalização no estado prévio à lesão ao bem jurídico”, em que faz oposição ao que denomina “despreocupado positivismo”, que diz caracterizar a doutrina e parte para fundamentar os estritos limites à atividade punitiva do Estado, tendo como marco inicial a definição da posição jurídica do cidadão em regime de liberdade, em cujo patamar realiza a reformulação do princípio do ato e da exigência da proibição de um comportamento sem referência a bens jurídicos. Aduza-se que Jakobs admite que não haveria vantagem em afastar a doutrina do bem jurídico e apelar diretamente para a doutrina da danosidade social da conduta, pois iria gerar o inconveniente

álvaro mayrink da costa

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limites do ius puniendi Do eSTADo

do favorecimento da protelação de bens jurídicos marcadamente pessoais com base no princípio da utilidade pública. Assim, Jakobs defende uma desvinculação da missão do Direito Penal a respeito da função de proteção do bem jurídico, entendendo que tal missão é mais do que confirmar a vigência da norma, constituindo-se no asseguramento das expectativas normativas essenciais. Para Jakobs, o Direito Penal deve assegurar a vigência de valores positivos de caráter ético-social dentro do modelo welzeliano. Jakobs questiona a ilegitimidade da incriminação de condutas que têm lugar no estado prévio, em relação à possibilidade de neutralizá-las pela proteção de bens jurídicos antecipados (paz pública, segurança pública, clima favorável ao direito etc.). A título de exemplificação cita a delimitação da tentativa punível como postura do Estado de Direito. No campo das sanções prévias ao início da tentativa figura no § 30

álvaro mayrink da costadesembargador do TJ/RJ e presidente

do fórum de execução penal da emeRJ, professor Titular de direito

penal da Univercidade e de pós-graduação da Universidade gama filho

18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

do StGB a punição à preparação da tentativa deflagrada, isto é, o limite da tentativa.3

Em favor da aceitação de antecipação da punibilidade, há várias explicações que Jakobs considera plausíveis, como a tendência à subjetivação de diversas fontes (o princípio da culpabilidade, a orientação do autor e a personalização do injusto). Para ele, não se pode excluir a tendência à antecipação alimentada de nova tendência à subjetivação, de forma que ambas se apóiam aparentemente em um modo recíproco e circular (argumentos preventivos e policiais em favor das antecipações). Cita setores notórios de atividade encoberta, como os relativos ao narcotráfico, à segurança do Estado e à falsificação de moeda.4

Não podemos olvidar no modelo de Direito Penal mínimo, perante o racionalismo jurídico garantista, os limites ou as proibições intervencionistas do Estado, na busca de um ideal de racionalidade e certeza, pois o Direito Penal é racional na proporção da previsibilidade das intervenções estatais. Repudiamos a postura de um modelo de aspiração autoritária, que é perseguida pelo Direito Penal máximo. Para Jakobs, o Direito Penal se converte em Direito Penal dos inimigos. A relação social preparatória de um delito é genuinamente privada. Assim, as regras da acessoriedade quantitativa, ou a determinação unitária para todos os partícipes do ato delitivo podem ser explicadas pelo princípio da divisão de trabalho do autor, que é uma questão dos intervenientes. Aquele que estivesse vinculado por um dever especial,5 responderia pelo que fica devendo ao bem jurídico (v.g.: Caio induz à morte sua companheira Mary May, mas ao fazê-lo, escapa-lhe o curso causal do acontecimento;

teria, assim, cometido uma tentativa acabada a título de autor, observando Jakobs que “da mesma maneira que constitui também uma tentativa acabada se deixa passar a oportunidade da inibir cursos causais que se separam sem intervenção”). Conclui que sem um comportamento externo perturbador não se pode obrigar uma pessoa a responder pelo que é interno, que abrange o âmbito privado e não somente pensamentos. Finaliza sustentado que, embora o comportamento delitivo não possa ser

b) limites objetivos funcionais, que derivam da própria natureza da coisa e da própria finalidade do Direito Penal, pois em tal esfera se desenvolve toda a virtualidade;

c) limites estruturais, que se deduzem de singulares princípios gerais informadores do ordenamento jurídico-penal. Não se pode olvidar a primazia normativa da lei constitucional nas hipóteses de conflitos normativos que exijam um tratamento técnico, jurídico, conceitual e sistemático, tendo como patamar os princípios fundamentais.6

Os conflitos podem ser permanentes entre a norma penal e a fundamental, entre a proibição abstrata e a garantia fundamental, tanto no âmbito do tipo quanto em relação às suas conseqüências. O conflito excepcional entre a norma e a Constituição conduz à análise de todas as circunstâncias concorrentes para se determinar no caso concreto a prioridade material da norma constitucional na proporção de sua incompatibilidade com a disposição penal. Há princípios constitucionais expressos (cláusula constitucional de reserva, princípio do Estado de Direito, princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da humanidade, princípio da intolerância, princípio da proporcionalidade, princípio da intervenção mínima, princípio da ofensividade e princípio da lesividade) e funções (indiciária, determinante e orientadora) dos bens jurídicos penalmente relevantes.

Sabe-se que o conceito de bem jurídico deve ser procurado na realidade social, a qual deve ser conjugada com as plúrimas variantes do progresso e do bem-estar social. Fala-se da perversão do bem jurídico ao se referir à sua imprecisão conceitual, daí o questionamento

antecipado de modo discricionário à lesão de um bem jurídico, “talvez seja possível antecipar a própria lesão” como proteção da paz pública.

Os limites normativos do Direito Penal subjetivo, de conformidade com os princípios constitucionais que fundamentam o direito de punir estatal, apresentam multifacetadas índoles:

a) limites jurídicos constitucionais em sentido estrito, que provêm de valores superiores do ordenamento positivo, de valores que transcendem ao âmbito do Direito Penal;

“Repudiamos a postura de um modelo

de aspiração autoritária, que é perseguida pelo direito

Penal máximo.”

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19

de se fixar o conceito concreto de bens jurídico-penais identificados como os bens constitucionalmente protegidos. Busato e Huapaya sustentam a sua impossibilidade com patamar em Morillas Cuevas e García-Pablos de Molina, “porque o texto constitucional não é sinônimo de legitimação de garantias democráticas (...)”. “Não cabe falar, portanto, do conceito de bem jurídico-penal como aquele que deriva da Constituição”.7

Observamos os limites constitucionais em sentido estrito através do:

a) princípio da legalidade (exigência jurídica fundamental do Direito Penal moderno);

b) princípio da igualdade (abolição dos privilégios e das prerrogativas para prover a garantia da estabilidade social);

c) princípio da humanidade (respeito à dignidade humana, desde toda intervenção punitiva em geral, compreendendo os aspectos valorativos (natureza e conteúdo) e os aspectos teleológicos da pena (fim perseguido formal e executivo);

d) princípio da proporcionalidade ou proibição de excesso (gravidade da ação e pena prevista no tipo penal), que pode ser abstrata (cominação) ou concreta (aplicação);8

e) princípio do ne bis in idem9 (análise da tríplice identidade de fato, fundamento e sujeito, como direito de defesa do cidadão junto ao Estado, evitando-se a duplicidade de sanções e do princípio da intolerabilidade, que rege a necessidade ou não da incriminação ou descriminalização do comportamento que se torna insuportável ou admitido pela macrossociedade, quanto à instrumentalização dos controles sociais a fim de garantir a paz social).

Nos limites constitucionais10

objetivos e funcionais, elencamos: a) o princípio da ação ou conduta

(Direito Penal de ato). O Direito Penal moderno é um Direito Penal de ato (Tatstrafrecht) e não de autor (Täterstrafe) ou da vontade (Willensstrafe): o princípio do nullum crimen sine actione. Não se punem meros pensamentos ou qualidades psicológicas, ideológicas, raciais, pessoais ou de qualquer índole. Aduza-se o princípio cogitationes nemo patitur – pensamentos não delinqüem (impede considerar

Penal da culpabilidade por injusto típico enfrenta a responsabilidade objetiva pelo resultado, inspirado no princípio da versari in re illicita;

c) princípio de proteção dos bens jurídicos (princípio de ofensividade ou lesividade – nullum crimen sine injuria, diante das duas formas de vulnerabilidade: a lesão e o colocar em perigo; missão protetora do bem jurídico (o Estado está legitimado para intervir punitivamente diante da necessidade social expressada pela vontade dos cidadãos na proteção de certos bens e valores que traduzem unidades de função social para garantir a paz pública em razão da intolerabilidade do conflito social);

d) princípio de prevenção (conjuga-se com o princípio da tutela do bem jurídico, pois confluem para o mesmo efeito, visto que o Direito Penal tem uma tarefa seletiva, valorativa e protetora de bens e valores da pessoa humana e da macrossociedade). A garantia dos objetos de tutela não é de índole formal e programática, mas social e coercitiva para os programas legislativos propostos pela política criminal;11

e) princípio de ressocialização (a pena não pode ser uma ferramenta política do legislador de uso arbitrário no Estado de Direito e a sua legitimação material e específica função preventiva geral está direcionada para o cumprimento da função preventiva especial por meio da reinserção social do apenado). Preferimos a expressão “reinserção social” a “reeducação do delinqüente”.

Ainda se poderiam alinhar outros princípios penais em relação ao ordenamento jurídico conjunto (princípios de relevância em outras instâncias normativas), podendo ser citados os critérios de caracterização

atitudes puramente internas exigindo a manifestação exterior da vontade, bem como o modo de ser da pessoa humana);

b) princípio de culpabilidade normativa pessoal (culpabilidade como fundamento e limite da pena: não é concebível uma pena sem culpabilidade e que a pena correspondente seja proporcional ao grau de culpabilidade do autor). A medida de segurança se rege pelo princípio de periculosidade criminal de um sujeito que realiza um injusto típico não culpável. O Direito

“O direito penal moderno é um

direito penal de ato (Tatstrafrecht)

e não de autor (Täterstrafe)

ou da vontade (willensstrafe)

(...)”

20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

do Direito Penal (princípio da intervenção mínima e necessária subsidiariedade, fragmentação e o princípio de singular coercitividade das normas penais). Os limites estruturais do Direito Penal derivam das próprias características subjetivas estatais (titularidade estatal, legalidade positiva, garantia processual, garantia jurisdicional e garantia de execução penal).12

A Constituição Federativa de 1988 estatui quatro princípios básicos:

a) princípio da legalidade; b) princípio da igualdade; c) princípio da humanidade da

pena; d) princípio da responsabilidade

pessoal.Os princípios constitucionais

não expressos diante dos bens jurídicos relevantes são:

a) princípio de intolerância;

b)princípio de intervenção mínima;

c) princípio de proporcionalidade; d) princípio de lesividade; e) princípio de ofensibilidade.13

O princípio de proporcionalidade, surgido no século XVIII, exige uma ponderação na cominação e na resposta penal perante o lesionado ou colocado em perigo, incluindo-se o regime prisional, diante de um controle de razoabilidade da sanção e a liberdade restringida.

O princípio de intervenção mínima, tão exposto no varejo das medidas penais oportunistas no contexto do denominado Direito Penal do inimigo e, em razão da sua função simbólica, deve atuar para reprimir as graves distorções, pois o Direito Penal é a última forma de controle do conflito social.

O princípio de ofensividade, repita-se, é informador do princípio de insignificância e o princípio de lesividade veda a incriminação para a defesa de meros valores éticos ou morais e de condutas socialmente inócuas.14

No que tange ao princípio da lesividade, como lembra Nilo Batista, citando Roxin, “só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral... O Direto Penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, sem estar legitimado nem adequado para a educação moral dos cidadãos”.15 Para Nilo Batista, “à conduta puramente interna, ou puramente individual, seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou indiferente, falta lesividade que possa legitimar a intervenção penal”. Assim, admite quatro funções principais do princípio de lesividade:

a) proibir a incriminação de uma

atitude interna; b) proibir a incriminação de

uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor;

c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais. A nosso sentir, o Direito Penal do autor é incompatível com as exigências de certeza e segurança jurídicas do Estado de Direito.16 Conclui, com razão, que “o que é vedado pelo princípio da lesividade é a imposição de pena a um simples estado ou condição desse homem (que está no centro da experiência jurídico-penal), refutando-se, pois, as propostas de um Direito Penal do autor e suas derivações mais ou menos dissimuladas (tipos penais do autor, culpabilidade pela conduta ao longo da vida etc.), que conduz à exclusão das medidas de segurança”;

d) proibir a incriminação de condutas desviantes que afetem qualquer bem jurídico.17

O princípio de lesividade, segundo Ferrajoli, possui um valor de critério polivalente de minimização das proibições legais, correspondendo a um princípio de tolerância, reduzindo a intervenção estatal ao mínimo necessário. Saliente-se a cautela que deve ter o legislador no processo de cominação, pois a criminalização de certos comportamentos desviantes dos padrões ético-sociais pode gerar a realização de novas atividades delitivas e sua repressão arbitrária pode conduzir à organização de uma criminalidade. Em tais casos, não há uma função contramotivadora, mas alimentadora e organizadora dos atores envolvidos. Daí, ao minimizar a violência, deve-se ter presente o princípio de proibições mínimas necessárias.

“O princípio de lesividade (...), possui um valor de critério polivalente de minimização das proibições legais, (...), reduzindo a intervenção estatal ao mínimo necessário.”

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21

1miguel polaino navarrete, derecho penal, parte general, Bosch, 4a ed., t. 1, 364.2cf. ferrajoli, op. cit., 75.3§ 30: “versuch der Beteiligung. wer einem anderen zu Bestimmen versucht, ein verbrechen zu begehen oder zu

ihm anzustiften, wird nach den vorschriften über den versuch des verbrechens bestrat, ...”.4günther Jakobs, fundamentos do direito penal, trad. andré callegari, RT, 2003, 102-110.5Roxin, Täterrschaft und Tatherrschaft, 4a ed., 1984, 352, 459, 621 ss; e Jakobs, aT, 1983, 21-115 ss.6cf. Rupert eilsberger, Rechtstechnische aspeckte der verfassungskonformen strafrechtsanwsendung, im Js, 10,

1970, helft7, 321.7Cf. Busato-Huapaya, Introdução ao Direito Penal, Fundamentos para um Sistema Penal Democrático, Lumen

Juris, 2003, 184-185.8v. Teresa aguado coma, el principio de proporcionalidad en derecho penal, madrid, 1999; Juan lascurain

Sánches, La proporcionalidad de la norma penal, in Cuadernos de Derecho Básico, 5, 1998, 159.9schmidt-Blei-Klein, Kommentar zum grundgesetz, 7a ed., frankfurt, luchterhand, 1990; schumann, verfassungs

und menschenrechtsbeschwerde gegen gerichtliche entscheidungen, duncker & humblot, 1963; schönke/stree, strafgesetzbuch, Kommentar, 24a ed., München Beck, 1991; Silva Sánchez, Delitos contra el medio ambiente, Tirant lo Blanc, 1999; la expansión del derecho penal, madrid, civitas, 1999; Bacigalupo, la responsabilidad penal de las personas jurídicas, Barcelona, Bosch, 1989; Benlloch, el princípio de non bis in idem en las relaciones entre derecho penal y derecho disciplinario, pJ núm. 51, 1998, 303; cobo/vives, derecho penal, parte general, 5a ed., Valencia, Tirant lo Blanc, 1999; Narváez, Princípio “non bis in idem”: uma nueva doctrina constitucional?, in Tribunal constitucional, no 1, 2000, 35; Queralt, el principio no bis in idem, madrid, Tecnos, 1992; “ne bis in idem”. Significados constitucionales, en Política criminal y reforma penal, LH Del Rosal, 1993, 885; García Albero, “Non bis in idem” material y concurso de leyes penales, cedecs, 1995; león villalba, acumulación de sanciones penales y administrativas. sentido y alcance del princípio “ne bis in idem”, Barcelona, Bosch, 1998; mata y martín, el princípio non bis in idem de la reforma de las responsabilidad penal y disciplinaria de jueces y magistrados, in pJ, no 41-42, 1996, 185; mir puig, derecho penal. parte general, 5a ed., Barcelona, 1998; muñoz conde, derecho penal, parte general, 4a ed., Valencia, Tirant lo Blanc, 2000; Muñoz Lorente, Vulneración del principio non bis in idem en el ámbito medioambiental; imposición de sanción penal existiendo ya previa sanción administrativa por los mismos hechos y com idéntico fundamento, in gestión ambiental, no 12, 1999, 37; garcía Torres, consideraciones sobre el princípio “ne bis in idem” en la doctrina constitucional, in Revista del ministerio fiscal, no 1, 1995, 59; górriz Royo, el princípio “ne bis in idem” y la regla de la preferencia del orden jurisdiccional penal a la luz de la sTc 177/1999, de 11 de octubre, in Revista de ciencias penales, vol. 3, no 1 y 2, 2000, 263; herzberg, ne bis in idem – zur sperrwirkung des rechtskräftigen strafurteils, Jus, 1972, 113.

10O constitucionalismo, palavra nova de raízes antigas, ainda não consolidado, não se confunde com o liberalismo, filho do Iluminismo, que se caracterizou como reação burguesa ao Estado absolutista, um obstáculo ao advento da democracia. Registre-se a busca político-jurídica pelo primado da lei, da lei fundamental. O governante não poderia mais ser legibus solutus, pois qualquer cidadão estava jungido às normas legais. é lapidar a frase de cícero (106-43 a.c.): legum servi debemus, ut liberi possimus (sejamos escravos da lei para que possamos viver em liberdade). O liberalismo e o constitucionalismo buscavam ferramentas jurídicas para garantir as liberdades fundamentais (adhemar maciel, Observações sobre o constitucionalismo brasileiro antes do advento da República, in estudos em homenagem a carlos alberto direito, Renovar, 2003, 1-4).

11Jeschek, lehrbuch des strafrechts, aT, Berlin, 1966, 256, 864.12v. polaino navarrete, derecho penal, parte general, § 7o, princípios constitucionais del derecho penal, 257-

276.13no que tange aos princípios expressos em nossa carta política, citamos: a punição às discriminações

atentatórias dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5o, XLI); incriminação à prática do racismo (art. 5o, xlii); a inafiançabilidade e vedação de graça ou anistia dos crimes de tortura (art. 5o, xliii); a intranscendência da pena (art. 5o, xlv); a individualização da pena (art. 5o, xlvi); a proibição das penas desumanas, cruéis e infamantes (art. 5o, xlviii e l); a dignidade do argüido (art. 5o, xlix).

14maurício antônio Ribeiro lopes, Teoria constitucional do direito penal, RT, 2000, 550-564.15Roxin, iniciación al derecho penal de hoy, madrid, Reus, 1976, 25/28.16nilo Batista, introdução crítica ao direito penal brasileiro, Renovar, 8a ed., 2001, § 11, 91-96.17nilo Batista, op. cit., § 11, 91-93.

BIBLIOgRAfIA

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AS DIVERSAS FACES DOS EMBARGOS DE

DECLARAÇÃO

J.E. Carreira Alvim, doutor em Direito pela UFMG; professor-adjunto da UFRJ; coordenador do Curso de Mestrado em Direito da UNIG; membro do Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos (IPEJ-RJ); membro do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

Sumário: 1. Considerações prévias. 2. Embargos de declaração - Natureza e finalidade. 3. Embargos modificativos.

desembargador do Tribunal Regional da 2ª Região

J. e. carreira alvim

AS DIVerSAS FACeS DoS emBARGos de deClARAção

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23

AS DIVerSAS FACeS DoS emBARGos de deClARAção

4. Embargos pré-questionadores. 5. Embargos inquisitórios. 6. Embargos de declaração e o art. 515, § 3º, CPC - Questões citra, ultra e extra petita. 7. Conclusão.

1. C o n s i d e r a ç õ e s prévias

O ordenamento processual brasileiro sofreu grandes transformações nos anos noventa, quando se fez a mais profunda reforma no CPC, através de pequenas reformas, abrangendo inclusive os recursos, que têm constituído o maior ponto de estrangulamento na entrega da prestação jurisdicional. Mas

estas pequenas reformas não têm sido suficientes para agilizar o processo, porquanto os tribunais vêm consentindo na criação pretoriana de recursos não previstos expressamente nas leis processuais, gerando distorções no sistema recursal, com o que o processo fica cada vez mais lento e a prestação jurisdicional cada vez mais distante do jurisdicionado.

Essa distorção vem ocorrendo principalmente com os embargos de declaração, que, em princípio, eram apenas declaratórios, adquirindo com o passar do tempo caráter integrativo e, mais tarde, o perfil de pré-questionadores.

2. Embargos de declaração - Natureza e finalidade

Os embargos de declaração são um recurso previsto no art. 535, I e II, do CPC, sendo cabíveis quando houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição ou for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.

Em doutrina, discute-se a natureza jurídica dos embargos declaratórios: se seriam um verdadeiro e próprio recurso ou mero complemento da sentença ou acórdão, sendo a sua natureza apenas integrativa.

Reza o art. 165 que as sentenças e acórdãos devem ser

24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

proferidos com a observância do disposto no art. 458 do CPC; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso. O art. 458 dispõe sobre os requisitos da sentença, aplicáveis também aos acórdãos, quais sejam, o relatório, os fundamentos e o dispositivo. O relatório contém os nomes das partes, a suma (resumo) do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo. Os fundamentos são o capítulo da sentença em que o juiz analisa as questões de fato e de direito. O dispositivo é o capítulo da sentença em que o juiz resolve as questões que as partes lhe submeteram. Em se tratando de acórdão, contém o relatório e o voto, sendo este composto de fundamentos e dispositivo.

Embora não o diga o art. 458 do CPC, a sentença ou acórdão deve ser clara e precisa, como rezava o art. 280, caput, do Código revogado, pois o mínimo que se pode exigir do juiz é que se exprima de forma a não ensejar obscuridade ou contradição.

Essa a razão dos embargos de declaração previstos no inciso I do art. 535, que objetivam expungir da sentença ou acórdão eventuais defeitos que possam comprometer a sua exata compreensão. A obscuridade da sentença é produto da falta de clareza, enquanto a contradição

traduz a incoerência entre as proposições (expressão de um juízo) contidas nos fundamentos da sentença ou acórdão, ou mesmo entre os fundamentos e o dispositivo da decisão. Mas a sentença deve acolher ou rejeitar, no todo ou em parte, o pedido formulado pelo autor nos termos do art. 459, ou seja, não deve conter omissão que a tornem citra petita; o mesmo se diga do acórdão, que nada mais é do que

do processo, seja levantada pela parte, seja de ofício pelo juiz, ele se converte numa questão (Carnelutti). O juiz não tem o dever de pronunciar-se sobre todos os pontos suscitados pelas partes, mas apenas sobre aqueles que tenham relevância para o julgamento da causa (lide).

3. E m b a r g o s modificativos

Depois da nova Constituição, o sistema processual sofreu os efeitos da descompressão da “litigiosidade contida”, com o ajuizamento de inúmeras ações, todas com o mesmo perfil, postulando praticamente os mesmos direitos, como aconteceu com as ações previdenciárias, as ações de repetição de indébito tributário, as ações de correção de expurgos inflacionários e muitas outras. Diante dessa situação, juízes e tribunais, para darem conta do trabalho, passaram a padronizar sentenças e acórdãos, mudando apenas o nome das partes, e foi aí que surgiram os julgamentos “empacotados”, ou seja, um julgamento original com um sem número de julgamentos ajustados a esse padrão.

Tal modo de julgar provocava, como provoca, vez por outra, um julgamento desajustado do padrão, decidindo o juiz ou tribunal um litígio diverso daquele posto em juízo, como, por exemplo,

a decisão proferida pelo tribunal. Essa a razão dos embargos de declaração previstos no inciso II do art. 535, visando suprir omissão sobre ponto a respeito do qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.

Em doutrina, toda alegação formulada pelas partes, enquanto não vem a ser objeto de controvérsia, constitui um ponto. Se a respeito desse ponto, porém, surge alguma dúvida no curso

“O juiz não tem o dever de

pronunciar-se sobre todos os pontos suscitados pelas

partes, mas apenas sobre aqueles que tenham relevância para o julgamento

da causa”

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25

julgando uma causa sobre revisão de Renda Mensal Inicial (RMI) como se fosse Reajuste de Benefício Previdenciário (RDP), e vice-versa.

Esses julgamentos “empacotados”, envolvendo inúmeras causas repetitivas, fizeram florescer, em sede pretoriana, uma modalidade de embargos, objetivando alterar o julgado e obter a decisão correta sobre a causa, sendo, por isso, denominados embargos modificativos ou com efeitos infringentes. O argumento usado para justificar tais embargos é o caráter teratológico da decisão (sentença ou acórdão) embargada, mas em vez de corrigir uma teratologia, criou-se outra maior, numa situação análoga à do médico que, para curar o paciente, ministra-lhe um remédio tão forte que acaba por causar-lhe a morte. Isso porque, a pretexto de ter havido teratologia no julgamento, a maioria dos embargos com esse perfil objetivam alterar a própria essência (substância) do julgado, imprimindo-lhes o perfil de verdadeira segunda apelação.

Como os embargos de declaração, de regra, não admitem resposta, mesmo porque têm de regra apenas efeitos integrativos da sentença ou acórdão, a admissibilidade dos embargos modificativos ou com efeitos infringentes tornou necessária a audição da parte embargada para contra-arrazoar

o recurso, em obediência aos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF).

Essa nova modalidade de embargos, com perfil de uma segunda apelação interposta por quem sucumbiu na primeira, produz uma outra anomalia recursal, fazendo surgir para ambas as partes (embargante e embargada) o direito de sustentar oralmente esse recurso

4. Embargos pré-questionadores

A prática recursal demonstrou que a admissibilidade de recursos especial e extraordinário não passa pelos seus pressupostos específicos se tiver havido supressão de instância, o que fatalmente ocorrerá relativamente às questões em relação às quais tiver havido obscuridade, contradição ou omissão, e não forem interpostos embargos de declaração.

Mas, e relativamente às demais questões, estará comprometido o recurso especial ou extraordinário na sua integralidade?

Este é um aspecto do problema que não tem merecido a atenção da doutrina e da jurisprudência, embora tenha suma importância no exame dos pressupostos dos recursos extraordinário e especial.

No âmbito dos tribunais superiores, tem-se entendido não ter cabimento recurso especial e extraordinário se não tiver a questão infraconstitucional ou constitucional sido pré-questionada, ainda que em sede de embargos de declaração. No entanto, isso não significa que, julgada a apelação pelo tribunal, deva a parte, antes de interpor recursos especial

no tribunal, o que não acontece com os embargos simplesmente declaratórios. Uma tolerância desse porte, já sacramentada pelos tribunais superiores, pode dar ensejo até mesmo a eventual recurso adesivo da parte contrária à embargante, nos moldes dos arts. 500 e 530 do CPC. Pelo andar da carruagem, parece que é o que vai acontecer em virtude do desvirtuamento ocorrido com os embargos de declaração.

“(...) tendo o acórdão mais de um fundamento,

mesmo que providos os embargos de

declaração quanto a um deles, o fundamento

subsistente seria, por si só, suficiente

para manter íntegro o julgado.”

26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

e extraordinário, oferecer embargos pré-questionadores, para pré-questionar as questões em relação às quais pretende interpor recurso especial ou extraordinário. Mesmo porque, se a matéria não tiver sido questionada na petição inicial, na defesa, nas razões e contra-razões recursais, ou nos embargos de declaração de natureza integrativa (art. 535, I e II), estará havendo na verdade um pós-questionamento, o que não autoriza o tribunal de apelação a julgá-lo.

Nesse ambiente, surgiu a nova modalidade de embargos denominados embargos pré-questionadores, a respeito dos quais não existe entendimento uniforme nem na doutrina e nem na jurisprudência.

O instituto do “pré-

questionamento” tem sido mal compreendido, não só no que tange à sua extensão como à sua profundidade.

Se os embargos de declaração não têm cabimento além dos limites traçados pelo art. 535, I e II do CPC (casos de obscuridade, contradição ou omissão), onde estaria o interesse e a utilidade em “pré-questionar” para abrir ao recorrente o acesso aos recursos especial e extraordinário?

Alguma utilidade o pré-questionamento terá se a hipótese for realmente daquelas previstas no art. 535, I e II, do CPC, caso em que ao tribunal de origem cabe completar o julgamento, desfazendo a obscuridade ou a contradição, ou suprindo a omissão; mas absolutamente de nenhuma utilidade se o embargante pretender pré-questionar questões exclusivamente para fins de recurso especial ou extraordinário, não tendo os embargos nesses casos o menor cabimento; porque o tribunal não pode, em circunstâncias normais, modificar o acórdão, ainda que contaminado por error in procedendo ou error in iudicando, não podendo os embargos declaratórios funcionar como uma segunda apelação.

Mas, se houver no acórdão obscuridade, contradição ou

omissão, e não pretender o recorrente recorrer para os tribunais superiores quanto a essas questões, nenhuma utilidade terá o pré-questionamento, podendo interpor recursos especial ou extraordinário sobre aquelas questões que, pela sua clareza e precisão não precisa da atividade integrativa do tribunal de apelação.

O equívoco que envolve o instituto resulta do fato de os tribunais superiores dizerem nos seus julgados, simplesmente, que não conhecem do recurso (especial ou extraordinário) por falta de pré-questionamento, sem deixar claro que a hipótese comportava embargos declaratórios não interpostos e o recurso versava sobre elas, o que sugere aos advogados que os embargos declaratórios devam ser oferecidos em qualquer hipótese, mesmo fora do art. 535, I e II, como um necessário pressuposto de admissibilidade desses recursos, e que não é.

No fundo, quando os tribunais superiores não conhecem do recurso (especial ou extraordinário) por falta de pré-questionamento, é porque a hipótese versava sobre questões que comportavam embargos declaratórios, que, no entanto, não foram interpostos, e, não tendo-o sido, suprimiu-se uma instância, que, no caso, era o próprio órgão julgador. Este é o verdadeiro motivo do não conhecimento do recurso

“O instituto do “pré-questionamento” tem sido mal compreendido, não só no que tange à sua extensão como à sua profundidade.”

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27

(especial ou extraordinário) pelos tribunais superiores, ou seja, pela supressão de uma instância, decorrente da falta de oposição de embargos cabíveis, pois, se não for, aquilo que tiver sido pré-questionado na apelação foi, e o que não tiver sido não foi, não podendo sê-lo num momento posterior (pós-questionar) através de embargos declaratórios incabíveis.

Na verdade, não é a ausência de pré-questionamento de questão infraconstitucional ou constitucional que inviabiliza o conhecimento do recurso especial ou extraordinário, mas o fato de não terem sido pré-questionadas as (reais) questões ligadas à obscuridade, à contradição ou à omissão, quando cabia ao interessado fazê-lo.

Neste sentido, editou o egrégio Supremo Tribunal Federal a Súmula n. 356, assentando que: “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do pré-questionamento”.

Oportuno observar, também, que, em face do princípio da eventualidade, as partes devem deduzir todas as alegações e defesas que poderiam opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido, pelo que,

se não o fizerem, reputam-se deduzidas e repelidas, pelo juiz ou tribunal, ficando, tanto quanto a sentença de mérito, cobertas pela coisa julgada (art. 474 do CPC).

Destarte, se o autor ou réu tiver formulado alguma alegação na inicial ou na defesa, e não tiver o juiz decidido a respeito, deverão eles, na medida do seu interesse, oferecer embargos, com base no art. 535, II, buscando, dessa forma, suprir a omissão, sem o que estará tal questão preclusa, não podendo o tribunal fazê-lo na apelação; de outro lado, se tiver o apelante

suscitado alguma questão, e não tiver o tribunal de apelação decidido sobre ela, deverá, igualmente, embargar, com base no art. 535, II, buscando dessa forma suprir a omissão, sem o que estará preclusa, não podendo o tribunal superior fazê-lo no recurso (especial ou extraordinário).

Daí estarem certos os tribunais superiores em não conhecer do recurso por falta de pré-questionamento, mas apenas quanto a questões em que, sendo caso de obscuridade, contradição ou omissão, o pré-questionamento – quer dizer, a interposição dos embargos do art. 535, I e II – se fazia necessário, e não em qualquer hipótese, como, v. g., quando tenha a parte se omitido em fazer alegação e, vindo a perder a demanda, intenta discutir tal questão (constitucional ou infraconstitucional), ou aquelas que nem chegaram a ser objeto de cogitação da parte no curso da demanda. Neste sentido, editou o Supremo Tribunal Federal a Súmula n. 282: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”.1

1 A respeito, assentou igualmente o

Superior Tribunal de Justiça que: �A matéria

constitucional suscitada, a posteriori, pela parte,

no âmbito da via declaratória, não possibilita o

prequestionamento com vistas à interposição de recurso

extraordinário para a Suprema Corte� (ED no Resp. n.

61.476/SP). Nessa mesma diretriz, orientou-se ainda

o Supremo Tribunal Federal, entendendo que : �O

prequestionamento não resulta da circunstância de a

NOTAS BIBLIOgRáfICAS

1 a respeito, assentou igualmente o superior Tribunal de Justiça que: “a matéria constitucional suscitada, a posterior, pela parte, no âmbito da via declaratória, não possibilita o pré-questionamento com vistas à interposição de recurso extraordinário para a Suprema Corte” (ED no Resp. n. 61.476/sp). nessa mesma diretriz, orientou-se ainda o supremo Tribunal federal, entendendo que: “O pré-questionamento não resulta da circunstância de a matéria haver sido empolgada pela parte recorrente. A configuração do instituto pressupõe debate e decisão prévios pelo colegiado, ou seja, emissão de juízo sobre o tema (agRg no al n. 234.612-2). 2 Neste sentido, o Supremo Tribunal de Justiça assentou que: a) não configura violação ao princípio da ampla defesa a hipótese em que o acórdão não examina todas as questões postas pelo recorrente, restringindo-se àquelas necessárias e suficientes ao deslinde da controvérsia (ed no ms n. 5.986-df, 1ª seção unânime, dJ 8/3/2000, p. 39); b) louvando-se a decisão em fundamentação suficiente, o órgão julgador não está obrigado a exaurir todos os temas levantados pela parte (precedentes: Resp. n. 88.365/sp, edResp. n. 160.969/pe, ed Resp. n. 54.660/sp)(ed no agRg na petição n. 832-RJ, corte especial, unânime, dJ 11/10/99. p.34).3 pROcessO civil. mandadO de segURança cOnTRa aTO JUdicial. descaBimenTO cOmO sUcedÂneO de RecURsO pRÓpRiO. TUTela anTecipada. cOncessãO QUandO da senTença. caBimenTO. pRecedenTes (v.g. RR. mm. ss. 1.167-Ba, 6.012-sp e 6.693-sp). dOUTRina. RecURsO pROvidO.i – no sistema anterior à lei nº 9.139/95, descabia, exceto em casos de abuso ou manifesta teratologia, a pretensão de atacar diretamente a decisão judicial pela via do writ, uma vez que o mandado de segurança contra ato judicial recorrível vinha sendo admitido, por construção doutrinário-jurisprudencial, para comunicar efeito suspensivo ao recurso dele desprovido, em face da probabilidade de lesão dificilmente reparável. Com a referida lei, que deu nova redação ao art. 558, CPC, outra é a sistemática.ii – nos termos do enunciado nº 267 da súmula/sTf, reforçado após a lei nº 9.139/95, que deu nova redação ao art. 558, cpc, “não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”. iii – de acordo com precedente da Turma, e boa doutrina, a tutela antecipada pode ser concedida com a sentença.” (Resp. n. 299433-RJ, rel. Ministro Sálvio Figueiredo Teixeira, STJ, 4ª T., um., dJ 4/2/02, p. 381.)4 “TUTela anTecipada. sentença. embargos de declaração.a tutela antecipada pode ser concedida na sentença, ou, se omitida a questão, anteriormente proposta, nos embargos de declaração. art. 273 do cpc. Recurso conhecido e provido. (Resp. n. 279.251-sp, relator ministro Ruy Rosado de aguiar, sTJ, 4ª t., um., dJ 30/04/01, p. 138).

28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

O transporte de passageiros por meio de peruas e vans passou a proliferar na década de 90. Conceituá-lo como “transporte alternativo”, constitui erronia, pois, na realidade, trata-se de

transporte operado ao arrepio da lei, vale dizer, irregular e clandestinamente.

Admitindo-se, ad argumentandum tantum, a existência de um de transporte opcional (expressão sinônima de alternativo: in Dicionário Aurélio - pg. 107; Dicionário Houaiss - pg. 169), tanto quanto o regular, deveria integrar os sistemas regulamentados e ser submetido às mesmas regras impostas pelos poderes concedentes aos serviços delegados.

Há uma premissa básica a ser definida, qual seja, se, o que se deseja para o Brasil é o transporte coletivo

como uma atividade meramente comercial, afeta, exclusivamente, às regras de livre mercado, ou como um sistema pré-ordenado, com a conotação de serviço público, de responsabilidade do Estado e por ele tutelado e fiscalizado.

A Constituição Federal de 1988, na esteira das anteriores, definiu o modelo a ser seguido no artigo 175.

Serviço público essencial, assim definido em lei, o transporte coletivo exerce funções sociais e econômicas relevantes. Sobre assegurar o direito constitucional de “ir e vir” e ser indutor de progresso, constitui importante fonte geradora de empregos diretos e indiretos.

Os sistemas de transporte regular de passageiros, sob tutela da União, Estados e Municípios, operados por empresas regulares, atendem às exigências de

o tRAnspoRte ClAndestino

No BrASIl e SeU IMpACTo

advogado do sindicato das empresas de Transportes do estado de são paulo -

seTpesp

manuel zuanella

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29

regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia e modicidade das tarifas (artigo 6o e § 1o da Lei 8.987/95), estando entre os mais perfeitos da América Latina e do mundo.

Os que afirmam que o transporte “alternativo” decorre da má qualidade dos serviços delegados não só erram e cometem suma injustiça, como também propagam a desregulamentação, sem atentar às graves conseqüências do que apregoam, fazendo “tabula rasa” das funestas experiências do México (Cidade do México), do Chile (Santiago) e Peru (Lima).

Já na Carta Constitucional de 1946 o transporte coletivo por ônibus foi definido como serviço público, de caráter essencial, com outorga sujeita às regras impostas pelos poderes públicos competentes para legislar sobre transporte. O Código Nacional de Trânsito, aprovado pela Lei no 5.108, de 21/09/66, definiu as competências da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios (artigo 44).

A Constituição de 1988 consolidou a exigência de licitação para outorga de concessões e permissões de serviço público, nos termos do disposto no 175:

“Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

“Parágrafo único – A lei disporá sobre:I – o regime das empresas concessionárias e

permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;III – política tarifária;IV - a obrigação de manter serviço adequado.”O diploma legal mencionado no parágrafo único é a

Lei 8.987, de 13/02/95.Ora, a atividade exercitada por proprietários de peruas

e vans é idêntica à executada pelas empresas regulares, razão pela qual deve ser submetida às mesmas normas legais. No entanto, usurpando as competências dos órgãos competentes, operam atividade pública ao arrepio da lei, fixando, ao bel talante, as normas a serem observadas como se legisladores fossem. Os veículos utilizados não estão incluídos entre os aptos ao transporte coletivo, pelo Código de Trânsito Brasileiro (artigo 96, inciso II, alínea “a”, itens 8 e 9) e pelas Resoluções CONTRAN 03/68 e 811/96.

A Carta Fundamental distingue duas grandes classes de atividades, seja quanto ao regime que lhes

são atribuídos, seja quanto à titularidade das mesmas: a atividade econômica e a atividade pública (artigo 170 e seguintes). O exercício de atividades econômicas é reservado aos particulares, ressalvados os casos previstos na própria Carta Fundamental (artigo 173); os serviços públicos estão regulados no artigo 175 verbis:

“Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.

O transporte coletivo de passageiros, definido como serviço de caráter essencial (artigo 9o e parágrafo 1o c/c artigo 30, inciso V, ambos da CF e artigo 10, inciso V, da Lei 7.783, de 28/06/89), de titularidade do Poder Público, está incluído entre os serviços públicos.

Para Celso Antonio Bandeira de Mello, os serviços públicos constituem coisa fora do comércio (res extra commercium), privativo das pessoas públicas (Municípios; Estados; Distrito Federal; União), afirmando que a execução (atividade pública) pode ser objeto de delegação ao particular, via concessão ou permissão, mediante licitação.

Não obstante o disposto no artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal, não padece dúvida que os Estados (artigo 25 e § 1°) e os Municípios (artigo 30, V) são competentes para legislar sobre transporte, nas respectivas jurisdições, ante o que estabelece o respectivo parágrafo único:

Os transportadores clandestinos confundem exercício de atividade econômica (artigo 173 da CF), com a atividade

“Os que afirmam que o transporte ‘alternativo’

decorre da má qualidade dos serviços delegados

não só erram e cometem suma injustiça, como também propagam a desregulamentação,

sem atentar às graves conseqüências do que

apregoam (...)”

30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

pública (artigo 175 da CF) e o Poder Judiciário comete o mesmo equívoco ao conceder liminares liberando os veículos envolvidos na clandestinidade. Sem embargo, aos poderes concedentes compete coibir a continuidade do transporte ilegal, exercitando, com máximo rigor, o poder de polícia (poder-dever), zelando pela ordem.

O eminente desembargador Sérgio Cavalieri Filho, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e professor titular da Cátedra de Responsabilidade Civil da Universidade Estácio de Sá (RJ), em brilhante palestra sobre o tema “A Responsabilidade Civil do Estado pelo dano provocado no transporte alternativo”, proferida no “V Congresso Responsabilidade Civil no Transporte Terrestre de Passageiros”, entre 24 e 26 de março de 2000, na Estância de São Roque, promovido em parceria pelo CEPES – Centro de Estudos e Pesquisas do 1o Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo e o Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo, foi incisivo ao condenar a inércia e o descaso dos poderes públicos competentes no trato do transporte ilegal:

“Com relação ao tema em debate, eu faria uma primeira observação. Transporte alternativo, para mim, é um eufemismo. É um termo muito brando, pouco expressivo, para retratar o transporte de que estamos falando. Trata-se, na realidade, de um transporte clandestino, pirata, irregular e, por isso mesmo, ilegal, que jamais deveria ter sido permitido, sequer tolerado, pela autoridade administrativa, não só pela concorrência ruinosa que ele faz, como já destacado, mas também, e principalmente, pela absoluta insegurança do serviço que presta.”

Referindo-se à responsabilidade civil das empresas concessionárias e permissionárias de transporte terrestre de passageiros, acentuou:

“É, sem dúvida, uma responsabilidade das mais rigorosas. Ela é objetiva, sim, quer em relação aos passageiros, quer em relação ao pedestre e a terceiros. No meu entender, só pode ser afastada por aquilo que chamo de fortuito externo, e pelo fato exclusivo da vítima”.

Reportando-se ao transportador informal afirmou:“Em contrapartida, o transportador clandestino não

oferece a menor segurança aos seus usuários e também não tem nenhum patrimônio para honrar as suas

obrigações, muito menos para pagar a indenização das numerosas vítimas dos acidentes que causa.

Nem mesmo os veículos utilizados nesse tipo de transporte pertencem aos transportadores, mas sim às instituições bancárias, às instituições financeiras, porque são colocados em circulação através do sistema de leasing e alienação fiduciária, e na hora, os bancos pedem de volta os seus veículos.”

Referindo-se à forma como o Poder Judiciário vem decidindo procedimentos judiciais intentados por proprietários de veículos envolvidos na clandestinidade, liberando-os sem ônus, afirmou, peremptoriamente:

“Nem mesmo as multas de trânsito são pagas, porque, lamentavelmente, quando, eventualmente, esses veículos

são apreendidos, conseguem logo uma liminar para liberá-los, o que, de certa forma, no meu entender, torna o Judiciário conivente com esse transporte irregular”.

Adiante, adjuntou: “Não obstante todos esses

inconvenientes, esse transporte clandestino praticamente invadiu as capitais e as grandes cidades do interior, senão pela ação, pelo menos pela omissão das autoridades administrativas ao argumento de que ele iria preencher as eventuais lacunas deixadas pelo transporte regular. Pura falácia!

A FETRANSPOR, no Rio de Janeiro, fez um estudo aprofundado sobre a questão, e os dados apresentados são alarmantes não só no Rio de Janeiro, mas também em

São Paulo e no restante do Brasil. Só a título de exemplo, a pesquisa demonstrou que cerca de 52% (cinqüenta e dois por cento) das vítimas de acidente de transporte são vítimas desse transporte clandestino. Essas vítimas quase sempre sofrem, quando não morrem, evidentemente, ferimentos gravíssimos. Nunca ficam internadas menos do que dois meses. Sofrem, no mínimo, duas grandes cirurgias e quase sempre ficam com seqüelas graves, engrossando a fila dos aposentados por invalidez do INSS.

Em São Paulo, ônibus foram queimados (mais de uma dúzia), os passageiros assustados, praticamente expulsos dos ônibus, os fiscais ameaçados, o trânsito interrompido. Donos do mundo! Isso vem acontecendo em grande parte do Brasil e também na América do Sul.”

“Os transportadores clandestinos

confundem exercício de atividade econômica,

com a atividade pública e o Poder Judiciário

comete o mesmo equívoco ao conceder liminares liberando os veículos envolvidos

(...).”

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31

As conseqüências decorrentes do transporte clandestino são nefastas à administração pública, à economia, à mão-de-obra utilizada, aos sistemas regulares, aos usuários, ao meio ambiente, enfim, à sociedade como um todo:

- em relação à Administração Pública a principal conseqüência é a perda de governabilidade resultante da não-regulamentação dessa atividade (artigo 175 da CF) e do não-exercício do poder de polícia, por quem de direito;

- no tocante à economia, à saúde, ao meio ambiente e à sociedade, os malefícios causados são múltiplos: desvio de clientela dos serviços regulares comprometendo o equilíbrio econômico-financeiro dos respectivos contratos (Lei 8666/93 e Lei 8.987/95); disputa desenfreada entre os próprios transportadores irregulares, provocando acidentes gravíssimos, que põem em risco a incolumidade física dos passageiros e de terceiros, bem como o próprio patrimônio e o de terceiros; absoluta ausência de benefícios aos usuários, inclusive, em relação às tarifas aprovadas aos sistemas regulares; empregos informais sem quaisquer garantias trabalhistas (jornadas de trabalho; pisos salariais; benefícios sociais; utilização de mão de obra de menor de dezesseis anos; inobservância das normas relativas à Segurança e Medicina do Trabalho); contaminação do meio ambiente (poluição) pelo excessivo acúmulo de fumaça preta e partículas de gás carbônico, responsáveis pelo fenômeno da inversão térmica etc., etc..

Do quanto já exposto, conclui-se que o combate aos desmandos perpetrados pelos proprietários de peruas e vans, que comprometem os sistemas regulares de transporte de passageiros, é necessário para resgatar autoridade dos poderes concedentes e a dignidade das leis que regem os sistemas de transporte coletivo regular.

A experiência demonstra que a caracterização do transporte coletivo de passageiros, como serviço público de caráter essencial gerenciado pelo Estado, delegável à iniciativa privada (atividade pública) é a forma mais clara e transparente para garantir um transporte eficiente, seguro, de qualidade e com modicidade de tarifa, atendendo os anseios dos usuários. As estatísticas mais recentes revelam que sessenta por cento (60%) dos deslocamentos, mesmo nas cidades dotadas de malhas

ferroviárias e sistema metroviário, são realizados por ônibus. Nas demais, essa verdade é mais patente, sendo o ônibus o principal responsável pela garantia do cumprimento do direito constitucional de “ir e vir”.

Importa acrescentar que cada ônibus é responsável por sete (7) postos de trabalho, o que permite afirmar que os sistemas de transporte regular geram dezenas de milhares de empregos diretos, formais, com rigorosa observância das leis trabalhistas e previdenciárias; as Empresas regulares recolhem, em dia, aos cofres públicos, todos o tributos incidentes sobre a atividade que exercitam, por delegação do Estado.

Diversamente, no transporte clandestino, tudo é informal e ilegal, não havendo concessão de gratuidades

impostas aos sistemas regulares (idosos com mais de 65 anos de idade, deficientes físicos e acompanhantes, carteiro e determinados serventuários da justiça), concessão de isenção ou redução de 50% nas tarifas, a estudantes e professores de cursos oficiais e oficializados. Não bastasse isso, os motoristas envolvidos na clandestinidade não são habilitados para o transporte coletivo, por não serem portadores de CNH categoria “D” e, por corolário, não se submetem aos exames periódicos de reavaliação (direção preventiva e direção defensiva), nem realizam os cursos exigidos pelo Código de Trânsito Brasileiro vigente (artigos 145 a 147). Os veículos utilizados (peruas e vans) não são classificados pelo Código de Trânsito Brasileiro

como aptos ao transporte coletivo, por não atenderem às especificações da Resolução CONTRAN 811, de 27/02/96 (recepcionada pelo artigo 314 do CTB) que, de forma clara e objetiva, estabelece os requisitos de segurança em se tratando de transporte coletivo, e são utilizados com inobservância do disposto no artigo 135 do CTB, sem a autorização prévia do poder público competente e não estão emplacados com chapa vermelha.

Resta analisar a atividade em comento sob o prisma da responsabilidade civil que, em relação às empresas concessionárias e permissionárias de linhas regulares delegadas pelo Estado, é objetiva, desde a vigência do Decreto no 2.681, de 07 de dezembro de 1912 (Lei das Estradas de Ferro), aplicado ao transporte coletivo por ampliação jurisprudencial do artigo 17:

“Operando da forma como vêm

fazendo, competindo deleteriamente com

as empresas (...), os transportadores informais não estão

exercitando atividade econômica a que

teriam direito, mas sim, atividade pública”

32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

“As estradas de ferro responderão pelos desastres que nas suas linhas sucederem aos viajantes e de que resulte a morte, ferimento ou lesão corpórea.

A culpa será sempre presumida, só se admitindo em contrário algumas das seguintes provas:

I – caso fortuito ou força maior; II – culpa do viajante, não concorrendo culpa da

estrada.”Destarte, a regra consubstanciada no parágrafo 6o, do

artigo 37, da Constituição Federal de 1988, nada mais fez do que confirmar o que a doutrina e a jurisprudência já haviam consagrado.

A responsabilidade do transportador clandestino em relação aos seus clientes também é objetiva, seja ela analisada sob o prisma do Código Civil vigente, seja sob a ótica do Código de defesa do Consumidor. Nos acidentes com vítimas fatais, ou dos quais resultem lesões corporais incapacitantes para o trabalho (total ou parcialmente; temporária ou permanentemente), a situação é ainda mais grave: a uma, por se tratar de serviço operado sem delegação do Poder Público competente; a duas, porque os motoristas não são portadores de CNH, categoria “D”; a três, vez que os veículos não qualificados para o transporte coletivo, dos quais, sequer, são os legítimos proprietários posto que adquiridos pelo sistema de leasing, circunstâncias que, na órbita do direito penal, constituem agravantes.

Por conseguinte, no campo da responsabilidade civil, resta indagar se pode ser atribuída responsabilidade ao Estado, em decorrência de omissão no exercício indeclinável do poder de polícia. De responsabilidade subsidiária não se trata, porque o transportador clandestino não atua como agente do Estado, mas, há os que sustentam a responsabilidade solidária, caso o devedor seja insolvente. Digno de registro o entendimento do desembargador Sérgio Cavalieri Filho:

“Creio que poderá a Administração Pública, o Poder Concedente, ser responsabilizado pelos danos sofridos pelas vítimas dos acidentes do transporte clandestino. A omissão passa a ter relevância causal quando o emitente tem um dever jurídico de agir. E é o caso da Administração. Lembro, todavia, que também aqui não poderemos aplicar a responsabilidade fundada no risco administrativo, a responsabilidade objetiva do artigo 37, parágrafo 6o, porque esses transportadores clandestinos não são agentes do Estado. Também aqui terá a vítima que buscar a eventual indenização com base na culpa anônima ou na falta do serviço à qual já nos referimos”.

Cabe ao Poder Judiciário dissipar dúvidas, a partir do momento em que vítimas de acidentes provocados

por veículos envolvidos na clandestinidade (passageiros e terceiros) passarem pleitear indenizações (patrimoniais e por danos morais), incluindo o Estado no pólo passivo da ação. E, para tanto, contará com a cultura jurídica dos ilustrados magistrados e dos doutos representantes do Ministério Público, que honram e nobilitam as instituições que integram.

Por derradeiro, vale acrescentar que a prática de transporte irregular implica a ocorrência de ilícitos penais, não só decorrentes do exercício, propriamente dito, de atividade pública sem delegação do Poder Público competente, como também, diante do envolvimento dos transportadores clandestinos com o submundo do crime:

a) concorrência ruinosa, capitulada no artigo 178, inciso III, do Código Penal, mantido em vigor pelo artigo 128 da Lei no 5.772, de 21/12/71 (Código de Propriedade Industrial);

b) usurpação de função pública, crime tratado no artigo 328 do Código Penal, com previsão de pena de reclusão e 2 a 5 anos e multa.

De todo o exposto, conclui-se que a proliferação do transporte clandestino com as conseqüências dele decorrentes está a exigir reflexão. Não se pretende questionar o direito ao trabalho, princípio constitucional pétreo, até porque isso constituiria imperdoável veleidade, mas, há que se atentar, com rigor, ao que dispõe o inciso XIII, do artigo 5o, da Constituição Federal, que consagra “o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

Operando da forma como vêm fazendo, competindo deleteriamente com as empresas concessionárias e permissionárias, os transportadores informais não estão exercitando atividade econômica a que teriam direito (artigo 173 da CF), mas sim, atividade pública, sem delegação do Estado (artigo 175 da CF), portanto, de forma ilegal.

Bem por isso, o apelo que com acato e respeito se formula ao Poder Judiciário, responsável pela aplicação da lei, ao Ministério Público Federal e Estadual e ao Ministério Público do Trabalho, guardiões da lei e do direito, é no sentido de procederem à análise detida da atividade exercitada pelos transportadores informais, qualificando-a e definindo-a em face da legislação aplicável, a fim de atuarem com eficiência no combate ao transporte clandestino, que assume proporções alarmantes e que tende a agravar-se cada vez mais se a lei e o direito não prevalecerem, como se impõe e se espera, como garantia mínima à manutenção da ordem e da paz social em um Estado Democrático de Direito.

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33

Aprovado pelo Congresso Nacional há mais de dois anos, e sancionado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro de 2003, o Estatuto do Desarmamento já é uma realidade.

Este mês será realizado o referendo popular para saber se a população concorda com a proibição da venda de armas de fogo e munição em todo território nacional. A consulta está a cargo do Tribunal Superior Eleitoral.

Entretanto, a luta não se encerra com a aprovação do projeto. Temos agora outra missão que é mobilizar a população para que a venda de armas seja proibida, pois a essência do projeto visa desarmar a população. O estatuto proíbe o porte de armas em todo o Brasil, com exceção dos membros das Forças Armadas e polícias, agentes de segurança privada e inteligência, e civis com porte concedido pela Polícia Federal. O texto torna inafiançável o crime de porte ilegal de arma e somente maiores de 25 anos poderão comprar armas de fogo.

Trata-se de um grande avanço. No meu Estado, Pernambuco, os índices de criminalidade e violência são absurdos. O desarmamento nacional vai começar a mudar essa realidade. É sabido por todos que a quantidade de mortes causadas por armas de fogo é compatível com aquelas que ocorrem em uma guerra civil.

Anualmente são mais de 35.000 vidas de brasileiros ceifadas pelo uso das armas de fogo. A maioria das vitimas são jovens de 17 a 24 anos. O que isso significa para nós? Significa que a violência em nosso país – principalmente nas regiões mais pobres, como o Nordeste - alcançou índices alarmantes, e que o Parlamento brasileiro não poderia ficar de braços cruzados.

Mata-se mais em algumas regiões brasileiras - inclusive no Nordeste - num único fim de semana, do que num mês inteiro de conflito na Faixa de Gaza. E mais doloroso de tudo é saber que a faixa etária de nossa população mais atingida é de jovens muitas vezes pelo envolvimento com drogas, comércio, aliás, sustentando pelo tráfico de armas.

Como resposta a essa triste realidade demos o passo inicial com a apresentação do Estatuto do Desarmamento. Mas não podemos cruzar os braços. Só com apoio da sociedade é que essa situação será revertida, ou minimizada. Está provado que a arma de fogo é mais eficaz para agredir, e em menor escala para defender. Muitas das armas usadas para defesa pessoal acabam indo parar nas mãos de marginais, ou de policiais inescrupulosos.

Uma arma ao alcance das mãos transforma conflitos banais em tragédias. Ela é o principal instrumento da violência e contribui para sobrecarregar o sistema público de saúde. Alguns apologistas da necessidade do porte de armas para a autoproteção afirmam que sem armas de fogo não é possível realizar a legítima defesa. Pelo contrário, é por meio do desarmamento civil que conseguiremos separar os criminosos das pessoas honestas.

O sim ao desarmamento no plebiscito de outubro representará um grande avanço no sentido de evitar a disponibilização de armas à sociedade e, sem dúvida alguma, contribuirá para a sensível diminuição das mortes com armas de fogo. Temos que dar uma resposta positiva às famílias brasileiras que esperam de todos nós uma posição corajosa na efetiva redução da quantidade de armas disponíveis e, conseqüentemente, da violência no seio da sociedade.

BAstA de violÊnCiA

deputado federal e presidente da frente parlamentar dos advogados

luiz piauhylino

34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

A HORA DO JUDICIÁRIO

Dalmo de Abreu Dallari

1. Chegada de um novo direito

Quando terminou o ciclo das revoluções burguesas, no final do século dezoito, tinha-se como estabelecido o governo de leis, que substituiria o governo de homens e assim sepultaria o absolutismo. Como bem observa Yves Lemoine em Le complot des juges, um pormenor bem expressivo é o fato de que a partir de então os estudantes de direito passaram a ser formados na “devoção ao Código”, expressão máxima do novo

direito que começava a se formar. Consagrou-se, então, o chamado “princípio da legalidade”, importante e benéfico enquanto barreira ao poder exercido arbitrariamente, mas negativo e oposto aos ditames da justiça quando concebido, como passou a ser de modo predominante, como fundamento de uma concepção puramente formalista do direito, considerando não-jurídicas as preocupações com valores éticos e sociais. Esta concepção foi a que prevaleceu na França e teve acolhida em todos os Países que, por vários motivos, se filiaram à cultura francesa, entre eles o Brasil.

Um sinal concreto dessa mentalidade e de sua sobrevivência é o currículo dos cursos jurídicos no Brasil, complementado pela metodologia de ensino ainda predominante. A Constituição, que todos os teóricos afirmam ser a “lei maior”, é estudada durante seis meses ao passo que o Código Civil é estudado durante quatro anos, artigo por artigo, preparando “aplicadores da lei”. Continua a

A HorA Do JudiCiÁRio

dalmo de abreu dallariJurista

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35

“devoção ao Código”. Por força dessas concepções, o juiz passou

a ter na Europa continental o papel que já lhe era dado na Inglaterra no começo do século dezessete, devendo ser um “aplicador da lei”, preso à forma e proibido de analisar criticamente os textos legais para buscar a aplicação mais justa, conforme os valores sociais vigentes. Foi por esse caminho que se chegou ao juiz “escravo da lei”, expressão absurda incompatível com a condição de juiz e que torna irrelevante o valor moral ou intelectual do magistrado, e serviu, como ainda tem servido, para reduzir os juízes à condição de serviçais passivos dos “fabricantes de leis”.

Para se ter bem claro o que isso representa, basta lembrar que no ano de 1988 a imprensa brasileira denunciou a “compra de legisladores” efetuada pelo Executivo federal brasileiro, sendo membro ativo do setor de compras o Ministro Sérgio Motta, o “Serjão”. Apesar da gravidade das informações divulgadas e de seu efeito desmoralizante, o Ministro não tomou qualquer providência para responsabilizar o jornalista denunciante. Além disso, usou da força do governo no Congresso Nacional para impedir uma investigação parlamentar, o que permite a suposição de que as denúncias eram verdadeiras. Nesse caso, o juiz que agir como escravo da lei, preso ao mais estrito formalismo, sem considerar os princípios constitucionais que informam o processo legislativo, ignorando eventuais alegações de ilegitimidade, estará, na realidade, assumindo a condição de “escravo do Serjão” ou de qualquer outro comprador de leis.

De certo modo, as teorias jurídicas, as citações eruditas, a argumentação acadêmica, tudo isso passou a ser intensamente utilizado, já no século dezenove, para dar brilho intelectual às decisões judiciais. Com muita freqüência a leitura mais atenta de uma sentença ou acórdão revela que o julgador já tinha sua decisão construída praticamente como um silogismo, segundo o mais estrito formalismo. E o recurso a citações foi usado apenas como “argumento de autoridade”, para dar um toque erudito à decisão, que seria exatamente a mesma sem a invocação de autores consagrados. Esse foi o padrão de julgamento criado a partir do legalismo formalista.

A interferência do Executivo no processo legislativo, às vezes corrompendo legisladores, mas, com maior freqüência, através de usurpação das funções legislativas, passou a ser característica do Estado a partir do final do século dezenove. Os graves desequilíbrios sociais, decorrentes dos padrões econômico-sociais do capitalismo e agravados pelas características da sociedade industrial, já evidentes nas primeiras décadas

“fingindo submeter-se ao direito, o executivo, de fato,

só leva em conta sua própria legalidade, criada por ele

para atender aos interesses que ele quer proteger ou

promover.”

36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

do século passado, levaram à mobilização e organização dos trabalhadores para protestos e reivindicações. Em conseqüência, os empresários exigiram maior presença do Estado, para conter os movimentos mais exaltados, mas também para dar resposta às principais demandas dos assalariados e das camadas mais pobres da população.

Precisando de regras para agir e sem obter uma resposta rápida e eficiente do Legislativo, o Executivo assumiu também uma função normativa, diretamente relacionada com as condições materiais de cada circunstância. Procurando-se dar o cunho de normalidade a esse procedimento, Constituições foram adaptadas, ampliando a participação formal do Executivo no processo legislativo e, afinal, passando a dar ao Executivo uma posição privilegiada nesse processo. O Legislativo ficou em plano secundário e isso estimulou novos avanços do Executivo, o que está claramente visível na realidade brasileira de hoje, quando se vê o Executivo editando uma enxurrada de medidas provisórias, praticamente todas inconstitucionais, sem que o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal cumpram seu dever constitucional de impedir esse abuso. Desse modo o direito vigente no Brasil passou a ser o direito produzido pelo Executivo, ficando ignorados os princípios, as normas e as próprias formalidades constantes da Constituição.

Em alguns Estados esse abuso do Executivo é semelhante ao que se tem no Brasil. Em outros ele

é mais discreto. Mas o que se tem hoje, em grande parte do mundo, é a forte presença do Executivo como fonte normativa, freqüentemente ignorando os valores e as características da realidade social ou indo mesmo frontalmente contra esses dados. Estabelecendo ou garantindo privilégios, promovendo injustiças, é o próprio Executivo quem estabelece as normas que supostamente deveriam limitar e condicionar suas ações e impedir os privilégios e as injustiças. Fingindo submeter-se

ao direito, o Executivo, de fato, só leva em conta sua própria legalidade, criada por ele para atender aos interesses que ele quer proteger ou promover.

Foi essa degradação do direito que fez surgir, na metade do século vinte, uma forte reação, que, em grande parte, pode ser constatada através da afirmação e do crescimento do sistema normativo dos direitos humanos. Toda sociedade humana necessita de normas, entretanto, estas não devem ser

impostas arbitrariamente nem podem ser uniformes para todos os lugares e todas as épocas. Não basta a existência de leis, pois para que elas se justifiquem e sejam respeitadas é preciso que tenham origem democrática e sejam instrumentos de justiça e de paz. Essas lições, que decorrem com evidência dos últimos duzentos anos da história da humanidade, já estavam claras há meio século, quando terminou a segunda guerra mundial.

Foi com base nas lições da História que se começou a cogitar de um novo direito,

“entre os sinais dos novos tempos podem-se indicar o alargamento das

atribuições dos juízes, em termos

de reconhecimento de direitos e de sua caracterização, bem como o considerável aumento da procura de proteção judicial.”

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37

condizente com a dignidade dos seres humanos, sem privilégios nem exclusões, e ajustado a cada realidade. Esse direito exige controle constante de sua legitimidade e aferição permanente de sua conformidade às exigências da Justiça. Além disso, para aplicação justa e eficaz das normas jurídicas é indispensável ter em conta os valores humanos e sociais e as circunstâncias de cada realidade. No aparato de poder, governo e administração até hoje usado pela humanidade, nenhuma instituição parece mais adequada para o reconhecimento e a aplicação do direito que convém aos seres humanos do que o Judiciário. Por isso merece reflexão a observação de Antoine Garapon, Secretário Geral do Instituto de Altos Estudos sobre a Justiça, sediado na França, quando, em La question du juge formula a seguinte hipótese: “Se o direito liberal do século dezenove foi o do Poder Legislativo, o direito material do Estado-providência do século vinte foi o do Executivo, o que se anuncia poderá bem ser o do juiz”.

2. Um juiz novo para um novo direito

O direito novo já é, em grande parte, uma realidade. Ao lado da construção de sistemas normativos que expressamente se baseiam nos valores fundamentais da pessoa humana, cuja universalidade não exclui a particularidade das expressões condicionadas por circunstâncias de tempo e lugar, há também manifestações de

condenação enfática do positivismo formalista, que tem servido de pretexto para a imposição de injustiças legalizadas. E é cada vez maior o número de pessoas que exigem o reconhecimento e o respeito de sua dignidade intrínseca, questionando a imposição de normas, de aparatos políticos e de ordens sociais e econômicas que visam assegurar a continuidade de injustiças há muito estabelecidas.

Entre os sinais dos novos tempos podem-se indicar o alargamento das atribuições dos juízes, em termos de reconhecimento de direitos e de sua caracterização, bem como o considerável aumento da procura de proteção judicial. Esses dois dados, altamente positivos, têm sido apontados muitas vezes, de boa ou de má fé, como sinais de “crise do Judiciário”, em sentido negativo. Deficiências e dificuldades do Judiciário são

apontadas como se fossem reveladoras de que a magistratura, de modo geral, não está preparada para as novas responsabilidades que começam a pesar sobre ela e, além disso, só deseja manter seus privilégios, ganhando muito, trabalhando pouco e nada fazendo para servir melhor o povo.

A realidade é que a organização judiciária, quase em todo o mundo, é deficiente em relação às novas demandas que lhe são dirigidas e às novas responsabilidades que decorrem, inclusive, de inovações constitucionais. Há inegáveis e graves inadequações na organização e nos procedimentos

“a realidade é que a organização judiciária,

quase em todo o mundo, é deficiente em relação às novas

demandas que lhe são dirigidas e às novas responsabilidades

que decorrem, inclusive, de inovações

constitucionais.”

38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

EmentaTratam os autos de mandado de segurança com

pedido de liminar impetrado por HSBC Bank Brasil S/A - Banco Múltiplo e HSBC Seguros (Brasil) S/A em face do Gerente Regional de Arrecadação e Fiscalização do INSS em Curitiba objetivando a declaração de nulidade das NFLDs nº 35.582.564-3 e 35.437.290-4 e dos autos de infração nº 35.582-560-0 e 35.437.289-0 lavrados contra os impetrantes em razão da exigência de contribuição social sobre os valores pagos em dinheiro aos seus empregados a título de vale-transporte e de salário-educação, além da multa cominada pelo preenchimento incorreto da guia de recolhimento do FGTS e informações da Previdência Social - GFIP.

A exordial requereu (fls. 29/30):

a) a concessão de liminar, determinando-se cessar os efeitos das Notificações Fiscais de Lançamento de Débito e dos Autos de Infração;

b) a suspensão da exigibilidade do débito;c) a determinação e expedição de Certidão Negativa

de Débito;d) a concessão de segurança, para o fim de declarar a

inexigibilidade da exigência de contribuição social sobre os valores pagos em dinheiro a título de vale-transporte e de salário-educação sobre essas parcelas, além do afastamento da multa cominada pelo preenchimento tido como “incorreto” das guias GFIP e a nulidade das NFLDs e Autos de Infração que consubstanciam a cobrança.

Liminar parcialmente concedida (fls. 322/324). A sentença (fls. 380/387) julgou improcedente o pedido, sob o fundamento de que sobre os valores pagos a título

O superior Tribunal de Justiça (sTJ) decidiu que o vale-transporte em dinheiro, independentemente de determinação por cláusula coletiva, integra o salário de contribuição para o INSS. Isso significa que o dinheiro não substitui o vale-transporte, já que quando cedido em tíquetes ou cartão eletrônico, o benefício é isento desta taxação. O sTJ entendeu que, quando o pagamento para o transporte de ida e volta para o trabalho é feito em dinheiro ao funcionário, completando a remuneração, o valor se agrega ao salário. Para o relator do processo, o ministro José Delgado, quem efetua o pagamento do vale-transporte em dinheiro não sabe se a verba está sendo utilizada para o deslocamento de seus empregados. delgado ressalta que, de acordo com o decreto 95.247/87, é vedado ao empregador substituir o vale por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento.

vAle-tRAnspoRte:A DeCISão Do SUperIor TrIBUNAl De JUSTIÇA

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39

de vale-transporte deve incidir contribuição social, uma vez que não foi observada legislação de regência e, quanto à multa cominada em decorrência da omissão de fatos geradores de contribuição previdenciária da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social - GFIP, reconheceu cabível a sua aplicação porque dentro dos limites da lei (art. 32 § 5º da Lei nº 8.212/91).

Interposta apelação pelas impetrantes, renovando o pedido lançado na exordial. O Tribunal a quo, por unanimidade, negou provimento ao pleito ao argumento de “o vale-transporte também integrará o salário-de-contribuição quando o empregador não efetuar o desconto de 6% sobre o salário-base do empregado, parcela referente à participação deste no custeio das despesas de seu deslocamento para o trabalho”, e com fundamento, também, no sentido de manter-se a aplicação pena pecuniária correspondente a 100% do valor relativo à contribuição não declarada, forte no § 5º do art. 32 da Lei 8.212/91, uma vez que não apresentada a GFIP com dados correspondentes aos efetivos fatos geradores. Nesta via recursal, sustenta a recorrente negativa de vigência dos artigos 28, § 9º, alínea “f ”, da Lei nº 8.212/91, 3º e 5º, parágrafo único, da Lei nº 7.418/85 e 535, II, do CPC. Em suas razões aduz que:

a) o acórdão atacado não apreciou a tese da inconstitucionalidade da regra do art. 5º do Decreto 95.247/87, que veda ao empregador substituir o vale-transporte por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento, tema de singular importância para a tese defendida pelos recorridos;

b) a questão referente à multa aplicada pelo preenchimento equivocado da guia GFIP, por seu caráter confiscatório, suscitou a análise do art. 150, IV, da Constituição Federal, o que, entretanto, não foi examinado pela Corte de Origem, mesmo com a oposição do recurso integrativo;

c) o Tribunal a quo também não enfrentou a tese de que o pagamento do auxílio transporte pago em dinheiro foi fixado por convenção coletiva de trabalho, em atendimento ao interesse público com o único objetivo de beneficiar o empregado;

d) não deve incidir contribuição previdenciária sobre o montante pago aos empregados, a título de vale-transporte em face do seu caráter indenizatório, não havendo qualquer vedação legal para que o auxílio seja feito em pecúnia diretamente aos trabalhadores. Contra-razões às fls.529/537, pugnando:

a) que a pretensão é reexaminar provas, incidindo o Enunciado sumular de nº 7 deste Tribunal;

“(...) não deve incidir contribuição previdenciária sobre o montante pago aos empregados, a título de vale-transporte em face do seu

caráter indenizatório, não havendo qualquer vedação legal para que o auxílio seja feito em pecúnia

diretamente aos trabalhadores.”

40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

b) a incidência de contribuição previdenciária sobre o montante pago em pecúnia, a título de vale-transporte, com base no art. 28, I, da Lei nº 8.212/91 e no art. 458 da CLT;

c) o cabimento da multa pelo descumprimento da obrigação acessória, com força na legislação vigente.

Não há violação do art. 535, II, do CPC quando Tribunal de origem examina a demanda de forma fundamentada com efetiva prestação da tutela jurisdicional, apreciando os pontos pertinentes ao deslinde da controvérsia.

O vale-transporte, quando descontado do empregado no percentual estabelecido em lei, não integra o salário-de-contribuição para fins de pagamento da previdência social, nos termos do art. 3º da Lei nº 7418/85.

Situação diversa ocorre quando a empresa não efetua tal desconto, pelo que passa a ser devida a contribuição para a previdência social, porque tal valor passou a integrar a remuneração do trabalhador.

O art. 5º do Decreto nº 95.247/87 estabelece que “é vedado ao empregador substituir o vale-transporte por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento, ressalvado o disposto no parágrafo único deste artigo”.

Já o parágrafo único do referido artigo dispõe que “no caso de falta ou insuficiência de estoque de vale-transporte, necessário ao atendimento da demanda e ao funcionamento do sistema, o beneficiário será ressarcido pelo empregador, na folha de pagamento imediata, da parcela correspondente, quando tiver efetuado, por conta própria, a despesa para seu deslocamento”.

No caso, os autos comprovam que o recorrido efetuou o pagamento do benefício em dinheiro, de forma contínua, contrariando o estatuído no Decreto nº 95.247/87.

Precedentes desta Corte Superior.Recurso especial não-provido.

AcórdãoVistos, relatados e discutidos os autos em que são

partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer do recurso especial, mas negar-

lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Francisco Falcão, Luiz Fux, Teori Albino Zavascki e Denise Arruda votaram com o Sr. Ministro Relator.

RelatórioO Ministro José Delgado (Relator) em seu relatório

disse:“VALE-TRANSPORTE. BASE DE CáLCULO

DA CONTRIBUIçãO SOCIAL. INCIDêNCIA. MULTA. PREENCHIMENTO INDEVIDO DA GFIP.

Segundo precedentes do STJ e conforme posicionamento pacificado nesta Primeira Turma, o vale-transporte

também integrará o salário-de-contribuição quando o empregador não efetuar o desconto de 6% sobre o salário-base do empregado, parcela referente à participação deste no custeio das despesas de seu deslocamento para o trabalho. Forte no §5º do art. 32 da Lei 8.212/91, cabe à empresa que apresenta GFIP com dados não correspondentes aos efetivos fatos geradores arcar com pena pecuniária correspondente a 100% do valor relativo à contribuição não declarada, limitando aos valores previstos no § 4º do mesmo dispositivo”.

Opostos embargos de declaração, restaram fundamentados nos seguintes termos (fl. 477):

“EMBARGOS DE D E C L A R A ç ã O . INOCORRêNCIA DOS

REQUISITOS DO ART. 535 DO CPC. PRÉ-QUESTIONAMENTO.

Os embargos declaratórios são cabíveis quando ocorrentes omissão, obscuridade ou contradição no acórdão; não quando há contrariedade à tese exposta pela parte;

A jurisprudência vem admitindo a possibilidade de utilização dos embargos de declaração para fins de pré-questionamento de matéria a ser decidida pelos Tribunais Superiores”.

Tratam os autos de mandado de segurança com pedido de liminar impetrado por HSBC Bank Brasil S/A - Banco Múltiplo e HSBC Seguros (Brasil) S/A em face de ato do Gerente Regional de Arrecadação e Fiscalização do INSS em Curitiba objetivando a

“O vale-transporte, quando descontado

do empregado no percentual

estabelecido em lei, não integra o salário-de-contribuição para fins de pagamento da

previdência social, nos termos do art. 3º da lei nº 7418/85.”

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41

declaração de nulidade das NFLDs nº 35.582.564-3 e 35.437.290-4 e dos autos de infração nº 35.582-560-0 e 35.437.289-0 lavrados contra os impetrantes em razão da exigência de contribuição social sobre os valores pagos em dinheiro aos seus empregados a título de vale-transporte e de salário-educação, além da multa cominada pelo preenchimento incorreto da guia de recolhimento do FGTS e informações da Previdência Social - GFIP.

A exordial requereu (fls. 29/30): a) a concessão de liminar determinando cessar os

efeitos das Notificações Fiscais de Lançamento de Débito e dos Autos de Infração;

b) a suspensão da exigibilidade do débito; c) a determinação e expedição de

Certidão Negativa de Débito; d) a concessão de segurança, para

o fim de declarar a inexigibilidade da exigência de contribuição social sobre os valores pagos em dinheiro a título de vale-transporte e de salário-educação sobre essas parcelas, além do afastamento da multa cominada pelo preenchimento tido como “incorreto” das guias GFIP e a nulidade das NFLDs e Autos de Infração que consubstanciam a cobrança.

Liminar parcialmente concedida (fls. 322/324). A sentença (fls. 380/387) julgou improcedente o pedido, sob o fundamento de que sobre os valores pagos a título de vale-transporte deve incidir contribuição social, uma vez que não foi observada legislação de regência e, quanto à multa cominada em decorrência da omissão de fatos geradores de contribuição previdenciária da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social - GFIP, reconheceu cabível a sua aplicação porque dentro dos limites da lei (art. 32, § 5º, da Lei nº 8.212/91).

Interposta apelação pelas impetrantes, renovando o pedido lançado na exordial. O Tribunal a quo, por unanimidade, negou-lhe provimento nos termos da ementa acima transcrita.

Nesta via recursal, sustenta a recorrente negativa de vigência dos artigos 28, § 9º, alínea “f ”, da Lei nº 8.212/91, 3º e 5º, parágrafo único, da Lei nº 7.418/85 e 535, II, do CPC.

Em suas razões aduz que:

a) o acórdão atacado não apreciou a tese da inconstitucionalidade da regra do art. 5º do Decreto 95.247/87, que veda ao empregador substituir o vale-transporte por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento, tema de singular importância para a tese defendida pelos recorridos;

b) a questão referente à multa aplicada pelo preenchimento equivocado da guia GFIP, por seu caráter confiscatório, suscitou a análise do art. 150, IV, da Constituição Federal, o que, entretanto, não foi examinado pela Corte de Origem, mesmo com a oposição do recurso integrativo;

c) o Tribunal a quo também não enfrentou a tese de que o pagamento do auxílio transporte pago em

dinheiro foi fixado por convenção coletiva de trabalho, em atendimento ao interesse público com o único objetivo de beneficiar o empregado;

d) é indevida a contribuição social sobre a bolsa educacional, sobre as diferenças não pagas e não declaradas na GFIP;

e) não deve incidir contribuição previdenciária sobre o montante pago aos empregados, a título de vale-transporte em face do seu caráter indenizatório, não havendo qualquer vedação legal para que o auxílio seja feito em pecúnia diretamente aos trabalhadores.

Contra-razões às fls. 529/537, pugnando:

a) que a pretensão é reexaminar provas, incidindo o Enunciado sumular de nº 7 deste Tribunal;

b) a incidência de contribuição previdenciária sobre o montante pago em pecúnia, a título de vale-transporte, com base no art. 28, I, da Lei nº 8.212/91 e no art. 458 da CLT;

c) o cabimento da multa pelo descumprimento da obrigação acessória, com força na legislação vigente.

VotoAo votar, o ministro José Delgado, em seu despacho

de oito páginas disse: “o recurso merece ser conhecido, todavia, em que pese as fundamentações expendidas, o apelo não merece êxito”.

E diante do que expôs, o ministro Delgado negou provimento ao recurso de apelação como também ao recurso especial.

“ao votar, o ministro José delgado, em

seu despacho de oito páginas disse: “o

recurso merece ser conhecido, todavia,

em que pese as fundamentações

expendidas, o apelo não merece êxito.”

42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • OUTUBRO 2005

No Estado Democrático de Direito, o cidadão é o legítimo titular do poder, e, embora o exerça por representantes, constitui-se sujeito de direito do pacto da democracia, provedor de significativa

parcela da soberania do Estado. Nessa condição, tem legitimidade para impor a

destituição do mandato que outorgou ao representante, e cuja finalidade foi desvirtuada por conduta ilícita, especialmente se reveladora de organização criminosa dentro do poder, improbidade e peculato em proveito próprio, incompatibilizando o exercício da representação, momento em que o agente político passa a ser nocivo à soberania popular, e ao Estado Democrático de Direito.

Instalada, então, a infidelidade, rompe-se a cláusula de representatividade, o mandato perde a eficácia e o exercício do poder torna-se ilegal. Do contrário, permitir-se-ia a transformação do cargo exercido pelo mandatário em reduto de ilícitos e conveniências pessoais, levando os postulados e princípios constitucionais que vela a administração pública à simples quimera, letra

morta. Com efeito, deixa de haver confiança e fidelidade, rompendo todos os postulados da soberania cidadã, razão da própria existência do Estado.

Diante da hipótese em que sobre a totalidade ou quase totalidade dos membros imputa-se o mesmo ilícito, caracterizando o impedimento ou suspeita, inviabilizando a investigação política, não se pode conceber como um poder de estado democrático possa “funcionar” sob o comando de agentes organizados com a finalidade fraudar o erário e administração pública, na prática de crime.

Em tais circunstâncias não se pode esperar eficácia do processo político por não poder os investigados julgarem a si mesmos. Então, como fica, continuam no poder e não há solução? Não é bem assim.

Por inspiração de bom senso não se pode considerar um impasse e deixar permanecer essa afronta ao direito da cidadania, à Constituição e à própria instituição da República.

Ora, a Constituição, ao estabelecer competência e atribuição aos poderes do Estado, implicitamente

DeSTITUIÇão Do MANDATo políTICo por violAção Ao

diReito dA CidAdAniA

desembargador membro da câmara especial do Tribunal de Justiça do estado de Rondônia

eliseu fernandes de souza

2005 OUTUBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43

conferiu ao poder judiciário a cláusula do princípio dos poderes implícitos, que lhe permite encontrar meios para decidir e atingir os fins da justiça, quando o fato jurídico é lesivo a direito, e a composição do conflito não se encontrar prevista expressamente no ordenamento jurídico. Contudo, exige deliberação excepcional, em proteção ao interesse público, de acordo com a concepção inspirada pelo juiz Marshal da Suprema Corte Americana, em 1805.

Nessa mesma linha se estabeleceu a máxima do Juízo: “dá-me o fato e dar-te-ei o direito”.

Refletindo acerca dos princípios e postulados constitucionais, fontes dos direitos e garantias da cidadania, detentora dos poderes do Estado, não há impasse para se elaborar uma solução de casos como a situação posta ao debate. Ora, se o poder emana do povo, que o exerce por mandato outorgado a representantes, sob compromisso de fielmente bem cumpri-lo, estabelecida a incompatibilidade de conduta que não permite ao mandatário permanecer no poder e criado o impasse pelo impedimento de todos os parlamentares sob suspeita, não tenho dúvida em afirmar a possibilidade de extinção do mandato pela via judicial, até pela impossibilidade de outra forma, ou inexigibilidade de outro meio. Frise-se, ademais, que o mandato não constitui direito absoluto do mandatário, como de resto contra a ordem constitucional não há direito absoluto.

No âmbito do processo político, nenhuma dúvida há no tocante à extinção coletiva do mandato, que se dá com a dissolução do parlamento no sistema parlamentarista; em casos de revolução quando se instala o Poder Constituinte, e com o término do mandato de todos os parlamentares, são exemplos clássicos.

Há ainda outra hipótese de extinção coletiva, anômala, do mandato parlamentar, que ocorre quando a Suprema Corte declara inconstitucional lei estadual que haja criado um município e que já se encontra instalado, com a extinção do município, todos os cargos do executivo e do legislativo são extintos.

Em relação à extinção individual de mandato, em alguns países há o chamado Recall, que consiste na previsão constitucional de o eleitor desfazer ou revogar o mandato parlamentar daquele que não o honra.

Aliás, no Brasil as primeiras constituições de estados como Goiás, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina previam expressamente o Recall.

Insisto, contudo, que essa possibilidade existe por força dos enunciados e princípios da Constituição da República. O princípio da universalidade da jurisdição, estabelecido no inciso XXXV, art. 5º, o princípio da

moralidade, o princípio da igualdade e o princípio da isonomia recomendam uma interpretação sistemática de modo a admitir que, em sendo possível ao mandatário renunciar, não há como, em contra partida, negar-se ao mandante-cidadão o direito e a legitimidade para revogar o mandato outorgado pelo voto, quando ocorrer lesão ao direito da soberania do poder popular.

O que não se pode pensar é que a cidadania nada poderá fazer na hipótese de abuso por prática de corrupção notória por membros do poder legislativo e continuar assistindo à deturpação dos fins do mandato.

Saliente-se, ademais, que o direito não se encerra em si mesmo e se projeta a bem da coletividade, por isso que a interpretação da norma tem por plataforma o texto legal, mas deve se propagar na realização de seus fins sociais.

O caso de estrangulamento do pacto democrático nos leva não propriamente a uma comparação, mas à reminiscência à origem do Bill of Rights. Isto é, assiste-se a abusos, a desvios de finalidade do mandato, à quebra da fidelidade, e o cidadão não dispõe de um remédio explícito para revogar o mandato que outorgou, por isso é necessário interpretar a Constituição.

Mandato (do latim = mãos dadas = mandatus), que significa a transmissão de poder a outrem para em seu nome agir, e estabelece o poder soberano que permite extinguir o pacto firmado pela concessão do mandato no qual estão implícitas a fidelidade e a confiança.

Esse pacto decorrente da transmissão do mandato contém cláusula contratual ficta com a cidadania, sociedade-mandante e o mandatário, por isso o mandato eleitoral constitui pressuposto da construção da República, isto é, constitui o instrumento que a viabiliza.

“O que não se pode pensar é que a cidadania nada

poderá fazer na hipótese de abuso por prática de corrupção notória

por membros do poder legislativo e continuar

assistindo à deturpação dos fins do mandato.”

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Disso decorre que, no exercício do cargo político, encontra-se depositada parte da soberania do Estado, e por isso o mandatário não exerce direito próprio.

No sistema brasileiro, afirma-se ser a irrevogabilidade o traço característico do mandato. Isto é, com a investidura, o cargo de representação política, de regra, não pode ser objeto de simples revogação.

Mas, no caso, o que desautoriza a revogação é o exercício regular do mandato que não pode, por simples insatisfação dos eleitores, como na hipótese de não cumprir de imediato promessas de campanha, por exemplo, às vezes até por não poder fazê-lo, e, por não estar sujeito à instrução ou a ordens dos representados, ser revogado.

Nessas hipóteses é que o agente político tem a garantia da irrevogabilidade do mandato. Isso porque, como disse Norberto Bobbio, citando Beccaccia Versiani, o agente político ou membro do parlamento, não é representante de seus eleitores, mas do povo em comum e por isso precisa de independência.

Contudo, a irrevogabilidade se estabelece na órbita do pacto da democracia. Isto é, ela não pode decorrer de uma simples manifestação de vontade unilateral do mandante ou do mandatário, mas deve decorrer de uma razão ou de motivos relevantes de ordem pública, interesse da cidadania, fundado no desvio de finalidade do exercício do mandato, que se traduz em violação ao direito social

dos mandatários, poder-mandato a ser cumprido de forma lícita.

Com efeito, o mandato político estabelece o liame na outorga popular do exercício do poder, e a ruptura desse pacto, por infidelidade decorrente de desvio de conduta do mandatário com a prática de crime, improbidade, corrupção etc, utilizando-se do poder delegado, torna incompatível a permanência do agente no exercício do mandato.

Disso decorre, que, como legítimo senhor de direito sobre o mandato e o poder delegado, havendo lesão a direito da cidadania, invalidando a cláusula de representação, instala-se a anulabilidade do mandato. Ora, não há, como se sabe, direito ou garantia absolutos contra a ordem constitucional.

Lembro que no direito constitucional vigora o princípio do governo limitado, frente à supremacia da lei ou do direito natural, como lecionou Norberto Bobbio. Acresço ser da natureza do Estado Democrático de Direito a proteção aos cidadãos contra abuso do Estado e seus agentes.

Saliento ser relativa a irrevogabilidade do mandato, pois, se o próprio mandatário pode unilateralmente revogá-lo quando a ele renuncia, como admitir que não possa o mandante revogá-lo quando configurada a incompatibilidade de conduta e cuja permanência do mandatário torna-se inconstitucional? Ora, a renúncia é

“No sistema brasileiro, afirma-se ser a irrevogabilidade o traço característico do mandato. isto é, com a investidura, o cargo de representação política, de regra, não pode ser objeto de simples

revogação.”

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BIBLIOgRAfIA

uma forma do gênero revogação praticada unilateralmente pelo mandatário, por conveniência pessoal, como, então, dizer que não possa o mandante, por fundados motivos, como lesão à ordem constitucional, ao direito sobre o mandato, propor sua extinção? Claro que sim, do contrário como ficaria a ordem constitucional, o direito de igualdade, a isonomia, a reciprocidade?

O exercício do mandato está condicionado, disso se sabe, dentre outros, ao princípio da moralidade, princípio da eficiência, e sua lesão não pode ser transformada em cápsula de minúcia.

Frise-se que a Constituição, nos direitos fundamentais, XXXV do artigo 5º, assegura que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito. Vale dizer, nenhum ato ou conduta ilícita estará isento do crivo do Judiciário.

A conseqüência desse postulado fundamental, como já disse antes, é que nenhum direito é absoluto. Logo, a detenção do mandato político não constitui direito intocável do agente mandatário. Já se diz que, para a sobrevivência do regime democrático, nenhum direito pode ser ilimitado, nem mesmo o tutelado pela Constituição.

Disso decorre, insisto, não ser razoável, no mandato eleitoral, admitir-se manifestação unilateral de vontade tão-só ao mandatário, pois, desse modo, estar-se-á diante de uma inconstitucionalidade que rompe o pacto da democracia, e conturba o Estado Democrático de Direito.

Isso seguramente não é lícito, ético, justo, nem razoável, pois não há lógica jurídica em ignorar ofensas a normas constitucionais fundamentais.

Saliento seguramente não estar a dizer simplesmente sobre a figura jurídica do Recall que não está expresso em nosso sistema, mas da extinção do mandato até por sua anulabilidade, em decorrência da infidelidade

do mandatário, fruto de conduta incompatível com o exercício do cargo público, pela prática de crime, lesionando o direito.

Penso que o pedido poderá ser encaminhado por meio de uma Ação de Dissolução ou Extinção de Mandato, pelos fundamentos e princípios constitucionais que enfatizei: inconstitucionalidade do exercício do mandato, lesão ao direito da soberania do poder popular, ofensa a princípios e a notória incompatibilidade de conduta do mandatário pela prática de crime no exercício do cargo (Art. 5º inc. XXXV da Constituição da República, especialmente, os princípios gerais e universais do direito etc).

Anote-se ainda a hipótese de afastamento imediato com o ingresso da Ação Civil Pública, até mesmo por uma cautelar preparatória, fundada em relevantes motivos de inconstitucionalidade de ato ou conduta, artigo 20 parágrafo único da Lei 8.429/92, além do embasamento da jurisdição em sua universalidade e o princípio dos poderes implícitos.

Do exposto se conclui que a irrevogabilidade do mandato político está limitada ao exercício regular do cargo, e por isso não é absoluta quando se choca com a inconstitucionalidade dos atos do mandatário praticado em desvio de finalidade e ofensa a normas e princípios constitucionais. Vale dizer, as garantias dos poderes na Constituição foram estabelecidas tendo em vista o exercício das funções estatais, exercício de atos de soberania, mas sob o prisma do sistema de “freios e contrapesos”.

Disso decorre que, se os agentes públicos praticam atos ilícitos em prejuízo da estrutura do poder, violando a ordem constitucional e comprometendo o Estado de Direito e a soberania do regime democrático, sua destituição do cargo é imperativo mesmo de ordem constitucional.

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Ao usuÁRio o qUe é Do USUárIo.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva questiona a amplitude da competência regulatória das agências reguladoras. Em certos momentos parecem existir conflitos com o ministério

interferindo em questões próprias das agências. O exemplo da Agência Nacional de Transportes Aquaviários, Antaq, é emblemático. Em agosto, a Agência determinou o fim da cobrança, pelos operadores portuários, de adicional da tarifa de movimentação de contêineres, conhecida como THC2 (da terminologia inglesa Terminal Handling Charge) no Porto de Salvador, mas a medida não foi executada. Motivo: o Ministério dos Transportes é favorável à taxa.

Foi o que levou a Companhia Docas da Bahia, CODEBA, administradora do porto, a ignorar a determinação da Agência, que é conclusiva – a THC2 é uma taxa indevida e, portanto fere a ordem econômica - , não cabendo mais recursos.

Uma taxa fora do lugar. O litígio envolvendo a cobrança abusiva da chamada

THC2 data de 2002 e envolve, principalmente, o Tecon Salvador, do grupo Wilson, Sons. Para melhor entendimento, vale explicar que por THC2 se convencionou chamar uma taxa cobrada do usuário para movimentar a carga desembarcada do navio até o portão do terminal. Isso ocorre sempre que o dono da carga

não quer armazená-la no próprio Tecon, preferindo empresas de armazenagem alfandegada concorrentes.

Existe, portanto, a THC normal, atualmente no valor de R$213 por contêiner, e o adicional de R$213,00, apelidado de THC2, que onera em dobro o proprietário da carga. O fato que a Antaq observou é que a taxa não tem razão de existir, pois excede o valor máximo estabelecido no contrato de arrendamento entre o operador portuário e a Codeba. Em outras palavras, o valor contratual já contempla a tarifa de movimentação da carga no terminal. No decorrer do processo, houve amplo direito de defesa.

Em paralelo, o CADE julgou a cobrança da THC2 infração à ordem econômica, o que aconteceu em processo administrativo relativo ao Porto de Santos. A decisão do CADE não pode ser revista no âmbito da administração pública, o que veio a reforçar a visão da ANTAQ, no caso da Bahia.

Crônica de uma grave omissão. Historicamente, os usuários reclamam da cobrança

da THC2 desde maio de 2002, quando o Governo do Estado da Bahia encaminhou representação à ANTAQ solicitando o exame da matéria pelo órgão regulatório. No ano seguinte, em julho, a Antaq concluiu pela ilegalidade da taxa, uma vez que seus custos já

luiz walter coelhoadvogado do consórcio eadi salvador

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Ao usuÁRio o qUe é Do USUárIo.

luiz walter coelhoadvogado do consórcio eadi salvador

estavam cobertos pelas tarifas previstas no contrato de arrendamento. O Tecon Salvador renovou sucessivos e sucessivos recursos.

Em setembro, o Cade divulgaria Nota Técnica concluindo que a conduta da Tecon Salvador era discriminatória e sugeriu a instauração de processo administrativo. Em 2004, nova vitória dos usuários. No mês de dezembro, decisão do Tribunal de Contas da União, concluiu que a Antaq deve “deliberar em definitivo sobre a legalidade da cobrança da taxa de serviço de entrega e movimentação de contêineres a outros recintos alfandegados, denominada Terminal Handling Charge”. Ficou decidido que caso fosse confirmada a improbidade da chamada THC2, a Codeba, no exercício de poder concedente e fiscalizador do Contrato de Arrendamento, viesse a exigir “a suspensão imediata da sua cobrança, sob pena das sanções contratuais e legais cabíveis”.

A ANTAQ confirmou a ilegalidade da cobrança. Em 30 de agosto deste ano, em sua 149a. Reunião Ordinária, a Diretoria Colegiada da Antaq rejeitou o último dos recursos e encerrou o processo. Encaminhou ofício à Companhia Docas do Estado da Bahia- Codeba, determinando “a adoção de providências para a imediata suspensão da cobrança por parte dos operadores portuários da taxa de segregação ou separação, liberação

ou entrega de contêineres ou de qualquer outra a esse mesmo título, ao proceder a entrega das cargas destinadas à armazenagem em recinto alfandegado”.

A Codeba teima em permanecer na imobilidade, informando orientação do Ministério dos Transportes. Pratica omissão grave no exercício da competência de autoridade portuária. As companhias docas têm a obrigação de agir com presteza nos assuntos que envolvem a proteção ao usuário. O Ministério dos Transportes joga em sintonia com os interesses do arrendatário e subjuga a ação legal da sua controlada. O que está em jogo é o fortalecimento ou não do sistema de regulação.

Uma nova visão. As agências reguladoras são órgãos técnicos.

Atuam em sintonia com as visões construídas pelo órgão de proteção à concorrência e o Tribunal de Contas da União. Formam um sistema. Os processos administrativos são demorados, mas ricos de conteúdo. As decisões administrativas constituem atos que gozam de presunção de legalidade e devem ser cumpridas, salvo decisão judicial em contrário. De certa forma, é mérito administrativo. O Ministério dos Transportes parece que não está muito preocupado com esses aspectos.

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Segundo a publicação oficial do movimento de Solidariedade Ibero-Americana n.º 23, primeira quinzena de junho, em artigo assinado pelos jornalistas Silvia Palácios e Geraldo Luís Lino,

intitulado “Desarmamento, Estratégia do Governo Mundial”, a campanha de desarmamento civil no Brasil não é proveniente de uma iniciativa própria, mas sim do resultado de um esforço internacional realizado por uma rede de instituições ligadas ao establishment oligárquico, em especial o seu componente anglo americano-canadense, objetivando implantar uma estrutura de governo mundial, acima dos Estados Nacionais, que os “donos do mundo” pretendem ver inviabilizados no contexto da “globalização”.

Segundo a mesma fonte, o desarmamento da população se segue a uma série de medidas visando o desmantelamento das Forças Armadas e a reestruturação das forças policiais civis e militares, elementos cruciais do plano de dominação externo. Em dezembro de 1995, durante um seminário internacional promovido no Rio de Janeiro pelo Ministério da Justiça, o movimento Viva Rio e a Police Foundation dos EUA, o então secretário-geral do Ministério da Justiça, atual secretário nacional de direitos humanos, Sr. José Gregori, anunciou que o Viva Rio seria encarregado da elaboração de um projeto para orientar a nova Política de Segurança Pública do governo federal, uma doutrina de segurança cidadã, para ocupar o vazio que existe desde a doutrina de Segurança Nacional do governo militar.

Em paralelo, o governo FHC continuou a empreender medidas de enfraquecimento da economia nacional, as quais fortalecem as ações de grupos e entidades capazes de representar ameaças diretas à Segurança Nacional, como as quadrilhas de narcotraficantes que operam em território brasileiro, bem como as hostes radicais do Movimento dos Sem-Terras (MST), ligados ao Foro de São Paulo, o qual alguns de seus líderes consideram forças de guerra irregular e a Liga Operária Camponesa (LOC).

Tanto o MST quando o foro, são tentáculos do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que, desde sua fundação, na década de 30, investe contra a instituição do Estado Nacional. Em julho de 1997, o Cardeal Joseph Ratzinger, presidente da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, denunciou a CMI por sua ativa atuação em favor do movimento de subversão armada na América Central. De acordo com o jurista Márcio Thomaz Bastos, ex presidente da OAB, com o desarmamento civil, o que se pretende é privar a população do seu legítimo direito à autodefesa, um verdadeiro atentado a um princípio consagrado pela lei natural. Esta ação assume um caráter ainda mais grave em função da crescente deterioração das condições de vida e segurança pública nos grandes centros urbanos do país, em função do caos econômico-social produzido pelas políticas econômicas “globalizantes” do governo FHC, que drenam a maior parte dos recursos financeiros para a especulação e a

professor Titular de economia da Universidade cândido mendes e conselheiro da esg.

A FACe oCUlTA Do desARmAmento

marcos coimbra

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usura do pagamento de juros.A grande patrocinadora do movimento de

desarmamento é a ONG Viva Rio, fundada em novembro de 1993, em conseqüência do seminário internacional: Cidadania participativa, responsabilidade social e cultura num Brasil democrático, realizado no Rio de Janeiro, nos dias 04 e 05, com o patrocínio e a participação de representantes das Fundações Rockefeller, Brascan, Kellog, Vitae e Roberto Marinho. Dentre os participantes, destacaram-se o banqueiro David Rockefeller, o então chanceler FHC e o futuro presidente e fundador do Viva Rio que sempre atuou em estreita coordenação com ONGs internacionais como a Human Rights Watch e o CMI. É de se notar que a Human Rights tem entre os seus patrocinadores o megaespeculador George Soros, cujas Fundações promovem a campanha de desarmamento e legalização do uso de entorpecentes. O CMI também patrocina a campanha internacional de desarmamento civil.

Entre os dias 13 e 15 de maio de 1998, o CMI, o Viva Rio e a ONG inglesa Safeworld patrocinaram no Rio de Janeiro um seminário sobre “microdesarmamento” (desarmamento civil), com representantes de 11 países, objetivando determinar uma pauta geral para campanha internacional. Em dezembro de 1998, representando a embrionária rede de ação internacional de armas pequenas (International Action Network of Small Arms - IANSA), uma rede de ONGs estabelecida para atuar como uma central de coordenação de campanha

internacional do desarmamento, o Viva Rio entregou ao Governador Anthony Garotinho a proposta de uma campanha para o desarmamento radical do país.

Em primeiro de junho o Presidente FHC enviou ao Congresso um projeto de lei cujo texto proíbe o uso de armas pelos cidadãos, restringindo-as às forças de segurança do Estado e empresas de vigilância privadas. Em boletim de imprensa do CMI, 19 de maio, o Sr. Rubem César Fernandes falou sobre o projeto, ainda não encaminhado: “A vontade política do Presidente da República, bem como a existência de um forte movimento social no país, cria a possibilidade de um exemplo significativo, que poderá ser expandido em um escala global. Assim, a campanha brasileira é um autêntico “teste de campo” para os engenheiros sociais do establishment.

O financiamento de toda esta campanha, da ordem de dezenas de milhões de dólares, provém de fundações como o Ploughshares Fund e a Winstom Foundation For World Peace. Uma das ONGs mais importantes da campanha é o British American Security (BASIC), que tem como principal financiadora a Fundação Ford. A rede IANSA, fundada em maio de 1999 é composta por 186 ONGs, das quais as principais são: Instituto Canadense de Ação Legislativa (CILA) - “ONG semi-oficial do governo canadense”, BSIC, Anistia Internacional, Oxfam, Pax Christi, Safeworld, International Alert e Groupe de Recherche et d’information sur la Paix (GRIP). A ONG

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International Alert, sediada em Londres, foi acusada pelo governo de Serra Leoa de apoiar os rebeldes que deram um golpe de estado no país em 1977, bem como também pelo Ministro das Relações Exteriores do Sri Lanka, Lakshman Radirgamar, um julho de 1998, de estar aliada a organização separatista “Tigres de Tamil”. Além dos citados também foram fundadores o CMI, a Fundação Arias para a Paz e Progresso Humano, a Federação dos Cientistas Americanos, a Human Rights Watch e os Médicos sem Fronteiras. O manifesto da fundação da IANSA destaca: a) reduzir os gastos militares ao nível mais baixo possível; b) reduzir as disponibilidades de armas para civis em todas as sociedades; c) estabelecer sistemas políticos e legais para assegurar um efetivo controle e monitoramento das Forças Militares, polícia e outras instituições de aplicação da lei.

O verdadeiro objetivo dos idealizadores da atual campanha do desarmamento é mais abrangente. Surgiu logo depois do final da Guerra Mundial, como o plano Baruch (entrega de todos os suprimentos de minérios radioativos a uma autoridade central mundial) para estabelecer um governo mundial. Tais idéias originaram o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), bem como a proposta apresentada pelo Departamento de Estado dos EUA, no plenário das Nações Unidas, em 1961, sob o título: Freedom from War-The United States Program for General and

Complete Disarmament in a Peaceful World (Libertação da Guerra: Programa dos EUA para o Desarmamento Geral e Completo num mundo Pacífico).

O documento propunha o estabelecimento de uma Força de Paz das Nações Unidas e um plano de desarmamento mundial que incluía:

a) o desarmamento de todas as Forças Armadas Nacionais e a proibição do seu restabelecimento sob qualquer forma, exceto as requeridas para preservar a ordem interna e para contribuições para uma Força de Paz das Nações Unidas;

b) a eliminação de todos os armamentos dos arsenais nacionais, inclusive todas as armas de destruição em massa e os seus meios de lançamento, exceto aquelas requeridas por uma Força de paz das Nações Unidas e para a manutenção da ordem interna;

c) a fabricação de armamentos seria proibida, exceto no tocante aos tipos e quantidades aprovadas para uso da Força de Paz das Nações Unidas e aos necessários para manter a ordem interna. Todos os outros armamentos seriam destruídos ou convertidos a fins pacíficos.

Seus idealizadores afirmam ainda que “em nossa era moderna, a obtusa aderência à Soberania Nacional e as Forças Armadas Nacionais representa uma forma de insanidade que, entretanto, pode ser curada por uma espécie de tratamento de choque”. Um bom exemplo disto foi a recente ação nos Balcãs. Porém, admitem que deve ser reconhecida que mesmo com a eliminação completa de todas as Forças Militares, restariam necessariamente forças policiais internas substanciais, embora estritamente limitadas, e que estas forças policiais, suplementadas por civis armados com rifles esportivos e armas de caça, poderiam, concebivelmente, constituir uma séria ameaça a um País vizinho na ausência de uma polícia mundial bem disciplinada e pesadamente armada.

Observando o massacre realizado pelos EUA, através da OTAN, na Iugoslávia, a imensidão da Amazônia, a adesão do Brasil ao TNP, a extinção ou privatização de nossa indústria bélica e agora a absurda tentativa de proibição da fabricação, comercialização e posse de armas de fogo pelos civis, em conjunto com o sucateamento de nossas Forças Armadas e as restrições impostas às nossas polícias, não é difícil prever quais são os planos dos “donos do mundo” em relação ao Brasil. Será que o Congresso vai permitir mais este crime de lesa-pátria? E o Judiciário? Bem, o consolo é que o povo brasileiro sempre foi perito em armas brancas. Ou vão bani-las também?

“(...)não é difícil prever quais são os planos dos “donos do mundo” em relação ao Brasil. Será que o congresso vai permitir mais este crime de lesa-pátria? E o Judiciário? Bem, o consolo é que o povo brasileiro sempre foi perito em armas brancas. Ou vão bani-las também?”

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