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Editora 80 - Março 2007

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2007

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EDIÇÃO 80 • MARÇO DE 2007

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O meninO de nazaré da mata

sentidO práticO daglObalizaçãO

maiOridade criminal

cOnselHO editOrial

OrpHeU santOs sallesEDITOR

tiagO santOs sallesDIRETOR EXECUTIVO

daVid ribeirO santOs sallesSECRETÁRIO DE REDAÇÃO

débOra maria m. a. r. diasREVISÃO

diOgO tOmaz e maUríciO FredericODIAGRAMAÇÃO

ViníciUs gOnçalVesEXPEDIÇÃO E ASSINATURA

cleOnice de melOASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

editOra JUstiça & cidadaniaAV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLICEP: 20020-906. RIO DE JANEIROTEL/FAX (21) 2240-0429CNPJ: 03.338.235/0001-86

sUcUrsais

cUiabáJOsé rOdrigUes rOcHa JUniOr RUA BARÃO DE MELGAÇO, 2.754, SL.903CEP: 78020-800TEL.(65) 3623-4979

sãO paUlOrapHael santOs salles AV. PAULISTA, 1765/13°ANDARCEP: 01311-200. SÃO PAULOTEL.(11) 3266-6611

pOrtO alegredarci nOrte rebelO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272TEL (51) 3211 5344

brasíliaarnaldO gOmesSCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARKFONES: (61) 3327-1228 / 29

cOrrespOndentearmandO cardOsOTEL (61) 9674-7569

[email protected]

ISSN 1807-779X

sUmáriO

alVarO mairink da cOsta

andré FOntes

antOniO carlOs martins sOares

antôniO sOUza prUdente

arnaldO esteVes lima

aUréliO wander bastOs

bernardO cabral

carlOs antôniO naVega

carlOs ayres brittO

carlOs máriO VellOsO

celsO mUniz gUedes pintO

cesar asFOr rOcHa

dalmO de abreU dallari

darci nOrte rebelO

denise FrOssard

edsOn carValHO Vidigal

ellis HermydiO FigUeira

FernandO neVes

FranciscO Viana

FranciscO peçanHa martins

FredericO JOsé gUeirOs

gilmar Ferreira mendes

HUmbertO gOmes de barrOs

iVes gandra martins

JOsé aUgUstO delgadO

JOsé carlOs mUrta ribeirO

JOsé edUardO carreira alVim

lUis Felipe salOmãO

manOel carpena amOrim

marcO aUréliO mellO

maUriciO dinepi

maximinO gOnçalVes FOntes

migUel pacHá

ney pradO

paUlO Freitas barata

sebastiãO amOÊdO

sergiO caValieri FilHO

tHiagO ribas FilHO

“nãO passarãO”e O renascer deqUixOte

20

editOrial

O tribUnal de cOntas da UniãO e a decadÊncia

sentidO práticO e real da glObalizaçãO

O papel da JUstiça nO casO sOcial

carta para rOsa cristina

a amazônia é nOssa

“nãO passarãO” e Orenascer de qUixOte

gOVernadOr sérgiO cabral insiste na redUçãO da maiOridade penal

Fila de bancO

algUmas cOnsiderações sObrea pOlítica, cOmO ciÊncia e arte

reFlexões sObre a reFOrma dO agraVO

a JUstiça parOqUial e asíndrOme de rObin HOOd

JUstiça dO trabalHO:Um cOntinente

a maiOridade criminal

a inserçãO dOs cOnsUmidOresde baixa renda aO sistema elétricO

estatUtO da cidade e O patrimôniOHistóricO, artísticO e cUltUral

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EDIT

ORI

AL

fundador do Instituto dos Advogados de Pernambuco, assim como integrante de outras Academias e diversos Institutos. Passou por cargos no Executivo, os mais destacados – do Governo Estadual ao Gabinete do Presidente da República – e também no Legislativo (Suplente de Senador) e, nem por isso, jamais ambicionou o poder, pois nele a paixão cívica é maior do que o mundo do varejo político.

Por seus méritos pessoais, ingressou na Academia Brasileira de Letras, da qual é seu Presidente, reconduzido, recentemente, por seus Pares para mais um mandato.

Na Corte de Contas, onde chegou há quase 20 anos, tem sido um batalhador ao defender que o Tribunal de Contas da União não tem a função de elaborar as leis, mas que lhe cabe fiscalizar, intransigentemente, sua correta aplicação.

“Causeur”, como poucos – tribuno consagrado, feiticeiro da palavra, esbanjador de talento –, é capaz de prender as pessoas, durante largo tempo, operando o milagre de transformar pequenos acontecimentos em grandes circunstâncias.

É sempre ele próprio, autêntico, por inteiro. Na alegria ou na adversidade – esta lhe tem sido excessiva – porta-se com a dignidade que é imposta a um homem que tem como esposa aquela a quem chamamos de Rainha Maria do Carmo e que ele a proclamou, merecidamente, como Nossa Senhora da Paciência.

Ante tudo isso, o Conselho Editorial aprovou, por unanimidade, a capa desta edição àquele menino nascido em Nazaré da Mata e hoje Ministro e Presidente: MARCOS VINICIOS VILAÇA.

Aquele menino, nascido em Nazaré da Mata, não tinha idéia de que, um dia, veria suas obras literárias editadas em inglês, espanhol, italiano, francês, japonês e alemão, assim como suas teses aprovadas,

por unanimidade, em Encontro dos Tribunais de Contas dos Países de Língua Portuguesa, uma delas em Cabo Verde e a outra em Moçambique.

Talvez tivesse a certeza, isso sim, de que, forjado nas lutas dos Diretórios Acadêmicos de sua Faculdade de Direito do Recife – onde se graduou e concluiu seu curso de Mestrado, lecionando, mais tarde, Direito Internacional Público e Direito Administrativo em várias Faculdades de Direito e ainda na Faculdade de Filosofia –, o seu Pernambuco teria que lhe escancarar os portões regionais e transformá-lo em nome nacional e internacional.

Tornou-se, assim, além de protagonista do Direito, um conferencista pelo mundo afora – ultrapassando até os longíquos umbrais da Universidade de Helsinki (Finlândia) – merecendo, via de conseqüência, mais de uma centena de honrarias, nacionais e estrangeiras, quase todas em seu mais alto grau.

Surpreendente é ter iniciado sua carreira literária tão jovem, antes de completar os 20 anos de idade. E não parou mais, andando aí pela casa de mais de meia centena de publicações, o que lhe valeu, muito cedo, o ingresso na Academia Pernambucana de Letras, da qual foi Presidente e hoje Presidente Honorário, além de membro associado das mais destacadas entidades culturais.

Por outro lado, na militância jurídica, é membro e

BERNARDO CABRAL – JURISTA Membro do Conselho Editorial

O meninO DE NAZARÉ DA MATA

“’CAUSEUR`, COMO POUCOS – TRIBUNO CONSAGRADO, FEITICEIRO DA PALAVRA, ESBANJADOR DE TALENTO –, É CAPAZ DE PRENDER AS PESSOAS,

DURANTE LARGO TEMPO, OPERANDO O MILAGRE DE TRANSFORMAR PEQUENOS ACONTECIMENTOS EM GRANDES CIRCUNSTâNCIAS.”

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Marcos Vinicios Vilaça

Presidente da Academia Brasileira de Letras

O presente artigo trata da aplicabilidade das disposições da Lei do Processo Administrativo (Lei 9.784/99) sobre a atividade finalística dos Tribunais de Contas, especialmente em

face de seu artigo 54, que estabelece o prazo decadencial de cinco anos para a Administração exercer o direito de anular os próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, se deles decorrerem efeitos favoráveis para os administrados.

Discutiremos a posição conferida constitucionalmente ao Tribunal de Contas da União dentro da estrutura do Estado e a natureza jurídica de suas decisões, sem o que não será fidedigna a solução que apontar para a aplicabilidade, de maneira primária ou subsidiária, ou para a inaplicabilidade da processualística administrativa nos julgados que do TCU defluem.

Nessa esteira, é a própria Lei 9.784/99 que nos dá a primeira e decisiva orientação, ao dispor, já no § 1º de seu artigo 1º, que deverá ser observada por todos aqueles que exercem função administrativa, em quaisquer dos poderes

da União. Daí que, quando a lei emprega o termo “Administra- ção”, a exemplo do que ocorre no artigo 54, que mais nos interessa, empresta-lhe um significado funcional, para corresponder a quem, precipuamente ou não, exerce função administrativa, por distinção daqueles que desempenham as demais funções estatais, legislativa e judiciária.

Para o estudioso mais atento, não será difícil observar a estreita correlação entre o artigo 54 da Lei do Processo Administrativo e as famosas Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, essências da teoria da autotutela administra-tiva, que assim enunciam, respectivamente:

“A Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos” e “A Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”

Cotejando a nova norma processual com o entendi-mento sumulado, nota-se que o poder-dever de anulação

O tribUnal de cOntas da UniãO e a decadÊncia PREVISTA NA LEI DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

“O TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, QUANDO AFIRMA A ILEGALIDADE DE UM ATO, EM ESTRITO CUMPRIMENTO DE SUAS

ATRIBUIÇõES CONSTITUCIONAIS, NÃO ESTÁ PRATICANDO AUTOTUTELA, MAS SIM CONTROLE DA ATIVIDADE ALHEIA.”

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declarado pela doutrina e pela jurisprudência, dantes de abrangência indefinida, agora encontra o limite temporal de cinco anos, depois do que a inércia da Administração levará à consolidação da situação jurídica estabelecida pelo ato irregular.

Em outros termos, o artigo 54 da Lei 9.784/99 tem o objetivo de mitigar o uso indiscriminado do princípio da autotutela administrativa, fazendo-o inoperante em casos em que colaboraria para a insegurança das relações jurídicas providas pelo Estado, em prejuízo dos administrados. Protege-se, com isso, a boa-fé e a confiança daqueles que, presumindo regular a atuação da Administração, correriam o risco de ver seus direitos repentinamente cassados, após certo tempo de estabilidade. Em resumo, privilegia-se o cânone da segurança jurídica, expressamente introduzido no direito administrativo pela mesma Lei 9.784/99, como determina seu artigo 2º, caput: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.”

Enfim, as coisas começam a tornar-se harmônicas, ao se perceber que o dispositivo questionado da Lei 9.784/99, conquanto de reconhecida valia, do ponto de vista formal nada mais é do que um freio ao pleno exercício da autotutela administrativa, a qual, evidentemente, só está a alcance de quem expediu o ato inquinado, ou seja, a Administração. Basta, por similaridade, ver quem são os destinatários da Súmula 473 do STF. De outra parte, o Tribunal de Contas da União, quando afirma a ilegalidade de um ato, em estrito cumprimento de suas atribuições constitucionais, não está praticando autotutela, porque aí não existe desempenho de função administrativa, mas sim controle da atividade alheia.

Trata-se de um controle externo, no sentido de que está localizado fora da Administração, ou, como se queira, da função administrativa, bem como é exterior o controle a cargo do Judiciário. Ambos são olhos vigiando, a seu modo, a atividade administrativa, agindo, sobretudo, quando falha a autotutela, conforme o magistério de Diógenes Gasparini in “Direito Administrativo”. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 107.

Seria realmente um paradoxo constitucional se o controle externo confiado ao Poder Legislativo fosse realizado com a cooperação de um órgão investido em função administrativa. Não é demais lembrar o que diz o artigo 71, caput, da Constituição Federal: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União (...)”. Afinal, é o TCU que, no âmbito da União, com o longo rol de competências que lhe foram cometidas, concretiza, direta e substancialmente, o controle externo.

Dessa forma, exerce o TCU função própria do Legislativo, ou, em sentido amplo, função legislativa. Não se relaciona, evidentemente, com a função de elaborar

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leis, porém com a de fiscalizar sua correta aplicação. De fato, com o amadurecimento do regime democrático e o aprimoramento da separação de poderes, o Legislativo ganha outros contornos, indo além da função de legiferar. Sua missão atual, como se depreende da Constituição brasileira, envolve igualmente a importante função controladora, que se nota presente por meio das comissões parlamentares de fiscalização e controle, de inquérito e do contributo do TCU, tal como ensina o ilustre professor e ex-senador Josaphat Marinho em “A função de controle do Congresso Nacional” in Revista de Informação Legislativa, vol. 14, nº 53, jan/mar de 1977. p. 17/38.

Nesse moderno contexto da ação parlamentar, insere-se o imprescindível trabalho das Cortes de Contas, perfilhado também por José Afonso da Silva, ao comentar suas competências constitucionais: “Em todas essas hipóteses, na verdade, o que ocorre é uma função de controle; e uma função de controle que é tão elevada como a função jurisdicional. (...) A função de controle é, realmente, a função fundamental dos Tribunais de Contas.” (in “Tribunais de Contas: função jurisdicional e execução de seus julgados”. Revista do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, nº 54, 1986. p. 33/48)

Tem-se, pois, que os misteres constitucionais dos Tribunais de Contas consistem em função de controle externo, pertencente à função legislativa, não dizendo qualquer respeito à função administrativa de que cuida a Lei 9.784/99.

Disso, com as vênias ao saudoso Hely Lopes Meirelles, as Cortes de Contas não se constituem em órgãos jurisdicionais administrativos, como são os Conselhos de Contribuintes, os Conselhos Curadores de Fundos e o Tribunal Marítimo, todos vinculados ao Poder Executivo. Por conseqüência, as decisões dos Tribunais de Contas também não podem ser vistas como administrativas, situando-se em patamar superior a essas, diante de seu destaque constitucional, a despeito da possibilidade de revisão judicial. São elas, em verdade, atos de controle, pertencentes à atividade legislativa, ou ao exercício de função legislativa, tomada em amplitude, segundo o melhor entendimento.

Do contrário, consistiriam as decisões dos Tribunais de Contas meros atos administrativos, que, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, reportando-se ao critério funcional, são somente aqueles praticados “no exercício concreto da função administrativa”, sejam eles editados “pelos órgãos administrativos ou pelos órgãos judiciais e legislativos”, no exercício daquela função (ob. cit., p. 160). Não é essa,

entretanto, como já se viu, a função finalística desempenhada pelo Tribunal de Contas.

Com muita propriedade, o mestre Miguel Reale, partindo de seus conhecimentos jusfilosóficos, que lhe permitem discernir a essência das coisas como ninguém, já entendia, há algumas décadas, a similaridade entre a jurisdição própria do Poder Judiciário e aquela atribuída constitucionalmente às Cortes de Contas, em seu “Direito Administrativo – Estudos e Pareceres”. Rio de Janeiro: Forense, 1969. p. 94.

Decerto, não esteve a própria Corte Suprema outorgando a um órgão de jurisdição administrativa parcela da nobre missão de controlar a constitucionalidade das leis, conforme diz sua Súmula 347: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das

leis e dos atos do poder público.”São assim as decisões dos Tribunais

de Contas como um meio-termo entre a dita “coisa julgada administrativa” e a apreciação judicial, que somente se dá, usualmente, à vista da aceitação da competência originária constitucional do controle externo (artigo 71 da Constituição), para verificar a conformidade do devido processo legal, v.g., RE-55.821/PR: “Tribunal de Contas. Julgamento das contas de responsáveis por haveres públicos. Competência exclusiva, salvo nulidade por irregularidade formal grave, ou manifesta ilegalidade”; MS-8.886/ES: “A revogação ou anulação, pelo Poder Executivo, de aposentadoria,

ou qualquer outro ato aprovado pelo Tribunal de Contas, não produz efeitos antes de aprovada por aquele Tribunal, ressalvada a competência revisora do Judiciário”; MS-21.466/DF: “Com a superveniência da nova Constituição, ampliou-se, de modo extremamente significativo, a esfera de competência dos Tribunais de Contas, os quais, distanciados do modelo inicial consagrado na Constituição republicana de 1891, foram investidos de poderes mais amplos, que ensejam, agora, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial. No exercício de sua função constitucional de controle, o Tribunal de Contas da União procede, dentre outras atribuições, à verificação da aposentadoria, e determina – tal seja a situação jurídica emergente do respectivo ato concessivo – a efetivação, ou não, de seu registro.”

Não sendo órgão que exerça função administrativa, ou mesmo jurisdição de cunho administrativo, exceto sobre os assuntos internos, o Tribunal de Contas não está compelido a observar os ditames da Lei 9.784/99, que, aliás, determina uma processualística amplamente divergente daquela já regulada pela Lei 8.443/92, aplicável aos julgamentos em matéria de controle externo.

“SERIA REALMENTE UM PARADOXO

CONSTITUCIONAL SE O CONTROLE

EXTERNO CONFIADO AO PODER LEGISLATIVO

FOSSE REALIZADO COM A COOPERAÇÃO

DE UM óRGÃO INVESTIDO EM FUNÇÃO

ADMINISTRATIVA.”

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A processualística particular do controle externo tem como objeto imediato o ato já consumado e presumidamente revisto pela Administração, atingindo direitos subjetivos por via reflexa, ao considerar legal ou ilegal determinada conduta atinente à atividade administrativa. Em outras palavras, não visa atender aos interesses individuais dos administrados nem prover-lhes, direta e concretamente, uma ação, mas sim materializar interesses públicos amplos, de toda a coletividade.

Daí que abrange instrumentos como o exame de contas, a denúncia, a representação, a auditoria e outras formas de defesa do interesse público que culminam em decisões de controle externo passíveis de recursos especiais, tudo

consoante dispõe a Lei 8.443/92. Tem-se, com efeito, um processo de natureza especial, que, mesmo se considerado administrativo, tão-somente por argumentação, contaria com a excepcionalidade decretada pelo artigo 69 da Lei 9.784/99: “Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas, subsidiariamente, os preceitos desta Lei.”

No entanto, os processos administrativos de que trata o referido artigo da Lei 9.784/99 devem ser entendidos como aqueles que cuidam diretamente de um interesse privado, por meio de um serviço de interesse público, ou que providenciam o funcionamento de uma atividade pública concreta, a exemplo dos seguintes: o processo administrativo

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previsto no artigo 38 da Lei de Licitações e Contratos (Lei 8.666/93); o discriminatório das terras devolutas da União (Lei 6.383/76); o de determinação e exigência de créditos tributários da União; o estabelecido no Capítulo XVIII do Código Brasileiro de Trânsito (Lei 9.503/97); o disciplinar da Lei 8.112/90, etc.

Efetivamente, a Lei 8.443/92, que dispõe sobre a organização do Tribunal de Contas da União, regulamenta parte relevante do ordenamento constitucional, concernente à fiscalização contábil, financeira e orçamentária da União e suas entidades (Seção IX do Capítulo I do Título IV). Seu contexto inclui-se na organização do Poder Legislativo, segundo se depreende da articulação do corpo da Lei Maior, de tal sorte que, mais uma vez, percebe-se a intenção do constituinte de qualificar as atribuições do TCU como função legislativa, em sentido amplo.

Portanto, assim como não seria de se admitir que tivesse aplicação sobre o controle jurisdicional do Poder Judiciário, a Lei do Processo Administrativo, estabelecendo as regras da processualística peculiar da Administração, não pode se estender ao controle externo parlamentar efetuado com o auxílio do Tribunal de Contas, sob pena de subverter a lógica da distribuição e separação dos poderes.

Ademais, é bom ressaltar, não poderia a lei restringir, sem o devido permissivo constitucional, uma competência entregue ao Tribunal de Contas de maneira ilimitada em sua origem, segundo a vontade nacional captada pelo constituinte.

Não se quer dizer, claramente, que os princípios que norteiam o processo administrativo nunca serão levados em conta fora de seu âmbito. Contudo, serão por representarem princípios constitucionais ou por consistirem em valores reconhecidos pelo direito. Quando forem apenas regras específicas do processo administrativo, não terão o condão de vincular as decisões do controle, seja judicial

ou parlamentar, em que pese os processos do Tribunal de Contas poderem aproveitá-los, subsidiariamente, conforme acontece com os princípios da oficialidade, do formalismo moderado e da verdade material.

Veja-se exatamente o caso do princípio da segurança jurídica, de mais alta valia, proveniente do ordenamento constitucional, e que baliza a regra do artigo 54 da Lei 9.784/99. Sua inteligência é bastante utilizada como parâmetro de justiça em decisões judiciais, bem assim nos julgados desta Corte. Ocorre que a Lei do Processo Administrativo lhe deu traços exclusivos, ao fixar o lapso de cinco anos como fronteira entre a possibilidade e a impossibilidade de anulação dos atos administrativos pela própria Administração, no exercício da autotutela. Essa particularidade, no entanto, não amarra o controle externo, que permanece apto a declarar a nulidade dos atos administrativos desconformes com a lei.

Não se deve perder de vista, enfim, que as decisões do Tribunal de Contas traduzem o exercício da função de controle externo, de caráter legislativo, sobre a função administrativa, que com aquela não se confunde. Ao apontarem irregularidades no momento da fiscalização da atividade administrativa, as decisões do Tribunal exigem um ato posterior da Administração, para a correção do ponto impugnado. Todavia, agindo assim, a Administração Pública não exerce autotutela, como se retirasse do mundo jurídico, sponte sua, o ato irregular. Na realidade, está sendo vinculada a esse agir por força de determinação do órgão de controle externo. Nesses casos, inexistindo autotutela, não há que se falar na aplicação da Lei 9.784/99.

Por todo o exposto, penso que restam inaplicáveis, de forma obrigatória, os preceitos da Lei 9.784/99 aos processos da competência constitucional deste Tribunal de Contas.

“A PROCESSUALíSTICA PARTICULAR DO CONTROLE EXTERNO TEM COMO OBJETO IMEDIATO O ATO JÁ CONSUMADO E

PRESUMIDAMENTE REVISTO PELA ADMINISTRAÇÃO.”

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sentidO práticO e real da GLOBALIZAÇÃOAntonio Oliveira Santos

Presidente da Confederação Nacional do Comércio

O cenário mundial, nos dias de hoje, tem a especulação como pano de fundo. Milhões de jovens operadores, à frente de seus computadores, “viajam” por todos os mercados

financeiros, de serviços e de commodities, colhendo ou divulgando informações, análises e relatórios. A utilização desses dados é manipulada de acordo com os interesses de cada um, formando um gigantesco caleidoscópio de especulações no amplo quadro da globalização.

Esses operadores são os responsáveis pelas variações, de curto prazo, nos preços das mercadorias que indicarão o curso da inflação, fazendo subir ou baixar as cotações das ações nas Bolsas de Valores e das taxas de câmbio.

Uma notícia, por exemplo, sobre as negociações relacionadas à política nuclear do Irã ou da Coréia do Norte pode desencadear uma série de ações especulativas sobre o preço do petróleo, a inflação mundial, as taxas de juros nos Estados Unidos, ou uma relação de ordem inversa, começando com as variações nos preços das commodities na Bolsa de Chicago ou das cotações dos metais, na Bolsa de Londres.

Especulou-se, nos últimos dias, que a inflação média norte-americana, em janeiro, teria sido de 0,3%, o que poderia levar o FED, o banco central dos Estados Unidos, a manter, por um prazo maior, a taxa de juros de 5,25%. A partir daí, começa-se a especular se existem algumas “bolhas” nas Bolsas de Valores, em relação à cotação de ações que venham de uma longa tendência de alta.

No dia 27 de fevereiro último, houve uma corrida na Bolsa de Valores de Xangai, que caiu 8,8%. O “efeito China” teve características únicas: o jornal Legal Times denunciou que, por apropriações indébitas e fraudulentas, as empresas estatais chinesas tiveram prejuízo de US$ 45 bilhões, em 2004, e seguem tendo perdas de US$ 12 bilhões anuais. A trajetória de crescimento da China está ameaçada. Daí que a queda na Bolsa de Xangai teve um efeito dominó sobre o resto do mundo: a Bovespa caiu 6,62%; New York,

3,29%; Nasdaq, 3,86%;Tóquio, 0,52%; Londres, 2,96% e Malásia, 2,81%.

As Bolsas chinesas operam com um montante de capital de US$ 1,16 trilhão, e a queda nas cotações estaria também ligada ao anúncio de que serão impostas restrições ao ingresso de capitais estrangeiros. Sobre o efeito China, e com maior força, acrescentem-se as desastrosas declarações do ex-presidente do FED Allan Greenspan, de que a economia norte-americana caminha para uma recessão no final deste ano. Os diretores dos bancos centrais estão navegando na contramão, até mesmo quando já estão aposentados.

Está aberta, pelos especuladores, mais uma “temporada de caça”.É perfeitamente possível admitir que, a médio e longo

prazos, essas especulações serão neutralizadas, em um sentido ou em outro, desde que os principais indicadores apontem na direção de que a economia americana continuará crescendo sustentadamente e também a China, que hoje representa, em ordem de importância, o segundo centro de gravidade da economia mundial. Para que se tenha uma idéia da importância da China, basta lembrar que sua produção siderúrgica (450 milhões de toneladas) é 4,5 vezes a produção dos Estados Unidos e 12 vezes a do Brasil.

Com todo esse poder de fogo, a China vem dando um extraordinário impulso à economia mundial, desde 1980, porém, a partir de agora, passa a exercer também uma ação comercial predatória, no processo de globalização iniciado nos anos 90.

Estados Unidos e China são as duas “variáveis” mais importantes, que continuarão comandando a evolução dos mercados mundiais. O governo brasileiro não pode deixar de estar atento a essa evolução, com o sentido de proteger, legitimamente, a indústria nacional e garantir a capacidade competitiva de nossas empresas nos mercados externos. Para tanto, é importante descartar-se de ultrapassadas ideologias, que ainda prevalecem em alguns de nossos ministérios, a começar pela política externa, embora já se note uma sinalização “renovadora” no relacionamento com os Estados Unidos.

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José Carlos Schmidt Murta Ribeiro Desembargador e Presidente do TJ/RJ

O papel da JUstiça NO CAOS SOCIAL

No livro “Era dos Extremos – o breve século XX”, Eric Hobsbawn, um dos grandes historiadores de nosso tempo, resume impressões sobre o úl-timo século, ali se destacando a síntese do músico

Yehudi Menuhin: “Se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as maiores esperanças já concebidas pela hu-manidade e destruiu todas as ilusões e ideais.” Tantas foram as hecatombes do século passado e do início deste, tais como as guerras mundiais, o Holocausto, o 11 de setembro, a se traduzirem em desesperança e desencanto dos ideais.

Veremos este novo milênio marcado por transformações sociais, pelo espantoso avanço da tecnologia e pela persistên-cia de problemas cruciais como a miséria, a insegurança tra-zida pelo terror da violência cotidiana – agora mesmo remar-cada pelo trágico e emblemático homicídio do menino João

Hélio Fernandes Vieites – e das guerras aparentemente irracio-nais, mas sempre altamente lucrativas para o mercado da morte e seus tristes senhores, em insuportável violação aos direitos humanos fundamentais. Daí por que a democracia, as consti- tuições e o próprio Direito também viverão constantes muta-ções, exigindo do Poder Judiciário o acompanhamento perma-nente de todas as circunstâncias que envolvem sua atuação.

A combinação dos princípios da razoável duração do pro-cesso e o da vinculação estrita dos meios à entrega da prestação jurisdicional baliza os planos que devem elaborar os projetos a serem executados e as atitudes que devem manter os incumbi-dos da gestão do Judiciário, a partir da Emenda Constitucio-nal nº 45/2004. Surgem, dessa constatação, dois desafios para administrar o Judiciário. O primeiro, a delimitação da função jurisdicional, em novo contorno constitucional, republicano

“O QUE MAIS ME PREOCUPA NÃO É NEM O GRITO DOS VIOLENTOS, DOS CORRUPTOS, DOS DESONESTOS, DOS SEM CARÁTER, DOS SEM ÉTICA. O

QUE MAIS PREOCUPA É O SILêNCIO DOS BONS.”

(MARTIN LUTHER KING)

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e democrático. O segundo diz respeito aos instrumentos da ciência da administração que devam e possam ser manejados para tornar o sistema capaz de apoiar o exercício da função jurisdicional em tempo razoável.

Merecem lembrança algumas experiências já existentes no Rio, com vistas à obtenção de acordos que evitem a multipli-cação das demandas. Destaque-se a atuação bem-sucedida do Expressinho, instância conduzida por juízes para autocom-posição de litígios entre consumidores e concessionárias de ser-viço público. O programa Justiça Itinerante também deve ser lembrado, ao proporcionar a prestação de serviços judiciais e de conciliação a comunidades distantes dos fóruns, especialmente as mais carentes. Outro exemplo desse ativismo judicial foi a realização, em 8 de dezembro último, do Dia de Conciliação Nacional, projeto lançado sob inspiração da ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que não pode ficar só naquele mutirão, ainda que bem-sucedido, mas deve frutificar e se tornar uma atividade permanente.

Para produzir o resultado judicial com qualidade – o conflito bem resolvido, em tempo hábil –, a administra-ção judiciária deve aprender a aplicar as mais modernas técnicas de gestão, adaptando-as às peculiaridades desse singular sistema. É necessário também entender que ad-ministrar não é apenas desembrulhar um pacote de técni-cas e de truques ou de ferramentas analíticas. A evolução da história da administração ensina que há um conjunto de cinco princípios essenciais norteadores de toda a gestão, que deve ser permeada pela Ética, Competência, Participação, Transparência e Efetividade.

O primeiro ponto refere-se às pessoas. Toda administra-

ção delas depende e para elas se destina. O gestor deve ser hábil o bastante para ajudar pessoas a se tornarem capazes de apresentar um desempenho conjunto, de fazer com que suas características pessoais mais fortes se manifestem e se desen-volvam em favor da organização. Em síntese, a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa.

Na jurisdição, tem-se o fenômeno da agitação perma- nente da cidadania, daí não poder aquela função distanciar-se do sentimento ético que lhe é absolutamente essencial. Por isso, o grande e saudoso Miguel Reale proclamou a eticidade radical da atuação dos juízes. É igualmente inarredável o comportamento ético como norte absoluto para toda a Ad-ministração do Judiciário.

O segundo ponto reside no fato de que toda adminis- tração trata com a integração de pessoas em uma missão determinada. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio, graças às inovações introduzidas nos últimos anos, atingiu reconhecido grau de excelência e desenvolveu o para-digma do Judiciário ágil e eficiente de que o País precisa. Entretanto, é necessário reconhecer que, apesar do muito já realizado, mais ainda carece de ser feito, especialmente na 1ª Instância. É principalmente nela que se dá o contato direto do povo com o Judiciário.

O terceiro ponto concerne aos objetivos. Toda organização precisa tê-los comuns, simples e claros, tornando tangível sua missão. Tal objetivo exige permanente respeito à dignidade das pessoas, inclusive em seu direito à divergência, além de prudência, serenidade, maturidade, equilíbrio e firmeza. Em suma, uma partilha de ideais e pensamentos que leve em con-ta o sentimento das partes e de seus advogados.

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O quarto ponto funda-se no reconhecimento da neces-sidade de comunicação interna e também com o público externo – fator importante para a imagem do Poder Judi-ciário, devendo o princípio da transparência ocupar lugar de destaque em nosso cotidiano. Nesse tópico, merecem particular atenção a luta moralizadora pelo respeito ao princípio constitucional do teto salarial, que, entretanto, não pode nem deve descambar para o moralismo de facha-da, sob pena de sacrifício de normas consolidadas – em verdade, protetoras do cidadão comum –, de observância do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, desde que incorporados sem qualquer violação da legalidade e da moralidade administrativa.

Também as medidas anunciadas pelo corregedor do Con-selho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Pádua Ribeiro, de apuração de condutas de corrupção no Judiciário, merecem nosso aplauso, pois, mesmo ainda isoladas e longe de refletir o comportamento do conjunto da magistratura, devem rece-ber tratamento cirúrgico dedicado ao tumor que se precisa extirpar antes de qualquer oportunidade de invadir as partes sadias do organismo. Nesse particular, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, já no início da década de 90, condenou e segregou do convívio social juízes, advogados, procuradores do INSS e outros fraudadores da chamada Máfia da Previ-dência, inclusive conseguindo inédita, na ocasião, recupera-ção de dinheiro enviado para contas numeradas no exterior e leiloando imóveis dos integrantes da quadrilha.

O quinto e último ponto diz respeito à produtividade, sen-

do notória a percepção pelos cidadãos da morosidade como o principal entrave da prestação jurisdicional. Logo, aumen-tar a produtividade dos juízes seria o maior desafio do Poder Judiciário. Nessa questão, deve-se destacar que estatística de decisões, embora importante, é apenas um primeiro passo que não se confunde com uma verdadeira e eficaz produtivi-dade. Este é o segredo da estabilidade social e mesmo de uma mudança induzida pela efetivação dos direitos fundamentais tal como demarcados pela fronteira entre a modernidade e a pós-modernidade, a primeira proclamando-os e a segunda cuidando de assegurá-los concretamente e para todos.

Os resultados que o Judiciário precisa obter não estarão dentro das paredes do Tribunal, mas na certeza de que nós, juízes, seremos capazes de transmitir aos jurisdicionados que nossas decisões são independentes, abstraída a figura de quem seja o vencedor ou o vencido, rico ou pobre, poderoso ou cidadão comum.

Por tudo isso, as decisões judiciais, além de proferidas em tempo razoável, exigem isenção, zelo, conhecimento, transparência, ética e, como resultado dessa combinação de fatores essenciais, espírito de justiça correspondente a seu tempo e ao sentimento do povo. Essa é, em verdade, a inspiração que deve guiar nossos passos no trabalho perma-nente da construção de um judiciário garantidor dos valores democráticos da conciliação e da participação, cumprindo seu papel de fiel da balança de direitos fundamentais que, inscritos na Carta da República, não podem ser reduzidos a pó nem transformar-se em irônica ficção.

“OS RESULTADOS QUE O JUDICIÁRIO PRECISA OBTER NÃO ESTARÃO DENTRO DAS PAREDES DO TRIBUNAL, MAS NA CERTEZA DE QUE NóS,

JUíZES, SEREMOS CAPAZES DE TRANSMITIR AOS JURISDICIONADOS QUE NOSSAS DECISõES SÃO INDEPENDENTES.”

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Mãe, conheço o tamanho de tua dor, que é a mesma do Élson e da Aline. Para mim é também uma dor vivida. A perda de um filho é, sem dúvida, o

maior de todos os sofrimentos. Por que tamanha provação? Versões contemporâneas de Abraão? “Tome seu filho, o seu único filho Isaac, a quem você ama, vá à terra de Moriá e ofereça-o, aí, em holocausto, sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar”. Por que, então, o anjo de Javé não te ajudou a desatar aquela simples fivela, de um cinto dito de segurança, que permitiria devolver a teus braços de mãe o pequeno João

Helio, o Isaac de nossos tempos, para que ele permanecesse entre nós, dividindo e multiplicando sua alegria de vida? “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”

É nestes momentos que nos sentimos ínfimos diante dos desígnios do Criador. Pior: é também nestes mesmos momentos que sabemos o quanto a humanidade se distanciou de Sua obra. Disseste: “Eles não têm coração”. Eles têm! É que nós utilizamos os dons que nos são ungidos e criamos, como novos deuses, a inteligência artificial, enquanto desdenhamos os sentimentos mais sublimes e naturais, aqueles que brotam, somente e semente, em corações fertilizados pelo amor e pela fraternidade. Ao contrário, permitem os que florescessem, em muitos corações, nas favelas e nos palácios, a barbárie. No Rio de Janeiro, em São Paulo, em Brasília, em Washington ou em Bagdá. É a humanidade, enquanto gênero humano, que se distancia de seus próprios conceitos de benevolência, de clemência e de compaixão.

Que tuas lágrimas não se percam apenas nos índices de audiência e nos discursos de conveniência. Ao contrário, que elas mobilizem corações e mentes para a reconstrução dos valores que perdemos nesta travessia terrena. Em outros tempos, não tão distantes, os valores morais e culturais se construíam sobre o tripé família, escola e igreja. Hoje, a família foi dilacerada. A escola, sucateada. A igreja, excomungada. No lugar, um novo, e perverso, tripé: a droga, a rua e a arma. A droga, como estímulo. A rua, como palco. A arma, como poder.

Ainda naqueles outros tempos, as famílias se reuniam para contar e para trocar suas histórias de vida. Era um grande círculo de amizade e fraternidade. Família, escola e igreja, ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Respeito, aprendizado e bênção. Pais heróis. Hoje, o círculo familiar deu lugar a um semicírculo vicioso. No centro, a TV, e os novos heróis são aqueles que mais atiram, que mais batem, que mais matam. É a arte imitando a vida. Ou incentivando a morte. Ou vice-versa.

Vim, vi e envelheci. Mas, por mais que possam tentar tripudiar o meu discurso e a minha prática, porque, dizem, obsoletos, não mudei. Continuo vivendo os valores que herdei. Da família, da escola e da igreja. Para mim, não há diferença, na dor, entre o favelado que puxa o gatilho nas esquinas e o dirigente que manda despejar mísseis sobre cidades inteiras. Quantas serão as mães de Bagdá que choram a morte de seus pequenos inocentes, meninos da guerra, trucidados em nome do poder e da ganância? Pior: “Em nome de Deus”. São, todos, bárbaros, cruéis, desumanos.

É essa a minha luta: resgatar o verdadeiro sentido de humanidade. Que os homens retomem o projeto do Criador. Onde reina a barbárie, de nada vão adiantar novas leis que não se cumprem; novas punições, que servirão, tão-somente, para alimentar a impunidade. Há de se ressuscitar as letras mortas. E isso se faz somente com o grito estridente das ruas.

Como em outros casos tão recentes, temo que tua imolação seja esquecida quando a comoção dobrar a esquina. Talvez, a mesma esquina em que foste abordada tão covardemente. Mas tua dor, não. Nunca mais. A dor por um filho é eterna. Ela nos acompanha até que o encontremos, de novo, em outra dimensão. Por isso, tuas lágrimas têm de irrigar a indignação, que hoje toma conta de estádios, de ruas e de lares. Das famílias, das escolas e das igrejas. Quem sabe o sacrifício do teu filho signifique o renascimento do tripé que suporta outros valores, que não a barbárie.

Somos parceiros nessa dor. Em tempo: quando conversares com o João Helio, nos teus sonhos de mãe, diga-lhe que um menino alegre, feliz, bonito e inteligente como ele irá procurá-lo entre todos os anjos. Diga-lhe que eles têm muito em comum na inocência de criança. Ele partiu há alguns anos, mas, nas minhas mais belas lembranças, continua o mesmo guri que me encantava a alma. Também partiu precoce, como todas as vítimas de algum tipo de violência.

Diga-lhe que esse guri se chama Matheus. Eu já conversei com ele nos meus sonhos de pai.

Um abraço fraterno,Senador Pedro Simon

CARTA PARA ROSA CRISTINA

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18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2007

a amazônia é nOssaAntonio Olinto

Membro da Academia Brasileira de Letras

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Denúncias da mídia sobre uma possível “entrega” da Amazônia, juntamente com uma série de televisão, muito bem feita, que narra o que teria sido a atuação do Brasil no caso do Acre, chamam

a atenção para o problema, dos mais importantes para os que lutamos pela integridade do País. Livro de meados do século XX, de Artur César Ferreira Reis, “O Amazonas e a cobiça internacional”, já nos chamava a atenção para o perigo.

A obra do amazônida (nasceu no Acre) Leandro Tocantins, que nos deixou há menos de dois anos, foi um permanente esforço de mostrar a Amazônia como parte inconsútil da nação brasileira.

Em minha experiência como representante do Brasil no exterior – na África, em Nova York e na Inglaterra –, tive, muitas vezes, de enfrentar o que me pareceu realmente ser uma série de sinais da cobiça internacional com relação à Amazônia. Em conferências que fiz em lugares tão diferentes, como Lagos, Dacar, Londres, Liverpool, Nova York, Los Angeles, Estocolmo, Varsóvia e Milão, indagações e afirmações de professores e alunos indicavam uma tendência geral de considerar o Brasil como incapaz de tomar conta de uma região com a importância da Amazônia.

Certa vez, em Essex, Inglaterra, depois de palestra minha sobre a literatura amazonense, um professor alemão pediu a palavra e, convicto em sua opinião, ponderou que, sobre o assunto, era preciso que se pensasse em um tratado internacional que permitisse, a outros países, fora do Brasil, que analisassem, sob a supervisão da ONU, medidas que preservassem os valores naturais da Região Amazônica, no momento sob o domínio brasileiro.

Na mesma hora retruquei, com firmeza, que a menor interferência estrangeira na Amazônia brasileira seria repelida pelo governo e pelo povo do Brasil. Hoje, diante da notícia das “concessões” possivelmente feitas a “ONGs” e entidades estrangeiras na região, não sei de que maneira poderia eu

reagir a uma intervenção como a do professor de Essex, que, na hora, me respondeu que não tivera a intenção de ser contra o Brasil, mas apenas desejar que outros países nos “ajudassem” em planos que resolvessem os problemas da Amazônia.

Diante do acirramento do interesse estrangeiro pela região, nada melhor do que ler, principalmente, “Euclides da Cunha e o Paraíso perdido”, em que Leandro Tocantins estuda o fascínio de Euclides em face do que vira naquele Paraíso que podia já estar perdido. Outros livros de Leandro me parecem mais adequados para a leitura de hoje. São os que têm os títulos de “Os olhos inocentes” e “Adolescência, a vigília dos olhos”, que vêm a ser relatos das memórias de um menino vivendo na Amazônia, com seus seringais, suas festas, seu verde e sua romântica nostalgia de um mundo realizado.

Narrativas na primeira pessoa fluem como um romance, o personagem acompanhando a vida na selva, não muito diversamente de como o fez o menino de Tolstoy que, ao longo da estepe, atravessava o desconhecido e ia acompanhando sucessivas descobertas de gentes, imagens e coisas. A leitura de “Os olhos inocentes” e “Adolescência, a vigília dos olhos” nos traz, em um estilo de clara luminosidade, toda a Amazônia do século XX, com muitos dos problemas que não desapareceram de todo, mas com a força do homem vivendo com sua companheira Terra.

São livros que deveriam ser reeditados e que podem nos ajudar em nossa luta, que deve ser incessante, para convencer os brasileiros que têm o poder no momento que não podem trair um passado que, nas mãos de um Rio Branco, deu ao País a di-mensão que hoje tem. A Amazônia é brasileira e não está a venda.

“Adolescência, a vigília dos olhos”, de Leandro Tocantins, tem a marca editorial da Edições Cejup, apresentação de Adonias Filho; prefácios de Gilberto Freire e Antonio Carlos Villaça. Capa com a reprodução fotográfica do painel de azulejos “A fada da primavera”, original no Palacete Victor Maria da Silva, Belém do Pará.

“EM MINHA EXPERIêNCIA COMO REPRESENTANTE DO BRASIL NO EXTERIOR, TIVE, MUITAS VEZES, DE ENFRENTAR O QUE ME

PARECEU REALMENTE SER UMA SÉRIE DE SINAIS DA COBIÇA INTERNACIONAL COM RELAÇÃO à AMAZôNIA.”

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20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2007

Wagner Victer Presidente da CEDAE

“nãO passarãO” e O RENASCER DE QUIXOTE

Nota do editor

Nosso estimado articulista Wagner Victer faz um paralelo de suas ações administrativas na Secretaria de Energia, Indústria Naval e do Petróleo, com as gloriosas epopéias da Espanha.

Remonta às lutas contra as tropas de Napoleão na invasão de 1808 e ao ano de 1936, quando, em defesa do Governo Republicano frente às tropas nazi-fascistas do General Francisco Franco, um voluntariado de heróis do mundo correu à Espanha para se associar aos nacionalistas republicanos, na luta contra as forças mercenárias e ensandecidas, enviadas por Hitler e Mussolini, que com torpeza e aviltamento praticaram o massacre e trucidamento das populações de Madri, Valença, Málaga, Navarra e Guernica, cidades totalmente destruídas pelos bombardeios aéreos.

Wagner também nos traz a lembrança da legendária heroína Dolores Ibarra – La Passionaria, do poeta e condoreiro do Chile, o imortal Pablo Neruda – e ainda a figura igualmente legendária do jovem Frederico Garcia Lorca, estúpida e cruelmente fuzilado por ordem pessoal do caudilho General Franco.

É oportuno lembrar o famoso quadro pintado por Picasso que retrata os horrores do acontecido em Guernica, bem como o diálogo ocorrido no momento de sua exposição em Paris, entre o pintor e um adido militar alemão que lhe perguntou: “Foi você que fez isso?”, tendo Picasso respondido: “Não. Foram vocês.”

A significativa e retumbante frase “Não passarão”, usada pelo gestor público Wagner Victer, é pertinente e se coaduna com a luta e ação que, em sua Secretaria, travou contra as forças que se antepuseram aos planos de expansão e progresso da economia fluminense.

Nos oitos anos de sua exuberante atividade, vencendo tropeços e obstáculos, por certo, nosso personagem esteve imbuído dos mesmos ideais do Cavaleiro de Triste Figura para conseguir, como provou através de perseverança e determinação, os bons resultados que galhardamente colheu, tendo proporcionado, com seu trabalho, a vinda e a instalação, no estado, de importantes empreendimentos nas indústrias naval, petroquímica, energia elétrica, papel, plástico, produção de gás e outros importantes setores industriais, conseguindo trazer, para o Estado do Rio de Janeiro, bilhões de reais em investimentos e milhares de novos empregos.

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Uma coincidência que me deixa orgulhoso é ter nascido na mesma data, 16 de janeiro, do lançamento da Obra Quixote. Talvez, de alguma maneira, tenha instintivamente me inspirado nisto

para empreender algumas lutas contra moinhos de ventos que, por diversas vezes, nos últimos anos, se colocaram contra o desenvolvimento econômico de nosso Estado.

Sei que o Espírito do Cavaleiro nunca morreu e, muitas vezes, se fez presente em outros momentos de resistência e perseverança, principalmente, no aguerrido povo espanhol. Também sei que buscarei, até em um abuso literário, sem cansar os leitores deste artigo, estabelecer uma relação com práticas que adotamos com o apoio integral de uma pessoa, por sua fibra, que sempre admirei: a Governadora Rosinha.

O fato é que, no momento que recebo novos desafios no sentido de buscar corrigir os rumos de nossa Companhia Estadual de Águas e Esgotos – CEDAE – e ao fim de meu segundo mandato como Secretário de Estado de Energia, da Indústria Naval e do Petróleo, tenho orgulho de muitas coisas que realizei ou que ajudei a realizar. Tenho, porém, especial orgulho de algumas ações, que com nossa luta, impedi que acontecessem, pelo menos enquanto estive em meu posto, por serem, a meu ver, extremamente nocivas à economia fluminense e de nosso País. Tais

realizações em forma de colocação de “obstáculos” que não foram transpostos me recordam o histórico brado “Não passarão”, brotado na alma do povo de Madri durante a rebelião popular contra seus opressores, o qual lembrarei o histórico na pesquisa à frente.

Gostaria, neste contexto, de destacar três fatos que, com o apoio da sociedade fluminense, não deixamos que fossem realizados dentro do espírito do “Não Passarão”:

• a colocação de navios em estaleiros virtuais: a escandalosa licitação da Transpetro, subsidiária da Petrobrás, retirando encomendas dos estaleiros fluminenses para colocar em estaleiros inexistentes (fantasmas/virtuais), o qual, felizmente, não aconteceu até o final de 2006;

• a construção do oleoduto Rio/SP: a construção de um Oleoduto, ligando diretamente a Bacia de Campos às Refinarias de São Paulo (PDET), a qual tiraria toda a vantagem comparativa logística do Rio de Janeiro, e que com seu cancelamento, por nossa luta, culminou com a conquista da Refinaria Petroquímica (COMPERJ) para o Estado, a qual se transformou em uma vitória histórica. Neste item, o debate na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), onde “massacramos” com argumentos técnicos aqueles que defendiam o projeto, foi antológico e entrará para a história das lutas pelo desenvolvimento de nosso Estado;

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• a restrição da oferta Gás Natural ao Rio de Janeiro e ao Mercado do GNV: durante todos esses anos, algumas correntes na Petrobras (não as dominantes) ameaçaram restringir o acesso do Gás Natural ao Rio de Janeiro, em especial, ao segmento do Gás Natural Veicular – GNV –, inclusive com ameaças de aumento do preço (que não ocorreu), justificando-a em função da crise da Bolívia. Lutamos com sucesso para não haver o rompimento do Artigo 25 da Constituição Federal, que estabeleceu tal prerrogativa de escolha de atendimento ao mercado como sendo uma competência legal dos Estados e também pela não contaminação dos preços do Gás do Rio de Janeiro pelo Gás Boliviano.

a História do “não passarão” e o paralelo com as lutas Fluminenses

“Não foi só uma vez que Madri, ao longo de sua história como capital da Espanha e do Império Espanhol, sofreu uma violência de grandes proporções. Já em maio de 1808, os madrilenhos insurgiram-se contra a presença das forças de Napoleão que, em represália, executaram um massacre contra a população civil.”

Esse horror foi imortalizado nas telas de Francisco Goya. Mais tarde, a outra vez deu-se em julho de 1936, quando as massas saíram às ruas da cidade para defender a República

da Frente Popular ameaçada pelo golpe do general Franco, tomando à força, com muitas vítimas civis, o quartel dos militares golpistas. Houve uma forte reação popular que desencadeou o bombardeio de Madri, ordenado pelo general Franco.

Após o pronunciamento militar, em 18 de julho de 1936, quatro colunas fortemente armadas saíram do sul da Espanha e se puseram a marchar sobre Madri. Os principais comandantes militares liderados pelo general Francisco Franco declararam guerra a seu próprio governo, o da República dos Trabalhadores. Aos gritos de “Viva Cristo Rei! Arriba Espanha!”, a Espanha católica, tradicionalista e hierárquica – uma coligação formada pelos quartéis, pelos palácios e pelo que Pablo Neruda chamou de “raivosas sacristias”– revoltava-se com armas na mão para derrubar a República Vermelha, a Frente Popular formada por republicanos, socialistas, anarquistas e comunistas que haviam ganho as eleições de fevereiro de 1936.

As tropas faziam parte do Exército da África, majorita-riamente integradas pelos regimentos mouros vindos do Marrocos, então subjugado pela Espanha e também pela Legião Estrangeira. Forças essas que, decolando de Fez, haviam alcançado o solo espanhol graças à ponte aérea formada por aviões de transporte oferecidos por Mussolini e por Hitler.

O general Videla, o responsável pela ofensiva contra

“O ESPíRITO DO CAVALEIRO NUNCA MORREU E,

MUITAS VEZES, SE FEZ PRESENTE EM OUTROS MOMENTOS

DE RESISTêNCIA E PERSEVERANÇA, PRINCIPALMENTE,

NO AGUERRIDO POVO ESPANHOL.“

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“COPIAMOS O BRADO MADRILENHO E EXCLAMAMOS

‘NÃO PASSARÃO’ CONTRA AS AMEAÇAS

à ECONOMIA FLUMINENSE.”

Madri, esperava, inicialmente, contar com o apoio do Quartel da Montanha, o mais poderoso aquartelamento da capital, controlado pelo general Fanjul. Seria uma operação relativamente simples. Enquanto as quatro colunas acercavam-se da cidade vindas do oeste, havia a expectativa de que ocorresse uma insurreição dentro da cidade, promovida pela “Quinta coluna”. O que permitiria a captura e imediata deposição do governo republicano.

Quanto à população de Madri, inteirou-se da rebelião das casernas, milhares de operários, de funcionários, de lojistas, de diaristas, ao invés de se acovardarem, uniram-se, atendendo aos chamados dos sindicatos, da CNT (Confederação Nacional dos Trabalhadores) e da UGT (União Geral dos Trabalhadores) para irem cercar o Quartel da Montanha. O governo republicano, depois de uma certa hesitação, acenou em entregar armas para o povo. Entre os dias 19 e 20 de julho, à tétrica sombra de 50 igrejas madrilenhas incendiadas pelos anarquistas, os ditos “los incontrolables”, travou-se uma incrível batalha ao redor do grande fortim, que, naquela ocasião, lembrou muito a Fortaleza de Bastilha assediada pelos parisienses um século e meio antes.

Nas partes baixas, encontrava-se a plebe madrilenha, armada com o que pusera a mão, de pedras à escopetas, nas seteiras da fortaleza o exército profissional disparando rajadas para todos os lados. Dolores Ibarruri, a popular La Pasionaria, percorria as ruas da capital com megafone na mão, lembrando a todos a bravura do povo local quando do levante de 12 de maio de 1808, ocasião em que seus antepassados haviam enfrentado o exército de Napoleão. “Não passarão!” exclamava ela. No dia 20, a guarnição rebelada rendeu-se. A oficialidade foi massacrada pela massa enfurecida que não parava de gritar “Avante! À luta! Avante!”. Falhara o golpe de mão em Madri.

Foi então que os lideres da Cruzada, como se autodenominava o levante nacional-fascista do general Franco, decidiram-se ordenar o bombardeio aéreo da capital. Então os céus de Madri viram-se escurecidos pelas esquadrilhas de aviões que os nazistas haviam colocado à disposição do generalíssimo. Pois, mais recentemente, depois da tragédia do dia 11 de março de 2004, a valente gente de Madri, recomposta da abominável guerra civil de 1936-1939, vestiu novamente o luto, vítima de uma outra insânia – não se sabe ainda se dos fundamentalistas do Al Qaeda. Com os sentidos ainda feridos pelo estrago das explosões da Estação Antocha, a multidão, cuidando dos feridos, doando sangue, voltou a reunir-se em resistência: “Não Passarão!”, dando o exemplo de resistência para todos os povos, inclusive para nosso Brasil, muitas vezes, acanhado em lutar por seus interesses.

Dessa forma, copiamos nessas jornadas, o Brado madrilenho e exclamamos “Não passarão!” contra as ameaças à economia fluminense, agradecendo a todos que se juntaram a mim e à Governadora nessas lutas vitoriosas, como a Revista Justiça e Cidadania, e também aos que conosco se ombrearão nas lutas e desafios futuros.

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gOVernadOr sérgiO cabral insiste na redUçãO da MAIORIDADE PENAL

Mantendo sua opinião, o governador do Rio de Janeiro defende a maioridade penal para menores infratores.

“Novamente, defendo primeiro a autonomia dos Estados para legislação penal, de acordo com regras

estabelecidas pelo Congresso Nacional. E, novamente, acho que o menor que comete um crime, de acordo com aquele crime, o Ministério Público possa solicitar à Justiça a antecipação de sua maioridade penal. É uma tese, acredito, que será boa para o país.”, disse o governador, em Brasília, ao comentar o assalto no qual o menino Anderson Silva escapou com vida de um tiroteio entre policiais e os bandidos que assaltaram seu pai e levaram o carro da família.

Segundo Cabral, o Estado do Rio trabalhará para combater criminosos. “Não estamos brincando com esta questão da criminalidade. Estamos trabalhando permanentemente para combater a criminalidade e a população, assistido e aplaudido a essas seções do governo do Estado. Vamos continuar na mesma direção, não tem nenhum tipo de complacência com a criminalidade, vamos continuar trabalhando para combater os criminosos, apreendendo armas e munições da maneira que a população deseja.”

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Fila de bancODA CONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL SOBRE TEMPO DE ESPERA E à LUZ DA DEFESA DO CONSUMIDORDécio Luiz José Rodrigues Juiz de Direito – São Paulo

Professor da Escola Paulista de Magistrados

Parece “estar na moda” a elaboração, pelos Muni-cípios, de leis que versem sobre tempo de espera em fila de banco, discutindo-se, a priori, a respeito da Constitucionalidade de tal legislação de

caráter Municipal, à vista da competência legislativa da União, dos Estados e dos Municípios elencada na Carta Magna.

Sem dúvida, in casu, o interesse local quanto à aprovação da lei é evidente, pois os consumidores do estabelecimento bancário localizado no Município serão os usuários do serviço e os beneficiários, sendo de aplicação a norma do artigo 30, inciso I, da Constituição Federal, permitindo-se a feitura da lei indigitada.

Eventual óbice à constitucionalidade da lei Municipal seria a inserção das matérias dos incisos VI, VII e XIX do artigo 22 da Constituição Federal em tal contexto, matérias relativas a banco, de competência somente da União, mas, dado o teor de tais assuntos (sistema monetário, política

de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores, assim como, respectivamente, sistemas de poupança, captação e garantia de poupança popular), é de se concluir pela desvinculação em relação ao uso de fila de banco, assunto este de interesse local, prevalecendo sobre qualquer outro assunto de monopólio legislativo da União.

Nesse sentido, o Pretório Excelso já decidiu in Recursos Extraordinários de números 432.789, 312.050 e 208.383, inclusive af irmando que, a lém da possibi l idade de Lei Municipal discipl inar sobre tempo de pessoas (consumidores) em fi la de banco, também é l íc ito ao Município legis lar sobre obrigatoriedade de instalação, pelos bancos comerciais , de equipamentos de segurança (veja-se o segundo daqueles recursos) , outro assunto de interesse local .

Ipso jure, em sendo Constitucional a Lei Municipal

“O INTERESSE LOCAL QUANTO à APROVAÇÃO DA LEI É EVIDENTE, POIS OS CONSUMIDORES DO ESTABELECIMENTO BANCÁRIO

LOCALIZADO NO MUNICíPIO SERÃO OS USUÁRIOS DO SERVIÇO E OS BENEFICIÁRIOS.”

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indigitada, cabe a análise de sua legalidade quanto ao favorecimento ao consumidor versus obrigatoriedade de adaptação por parte dos estabelecimentos bancários.

Nesse aspecto, foi em cumprimento a mandamento Constitucional, ex vi do artigo 5º, inciso XXXII, da Carta Magna, que “nasceu” a Lei 8078/90, o Código de Defesa do Consumidor, devendo-se considerar que seu advento teve como origem uma determinação inserta em Direitos e Garantias Fundamentais da pessoa humana, daí sobrepor-se a qualquer outra Lei de natureza infraconstitucional, devendo prevalecer in totum nesse confronto.

Em seu bojo, temos que a relação entre o correntista (desde que não utilize os serviços bancários para atividade empresarial stricto sensu, e sim como destinatário final) e o estabelecimento bancário é de consumo (artigos segundo, terceiro e parágrafos da Lei 8078/90), não podendo o banco, fornecedor hic et nunc, deixar de estipular prazo

(e acrescentamos “razoável”) para o cumprimento de sua obrigação (artigo 39, inciso XII, da Lei 8078/90) e de estabelecer cláusula contratual iníqua, abusiva e que coloque o correntista em desvantagem exagerada, incompatível com a boa-fé ou a eqüidade (artigo 51, inciso IV, da Lei 8078/90), e cláusula excessivamente onerosa ao consumidor-correntista (artigo 51, parágrafo primeiro, inciso terceiro, da Lei 8078/90).

Assim, o teor de Lei Municipal que verse sobre tempo de permanência em fila de banco por parte do consumidor-correntista ou usuário dos serviços bancários (se estendermos o significado de consumidor a todo aquele exposto a essa prática, consumidor por equiparação, ex vi do artigo 29 da Lei 8078/90) é Constitucional e atende, ainda, ao comando do Código do Consumidor, Lei que foi elaborada em atendimento a mandamento Constitucional e que deve prevalecer sobre outras de caráter infraconstitucional.

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algUmas cOnsiderações sObre a pOlítica, cOmO ciÊncia e arte, O direitO e O pOder JUdiciáriO

A política, como ciência, no dizer de Garner, proporciona conhecimentos sobre o Estado e, como arte, procura a solução dos problemas concretos e trata dos processos e meios que o governo emprega

para realizar os fins do Estado.A política é uma ciência aplicada, que tem por objeto a

dinâmica do Estado, sua projeção no futuro. É preciso ter consciência, na análise da questão, de que, no

mundo da sociedade, imperam as mudanças, as diferenciações, o desenvolvimento, e ele é diverso do mundo da natureza. Nele reina a heterogeneidade, a infinita diversidade, a probabilidade, a teleologia. No mundo da natureza, basta um fenômeno para se levar à lei geral. Na sociedade, tudo se passa diferentemente, e cada fenômeno é, em si mesmo, uma espécie, alguma coisa irreversível que, na lição de Jellinek, existe uma só vez e não se reproduz em condições idênticas, senão, no melhor dos casos, em situações análogas, da mesma forma que na “infinita massa dos seres humanos nunca reaparecerá o mesmo indivíduo”.

O político precisa atuar com conhecimentos científicos, como estudioso da sociedade. Ele deve se apresentar como um ser dotado de um mínimo de dogmatismo inconsciente e se propor a versar o conteúdo difícil das ciências sociais, sabendo de seus embaraços, com honestidade incansável, e se mostrar um pesquisador das verdades que se extraem do comportamento dos grupos e da dinâmica das relações sociais.

Sobre o prisma filosófico, a política estuda os acontecimentos, as instituições, as idéias políticas, tanto em sentido teórico (a doutrina) como em sentido prático (a arte), referindo-se ao passado, ao presente e às possibilidades futuras. Nesse campo, cabe a análise sobre a racionalização do poder, a legitimação das bases sociais em que o poder repousa; investiga-se o poder

político, a essência dos partidos, sua organização, sua técnica de combate e proselitismo, sua liderança, seus programas; interrogam-se as formas legítimas de autoridade; indaga-se à administração pública como nela fluem os atos legislativos ou como a força dos parlamentares, sob a égide de grupos socioeconômicos poderosos, empresta à democracia suas pe-culiaridades mais flagrantes. Em sua constante sociológica, não podem ficar esquecidas as raízes históricas da evolução política.

A evolução política de nosso Estado brasileiro trouxe-nos à atual organização com base no direito. Somos uma República Federativa formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, que se constitui em Estado Democrático de Direito, o qual tem como fundamento a regra de que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, segundo a Constituição, e se norteia pelos princípios da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político. Todos importantes e que precisam ser aprimorados e tornados efetivos, em nosso meio social, para o que será indispensável o trabalho altruístico da classe política, das autoridades públicas e do povo.

O Direito escrito, que deve, pelo Judiciário, ser aplicado no âmbito do Estado, vem do trabalho construtivo do Poder Legislativo, com a participação, hoje, essencial, do Poder Executivo. Historicamente, bem se sabe, o direito não se repete, salvo em relação à permanência de seus elementos abstratos, ou seja, enciclopédicos. O direito tem suas fases, suas etapas encadeando-se, variando sempre sobre um grande fundo imutável, conforme salienta Edmond Picard.

O direito transforma-se com os interesses e as necessidades da vida. Os elementos jurídicos constituídos fazem-lhe surgir

Ronald ValladaresDesembargador TJ/RJ

Vice-Presidente do Tribunal Eleitoral TE/RJ

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outros, o organismo desenvolve-se em virtude de sua força íntima, nasce, cresce como um ser, desde a vida interuterina e embriogênica das instituições jurídicas rudimentares, em uma série de aproximações, em um crescimento incessante, em uma eliminação e assimilação sucessivas, análogas às secreções e às evaporações fisiológicas. No Direito, como em todas as evoluções, a mortalha das instituições que perecem serve de faixa às instituições recém-nascidas. A todo momento, há morte e vida!

Os fatos e os acontecimentos jurídicos do passado são documentos para consultar, não modelos para imitar.

Se a força costumeira faz luzir e fermentar o suco jurídico à superfície das multidões, como o suor na pele, não é por este único modo de colher o direito que a humanidade tem mantido. Também emprega a força legislativa, que o produz pelo funcionamento de um Poder organizado, trabalhando conforme determinados processos e revestindo estes da forma das leis propriamente ditas. O Poder Legislativo, que deve fazer as leis do Estado, precisa se conscientizar de seu valor social para a manutenção das instituições sociais e para seu aprimoramento.

O Poder não pode servir para realizar, sob a aparência jurídica, as fantasias e o egoísmo daqueles que o tem exercido. O povo deve ser governado não para servir de corpo de experimentação às lucubrações pessoais dos legisladores, mas para orientar, executar suas próprias indicações, para realizar o ideal que ele segrega. O legislador deve ser um registrador hábil das necessidades populares, um confessor da alma geral, dizendo melhor e com mais clareza o que esta balbucia confusamente. Batido, constantemente, pelas vagas humanas, deverá, conforme a magnífica expressão de Nicolau Berryer, notável advogado francês, que viveu entre os séculos 18 e 19, “não sentir no assalto destas ondas, senão uma solicitação ao seu gênio”.

Do mesmo modo que o legislador, o jurisconsulto, em suas edificações teóricas, deve inspirar-se, antes de tudo, na alma popular e só empregar a razão para melhor descobri-la e melhor exprimi-la. Deve permanecer seu intérprete fiel, aconselha Picard, traduzindo, em uma forma clara e metódica, essas tendências flutuantes e dando solidez ao que elas têm de fluidez. O jurista de bom conselho, como o legislador de bom quilate, deve ser apenas um hábil parteiro das necessidades nacionais. É sempre irracional e tirânico tentar realizar, pela vontade e pela força, um efeito fora da causa natural que o produz.

O Poder Judiciário precisa, de igual modo, evoluir sempre, enfrentando os fatos e as aspirações de seu tempo, procurando cumprir bem seu ideal de servir ao povo e realizar sua missão constitucional.

A Justiça, para merecer seu grande nome, precisa abraçar toda a sociedade, não fornecer suas vantagens a alguns, mas a todos; não ser apenas a servidora dos poderosos, mas, sobretudo, dos humildes; não esquecer ninguém e não esquecer nenhuma necessidade; exigir o concurso de todos, mas no limite das forças de cada qual; penetrar na organização social como um fluído benéfico, levando saúde e alegria para todos. Este programa pre-cisa ser realizado e ser o norte fervoroso de todos os magistrados.

À luz do pensamento democrático, que tem clareado seu caminho de progressão para a defesa da liberdade, a Justiça deve estar sempre na busca da orientação do direito de participação no ato criador da vontade política. Ela dever considerar a soberania popular como fonte de todo poder legítimo, que se traduz através da vontade geral, enfatizar o princípio do sufrágio universal, com pluralidade de candidatos e de partidos, a observância constitucional do princípio da distinção de poderes, a igualdade de todos perante a lei, a adesão ao princípio da fraternidade social, a limitação das prerrogativas dos go-vernantes, o Estado de direito, a temporariedade dos mandatos eletivos e a existência plenamente garantida das minorias políticas, com direito e possibilidade de representação.

O poder é do povo e o governo é dos representantes, em nome do povo, bem se sabe!

“O PODER LEGISLATIVO, QUE DEVE FAZER AS LEIS DO ESTADO, PRECISA SE CONSCIENTIZAR DE SEU VALOR SOCIAL PARA A MANUTENÇÃO DAS INSTITUIÇõES SOCIAIS E PARA SEU

APRIMORAMENTO.”

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IntróitoEntrou em vigor, em janeiro de 2006, a Lei 11.187, de 20 de

outubro de 2005, de autoria do Poder Executivo, que “altera a Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil –, para conferir nova disciplina ao cabimento dos agravos retido e de instrumento, e dá outras providências”.

Essa lei foi a primeira que se incorporou ao direito positivo a partir da série de projetos que integram o chamado Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano, assinado pelos Presidentes da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, em 15 de dezembro de 2004, por oportunidade da promulgação da Emenda Constitucional nº 45 (Reforma do Judiciário), e que já resultaram em quatro outras leis: 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006.

Embora bem-intencionada, essa reforma da reforma da reforma, no afã de conferir celeridade aos processos judiciais e reduzir o número de recursos disponíveis em nosso sistema processual civil, cria mais problemas que soluções, e contraria o próprio sentimento que tem imbuído os três poderes da República e a sociedade civil na consecução da verdadeira e necessária Reforma Processual Civil.

Em que pese o fato de a lei ostentar pontos louváveis, como a restrição do cabimento do agravo de instrumento e a obrigatoriedade de apresentação oral das razões do agravo retido, entendemos que há nela um grave problema cujo cerne é a nova redação dada ao parágrafo único do art. 527 do Código de Processo Civil (CPC), que estabelece, peremptoriamente, que “a decisão liminar, proferida nos casos dos incisos II e III do caput deste artigo [art. 527 do CPC], somente é passível de reforma no momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar”.

Discordamos de que a irrecorribilidade estatuída se trate meramente de “opção política”, como se tem alardeado. Embora quatro dos potenciais efeitos nefastos do dispositivo legal em comento – insegurança jurídica, desprestígio dos juízes de primeiro grau e do colegiado, potencialização de erros judiciários e reavivamento do mandado de segurança para impugnar atos judiciais – estejam incluídos na margem de liberdade do legislador para tomada de decisões sobre política judiciária, situando-se no campo da (in)oportunidade e da (in)conveniência, identificamos violações aos princípios constitucionais do acesso à justiça e do juiz natural, o que conduz o dispositivo à inconstitucionalidade material.

reFlexões sObre a reFOrma dO agraVO NA LEI 11.187/2005Bruno Dantas Nascimento

Consultor Legislativo do Senado Federal

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Para justificar o fato de o relator, autonomamente (e não mais por delegação do colegiado), haver passado à condição de juiz natural das decisões liminares em agravo de instrumento, tem-se afirmado que juiz natural é simplesmente aquele apontado pela lei. É óbvio que este é um dos vetores do conceito de juiz natural.

O outro vetor é mais complexo e está associado à formatação do sistema recursal e à estrutura dos tribunais, delineada pela Constituição Federal, e, em razão do princípio da simetria, pelas Constituições Estaduais, que acaba por se espraiar nas leis de organização judiciária dos Estados: a necessidade imperiosa de que a lei que elege o juiz natural o faça de forma razoavelmente compatível com o sistema.

Das conseqüências práticas decorrentes do novel parágrafo único do art. 527 do CPC

Podemos sintetizar em duas as principais conseqüências práticas da nova redação do parágrafo único do art. 527 do CPC:

• a decisão do desembargador-relator que – ao exa-minar se a questão de fundo versada no recurso é ou não urgente, para fins de avaliação sobre o cabimento do agravo de instrumento – concluir pela ausência de urgência e pela sua conversão em retido passa a ser irrecorrível, suprimindo-se a previsão de recurso ao colegiado hoje existente no inciso II do art. 527 codificado; • a decisão liminar do desembargador-relator que deferir efeito suspensivo ao agravo de instrumento ou conceder a antecipação da tutela recursal passa a ser também expressamente irrecorrível, excluída a hipótese de interposição do agravo interno dirigido ao colegiado competente para a apreciação do mérito do recurso, o que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem aceitado por interpretação analógica do art. 557, § 1º, do CPC.

Como se vê, o dispositivo em análise amplia em muito os atuais poderes do desembargador-relator do agravo de instrumento, excluindo, sem qualquer razão legítima, poderes que pertencem ao colegiado, que, em última análise, é o verdadeiro órgão competente para analisar o recurso, portanto, seu juiz natural.

Doravante, distribuído o agravo de instrumento, o relator verificará, preliminarmente, o cabimento do agravo de instrumento, analisando se a questão de mérito discutida no recurso é ou não capaz de causar ao agravante lesão grave e de difícil reparação. Caso o relator conclua pela negativa, de acordo com a nova sistemática, converterá o agravo em retido e determinará sua remessa ao juízo a quo, mediante decisão liminar irrecorrível.

Admitido o processamento do agravo de instrumento, caberá ao relator, em decisão liminar irrecorrível, resolver sobre a antecipação da tutela recursal ou sobre a concessão de efeito suspensivo ao recurso.

Análise de mérito do parágrafo único do art. 527 do CPCEntendemos que a irrecorribilidade estatuída é, no mínimo,

inconveniente e até mesmo inconstitucional. Para defender

nosso ponto de vista, arrolaremos cinco argumentos contrários ao mencionado dispositivo, com a finalidade de demonstrar por que seu conteúdo se contrapõe não só à Constituição e ao sistema vigente, mas ao próprio espírito da Reforma.

Propositalmente, analisaremos a questão da inconstitu-cionalidade ao final, após o exame dos quatro argumentos associados à oportunidade e conveniência do dispositivo. Isso se deve a sua imbricação necessária com o cabimento do mandado de segurança para impugnação de ato judicial, que analisaremos como último argumento de mérito.

Insegurança jurídicaEm primeiro lugar, a irrecorribilidade das decisões liminares

proferidas pelo relator do agravo de instrumento acarretará grave insegurança jurídica e violará o próprio princípio das decisões colegiadas, que rege a disciplina dos processos nos tribunais. Com efeito, ao estabelecer que “a decisão liminar, proferida nos casos dos incisos II e III do caput deste artigo [art. 527 do CPC], somente é passível de reforma no momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar”, a norma fortalece os entendimentos minoritários em detrimento das teses prevalecentes no colegiado, cuja adoção será postergada até o momento do julgamento do mérito do agravo de instrumento (isso se o agravo não tiver perdido o objeto, fato comum, em virtude do tempo que leva o relator para submetê-lo à apreciação da turma ou câmara).

Não se pode olvidar, outrossim, que a nova redação do caput do art. 522 e dos incisos II e III do art. 527, assim como a remissão ao art. 558, todos do CPC, ao mencionar as expressões “decisões suscetíveis de causar à parte lesão grave e de difícil reparação” e “relevante fundamentação”, guardam consigo conceitos vagos, que, para Teresa Arruda Alvim Wambier, embora possam causar problemas de ordem interpretativa, não criam para a situação concreta mais de uma solução juridicamente correta. Em outras palavras, não há que se falar em várias soluções corretas para o mesmo caso concreto, embora o esforço do intérprete seja maior e mais complexo, e, portanto, as chances de interpretação incorreta de um conceito impreciso sejam maiores.

Ademais, partindo da definição do insuperável Arruda Alvim sobre os conceitos indeterminados, como os que permeiam os arts. 522, 527 e 558 do CPC, devemos concluir que, quando o legislador opta por transferir ao julgador a incumbência de dirimir as dúvidas conceituais que se apresentam em decorrência da utilização dos conceitos vagos ou indeterminados nas normas jurídicas, acaba por transferir-lhe, igualmente, o ônus da manutenção da segurança jurídica, de modo que há de ser estabelecido algum mecanismo que possibilite ao próprio aplicador da lei zelar por este elevado valor.

É nesse contexto que a recorribilidade das decisões liminares adotadas pelo relator do agravo de instrumento é necessidade imperiosa, e sua vedação é verdadeira razão ensejadora de insegurança jurídica.

Ao gerar insegurança jurídica e aumentar a assimetria de informação, o dispositivo repercute negativamente na

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economia do país, aumentando o risco e inibindo, a um só tempo, a oferta de crédito e o investimento, de forma a potencializar o spread bancário, conforme assinala o professor de economia da FGV/SP e presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia, Gesner Oliveira.

Esse efeito, sem dúvida, contraria o espírito da Reforma, que, com propostas como a de modificação no processo de execução e de inversão da regra sobre os efeitos da apelação, tem buscado justamente o oposto do que foi levado a cabo pela Lei 11.187, de 2005: aumentar a segurança jurídica, reduzir a assimetria de informação para favorecer o aporte de capitais no Brasil e reduzir o chamado custo do judiciário brasileiro.

Desprestígio dos juízes de primeiro grau e do órgão colegiado

O segundo argumento diz respeito ao desprestígio da deci-são proferida em primeiro grau de jurisdição. Uma das mais justas reivindicações que se faz em relação ao processo civil brasileiro está relacionada com a efetividade da decisão proferida pelo juiz de primeira instância, justamente aquela lançada pelo magistrado que tem o contato mais imediato com as partes.

Além disso, ao excluir da apreciação do colegiado o exame da liminar proferida no agravo de instrumento, o dispositivo legal depõe contra o sistema, tornando total, irrestri-ta e isenta de controle a competência delegada pela lei ao relator, e esvaziando os poderes do órgão delegante. Em outras palavras, como, nos tribunais, a competência do relator deriva da do colegiado, é inconcebível que este não disponha de qualquer mecanismo para controlar as decisões daquele.

Não é exagero imaginar que, em muitos casos, a depender da postura adotada pelo relator, haverá verdadeiro esvaziamento do objeto do agravo, o que torna o julgamento pelo colegiado ato mera e estritamente formal. Vale dizer, nesse caso, terá a lei instituído novo juiz natural para o recurso, em contrariedade ao sistema constitucional que contempla os tribunais como órgãos colegiados.

É de causar perplexidade, ainda, a incoerência que reveste a idéia da irrecorribilidade das decisões liminares adotadas pelo desembargador-relator. Ora, por que não se defende a irrecorribilidade da decisão do juiz de primeiro grau, tese que pareceria muito mais razoável, dada a proximidade deste às partes e à realidade pulsante dos fatos? A resposta é simples: não propriamente em homenagem ao duplo grau de jurisdição (que não é considerado garantia constitucional, conforme se posicionam, dentre outros, Nelson Nery Junior, Humberto Theodoro Junior e Roberto Rosas, podendo ser excepcionado em casos específicos), mas porque ocorreria violação ao princípio da inafastabilidade do controle

jurisdicional (Constituição Federal, art 5º, XXXV).

Potencialização dos erros judiciáriosEm terceiro lugar, pode-se afirmar que a lei aumenta as chances

de ocorrerem erros judiciários, à medida que concentra, de forma desaconselhável, poderes muito amplos nas mãos do relator, com o conseqüente esvaziamento das competências do colegiado.

No segundo grau de jurisdição, a falta de contato com as partes é compensada com a pluralidade das idéias que se apresentam no debate travado no órgão colegiado e a fiscalização recíproca entre seus membros. Com a nova lei, apenas o relator poderá deferir e reconsiderar decisões liminares no agravo de instrumento, sem o contato com as partes, sem o debate plural de idéias e sem a fiscalização de seus pares.

Essa situação é especialmente delicada porque a indeterminação dos conceitos usados pela lei para autorizar o deferimento da liminar irrecorrível favorece a ocorrência de erros. A irrecorribilidade, assim, retira das partes a possibilidade de correção tempestiva do eventual equívoco, o que pode

ocasionar verdadeiro perecimento do direito discutido na lide.

Reavivamento do mandado de segurança para impugnar ato judicial

O quarto argumento é referente ao reavivamento do mandado de segurança contra ato judicial. Na atual disciplina legal do agravo, que hoje é cabível contra qualquer decisão interlocutória, está praticamente descartada a utilização do mandado de segurança para impugnar decisões judiciais, salvo as situações excepcionais autorizadas pela jurisprudência.

A conseqüência insofismável da irrecorribilidade das decisões liminares proferidas pelo relator do agravo de instrumento é a indesejável reabilitação do writ of mandamus para a tutela de direitos líquidos e certos eventualmente ameaçados pelo decisum do relator do agravo.

Com isso, o esforço empreendido para restringir o número de recursos no processo civil estaria anulado pela possibilidade de impetração do mandado de segurança, que, por ser previsto constitucionalmente, não pode ser excluído. Em verdade, entendemos que a situação delineada é ainda pior do que a anulação dos esforços, pois gerará uma ação própria com todo o cabedal de recursos a ela inerente.

De qualquer modo, considerando-se a irrecorribilidade das decisões liminares proferidas pelo relator do agravo de instrumen-to, três serão, basicamente, as hipóteses ensejadoras de impetração de mandado de segurança para impugná-las:

• quando o relator converter o agravo de instrumento em agravo retido;• quando o relator deferir ou indeferir a antecipação da tutela recursal;

“UMA DAS MAIS JUSTAS REIVINDICAÇõES QUE SE FAZ EM RELAÇÃO AO PROCESSO CIVIL

BRASILEIRO ESTÁ RELACIONADA COM

A EFETIVIDADE DA DECISÃO PROFERIDA

PELO JUIZ DE PRIMEIRA INSTâNCIA.”

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• quando o relator deferir ou indeferir o efeito suspensivo ao agravo.

Na primeira hipótese, diante da própria imprecisão dos conceitos utilizados pela norma (“quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação”), instalar-se-á controvérsia, pois, evidentemente, para o agravante, na defesa de seus interesses, qualquer mínima lesão pode ser afirmada como grave ou de difícil reparação.

Na segunda e na terceira hipóteses, ante a irrecorribilidade da decisão liminar exarada pelo relator, falar-se-á em impetração de mandado de segurança para suspender-lhe os efeitos.

Interessante notar que o relator do mandado de segurança (geralmente membro do órgão especial, por se tratar de impetração contra ato de desembargador) poderá adotar três diferentes posturas, todas elas recorríveis mediante agravo interno:

• indeferir a petição inicial, por entender ausentes os requisitos de admissibilidade do writ (art. 8º, da Lei 1.533/51);

• deferir o processamento do mandado de segurança, mas indeferir a liminar (art. 7º, inciso II, da Lei 1.533/51);

• deferir o processamento do mandado de segurança e deferir a liminar (art. 7º, inciso II, da Lei 1.533/51).

Ao final, contra o acórdão que denegar a ordem, caberá recurso ordinário para o Superior Tribunal de Justiça. Em caso de acórdão concessivo, os recursos cabíveis serão o especial, para o Superior Tribunal de Justiça, e o extraordinário, para o Supremo Tribunal Federal, conforme se trate de violação ao texto infraconstitucional ou constitucional, respectivamente.

Vê-se logo que, ainda que o mandado de segurança seja utilizado com mais prudência pelas partes e admitido mediante exame mais criterioso pela jurisprudência, a simples possibilidade de mais recursos é suficiente para demonstrar a absurdidade do dispositivo e sua contrariedade ao espírito da Reforma.

InconstitucionalidadeMerece, por fim, atenção a questão relativa à subtração

do exame recursal ao juiz natural, ponderada por Humberto Theodoro Junior e Barbosa Moreira, que nos parece de extrema gravidade. O professor mineiro, ao tratar da necessária recorribilidade da decisão singular do relator, sustenta que a lei ordinária ou o regimento interno de tribunal que negar o

acesso ao colegiado acaba por subtrair à parte o acesso a seu juiz natural, o que, naturalmente, implica em inconstitucionalidade material.

O professor fluminense, de sua parte, aponta o órgão colegiado como juiz natural dos recursos, salientando a impossibilidade de se lhe vedar o acesso.

Ofensa ao juiz natural porque esse princípio constitucional não se vincula exclusivamente à decisão final, mas a qualquer decisum que deva ser prolatado para assegurar a prestação jurisdicional tempestiva, efetiva e adequada. Ora, quem é o juiz natural do agravo de instrumento? O desembargador-relator ou o colegiado? A resposta parece evidente. A violação ao princípio constitucional do juiz natural também.

Realmente, sendo o princípio do juiz natural uma garantia constitucional assegurada pelo art. 5º, inciso LIII, o dispositivo em tela, ao obstaculizar o exame, em sede de liminar, pelo colégio, restringindo-o ao relator, acaba por malferir o texto constitucional.

Considerações finaisDecerto, esses argumentos não são exaustivos. A tentativa

feita neste estudo foi a de realçar apenas as razões mais con-tundentes, que, mesmo tomadas individualmente, já seriam motivo suficiente para a modificação da Lei 11.187, de 2005.

No raciocínio que desenvolvemos, vemos que a irrecorribilidade estatuída pelo parágrafo único do art. 527 terá duas faces, nenhuma delas construtiva para a ciência processual brasileira: uma inconveniente e outra inconstitucional.

De um lado, inconveniente quando a vexata quaestio encerrar direito líquido e certo, pois o novo dispositivo ensejará a impetração do mandado de segurança contra o decisum do relator. De outro, inconstitucional, pois a subtração do exame do recurso do colegiado, que é seu juiz natural, culmina em flagrante inconstitucionalidade.

O momento é especialmente favorável à reforma proces-sual, que, por ser matéria fundamentalmente técnica, acaba por escapar das objeções estritamente político-partidárias que poderiam ser levantadas no Congresso Nacional. Isso, todavia, não deve ser pretexto para a aprovação de propostas contrárias ao interesse nacional e que deponham contra o esforço reformista que se vem empreendendo no Brasil.

“NO RACIOCíNIO QUE DESENVOLVEMOS, VEMOS QUE A IRRECORRIBILIDADE ESTATUíDA PELO PARÁGRAFO úNICO DO ART. 527 TERÁ DUAS FACES: UMA INCONVENIENTE E OUTRA

INCONSTITUCIONAL.”

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a JUstiça parOqUial e a síndrOme de rObin HOOd COMPROMISSO COM A JURISDIÇÃO E O VALOR DO JUSTO

Cláudio Luis Braga Dell’Orto Juiz de Direito, Presidente da AMAERJ – Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro

Desembargador TJ/RJ, ex-presidente da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros

Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho

Muitos afirmam que ser injusto com os ricos em questões patrimoniais para favorecer os pobres não é injustiça, mas distribuição de riqueza. Deve-se reconhecer a vinculação ainda imprecisa

entre os conceitos de Justiça Social e de prestação jurisdicional. De qualquer modo, uma abordagem contemporânea do tema deve levar em conta a advertência de Celso Antônio Bandeira de Mello, professor da PUC-SP, seguramente um dos maiores nomes na área do Direito Administrativo em nosso país: “As disposições constitucionais relativas à Justiça Social não são meras exortações ou conselhos, de simples valor moral. Todas elas são – inclusive as programáticas – comandos jurídicos e, por isso, obrigatórias, gerando para o Estado deveres de fazer ou não fazer. Há violação das normas constitucionais pertinen-tes à Justiça Social – e, portanto, inconstitucionalidade – quer quando o Estado age em descompasso com tais preceitos, quer quando, devendo agir para cumprir-lhes as finalidades, omite-se em fazê-lo. Todas as normas concernentes à Justiça Social geram, imediatamente, direitos para os cidadãos, não obstante tenham teores eficaciais distintos. Tais direitos são verdadeiros ‘direitos subjetivos,’ na acepção mais comum da palavra.”

A questão necessita ser investigada. O Judiciário brasileiro tem sido simultaneamente acusado de ser favorável aos pobres e aos ricos. Esquizofrenia à parte, seria o cúmulo da incerteza jurisdicional. Acrescenta-se a afirmação de que

o privilégio teria uma natureza paroquial, favorecendo o reinado das oligarquias regionais.

Nossa magistratura não padece de tantas incertezas. Os juízes não se escondem atrás da Lei, embora não possam ignorá-la, pois também devem respeito à legalidade, princí-pio necessário ao funcionamento do Estado Democrático de Direito. A legalidade, entretanto, só merece esse nome quando submetida à devida filtragem constitucional, vetor de realização de uma sociedade justa, que supere desigualdades sociais sedimentadas ao longo de séculos de cultura exploratória. Outros se apegam à aplicação literal (ou quase) da lei, em atitude que, aferrada ao positivismo clássico, muitas vezes, reproduz a desigualdade social.

Construiu-se, no Brasil, uma estrutura legal que traduz na Lei as desigualdades sociais e sustenta uma estrutura de poder de natureza oligárquica. Os donos do poder – tão bem retratados na obra clássica de Raymundo Faoro – ditaram regras pelo exercício do poder de legislar, seja pela Lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, ou de outros diplomas normativos, às vezes até mais eficazes, como medidas provisórias, decretos, regulamentos, portarias, etc. Os antigos coronéis de Victor Nunes Leal substituíram como instrumentos de opressão a enxada e o voto, agora se apresentando, embora com pele de cordeiro, como lobos esfaimados da era eletrônica e globalizante.

Toda essa situação, entretanto, não mais consegue

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exercer seu predomínio absoluto, seja pela própria evolução da dinâmica social, ou ainda porque aquela “legislação” está sendo gradualmente transformada pela obrigatória adequação ao texto da Constituição-cidadã de 1988.

Aqui reside, de forma expressiva, a força transformadora do Judiciário, que, ao garantir direitos fundamentais, encontra a fonte primordial de sua legitimidade e responsabilidade como poder. Solucionar o caso concreto de acordo com princípios constitucionais, que, muitas vezes, implicam em alteração substancial do texto frio da lei, impõe o desafio de afastar sua defasagem em relação aos fatos sociais em constante mutação.

A força transformadora deriva do salutar exercício da cidadania, de que constitui exemplo recente a rejeição, simbolizada no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADI 2591/DF, da enorme pressão para afastar a incidência do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90) nas relações mantidas pelos bancos e demais instituições do sistema financeiro com os consumidores. É evidente que, se essa aplicação lhes estivesse sendo favorável, não haveria porque tentar suprimi-la pela declaração de inconstitucionalidade, em boa hora repudiada pelo STF.

A democratização dos poderes do Estado amplia os debates e a intervenção dos vários setores da sociedade. A organização das forças vivas do país, essência da Constituição, é fundamento para o desejado equilíbrio dos resultados alcançados – ainda que nem sempre.

As organizações sociais, institutos de defesa do consumidor, entidades de proteção aos direitos humanos, cumprem seu relevante papel pleiteando a regulamentação da reforma agrária, o respeito aos direitos trabalhistas e o combate ao trabalho escravo, a definição de crimes contra as relações de consumo e os demais direitos fundamentais, com especial atenção para a violência contra a mulher, a discriminação das minorias, a proteção da infância e da adolescência, bem como do meio-ambiente, além do crescentemente justificado clamor pela segurança pública, deveres historicamente negligenciados pelo Estado.

Cabe aos juízes pacificar as relações sociais e não comprometer-se previamente, antes mesmo ou no limiar de cada processo, com pobres ou ricos, poderosos ou destituídos de influência econômica ou política. A sociedade deve exigir dos magistrados o cumprimento da Constituição Federal. Sendo conhecido de todos, seu texto não pode afirmar-se como incerteza ou loteria.

Várias pesquisas realizadas revelam que os magistrados reconhecem seu dever de exercer um papel ativo para reduzir as desigualdades entre regiões, indivíduos e grupos sociais. Nada de Robin Hood, nem de justiça paroquial. No dia-a-dia do Judiciário brasileiro, busca-se decidir com isenção, porém sem neutralidade, que, em termos de ciência ou de ética, não passa de um nefasto embuste. Os magistrados não podem descumprir o dever constitucional da decisão justa.

Nesse campo, deve ser lembrado o caráter pioneiro da pesquisa “O Perfil do Magistrado Brasileiro”, realizada sob os Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho

Claudio Luis Braga Dell’Orto

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têm a obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações e das injustiças.”

Todas as teorias da Justiça se preocupam em justificar formas de inserção dos cidadãos, independentemente de sua condição social, nos benefícios acumulados pela sociedade. O Estado foi construção vitoriosa, assinalada pelo sistema do wellfare state. Com intervenção mínima, defendida pelos adversários desse sistema, ou máxima, ele deve buscar a superação das desigualdades sociais que são condutos de perversão e iniqüidade. Como poder do Estado, o Judiciário está obrigado a fazê-lo.

Os juízes brasileiros não querem privilegiar, com tomada radical de posição prévia, qualquer pessoa, pois isto corrompe a Justiça e revolta a sociedade. O compromisso deve ser o de realizar melhor e mais eficiente Justiça, pois só com essa atitude e com o sentimento do que o saudoso vulto de Miguel Reale chamou de “eticidade radical” da função de julgar, eles já cumprem sua missão constitucional de pacificar a sociedade com uma justiça que não lembre a paz dos cemitérios. Assim agindo, proporcionarão a parcela que lhes cabe de equilíbrio a um ambiente social amargamente marcado pela violência, desigualdade, desemprego/subemprego, discriminação e violação aos direitos fundamentais da pessoa humana, que, certamente, atingem com maior crueldade aos despossuídos.

Não compete ao Judiciário, nem aos juízes, desfraldar ilusória bandeira de responsabilidade pelo trânsito social entre as classes e segmentos da sociedade. Messianismo produz mercado de ilusões, mas, certamente, nada resolve. De qualquer modo, ao tratar os direitos do trabalhador, do consumidor, dos ofendidos pela agressão predatória do meio-ambiente, da mulher vítima de assédio ou de violência física ou sexual, das minorias, dos oprimidos em geral, com a dignidade que, além de postulado constitucional a todos assegurado, é princípio de uma verdadeira – e não falaciosa – modernidade, exigente de globalização da solidariedade, os juízes cumprem seu dever social.

Podem não redistribuir renda ou papéis sociais – não é esta sua função – mas, ao buscar garantir o valor do justo, atendem, somente assim, à razão de sua presença como vetor de civilização na democracia contemporânea, marcada pelo espírito republicano e participativo.

auspícios do IUPERJ – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros, sob a condução dos sociólogos Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios e Marcelo Burgos, que deu origem à publicação pela Ed. Revan, em 1997, da obra Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Na apresentação do texto, destacam seus autores: “O deslocamento da tradição normativista consiste na melhor e na mais geral caracterização do novo sistema de orientação do magistrado brasileiro. Quanto a este aspecto, vale registrar que a perspectiva de um Judiciário neutro em relação aos processos de mudança social contou com a adesão de apenas 16,5% dos juízes de primeiro grau em atividade. Deste modo, reconhece-se um sistema de orientação que tem na instituição do Poder Judiciário um ator coletivo que quer se envolver no processo de mudança social; um outro, centrado no juiz como um agente solitário que aproxima o direito da justiça – onde, aliás, se encontra o ‘mainstream’ da corporação; e um, ainda, distante desses, compreendendo aqueles juízes que se mantêm fieis ao cânon da ‘civil law’ – com ênfase no tema da certeza jurídica. Finalmente, observa-se a presença embrionária e minoritária de uma corrente que acentua o uso alternativo do Direito e as formas extra-judiciais de composição do conflito.”

A isenção do magistrado confere segurança à cidadania. Instrumentalizá-la significa instituir eficientes mecanismos de controle e responsabilidade civil e criminal, além de proporcionar garantias de boas condições de trabalho, justa remuneração e adequado sistema de aposentação. Este último exige – sem nenhuma diferenciação relativa ao conjunto dos trabalhadores – a integralidade e paridade dos proventos em relação à remuneração percebida quando em atividade, mediante, como é óbvio, a contrapartida da consignação de percentual remuneratório durante período de tempo que permita suportar o valor percebido após a aposentadoria.

Com sua inegável autoridade a respeito, o Prof. Dalmo Dallari, titular da faculdade de direito da USP e membro da Comissão Internacional de Juristas, assim se manifesta: “Longe de ser um privilégio para os juízes, a independência da magistratura é necessária para o povo, que precisa de juízes imparciais para harmonização pacífica e justa dos conflitos de direitos. A rigor, pode-se afirmar que os juízes

“A SOCIEDADE DEVE EXIGIR DOS MAGISTRADOS O CUMPRIMENTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SENDO CONHECIDO DE TODOS, SEU

TEXTO NÃO PODE AFIRMAR-SE COMO INCERTEZA OU LOTERIA.”

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Giselle Souza

Jornal do Commercio

JUstiça dO trabalHO:UM CONTINENTE

JORNAL DO COMMERCIO – Quais os seus planos para o TST?

RIDER NOGUEIRA DE BRITO – No TST, as administrações têm como tradição manter os programas iniciados nas gestões anteriores. No caso específico, temos duas grandes novidades criadas pela Emenda Constitucional 45/2004: o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho. Ambos já estão implantados, mas precisamos desenvolver toda potencialidade dos dois. Tudo aquilo que representa o Conselho está, em boa parte, para ser feito, até porque não há tempo nem recursos humanos. Devemos tratar a Justiça do Trabalho não mais como um arquipélago. E este é o papel do Conselho. Ele deve transformar a Justiça do Trabalho em continente. Devemos uniformizar a conduta em toda a Justiça do Trabalho.

JC – O senhor propõe, então, que o CSJT tenha atuação parecida com o Conselho da Justiça Federal?

RIDER – Exatamente. Até porque o modelo de nosso Conselho é o mesmo do CJF. Este é o grande papel. É compreensível que até aqui, dada a autonomia administrativa dos tribunais regionais do Trabalho, seja cada um de seu modo, pois não havia um órgão coordenador. Agora esse órgão existe.

JC – De concreto, o que será feito neste ano?RIDER – Espero que possamos fazer um levantamento

da realidade do primeiro e segundo graus (de Justiça), para depois traçarmos um plano de uniformização dos órgãos. Acho que precisamos fazer a padronização de toda a Justiça do Trabalho. A mesma coisa em relação aos gabinetes dos juízes. Há tribunais, como o de São Paulo e Campinas, com grande fluxo de processos, e outros, como o de Rondônia, de menor movimento. Obviamente, então, a estrutura deles não pode ser a mesma. O fator determinante para isso será o número de processos.

JC – E quais são os planos em relação à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat)?

RIDER – Quanto à escola, nosso objetivo é que o concurso para o ingresso na Justiça do Trabalho seja de âmbito nacional, que os critérios para a seleção sejam os mesmos para todo o País. E, mais adiante, certamente não para a minha administração, que o ingresso para a magistratura do Trabalho não se dê para um cargo, mas para uma escola, a exemplo do que acontece no Instituto Rio Branco e nas escolas de oficiais para nossas forças armadas, para as quais ninguém faz concurso para se tornar oficial, mas para ingressar em uma escola onde será preparado.

O paraense Rider Nogueira de Brito assumiu a presidência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), onde enfrentará uma série de desafios. O primeiro e mais importante é o de promover uma ampla e profunda mudança na estrutura do Judiciário trabalhista, com a uniformização de procedimentos e a padronização dos 24 tribunais regionais, tendo em vista o número de processos em tramitação em cada um deles.

Para a empreitada, o ministro conta com o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), criado pela Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004.

Rider de Brito ingressou na magistratura trabalhista em 1968. Em 1985, foi promovido juiz de segunda instância e, em dezembro de 1995, nomeado ministro do TST, onde presidiu a Quinta Turma, foi corregedor-geral da Justiça do Trabalho e vice-presidente.

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JC – Por que o senhor propõe essa mudança?RIDER – O sistema atual admite, mediante concurso,

um bacharel em Direito com conhecimento jurídico. No entanto, ser juiz é mais do que ter conhecimento jurídico. Então, a preparação deve ser feita pela escola, a exemplo do que é feito em alguns países, como Portugal, França e, especialmente, a Espanha, que tem um modelo mais próximo do que imaginamos ser adequado para o Brasil.

JC – O que será feito em relação à informatização da Justiça do Trabalho?

RIDER – Tudo o que disse será realizado com um programa paralelo, o da informatização, que está em pleno desenvolvimento. Essa, sem dúvida, foi a ênfase maior da gestão do ministro Ronaldo Leal. A informatização é fundamental, até porque temos dificuldades para conseguir recursos humanos. Poderíamos compensar isso com a utilização das ferramentas da informática.

JC – Por que somente neste ano o TST realmente iniciou conversa com o CNJ sobre a informatização?

RIDER – A Justiça do Trabalho tem peculiaridades, do contrário não seria uma Justiça especializada. Então, somente

nós temos condições de ver isso (a informatização). O CNJ está tocando um programa nesse sentido e não temos dúvida, até porque há vontade política, neste sentido, de que, mais adiante, possamos fazer a conexão dos dois projetos.

JC – O PAC prevê a utilização do FGTS como investimento em infra-estrutura. Como o senhor analisa isso?

RIDER – Com bastante realismo e otimismo. Acho que parte do Fundo de Garantia dos trabalhadores pode ser utilizada pelo PAC. Há imensa quantidade de recursos financeiros que pode ser usada em benefício da nação e dos trabalhadores. O que tenho visto pela imprensa é que parte desses recursos será utilizada com uma garantia de rendimento mínimo e que não haverá prejuízo para os trabalhadores. Se parte do FGTS for utilizada pelo PAC para promover o desenvolvimento, gerar empregos e, além disto, proporcionar para os trabalhadores rendimentos maiores do que no fundo em si, acho que não há coisa melhor. A preocupação é se os projetos não derem certos. Aí vêm as salvaguardas, que devem estar na legislação que será criada. O governo deverá ser o fiador disso, e o trabalhador, em hipótese alguma, deverá sofrer prejuízos.

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JC – Então, o senhor não é contra o PAC?RIDER – Não, com essas salvaguardas.JC – Como o senhor vê a aprovação de leis como a da

Super-Receita, que limita a atuação dos fiscais do trabalho?RIDER – Isso é um assunto delicado. A fiscalização age

sem que seja preciso alguém entrar com uma ação ou fazer uma denúncia. Sem dúvida, grande parte do real cumprimento das normas se deve às fiscalizações, pois é o fiscal que examina se elas estão sendo cumpridas. Por isso, é preocupante o que foi aprovado, pois se inibe o Estado de, por meio de seus órgãos próprios, fazer cumprir as normas.

JC – Como o senhor avalia pleito de muitos magistrados no tocante à ampliação da Justiça Trabalhista para julgar crimes no âmbito do trabalho?

RIDER – Não conseguimos alcançar essa fase, mas acho razoável porque é o juiz do Trabalho quem estará mais habilitado para conhecer e mensurar o problema que levou àquele resultado.

JC – O senhor não teme que a ampliação da competência venha a atravancar a Justiça do Trabalho?

RIDER – Pode, mas o que a sociedade brasileira está por fazer é uma simplificação da legislação, tanto em caráter substantivo quanto da parte processual. É que, apesar de julgarmos uma quantidade imensa de processos, fica parecendo que não julgamos nada, porque sempre há mais a julgar.

JC – O senhor defende, então, a aprovação do instituto da repercussão geral ou da súmula impeditiva de recursos também para o TST e o STJ?

RIDER – Sem sombra de dúvida. Digo sempre que o que precisamos são regras claras para que todo mundo saiba que processos sobre hora extra (por exemplo) não devam passar do primeiro grau. Agora, se as regras do jogo permitem que a parte recorra ao Tribunal Regional do Trabalho, depois para uma turma do TST e, por último, para o Supremo, somos nós os culpados disso? Somos nós que fizemos a legislação que permite essa pretora enorme de recursos? Costumo dizer que nós, do Judiciário, somos tão vítimas quanto os trabalhadores e empresas que ficam sujeitas a essa via crucis.

JUC – Como o senhor avalia a legislação trabalhista? Ela é exemplo ou ainda deveria ser ampliada?

RIDER – Temos um elenco muito grande de direitos, que não se traduzem em efetiva e real melhora nas condições de trabalho. Não adianta, na minha visão, ter um mundo de gratificações, um rosário de adicionais, se, no final, o valor que ele recebe é inexpressivo, não lhe dá melhores condições.

JC – O senhor não acha necessária uma reforma sindical?

RIDER – É fundamental. Na minha visão, nada se fará no tocante à melhora e modernização da legislação sem a reforma na legislação sindical. O sindicato, como está, pode ser dirigido pelo melhor dos dirigentes sindicais, que não tem condições de fazer grandes coisas. O sindicato representa uma categoria profissional da mais simples estrutura de empresa até a mais alta multinacional.

“NÃO ADIANTA, NA MINHA VISÃO, TER UM MUNDO DE GRATIFICAÇõES, UM ROSÁRIO DE ADICIONAIS, SE, NO FINAL,

O VALOR QUE ELE RECEBE É INEXPRESSIVO, NÃO LHE DÁ MELHORES CONDIÇõES.”

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Luiz Felipe da Silva Haddad Desembargador TJ/RJ

a maiOridade criminal COMENTÁRIOS úTEIS

Nestes dias, quando nossa sofrida sociedade ainda não se recuperou do trauma causado pelo crime hediondo praticado por delinqüentes cruéis em uma criança indefesa e inocente, discute-

se muito sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei 8069/1990 – e, principalmente, sobre o limite mínimo de 18 anos de idade para a responsabilidade na esfera penal. Entretanto, em verdade, muita tinta tem sido derramada acerca desse assunto, já por várias décadas, e sem resultado prático.

O Brasil é o único país do mundo que dá a esse tipo de norma um status constitucional. E, pior ainda, para conceituados juristas, imune à alteração por emendas – “cláusula de pedra” – pela Carta Magna de outubro/1988, a qual, em que pesem suas qualidades renovadoras em prol da cidadania, foi eivada de exageros na proteção de direitos individuais. Talvez pelo clima emocional, que então medrava, de repúdio ao sistema ditatorial, em fases duras e brandas, que perdurou entre abril/1964 e março/1985.

Não faz sentido, em uma democracia equilibrada, que tal limitação etária seja alçada ao nível de garantia fundamental, nem que seja, como exemplo que beira ao ridículo, a proibição de ser identificado criminalmente quem já o tenha sido, civilmente, o que tem causado problemas sérios, quando um meliante pratica crime no uso de carteira de identidade, falsificada, de terceiro. Não se justifica que pessoas de determinada geração “engessem” as de tempos futuros, com ditames de pouco ou médio conteúdo substantivo. Impõe-se uma reforma da Lei Maior para que a natureza “de pedra” se resuma à forma republicano-federativa, à unidade nacional e ao regime democrático, no que lhe seja de essência. Nada mais.

Tirante esse aspecto e pensando-se na norma, pura e simplesmente, observa-se do acerto em baixar tal limite para 16 anos, e isso por experiência lógica, tão-somente. Não há como comparar o adolescente, ou jovem, de 2007, com o adolescente, ou jovem, de 1940, 1950, 1960 ou mesmo de 1970. Além de a informação, sobre tudo da vida, ser bem mais larga, havendo muito mais facilidade para atitudes

“ENQUANTO NOSSA BELEZA NORMATIVA CONTINUAR EM PARALELO à FEIúRA DE NOSSA REALIDADE, MUITAS

REFORMAS TERÃO CARÁTER COSMÉTICO. “

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e experiências diversas, e muito mais autonomia, de fato, sobre pai e mãe, do que antes, não se denota coerência em alguém poder votar, poder contrair casamento, mas ser inimputável se delinqüir. Não se propõe idade mais baixa, nos exageros de alguns outros países, mas a dita acima, que é perfeitamente adequada às circunstâncias da atualidade.

No entanto, de nada adianta alterar a lei sem que mudem os fatores sociais negativos, causadores da sinistra e crescente criminalidade, em nossas plagas. Enquanto nossa beleza normativa continuar em paralelo à feiúra de nossa realidade, muitas reformas terão caráter cosmético. Enquanto os flagelos da droga, da corrupção policial, da “cultura da esperteza”, da fisiologia política, da sonegação fiscal, da imensa desigualdade das rendas, etc, não forem enfrentados para valer, não cessará o pesadelo dos homens e mulheres de bem, sendo obrigados a aprisionarem-se em suas casas e locais de trabalho e lazer, enquanto ruas, avenidas, praças e estradas são entregues, de fato, à sanha dos facínoras.

Quanto ao ECA, que é uma lei muito bem feita, mas que tem certas normas que, em nossa aludida triste realidade, se restringem ao campo da teoria, algumas

prontas modificações serão de grande utilidade. Qualquer que seja o limite de idade – 16, 18 anos ou outro – se for cometido, por adolescente ou jovem (nunca, é claro, por criança), crime hediondo, a internação deve ultrapassar o prazo irrisório de 3 anos e persistir até o máximo de 15, por decisão do juiz competente, ouvido o Ministério Público, e com realização de preciso exame social e psicológico, passando o infrator ao sistema criminal comum, automaticamente, ao alcançar a maioridade.

No entanto, nesse campo executório, também tudo será em vão se não colaborarem os poderes públicos territoriais, em verbas e melhor estrutura, para que os locais de internação, como todos os presídios, evoluam do inferno de hoje para um mínimo de decência, no intuito da regeneração.

Em síntese, enquanto, entre nós, se mantiver a sensação da impunidade, vinda mais do alto para baixo, enquanto a lei não valer para todos, enquanto não forem aplicados os dinheiros públicos por justas prioridades, enquanto for débil a cidadania, outras crianças serão vitimadas em nossas cidades cindidas, restando cada vez mais distante a luz no fim do túnel.

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Luiz Antonio Sanches Diretor Jurídico da Associação Brasileira das Concessionárias de Energia Elétrica – ABCE

a inserçãO dOs cOnsUmidOres de baixa renda aO sistema elétricO

O espaço urbano, após o advento da Revolução Industrial, deixou de se restringir a um conjunto limitado de edificações para significar, de maneira mais ampla, a predominância da cidade

sobre o campo. Periferias, subúrbios, distritos industriais, estradas e vias recobrem e absorvem zonas agrícolas em um movimento incessante de urbanização. No limite, este movimento tende a ocupar todo o espaço, transformando em urbana a sociedade como um todo. A universalização dos serviços públicos essenciais tem sido um dos principais instrumentos para a consecução desse fato.

O grande paradigma que se coloca nos países em desenvolvimento é exatamente a dinâmica econômica e a estrutura jurídica que podem proporcionar uma inserção crescente e eficaz de pessoas na utilização da infra-estrutura. Ou seja, quanto, como e em qual velocidade o Brasil pode arcar para integrar a população localizada à margem desse processo.

O modelo institucional do setor elétrico proposto pelo Ministério de Minas e Energia (MME) no início da atual década tem objetivado, dentre suas linhas mestras, promover a inserção social no setor elétrico, em particular por intermédio dos programas de universalização do sistema elétrico e com o aprimoramento dos critérios de suprimento dos clientes

de baixa renda. Por sua condição privilegiada em relação aos consumidores finais, as concessões de serviço público de distribuição de energia elétrica são o grande instrumento jurídico que o Estado detém para fazer chegar aos cidadãos os benefícios ditados pelas políticas públicas, por serem, os distribuidores, a ponta do sistema à qual os consumidores, em sua grande maioria, estão conectados. Em regra geral, é por meio das distribuidoras que o setor elétrico se capitaliza, seja para remunerar todos os serviços realizados desde a geração, seja para promover novos investimentos.

No que concerne às condições de fornecimento de energia elétrica pelos distribuidores, os conflitos relacionados à suspensão do fornecimento foram superados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Atualmente, admite-se como possível a suspensão no fornecimento dos serviços públicos essenciais, remunerados por tarifa, quando houver inadimplência, como previsto no artigo 6º, § 3º, inciso II, da Lei 8.987, de 1995, desde que seja precedido por aviso, não acarretando tal procedimento ofensa ao Código de Defesa do Consumidor, nem descontinuidade na prestação do serviço. Antes da decisão, houve um amplo debate na sociedade sobre a pertinência ou não da suspensão, sendo aceita a tese de que a suspensão do fornecimento de energia elétrica permite

“O GRANDE PARADIGMA QUE SE COLOCA NOS PAíSES EM DESENVOLVIMENTO É EXATAMENTE A DINâMICA

ECONôMICA E A ESTRUTURA JURíDICA.”

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que os distribuidores disponham de um forte mecanismo de recuperação financeira e os consumidores adimplentes detenham, na gestão das perdas comerciais dos distribuidores, o argumento necessário para impedir o repasse integral da inadimplência para a tarifa.

Em regiões com alta densidade demográfica, elevado número de unidades consumidoras e de fiscalização com maior grau de complexidade, há a possibilidade de aprimorar e implantar mecanismos de medição que possibilitem a utilização de energia elétrica faturada de forma pré-paga, ou com limitador de demanda por usuário. Tal mecanismo de faturamento não é uma novidade na sociedade brasileira.

Os aparelhos telefônicos móveis, popularmente deno-minados “celulares”, começaram a ser disponibilizados no Brasil, em 1998, com essas características e passaram a representar rapidamente a maioria dos celulares já em 2004, com mais de 80% dos aparelhos sendo comercializados nessa condição. A principal vantagem do celular pré-pago é a ausência de comprometimento dos usuários com uma conta mínima mensal. De acordo com a disponibilidade financeira, o usuário adquire créditos com foco no controle de gastos. Concluiu-se, com isso, que o baixo crescimento do número de telefones fixos no país está atrelado a dificuldades financeiras

da população, que não se dispõe a alocar recursos próprios para arcar com uma conta mínima mensal estipulada pelas companhias de telefonia fixa.

O mesmo paradigma enfrentado pelas companhias de telefonia fixa atravessa o horizonte das concessionárias de distribuição de energia elétrica. Por serem monopólios naturais, a estrutura de custos dessas empresas enfrenta problemas em manter a disponibilidade da prestação do serviço sem um índice mínimo de usuários que justifique os investimentos no sistema. Existe tecnologia testada e segura no mercado para ser utilizada no setor elétrico para possibilitar o emprego do sistema pré-pago.

Para implementar esse sistema com o objetivo de aprimorar os mecanismos de controle de combate à fraude e ao furto, que provocam perdas de energia que podem chegar a 25% na rede de distribuição, seu emprego em larga escala depende de eliminação de lacunas na regulamentação por parte da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), tais como a forma de venda dos créditos de energia, as formas de suspensão no suprimento de energia elétrica e sobre quem deve recair a opção de adesão ao serviço, se esta será compulsória mediante determinados critérios, ou partirá de uma livre decisão do usuário.

A universalização do fornecimento de energia elétrica, por sua vez, pode ser conceituada como o atendimento gradual e contínuo a todos os pedidos de fornecimento de energia elétrica realizados pelos responsáveis pela unidade consumidora, com enfoque em áreas de baixa densidade populacional, independentemente da capacidade financeira dos potenciais clientes, por meio de subvenção econômica. Cabe à Aneel estabelecer as regras para sua consecução, com base na lei e vistas ao interesse público subjetivo, de forma a produzir igualdade de oportunidades por intermédio do tratamento isonômico dado aos consumidores.

A atual forma de subsidiar a universalização do forneci-mento de energia elétrica foi introduzida pela Lei 10.438/02, com a redação dada pela Lei 10.848/04, que dispõe, no artigo 13, sobre a criação da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), visando à promoção da universalização no sistema interligado em todo o território nacional, bem como ao desenvolvimento energético dos estados e a competitividade da energia produzida a partir de fontes eólica, pequenas centrais hidrelétricas, biomassa, gás natural e carvão mineral nacional. De acordo com o § 1º do mesmo artigo, os recursos da CDE serão provenientes dos pagamentos anuais realizados a título de uso de bem público, das multas aplicadas pela Aneel aos agentes setoriais e, desde 2003, das quotas anuais pagas por todos os agentes que comercializem energia com o consumidor final.

Assim, como em diversos outros casos em que o Poder Concedente impõe a cobrança de encargos para viabilizar determinados benefícios para inclusão social de parcela significativa da população, em que pese ter como efeito reverso o agravamento direto ou indireto das condições tarifárias, ou das faturas, das classes econômicas mais privilegiadas, tal conceito está alicerçado na proteção à dignidade da

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pessoa humana e na erradicação da pobreza como objetivo fundamental.

A tarifa social a clientes de baixa renda corresponde à opção política de promover variação na tarifa em função da ausência de recursos de determinado grupo de usuários, sem que estes percam o direito de acessar os serviços públicos. A fixação de tarifas sociais significa ausência de pagamento correspondente ao montante economicamente necessário para assegurar a rentabilidade da exploração ou a manutenção da equação econômica e financeira por parte dos agentes setoriais.

Com o advento da Lei 8.631/93, houve a necessidade de se uniformizar os critérios de classificação de baixa renda, fato ocorrido apenas em 2002, no artigo 1º da Lei 10.438. Tal norma define baixa renda como aquele que, atendido por circuito monofásico, tenha consumo mensal inferior a 80 kwh/mês ou cujo consumo situe-se entre 80 e 220 kwh/mês. Para a primeira hipótese, foi publicada a Resolução Aneel 246/02 que, orientada pela estrutura normativa, previu que as unidades consumidoras atendidas por circuito monofásico e com média de consumo dos últimos doze meses inferior a 80 kwh passariam, automaticamente, a ser consideradas de baixa renda.

Ante a segunda hipótese, foi publicado o Decreto 4.336 em agosto de 2002, que, em seu artigo art. 4º, estabeleceu que, a fim de regulamentar os critérios para clientes de baixa renda, a Aneel observará os mesmos critérios socioeconômicos estabelecidos no art. 3º do Decreto 4.102/02. No mesmo mês, houve nova regulamentação da agência, consubstanciada na Resolução 485/02, que definiu que o responsável pela unidade consumidora deve estar inscrito no Cadastramento Único dos Programas Sociais do Governo Federal, ou estar inscrito ou ser potencial beneficiário dos programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio Gás.

Tal postura do Governo Federal acabou por majorar consideravelmente o número de clientes que passaram a ser considerados como baixa renda. Com isso, houve uma seqüência de dificuldades para que o Poder Concedente atingisse seu objetivo de admitir um volume maior de subsídios para cidadãos que, anteriormente, eram considerados como capazes de arcar com o custo real da prestação do serviço.

Atualmente, cerca de 17,8 milhões de unidades consumidoras estão enquadradas na Subclasse Residencial Baixa Renda, segundo relatório da Aneel que recomenda a aprovação da Resolução Normativa 211/06. Destas, em 2,4 milhões de unidades consumidoras (13,2%), o responsável possui inscrição no Cadastro Único. Do total de unidades consumidoras enquadradas na Subclasse Residencial Baixa Renda, 3,8 milhões de unidades consumidoras (21,7%) se enquadram nos critérios da Resolução 485/02, com

consumos entre 80 e 220 kwh. Para efeito de comparação, o Bolsa Família atingiu sua meta, com 11 milhões de famílias.

Em que pese não haver impactos nas revisões tarifárias das concessionárias de distribuição, pois os custos destas políticas públicas são custeados por subvenção econômica, a pesada estrutura de encargos atualmente existente no setor elétrico brasileiro recai, em última análise, sobre os ombros dos clientes adimplentes, que concomitantemente arcam com um estado de bem-estar social das populações consideradas mais carentes junto a uma estrutura tributária que possibilita aos estados-membros cobrarem até 30% de ICMS da energia consumida.

Assim, em um momento em que a carga tributária brasileira, junto aos encargos, atingiu 43,7% do valor da fatura de energia elétrica em 2005, segundo dados da PriceWaterhouseCoopers, muitas vezes, pela não observância do princípio da seletividade em face da essencialidade do bem denominado energia elétrica, há um grande questionamento se a capacidade contributiva dos clientes adimplentes não estaria comprometida, de forma a aumentar a inadimplência dos

clientes sob o argumento de incluir clientes considerados de baixa renda. Nesse sentido, não basta haver uma política de inserção social por meio do setor elétrico, seguindo a lógica linear de aumentar os custos para os clientes com maior capacidade contributiva, de forma a subsidiar aqueles menos afortunados. É ne-cessário mais. É imprescindível responder como o setor elétrico pode contribuir para uma efetiva inserção social da população efetivamente marginalizada.

Como exemplo de contribuição do setor para uma maior homo-

geneidade social, podem-se estruturar diferentes opções tarifárias para aumentar o gradiente de formas de subvenção econômica, utilizando, assim, mecanismos isonômicos em prol de uma maior justiça social. Dentro desse aumento de opções tarifárias, as medições pré-pagas teriam um papel fundamental, principalmente por terem mostrado enorme contribuição no setor de telecomunicações, tanto em relação à universalização do serviço quanto no gerenciamento da inadimplência e no aumento do direito de escolha dos consumidores. Outra forma de melhoria dos custos setoriais seria ter um maior envolvimento dos estados na discussão da modicidade das faturas de energia elétrica, pois praticamente metade do valor a ser pago pelos clientes decorre de impostos e encargos.

Uma discussão ampla entre as entidades governamentais no sentido de diminuírem impostos, concomitante ao aumento do gradiente de classes tarifárias para refletir necessidades diversas de obtenção de encargos sociais, certamente, reduziria custos no setor e possibilitaria uma maior clareza no emprego dos encargos em objetivos sociais relevantes.

“É IMPRESCINDíVEL RESPONDER COMO O SETOR ELÉTRICO PODE CONTRIBUIR PARA UMA

EFETIVA INSERÇÃO SOCIAL DA POPULAÇÃO

EFETIVAMENTE MARGINALIZADA.”

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estatUtO da cidade e O patrimôniO HistóricO, artísticO e cUltUral DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DAS CIDADES E A TUTELA JURíDICARobert Lee Segal Advogado

Na canção “A Cidade”, interpretada por Chico Science & Nação Zumbi, um de seus principais refrãos assinala que “a cidade não pára, a cidade só cresce, o de cima sobe e o de baixo desce”.1

Tais palavras servem para ilustrar quão dinâmico é o desenvolvimento das cidades. Esse dinamismo transforma a paisagem urbana, muitas vezes fazendo com que alguns bens desapareçam em detrimento daquilo que se tem entendido como progresso.

Neste cenário de transformações permanentes, grande parte do denominado patrimônio cultural se perde no decorrer do tempo.

A partir do conflito de interesses, desenvolvimento e patrimônio cultural parecem conceitos antagônicos, o que fundamenta a intervenção do Poder Público, seja por intermédio de leis, seja pela atuação do poder Judiciário, ao analisar e julgar os casos conflitantes, na promoção do que, pelo menos em tese, representa o interesse da coletividade.

Se, de um lado, o princípio da dignidade da pessoa humana, tomada tanto sob o prisma individual como coletivo, se consubstancia pelo desenvolvimento, é inegável que este mesmo princípio serve de fundamento para a proteção do patrimônio histórico e cultural.

Certamente, da mesma forma como que o princípio da dignidade da pessoa humana, primado pela Constituição Federal de 1988, logo em seu artigo 1º, inciso III, se coaduna com o desenvolvimento, estatuído pelo artigo 2º, inciso II, e pelo artigo 170, este mesmo princípio se agrega à proteção ao chamado meio ambiente cultural.

E, considerando a existência de bens históricos, artísticos e culturais em áreas urbanas e ditas urbanizáveis, imprescin-dível a análise de sua tutela pela lei 10.257/2001, também denominada de Estatuto da Cidade.

Não se trata de conflito de fácil resolução, pois uma das características mais marcantes dos chamados direitos de terceira geração – ou dimensão, como alguns doutrinadores

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preferem consignar, como, no caso, os direitos ambiental e urbanístico – se refere ao debate acerca da prevalência de direitos individuais e sociais.

Após cerca de onze anos tramitando no Congresso Nacional e no Senado Federal, a lei 10.257, de 10 de julho de 2001, entrou em vigor, se autodenominando Estatuto da Cidade, conforme o previsto no parágrafo único do artigo 1º da própria lei federal.

A referida lei entrou em vigor no diapasão do que estabelecem os artigos 182 e 183 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao regulamentar os citados dispositivos.

Da mesma forma, a lei 10.257/2001 contribui para o processo de transformação dos paradigmas adotados pela Administração Pública, modernizando-a em perfeita consonância com o Estado Democrático de Direito. Nesse ponto, cabe ressaltar que a referida lei apresenta sua diretrizes já em seu artigo 2º, valendo destacar as seguintes:

• garantia do direito dos cidadãos às cidades sustentáveis, considerando o direito à moradia, ao saneamento ambiental, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho, ao lazer;

• gestão democrática das cidades, por meio da participação popular na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

• cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização;

• planejamento no desenvolvimento das cidades; • oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte

e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população;

• ordenação e controle do solo, com vistas a evitar a utilização inadequada do uso do solo, não utilização ou subutilização do solo urbano, retenção especulativa de imóvel urbano e impactos urbanísticos e ambientais;

• integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais;

• adoção de padrões de produção, e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites

de sustentabilidade ambiental, social e econômica dos municípios;

• distribuição justa dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;

• recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado valorização de imóveis urbanos;

• proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;

• audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído;

• regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda;

• simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias;

• isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendendo ao interesse social.

Conforme se pode verificar, pela leitura das diretrizes adotadas pela lei 10.257/2001, essas devem ser obrigatoriamente adotadas pelos municípios em seus planos diretores.

Além das diretrizes, a lei federal adotou, em seu artigo 4º, seis importantes instrumentos que viabilizam a atuação do Poder Público no desenvolvimento sustentável das cidades.

Os primeiros instrumentos referem-se aos planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (inciso I), planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrre-giões (inciso II) e planejamento municipal (inciso III).

No mesmo dispositivo, a lei estabelece instrumentos tributários e financeiros (inciso IV), bem como instrumentos jurídicos e políticos (inciso V).

Por fim, a lei estabelece como último instrumento de política urbana o estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e o estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).

Dentre os instrumentos acima elencados, interessa para

“A EXPLORAÇÃO DAS MAIS DIVERSAS ATIVIDADES LIGADAS AO TURISMO CERTAMENTE REPRESENTA UM MEIO EFICAZ DE

CONTRIBUIÇÃO DA DIMINUIÇÃO DA POBREZA E DA MARGINALIDADE DA POPULAÇÃO DE BAIXA RENDA.”

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este trabalho o tombamento de imóveis ou mobiliários urbanos, cabendo ressaltar que o mesmo será objeto de análise mais adiante.

Contudo, não se poderia deixar de mencionar a previsão do plano diretor para as cidades com mais de vinte mil habitantes, como instrumento de desenvolvimento e de expansão urbana, conforme previsto na Carta de 1988 e recepcionado pela lei 10.257/2001.

Antes de se estudar a tutela jurídica do patrimônio histórico, artístico e cultural, importante faz-se uma análise sobre seu papel no desenvolvimento das cidades.

Conforme já aduzido nas condições iniciais, a proteção e promoção do patrimônio histórico, artístico e cultural se fundam na efetivação da dignidade da pessoa humana, tanto sob a ótica dos direitos da personalidade quanto sob o aspecto econômico, mediante atividades turísticas, cujos frutos revertam para a própria comunidade local.

A exploração das mais diversas atividades ligadas ao turismo certamente representa um meio eficaz de contribuição da diminuição da pobreza e da marginalidade da população de baixa renda, a qual, uma vez qualificada para exercer as funções de que o setor necessita (guias de turismo, garçons, vendedores, etc.), terá a oportunidade de viver a cidadania de maneira concreta.

Ademais, a par do que leciona o professor Hely Lopes Meirelles, no que concerne à “defesa da estética da cidade e suas adjacências, como elemento de recreação espiritual e fator de educação artística da população”2, a proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural, enquanto formas qualificantes do meio ambiente, representa a manifestação da afirmação da dignidade da pessoa humana a partir da construção do sentimento de pertencimento. Ao indagar-se “quem sou eu?”, “qual a minha história?” e “a qual povo ou grupo social pertenço?”, na verdade, se está questionando a relevância da coleção de bens tidos como históricos e culturais e sua contribuição para a construção do que se pode chamar de identidade cultural.

É neste aspecto que Ernest Cassirer anunciou que “a história é a essência do homem”, na medida em que “o homem é um animal histórico, que se constrói na história que, por sua vez, não existe sem memória”3. Trata-se, pois, de um diagnóstico que define o ser humano em relação às outras espécies de animais. Assim, a proteção do patrimônio histórico e cultu- ral também representa o reconhecimento do direito à dignida-de da pessoa humana do ponto de vista individual e coletivo.

A partir da entrada em vigor do decreto-lei 25/1937 e da lei 3.924, de 26 de julho de 1961, outras leis e decretos foram publicadas com o objetivo de proteger o meio ambiente cultural. Dentre estas últimas, vale mencionar a lei 9.790, de 23 de março de 1999, que dispõe sobre a cultura através de organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs); o decreto 551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro e cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial; e a lei 9.065, de 12 de fevereiro de 1998, que trata dos crimes ambientais.

Em nível constitucional, o patrimônio histórico, artístico e cultural encontra-se tutelado, de maneira imediata, pelos artigos 23, III e IV; 24, VII e VIII; 215 e 216; 225 (de acordo com a interpretação sistemática do ordenamento constitucional).

O artigo 216 do atual Pacto Social prevê como formas de proteção dos bens culturais o inventário, o registro, a vigilância, o tombamento e a desapropriação. Entretanto, cabe grifar que o referido dispositivo constitucional não é auto-aplicável, necessitando, portanto, de lei que o regulamente.

Dentre os instrumentos de proteção de bens culturais, o que mais tem sido aplicado é o tombamento, o que, na prática, segundo Maria Coeli Simões Pires, significa “o ato final de um procedimento administrativo, resultante do poder discricionário da Administração, por via do qual o Poder Público institui uma servidão administrativa, traduzida na incidência de regime especial de proteção sobre determinado bem, em razão de suas características especiais, integrando-se em sua gestão com a finalidade de atender ao interesse coletivo de preservação cultural.”4

Considerando os ensinamentos da ilustre doutrinadora, dois pontos importantes hão de ser destacados: o primeiro concernente à natureza do ato do Poder Público de

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nOtas: 1 canção do disco Da Lama ao Caos. 2 MEIRELLES, Hely Lopes. O Direito de Construir. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1965, 119. 3 CASSIRER, Ernest. Antropologia filosófica: ensaio sobre o homem. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.88.4 SIMÕES, Maria Colei. Da proteção ao Patrimônio cultural. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p.2785 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p.1036 SÉGUIN, Elida. Estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp.116-117

tombamento e o segundo referente à própria natureza jurídica deste ato.

Com relação ao ato do Poder Público, à luz do que reconhece a Constituição Federal de 1988 e das leis vigentes, inegável que o ato discricionário, nos dizeres de Hely Lopes Meirelles, é sempre relativo e parcial5. Por mais liberdade que o agente público possa gozar, seus atos devem atender aos princípios da competência, forma e finalidade.

Em segundo lugar, como assinala a professora Elida Séguin, a natureza jurídica do tombamento não é matéria pacífica entre os doutrinadores. Há quem atribua ao tombamento o caráter de limitação e ingerência administrativa. Outros preferem conceituar o tombamento como autêntica servidão administrativa ou como intervenção do Estado na propriedade privada, ao passo que ainda há quem se refira ao instituto como regime jurídico de tutela pública.

Além do instrumento do tombamento, o patrimônio cultural (aqui entendido o material e imaterial, assim como o histórico, o artístico e cultural, propriamente dito) pode ser protegido mediante a intervenção do Ministério Público ou de instituição privada (cujo um de seus objetivos seja a proteção desse bem) frente a ato administrativo que viole dispositivo legal ou algum dos princípios pertinentes às atividades do Poder Público.

A questão ganha força na medida em que são justamente sobre os bens não tombados – mas tidos como culturalmente relevantes – que se verificam os impactos negativos, diretos ou indiretos, provenientes de atos do Poder Público ou de empreendimento ou atividade de particular.

Nesse aspecto, a ação civil pública, a ação popular e o mandado de segurança constituem em instrumentos processuais de proteção dos bens históricos, artísticos, culturais, paisagísticos, arqueológicos e pré-históricos.

A proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural representa a garantia da efetividade da dignidade da pessoa humana, uma vez que é a partir disso que membros de uma determinada comunidade constroem seus laços, em decorrência do sentimento de pertencimento e de história comum.

Ademais, a proteção e promoção dos bens históricos, artísticos e culturais, aqui tomados os materiais e imateriais, significa o reconhecimento ao direito à cidadania, representada em seu elemento socioeconômico. As oportunidades de trabalho geradas pela proteção e promoção de tais bens em muito podem contribuir para a redução da pobreza e da marginalidade das populações direta ou indiretamente ligadas àqueles.

Nesse contexto, a atuação do Poder Público e a participação da iniciativa privada tornam-se imprescindíveis. Daí, a previsão da solidariedade no artigo 225, caput, da Constituição de 1988, e da realização de audiências públicas, imposta tanto pelo texto da Carta Maior quanto pela lei 10.257/2001.

Da mesma forma, mecanismos processuais à disposição do Ministério Público e de organizações privadas (associações, ONGs, etc.) também representam a garantia de proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural, bem como instrumentos eficazes em face dos abusos cometidos pela Administração Pública e/ou particular.

Ao contrário do que se possa entender, a proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural não representa um entrave ao progresso, mas apenas serve para estabelecer um novo paradigma de desenvolvimento, como fulcro em sua própria sustentablidade.

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