revista jurÍdica o saber - faeca.com.br · este trabalho ocupa-se da educação como processo de...

104
REVISTA JURÍDICA O SABER COMPLETAMENTE ISSN 2179-7714 - Volume 1 - Revista nº 6 - Outubro/2016 FAECA DOM BOSCO DE MONTE APRAZÍVEL

Upload: hamien

Post on 14-Feb-2019

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

REVISTA JURÍDICA

O SABERCOMPLETAMENTE

ISSN 2179-7714 - Volume 1 - Revista nº 6 - Outubro/2016

FAECA DOM BOSCO DE MONTE APRAZÍVEL

Page 2: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE03

REVISTA JURÍDICA - O SABER COMPLETAMENTE

Publicação anual do Curso de Direito da Faculdade Dom Bosco de Monte Aprazível e convidados.

Presidente da Mantenedora: Iracema Maria Ciconelli

Diretor: Vanderlei Pereira

Diretor Pedagógico: Profº. Dr. José Amâncio Gomes

Coordenador do Curso de Direito: Profº. Fernando Vidotti Favaron

Coordenador da Revista Jurídica: Profº. Msc. Sérgio Castrequini Fante

Assistente da Coordenação da Revista Jurídica: Profº. Esp. João Terra Junior

Conselho Editorial:

Presidente do Conselho Editorial: Profº. Dr. Rubens Alexandre da Silva

Profº. Msc. Sérgio Castrequini Fante

Profº. Esp. João Terra Junior

Profº. Dr. José Amâncio Gomes

Profº. Dr. Rubens Alexandre da Silva

Revisão Gramatical:

Os autores se responsabilizam pelos erros gramaticais e de concordância

ATENÇÃO: Todos os artigos publicados nesta revista foram cedidos por seus autores. A Revista

Jurídica FAECA Dom Bosco de Monte Aprázivel não se responsabiliza pelos conceitos emitidos pelos

artigos assinados, sendo de inteira responsabilidade de seus autores.

Page 3: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

PREFÁCIO REPUBLICADO

“Per aspera ad astra”

Ao fazer uso do provérbio, para iniciar este prefácio, com o qual apresentamos a terceira publicação da

Revista Jurídica “COMPLETAMENTE”, o faço para prestar minhas homenagens ao nosso eterno

Presidente da Associação de Ensino Dom Bosco de Monte Aprazível, o saudoso Dr. Saraiva, o qual

prefaciou a primeira edição da nossa Revista Jurídica. Portanto minha tarefa é árdua e inglória, pois

suceder o Dr. Saraiva em qualquer atividade intelectual é sempre uma temeridade, dado sua insuplantável

capacidade de se expressar.

O contínuo trabalho de estudos e pesquisas, em qualquer área do conhecimento humano, mormente,

como é o nosso caso, na área das ciências jurídicas, nos leva sempre à necessidade de divulgar nossa

produção, não apenas por vaidade, mas sim pelo fato e nos colocarmos sempre em situação de reflexão e

debate com a sociedade, assim é através de nossa Revista Jurídica é que abrimos espaço para esse mister.

Assim é que, a Revista Jurídica COMPLETAMENTE, em sua terceira publicação reúne uma seleção de

importantes artigos os quais são precedidos de um resumo com a finalidade de ingressar o leitor no

contexto do artigo e da revista como um todo, razão pela qual não vemos, nesse prefácio, a necessidade de

apresentar qual resumo dos temas selecionados.

Oportuno se faz, no entanto, agradecer a todos os autores dos temas tratados, sejam ele professores da

Faculdade, alunos, professores de outros institutos, os quais gentilmente se colocaram a disposição dos

responsáveis diretos pela edição da revista.

Cabe, ainda agradecer a todos os pesquisadores que enviaram seus trabalhos, mas por motivos de

espaço e oportunidade não tiveram seus artigos publicados, os quais, com certeza estarão presentes nas

próximas edições.

“No mundo sempre existem os sonhadores de costume, que nunca têm a força de vontade para a

concretização de seus sonhos, pois esperam de todos tudo aquilo que desejam conquistar. Há também os

apáticos, os indiferentes e os que já se consideram vencidos e não têm sequer a capacidade de sonhar, pois

permanecem sempre sentados, às margens de suas estradas, vendo a vida passar. Todavia, há os que

sonham e apresentam a capacidade e a imediata ação para transformar seus sonhos em realidade” (Saraiva)

Reproduzi o texto acima, de autoria do Dr Saraiva, pois, além de ser uma forma de prestar a devida

homenagem ao ilustre advogado e escritor, ilustra muito bem a luta daqueles que não tem medido esforços

para manter a realidade do sonho possível de termos atrelada ao nosso curso de direito e a FAECA Dom

Bosco de Monte Aprazível uma revista jurídica de qualidade e consolidada ao apresentar para o público

leitor a sua terceira edição.

Prof. Dr. José Amancio Gomes

Coordenador do curso de Direito.

04Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE

Page 4: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE05

SUMÁRIO

EDUCAÇÃO COMO PROCESSO DE ELABORAÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL.........................................................................................................................07Plínio Gentil

O DESVIRTUAMENTO DO CONTRATO DE ESTÁGIO EXTRACURRICULAR À LUZ DA LEI 11.788/2008.......................................................................... 14Autor(a): Sandy Mikiele Castro de AssisCoautor(a): Heloísa Valença Cunha Hommerding

A IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA..................................................................... 24Lívia Zanholo SantosAna Cláudia dos Santos Rocha

DIREITO À EDUCAÇÃO BÁSICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 59................................................................................. 34Valdir Bento SoutoWashington Cesar Shoiti NozuSílvia Leiko Nomizo

APLICAÇÃO DO SIMPLES NACIONAL A MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE: POSSÍVEL SOLUÇÃO PARA SOBREVIVÊNCIA DURANTE O CENÁRIO DE CRISE.................................... 45Fábio Rodrigues

A OUTRA FACE DA VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA....................................................................................................... 52Bruno Giovannini de Paulo

LIMITES AO EXERCÍCIO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO DESEMPENHO DAS FUNÇÕES DO PODER LEGISLATIVO SOB A ÉGIDE DO ESTADO LAICO BRASILEIRO........................................................................... 65João Santa Terra Júnior

ENSAIO SOBRE ELABORAÇÃO DE LAUDO PERICIAL NAS AÇÕES INDENIZATÓRIAS DECORRENTES DE DOENÇA OCUPACIONAL. ORIENTAÇÕES AO PERITO................................................................ 83Juliana Martins Barbosa Marco Antônio Miranda Mendes

O PAGAMENTO DE “SALÁRIO POR FORA” E SUAS CONSEQUÊNCIAS PERANTE OS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS......................................... 89Marcel de Avila Soares Marques

DANO MORAL COLETIVO: DIVERGÊNCIAS E EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL............................................................................................................................. 97Welton Rubens Volpe Vellasco

Page 5: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE06

Page 6: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE07

EDUCAÇÃO COMO PROCESSO DE ELABORAÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL

1 Plínio Gentil

Introdução

Parte-se do pressuposto de que a sociedade, de alguma forma, elabora a visão que tem de si mesma.

Tal elaboração não é a mesma coisa que a elaboração de uma soma de identidades individuais, mas a de

algo com uma essência distinta. Assim, trabalha-se com a hipótese de que a sociedade possui uma essência

diferente do conjunto justaposto das essências individuais. Ao elaborar uma visão de si, a sociedade ao

mesmo tempo elabora um papel para si mesma. Esse papel, que está condicionado ao contexto de base

econômica então dado, significa o padrão daquilo que será considerado adequado ou inadequado; em

outras palavras, certo ou errado, ético ou anti-ético. Esse é um processo necessariamente educativo. Ao

educar-se, a sociedade elabora a si mesma e aí pode estar o primeiro e mais primitivo trabalho da educação

quando tomada do ponto de vista de uma sociedade que é sujeito deste processo.

Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade social, assim como

dos conteúdos de tal processo educativo e suas principais características e efeitos, dentre os quais se

destaca o aparelhamento de controle social. Reutiliza, por vezes, elementos de trabalhos anteriores do

autor, em que parcialmente se inspira. Cuida-se de pesquisa bibliográfica, apoiada em referencial teórico

materialista, que busca na inserção dos fenômenos na ordem econômica a primeira origem das relações

que a partir daí se estabelecem.

1. O significado da educação

O termo educação origina-se do correspondente latino educationis; seu sentido é o de criar,

alimentar, ou de criação e culturas; somente o sentido figurado é que vai significar instrução. Aquele que

cria, alimenta, é pai, é o educator = educador (FARIA, 1967). O vocábulo contém a partícula duc, cujo

significado está associado ao ato de conduzir. Vem daí, por exemplo, o termo italiano, honorífico, duce

(aquele que conduz, lidera); da mesma maneira a expressão em latim contida na divisa da cidade de São

Paulo: non ducor, duco (não sou conduzido, conduzo). Assim é que quem educa, conduz.

Observe-se que educador é o que cria e alimenta e essencialmente o que conduz, no sentido

original do vocábulo. Isto quer dizer uma coisa que vai além do ensinar, já que necessariamente antecede

qualquer ensino, pois constitui ação geradora e mantenedora de vida, física e socialmente considerada

como tal, considerando que o homem vive entre outros iguais. Seu sentido amplo é, então, o de possibilitar

um aprendizado cuja natureza é social. Nereide Saviani (2003, p. 4) anota que:

[...] a educação visa a instrumentalizar o povo para fins de participação social, ou seja, tem dupla função: técnica (enquanto dotação de instrumentos, que envolve o como e com que educar – os meios) e política (enquanto dotação voltada para a participação social, envolvendo o porquê e para que educar – os fins).

1 Doutor em Fundamentos da Educação e em Direito. Professor universitário. Procurador de Justiça no Estado de S. Paulo. Contato: [email protected] e FB: pliniogentil

Page 7: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE08

A educação é um constante vir a ser. Não é uma simples mercadoria, pronta e acabada, tendo, sim, a

natureza de um verdadeiro processo, querendo isto dizer algo que caminha. É no primeiro contato do ser

humano com o mundo exterior que ele já experimenta etapas desse processo à medida que seus sentidos

vão captando o que há fora. A mediação exercida por outros seres humanos, feita entre o mundo exterior e o

educando, dá origem ao movimento desse processo sem fim. Situando a educação num contexto mais

amplo, Maria da Graça Mizukami (1986, p. 1) avisa que

[...] há várias formas de se conceber o fenômeno educativo. Por sua própria natureza, não é uma realidade acabada que se dá a conhecer de forma única e precisa em seus múltiplos aspectos. É um fenômeno humano, histórico e multidimensional. Nele estão presentes tanto a dimensão humana quanto a técnica, a cognitiva, a emocional, a sócio-política e cultural. Não se trata de mera justaposição das referidas dimensões, mas, sim, da aceitação de suas múltiplas implicações e relações.

De uma tal multiplicidade de aspectos e de relações, que costuram a trama na qual se encontra o

processo educativo, falam também Santos e Simão (SANTOS, 1986, p. 7):

[o processo educacional] é um complexo que engloba várias dimensões (humanas, sociais, econômicas etc.), as quais, embora se desenvolvam de diversas maneiras, se inter-relacionam sempre, com vistas ao alcance do mesmo fim: o educando.

Até mesmo o direito internacional se ocupa do problema da educação enquanto interesse de todos e

assim enuncia o artigo 26, item 2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela

assembléia geral da ONU, em 1948:

A educação deve ser orientada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e para o fortalecimento do respeito dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Ela deve promover a compreensão, a tolerância, a amizade entre todas as Nações, os grupos raciais e religiosos, e deve favorecer a obra das Nações Unidas para a manutenção da paz (www.direitoshumanos.usp.br, 2015).

2. Os conteúdos da educação

Ainda sem que se pretenda uma definição exata, educação identifica-se com as categorias de

“inculturação nas tradições e nos costumes”, bem assim de “aculturação, no caso de procederem não do

dinamismo interno, mas do externo”. O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), que, em outra fórmula,

caminha no sentido de apreender o sentido da educação, missão cujo termo final é imperceptível a uma

visão superficial.

Eis a chave que abre a possibilidade de compreensão da educação como processo social por meio

do qual a humanidade elabora a si mesma, em todos os seus vários aspectos [...]. Evoluindo na apreensão

de tal fenômeno, ele acrescenta:

Estes vários aspectos da educação comportam um relacionamento permanente com os temas mais

Page 8: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE09

gerais da história da humanidade. Aculturação quer dizer socialização, inserção de cada adolescente no conjunto vivo da sociedade adulta. [...]. Portanto, o discurso pedagógico é sempre social, no sentido de que tende, de um lado, a considerar como sujeitos da educação as várias figuras dos educandos, pelo menos nas duas determinações opostas de usuários e de produtores, e, de outro lado, a investigar a posição dos agentes da educação nas várias sociedades da história. Além disso, é também um discurso político, que reflete as resistências conservadoras e as pressões inovadoras presentes no fato educativo e, afinal, a relação dominantes-dominados (ibidem).

Trabalha-se, portanto, com o conceito de educação no seu sentido mais amplo. Não significa a

educação como instrução, caracterizada como transmissão de conhecimentos e restrita à ação da escola

(MIZUKAMI, op. cit., p. 11). O conceito aqui adotado é o da educação como agente, para o indivíduo, de

uma elaboração de si mesmo, e, para a sociedade, da elaboração de um determinado padrão geral, que lhe

dá uma fisionomia e a identifica. A elaboração da sociedade precede e também sucede a elaboração do

indivíduo. Ele leva à sociedade a sua própria atuação individual, que é acrescentada ao acervo social; a

sociedade, de sua vez, configurando o mundo exterior ao indivíduo e sendo seu interlocutor e referência,

cultiva a percepção interna do sujeito com as informações existentes em seu estoque de elaborações já

feitas.

Assim, o indivíduo só é compreensível como parte do todo. Sem a interação com tal estoque de

conhecimento social, sem esse intercâmbio, os seus mecanismos interiores não seriam capazes de

promover qualquer elaboração de si mesmo – expressão que, ao frisar a individualidade frente ao mundo,

somente faz sentido em confronto com outros. Dessa maneira, apesar dos mecanismos mentais que possui,

as funções superiores do sujeito permaneceriam em estado latente não fosse a sua inserção no conjunto dos

outros, ou, em suma, o que constitui a sua experiência social. Outra materialização desse intercâmbio

social que forja o pensamento humano é a linguagem. Vale conferir a anotação de Josef Stalin (1953):

Dizem que os pensamentos vêm ao espírito humano antes de se exprimirem pelo discurso [...]. Mas isso é absolutamente falso. Quaisquer que sejam os pensamentos que venham ao espírito humano, só podem nascer e existir baseados nos materiais da língua, baseados nos termos e nas frases [...]. Não há pensamentos nus, liberados dos materiais da linguagem, liberados da matéria natural, que é

.a linguagem [...]. Somente idealistas podem falar [...] de um pensamento sem linguagem

Sobre isto Manacorda (op. cit., p. 324-325), apoiando-se em Vygotsky, registra que:

[...] o desenvolvimento psicológico de cada indivíduo é parte e resultado da evolução geral da humanidade: esse desenvolvimento não é concebível isoladamente, mas pressupõe [...] sincronicamente, a participação do indivíduo na vida da sociedade de seus contemporâneos. A atividade humana, de fato, se caracteriza para ele como atividade mediada por instrumentos que são o resultado [...] do desenvolvimento do indivíduo; estes podem ser:“Quer instrumentos materiais, enquanto meios de trabalho para dominar os processos da natureza, quer a linguagem, enquanto meio de comunicação social” (FPS, 135).Sem esses instrumentos não existe o homem: somente através do seu uso crescem no indivíduo e na espécie as funções psíquicas superiores:“O uso de meios auxiliares, a passagem para um tipo de atividade mediada, modifica e reestrutura a operação psíquica inteira de modo análogo àquele em que o uso do instrumento material modifica a atividade natural dos órgãos, e amplia indefinidamente o sistema da atividade das funções psíquicas. Definimos uma e outro com o termo função superior e comportamento superior” (FPS, 138).

Page 9: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE10

A partir de tais pressupostos, é possível considerar que apenas a socialização das experiências é que

representa um processo capaz de incluir uma pessoa no universo dos humanos. Ela somente poderá

coordenar logicamente suas ações com base no anterior contato com outros. Conforme lembra PIAGET,

[...] a lógica é, antes de tudo, a expressão da coordenação geral das ações; e [...] esta coordenação geral das ações implica necessariamente uma dimensão social, porque a coordenação inter-individual dos atos e sua coordenação intra-individual constituem um único e mesmo processo, sendo as operações do indivíduo socializadas todas elas, e consistindo a cooperação no sentido estrito em tornar comuns as experiências de cada um (1970, p. 71).

Faz-se, por conseguinte, a elaboração de uma identidade da sociedade, que é algo diferente da

identidade do indivíduo e também diversa da somatória das identidades individuais. Esse padrão

identificador explica-se no tempo e no espaço, já que constitui produção social, historicamente localizada,

que não antecede a sociedade, mas é seu fruto. Cuida-se, em outras palavras, do mundo da cultura,

resultado da transformação da natureza pelo homem e também da transformação dos outros homens, por

meio da inter-relação de todos eles.

2.1. Controle e emancipação

Ao elaborar a si mesma, a sociedade apreende e transmite informações, plenas de conteúdos, numa

espiral infinita; a sociedade é a própria agente de produção e de reprodução da cultura. Essa mecânica de

transmissão e retransmissão de conteúdos dá-se numa relação sociedade-sociedade e sociedade-

indivíduo, ou vice-versa, e a identidade social, que é parte da cultura, vai dessa maneira sendo modelada e

reproduzida.

O processo de reprodução também reforça os traços da identidade social. Por tal motivo é que a

constante repetição exaltando determinado sistema de valores, contribui para estabilizá-lo como parte da

identidade social. De outro ângulo, pode-se dizer que essa repetição institucionaliza tal sistema de valores

- e ainda poderá chegar a simplificá-lo, valendo-se de uma simbologia específica, a qual, por sua vez,

também será reafirmada e reproduzida.

É a partir da elaboração de sua identidade que a sociedade desenvolve os aparelhos de controle

social. Eles funcionam como elementos de estabilização de um determinado padrão de atuação,

identificado com o papel que a sociedade designa para si mesma.

Na medida em que se tornam estáveis os padrões de conduta, mais resistente e refratária será a

camada protetora que os envolve, capaz de repelir elementos estranhos, eventualmente capazes de alterá-

los. Por esse motivo é que os instrumentos de controle fazem o possível para manter a solidez desses

padrões. Eles – os instrumentos e os padrões – são, por natureza e necessidade, conservadores. A educação

logicamente engloba esses agentes controladores e configura, ela mesma, também uma agência de

controle, considerando que a reprodução de um padrão reforça a estabilidade do próprio padrão. Por fim,

como agentes controladores são encontráveis, muitas vezes, pessoas atuando diretamente; não só as que

cobram a obediência ao padrão, mas também aquelas que exaltam a sua eficácia.

Page 10: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE11

Essa elaboração de uma identidade social é, portanto, incumbência da educação, tanto na criação

quanto na reprodução de uma cultura. Trata-se de uma tarefa em sentido amplo e, por conseguinte, uma

tarefa política; dela necessariamente decorrerá uma outra, voltada para as pessoas individualmente

consideradas: a de lhes propiciar o pleno desenvolvimento de suas potencialidades.

A educação é um processo em que interagem educadores e educandos, fazendo uma movimento

contínuo e em todas as direções. Sob o prisma do materialismo histórico, em uma sociedade de classes, ela

tende a ser uma ação dos dominantes sobre os dominados, a estes sendo transmitido um arquivo cultural

que reforça e naturaliza a dominação. É aqui que Paulo Freire, sempre crítico, avisa que a educação capaz

de emancipar o indivíduo é aquela que respeita a identidade individual e problematiza, no cenário do

educando, os conteúdos dos saberes em questão; isto fará dele sujeito da sua própria educação, numa

movimentação em todas as direções relativamente ao educador, o qual também se converte num aprendiz.

Segundo Freire (1996, p. 30), ao educador se estabelece o seguinte dever:

[...] respeitar os saberes com que os educandos [...] chegam [à escola], mas também [...] discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes?

Claramente se coloca, a partir da postura de Freire, e com ela, o formato de uma educação que

somente se completa com a instrumentalização do educando

3. Educação e aprendizagem

Fala-se de uma identidade social elaborada pela educação, cumprindo ver que ela se mostra aos

indivíduos e à sociedade. Essa identidade social se faz notar e chama à cumplicidade, como que

argumentando ser adequado que se reproduza. Há, em suma, algo como uma captação desses sentidos

todos, o que é condição necessária para o refazimento constante da identidade social. Esse processo

conduz à noção de aprendizagem.

Aprender origina-se do latim apprehendere, que tem o sentido de apreender ou apanhar (CUNHA,

1986, p. 60). Há, pois, certa sinonímia entre aprender e apreender, sendo comum que este último termo

seja utilizado como designando algo mais extenso do que aprender. Em realidade, apprehendere significa

agarrar [...], segurar, apoderar-se de. A raiz latina apprendo, que dá origem ao vocábulo aprender, é a

forma poética e, portanto, simplificada, de apprehendo (FARIA, 1967, op. cit., p. 89, nota 6).

Quer isto significar que quem aprende, apreende, o que seria o mesmo que dizer que apanha,

agarra, captura, segura, apodera-se de algo. O aprendiz é, portanto, aquele que é capaz de desempenhar

esses comportamentos, sendo as suas estruturas mentais os instrumentos incumbidos de dar conta dessa

função.

O que aprende é aquele que, possuidor recursos mentais adequados, é capaz de fazer associações

entre os símbolos que são percebidos pelos seus órgãos dos sentidos. Tanto o indivíduo quanto a sociedade

aprendem o conteúdo do processo educativo de acordo com essas associações, também sendo certo que,

por seu intermédio, conseguem reproduzir os seus conteúdos.

Page 11: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE12

A aprendizagem, portanto, constitui um instrumento da educação. É oportuno observar a anotação

de Lino de Macedo (1994), para quem:

[...] aprendizagem é um termo muito amplo e complexo; um termo fundamental para nós, professores, dado nosso compromisso institucional [...] Aprendizagem refere-se de um modo geral à aquisição de uma conduta, ao domínio de um procedimento, à conquista de algo que passa a ser patrimônio de nossa ação; refere-se a algo específico, não importando sua amplitude. A aprendizagem refere-se a uma aquisição contextual e historicamente determinada. A aprendizagem refere-se ao domínio do que pertence à ordem do arbitrário, ou seja, que sem ela poderia não ocorrer de forma espontânea.

Ora, a aprendizagem, assim vista, configura um outro lado do processo educativo, a cargo daquele

que nele se introduz em correspondência àquele que impulsiona esse processo. É a justaposição do

educando ao educador, num movimento em que estes freqüentemente alternarão sua posições, o que faz

do movimento de ensino-aprendizagem uma ação fluida e cuja fisionomia está sujeita a constantes e bem

vindas metamorfoses.

Conclusão

O fenômeno educativo é multidimensional. Insere-se no contexto das relações humanas e delas

apreende elementos que processará e aplicará no intercâmbio contínuo e infinito dessas mesmas relações

quando se trate de reproduzir conhecimento e, igualmente, de estimular a aquisição de novos saberes.

A ação educacional, materializada no processo de ensino-aprendizagem, realiza, num sentido

amplo, a elaboração da identidade social, institucionalizando padrões de vivência, que, retransmitidos

individual e socialmente, reforçam, reproduzem e contribuem para manter a estabilidade desses padrões.

Cuida-se de uma feição que a sociedade impõe a si própria, com a qual se identifica e que vê como a

expressão da sua essência.

Destinatário primeiro desse processo – o educando – há que ser visto como elemento de um

conjunto de relações sociais e cujo ser, em sua essência, molda-se e se explica a partir do emaranhado de

vetores que o enredam e de que ele depende para se situar como alguém. É que “a história humana não

transcorre, nem pode ser apreciada, em um vácuo planetário. [...] As várias formas de vida – igualmente os

humanos – não existem ou sobrevivem de maneira isolada [...]”, como é o dizer de Antônio Benjamin

(1999).

Essa identidade social, que não é o mesmo que a somatória de identidades individuais, constitui,

por fim, a expressão daquilo que a sociedade vê como seu papel num dado cenário modulado pelas

relações econômico-políticas de produção da vida material. Esta formula a consciência dos indivíduos e da

sociedade - e não o contrário.

Por fim, é preciso ter presente que a identidade social produz um dado mecanismo de controle, do

qual também se alimenta, e que é o instrumento de garantia da estabilidade dos padrões sociais

institucionalizados e continuamente reproduzidos.

Page 12: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE13

Referências

BENJAMIN, Antônio Hermen de Vasconcelos e. Manual prático da Promotoria de Justiça do Meio

Ambiente. São Paulo: IMESP, 1999.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FARIA, Ernesto (org.). Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro: Departamento Nacional de

Educação – MEC, 4 ed.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GENTIL, Plínio. A educação pelo castigo, na perspectiva da religião católica e do direito penal. Tese.

Doutorado em Fundamentos da Educação. Universidade Federal de S. Carlos. São Carlos, 2009.

______; TAGLIAVINI, João Virgílio. Controlados pelas ameaças do inferno: a repressão sexual na

educação cristã e na formação dos seminaristas. São Carlos: Edição do Autor, 2014.

MACEDO, Lino de. Ensaios construtivistas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.

MANACORDA, Mario Aliguiero. História da educação. São Paulo: Cortez, 2004.

MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoletti. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: E.P.U., 1986.

PIAGET, Jean. Psicologia e pedagogia. Rio de Janeiro: Forense, 1970.

SAVIANI, Nereide. Saber escolar, currículo e didática. Campinas: Autores Associados, 2003.

STALIN, Josef. A propos du marxisme en linguistique. Derniers Ecrits. Paris: Ed. Sociales, 1953.

Page 13: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE14

O DESVIRTUAMENTO DO CONTRATO DE ESTÁGIO EXTRACURRICULAR À LUZ DA LEI 11.788/2008

Autor(a)¹: Sandy Mikiele Castro de Assis

Coautor(a)²: Heloísa Valença Cunha Hommerding

RESUMO: O presente trabalho analisa o desvirtuamento do contrato de estágio extracurricular sob a ótica da Lei 11.788/2008 – Nova Lei do Estágio e os meios legais de tutela aos direitos dos estagiários. A problemática desta pesquisa é saber se a referida lei tem contribuído, de forma significativa, no combate ao desvio de finalidade deste instituto. Ademais, esse estudo narra os tópicos pertinentes do contrato de estágio extracurricular, caracteriza o contrato de estágio conforme o que preconiza a lei atinente ao tema, demonstra os meios legais protetivos desta relação e sua fiscalização. Verifica-se com essa pesquisa que apesar das mudanças na sua lei, as consequências práticas foram irrelevantes, posto que não coibiu o desvirtuamento deste contrato, uma vez que, algumas empresas concedentes de estágio utilizam o estagiário como instrumento de barateamento de mão de obra, o que tem permitido um possível reconhecimento do vínculo empregatício pelo judiciário trabalhista.

PALAVRAS-CHAVE: Estágio. Desvirtuamento. Reconhecimento. Vínculo empregatício.

1 INTRODUÇÃO

O estágio surge como um instrumento integrador entre empresas e espaços educacionais, teoria e

prática, garantindo que os educandos participem da vida profissional.

Para Leite (2015, p. 197) o estágio: [...] Faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando.

Ademais, o estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à

contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para

o trabalho.

Empreende-se, pela leitura acima, que o estágio acaba por se tornar uma extensão da atividade

acadêmica do discente. É, a partir do estágio que o aluno passa a ter uma visão mais ampla sobre sua futura

profissão, sua área de atuação e aprender na prática aquilo que lhe é ensinado em sala de aula. Assim, o

estágio corretamente realizado e relacionado ao âmbito acadêmico passa a ser um diferencial para a

complementação da teoria à prática real.

2 LEI 11.788/2008 - NOVA LEI DO ESTÁGIO: REGULAMENTAÇÃO ATUAL DO

ESTÁGIO

Em 25 de setembro de 2008, por meio da Lei n. 11.788/08, são revogadas as leis existentes sobre o

estágio e essa lei passa a dar todas as diretrizes sobre a relação e o contrato de estágio. É formada por 22

1Concludente do Curso de bacharelado em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau – FAP TERESINA. Monitora da disciplina Técnicas de Elaboração de Monografia I. Auxiliar de Gestão na 4ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Teresina.2Mestre em Direito Constitucional pela UFRN; Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra- PT; Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho. Professora Universitária e de Pós-Graduações em Direito do Trabalho, Constitucional e Civil. Advogada.

Page 14: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE15

artigos, divididos em seis capítulos, que discorrem desde a formação da relação de estágio à fiscalização do

mesmo. Trouxe em seu texto mudanças relevantes e indispensáveis aos anseios da atual geração de

estagiários, tais como notas explicativas sobre o texto do contrato de estágio, informações sobre jornada de

atividade, requisitos do contrato de estágio, entre outros. Veio, também, para definir a figura do estagiário e

trazendo os requisitos legais obrigatórios para a caracterização do mesmo (OLIVEIRA, 2006).

Contudo, a mais importante modificação trazida por esta lei, é a previsão expressa de que, embora

o estágio, a princípio, não crie vínculo empregatício, este será reconhecido caso sejam deturpadas as

finalidades deste contrato, por meio do desrespeito aos requisitos estabelecidos pela lei em contento.

2.1 Conceitos e características

Genericamente falando, estágio está ligado ao tempo que se pratica algo com o intuito de exercer,

futuramente, uma profissão. Numa conceituação mais específica, pode-se dizer que, o estágio é o

instrumento de aperfeiçoamento do estudante fazendo com que ele aplique o saber teórico obtido em sala

de aula à prática da sua futura profissão.

Deste modo, o artigo primeiro da Lei 11.788/2008 – lei que regulamenta o estágio no Brasil -

conceitua o estágio da seguinte forma:Art. 1º Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que

visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino

regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da

educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da

educação de jovens e adultos.

Neste sentido, o contrato de estágio possui alguns caracteres, devido sua natureza educativa, tais

como a duração, compatibilidade, acompanhamento, termo de compromisso, não-vinculação e jornada de

atividade. O artigo 11 da Lei 11.788/2008 determina que a duração do estágio não poderá exceder o limite

de dois anos, na mesma instituição concedente de estágio, salvo o caso do estudante portador de

deficiência. Quanto à compatibilidade, o estágio e a função exercida pelo estudante deve guardar relação

direta com o conhecimento teórico adquirido em sala de aula, fazendo com que a prática realizada pelo

mesmo seja complemento para a sua formação acadêmica.

Outro requisito, e este é imprescindível, do contrato de estágio é o termo de compromisso, tido

como o instrumento que concretiza a relação de estágio, onde, traz em seu texto todas as diretrizes que

norteiam essa relação, quais sejam os direitos e obrigações das partes, a função a ser exercida pelo

estudante, as sanções para o descumprimento do mesmo, e etc. Com isto, torna-se nulo todo ato que for

contrário ao que foi convencionado no termo de compromisso.

Sobre a não vinculação, o artigo terceiro, da Lei do estágio, preleciona que: “Art. 3º. O estágio,

tanto na hipótese do § 1º do art. 2º desta Lei quanto na prevista no § 2º do mesmo dispositivo, não cria

vínculo empregatício de qualquer natureza, observados os seguintes requisitos”. Por isso, por mais que a

relação de estágio se pareça, por vezes, com uma relação de emprego, entre eles não há ligação.

E, por fim, mas não menos importante, está a jornada de atividade, que é contabilizada por horas

trabalhadas durante a semana, diariamente. Onde tal jornada não poderá ultrapassar: 4 (quatro) horas

diárias e 20 (vinte) horas semanais, no caso de estudantes de educação especial e dos anos finais do ensino

Page 15: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE16

fundamental, na modalidade profissional de educação de jovens e adultos; 6 (seis) horas diárias e 30

(trinta) horas semanais, no caso de estudantes do ensino superior, da educação profissional de nível médio

e do ensino médio regular. (vide artigo décimo , da Lei 11.788/08).

2.2 Estágio Obrigatório e Estágio Não Obrigatório

O estágio obrigatório é caracterizado como sendo indispensável para que o estudante conclua seu

curso. O parágrafo primeiro do artigo segundo da lei 11.788/2008 preleciona que “estágio obrigatório é

aquele definido como tal no projeto do curso, cuja carga horária é requisito para aprovação e obtenção de

diploma”.

Já o estágio não-obrigatório é entendido como sendo independente do vínculo profissionalizante

da instituição de ensino, tendo como efeito o acréscimo de horas de prática real no histórico acadêmico do

aluno. O parágrafo segundo do mesmo artigo dá informações de como é caracterizado esta modalidade de

estágio quando diz que “estágio não-obrigatório é aquele desenvolvido como atividade opcional,

acrescida à carga horária regular e obrigatória”.

2.3 Requisitos do contrato de estágio

Para garantir a perfeita harmonia e concretização do contrato de trabalho, a Lei n. 11.788/08 traz

em seu texto a observância de alguns requisitos, estes divididos em formais e materiais.

Trazendo o entendimento de requisito formal do direito civil, temos que esses requisitos se

dedicam à forma e cumprimento de algum ato. No estágio, faz-se sabe que deve ser, quanto aos sujeitos,

trilateral (estudante, instituição de ensino e parte concedente); deve ser feita a partir de ato solene, para que

tenha maior segurança jurídica; a obrigação e devida prestação do objeto (o estágio), bem como, sua

contraprestação.

Já os requisitos materiais tratam do efetivo cumprimento do contrato de estágio, da observância

na prática dos atos relativos ao objeto do contrato (Termo de Compromisso). Tem-se como exemplo, a

fiscalização, por parte da instituição de ensino, no que diz respeito à função desempenhada pelo estudante

na empresa concedente de estágio.

2.4 Das partes na relação de estágio

A relação de estágio é trilateral, pois ela se desenvolve tendo por sujeitos o estagiário, o tomador

de serviços e a instituição de ensino. Devido a isto, algumas exigências devem ser respeitadas, como por

exemplo a obrigatoriedade do contrato de estágio ser expresso e pactuado entre o tomador e o estagiário,

porém é fundamental que este seja homologado pela instituição de ensino.

2.4.1 estagiário

Nesta esteira, Cassar (2014, p. 316) diz que:Considera-se estagiário o estudante que, sem vínculo de emprego, presta serviços a uma pessoa

jurídica, que lhe oferece um procedimento didático-profissional, que envolve atividades sociais,

profissionais e culturais, através da participação em situações reais de vida e de trabalho, sob a

coordenação da instituição de ensino, estágio curricular.

Page 16: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE17

Partindo desse conceito, entende-se que estagiário é o aluno, brasileiro ou estrangeiro

naturalizado, devidamente matriculado em instituição de ensino que mantém vínculo com a parte

concedente de estágio, com o propósito de obter conhecimentos práticos a respeito da sua futura escolha

profissional.

2.4.2 parte concedente

É a responsável por oportunizar a possibilidade de estágio ao estudante devidamente matriculado

em instituição de ensino, podendo ela ser pessoa jurídica de direito privado, bem como órgãos da

administração pública e profissionais liberais com ensino superior devidamente cadastrados em seus

conselhos de atuação e fiscalização profissional. No entanto, é defeso às pessoas físicas com natureza de

empresárias individuais a concessão de estágio.

À parte concedente foi dada obrigações, por exemplo, celebrar termo de compromisso com a

instituição de ensino e o educando, zelando por seu cumprimento; ofertar instalações que tenham

condições de proporcionar ao educando atividades de aprendizagem social, profissional e cultural; indicar

funcionário de seu quadro de pessoal, com formação ou experiência profissional na área de conhecimento

desenvolvida no curso do estagiário, para orientar e supervisionar até 10 (dez) estagiários

simultaneamente; contratar em favor do estagiário seguro contra acidentes pessoais, cuja apólice seja

compatível com valores de mercado; por ocasião do desligamento do estagiário, entregar termo de

realização do estágio com indicação resumida das atividades desenvolvidas, dos períodos e da avaliação

de desempenho; manter à disposição da fiscalização documentos que comprovem a relação de estágio;

enviar à instituição de ensino, com periodicidade mínima de 6 (seis) meses, relatório de atividades, com

vista obrigatória ao estagiário. (vide artigo nono, da Lei 11.788/08).

A parte concedente deve procurar alternar as atividades do estagiário, durante o período que

desempenha seu estágio, oferecendo outras chances de compreender e aprender todo o processo laboral

daquela empresa, de modo a enriquecer sua experiência. Isso significa dizer que, a empresa – parte

concedente - ou órgão público deve ter a plena consciência de não colocar o estagiário apenas na execução

de tarefas repetitivas, que pouco irão acrescentar à sua formação acadêmico-profissional.

2.4.3 instituição de ensino

Local, devidamente registrado segundo as normas vigentes nacionais, onde o estudante,

devidamente matriculado, obtém conhecimentos teóricos a serem aplicados na prática real e os aperfeiçoa

para que futuramente possa aplicar em sua profissão.

Assim como a parte concedente, a instituição de ensino também possui obrigações a serem

observadas no contrato de estágio, por exemplo, celebrar termo de compromisso com o educando ou com

seu representante ou assistente legal,; avaliar as instalações da parte concedente do estágio e sua

adequação à formação cultural e profissional do educando; indicar professor orientador, da área a ser

desenvolvida no estágio, como responsável pelo acompanhamento e avaliação das atividades do

estagiário; exigir do educando a apresentação periódica, em prazo não superior a 06 (seis) meses, de

relatório das atividades; zelar pelo cumprimento do termo de compromisso, reorientando o estagiário para

Page 17: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE18

outro local em caso de descumprimento de suas normas; comunicar à parte concedente do estágio, no

início do período letivo, as datas de realização de avaliações escolares ou acadêmicas. (vide artigo sétimo,

da Lei 11.788/08)

2.5 Número máximo de estagiários

A contratação de estagiários, para o quadro de pessoal da parte concedente, deverá acontecer de

forma proporcional à quantidade de empregados efetivos da empresa cedente de estágio, sendo feito nas

seguintes proporções: de 1 (um) a 5 (cinco) empregados: 1 (um) estagiário; de 6 (seis) a 10 (dez)

empregados: até 2 (dois) estagiários; de 11 (onze) a 25 (vinte e cinco) empregados: até 5 (cinco)

estagiários; acima de 25 (vinte e cinco) empregados: até 20% (vinte por cento) de estagiários. Todavia, tal

limite determinado em lei, não se aplica aos estágios de nível superior e de nível médio profissional. (vide

artigo 17, da Lei 11.788/08)

É garantida, ainda, uma quantidade mínima de vagas aos portadores de deficiência física. Tal

providência se configura como sendo uma iniciativa combinada entre o Estado, a parte concedente e a

instituição de ensino, para confirmar a inclusão da pessoa com deficiência no trabalho, nesse caso o

estágio, estando regulamentado no parágrafo quinto do artigo 17 da Lei do Estagiário, que preleciona “Art.

17 [...]. § 5º Fica assegurado às pessoas portadoras de deficiência o percentual de 10% (dez por cento) das

vagas oferecidas pela parte concedente do estágio.”

3 DO DESVIRTUAMENTO DO CONTRATO DE ESTÁGIO

Embora todos os requisitos e obrigações estejam expressamente contidos no Termo de

Compromisso, há sempre uma divergência entre o que está escrito no contrato de estágio com aquilo que

realmente acontece na prática. Verificando-se, no estágio não-obrigatório, que uma das partes faltou com o

devido cumprimento de sua função no acordo, cria-se então um vício, pois as cláusulas contratuais não

foram devidamente observadas e respeitadas.

Desse vício, explicam Porto (2006) e Silveira (2014), nasce o desvirtuamento do contrato de

estágio, onde o instituto do estágio poderá então ser considerado como relação empregatícia. O

desvirtuamento desse contrato ocorre quando os requisitos materiais do estágio não são devidamente

observados e cumprido, fazendo nascer o vínculo de emprego na relação entre o estagiário e a parte

concedente.

3.1 Da fiscalização

É papel das Autoridades do Ministério do Trabalho ou suas delegadas fiscalizar as instituições

públicas e privadas concedentes de estágio, para que, se verificada fraude, sejam as mesma punidas, de

acordo com o que preleciona o artigo 15, da Lei 11.788/2008, segue:Art. 15. A manutenção de estagiários em desconformidade com esta Lei caracteriza vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária. § 1º A instituição privada ou pública que reincidir na irregularidade de que trata este artigo ficará impedida de receber estagiários por 2 (dois) anos, contados da data da decisão definitiva do processo administrativo correspondente. § 2º A penalidade de que trata o § 1º deste artigo limita-se à filial ou agência em que for cometida a irregularidade.

Page 18: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE19

E à parte cedente cabe o ônus da prova, isto é, provar que não incorreu em nenhuma

irregularidade, a exemplo do que ocorre na relação empregatícia, onde em grande parte dos casos, cabe ao

empregador o ônus da prova.

3.2 Do contrato de estágio na administração pública

Menor preocupação deve ter o administrador público com o desvirtuamento do contrato de

estágio e sua possível caracterização como vínculo empregatício, uma vez que, em se tratando de parte

concedente a pessoa jurídica de direito público direta ou indireta, da União, Estados ou Municípios, o texto

da Constituição Federal de 1988 protege, preleciona que não haverá nenhum vínculo como servidor

público, em face da norma constitucional contida em seu artigo 37, que explica que a investidura em cargo

ou emprego público depende de aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos e a não

observância deste procedimento acarretará em nulidade do ato e punição da autoridade responsável.

Corroborando neste sentido, tem-se a Orientação Jurisprudencial nº 366, da Seção de Dissídios

Individuais I - SDI I, que versa o seguinte:366. ESTAGIÁRIO. DESVIRTUAMENTO DO CONTRATO DE ESTÁGIO.

RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO COM A ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA DIRETA ou INDIRETA. PERÍODO POSTERIOR À CONSTITUIÇÃO

F E D E R A L D E 1 9 8 8 . I M P O S S I B I L I D A D E ( D J 2 0 , 2 1 e 2 3 . 0 5 . 2 0 0 8 )

Ainda que desvirtuada a finalidade do contrato de estágio celebrado na vigência da Constituição

Federal de 1988, é inviável o reconhecimento do vínculo empregatício com ente da Administração

Pública direta ou indireta, por força do art. 37, II, da CF/1988, bem como o deferimento de

indenização pecuniária, exceto em relação às parcelas previstas na Súmula nº 363 do TST, se

requeridas. (grifo do autor).

E ainda,RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA. DESVIRTUAMENTO - CONTRATO DE

ESTÁGIO - ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA. CONTRATO NULO. EFEITOS . Nos

termos da OJ nº 366 da SBDI-1 do TST, desvirtuada a finalidade do contrato de estágio firmado na

vigência da Constituição Federal de 1988, é inviável o reconhecimento do vínculo empregatício

com ente da Administração Pública direta ou indireta (art. 37, II, da CF/1988), bem como o

deferimento de indenização pecuniária, exceto em relação ao pagamento da contraprestação

pactuada e dos valores referentes aos depósitos do FGTS. Recurso de revista a que se dá

provimento. (TST - RR: 1372120135040541, Relator: Kátia Magalhães Arruda, Data de

Julgamento: 15/04/2015, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/04/2015).

A norma constitucional que fala do ingresso no serviço público somente por concurso público de

provas, ou provas e títulos, tem como objetivo ofertar igual oportunidade a todos e uma melhor utilização

dos recursos públicos. É aplicado pela grande maioria dos órgãos públicos na contratação de estagiários,

contudo, a obediência a esses princípios insere, no serviço público, a ideia – errônea - de que o estagiário é

um servidor (OLIVEIRA, 2006).

3.3 Da fraude do contrato de estágio como burla à legislação trabalhista

A diferença entre relação de estágio e relação de emprego se encontra numa linha bastante tênue.

Contudo, mesmo o estagiário possuindo condições de reunir todas os requisitos que caracterizam a relação

de emprego e por mais que o estágio seja remunerado, seu vínculo com a parte concedente não é de relação

Page 19: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE20

de emprego, haja vista os objetivos acadêmicos que dão base ao acordo firmado entre estagiário e a parte

concedente do estágio.

Revisando a literatura de Capone (2010), Porto (2012) e Oliveira (2006) constata-se que havendo

o desvirtuamento, ou seja, se a empresa não tiver a devida atenção em respeitar os requisitos que

caracterizam e diferenciam a relação de estágio, aos poucos o estudante deixa de desempenhar função de

estagiário e passa a executar atividade própria de empregado, tendo que fazer um contrato específico para

esta nova realidade.

É preciso ter uma constante vigilância das condições que o estágio é oferecido e prestado, uma

vez que se trata de relação acessória e dependente, pois deve existir uma estreita relação entre o conteúdo

do aprendizado acadêmico e o das atividades executadas na empresa ou órgão concedente.

Outra ponto imprescindível a ser observado é que o estagiário não poderá ser responsável por

setor, não poderá chefiar equipes ou outros trabalhadores, não poderá liderar projetos para a empresa

concedente. A sua condição de aprendiz (aqui em sentido lato), em passagem temporária pela empresa ou

órgão concedente, afasta efetivamente tais responsabilidades. A jurisprudência ajuda a aclarar isso, por

exemplo:CONTRATO DE ESTÁGIO. AUSÊNCIA DE SUPERVISÃO E ORIENTAÇÃO AO ESTUDANTE. DESRESPEITO À LEI DO ESTÁGIO. VÍNCULO EMPREGATÍCIO CONFIGURADO. Consiste o estágio em um contrato em que um estudante regularmente matriculado em curso profissionalizante do ensino médio ou superior, realiza complementação do ensino mediante a experiência prática relacionada com a formação profissional, limitada ao período escolar, com a intervenção obrigatória da instituição de ensino. O objetivo do contrato é, portanto, pedagógico e educacional. Um dos requisitos materiais da relação de estágio é a integração do estagiário em termos de treinamento prático e de relacionamento humano, mediante o acompanhamento do tomador dos seus serviços, viabilizando a transferência do conhecimento técnico-profissional, objeto da relação de estágio. Demonstrado, no caso, que não havia uma supervisão efetiva, como necessário, à estudante, pois não havia no estabelecimento auxiliares de enfermagem ou enfermeiros empregados, conforme depoimento do preposto, resta caracterizada a relação de emprego típica. Recurso da ré ao qual se nega provimento. (TRT-9: 437320086904 PR 4373-2008-6-9-0-4, Relator(a): SUELI GIL EL-RAFIHI, Data de publicação: 25/02/2011) (grifo do autor).

A supervisão de estágio deve ser compreendida como orientação fornecida ao acadêmico no

decorrer das atividades, enquanto durar a relação de estágio, por docente devidamente qualificado e por

profissionais dentro da área do estágio, de modo que proporcione ao estagiário o pleno desenvolvimento e

conhecimento de ações, princípios e valores que são inerentes à realidade da profissão que ele se propõe a

praticar.

A Lei 11.788/2008 – Lei do Estágio - atribui à instituição de ensino a incumbência de orientar,

acompanhar e avaliar o estágio profissional, não devendo se limitar apenas ao aspecto formal dessa

relação. É aceitável e necessário que esta sistemática de controle seja documentada, para posterior

comprovação de regularidade através de relatórios de acompanhamento. Neste sentido, ao ser

comprovada a fraude, seja pelo estagiário, seja pela instituição de ensino ou pela atuação negativa

(omissão) estatal de fiscalização pelo Ministério do Trabalho e Emprego, àqueles que descumprirem a lei,

na falta de sanções mais rígidas, deve-se impedir a parte concedente de contratar estagiários, além da

possibilidade da aplicação de multas administrativas. (grifo nosso).

Verdadeiramente, o contrato de estágio hoje é um subemprego aberto e simulado. O estagiário é

Page 20: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE21

tido com um jovem explorado e sem individualidade, um vez que não é empregado protegido pelas normas

celetistas, caracterizando-se como um ser híbrido que atravessa os liames entre o estudo e o trabalho

(OLIVEIRA, 2006).

A principal fraude que ocorre neste tipo de relação é o aproveitamento, por parte do agente

concedente, de um possível trabalhador qualificado que vá gerar menos despesas à sua empresa e, por

conseguinte, aumento de suas receitas, porque entre contratar, um empregado já formado e a ele pagar

todos os encargos trabalhistas e previdenciários, e um estagiário a qual não lhe é reconhecido direitos

trabalhistas nem encargos sociais, a parte cedente irá optar por gastar menos e isso enseja na contratação de

um estagiário que, evidentemente, fará papel de empregado, como preleciona Oliveira (2006). Neste

sentido, a jurisprudência é bem objetiva quanto ao reconhecimento do vínculo empregatício quando

ocorre o desvirtuamento da relação de estágio, onde:CONTRATO DE ESTÁGIO FRAUDULENTO. RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO EMPREGATÍCIA ENTRE O TRABALHADOR ESTUDANTE E A EMPRESA. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 2º E 3º C/C O ART. 9º, TODOS DA CLT. Compulsando-se os autos, verifica-se que, de fato, as atividades desenvolvidas pelo reclamante na empresa encontravam-se revestidas de caráter empregatício, haja vista a presença de todos os elementos indispensáveis à caracterização da relação de emprego, nos moldes dos arts. 2º e 3º da CLT. Logo, ainda que acostados documentos nos quais se registrou o suposto contrato de estágio, tem-se que estes são inservíveis no presente caso, em face do conjunto probatório dos autos. É a aplicação do art. 9º, da CLT, em valorização ao Princípio da Primazia da Realidade. (TRT-19 - RECORD: 452200500119007 AL 00452.2005.001.19.00-7, Relator: José Abílio Neves Sousa, Data de Publicação: 09/08/2006).

A instituição de ensino também comete fraude quando negligencia a relação de estágio, não

cumprindo com os requisitos essências desta relação, como por exemplo, deixando de observar ou

fiscalizar a função empenhada pelo estudante, podendo isso ser feito por meio de recebimento de relatórios

feitos tanto pelo estagiário quanto pela parte cedente, para então fazer uma análise conjunta e verificar as

falhas desta relação.

4 CONCLUSÃO

O desvirtuamento do contrato de estágio extracurricular à luz da Lei 11.788/2008 é uma

frequente. Percebeu-se que as empresas e, porque não dizer também, os órgãos da administração pública

permanecem burlando o instituto, apesar da nova lei do estágio deixar claro as sanções e penalidades

aplicadas à parte que desvia a finalidade do contrato de estágio.

A Lei 11.788/2008, que rege as relações e contratos de estágios, veio numa tentativa de mudar

este panorama, mas se percebe falhas quanto à sua efetiva aplicação. A exemplo disso, tem-se a falta de

supervisão do estágio realizado pelo estudante, papel que deveria ser exercido de forma mais ativa pela

instituição de ensino, que deve exigir da empresa e do estudante documentos e/ou relatórios de estágios,

onde possam ser verificados possíveis erros quanto à execução do contrato. Outro exemplo de falha

encontrada na relação de estágio, seria a quase inércia dos órgãos de fiscalização das relações de trabalho,

que são competentes, por lei, por essa tarefa. Como, também, cabe ao estudante apresentar suas

impressões sobre o estágio, relatando possíveis irregularidades aos órgãos responsáveis pela proteção das

leis trabalhistas, para que os mesmos apliquem as sanções e penalidades, pertinentes ao caso, à parte que

descumpre os requisitos caracterizadores do contrato de estágio.

Page 21: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE22

Sugere-se, como alternativas para coibir a prática do desvirtuamento do contrato de estágio

extracurricular, maior participação das instituições de ensino quanto à vivência do estudante em seu

estágio, supervisionando e questionando como se dá esta relação; uma fiscalização mais eficaz, dos órgãos

do Trabalho, quanto a verificação dos estágios exercidos no país, mantendo programas educativos

voltados para este público; e, por fim, confecção de relatório, feito pelo estudante, onde o mesmo possa

relatar, de forma verídica, tudo aquilo que acontece em seu estágio, cabendo a ele apresenta-la à instituição

de ensino e, caso seja verificada qualquer irregularidade, que a mesma apresente denúncia aos órgãos

competentes.

5 FONTES BIBLIOGRÁFICASBRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988._______. Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de estudantes; altera a redação do art. 428, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 e a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996; revoga as Leis nº's 6.494, de 07 de dezembro de 1977 e 8.859, de 23 de março de 1994, o parágrafo único do art. 82 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 e o artigo 6º da Medida Provisória nº 2.164-41, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11788.htm. Acesso em: out 2015.

______. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. SEÇÃO DE DISSÍDIOS INDIVIDUAIS – SDI-1. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL nº 366. Estagiário. Desvirtuamento do contrato de estágio. Reconhecimento do vínculo empregatício com a Administração Pública Direta ou Indireta. Período pos ter ior à Cons t i tu i ção Federa l de 1988 . Imposs ib i l idade . D i spon íve l em: www3.tst.jus.br/jurisprudência/OJ_SDI_1/n_s1_361.htm#TEMA366. Acesso em: mai 2016.

_________. TST- RR: 1372120135040541, Relatora: Kátia Magalhães Arruda, Data de julgamento: 1 5 / 0 4 / 2 0 1 5 , 6 º t u r m a , D a t a d e p u b l i c a ç ã o : 1 7 / 0 4 / 2 0 1 5 . D i s p o n í v e l e m : http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/182354598/recurso-de-revista-rr-1372120135040541/inteiro-teor-182354619. Acesso em: mai 2016.

CASSAR, Vólia Bonfim. Direito do Trabalho. 9 ed. Rio de Janeiro: Método, 2014.

CAPONE, Luigi. A fraude à lei do estágio e a flexibilização do direito do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho – 3º região, Belo Horizonte, v. 51, n. 81, p. 47-70, jan./jun. 2010. Disponível em: http://as1.trt3.jus.br/bd-trt3/handle/11103/13104. Acesso em: mar 2016.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

OLIVEIRA, Fernanda Passos Jovanelli. O desvio de função dos estagiários de Direito nos órgãos públicos. Graduação (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília, Brasília: 2006.

PORTO, Marcelo da Silva. O contrato de estágio extracurricular: A fraude e a sua desvirtuação. In: Â m b i t o J u r í d i c o , R i o G r a n d e , X V, n . 9 6 , j a n 2 0 1 2 . D i s p o n í v e l e m : http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?nlink=revistaartigosleitura&artigoid[11024. Acesso em: out 2015.

SILVEIRA, Carmen Francisca Woitowicz da; JÚNIOR, Gilberto Cabral. Desvirtuamento do Contrato de

Page 22: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE23

estágio e vínculo empregatício. ANIMA: Revista Eletrônica do curso de Direito das Faculdades OPET . Curi t iba PR – Brasi l . Agosto de 2014. Disponível em: ht tp: / /www.anima-opet.com.br/pdf/anima11/1Desvirtuamento_contrato.pdf. Acesso em: 15/03/2016.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 19º REGIÃO. RO: 452200500119007 al 00452.2005.001.19.00-7, Relator: José Abílio Neves Sousa, Data de publicação: 09/08/2006. Disponível em: http://trt19.jusbrasil.com.br/jurispudencia/8672856/recurso-ordinario-record-452200500119007-al-0045220050011900-7/inteiro-teor-13698276. Acesso em: mai 2016.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 19º REGIÃO. RO: 452200500119007 al 00452.2005.001.19.00-7, Relator: José Abílio Neves Sousa, Data de publicação: 09/08/2006. Disponível em: http://trt19.jusbrasil.com.br/jurispudencia/8672856/recurso-ordinario-record-452200500119007-al-0045220050011900-7/inteiro-teor-13698276. Acesso em: mai 2016.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 9º REGIÃO. TRT – 9: 437320086904 PR 4373-2008-6-9-0-4, Relatora: Sueli Gil El-Rafihi, 4º turma, Data de publicação: 25/02/2011. Disponível em: http://trt-9.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18883287/437320086904-pr-4373-2008-6-9-0-4-trt-9. Acesso em: mai 2016.

Page 23: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE24

A IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM

DIREITOS HUMANOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

1 Lívia Zanholo Santos2 Ana Cláudia dos Santos Rocha

RESUMO:O presente artigo tem por objeto a análise da implementação do Plano Nacional de Educação

em Direitos Humanos (PNEDH) na Educação Básica. O Plano Nacional de Educação em Direitos

Humanos (PNEDH) é um mecanismo que busca efetivar a Educação em Direitos Humanos (EDH) como

política pública. A sua implementação visa, principalmente, difundir a cultura de direitos humanos no

Brasil. É sabido que o PNEDH estabelece que sua aplicação na Educação Básica se dê por meio da

produção de um conhecimento sistematizado sobre os direitos humanos. O objetivo específico desta

pesquisa é fomentar o debate sobre a importância e a possibilidade de aplicação de uma Educação em

Direitos Humanos (EDH) para formação de uma cultura em direitos humanos. O objetivo geral é

demonstrar que a criação e implementação de políticas públicas acerca da educação em direitos humanos

na educação formal, desde a educação básica é o caminho para construção de uma sociedade mais pacífica

e solidária, pautada na tolerância e no respeito à diversidade. Ademais, o presente estudo é uma reflexão

acerca da forma pela qual tal plano precisa ser implementado na Educação Básica e seu impacto nas

relações sociais da comunidade. Para tanto, será utilizada a metodologia qualitativa de pesquisa

bibliográfica e documental, em especial no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos.

PALAVRAS-CHAVE: Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Educação Básica. Políticas

Públicas.

ABSTRACT:This paper has for object the analysis of the implementation of the Plano Nacional de

Educação em Direitos Humanos (PNEDH) in Basic Education. The Plano Nacional de Educação em

Direitos Humanos (PNEDH) is a mechanism that aims to actualize the Human Rigths Education (HRE) as

a public policy. Its implementation aims, mainly, to disseminate the human rights's culture in Brazil. It's

known that the PNEDH states that its application in Basic Education happens by means of the production

of a systemized knowledge about human rights. The specific objective of this research is to foster the

debate on the importance and the possibility of applying a Human Rights Education (HRE) for formation

of a culture on human rights. The general object is to demonstrate that the creation and implementation of

public policies concerning the human rights education in formal education, from basic education is the

way to build a more peaceful and harmonious society, based on tolerance and respect for diversity.

Furthermore, this study is a reflection about the way by which this plan needs to be implemented in Basic

Education and its impact on social relations of the community. Therefore, it will use the quantitative

1 Estudante de Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus Três Lagoas. Integrante do Grupo de Pesquisa: Políticas Públicas e Direitos Fundamentais E-mail: [email protected] 2 Professora Assistente na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Mestre em Direito Difuso e Coletivo pela

Universidade Metropolitana de Santos. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Grande Dourados. Líder do

Grupo de Pesquisa: Políticas Públicas e Direitos Fundamentais E-mail: [email protected] URL:

http://lattes.cnpq.br/7426727277939545

Page 24: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE25

methodology of literature and documental research, in special the Plano Nacional de Educação em

Direitos Humanos.

KEY-WORDS: Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Basic Education. Public Policies.

INTRODUÇÃO A presente pesquisa se pauta na reflexão e investigação da implementação do Plano Nacional

de Educação em Direitos Humanos.Para tal mister, inicialmente será apresentado o conceito de educação em direitos humanos,

ainda, a sua importância. Na sequência, será apresentado e analisado o Plano Nacional de Educação em Direitos

Humanos no Brasil, enfatizando sua importância enquanto política pública voltada à formação de uma

cultura em direitos humanos em território nacional.Por derradeiro, será analisada a implementação da Educação em Direitos Humanos no Brasil,

em específico na Educação Básica. Assim, através de pesquisas bibliográficas esta pesquisa utilizou-se do método qualitativo, em que, considerando como base da pesquisa o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), pautou-se na análise dos objetivos que o PNEDH apresenta para a Educação Básica e a sua importância para uma educação em direitos humanos e, consequentemente, para o pleno exercício da cidadania.

I. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS A Educação em Direitos Humanos (EDH) tem ocupado papel de destaque na esfera nacional e internacional, devido às discussões acerca dos direitos humanos e da necessidade de efetivação de tais direitos em todo o planeta, fator essencial para a convivência harmônica entre os povos.

Fazendo uma retrospectiva histórica, merece destaque a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos (ONU, 2004), a Declaração das Nações Unidas sobre Educação e formação em matéria de Direitos Humanos (ONU, 2011) e o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH (BRASIL, 2006). Entretanto, o presente estudo amealha esforços na investigação acerca do Plano Nacional de Educação em Direito Humanos brasileiro, mas antes de disto insta traçar noções prévias sobre direitos humanos e educação em direitos humanos. Assim, inicialmente, conforme se extrai do preambulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) os direitos humanos devem ser vistos como:

(...) ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.(BRASIL, 1948)

Neste sentido, Flavia Piovesan reforça que:A efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais da exclusão. Isto é, a implementação dos direitos humanos requer a universalidade e indivisibilidade desses direitos, acrescidos do valor da diversidade (...). Ao lado do direito à igualdade, surge, também, como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. (PIOVESAN, 2006, p. 24)

Assim sendo, entende-se que para efetivação e significação dos direitos humanos, para além dos textos normativos, imprescindível políticas públicas de implementação de uma educação em direitos

Page 25: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE26

humanos. Conforme assevera Solon Eduardo Annes Viola:

Compreender a democracia e os direitos humanos como uma construção que se faz ao longo da história, e que tem diante de si o futuro, pressupõe atribuir à educação um lugar indispensável de formação em e para os direitos humanos, na medida em que, através do ato educativo, pode-se, senão transformar a sociedade, construir a cultura indispensável para esta transformação. Ou, como ensinava Paulo Freire (1995), se a educação por si só não muda o mundo, sem educação não se pode mudar a sociedade. (SOLON, 2010, p.22)

Podendo, desta forma, a educação em direitos humanos ser entendida como “uma educação para o reconhecimento do 'outro', para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural" (CANDAU, 2006, p. 234) Neste diapasão, no cenário nacional, surge em 2003 o primeiro Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e, em 2006, o segundo e ainda em vigor Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. No Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) em vigor, a educação em direitos humanos é definida como:

A educação em direitos humanos vai além de uma aprendizagem cognitiva, incluindo o desenvolvimento social e emocional de quem se envolve no processo ensino- aprendizagem (Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos – PMEDH/2005). A educação, nesse entendimento, deve ocorrer na comunidade escolar em interação com a comunidade local.Assim, a educação em direitos humanos deve abarcar questões concernentes aos campos da educação formal, à escola, aos procedimentos pedagógicos, às agendas e instrumentos que possibilitem uma ação pedagógica conscientizadora e libertadora, voltada para o respeito e valorização da diversidade, aos conceitos de sustentabilidade e de formação da cidadania ativa. (BRASIL, 2007, p. 29)

Ademais, o PNEDH se estrutura em cinco eixos: Educação Básica; Educação Superior; Educação não-formal; Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança Pública e Educação e Mídia – estabelecendo princípios, objetivos, diretrizes e linhas de ação, para implementação da educação em direitos humanos no Brasil. Consigne-se que o presente estudo será pautado na análise da implementação do PNDEH na Educação Básica – primeiro eixo do Plano.

II. A IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

A educação em direitos humanos durante muito tempo não integrava os currículos escolares das escolas brasileiras. Entretanto, como a sociedade atual tem passado por uma crise de valores éticos e morais, tanto nos setores públicos como privados, surgiu à necessidade de ensinar nas escolas princípios basilares acerca dos direitos humanos, tais como a igualdade e a dignidade humana. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos foi instituído para implementar uma educação em direitos humanos no Brasil. Entende-se que a implementação do mencionado plano desde a educação básica, é o caminho para construção de uma sociedade mais pacífica e solidária, pautada na tolerância e no respeito à diversidade, pois os direitos humanos quando ensinados desde a infância influenciam na formação social do individuo, na sua convivência escolar e na sociedade onde vive.

Assim, o PNEDH preleciona que a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais da educação básica e permear o currículo, a formação inicial e continuada dos profissionais da educação, o projeto político-pedagógico da escola, os materiais didático-pedagógicos, o modelo de gestão e a avaliação. Neste sentido:

Amplia-se, assim, a responsabilidade de cada um e de todos com os valores e as atitudes que cultivamos na escola. Isso demanda um posicionamento claro sobre o quê e o como se aprende nas instituições, partindo de um projeto pedagógico claro, até uma ação docente que resignifique o sentir, o pensar e o agir da infância em favor da humanização. (GORCZEVSKI e TAUCHEN, 2008, p. 73).

Page 26: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE27

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) vigente foi instituído em 2006, revogando o PNEDH de 2003, como um mecanismo que busca efetivar a Educação em Direitos Humanos (EDH) como política pública. A sua implementação visa, principalmente, difundir a cultura de direitos humanos no Brasil. Assim, ao sancionar este plano, o Estado brasileiro, nas suas esferas federais, estaduais e municipais se compromete a dar continuidade na implementação do PNEDH nos próximos anos, como política pública capaz de solidificar uma cultura de direitos humanos, que contribuirá para o aprimoramento do Estado Democrático de Direito. Ademais, “as políticas públicas são planejamentos coletivos e participativos dos governos, materializados nas ações concretas dos que fazem a gestão e a implantação dessas políticas”. (SILVA;TAVARES, 2013, p. 51). Dessa forma, em 2010, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), incentivou e apoiou as Secretarias de Educação dos Estados e do Distrito Federal para a elaboração de Planos de Ação de Educação em Direitos Humanos para a Educação Básica. Tal medida teve como objetivo inserir nas escolas públicas uma Educação em Direitos Humanos. É cediço que desenvolver os planos como políticas de Estado é de fundamental importância para uma EDH, pois os gestores assumem o Plano de Ação de EDH como uma política pública, que permeia o sistema de ensino em sua totalidade. Neste interim, os processos de formação, a definição dos conteúdos das seleções para ingresso na carreira, o currículo, a seleção e produção de material didático se desenvolvem na ótica dos direitos humanos. Além disso, ao ser uma política de Estado, tem perspectiva de maior permanência e enraizamento nos sistemas de ensino (SILVA; TAVARES, 2013, p. 55). Em uma pesquisa desenvolvida, no período de 2010 a 2011, pelas pesquisadoras Aida Maria Monteiro Silva e Celma Tavares, foram analisados vinte Planos de Ação dos Estados e Distrito Federal, em todas as regiões do país, na seara dos Direitos Humanos. Assim, foi observado que na metodologia de trabalho na área de EDH proposta pelas Secretarias de Educação, prioriza-se uma política voltada a modificar o sistema de ensino. São utilizados também projetos individuais por escola e projetos desenvolvidos por outras instituições externas às secretarias. Na referida pesquisa foi observado que a prioridade das ações dos Planos é a formação. Assim, todos os Planos analisados incluem nas suas ações, o processo de formação dos professores e outros profissionais da educação. Por fim, a pesquisa conclui que:

(...) no nível de proposições, existe mobilização das Secretarias de Educação, iniciada para desenvolver os Planos de Ação em Educação em Direitos Humanos, e a tendência de transformar projetos pontuais em políticas públicas nos sistemas de ensino, o que parece ser um grande avanço para a área. (SILVA;TAVARES, 2013, p. 57)

É sabido que o PNEDH estabelece que sua aplicação na Educação Básica se dê por meio da produção de um conhecimento sistematizado sobre os direitos humanos. Nessa perspectiva, o PNEDH dispõe:

(...) A Escola é um espaço social privilegiado onde se definem a ação institucional pedagógica e a prática e vivência dos direitos humanos. Nas sociedades contemporâneas, a escola é local de estruturação de concepções de mundo e de consciência social, de circulação e de consolidação de valores, de promoção da diversidade cultural, da formação para a cidadania, de constituição de sujeitos sociais e de desenvolvimento de práticas pedagógicas.” (BRASIL, 2007, p. 31).

Destarte, para a implementação da educação em direitos humanos na educação básica, o PNEDH estabelece 27 ações programáticas a saber:

1. Propor a inserção da educação em direitos humanos nas diretrizes curriculares da educação básica;

2. Integrar os objetivos da educação em direitos humanos aos conteúdos, recursos, metodologias e formas de avaliação dos sistemas de ensino;

3. Estimular junto aos profissionais da educação básica, suas entidades de classe e associações, a reflexão teórico-metodológica acerca da educação em direitos humanos;

4. Desenvolver uma pedagogia participativa que inclua conhecimentos, análises críticas e habilidades para promover os direitos humanos;

5. Incentivar a utilização de mecanismos que assegurem o respeito aos direitos humanos e sua

Page 27: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE28

prática nos sistemas de ensino;

6. Construir parcerias com os diversos membros da comunidade escolar na implementação da educação em direitos humanos;

7. Tornar a educação em direitos humanos um elemento relevante

para a vida dos(as) alunos(as) e dos(as) trabalhadores(as) da educação, envolvendo-os(as) em um diálogo sobre maneiras de aplicar os direitos humanos em sua prática cotidiana;

8. Promover a inserção da educação em direitos humanos nos processos de formação inicial e continuada dos(as) trabalhadores(as) em educação, nas redes de ensino e nas unidades de internação e atendimento de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, incluindo, dentre outros(as), docentes, não-docentes, gestores (as) e leigos(as);

9. Fomentar a inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiências, entre outros, bem como todas as formas de discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada dos(as) trabalhadores(as) da educação para lidar criticamente com esses temas;

10. Apoiar a implementação de projetos culturais e educativos de enfrentamento a todas as formas de discriminação e violações de direitos no ambiente escolar;

11. Favorecer a inclusão da educação em direitos humanos nos projetos político- pedagógicos das escolas, adotando as práticas pedagógicas democráticas presentes no cotidiano;

12. Apoiar a implementação de experiências de interação da escola com a comunidade, que contribuam para a formação da cidadania em uma perspectiva crítica dos direitos humanos;

13. Incentivar a elaboração de programas e projetos pedagógicos, em articulação com a rede de assistência e proteção social, tendo em vista prevenir e enfrentar as diversas formas de violência;

14. Apoiar expressões culturais cidadãs presentes nas artes e nos esportes, originadas nas diversas formações étnicas de nossa sociedade;

15. Favorecer a valorização das expressões culturais regionais e locais pelos projetos político-pedagógicos das escolas;

16. Dar apoio ao desenvolvimento de políticas públicas destinadas a promover e garantir a educação em direitos humanos às comunidades quilombolas e aos povos indígenas, bem como às populações das áreas rurais e ribeirinhas, assegurando condições de ensino e aprendizagem adequadas e específicas aos educadores e educandos;

17. Incentivar a organização estudantil por meio de grêmios, associações, observatórios, grupos de trabalhos entre outros, como forma de aprendizagem dos princípios dos direitos humanos, da ética, da convivência e da participação democrática na escola e na sociedade;

18. Estimular o fortalecimento dos Conselhos Escolares como potenciais agentes promotores da educação em direitos humanos no âmbito da escola;

19. Apoiar a elaboração de programas e projetos de educação em direitos humanos nas unidades de atendimento e internação de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, para estes e suas famílias;

20. Promover e garantir a elaboração e a implementação de programas educativos que assegurem, no sistema penitenciário, processos de formação na perspectiva crítica dos direitos humanos, com a inclusão de atividades profissionalizantes, artísticas, esportivas e de lazer para a população prisional;

21. Dar apoio técnico e financeiro às experiências de formação de estudantes como agentes promotores de direitos humanos em uma perspectiva crítica;

22. Fomentar a criação de uma área específica de direitos humanos, com funcionamento integrado, nas bibliotecas públicas;

23. Propor a edição de textos de referência e bibliografia comentada, revistas, gibis, filmes e outros materiais multimídia em educação em direitos humanos;

24. Incentivar estudos e pesquisas sobre as violações dos direitos humanos no sistema de ensino

Page 28: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE29

e outros temas relevantes para desenvolver uma cultura de paz e cidadania;

25. Propor ações fundamentadas em princípios de convivência, para que se construa uma escola livre de preconceitos, violência, abuso sexual, intimidação e punição corporal, incluindo procedimentos para a resolução de conflitos e modos de lidar com a violência e perseguições ou intimidações, por meio de processos participativos e democráticos;

26. Apoiar ações de educação em direitos humanos relacionadas ao esporte e lazer, com o objetivo de elevar os índices de participação da população, o compromisso com a qualidade e a universalização do acesso às práticas do acervo popular e erudito da cultura corporal;

27. Promover pesquisas, em âmbito nacional, envolvendo as secretarias estaduais e municipais de educação, os conselhos estaduais, a UNDIME e o CONSED sobre experiências de educação em direitos humanos na educação básica. (BRASIL, 2007, p.31-35)

Neste sentido, a Escola precisa desenvolver práticas pedagógicas que ajudem os estudantes e profissionais da educação “(...) a conviverem com respeito ao outro nas suas diferenças e diversidades de qualquer natureza, no exercício permanente da construção do trabalho coletivo e participativo.” (SILVA, 2012, p. 247)

Dessa forma, a EDH deve ser implementada nas escolas de educação básica com o intuito de que os alunos consigam compreender a importância do respeito aos direitos humanos e os solidifiquem com a valorização da tolerância, solidariedade e paz, tanto no ambiente escolar quanto no convívio social. Neste ínterim, segundo as Diretrizes Nacionais, a educação em direitos humanos tem por base os seguintes princípios:

Art. 3º - A Educação em Direitos Humanos, com a finalidade de promover a educação para a mudança e a transformação social, fundamenta-se nos seguintes princípios: I - dignidade humana; II - igualdade de direitos; III - reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades; IV - laicidade do Estado; V - democracia na educação; VI - transversalidade, vivência e globalidade; e VII - sustentabilidade socioambiental. (BRASIL, s⁄p, 2012).

Contudo apesar da vigência do PNEDH, o contexto nacional tem-se caracterizado por desigualdades e pela exclusão econômica, social, étnico-racial, cultural e ambiental, pois atualmente o Estado não tem aplicado muitas políticas públicas na seara dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Tal situação somente será alterada quando os cidadãos brasileiros souberem exercer adequadamente sua cidadania democrática, e para tal, é imprescindível uma EDH. Para que em meio a tantos conflitos e injustiças, as pessoas saibam defender, respeitar e valorizar esses direitos.

A importância da implementação do PNEDH na Educação Básica consiste no fato de que o mesmo visa difundir a cultura dos direitos humanos, que para serem concretizados precisam ser conhecidos e estudados desde o início da escolarização. Preleciona o mencionado plano, que a Educação em Direitos Humanos deve ocorrer na comunidade escolar em interação com a comunidade local, já que grande parte do que as crianças aprendem sobre o assunto não é ensinado de forma sistemática e consciente. Isto é, a Educação em Direitos Humanos, não se restringe somente a ensiná-los, de forma rígida e incontestável, mas despertar nos alunos sua consciência política.

A Educação em Direitos Humanos busca fazer com que o indivíduo exerça sua cidadania. Deste modo, devem ser priorizadas metodologias e estratégias de ensino que contribuam para o estudante:

(...) pensar, refletir sobre a realidade, problematizar e construir o seu próprio conhecimento, fazendo comparações de concepções, a crítica, desenvolvendo o diálogo permanente no processo da elaboração das informações, e como forma de mediar conflitos inerentes a qualquer prática social. Além disso, desenvolver estratégias pedagógicas que estimulem os/as estudantes a apresentarem proposições para ações efetivas. (SILVA, 2012, p. 249)

Para que um cidadão seja crítico, criativo e saiba respeitar, promover e valorizar a diversidade, é necessário um processo formativo que o torne capaz de reconhecer a pluralidade e alteridade da comunidade que o cerca. Para que a escola possa contribuir para a educação em direitos humanos, ela precisa garantir aos membros da comunidade escolar: dignidade, igualdade de oportunidades, exercício da participação e da autonomia.

Ademais, a EDH na Educação Básica deve buscar disseminar os direitos humanos, ensinado nas escolas, a todos os espaços sociais. Uma vez que, a existência de tais direitos não significa nada quando estes não são conhecidos por aqueles que o possuem.

Page 29: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE30

A educação em direitos humanos possui um caráter coletivo, democrático e participativo, portanto, a escola que a pratica precisa ser constituída por indivíduos que propaguem, na prática, o entendimento mútuo, o respeito e a responsabilidade. Logo, em uma escola que propague os direitos humanos, deve-se combater assiduamente qualquer tipo de discriminação ou intolerância.

Destarte, a EDH deve pautar-se em três esferas principais: a) informação e conhecimento sobre direitos humanos e democracia; b) valores que sustentam os princípios e a normativa dos direitos humanos e atitudes coerentes com eles; c) capacidades para pôr em prática com eficácia os princípios dos direitos humanos e da democracia na vida diária. (SILVA;TAVARES, 2013, p. 55)

Dessa forma, a Escola deve educar seus alunos para que eles entendam a importância do respeito aos direitos humanos, evidenciando o seu caráter transversal e universal, pois os direitos humanos representam as condições mínimas necessárias para uma vida digna e são exigíveis em qualquer lugar do planeta. A educação em Direitos Humanos não pode dar-se isoladamente, precisa ser uma educação complementar, em todos os níveis de ensino. Ademais, é importante que as Escolas, ao ensinarem direitos humanos aos alunos, mostrem a eles que apesar dos mencionados direitos serem inerentes à própria natureza humana seu reconhecimento e proteção é o resultado de um longo processo histórico, que ocorreu de forma lenta e gradual, que atravessou várias fases e ainda hoje sofre alguns retrocessos, pois em muitos lugares sua evolução encontra-se na primeira fase. Para tal, é necessária a produção de material didático como livros, periódicos, informativos, manuais e cartilhas sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre outros temas. Ademais, a Escola deverá promover oficinas pedagógicas, debates, círculos de cultura e de lazer. Nesse sentido preleciona BENEVIDES:

[...] Esse processo educativo deve, ainda, visar à formação do cidadão participante, crítico, responsável e comprometido com a mudança daquelas práticas e condições da sociedade que violam ou negam os direitos humanos. Mais ainda, deve visar à formação de personalidades autônomas, intelectual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de julgar, escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos. (BENEVIDES, 2000).

Neste interim, as escolas que buscam uma EDH devem valorizar as diversas manifestações culturais, de cunho artístico, religioso e desportivo dos variados grupos que compõem a sociedade brasileira, pois dessa forma incentivam os alunos a perceberem o quanto nossa sociedade é diversa e que os direitos humanos também buscam preservar as manifestações culturais de todos os povos.

A sociedade brasileira carece, em sua maioria, de uma maior tolerância ao próximo. Assim, a EDH desde a Educação Básica contribui na formação do indivíduo para que ele aprenda, desde logo, a respeitar e valorizar as diferenças (étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras). Como preleciona Freire (1988), a educação é um instrumento humanizador, é um processo que vai ao encontro da necessidade da humanidade de 'ser mais'.

Nesta conjuntura, o sentido da Educação em Direitos Humanos, nos dias de hoje, é a Educação em Direitos Humanos para a Paz – concebida em sua tripla finalidade de informar, formar e transformar – para a construção de uma nova cultura, “aspiração antiga na sociedade e na história da educação, assimilada e integrada hoje transversalmente por algumas reformas educacionais em todo o mundo” (RAYO, 2004, p. 86).

Um dos objetivos do PNDEH é “balizar a elaboração, implementação, monitoramento, avaliação e atualização dos Planos de Educação em Direitos Humanos dos estados e municípios” (BRASIL, 2007, p. 27). De acordo com SILVA (2011, p. 6-8), quando analisamos a implementação de tal plano na educação básica, é possível observar a inserção dos conteúdos de direitos humanos nas escolas, ainda que, na maioria dos Estados, eles sejam trabalhados em forma de projetos e ações pontuais, sem estar articulados com o currículo.

Acresça-se que o Brasil teve um desenvolvimento econômico expressivo nas últimas décadas e por ser um verdadeiro celeiro de multiculturalismo, há flagrante diversidade cultural e racial, que possibilita uma ampla discussão na seara da EDH. Pois é cediço ser este um dos caminhos para uma sociedade mais igualitária composta por indivíduos que possuem respeito e valorização em relação ao

Page 30: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE31

próximo.Todavia, esse desenvolvimento econômico não tem sido refletido em desenvolvimento social,

havendo muitas mazelas sociais e desrespeito a direitos humanos fundamentais, sendo assim imprescindível a EDH para efetivar cidadania, piso vital mínimo, solidariedade, respeito à diversidade, tolerância e organização comunitária e social pacífica, ou seja, uma cultura em direitos humanos e consequentemente, a construção de uma cultura de paz, que precisa ser cultivada e disseminada.

É sabido que a EDH precisa ser promovida em suas três dimensões, conforme dispõe o PNEDH:

a) conhecimentos e habilidades: compreender os direitos humanos e os mecanismos existentes para a sua proteção, assim como incentivar o exercício de habilidades na vida cotidiana; b) valores, atitudes e comportamentos: desenvolver valores e fortalecer atitudes e comportamentos que respeitem os direitos humanos; c) ações: desencadear atividades para a promoção, defesa e reparação das violações aos direitos humanos. (BRASIL, 2007, p. 32).

Destarte, a Educação em Direitos Humanos na Educação Básica se dá por meio da igualdade de acesso, permanência e inclusão de todos na educação infantil, ensino fundamental e médio, além do fomento da consciência social crítica dos alunos. Portanto, é necessário concentrar esforços, desde a infância, em uma EDH, com atenção especial às pessoas e segmentos sociais historicamente excluídos e discriminados. Pois, é cediço que a tarefa dos educadores é não permitir que as crianças tenham seus direitos humanos violados dentro da própria escola, uma vez que, muitas delas vivem situações de discriminação, exploração e violência na sociedade ou até mesmo na própria família.

Assim, com uma EDH, o exercício da cidadania é um dos seus melhores resultados. Ademais, os cidadãos, quando conscientes de seus direitos tem maior discernimento para garantir sua eficácia e demandar pelo surgimento de novos direitos que ainda poderão surgir, como afirma BOBBIO (1992, p. 6): “Ainda que fossem necessários, os direitos não nascem todos de uma vez.”

Por fim, a Educação para os Direitos Humanos requer modificações que atinjam todo o conjunto da estrutura escolar, seu sistema organizacional, formação de professores e profissionais da educação e mudanças no ambiente escolar. Assim, seu objetivo primordial será alcançado, qual seja o de tornar os alunos cidadãos ativos e conscientes de seus direitos, melhorando a sociedade em que vivem, tornando-a, em longo prazo, humanitária e solidária, composta por indivíduos que valorizem as diferenças sociais e culturais.

CONCLUSÃO De todo o exposto, pode-se chegar algumas premissas: a importância da educação em direitos humanos; seu papel de formação de uma sociedade pautada na cultura de direitos humanos e a necessidade de que seja implementada desde a primeira fase de escolarização e se estenda por toda a vida do indivíduo. Constatou-se que a educação em direitos humanos, surgiu historicamente sob um contexto fruto da necessidade da paz planetária, após um período de barbárie e sob a perspectiva de evitar que a humanidade tenha direitos humanos fundamentais violados. No cenário nacional um dos instrumentos mais significativos para tal mister é o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, que traça uma política pública de implementação da educação em direitos humanos em diferentes segmentos, ou seja, na educação formal (básica e superior), na educação não-formal, pelos operadores da justiça e pela mídia. O enfoque do presente estudo, todavia, foi a implementação do PNEDH na educação básica e, em tal segmento pode-se observar que o ensino, as discussões e reflexões, o acesso ao conhecimento historicamente construído sobre o tema, deve começar desde o início da escolarização, para que realmente surta os efeitos no sentido da construção de um verdadeiro cidadão, ativo, participativo, informado e com condições de aplicar, exercer e exigir o cumprimento dos direitos humanos para si e para todos os que o circundam. Nesta esteira, a educação formal, propiciada na educação básica, que no Brasil comporta a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, tem papel primordial e significativo na construção de uma sociedade justa, solidária, pacífica e tolerante, ou seja, a educação em direitos humanos na educação básica tem o condão de informar e formar o homem rumo à cultura em direitos humanos sendo imprescindível para a construção de uma consciência coletiva em direitos humanos.

Page 31: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE32

Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BENEVIDES, Maria Victoria. Educação em Direitos Humanos: de que se trata? São Paulo, 2000. Disponível em: http://www.hottopos.com/convenit6/victoria.htm. Acesso em 13 de agosto de 2015.BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos: 2007. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. _______. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília: MJ/Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, 1998.

_______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH -3)/Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Brasília: SEDH/PR, 2010.

_______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais – Brasília: Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2013.

_______. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP n. 1, de 30 de maio de 2012. Estabelece Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 maio 2012. Seção 1, p. 48.

CANDAU, Vera M. Educação em Direitos Humanos: políticas curriculares. In: LOPES, Alice; MACEDO, Elizabeth (Orgs.). Políticas de currículo em múltiplos contextos. São Paulo: Cortez, 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988.

GORCZEVSKI, Clovis; TAUCHEN, GIONARA. Educação, Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 66-74, jan./abr. 2008.

PIOVESAN, F. Concepção contemporânea de direitos humanos. In: HADDAD, S.; GRACIANO, M. A educação entre os direitos humanos. Campinas: Autores Associados; São Paulo: Ação Educativa, 2006. p. 11-42.

RAYO, José Tuvilla. Educação em direitos humanos: rumo a uma perspectiva global. Porto Alegre: Artmed, 2004.

SILVA, Aida Maria Monteiro. Preparação, implementação e impacto do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Recife, 2011. Mimeo.

SILVA, Aida Maria Monteiro. Didática e Práticas Pedagógicas de Direitos Humanos no Cotidiano Escolar: Desafios e Perspectivas. Junqueira&Marin Editores. XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP – Campinas: 2012

_______; TAVARES, Celma. Educação em direitos humanos no Brasil: contexto, processo de desenvolvimento, conquistas e limites. Educação (Porto Alegre, impresso), v. 36, n. 1, p. 50-58, jan./abr. 2013.

VIOLA, Solon Eduardo Annes . Políticas de educação em direitos humanos. In: SILVA, Ainda Maria Monteiro; TAVARES, Celma. Política e fundamentos da educação em direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2010. p.15-40.

Page 32: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE33

BATISTA, Jéssica Holanda de Medeiros; MUNIZ, Iranice Gonçalves; LUCENA, Mara Ilka Holanda Medeiros. Políticas Públicas e Educação em Direitos Humanos: O PNEDH e o Caso Brasileiro. 2015.

BARREIRO, Guilherme Scodeler de Souza; FARIA, Guilherme Nacif de; SANTOS, Raíssa Naiady Vasconcelos. Educação em Direitos Humanos: Uma Tarefa Possível e Necessária. 2011.

MERCADO, Luis Paulo Leopoldo; NEVES, Yára Pereira da Costa e Silva. A escola como espaço dos direitos humanos. Educação em Direitos Humanos: Diálogos interdisciplinares / (Org.) Mara Rejane Alves Nunes Ribeiro; Getulio Couto Ribeiro – Maceió: EDUFAL, 2012.

Page 33: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE34

DIREITO À EDUCAÇÃO BÁSICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE

A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 59

1Valdir Bento Souto

2Washington Cesar Shoiti Nozu

3Sílvia Leiko Nomizo

Resumo: O presente estudo insere-se no conjunto de investigações jurídicas que tem como foco o direito à

da educação. Delimitando a temática, tem como objetivo discutir o direito à educação básica no Brasil,

enfatizando a ampliação deste direito com a Emenda Constitucional n. 59, de 11 de novembro de 2009.

Trata-se de um estudo exploratório organizado por meio de pesquisa documenta e bibliográfica, tendo,

portanto, com base, fontes primárias e secundárias para a construção do conhecimento. Os resultados

apontam que o direito à educação no Brasil foi potencializado a partir da Constituição Federal de 1988 e da

legislação regulamentadora, caminhando em prol de uma educação pública, gratuita e universal a todos os

cidadãos brasileiros. Ainda, configurada a partir dos compromissos internacionais dispostos na

Declaração de Jomtien (1990) e de Dakar (2000), a Emenda Constitucional n. 59, amplia a obrigatoriedade

da educação dos 04 (quatro) aos 17 (dezessete) anos, abarcando, assim, para além do ensino fundamental

obrigatório, a educação infantil e o ensino médio.

Palavras-chave: Direito à Educação. Educação Básica. Cidadania. Emenda Constitucional n. 59.

Abstract: This study is part of the set of legal research that focuses on the right to education. Delimiting

the theme, aims to discuss the right to basic education in Brazil, emphasizing the extension of this right to

the Constitutional Amendment. 59 of 11 November 2009. It is an exploratory study organized through

documentary and bibliographic research, and therefore based, primary and secondary sources for the

construction of knowledge. The results show that the right to education in Brazil was boosted from the

Federal Constitution of 1988 and regulatory legislation, moving towards a public education, free and

universal to all Brazilian citizens. Still, configured from the international commitments of the Declaration

of Jomtien (1990) and Dakar (2000), Constitutional Amendment n. 59, extends compulsory education of

four (04) to seventeen (17) years, covering thus beyond the compulsory elementary education, early

childhood education and high school.

Keywords: Right to Education. Basic Education. Citizenship. Constitutional Amendment n. 59.

1Bacharel Direito pelas Faculdades Integradas de Paranaíba. Bacharel em Medicina Veterinária pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp/Araçatuba). 2Doutorando e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Grande Dourados. Especialista em Filosofia e Direitos Humanos pela AVM Faculdades Integradas. Especialista em Educação, Licenciado em Pedagogia e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Docente dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu da Faculdade de Tecnologia do Vale do Ivaí e da Faculdade Iguaçu.3Mestranda em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília. Especialista em Direitos Humanos e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Docente dos Cursos de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e das Faculdades Integradas de Paranaíba.

Page 34: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE35

Introdução

A educação é um direito humano previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Trata-se de um direito essencial que visa à formação intelectual, moral e cidadã do indivíduo. Além disso, é

elemento basilar para o desenvolvimento social e econômico de um país.

Desta feita, torna-se relevante compreender o direito à educação no Brasil, considerando que a

educação, o conhecimento e o esclarecimento podem fomentar a efetivação de outros tantos direitos

fundamentais à promoção e proteção da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, o objetivo geral deste artigo é compreender o direito à educação básica no Brasil,

enfatizando a ampliação deste direito com a Emenda Constitucional n. 59, de 11 de novembro de 2009.

A metodologia adotada no trabalho compreende o estudo documental (Constituição Federal de

1988, Emenda Constitucional n. 59, Lei n. 12.796/2013) e estudo bibliográfico (autores que discutem o

direito à educação).

Em suma, este trabalho visa à incitação da compreensão do direito à educação básica no Brasil,

com o intuito de estimular o leitor a questionar, agir, discutir, refletir e reivindicar mudanças necessárias da

política educacional brasileira para efetivação do direito à educação, pois se trata deum direito

fundamental ao desenvolvimento do indivíduo, da sociedade e do país.

1. O Direito à Educação na Constituição Federal de 1988

A atual Carta Magna do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, recebeu a alcunha de

Constituição Cidadã, por ser considerada a mais completa e preocupada em garantir o acesso à cidadania

de todos brasileiros. Talvez recebeu esta denominação como resposta à “Ditadura Militar” (que teve

duração de 20 anos), que privava os cidadãos de várias garantias e necessitou atravessar por uma longa

trajetória até à eleição indireta do dia 15 de janeiro de 1985 (TEIXEIRA, 2008).

Esta sétima Constituição brasileira foi elaborada por 558 constituintes das 2 casas (Senadores e

Deputados Federais) durante um período de 20 meses (02 de fevereiro de 1987 e terminou em 05 de

outubro de 1988), sob à Presidência de José Sarney que objetivava proclamar um novo texto constitucional

devido o momento político em que o país atravessava.

Como não poderia ser diferente, a educação recebeu destaque em vários artigos e acoplando ao

momento histórico mundial em sua escrita, relacionando-a entre os direitos sociais e garantias individuais.

A Constituição de 1988 é considerada como uma das mais avançadas do mundo, colocando em

pauta a consagração e proteção dos Direitos Sociais, entre eles o Direito à Educação. No artigo 6º desta

Carta, pela primeira vez numa Constituição brasileira, nota-se à Educação como Direito Social, como um

dos Princípios Fundamentais: “Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o

trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a

assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Para exteriorizar a importância deste direito social, Dallari (2004, p. 66) aponta que:

A educação é um processo de aprendizagem, ao mesmo tempo em que favorece e propicia

Page 35: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE36

o desenvolvimento da pessoa humana. Por isso é reconhecida como Direito Fundamental de todos e deve ser assegurada a todos em condições de igualdade, o que é benéfico para o indivíduo bem como para toda sociedade.

É evidente a preocupação da Constituição Federal de 1988 com o direito à educação. O mesmo é

tratado no Capítulo III, Da Educação, da Cultura e do Desporto, junto à Seção I, Da Educação, que

compreende do artigo 205 ao 214.

Atenta-se Bulos (2008, p. 1305) que:

Pela Carta de 1988, a educação qualifica-se como o processo formal, regular ou escolar. Essa é a regra. Porém, há momentos em que se abre espaço à educação informal. Assim, há dois regimes jurídicos da educação na Constituição da República; um formal, estatuído no Capítulo III do Título VIII; e o outro informal, que fica de forma do regime escolar normatizado no referido capítulo. Como exemplo do último, temos a educação ambiental (art. 225, VI) a eliminação do analfabetismo e a universalização da escola fundamental (art. 60 do ADCT). Decerto que o Texto Maior não poderia ficar limitado ao regime jurídico da educação formal, porque a escolarização é um tipo de educação, e não o único. Mas no art. 205, a palavra educação significa educação escolarizada, isto é, o processo formal, regular ou escolar de ensino.

O artigo 205 aponta os titulares do direito à educação (todos), os responsáveis pela sua realização

(Estado e família com a colaboração da sociedade) e os objetivos que a educação enseja (pleno

desenvolvimento humano; formação cidadã e para o trabalho). In verbis:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988).

Vale-se destacar, nas palavras de Teixeira (2008, p. 162), os princípios especificadamente

voltados à educação, indicados no artigo 206:

a obediência aos princípios da igualdade de condições para acesso e permanência na escola; a liberdade para aprender, ensinar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas e a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; a valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; a gestão democrática do ensino público, na forma da lei; garantia de padrão de qualidade;

O artigo 207 tem como foco o ensino superior, estabelecendo a autonomia didático-científica, na

administração e na gestão financeira e patrimonial das universidades e tornou indissociáveis o ensino, a

pesquisa e extensão (BRASIL, 1988).

Por sua vez, o artigo 208 detalha as garantias constitucionais do direito à educação, como dever

Page 36: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE37

do Estado, assegurar educação básica gratuita, aos brasileiros com idade entre 4 e 17 anos. Veja-se:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009)

II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996)

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;

VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009) (BRASIL, 1988).

O artigo 209 assegura a livre participação da iniciativa privada na prestação de serviços

educacionais: “O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das

normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”

(BRASIL, 1988).

Já o artigo 210 diz respeito ao conteúdo mínimo a ser desenvolvidos no ensino fundamental

ministrado em língua portuguesa com o intuito de assegurar a formação básica comum e respeito aos

valores culturais e artísticos, nacionais e regionais (BRASIL, 1988).

Os artigos 211 e 212 tratam da competência legislativa da União, Estados, Distrito Federal e

Municípios e como organizarão em regime de colaboração seus regimes de sistema de ensino e as

porcentagens mínima a serem aplicadas anualmente da receita resultante de impostos, compreendida a

proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino (BRASIL, 1988).

E o artigo 213 dispõe acerca do destino dos recursos públicos às escolas públicas e ainda podendo

ser destinados a bolsas de estudos para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que

demonstrarem insuficiência de recursos e atividades de pesquisa de extensão e fomento à inovação

realizada por universidades e/ou por instituições de educação profissional e tecnológica poderão receber

apoio financeiro do Poder Público (BRASIL, 1988).

E ainda, o artigo 214 fala do plano nacional de educação com os objetivos, metas, etapas e

estratégias para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis. Parte do

texto original deste artigo foi alterada pela Emenda Constitucional nº 59 de 2009 que serviu de ampliação

do direito à educação, que será dado um aparte especial a seguir.

2. Emenda Constitucional n. 59: ampliação do direito à educação básica

Page 37: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE38

Segundo o dicionário, a palavra básico significa: “adj. Que serve de base; fundamental;

essencial; basilar, simples, sem sofisticação” (FERREIRA, 2000, p. 91). Ou seja, nessa percepção

entende-se a educação básica como os primeiros passos fundamentais na formação do sujeito no ensino

escolar, fornecendo meios para a progressão dos estudantes, para que, posteriormente, tenham sucesso no

ensino superior ou em outras modalidades educacionais.

Nesse mesmo diapasão, Cury (2002, p.180) define a educação básica como alicerce na cadeia do

ensino. Pois é ela que servirá de coluna de sustentação para a formação educacional do indivíduo. Veja-se:

A própria etimologia do termo base nos confirma esta acepção de conceito e etapas conjugadas sob um só todo. Base provém do grego básis, e ós e significa, ao mesmo tempo, pedestal, suporte, fundação e andar, pôr em marcha, avançar. A educação básica é um conceito mais do que inovador para um país que, por séculos, negou, de modo elitista e seletivo, a seus cidadãos o direito ao conhecimento pela ação sistemática da organização escolar. Resulta daí que a educação infantil é a base da educação básica, o ensino fundamental é o seu tronco e o ensino médio é seu acabamento, e é de uma visão do todo como base que se pode ter uma visão consequente das partes.

Outra menção importante que Cury (2002) aponta é a necessidade de acesso de todos à educação

básica. Inclusive as pessoas com necessidades educacionais especiais, bem como a socialização dos

afrodescendentes na desconstrução de estereótipos de preconceitos e discriminações, dando a eles

oportunidades em grau de igualdade e a busca por uma nova consciência da sociedade.

Mas o conceito de educação básica também incorporou a si, na legislação, a diferença como direito. A legislação, mercê de amplo processo de mobilização, de disseminação de uma nova consciência, fez a crítica às situações próprias de minorias discriminadas e buscou estabelecer um princípio ético mais elevado: a ordem jurídica incorporou o direito à diferença. A educação básica, por ser um momento privilegiado em que a igualdade cruza com a equidade, tomou a si a formalização legal do atendimento a determinados grupos sociais, como as pessoas portadoras de necessidades educacionais especiais, como os afrodescendentes, que devem ser sujeitos de uma desconstrução de estereótipos, preconceitos e discriminações, tanto pelo papel socializador da escola quanto pelo seu papel de transmissão de conhecimentos científicos, verazes e significativos. (CURY, 2008, p. 300)

Esta ideia do que seja o básico da educação foi alvo de discussões nas Declarações de Jomtien

(1990) e de Dakar (2000) em que o Brasil participou e se comprometeu a dar prioridade ao básico,

firmando compromisso para melhorar a qualidade da aprendizagem das crianças e dos adolescentes. Estas

declarações trouxeram consequências no nosso ordenamento com a aprovação da Emenda Constitucional

n. 59 e da Lei 12.796/2013.

De qualquer modo, cabe refletir que a ideia de básico na educação está profundamente relacionada

à proposta de desenvolvimento econômico de um país. Assim, por exemplo, o que é considerado “básico”

na Noruega é substancialmente diferente do “básico” da Somália. Obviamente, a noção de básico articula-

se ao índice de desenvolvimento humano de um país, já que o tempo de escolarização da população é um

dos critérios de sua melhoria.

A Emenda Constitucional n. 59, que teve como relator o Deputado Rogério Marinho do PSB do

Rio Grande do Norte, aprovada pelo Congresso Nacional em 11 de novembro de 2009, expandiu o direito à

educação básica no Brasil e acrescentou uma nova redação de grande relevância a vários artigos ligados ao

Page 38: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE39

assunto. Com maior importância a ampliação obrigatoriedade da educação de 4 a 17 anos de idade e que

antes era apenas para a idade de ensino fundamental (dos 6 aos 14 anos) e não abrangia a pré-escola e o

ensino médio.

Esta nova redação constitucional teve a inserção de três grandes diretrizes a favor da educação

obrigatória e gratuita, que são: a equidade, a universalização e a garantia de padrão de qualidade. Dessa

forma, os recursos estatais serão direcionados de acordo com o processo de elaboração dos planos de

educação feito pelo Plano Nacional de Educação – PNE, com suas metas e estratégias.

O art. 1º da EC nº 59/2009 alterou os incisos I e VII do art. 208 da CF/88, mudando a disposição

referente ao cerne fundamental do direito à educação. É importante observar, com a referida Emenda, a

ampliação da obrigatoriedade da educação básica, o que inexistia no texto constitucional de 1988, como

era constatado:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; [...] VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Posteriormente, com a alteração de 2009 em seu artigo 1º, o novo texto constitucional objetivou a

efetivação do direito ao ensino, principalmente na esfera da educação infantil e do ensino médio,

conferindo a eles uma grande eficácia jurídica. E que ficou desta forma:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; [...]VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Já o art. 2º desta Emenda alterou o § 4º do art. 211 da Constituição Federal de 1988, no qual na

organização de seus sistemas de ensino, não ficará, apenas, a cargo de Estados e dos Municípios e sim em

função de todas as três esferas (União, Estados e Distrito Federal e Municípios), que juntos definirão

formas de colaboração, objetivando a assegurar a universalização do ensino obrigatório. Este parágrafo

passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 211. § 4º da CF: Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.

O assunto sobre a distribuição de recursos públicos na prioridade ao atendimento das

necessidades do ensino obrigatório determinou uma alteração no § 3º do art. 212 da CF/88, no qual o art. 3º

da EC 59/2009 acrescentou ao texto original no que se refere à universalização, a garantia de padrão de

Page 39: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE40

qualidade e equidade. Passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 212, § 3º CF: A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação.

Destarte, a promulgação da EC 59/2009 gerou uma discórdia em relação à creche e à pré-escola.

Embora tenha havido progressos na Constituição Federal de 1988, atravessando pela LDB (Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional), pelo PNE (Plano Nacional de Educação) e pelas Diretrizes

Curriculares Nacional da Educação Infantil. Esta não estabelece a obrigatoriedade da educação infantil de

0 a 3 anos em creches e pré-escolas, considerando as dificuldades de recursos de muitos municípios em

ampliar a oferta de vagas nestes locais, inclusive sua melhoria.

Vale ressaltar o preciosismo atribuído ao artigo 214, caput, da CF/88, pelo art. 4º da Emenda

Constitucional nº 59/2009 com o intuito de definição para que o PNE estabeleça ações do Poder Público

em todas as esferas (União, Estados e Distrito Federal e Municípios). Ou seja, o legislador espera que haja

uma cooperação com ações integradas de todos os entes da Federação para o desenvolvimento do ensino.

E ainda estabelece o prazo do plano nacional de educação de duração plurianual para decenal, importante ,

no objetivo de articular o sistema nacional de educação. O caput do art. 214 da CF passou a vigorar com a

seguinte escrita acrescido do inciso VI:

Art. 214 da CF: A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:[...]VI -estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.

O art. 5º, da EC 59/2009 alterou o texto do art. 76 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias), com acréscimo do § 3º. Importante observar os percentuais dos anos 2009, 2010 e 2011 para

resultado de cálculo dos recursos para manutenção e desenvolvimento da educação e ainda da

desvinculação da arrecadação da União.

Art. 76: É desvinculado de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2011, 20% (vinte por cento) da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais. §3º do ADCT: Para efeito do cálculo dos recursos para manutenção e desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212 da Constituição, o percentual referido nocaputdeste artigo será de 12,5 % (doze inteiros e cinco décimos por cento) no exercício de 2009, 5% (cinco por cento) no exercício de 2010, e nulo no exercício de 2011.

Este § 3º do art. 76 já teve uma nova alteração em sua redação com a Emenda Constitucional n. 68

de 2011, que passou ao seguinte texto: “Para efeito do cálculo dos recursos para manutenção e

Page 40: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE41

desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212, da Constituição Federal, o percentual referido no caput

será nulo”.

A última alteração que a EC/2009 fez, em seu art. 6º, foi que o disposto no inciso I, do art. 208, da

CF: “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada

inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria”. Deverá ser

implementado, quanto à efetivação, progressivamente, até 2016, nos termos do Plano Nacional de

Educação, com apoio técnico e financeiro da União.

O direito à educação configura um direito fundamental social, ou seja, o art 60, § 4º, IV que diz: .

“Os direitos e garantias individuais” na condição de cláusulas pétreas. Logo a educação não está alojada

por esta superproteção constitucional, pois fala em “direitos sociais” e não em “direitos individuais”.

Dessa forma, o Poder Constituinte Derivado modificou ou até mesmo suprimiu dispositivos relativos à

educação, mas segundo os Ministros do STF, as cláusulas pétreas não visam resguardar a redação de uma

norma, porém evitar o rompimento com princípios e mecanismos essenciais da Constituição.

Esta ampliação da garantia gratuita da educação básica foi um grande passo para melhorar os

índices de alfabetização do Brasil. Espera-se que a ampliação do direito à educação básica, feita pela

Emenda Constitucional n. 59, para além de garantir o acesso, resulte em melhoria da qualidade de

aprendizagem das crianças, dos adolescentes, dos jovens e dos adultos brasileiros.

3. Desafios Políticos para Efetivação do Direito à Educação

Os direitos sociais contidos no artigo 6º da Constituição Federal colocam a educação como

garantia de melhor qualidade de vida de todos os brasileiros, buscando diminuir às desigualdades sociais e

proporcionar um arranjo social e, consequentemente, o ingresso à vida digna a todos. Para que isso ocorra,

é necessário que haja políticas de efetivação do direito à educação.

De tal modo, Silva (2004) demonstra em sua obra a busca da igualdade material, por intermédio de

estabelecimento de prestações positivas. Em que o Estado diretamente ou indiretamente dá condições para

equiparar forças aos mais fracos através de políticas que garanta tais direitos.

Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. (SILVA, 2004, p.286)

O sucesso e a efetivação da educação básica como um direito social têm como idealizadores,

sobretudo, a luta de entidades, movimentos de educadores que buscam a garantia do ensino de qualidade e

gratuito a todas as crianças e adolescentes no Brasil.

Nas palavras de Farenzena (2010, p.203) pode-se observar esta inserção.

Cabe lembrar que a inserção da educação básica na legislação resulta, sobretudo, da luta de entidades, movimentos e educadores, que se mobilizaram, no processo de elaboração da LDB, para garantir uma concepção que reforçasse a democratização da educação. A

Page 41: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE42

ideia subjacente é de que todos devem ter acesso à educação de base, significando, de outra parte, que seletividades na oferta educacional, em qualquer das etapas, negam os direitos de cidadania e sonegam o desenvolvimento e a formação prometidos nos fins da educação básica. A legislação nos oferece diretrizes e bases consistentes, resta a efetivação da extensão da educação básica de qualidade a todos (ou a todos quanto demandarem, no caso da educação não obrigatória), através de políticas públicas sistemáticas e ousadas, que fraturem as persistentes desigualdades de escolarização da população brasileira.

Desta forma, para que chegue esta efetivação do direito à educação, o Plano Nacional de Educação

2014 a 2024 será monitorado visando o cumprimento de suas metas, cabendo analisar e propor políticas

públicas, com o objetivo de garantir a implementação das estratégias e revisão do percentual de

investimento público.

Este investimento público em educação, provavelmente é o assunto de maior polêmica para

alavancar a qualidade da educação gratuita no Brasil. Várias porcentagens já foram votadas e aprovadas,

mas os valores repassados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios são bem aquém do mínimo.

Culminando em baixos salários de professores, escolas em más condições, problemas com transporte de

alunos vindos da zona rural e até com merendas.

Esta garantia de efetividade do direito à educação básica e de qualidade proporciona uma

permissão a uma evolução da cultura da sociedade e o preparo para o exercício da cidadania, pois é um

direito de todos (crianças, adolescentes, jovens e adultos) e um dever do Estado e da família. Neste

contexto, é de suma importância para o Estado Democrático de Direito e para o desenvolvimento do país, e

é claro a evolução da dignidade da pessoa humana de cada brasileiro, que ocorra uma política eficiente para

melhorar a expansão e qualidade da educação.

Considerações Finais

Com o advento da Constituição Federal de 1988, o cenário da educação no Brasil teve avanços

significativos. A atual Carta Magna estabeleceu princípios e o dever do Estado de assegurar a todos à

garantia da educação universal e gratuita. É notório o avanço da educação no Brasil após 1988, com a

melhora dos índices educacionais devido às ações e políticas públicas educacionais.

A Emenda Constitucional n. 59 definiu a garantia do acesso gratuito à educação básica de

brasileiros na idade dos04 (quatro) aos 17 (dezessete) anos, abarcando a educação infantil, o ensino

fundamental e o ensino médio como etapas obrigatórias de escolarização. Talvez esta Emenda tenha sido o

passo mais importante da história brasileira para assegurar o direito à educação e melhorar, com a

ampliação da escolarização, os índices de alfabetização no Brasil.

Nesse sentido, vários desafios são necessários para efetivar a obrigatoriedade da educação básica

como disposto na Emenda Constitucional n. 59. Alguns destes são elencados: construção e/ou

reestruturação de novas escolas para atender às novas demandas da educação infantil e ensino médio;

formação e qualificação de professores, bem como a promoção de concursos e contratações para dar conta

das demandas; prover e melhorar o transporte escolar das crianças e adolescente, principalmente os que

Page 42: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE43

vivem no campo; dispor de mais recursos à merenda dos alunos; enfim, viabilizar mais recursos para

concretização da oferta obrigatória da educação básica.

ReferênciasBRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao88.htm>. Acesso em: 09 ago. 2015.

______. Emenda constitucional nº. 59, de 11 de novembro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituição/Emc/emc59.htm>. Acesso em: 15 set. 2015.

______. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 09 ago. 2015.

______. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 09 ago. 2015.

______. Lei n. 12.796, de 04 de abril de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12796.htm>. Acesso em: 15 set. 2015.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.

CURY, Carlos Roberto Cury. A educação básica no Brasil. Educ. Soc., Campinas, vol. 23, n. 80, setembro/2002, p. 168-200.

______. A educação básica como direito. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n. 134, p. 293-303, maio/ago. 2008.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004.

FARENZENA, Nalú. A Emenda da obrigatoriedade: mudanças e permanências. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 4, n. 7, p. 197-209, jul./dez. 2010.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010, p. 91.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

Page 43: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE44

UNESCO. Declaração de Jomtien. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf>. Acesso em: 30 maio 2015.

______. Declaração de Dakar. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001275/127509porb.pdf>. Acesso em: 30 maio 2015.

Page 44: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE45

APLICAÇÃO DO SIMPLES NACIONAL A MICROEMPRESAS E EMPRESAS

DE PEQUENO PORTE: POSSÍVEL SOLUÇÃO PARA SOBREVIVÊNCIA

DURANTE O CENÁRIO DE CRISE

1Fábio Rodrigues

Resumo: O presente artigo tem por objetivo destacar a importância de se analisar de forma consciente as

reais vantagens e desvantagens que o Simples Nacional proporciona as Microempresas e as Empresas de

Pequeno Porte, demonstrando aos empresários de vários ramos de atividades, se a sua empresa realmente

será beneficiada com a possível adesão ao Simples Nacional. Trata-se de uma pesquisa documental e

bibliográfica. Conclui-se que, para as empresas que possuem faturamento baixo é vantagem à adoção do

Simples, já para as empresas que possuem um faturamento um pouco maior, será necessária uma análise

mais detalhada, visando uma maior redução dos custos.

Palavras-chave: Economia. Direito Comercial. Simples Nacional.

Abstract: This article aims to highlight the importance of analyzing consciously the real advantages and

disadvantages that the Simples Nacional provides the Micro and Small Companies, demonstrating to

entrepreneurs of various branches of activities, if your company really will benefit with the possible

accession to the national simple. This is a documental and bibliographic research. It is concluded that for

companies with low turnover is lead to the adoption of simple, as for companies that have a slightly higher

turnover, a more detailed analysis, aiming at further cost reduction is required.

Keywords: Economy. Commercial Law. Simples Nacional

Introdução

O Simples Nacional foi criado com a finalidade de fortalecer as Empresas de Pequeno Porte (EPP)

e as Microempresas (ME), unificando arrecadação de tributos e contribuições em todos os âmbitos:

Federal, Estadual e Municipal. Para tais espécies empresarias é essencial que o baixo custo e o aumento

dos lucros, levando em consideração várias políticas para que alcance um propósito primordial, a geração

de riqueza. O tratamento diferenciado justificado pelos altos custos que as ME e EPP possuem, é proposto

pelo Simples Nacional, criado para amenizar e propiciar as empresas uma maior competitividade no

mercado cada vez mais disputado, ocasionando a simplificação de suas obrigações tributárias e

administrativas.

Uma grande gama comercial de novos negócios está à disposição destas empresas e uma das

opções a se explorar são as compras públicas que movimentam valores elevados anualmente, tendo em

vista que o governo é um dos maiores compradores do país.

Segundo a Lei complementar nº 123 de 14 de dezembro de 2006, estabelece Normas Gerais

relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensada a Microempresa e Empresa de Pequeno

Porte. Pretende-se demonstrar, através da contextualização, as necessidades que as empresas optantes pelo

Simples Nacional têm de buscar informações que lhe proporcionem uma antecipação das suas eventuais

1Advogado. Bacharel em Direito pela PUC-PR. Especialista em Direito Empresarial. Pós-Graduando em Direito Processual Civil pelo Damásio Educacional.

Page 45: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE46

situações, tornando possível a aplicabilidade da Lei para que ela se torne mais competitiva no mercado

empresarial.

O estudo proposto justifica-se pela necessidade de conhecimento na legislação que rege o Simples

Nacional, principalmente no que se diz respeito à aplicabilidade do mesmo nas pequenas e

microempresas, buscando conhecer as vantagens e desvantagens que se tem ao optar pelo Simples, além

de buscarem o melhor resultado financeiro e econômico.

O presente trabalho, resultado de pesquisa documental e bibliográfica, respalda-se na necessidade

de se destacar a importância de se analisar de forma consciente as reais vantagens e desvantagens que o

Simples Nacional proporciona as Microempresas e as Empresas de Pequeno Porte, demonstrando aos

empresários de vários ramos de atividades, se a sua empresa realmente será beneficiada com a possível

adesão ao Simples Nacional.

Caracterização de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte

A definição legal de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte está regulamentada no Art. 3º,

inc. I e II da Lei Complementar n.º 123/2006, que diz:

[...] considera - se microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:

I - no caso das microempresas, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais);

II - no caso das empresas de pequeno porte, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais). (BRASIL, 2006)

A Lei Complementar nº 123/06, considera receita bruta o “produto da venda de bens e serviços nas

operações de conta própria, o preço dos serviços prestados e o resultado nas operações em conta alheia,

não incluídas as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos”. (BRASIL, 2006)

A lei complementar n.º 123/2006, em seu parágrafo 1º, incs. I, II e II, estabelecem as normas gerais

relativas ao tratamento diferenciado e favorecido às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte,

especialmente no que se refere à apuração e recolhimento de impostos e contribuições da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, unificando o regime de arrecadação e ao acesso a crédito ao

mercado. Com isso, busca subsidiar as microempresas e empresas de pequeno porte no mercado que se

encontra bastante competitivo, assim a empresas menores têm maior chance de sobreviverem nas

oscilações da economia mundial.

Page 46: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE47

Caracterização do Simples Nacional

Criado pela Lei Complementar n.º 123, de 14 de dezembro de 2006, o Simples Nacional de acordo

com a cartilha do Simples (2006) trata-se de um regime especial de arrecadação de impostos e

contribuições, sendo fruto do esforço e da integração desenvolvidos entre a União, os Estados e os

Municípios, unificando seis tributos federais, um estadual e um municipal sendo estes o IRPJ, CSLL,

PIS/PASEP, COFINS, IPI, CPP, ICMS e ISS em um único documento de arrecadação de tributos, podendo

optar por esse tipo de recolhimento apenas as Microempresas e as Empresas de Pequeno Porte. (BRASIL,

2006).

O Simples Nacional tem como principais objetivos, a integração de impostos federais, estaduais e

municipais, redução da carga tributária, facilitação na fiscalização do cumprimento dos tributos, fazendo

com que haja uma menor desigualdade no cenário econômico entre as grandes e pequenas empresas,

tornando estas últimas mais competitivas.

O Ministério da Fazenda (2010) dispõe que a opção pelo Simples Nacional somente poderá ser

dada por meio da internet, no portal do Simples Nacional e somente até o último dia útil do mês de janeiro,

produzindo efeitos a partir do primeiro dia do ano-calendário da opção. A empresa que iniciar suas

atividades em outro mês que não o de janeiro terá um prazo de 30 dias, contado do último deferimento de

inscrição, desde que não tenham decorrido 180 dias da inscrição no CNPJ. (BRASIL, 2010)

De acordo com o Ministério da Fazenda (2010), a Pessoa Jurídica enquadrada na condição de ME

ou EPP, pode optar pelo regime do Simples Nacional, desde que esteja em dia com a Fazenda Federal e o

INSS. (BRASIL, 2010)

Ainda de acordo com o Ministério da Fazenda, as atividades que podem optar pelo regime do

Simples Nacional são:

· creche, pré-escola e estabelecimento de ensino fundamental, escolas técnicas, profissionais e de ensino médio, de línguas estrangeiras, de artes, cursos técnicos de pilotagem, preparatórios para concursos, gerenciais e escolas livres;

· agência terceirizada de correios; · Agência de viagem e turismo; · Centro de formação de condutores de veículos automotores de transporte terrestre de

passageiros e de carga; · Agência lotérica; · Serviços de instalação, de reparos e de manutenção em geral, bem como de usinagem,

solda, tratamento e revestimento em metais;· Construção de imóveis e obras de engenharia em geral, inclusive sob a forma de

subempreitada, execução de projetos e serviços de paisagismo, bem como decoração de interiores;

· Transporte municipal de passageiros; · Empresas montadoras de estandes para feiras; · Escolas livres, de línguas estrangeiras, artes, cursos técnicos e gerenciais; · Produção cultural e artística; · Produção cinematográfica e de artes cênicas; · Cumulativamente administração e locação de imóveis de terceiros; · Academias de dança, de capoeira, de ioga e de artes marciais; · Academias de atividades físicas, desportivas, de natação e escolas de esportes;

Page 47: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE48

· Elaboração de programas de computadores, inclusive jogos eletrônicos, desde que desenvolvidos em estabelecimento do optante;

· Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação; · Planejamento, confecção, manutenção e atualização de páginas eletrônicas, desde que

realizados em estabelecimento do optante; · Escritórios de serviços contábeis; · Serviço de vigilância, limpeza ou conservação;· Laboratórios de análises clínicas ou de patologia clínica;· Serviços de tomografia, diagnósticos médicos por imagem, registros gráficos e métodos

óticos, bem como ressonância magnética;· serviços de prótese em geral. (BRASIL, 2010)

Existem algumas situações em que as microempresas e empresas de pequeno porte sofrem

restrições quanto ao enquadramento do Simples Nacional, as quais estão relacionadas no parágrafo 4º:

§ 4º Não poderá se beneficiar do tratamento jurídico diferenciado previsto nesta Lei Complementar, incluído o regime de que trata o art. 12 desta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, a pessoa jurídica:

I - de cujo capital participe outra pessoa jurídica;

II - que seja filial, sucursal, agência ou representação, no País, de pessoa jurídica com sede no exterior;

III - de cujo capital participe pessoa física que seja inscrita como empresário, ou seja, sócia de outra empresa que receba tratamento jurídico diferenciado nos termos desta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo;

IV - cujo titular ou sócio participe com mais de 10% (dez por cento) do capital de outra empresa não beneficiada por esta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo;

V - cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo;

VI - constituída sob a forma de cooperativas, salvo as de consumo;

VII - que participe do capital de outra pessoa jurídica;

VIII - que exerça atividade de banco comercial, de investimentos e de desenvolvimento, de caixa econômica, de sociedade de crédito, financiamento e investimento ou de crédito imobiliário, de corretora ou de distribuidora de títulos, valores mobiliários e câmbio, de empresa de arrendamento mercantil, de seguros privados e de capitalização ou de previdência complementar;

IX - resultante ou remanescente de cisão ou qualquer outra forma de desmembramento de pessoa jurídica que tenha ocorrido em um dos 5 (cinco) anos-calendário anteriores;

X - constituída sob a forma de sociedade por ações. (BRASIL, 2006).

Mesmo para aquelas empresas que podem aderir ao Simples Nacional, é necessário que seja feita

uma análise para verificar se é ou não vantajosa esta opção de tributação.

Benefícios para a Microempresa e Empresa de Pequeno Porte

Com a acelerada evolução dos negócios em âmbito global, torna-se relevante para todas as

entidades empresariais, não importando o aspecto comercial que ela se enquadre.

O Simples Nacional proporciona as empresas de micro e pequeno porte um processo de

Page 48: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE49

simplificação, que as diferencia e favorece em relação ao modo e ao tratamento que elas terão referente à

tributação, sendo este tratamento diferenciado no âmbito Federal, Estadual e Municipal.

De acordo com o SEBRAE (2009), as empresas que optarem pelo Simples Nacional terão

benefícios que poderão torná-las mais competitivas no mercado econômico, elas poderão se beneficiar

principalmente da menor burocracia no recolhimento de tributos, tornando a apuração e o recolhimento de

tributos de sua empresa mais simplificado. No entanto, os empresários deverão ter um cuidado maior no

aspecto das vantagens e desvantagens da opção do Simples, analisar e verificar se esse regime de

tributação realmente é a melhor opção levando em consideração a comparação com algumas situações.

Não se esquecendo de que o recolhimento e a apuração estão diretamente ligados ao tipo de

atividade que a empresa exerce.

A grande dúvida de muitos empresários está relacionada em se enquadrar ao Simples Nacional ou

não, pois eles certamente buscam uma diminuição dos tributos, ocasionando uma diminuição nos seus

custos, acarretando assim uma melhor administração e programação dos pagamentos dos tributos,

podendo com isso estruturar a empresa com mais tranquilidade. Por isso, é de suma importância que o

administrador ou empresário se preocupe em analisar a situação especifica da empresa em relação ao

Simples Nacional.

A publicação da lei geral das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte tornou-se um grande

avanço para todos os tipos de empresas brasileiras, tornando mais Simples o pagamento de impostos, uma

maior formalização das Microempresas e Empresa de Pequeno Porte, um maior acesso à créditos e uma

melhor relação entre empresa e governo.

O tratamento que as Empresas de Pequeno Porte e Microempresas recebem do governo em relação

às compras públicas, torna-se um atrativo a mais, favorecendo as ME e EPP na realização de vendas aos

órgãos governamentais, através de licitações.

Segundo a lei Complementar 123/06, art. 42, “nas licitações públicas, a comprovação de

regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte somente será exigida para efeito de

assinatura do contrato”. (Brasil, 2006).

Os Artigos 43 da referida Lei, as empresas poderão participar de licitações mesmo com pendência

fiscais.

Também, será beneficiada, a Microempresa e Empresa de Pequeno Porte em relação ao desempate

na licitação.

Considerações Finais

Crises econômicas alcançam as economias locais de forma muito rápida tornando-as frágeis

principalmente para as pequenas empresas.

Atualmente as grandes empresas vêm buscando novas formas de captação de recursos, através da

abertura de capital, lançando ações na bolsa de valores ao invés de captar recursos através de

Page 49: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE50

financiamento. Com isso surgem as grandes empresas através de fusões e/ou incorporações, as quais

“engolem” as pequenas empresas fazendo com que essas, saiam do cenário econômico e muitas vezes se

extingam, trazendo grandes preocupações e problemas para as autoridades governamentais, em razão do

aumento do desemprego que consequentemente irá gerar um efeito dominó, em todos os setores da

sociedade.

O governo brasileiro na tentativa de fortalecer as pequenas empresas e evitar que decretem falência

em razões de uma crise mundial e/ou por um elevado custo, criou a lei do Simples Nacional, enquadrando

as empresas em micro e pequenas empresas de acordo com o seu faturamento, passando a tratá-las

diferenciadamente em relação ao recolhimento de tributos, em como na facilidade de acesso ao crédito e

ao mercado, com o intuito de reduzir a desigualdade no cenário econômico entre as grandes e pequenas

empresas, aumentando a concorrência.

Ao adotar o recolhimento de tributos através do Simples Nacional a empresa deverá fazer um

estudo analítico da Legislação do Simples, pois nem sempre será a melhor opção para as empresas,

entretanto para as empresas que podem se enquadrar no Simples e após estudos sendo constatada a

vantagem da adoção do recolhimento, o Simples faz com que o lucro dessas empresas aumente e a

desigualdade entre as pequenas e grandes empresas reduzam tornando-as mais competitivas.

Conclui-se que, para as empresas que possuem faturamento baixo é vantagem à adoção do

Simples, já para as empresas que possuem um faturamento um pouco maior, será necessária uma análise

mais detalhada, visando uma maior redução dos custos.

O Simples Nacional proporcionou maior igualdade às empresas, possibilitando a elas

oportunidade de permanecerem no mercado, funcionando também como uma política social já que grande

parte da população está empregada nas micro e pequenas empresas que foram beneficiadas com esse

regime de tributação que minimizou as possibilidades de falência dessas empresas.

Referências

ARTIGONAL, 2009. Simples Nacional: Vantagem No Mundo Empresarial. Disponível em <http://www.artigonal.com/pequenas-empresas-artigos/simples-nacional-vantagem-no-mundo-empresarial-1143759.html>. Acesso em: 08/03/2015.

BRASIL, 2006. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. Disponível em <http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/LeisComplementares/2006/leicp123.htm>. Acesso em: 08/10/2015

BRASIL, 2010. Ministério da Fazenda. Simples Nacional, Perguntas e Respostas. Disponível em <http://www8.receita.fazenda.gov.br/SimplesNacional/sobre/perguntas.asp>. Acesso em: 10/10/2015

MELO Othon. Apostila Administração Financeira. 2010.

Page 50: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE51

MINAS GERAIS, 2007. Decreto 44.630/2007. Disponível em: <http://hera.almg.gov.br/cgi-bin/nphbrs?d=NJMG&p=1&u=http://www.almg.gov.br/njmg/chama_pesquisa.asp&l=20&r=1&f=G&SECT1=IMAGE&SECT3=PLUROFF&SECT6=HITIMG&SECT7=LINKON&SECT8=DIRINJMG&SECT9=TODODOC&co1=E&co2=E&co3=E&s1=Decreto&s2=44630&s3=2007&s4> Acesso em: 09/05/2015

MINAS GERAIS, 2010. Portal de Compras MG. Disponível em: <http://www.compras.mg.gov.br/como-vender-ao-governo-de-minas>>.Acesso em 15/12/2014.

PADOVEZE, Clóvis Luís. Controladoria Estratégica e Operacional. São Paulo: Pioneira Thomson, 2005.

RESOLUÇÃO SEPLAG nº 058. Disponível em:<http://www.compras.mg.gov.br/legislacao/

pequenas-empresas> .Acesso em: 10/11/201.

SEBRAE, 2009. Simples Nacional. Disponível em: <http://www.sebraemg.com.br/Geral/busca_lst.aspx?BuscaHome=simples nacional> Acesso em: 10/12/2014.

VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e Relatórios de pesquisa em Administração. 4. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004.

Page 51: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE52

A OUTRA FACE DA VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA

NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA

1Bruno Giovannini de Paulo

RESUMO: A vitimização secundária é um campo relativamente recente de estudos que se encontra

dentro da vitimologia e ainda carece de maiores adaptações à realidade do sistema criminal. Neste sentido,

o artigo pretende analisar historicamente o surgimento da vitimologia e a criação do conceito de

vitimização, bem como avaliar se os conceitos difundidos acerca da vitimização secundária guardam

relação com a realidade das delegacias de polícia. Para tanto, será tomada a Delegacia de Polícia de Frutal-

MG como paradigma de análise.

PALAVRAS-CHAVE: Criminologia. Vitimologia. Vitimização Secundária.

ABSTRACT: The secondary victimization is a relatively recent field of studies that it's found in

victimology and still has a lack of major adaptations to the reality of the criminal system. Thereby, the

article intend to analyse historicaly the emergence of victimology and the creation of the concept of

victimization and also how to evaluate if the concepts divulged about secondery victimization are related

to the reality of police stations. Therefore, the police station of Frutal - MG will be taken as a paradigm.

KEYWORDS: Criminology. Victimology. Secondary Victimization.

INTRODUÇÃO

Inerente a qualquer agrupamento social, o conflito é corriqueiro e comum, gerando agressores e

ofendidos. Nunca na história do mundo se pôde afirmar acerca da existência de um período de ausência de

conflitos, pois ele é intrínseco ao sentido de coletividade.

Em razão dos conflitos, surgem as figuras dos agressores e dos agredidos, a dos violadores de

direitos e dos detentores de direitos violados, autor e vítima, entre outras terminologias.

A figura do agressor foi exaustivamente estudada pelas ciências humanas, havendo

considerações sobre seu aspecto médico, psicológico, sociológico, criminológico, penal, entre outros,

porém o mesmo tratamento não foi despendido à figura da vítima.

Conforme será estudado, o tratamento da vítima teve variação de enfoque durante a história e

mais recentemente tem tido uma maior atenção, motivo pelo qual surge a vitimologia. Dentro dela

emergem estudos que acarretam em diversas classificações da vítima.

O presente texto se deterá mais especificamente em relação à classificação referente à

vitimização secundária e sua constatação nas delegacias de polícia. Muito já se escreveu sobre o tema e

diversas definições foram estabelecidas e são reproduzidas e ensinadas por diversos manuais de

criminologia. No entanto todas seguem no mesmo sentido: o de imputar ao servidor a causa de sua

1Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília - UNIVEM (2016-2017); Especialista em Direito Penal pela Universidade Paulista - UNIP (2012); Graduado em Direito pela Universidade Paulista - UNIP (2010); Delegado de Polícia no Estado de Minas Gerais.

Page 52: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE53

ocorrência. Com o decorrer do estudo surgirá o problema: afinal, aos servidores são dadas as condições de

escolha real sobre praticar ou não a vitimização secundária?

O artigo trabalhará com a hipótese de que não é dado ao funcionário público o mínimo de

estrutura e não são realizados investimentos suficientes que permitam que a vítima seja tratada

adequadamente nas unidades policiais.

Pretende-se, ainda, ir mais longe e buscar atribuir essa falta de atenção para com os servidores a

uma política pública de governo que visa a obtenção de votos por meio de prisões e não pela satisfação das

vítimas.

Para a verificação do problema e da hipótese aventados serão utilizadas a Polícia Civil de Minas e

a Delegacia de Polícia Regional de Frutal-MG como exemplos.

A pesquisa utilizará o método hipotético dedutivo, partindo do problema acima exposto para

verificação da hipótese apresentada, com amparo em bibliografia da Sociologia, Criminologia, Direito

Penal e Direito Constitucional.

1. CONCEITO DE VÍTIMA:

Ao consultar o dicionário Aurélio nota-se a seguinte definição de vítima:

Do lat. victima.] Substantivo feminino. 1.Homem ou animal imolado em holocausto aos deuses. 2.Pessoa arbitrariamente condenada à morte, ou torturada, violentada: as vítimas do nazismo. 3.Pessoa sacrificada aos interesses ou paixões alheias. 4.Pessoa ferida ou assassinada. 5.Pessoa que sofre algum infortúnio, ou que sucumbe a uma desgraça, ou morre num acidente, epidemia, catástrofe, guerra, revolta, etc. 6.Tudo quanto sofre qualquer dano. 7.Jur. Sujeito passivo do ilícito penal; paciente. 8.Jur. Pessoa contra quem se comete crime ou contravenção. [Cf. vitima, do v. vitimar.] (dicionário digital Michaelis).

Em obra intitulada “Dicionário Jurídico Universitário”, Maria Helena Diniz conceitua 'vítima' da

seguinte forma:

1. História do direito. Pessoa ou animal que era imolado em oferenda a uma divindade. 2. Direito civil. Ofendido que sofreu dano moral e/ou patrimonial suscetível de reparação civil. 3. Direito penal. a) sujeito passivo do crime; b) aquele contra quem se perpetrou o delito ou contravenção. 4. Na linguagem comum: aquele que sofre o resultado funesto de seus atos, dos de outrem ou do acaso (2010, p. 591).

Por fim, destaca-se o conceito apresentado por Antonio Beristain:

[...] pode ser uma pessoa, uma organização, a ordem jurídica e/ou moral, ameaçadas, lesadas ou destruídas. Além disso, ainda que resulte difícil, evitaremos a identificação da vítima como sujeito passivo do delito. Dentro do conceito das vítimas, há que se incluir não somente os sujeitos passivos do delito, pois aqueles superam muito frequentemente a estes. Por exemplo, nos delitos de terrorismo, os sujeitos passivos de um delito são cinco, dez, ou cinqüenta pessoas; em lugar disso as vítimas podem ser cem ou, ainda, mil pessoas. Em alguns casos, podem ser mil os militares ou os jornalistas quem diante do assassinato de um militar ou de um jornalista por grupo terrorista, se sintam diretamente ameaçados, vitimados, se antes sofreram também ameaças dos terroristas. [...] (2000, p. 97).

Page 53: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE54

Para o prosseguimento do presente estudo, se tomará o conceito de vítima como sendo a pessoa

imediatamente atingida por uma violência, excluindo-se, portanto, outros participantes que também

sofram consequências, bem como se afastará da análise de delitos cujos alvos são bens jurídicos coletivos

ou supraindividuais.

2. A VÍTIMA NO ÂMBITO DO DIREITO PENAL/CRIMINAL

O Direito Penal em relação à vítima segue o mesmo curso do histórico de qualquer instituto

social, ou seja, possui movimentação pendular que ora pende para uma proteção severa, em outro

momento se movimenta no sentido de se esquecer sua importância.

A recente história da humanidade, pelo menos a parte que interessa ao presente estudo, mostra de

maneira clara o acima exposto. A liberdade, por exemplo, em certo momento foi restrita em todos os seus

níveis (absolutismo), porém volta à tona junto do movimento das luzes. Após algum tempo, com a

constatação de que liberdade nos moldes iluministas gerou desigualdade, passa-se a repensá-la e a limitá-

la por meio dos direitos sociais. Novamente, então, volta-se a questionar e conclui-se que a ausência de

certa liberdade e dos direitos sociais estão freando a evolução, sendo necessária nova reflexão acerca dela.

E deste mesmo modo caminhou a história da participação da vítima e sua importância para as

ciências humanas (direito penal, processo penal, criminologia, psicologia, etc.), com proteção extrema,

esquecimento e resgate de sua importância, como se verá a seguir.

Pode-se definir o papel da vítima em três fases principais: protagonismo, neutralização e

redescobrimento.

Protagonismo: a chamada era de ouro foi marcada pelo protagonismo da vítima na relação

criminal. Tal fase da história da participação do ofendido coincide com a época das vinganças ou justiças

privadas. Não há como se delimitar temporalmente ao certo na linha histórica que período é este, porém o

destaque da vítima perdura enquanto o Estado não ocupa o lugar dela na relação com o criminoso. Desta

forma, especula-se que o período do protagonismo se deu entre as formações mais primitivas de sociedade

até a Alta Idade Média, que é o momento do surgimento de um Estado centralizado e organizado,

notadamente em monarquias absolutistas. A dita Idade de Ouro da Vítima, portanto, não possui período

histórico determinado. Não há como se demarcar precisamente seu início e seu fim (OLIVEIRA, 1999).

Durante a fase do protagonismo, destaca-se como legislação nesse sentido o Código de

Hammurabi (Séc XVIII a.C). Logo em seu epílogo constata-se que cabe à vítima o início das providências

punitivas, como se percebe a seguir: “Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha

diante de minha estátua e ouças minhas palavras preciosas. Que minha estela resolva sua questão, ele veja

o seu direito, o seu coração se dilate!” (HAMMURABI, 1772 a.c.).

Calcado no critério de Talião, o Código de Hammurabi dispunha, por exemplo:

“209º - Se alguém bate numa mulher livre e a faz abortar, deverá pagar dez siclos pelo feto.”.

“210º - Se essa mulher morre, se deverá matar o filho dele.”.

Além das sanções aplicadas segundo o critério acima exposto, também eram previstas penas de

composição no caso de delitos de caráter patrimonial.

Page 54: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE55

Percebe-se, pelo trecho extraído, a essência desta fase, qual seja: a preponderância da vingança

privada da vítima. A pessoa ofendida detinha o poder de escolha em relação à punição de seu ofensor,

podendo ser uma punição física, perda de bens e até mesmo a morte.

Há também registro de outras fontes normativas neste mesmo sentido, como, por exemplo, o

Código de Manu (Séc. XIII a V a.C) e o Antigo Testamento (período indeterminado).

Merece destaque também a anotação realizada por Guilherme Costa Câmara acerca do

envolvimento não só da vítima e autor, mas como também de suas respectivas família/clãs na aplicação da

pena:

Não obstante o realçado protagonismo da vítima individual, não se pode deixar de reconhecer que numa fase da vingança privada (ilimitada) que envolvia, com alguma freqüência, a participação direta da família ou mesmo da tribo ou clã ofendido – contra não apenas o agressor, mas seu respectivo grupo – indícios veementes de que o modelo vindicativo assumia uma feição coletiva. É nesse sentido que assevera-se de modo enfático que '[...] Uma ofensa contra o indivíduo representava uma ofensa contra seu clã ou tribo (2008, p. 24).

Neutralização: com o surgimento da noção de Estado centralizado, a necessidade fez com que o

poder estatal chamasse para si a responsabilidade pela punição dos delitos. “Foi a partir da necessidade de

controle da vingança privada e da preocupação dos reis com a salvaguarda de seus interesses que, pouco a

pouco, a justiça pública foi ganhando seus contornos” (MOTA, 2012, p. 634).

Segundo Molina, outro motivo justificante da retirada do poder punitivo do alcance da vítima foi

o de não se poder deixar a cargo de quem sofreu um mal injusto a resposta ao agressor, pois não agirá

distante de seus sentimentos de vingança, podendo inverter seu papel e se transformar em delinquente

(2006).

No entanto, a retirada do poder da vítima nas relações criminais com sua consequente avocação

por um ente imparcial, o Estado, contribuiu para o afastamento dela e a relegação de seus interesses. Sob

este aspecto Molina esclarece:

O Estado – e os poderes públicos – orienta a resposta oficial ao delito com base em critérios vingativos, retributivos (castigo ao culpável), desatendendo às mais elementares exigências reparatórias, de maneira que a vítima resulta relegada, geralmente, a um total desamparo, sem outro papel que o puramente 'testemunhal' [...]. A neutralização da vítima está, pois, nas próprias origens do processo legal moderno. Este é um mecanismo de mediação e solução institucionalizada dos conflitos que objetiva e despersonaliza a rivalidade entre as partes contendoras (2006, 71).

Desta forma, passe-se a uma preponderância do infrator, resultando as ciências penais em uma

mera análise da tríade delinquente-pena-crime. Além dos estudos penais, outras áreas como a

criminologia, psicologia, política criminal, política social, também se afastam da vítima e focam seus

esforços nos estudos do infrator e de sua nova antítese: o poder público. As escolas clássicas e positivistas

são os dois maiores exemplos desta fase.

Nesse sentido, importante a lição de Antonio Scarance Fernandes:

As primeiras e justas preocupações voltaram-se para o réu, não para a vítima. Com a influência do Iluminismo e da Escola Clássica as penas são humanizadas: repudiam-se os castigos corporais;

Page 55: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE56

elimina-se ou se limita bastante a pena de morte; extirpam-se as penas infamantes. Desenvolvem-se, principalmente sobre os auspícios da Escola Positiva, estudos sobre a pessoa do delinqüente. [...] A vítima está relegada a plano inferior, esquecida pelos estudiosos. Argumenta-se que sua atuação era movida por sentimento de vingança, não de justiça, e, por isso, devia ser limitada a sua participação no processo criminal (1995, p.16).

Redescobrimento: A segunda Guerra Mundial foi responsável por gerar ao mundo muitas

mudanças. Estabeleceu-se uma nova ordem de poder político mundial com a fragmentação em dois

blocos, a bomba atômica saiu do imaginário e se tornou algo real e mortal, entre muitas outras possíveis.

Contudo, pode-se afirmar que outra grande mudança gerada foi em relação ao estudo da vítima, que passou

a ser novamente reconhecida e considerada na esfera penal, inaugurando a vitimologia. Tal mudança de

enfoque no tratamento das pessoas ofendidas criminalmente se deve aos milhões de mortos e torturados

em decorrência das políticas fascistas, que evidenciou a necessidade de uma atenção e um estudo acerca

das condições e dos direitos das vítimas nas relações criminais.

Há quem critique o termo redescobrimento, como o autor Guilherme Costa Câmara que afirma:

“Redescobrir indica um movimento de retorno e, como já se asseverou com exatidão, a vítima que constitui atualmente objeto de investigação e que se insere de modo cada vez mais pronunciado no multiversum penal – não carrega os mesmos traços e as mesmas marcas da vítima das eras mais priscas. À idéia de vítima foram agregados valores que lhe conferem uma fisionomia diversa de seu ancestral cultural, ad exemplum, o atributo da dignidade da pessoa humana esculpido nos textos fundamentais das nações civilizadas ou em processo de consolidação civilizacional; daí que poderia a terminologia ora censurada acarretar a idéia equivocada de que se estaria, quiçá, a pretender um retorno ao passado, estremando-se todos os ganhos e aquisições conceituais conquistados na lavra dos séculos; de outro lado, antigas descobertas, como todos os riscos de incidir-se em uma reinvenção da roda (2008, p. 60).

No entanto, por mais que a vítima tenha sido “redescoberta” há mais de 70 anos, ainda não se

pode afirmar que tem recebido a atenção necessária e isonômica do sistema penal/processual penal

conferida à figura do ofensor, havendo manifesta necessidade de compatibilização de seus direitos e

garantias.

3. VITIMOLOGIA

Os pioneiros da sistematização de um estudo acerca das vítimas foram o advogado israelense

Benjamín Mendelsohn e o professor alemão Von Henting, dois pesquisadores responsáveis por fazerem a

vítima ser reconhecida e estudada como parte integrante da relação delituosa.

Em congresso realizado na cidade de Budapeste, no ano de 1947, B. Mendelsohn cunhou pela

primeira vez o termo vitimologia e passou a defendê-la como ciência autônoma, enquanto autores como

Henry Ellemberger afirmavam que se tratava de um ramo da criminologia.

Edmundo Oliveira explica o contexto do surgimento da vitimologia:

“A Vitimologia surgiu exatamente do martírio sofrido pelos judeus nos campos de concentração comandados por Adolf Hitler, sendo reconhecido como fundador da doutrina Vitimológica o notável advogado israelita Binyamin Mendelsohn, Professor Emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém. Como marco histórico Mendelsohn pronunciou na Universidade de Bucareste, em 1947, sua famosa Conferência Um Horizonte Novo na Ciência Psicossocial: A Vitimologia

Page 56: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE57

(Lopez-Rey, 1978, pp. 145-149).” (2001, p. 9).

O início de uma nova era da vítima se inaugura com a sistematização do tema. Em primeira

análise, Mendelsohn apresentou a seguinte classificação: vítima inocente ou ideal; vítima por ignorância;

vítima tão culpada quanto o delinquente; vítima mais culpada que o delinquente. Por seu turno, Hans von

Henting separou o tema em grupos: 1º grupo – Criminoso/vítima/criminoso – sucessivamente; 2º grupo –

criminoso/vítima/criminoso – simultaneamente; 3º grupo – criminoso/vítima – imprevisível.

Note-se que não importa aqui a compreensão das classificações: o que realmente merece

destaque é a retomada do papel da vítima que passa a ser compreendida como integrante do crime e tem seu

papel perquirido pelos estudiosos das ciências humanas.

Sobre o surgimento da vitimologia Molina expõe o quanto segue:

“Os pioneiros da Vitimologia iniciam a denominada etapa clássica ou positivista (v. Henting, Mendelsohn etc.) que se prolonga até finais da década de sessenta do século passado. Estes autores compartilham uma análise etiológica e interacionista, e suas conhecidas tipologias ponderam o maior ou menor grau de contribuição da vítima para sua própria vitimização, o que em alguns casos significa culpá-la [...]. Posteriormente, a etapa positivista daria passagem a outra de significação reivindicativa e promocional dos direitos da vítima [...]. A nova etapa, conforme os postulados do Estado social e democrático de Direito, apela à solidariedade cívica com as vítimas e seus direitos fundamentais. Reivindica uma profunda revisão dos fins da pena, exibindo esta um vasto atrativo reparador e reintegrador que enterra concepções expiacionistas e preventivas do passado próximo. Redefine o delito como dano ocasionado à vítima concreta (não como abstrata afetação de um bem jurídico ideal), cobrando esta a merecida protagonização que monopolizava o delinquente. Supre, ademais, o déficit empírico-metodológico da Vitimologia clássica com novas e eficazes ferramentas: as pesquisas de vitimização e atende as necessidades reais da vítima; aspira lhe conferir uma proteção integral. Por último, preocupa à moderna Vitimologia, neutralizar os efeitos da chamada vitimização secundária ou processual, assim como, o desenvolvimento de movas práticas de tratamento e assistência às vítimas em função do impacto da vitimização que, por sua vez, permite perfilhar específicas síndromes e gnosiologias psiquiátricas de vítimas.” (2006, p. 75).

Como se percebe, o movimento vitimológico proporcionou estudo e resgate da figura e dos

direitos da vítima. Diversas classificações e teorias foram criadas com o intuito de explicar a participação

dela no conflito penal e de procurar auxiliar na elaboração de políticas que visem sua proteção.

4. VITIMIZAÇÃO:

Em meio às diversas linhas de pesquisa e investigações da vitimologia, merece relevância o

estudo da vitimização que é o processo de ofensa, moral ou física, à vítima.

“A vitimização é o processo pelo qual uma pessoa sofre as consequências negativas de um fato

traumático, especialmente, de um delito” (MOLINA, 2006, p. 76).

Destaca-se que a vitimização é um dos objetos de interesse da extensa matéria que é a

vitimologia, merecendo destaque a classificação que a subdivide em primária, secundária e terciária.

Lecionando sobre este tema, Nestor Sampaio Penteado Filho, em seu livro “Manual Esquemático

de Criminologia”, explica:

“a criminologia, ao analisar a questão vitimológica, classifica a vitimização em três grandes

Page 57: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE58

grupos, conforme veremos adiante.- Vitimização primária: é normalmente entendida como aquela provocada pelo cometimento do crime, pela conduta violadora dos direitos da vítima – pode causar danos variados, materiais, físicos, psicológicos, de acordo com a natureza da infração, a personalidade da vítima, sua relação com o agente violador, a extensão do dano etc. Então, é aquela que corresponde aos danos à vítima decorrentes do crime.- Vitimização secundária: ou sobrevitimização, entende-se ser aquela causada pelas instâncias formais de controle social, no decorrer do processo de registro e apuração do crime, com o sofrimento adicional causado pela dinâmica do sistema de justiça criminal (inquérito policial e processo penal).- Vitimização terciária: falta de amparo dos órgãos públicos às vítimas; nesse contexto, a própria sociedade não acolhe a vítima, e muitas vezes a incentiva a não denunciar o delito às autoridades, ocorrendo o que se chama de cifra negra (quantidade de crimes que não chegam ao conhecimento do Estado)” (2010, p.74).

A vitimização possui outras classificações ou formas: “ocasional” ou “prolongada”, “direta” ou

“indireta”, etc.. Contudo, a acima explicada possui especial importância, bem como é com base nela que

prossegue o presente estudo, mais especificamente no que tange à forma secundária.

4.1. Vitimização secundária

Muito já se escreveu sobre a vitimização secundária em livros e artigos, senão vejamos:

I- “A vítima secundária é um derivativo das relações existentes entre as vítimas primarias e o

Estado em face do aparato repressivo (policia, burocratização do sistema, falta de sensibilidade

dos operadores do direito envolvidos com alguns processos bastante delicados etc.)”

(SHECAIRA, 2010, p. 55).

II- “A segunda espelha as resultantes dos delitos com o sistema policial e jurídico-penal do

aparelhamento estatal diante da vítima. A vitimização secundária, infelizmente, por muitas vezes,

se torna mais traumática que a experiência primária. Assim, ao invés de reduzir os impactos

maléficos da infração, o Estado conduz o lesado a um ponto de maior estresse e insegurança, quiçá

ainda, à total insegurança, não apenas material, mas também social, haja vista a indiferença do

Estado frente aos seus jurisdicionados. O que seria para o lesado o ponto de partida para o resgate

de seu bem jurídico ofendido, pode tornar-se mais um dissabor, desgaste físico ou moral e por que

não, mais uma vez econômico”. (PAGLIUCA).

III- “Também chamada de sobrevitimização, a vitimização secundária pode ser entendida

como aquela causada pelas instâncias formais que detêm o controle sobre o âmbito social

(delegacias, Ministério Público etc.) abrangendo os custos pessoais derivados da intervenção do

sistema legal que incrementam os padecimentos da vítima. É, portanto, o desrespeito às garantias e

aos direitos fundamentais das vítimas de crime no curso do processo penal” (MOROTTI).

Após uma análise atenta do acima explicado, não restam dúvidas de que cumpre aos órgãos

pertencentes à persecução penal um papel importante - que vai além da instrumentalização do ius puniendi

que tem em mira somente o infrator - o de garantidor dos direitos da vítima, de modo a estancar seu

sofrimento e minorar os danos.

A persecução penal no ordenamento brasileiro vigente se dá em duas fases: 1ª- pré processual,

que é a fase administrativa de colheita de elementos informativos em investigação policial para apuração

preliminar de prática de crime; 2ª- processual, que é o início de um processo formal movido pelo Estado

Page 58: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE59

em face do suposto autor do delito.

A primeira fase pode-se dizer que é a mais tormentosa para a vítima, autor e Estado. Na Delegacia

de Polícia, que é o local onde ela se desenvolve, se inicia a persecução penal, razão pela qual o presente

texto se deterá mais aprofundadamente sobre ela.

O início comum de uma apuração de um delito é com a procura da vítima por uma unidade da

Polícia Civil (polícia responsável pela apuração da autoria e materialidade dos delitos ocorridos). De

início, ela registra, em Boletim de Ocorrência, a agressão sofrida (física, psicológica, moral, patrimonial,

etc.). A partir de então essa vítima será inquirida, se submeterá a exames corporais (em caso de agressão

física), bem como poderá ser novamente convocada a esclarecer fatos que não tenham ficado claros.

Após, as investigações prosseguem com o levantamento de elementos objetivos (provas

materiais) e subjetivos (depoimentos, declarações e informações). Encerrada a colheita, um relatório é

elaborado pela Autoridade Policial que remeterá os autos do inquérito ao Poder Judiciário.

O que é ponto comum nos estudos da vitimização secundária é a acusação de que na fase policial,

por meio dos procedimentos descritos, a vítima fica afastada da relação criminosa e o foco é posto,

deliberadamente, apenas sobre a relação crime-criminoso. Contudo, pretende-se desmentir tal assertiva

tão ventilada pelas correntes vitimológicas.

5. A VERDADE SOBRE A VITIMIZAÇÃO

Para melhor análise do tema, será tomada como exemplo a Delegacia de Polícia Civil de Frutal-

MG. Com base nas informações desta unidade policial se pretenderá apontar possíveis respostas ao

problema apresentado.

A Delegacia de Polícia de Frutal-MG é responsável pelo Departamento de Transito, Posto de

Identificação, Administração da regional, e pelas investigações de infrações penais nas cidades de Frutal e

de Planura.

Quanto à investigação de crimes e contravenções, que é a função precípua da Polícia Civil,

calcula-se, por meio de consulta ao sistema informativo da Polícia Civil (PCnet), que haja

aproximadamente oito mil procedimentos tramitando na Delegacia.

Para a movimentação das investigações há o seguinte número de funcionários, conforme dados

fornecidos pela Chefia de Cartório da Delegacia Regional de Frutal (não serão calculados os funcionários

dos setores de trânsito, administração e identificação):

- 7 (sete) Delegados de Polícia;

- 6 (seis) Escrivães de Polícia;

- 9 (nove) Investigadores de Polícia;

- 2 (dois) servidores da Prefeitura de Frutal cedidos para realização de trabalho de Escrivão “ad hoc”;

- 1 (um) servidor da Prefeitura de Frutal para intimações;

- 1 (um) servidor da Prefeitura de Frutal para atendimento inicial e triagem;

A jornada de trabalho dos servidores policiais descritos (exclui-se os cedidos pelo poder

executivo municipal) é de 40 horas semanais. Por se tratar de serviço essencial, a delegacia de polícia

Page 59: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE60

necessita estar aberta 24 horas por dia, o que requer a existência de um plantão. Para isso, os policiais

trabalham as 40 horas semanais revezando o trabalho diurno e noturno, bem como aos finais de semana e

feriados. Em média, um servidor policial trabalha entre dois e três dias na semana no período diurno na

movimentação de investigações e atendimento ao público e o restante em regime de exceção em plantão

(período em que os policiais permanecem na delegacia de polícia para atendimentos emergenciais como

flagrantes, por exemplo).

A estrutura da referida delegacia, assim como o quadro de funcionários, é precária. Não há

impressoras e computadores para todos os policias; as instalações possuem deficiências que prejudicam

um atendimento digno às pessoas e um ambiente saudável de trabalho; a ausência de infraestrutura mínima

faz com que a delegacia sobreviva de doações de outros órgãos públicos, bem como do investimento do

recurso dos próprios policiais.

Praticamente nenhum dos servidores policiais, após o término das respectivas Academias de

Polícia, no caso de alguns há mais de 20 anos, recebeu treinamentos regulares ou curso de capacitação. Tal

fato se constata por meio do acesso ao site da academia de polícia civil de Minas Gerais.

O servidor da Prefeitura cedido que trabalha no atendimento inicial às vítimas possui apenas o

ensino médio em sua formação.

Desde o início de 2016, o salário dos policiais passou a ser pago em três parcelas pelo governo

estadual.

Conforme informações apresentadas pela Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão

(SEPLAG), desde o mês de janeiro de 2016 os salários dos servidores estão sendo pagos em três parcelas

durante o mês. A primeira no importe de até três mil reais, a segunda até seis mil reais e a terceira o restante

do salário devido. As datas de pagamento variam, podendo muitas vezes ultrapassar o décimo quinto dia

do mês.

Inicialmente tal medida seria imposta somente até o mês de abril de 2016, porém, em virtude da

diminuição da arrecadação, ela permaneceu e não possui prazo limite para seu término.

No fim de dezembro de 2015, antes do anúncio do parcelamento dos salários dos servidores do

poder executivo, o Governo de Minas Gerais, por intermédio de seu atual Governador Fernando Pimentel,

propôs Projeto de Lei 3142/2015 instituindo o auxílio-refeição aos servidores, acatando antigo pleito das

categorias. Contudo, policiais civis, policiais militares e bombeiros foram deliberadamente excluídos do

projeto, como se percebe nos primeiros artigos do texto:

Art. 1º – Fica instituído o auxílio-refeição, devido, nas condições estabelecidas nesta lei e na forma como dispuser o regulamento, ao servidor público ocupante de cargo de provimento efetivo ou cargo de provimento em comissão, bem como ao detentor de função pública e ao contratado nos termos da Lei nº 18.185, de 4 de junho de 2009, em exercício nos órgãos e entidades da administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo.

§ 1º – O auxílio-refeição possui caráter indenizatório e destina-se a subsidiar as despesas do servidor com as refeições no local de trabalho.

§ 2º – O auxílio-refeição será pago mensalmente em pecúnia, na proporção dos dias efetivamente trabalhados, conforme o registro de frequência do servidor.

§ 3º – O valor do auxílio-refeição e os critérios para sua atualização serão definidos em decreto.

Art. 2º – Não farão jus ao auxílio-refeição:

Page 60: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE61

I – o servidor com carga horária de trabalho inferior a trinta horas semanais, ressalvado o disposto no art. 3º;

II – o servidor que fizer jus a alimentação gratuita no local de trabalho;

III – o policial civil, o policial militar e o bombeiro militar;

IV – o servidor cedido para órgão ou entidade não pertencente à administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo estadual.

O projeto de lei, que demonstra claramente o descaso do poder executivo em relação às carreiras

policiais, permanece tramitando na Assembleia de Minas Gerais e conta com o apoio de diversos setores

para sua aprovação.

A Lei Orçamentária do Estado de Minas Gerais Anual, Lei 21971/16 (LOA), prevê para 2016 a

receita estimada em R$83.099.833.747 (oitenta e três bilhões noventa e nove milhões oitocentos e trinta e

três mil e setecentos e quarenta e sete reais) e a despesa fixada em R$92.020.716.104 (noventa e dois

bilhões vinte milhões e setecentos e dezesseis mil cento e quatro reais), resultando em um déficit

orçamentário de R$8.920.882.357 (oito bilhões novecentos e vinte milhões oitocentos e oitenta e dois mil

e trezentos e cinquenta e sete reais).

De acordo com o Anexo II-B da LOA, para 2016 à Polícia Civil será destinado o valor total de R$

1.811.670.971 (um bilhão, oitocentos e onze milhões, seiscentos e setenta mil e novecentos e setenta e um

reais), sendo que desse montante R$ 1.609.769.394 (um bilhão, seiscentos e nove milhões, setecentos e

sessenta e nove mil e trezentos e noventa e quatro reais) serão gastos com remuneração dos servidores, R$

196.470.577 (cento e noventa e seis milhões, quatrocentos e setenta mil e quinhentos e setenta e sete reais)

com outras despesas correntes e o irrisório valor de R$ 5.430.000 (cinco milhões e quatrocentos e trinta mil

reais) em investimentos.

Em reunião ocorrida na cidade de Uberaba-MG, no dia 11 de maio de 2016, na qual estavam

presentes todos os policiais civis do 5º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, a Chefe de Polícia

Civil (Andrea Cláudia Vacchiano) anunciou a todos que a Polícia Civil não dispõe mais de verbas a investir

no ano de 2016.

Destaca-se que as cidades de Frutal e Planura, somadas, possuem uma população de cerca de 70

mil habitantes, contudo possuem altíssimos índices de criminalidade por se tratarem de cidades de região

de fronteira com o estado de São Paulo (índices aferidos por meio de consulta ao sistema de Registro de

Evento de Defesa Social – REDS). A cidade de Planura, de acordo com matéria veiculada no portal online

da revista Exame, em 02 de julho de 2014, figura entre as quinhentas cidades mais perigosas do Brasil,

aparecendo na 324ª posição.

Como se percebe, a fórmula do presente problema está desenhada: alto índice de criminalidade,

falta de estrutura e investimentos, falta de capacitação e salários parcelados levam o servidor a não possuir

qualquer condição de dedicar o tratamento esperado e merecidos às vitimas de crimes.

Muito se fala no conceito de vitimização secundária: afirma-se que é ela praticada pelos agentes

públicos e que o motivo seria culpa dos próprios servidores que têm em mira apenas o crime e o criminoso.

Tal posicionamento pode ser visto claramente nos conceitos difundidos, como por exemplo:

“A vitimização secundária ocorre, sobretudo, porque os profissionais que atuam nas delegacias de

Page 61: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE62

polícias e nos fóruns criminais voltam seus olhos para a pessoa do criminoso, esquecendo-se das necessidades e expectativas da vítima. Tais profissionais, desprovidos de uma orientação vitimológica, concentram-se na tarefa de desvendar o crime, descobrir o seu autor, bem como dar fim ao processo penal instaurado, encarando a vítima apenas como mero instrumento capaz de testemunhar o fato e fornecer dados importantes para as investigações e apuração do

crime”(BISPO).

O que se pretende com a presente análise é desmistificar o conceito de vitimização secundária:

não se trata ela de mera discricionariedade do servidor público que se “esquece” da vítima e foca em outras

questões. A vitimização secundária ocorre, ao que tudo indica, por uma escolha deliberada do poder

público, por intermédio de políticas públicas.

Há que se perceber que a falta de investimento salarial, pessoal e estrutural nos órgãos de

segurança pública é uma opção política, uma opção de gestão de governo. Com uma análise mínima do

exemplo da Delegacia de Frutal percebe-se que não há condições de os policiais atenderem de maneira

digna as vítimas de crimes quando eles mesmo são negligenciados por seu empregador.

Ao não conferir aos agentes estatais responsáveis pela apuração de crimes o mínimo de condições

estruturais e pessoais, o governo, por intermédio de políticas aplicadas pelo Estado, está assumindo uma

clara postura de desdém para com a vítima e para com os policiais.

O policial está ferido tal qual a vítima de um crime. Não é a ele que deve ser atribuída a culpa pela

vitimização secundária. Não se pode esperar nada de alguém sem estrutura, com salário aviltante e

parcelado e sem preparo intelectual adequado. O verdadeiro conceito de vitimização secundária deve ser

revisto e repensado. O responsável pela vitimização secundária não é o Estado por intermédio dos órgãos

da persecução penal, é o próprio governo e suas políticas públicas.

O que realmente interessa a um governante que necessita de aprovação popular para se perpetuar

no poder não é se a vítima se restabeleceu adequadamente após ter sofrido uma violação em seu direito,

mas sim que os responsáveis pela lesão estejam encarcerados e a sensação efêmera de paz seja

reestabelecida no corpo social. O que gera voto é criminoso preso, não é vítima satisfeita, tampouco

policial agradado.

Assim sendo, propõe-se o presente trabalho a formular um novo conceito de vitimização

secundária, mais realista que os atualmente vigentes. Vitimização secundária seria, então, o processo pelo

qual uma pessoa, após ter tido um bem jurídico diretamente violado, tem seu direito a um atendimento

adequado transgredido por um órgão público que não possui estrutura e preparo necessários a tal tarefa em

razão de política pública deliberadamente estabelecida.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se pretendeu aqui fazer uma defesa ilógica das forças policiais. São muitas as críticas que são

feitas a elas. Contudo a vitimização secundária não é uma escolha, é uma imposição de política pública que

não deixa margem à discricionariedade do policial se deseja ou não praticá-la.

Espera-se com o presente estudo fornecer bases ao conhecimento da vitimização e à crítica da

vitimização secundária, abrindo caminho para questionamentos sobre a necessidade de mudanças

Page 62: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE63

estruturais urgentes para atendimento aos anseios das milhões de vítimas de crimes.

Enquanto políticas imediatistas visando apenas aprovação popular de governo estiverem sendo

implantadas, a figura da vítima jamais será realmente “redescoberta” e seus interesses serão sempre

relegados ao segundo plano.

REFERÊNCIAS

BISPO, Márcia Margareth Santos. Da vitimização secundária à revalorização da vítima no processo penal brasileiro. Disponível em: <http://www.evocati.com.br/evocati/interna.wsp?tmp_page=interna&tmp_codigo=475&tmp_secao=16&tmp_topico=direitopenal&wi.redirect=T9FO4SU4JOUQUP8LODVK>. Acesso em: 25 mai. 2016.

CÂMARA, Guilherme Costa. Programa de política criminal: orientado para a vítima de crime. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra, 2008.

DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. São Paulo: Saraiva, 2010.

FERNANDES, Antonio Scarance. O papel da vítima no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1995.

FILHO, Nestor Sampaio. Manual Esquemático de Criminologia. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GERAIS, Minas. Lei nº 21971, de 18 de janeiro de 2016. Disponível em: <http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=lei&num=21971&comp=&ano=2016>. Acesso em: 20 mai. 2016.

HULSMAN, Louk; BERNART, Jacqueline de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1997.

JORGE, Alline Pedra. Em busca da satisfação dos interesses da vítima penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005.

MOLINA, Antonio García-Pablos de. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos; introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Criminais. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

MORAIS, Marciana Érika Lacerda. Aspectos da vitimologia. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=430>. Acesso em: 05 mai. 2016.

MOROTTI, Carlos. Vitimização primária secundária e terciária. Disponível em: <http://morotti.jusbrasil.com.br/artigos/210224182/vitimizacao-primaria-secundaria-e-terciaria>. Acesso em: 06 mai. 2016.

MOSCOVITS. Levy. A vítima do delito e sua evolução dentro da criminologia. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/37414/a-vitima-do-delito-e-sua-evolucao-dentro-da-criminologia>. Acesso em: 05 mai. 2016.

MOTA, Indaiá Lima. Breves linhas sobre vitimologia, redescobrimento da vítima e suas várias faces: algumas questões relevantes. Revista Jurídica da Presidência. v. 13 n. 101, 2012.

Page 63: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE64

OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999.

OLIVEIRA, Edmundo. Vitimologia e direito penal: o crime precipitado pela vítima. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. O impedimento à vitimização secundária pela polícia e justiça. Disponível em: <http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/3485/o_impedimento_a_vitimizacao_secundaria_pela_policia_e_justica>. Acesso em: 07 mai. 2016.

SHECAIRA, Sergio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2010.

Page 64: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE65

LIMITES AO EXERCÍCIO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO DESEMPENHO

DAS FUNÇÕES DO PODER LEGISLATIVO SOB A ÉGIDE 1DO ESTADO LAICO BRASILEIRO

2João Santa Terra Júnior

Resumo: O presente trabalho objetiva a análise da existência de limites ao exercício do Poder Legislativo

em razão da garantia à liberdade religiosa consagrada na atual Constituição. Partindo da apresentação da

laicidade estatal e da amplitude do conceito de liberdade religiosa, serão lançadas ponderações a respeito

do tratamento constitucional recebido a partir de 1988. Na sequencia serão abordadas as consequências

decorrentes da opção do legislador constituinte originário pela estruturação de um Estado laico brasileiro.

Por fim, tendo em pauta as premissas expostas, discorrer-se-á sobre os limites impostos ao Poder

Legislativo pela opção constitucional pelo Estado laico, com relevo para o estudo concernente à adoção de

medidas tendentes a abolir a separação entre as questões estatais e as religiosas.

Palavras-chave: Estado, religião, laicidade, Poder Legislativo, liberdade, Constituição, direitos

fundamentais.

Introdução

Em decorrência do anteparo motivacional da religião para a prática de ofensas ao maior bem jurídico

humano, a vida, por meio de ataques terroristas, o estudo dos limites do exercício dos poderes estatais no

contexto da liberdade religiosa é tema dos mais relevantes na atualidade. Vivenciamos um confronto

bélico global no qual nações uniram-se para combater as ações do autodenominado “Estado” Islâmico, ou

seja, de um movimento que pretende fazer nascer um Estado teocrático soberano estruturado na

interpretação monocular das bases da religião de Maomé. Em prol da defesa dos conceitos extraídos dessa

interpretação religiosa unilateral, e como ferramenta para a estruturação das premissas formadoras desse

“Estado” (reconhecimento de um povo, ramificado em um território, submetido a um poder central e

regido por normas soberanas), há o uso irracional da força, com a imposição de severas sanções aos que

não compartilham das mesmas concepções religiosas (aflições corporais, mutilações, mortes etc.). Nesse

contexto, é inequívoco, não há espaço para a mínima garantia de diversidade de pensamento religioso ou,

muito menos, para o exercício de culto diverso, materializador de uma crença distinta. Em resumo, na

atualidade, presenciamos o uso dos poderes de um pretenso “Estado” amparados por “embasamentos

religiosos”, o que consagra a adoção, pelo menos pelos representantes da vertente que vem impondo suas

convicções religiosas por meio da força, do modelo de Estado confessional e teocrático.

1Texto apresentado em novembro de 2015 como exigência parcial para conclusão do crédito “Direito Penal e Religião”, no

programa de pós-graduação, mestrado, em Direito Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.2Professor de Direito Penal da FAECA Dom Bosco, ex-coordenador da pós-graduação de direito processual da mesma

faculdade, mestrando em Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco),

especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura – TJ/SP, Promotor de Justiça do Estado de São Paulo

integrante do GAECO, Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado.

Page 65: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE66

Contudo, o centro de atenção desse estudo não será a análise das fundamentações religiosas dos

atuais ataques terroristas de grande repercussão mundial neste ano (como, por exemplo, os empreendidos

na França em 7 de janeiro e em 13 de novembro). Iniciamos a abordagem da problemática por tais

ponderações objetivando demonstrar a amplitude da gravidade do uso de fundamentações religiosas para a

tomada de decisões estatais. E, considerando que a atividade legislativa é uma das formas de exercício dos

poderes do Estado, essa preocupação será constante no desenvolvimento do trabalho, que será focado nos

limites da materialização desse poder público em face da adoção brasileira do Estado Laico.

Assim, o trâmite analítico proposto é todo orientado pela consagração, na Constituição de 1988, do

Estado laico como modelo para nosso atual Estado de Direito e pelas consequências advindas à liberdade

religiosa. Objetiva o enfrentamento de questões decorrentes da adoção, pelo Estado Legislativo, de

hipotéticas posturas que contrariem o amplo exercício da liberdade de crença e de culto e que possuam

tendência não apenas à restrição do alcance de aplicabilidade dessa cláusula pétrea, mas à sua verdadeira

abolição. Serão enfrentados, assim, temas concretos relativos à criação de leis e às orientações religiosas

dos parlamentares, bem como outros hipotéticos, concernentes à apresentação de proposta de emenda

constitucional objetivando a estruturação de um Estado teocrático, à possibilidade de criação de partido

político que contenha, em seu programa partidário, esta finalidade de atuação, e a verificação da existência

de limites a eventual poder constituinte originário decorrentes do atual Estado laico brasileiro.

O Estado laico brasileiro e os fundamentos da liberdade religiosa na Constituição de 1998.

3Dois dos três maiores eventos da história do Brasil são marcos de mutação da tônica da correlação

entre a religião e o Estado em nosso ordenamento jurídico-constitucional. Com a independência de nosso 4

Estado, em 1822, o Catolicismo Apostólico Romano foi adotado com religião oficial , destacando-se a sua 5

submissão a circunstâncias de controle do Império . No final daquele século, em 1889, com a proclamação

da República e em face das interseções dos ideais iluministas, consagrou-se a separação entre o Estado e a

Igreja, com a proibição da intervenção da autoridade estatal em questões religiosas, a extinção do

padroado e a previsão da plena liberdade de cultos, ditames do Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890,

liberdade religiosa que foi mantida no artigo 72 da Constituição do ano seguinte. A liberdade religiosa e

laicidade mantiveram-se nas Constituições subsequentes e a atual Carta as ostenta, respectivamente, no

artigo 5º, VI, prevendo a liberdade de crença como decorrência da liberdade de consciência e assegurando

3 Sem minimizar outros fatos históricos que ostentam relevância ímpar para a formação da nossa sociedade e da nossa

política, como o fim da ditadura militar e advento da Constituição de 1988, referimo-nos, no texto, ao descobrimento do

Brasil, à independência de Portugal e à proclamação da República.4 Conforme seu artigo 5º, que ainda permitia a existência das outras religiões, desde que seus cultos fossem domésticos, sem

forma alguma exterior de templo.5 Por exemplo, o artigo 102, XIV, da Constituição de 1824, dispunha ser atribuição exclusiva do Imperador nomear bispos,

prover os benefícios eclesiástico e conceder ou negar o Beneplácito aos Decretos dos Concílios, Letras Apostólicas e

quaisquer outras Constituições Eclesiásticas que não se opusessem à Constituição.

Page 66: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE67

a liberdade de culto, e no artigo 19, I, ao vedar aos entes federativos o estabelecimento de cultos religiosos

ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes 6

relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público .

A opção constitucional pelo Estado laico, na forma da redação do artigo 19, I, estrutura a plena

separação do Estado das religiões por meio da imposição de abrangentes vedações: não estabelecimento

de cultos ou igrejas, não subvenção, não embaraçar o funcionamento e não manter relação de dependência.

Da análise das bases da laicidade estatal brasileira já se poderia extrair o fundamento racional da garantia

da ampla liberdade de crença e de culto. Nesse sentido, ensina ANDRÉ RAMOS TAVARES:

“A separação entre Estado e religião é concebida como um pressuposto à plena liberdade religiosa,

acima desenvolvida. Quer dizer que nos Estados confessionais pode haver, como afirmado

anteriormente, liberdade religiosa, mas será ela mitigada em virtude justamente do tratamento

preferencial e privilegiado resguardado à religião oficial. Ter-se-á, nesta última hipótese,

provavelmente, mais uma tolerância do que uma plena liberdade religiosa, especialmente no que

tange à sua divulgação e práticas. Logo, embora a neutralidade do Estado não seja essencial à

existência de pluralidade religiosa, esta só pode aflorar plenamente em Estados que adotam o 7postulado separatista e a postura da neutralidade religiosa .”

Se o Estado reconhece seu dever de manter-se isolado das questões religiosas, é, certamente, porque

também reconhece a licitude da prática de atos reveladores da liberdade de crença e de culto; não aceitar

esse raciocínio seria defender a possibilidade hipotética de, no caso de o Estado identificar o exercício de

uma prática ilícita, a sua Constituição estabelecer a vedação à intervenção para faze-la cessar. E o

isolamento estatal das questões religiosas não pode ser motivo para as considerar um irrelevante jurídico,

não apenas em face do passado histórico formador das bases da nossa atual sociedade, mas em decorrência

da própria disposição Constitucional que prevê a possibilidade de colaboração do interesse público, na

forma de lei, para a consecução dos fins religiosos. Assim, o Estado brasileiro reconhece, na sociedade, a

pretensão à adoção de crenças próprias associada ao desejo de as concretizar conforme a consciência de

cada indivíduo. Ademais, ao reconhecer a relevância jurídica no exercício da liberdade religiosa e ao

impor, a si próprio, expressa vedação de criação de óbices ao funcionamento de cultos religiosos, o Estado

projeta, consequentemente, aos tutelados, a mesma vedação comportamental. Como assegura ROCHA: “É

com essa perspectiva que o Estado institucionaliza a liberdade religiosa como uma das mais antigas

liberdades civis, pois ela é mesmo o ponto de partida para o reconhecimento de outras liberdades, como a 8

de expressão, de reunião e de pensamento” .

O contrário também é possível. Da análise do artigo 5, VI, da Constituição, é possível deduzir,

logicamente, a laicidade estatal, afinal, não haveria como conceber a garantia da liberdade religiosa em um

Estado que adotasse uma religião própria, que fizesse discriminações em decorrência dessa eleição, que

6 Trataremos abaixo da análise do incentivo constitucional ao exercício da liberdade religiosa por meio da concessão da imunidade de impostos às atividades e ao patrimônio dos cultos religiosos, procurando demonstrar não representar contradição com a opção estatal pela laicidade.7TAVARES, Curso, 2014, p. 489.8ROCHA, Notas, in: ALMEIDA, Direito Constitucional, 2011, p. 472.

Page 67: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE68

não concedesse tratamento isonômico a todas as crenças, ou seja, que não se mantivesse distante da forma 9

de gestão dos interesses eclesiásticos e dos seus organismos sociais de manifestação .

Portanto, são indissociáveis a laicidade e a liberdade religiosa; se não podem ser tratadas como

sinônimos, encontramos, nelas, fundamentos lógicos de existência recíprocos.

MARCO HUACO, depois de afirmar que a laicidade é um princípio jurídico encontrado em um plano

superior às liberdades de pensamento, consciência e religião, elenca os elementos que considera serem

essenciais a ela:

“a) separação orgânica e de funções, assim como a autonomia administrativa recíproca entre os

agrupamentos religiosos e o Estado, b) o fundamento secular da legitimidade e dos princípios e

valores primordiais do Estado e do Governo, c) a inspiração secular das normas legais e políticas

públicas estatais, d) a neutralidade, ou imparcialidade frente às diferentes cosmovisões

ideológicas, filosóficas e religiosas existentes na sociedade (neutralidade que não significa

ausência de valores, mas imparcialidade perante as diferentes crenças), e e) a omissão do Estado

em manifestações de fé ou convicção ideológica junto aos indivíduos” (A laicidade como

princípio constitucional do Estado de Direito. In: Em Defesa das Liberdades Laicas. Porto 10alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 42) .

Ramificações jurídico-estatais da opção constitucional pelo Estado laico.

Tendo como premissa que o Estado laico é o único modelo capaz de garantir, de modo racional e

justo, a concretização da liberdade religiosa e o exercício dos instrumentos capazes de assegurar sua

transcendência do texto constitucional para a vida dos tutelados (a ampla liberdade de crença e de culto),

elencamos algumas consequências jurídicas da sua consagração na Constituição de 1998.

De início ressaltamos a obrigação de necessária separação das decisões políticas de questões

religiosas. Se a premissa do Estado laico é a ampla liberdade religiosa, não há como o mesmo Estado

aproximar-se de uma religião específica, adotando suas premissas e seus dogmas, ou concedendo a ela

específicos benefícios em detrimento a outras crenças e a aqueles que optaram por não seguir nenhuma 11convicção religiosa. Explica NORBERTO BOBBIO que, no Estado Moderno, nasce e desenvolve-se a

doutrina da razão estatal, intimamente vinculada à ideia da primazia da política, sendo que uma das formas

que tal primazia manifesta-se é na independência do juízo político frente ao juízo moral, inclusive na

10Apud ROCHA, Notas, in: ALMEIDA, Direito Constitucional, 2011, p. 471.11Estado, 1997, p. 115. MICHAEL WALZER, depois de afirmar que a finalidade da separação entre Igreja e Estado nos

regimes modernos é negar poder político a todas as autoridades religiosas, partindo da suposição realística de que todas são

pelo menos potencialmente intolerantes, passa a defender uma outra separação decorrente da democracia, a da própria

política em relação ao Estado: parte da premissa que os partidos políticos, na competição pelo poder, lutam para concretizar

seus programas, que são norteados por suas ideologias, e, ao sagrarem-se vencedores, irão transformar essas ideologias em

leis; assim, afirma que essa normatização das ideologias do partido vencedor não pode gerar o nascimento de um credo

oficial de religião civil, sob pena de construir-se um Estado totalitário, de modo exatamente análogo à oficialização política

de uma Igreja monolítica única (Da Tolerância, 1999, p. 105-106).

Page 68: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE69

superioridade do primeiro sobre o segundo, representada pela existência de uma razão de Estado diferente

da razão dos indivíduos, ou seja, que o homem político é livre para perseguir seus objetivos sem estar

obrigado a levar em consideração os preceitos morais com os que está comprometido o indivíduo em suas

relações com os outros indivíduos. Essa concepção de primazia da política é diversa daquela que sustenta

os Estados teocráticos, ou seja, a concepção da primazia do espiritual, que corresponde à doutrina da

subordinação completa da ação política às leis da moral, que são os preceitos da religião dominante, 12

subordinação que, segundo BOBBIO, reflete-se na figura do príncipe cristão.

Nesse contexto de separação das decisões políticas das questões religiosas, deparamo-nos com a

previsão constitucional de vedação, aos entes federativos, de instituição de impostos sobre templos de

qualquer culto (artigo 150, VI, b). Em face dos conceitos do Estado laico nenhuma contrariedade pode ser

constatada. Primeiro porque o benefício tributário é outorgado constitucionalmente em caráter amplo e

geral, sem privilegiar a uma crença específica (aquela que poderia se tornar, por exemplo, representativa

da religião oficial do Estado); segundo porque não representa ingerência dos interesses das crenças

religiosas nas questões estatais, uma vez que a concessão do benefício tributário segue a finalidade de

geração de incentivos, ou não aposição de impedimentos, à concretização de serviços do próprio Estado

(há a vedação de instituição recíproca de impostos sobre a renda, patrimônio ou serviços dos entes

federativos, com exceção de exploração de atividades econômicas regidas pelas normas de

empreendimentos privados – inciso VI, a, e § 3º), ao desenvolvimento das funções de poder constituído

(não incidência de impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços de partidos políticos – inciso VI, c,

primeira parte), ao exercício de atividades sindicais, assistenciais ou educacionais sem fins lucrativos

(inciso VI, c, parte final), bem como ao florescimento e disseminação das liberdades públicas, entre elas, a 13

liberdade religiosa, que emana do próprio Estado laico (vale constatar que a não incidência dos impostos

para os templos religiosos compreende somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as

finalidades essenciais, religiosas, no caso, dos templos), a cultural (inciso VI, d) e a artística (musical e

literária – inciso VI, e). Ademais, não se aceita eventual alegação que o benefício não seria isonômico por

não abarcar ateus: a não aplicação do benefício a eles decorre da própria impossibilidade fática, uma vez

que não optaram pelo seguimento de uma religião, ou seja, esta própria opção pessoal, que deve ser

respeitada, é o elemento diferenciador lógico e racional para a não incidência do benefício (trata-se de

desigual tratamento amparado por um elemento de discriminação que o justifica); ademais, o benefício em

12BOBBIO, op. cit., p. 115. O objetivo de trazer os ensinamentos de BOBBIO é reforçar a necessidade de vedação da simbiose

entre Estado e religião, que propicia desigualdades, injustiças e opressões, ou seja, o afastamento dos fins almejados pelo

direito. Não se trata de defender um ordenamento jurídico totalmente alijado de preceitos morais. Pelo contrário, o direito, como

ciência humana norteada pela regulação de condutas sociais, não pode se afastar de percepções que concedam dignidade ao ser

humano, como as sensoriais, morais, sentimentais e, para aqueles que aceitam, religiosas, tendo ainda como premissa a

constatação que o alcance da justiça perpassa pela não ofensa ao direito de outrem.13No âmbito da doutrina tributária também encontramos ensinamento indicando que a razão de existência dessa espécie de

imunidade tributária constitucional é assegurar a livre manifestação da religiosidade. Nesse sentido, por todos,

CARRAZZA: “É fácil percebermos que esta alínea ´b´ visa a assegurar a livre manifestação da religiosidade das pessoas,

isto é, a fé que elas têm em certos valores transcendentais. As entidades tributantes não podem, nem mesmo por meio de

impostos, embaraçar o exercício de cultos religiosos. A Constituição garante, pois, a liberdade de crença e a igualdade entre

as crenças (Sacha Calmon Navarro Coelho), o que, de resto, já vem proclamado em seu art. 5º, VI” (Curso, 2002, p. 652).

Page 69: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE70

análise tem a função de favorecer o desenvolvimento de uma liberdade pública, razão pela qual seria

desarrazoado o compreender injusto.

Ressalta-se, ainda, que a obrigatoriedade de separação das decisões políticas das questões religiosas

em decorrência da adoção do Estado laico serve como elemento limitador do exercício da função

legislativa primária, uma vez que impede a motivação religiosa na concretização dessa função pública,

especificamente como fundamento para a vedação à edição de leis que tenham como premissa a concessão

de tratamento não isonômico às diversas religiões seguidas no Brasil. Com essa conclusão longe estamos

de defender a imposição de impedimentos ou restrições à possibilidade de os políticos externarem

publicamente suas convicções religiosas; os parlamentares, assim como qualquer cidadão, gozam da

tutela da Constituição de 1988 e, assim, possuem ampla liberdade de manifestação de pensamento e de

exercício da liberdade religiosa; contudo, em razão da adoção do Estado laico, a figura do indivíduo que

“está” parlamentar não pode ser mesclada à figura pública do cargo que ocupa em caráter temporário,

cargo este que carrega consigo exatamente a premissa do respeito à opção estatal pela laicidade, do que

decorre a total inconstitucionalidade de proposituras de projetos de lei atentatórias a esse posicionamento

constitucional. Essa conclusão pode ser extraída do julgamento de ação declaratória de

inconstitucionalidade (ADIn 2.076-5/AC) ajuizada pelo Partido Social Liberal, oportunidade na qual o

Supremo Tribunal Federal entendeu que o preâmbulo da Constituição não se tratava de norma central e,

assim, não havia obrigatoriedade de reprodução nas Constituições dos Estados-membros, constando, no

voto do Ministro Relator Carlos Velloso, que o preâmbulo não estaria situado no âmbito do Direito, mas 14

sim no domínio da política e, desta maneira, refletiria apenas uma posição ideológica do constituinte .

Considerando que no preâmbulo há a invocação divina rogando amparo aos trabalhos constitucionais, o

entendimento do voto do Ministro Relator confirma que o parlamentar (inclusive o constituinte), tem

direito à livre opção por suas convicções ideológicas e religiosas (no caso analisado até mesmo no corpo da

Carta Constitucional), contando que essas convicções não se reflitam em normas centrais do texto

Constitucional (diversos, portanto, são os ambientes a serem considerados para a verificação da

estruturação das convicções religiosas, um ambiente é o íntimo do parlamentar, campo de afloramento e

desenvolvimento da liberdade religiosa, outro é o estatal, inerente à atuação no exercício do cargo que

ocupa, onde deve respeitar a opção pelo modelo do Estado laico).

Segunda consequência: a laicidade, acima da representação de um modelo estatal, é verdadeiro 15

princípio interpretativo norteador das soluções de conflitos de interesses. Como acima ponderado, a

liberdade religiosa encontra seu fundamento de existência na laicidade e, possuindo a proteção dessa

liberdade, tal qual a previsão daquela, status Constitucional, ostentam aplicação geral e podem ser

14BARROSO; BARCELLOS, Preâmbulo, In: CANOTILHO [et. al.], Comentários, 2013, p. 107.15TAVARES aceita o Estado laico como princípio e, ao fazer sua leitura perante a Constituição brasileira, afirma, de início, que em nossa Carta há o “compartilhamento material” entre Estado neutro e princípio da igualdade, para fins de equacionamento adequado do fenômeno religioso; após, ressalta que a ideia de identidade, no plano da liberdade religiosa, deve igualmente ser considerada no plano da proteção estatal: “Há uma nítida imbricação entre determinadas manifestações religiosas no Brasil (e não apenas o catolicismo) com a formação nacional de uma identidade e de uma cultura própria. Nesses casos, o Estado encontra-se obrigado a agir, protegendo essas manifestações em suas diversas dimensões” (op. cit., 2014, p. 497).

Page 70: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE71

invocadas como fonte interpretativa para a solução de lides que tenham como foco os impedimentos ao

exercício daquela liberdade ou a transposição das barreiras defensivas do Estado laico. Vedam, assim, a

adoção de decisões estatais, em todas as esferas dos poderes constituídos, que, na solução de conflitos,

optem pela concessão de tratamento diferenciado a religiões, alcancem parâmetros discriminatórios de

indivíduos em face de suas convicções religiosas ou acarretem ofensas à opção pessoal de não seguimento

de nenhuma crença ou culto. De forma concreta: na solução dos conflitos de interesse, a opção do

intérprete e do julgador deve ser em prol da concretização do amplo exercício da liberdade religiosa, ou da

escolha por não a exercer (ateísmo), uma vez que o nosso Estado de Direito realizou opção nesse sentido ao 16

adotar o Estado laico.

Terceira consequência: a opção constitucional pela laicidade gera ao Estado a obrigatoriedade de

postura positiva assecuratória da manutenção dos alicerces da liberdade religiosa dela decorrente. Por

outras palavras, a laicidade pode ser invocada como fundamento da proteção estatal em hipóteses de

ofensas ao exercício da liberdade de crença e de culto (feição positiva da intervenção estatal). De fato, a

conclusão é lógica: se o Estado brasileiro não adotou uma religião oficial, se houve a consagração, no rol

constitucional dos direitos e das garantias individuais, da liberdade religiosa, esse mesmo Estado tem a

obrigação de conceder aos seus tutelados os instrumentos aptos à proteção do exercício dessa liberdade; do

contrário, a previsão constitucional seria inócua, vazia, sem o mínimo de respaldo concreto na realidade do

povo ao qual a Carta Magna é dirigida. Esse raciocínio decorre do entendimento da Constituição brasileira

como pertencente ao rol das Modernas Cartas de Direitos, consagradora de nosso Estado como Liberal 17

Social, no qual, segundo LUIGI FERRAJOLI , podem coexistir normas de direito público de feições

negativas, representativas de garantias liberais individuais (garantias negativas), e normas também

públicas de feições positivas, materializadoras de garantias sociais (garantias positivas), uma técnica

garantista híbrida estruturada em dupla obrigatoriedade de atuação estatal: na proteção dos direitos

individuais por vedações impostas ao próprio Estado (no caso analisado, proibição de ofensas às bases da

laicidade) e na concretização de direitos individuais por condutas ativas também desse Estado (na hipótese

em tela, por meio da prestação da tutela estatal capaz de fazer cessar a ofensa ao exercício da liberdade

religiosa). E a lição de FERRAJOLI é concretizada com exatidão na própria norma constitucional que

fundamenta a liberdade de religião, o artigo 5º, inciso VI, que, além de assegurar o livre exercício dos

cultos religiosos (garantia negativa), garante, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas

liturgias (garantia positiva). Nesse contexto é possível aceitar as consequências da laicidade como objeto

de tutela penal estatal, como fundamento racional para a criminalização de condutas ofensivas ao

exercício liberdade religiosa dela emanada, desde que o ato de criminalização passe, obviamente, por

todos os filtros imprescindíveis à outorga da tutela penal necessária (entre tantos, a ofensividade, a 18

intervenção mínima e a adequação social) . Nesse contexto podem ser invocados os ensinamentos de 17Direito e Razão, 2006, p. 794-797.18O estudo do Direito penal como um instrumento estatal de concretização da proteção da sociedade, como uma verdadeira

garantia positiva que o indivíduo tem à sua disposição para ser invocada em hipóteses de ofensas aos seus direitos

fundamentais, pode ser encontrado em LÊNIO STRECK: “Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmesurada do

Estado, mas protege, igualmente, a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo. Estes são os dois componentes

do direito penal: o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade individual, e o correspondente ao Estado

Page 71: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE72

BENJAMIN L. BERGER que, analisando o direito canadense, especificamente os fundamental freedoms

constitucionalmente previstos na seção 2, estabelece a correlação entre a liberdade religiosa (da seção 2a)

e o direito penal, verificando uma feição positiva na instrumentalização dessa tutela criminal para a

estruturação de um espaços públicos nos quais a diversidade religiosa e cultural possam florescer sem 19

medo e discriminação.

Limites à pretensão legislativa de criação de um Estado teocrático Brasileiro.

Anteriormente foi salientado que aquele que exerce a função legislativa, enquanto ser humano

submetido à ordem jurídica brasileira, goza de todas as garantias e ostenta todos os direitos que emanam da

Constituição de 1988 (além das prerrogativas inerentes à função pública que ocupa). Nesse sentido a

liberdade religiosa projeta-se também no âmbito do Congresso Nacional, remanescendo como garantia

individual dos parlamentares, desde que não propicie a abolição da laicidade estatal.

Ademais, JONATAS MACHADO explica que, por vezes, uma ampla proteção da liberdade religiosa é

incompatível com uma interpretação rigorosa e rígida do princípio da separação das confissões religiosas

do Estado, uma vez que, em um “Estado Constitucional democrático de direitos fundamentais, uma ampla

liberdade religiosa entra necessariamente em rota de colisão com as pretensões ideológicas de hegemonia 20

do consenso secularizado do republicanismo laicista ou mesmo do liberalismo político” , e isso ocorre

exatamente no caso dos parlamentares, na medida em que os cidadãos não deixam de lado as suas

convicções religiosas quando participam na esfera do discurso público e no processo político democrático.

Pode-se, contudo, falar em garantia parlamentar coletiva de liberdade religiosa? Como acima

salientado, a invocação de termo religioso no âmbito político, já na égide de nosso Estado laico, não é fato

novo, constante não apenas no preâmbulo da nossa Constituição, mas também na nomenclatura de 21

diversos partidos políticos (de acordo com o sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral atualmente há

trinta e cinco partidos políticos registrados, sendo que três possuem menção à palavra “cristão” em sua

nomenclatura: Partido Trabalhista Cristão, PTC; Partido Social Cristão, PSC; Partido Social Democrata

Cristão, PSDC). Apesar de aceitos, pelo Tribunal Superior Eleitoral, os registros desses partidos políticos

“cristãos”, a concepção dessa possibilidade de nomenclatura partidária sob a égide de um Estado laico não

é unânime. JONATAS MACHADO cita demanda julgada pelo Tribunal Constitucional Português que tinha

como objeto de análise da possibilidade de inscrição de partido político homónimo a um brasileiro já

devidamente registrado, o Partido Social Cristão, PSC (acórdão nº 107/95); o cerne da discussão era a

16O que se objetiva, com esta conclusão, é a reafirmação da imprescindibilidade de a garantia da liberdade religiosa ser

consagrada na resolução dos conflitos de interesses que tenham por objeto a sua lesão ou o seu cerceamento. Não se oculta, com

esse raciocínio, a existência de hipóteses nas quais os conflitos de interesses apresentados à resolução estatal decorram de

eventuais abusos ao exercício da liberdade religiosa geradores de lesões a outros direitos igualmente protegidos

constitucionalmente, como a vida, a integridade física, a honra ou a própria liberdade de crença e de culto, situações em que, na

verdade, inexistirá justiça se a liberdade religiosa for adotada como escudo para os danos provocados e para o desequilíbrio na

paz social.21 http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse, acesso em 25-11-2015.

Page 72: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE73

inserção da palavra “cristão” na nomenclatura partidária e a adoção de um peixe de cor branca sob um

fundo azul como símbolo do partido. A decisão do Tribunal Constitucional foi a seguinte:

“Partiu-se do princípio de que a mera inclusão da expressão ´cristão´ na denominação de um

partido político, a despeito do seu conteúdo manifestamente genérico e não necessariamente

confessional, seria suscetível de criar uma confusão entre um partido e uma igreja ou entre a

política e a religião e de resultar na apropriação exclusiva dos princípios cristãos por uma única

força política, como se de um patrimônio ideológico se tratasse. Raciocínio idêntico foi aplicado

ao símbolo do peixe, originariamente utilizado par a identificação dos cristãos na clandestinidade

das catacumbas do Império Romano, embora com base numa argumentação não inteiramente 22persuasiva.”

Outro tema que envolve debates na atualidade é a prática de encontros litúrgicos no seio das Casas 23

Legislativas , promovidos pelas denominadas “bancadas religiosas” de parlamentares. Identifica-se,

nessa prática, inequívoca confusão entre a liberdade do parlamentar, revelada pela sua íntima convicção

religiosa, e o exercício da função representativa de um dos poderes constituídos do Estado. Em face do

local no qual se concretiza, a liturgia pode ser considerada verdadeira ingerência indevida nas questões

centrais do Estado, afrontando, assim, as bases da laicidade. Ainda que a liberdade religiosa do

parlamentar (como indivíduo) seja resguardada, o nosso Estado Democrático de Direito é laico, e, como

acima salientado, não pode sofrer interferências de convicções de crença e de culto em suas questões

centrais. Sem prejuízo, sendo aquele um ambiente público e não existindo naquele ato litúrgico nenhum

propósito de discussão de temas inerentes às finalidades do Poder Legislativo lá desempenhado, não há

sustentação constitucional para tal prática naquele específico local; aceitar o contrário seria conferir

tratamento privado do uso de um ambiente público, o que representaria notável contrassenso às próprias

finalidades do Estado (e não especificamente à garantia da liberdade religiosa).

Podemos, ainda, realizar um exercício hipotético e construir situações nas quais se identificam atos

legislativos concretos, ou condutas parlamentares preparatórias às suas práticas, aptos à efetiva abolição

do Estado laico ou tendentes à implantação de um Estado teocrático no Brasil.

Em face da aglutinação de parlamentares que possuem as mesmas orientações religiosas (a simples

aglutinação de pessoas com as mesmas convicções ideológicas não representa, contudo, fenômeno a ser

censurado, se dela não resultar interferência nas bases da laicidade), não é excessivo exercício de

imaginação cogitar a possibilidade de apresentação de projeto de emenda constitucional objetivando a

instauração de um Estado brasileiro pautado em orientações religiosas específicas, em desprestígio às

demais convicções eclesiásticas. Para tanto, pode-se mesmo imaginar a utilização da interpretação da

própria Constituição, enraizada no exercício amplo da liberdade religiosa, como sustentáculo

fundamentador dessa proposta (pode o parlamentar imaginar que, se possui liberdade religiosa e se

entende que as suas crenças são justas e representam o bem coletivo, está apto a levar tais bases religiosas

22 MACHADO, op. cit., p. 121.23 http://apublica.org/2015/10/os-pastores-do-congresso/ e http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-

noticias/2015/10/19/bancada-evangelica-cresce-e-mistura-politica-e-religiao-no-congresso.htm, acesso em 25-11-2015.

Page 73: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE74

para o Estado brasileiro; ou seja, a mesma liberdade religiosa que se encontra sedimentada como garantia

individual na Carta de 1988 seria empregada como fundamento para a transição do Estado laico para o

teocrático). Aqui a questão é resolvida pela análise dos limites do poder constituinte derivado, na

atualidade consubstanciado (depois de escoado o prazo da revisão constitucional) exatamente no

exercício de mutabilidade das normas constitucionais pela apresentação de proposta de emenda

constitucional; entre os limites constitucionais materiais ao exercício desse poder há aquele previsto no

inciso IV, do § 4º, do artigo 60, que assegura a impossibilidade de figurar como objeto de deliberação a

proposta de emenda tendente a abolir os direitos e as garantias individuais. Sendo a liberdade religiosa

inequívoco direito individual do indivíduo, inserida está no patamar das cláusulas pétreas (núcleo

constitucional não abarcado pela possibilidade de mutação por emenda constitucional) e, sendo o Estado

laico o modelo essencial à concretização social desse direito, a tentativa de sua extinção representará real

tendência à abolição daquela liberdade. Ademais, considerando que a decorrência lógica do laicidade

estatal é a outorga da garantia da liberdade religiosa, que, por sua vez, é reconhecida como pertencente ao

rol constitucional dos direitos e das garantias fundamentais da pessoa humana, pode-se invocar, como

impeditiva à hipotética proposta de emenda constitucional em tela, uma aplicação analógica da doutrina da

vedação do retrocesso. Segundo BARCELLOS, a vedação do retrocesso é uma derivação da eficácia

negativa dos princípios, particularmente ligada aos que envolvem os direitos fundamentais, que propõe a

viabilidade de exigir do Judiciário a possibilidade de invalidade da revogação de normas que,

regulamentando tal espécie de princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a 24

revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente . Considerando que

a finalidade desse pensamento é assegurar que a conquista advinda da previsão constitucional de um

direito ou de uma garantia fundamental não se desnature em razão do exercício de um poder estatal, no

caso o Judiciário, poderia ele ser alargado para fundamentar o impedimento à eventual desnaturação de

direitos fundamentais por meio do exercício de outro poder constituído, o Legislativo, na hipótese de

apresentação de proposta de emenda constitucional tendente à estruturação de um Estado teocrático (o

que, da mesma forma, representaria retrocesso à conquista constitucional).

Dando seguimento ao exercício hipotético, partindo da conclusão da impossibilidade de

apresentação de emenda constitucional tendente a abolir o exercício da liberdade religiosa por meio da

implantação de um Estado teocrático, indaga-se: seria possível a criação de um partido político que

contivesse, em seu programa partidário, expressa finalidade de instituição de um Estado teocrático?

O Estado brasileiro adotou o regime democrático de governo desenvolvido, na maioria das hipóteses

constitucionais, pela representatividade partidária. Nesse contexto, os partidos políticos ostentam

24BARCELLOS, Anotação preliminar, In: CANOTILHO [et. al.], Comentários, 2013, p. 101-102. A respeito da

impossibilidade de retrocesso, nesse caso, especificamente ao antigo regime teocrático: “Parece inteligível a perspectiva de

que o fundamento principal da secularidade do Estado e do Governo não pode mais retornar aquele momento histórico do

ancien régime, no qual a legitimidade e os valores sociais básicos buscavam identificação com a doutrina ditada pela Igreja.

Hoje tal fundamento é o Estado Democrático de Direito que afirma sua disposição em respeitar a dignidade da pessoa

humana e o pluralismo filosófico e político” (Rocha, op. cit., p. 475).

Page 74: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE75

relevância para a preservação do nosso Estado Democrático de Direito, sendo instrumentos para o

desenvolvimento da representatividade política. Apesar de a Constituição de 1988 estabelecer, em seu

artigo 17, a liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, pelo mesmo

dispositivo impede tais práticas se ofensivas à soberania nacional, ao regime democrático, ao

pluripartidarismo e aos direitos da pessoa humana. A aquisição da personalidade jurídica pelos partidos

ocorre na forma da lei civil e seus estatutos devem ser registrado no Tribunal Superior Eleitoral. A Carta

Magna ainda concede autonomia aos partidos políticos para definir sua estrutura interna, sua organização e 25

seu funcionamento.

O programa partidário é o instrumento responsável pela apresentação, à sociedade, de uma síntese

da linha de atuação do partido político, seus objetivos, a visão sobre a sociedade na qual seus fundadores se

acham integrados, expondo, enfim, as realizações que almejam seus integrantes concretizar por ocasião de 26

sua chegada ao poder . A lei 9.096/1995 fixou, em seu artigo 14, os requisitos mínimos e indispensáveis à

elaboração do estatuto do partido político, porém, com relação ao seu programa e aos seus objetivos

políticos, indicou serem de livre fixação, desde que observadas as suas disposições normativas e aquelas

previstas na Constituição.

O mestre MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, em 1974, apresentou estudo a respeito dos partidos

políticos na democracia brasileira, e, ao analisar a missão do partido, elencou quatro tarefas: a formação

política do povo, a preparação dos candidatos, a informação política e a fixação do programa. Com relação

à formação política do povo, lançando luzes sobre os pensamentos políticos de Aristóteles e de

Montesquieu, com a relevância da ideia de que toda forma de governo presume uma determinada

educação dos tutelados, assegura que a formação do povo para a Democracia é a primeira tarefa do partido

político, que deve difundir os valores que inspiram essa forma de governo e ensinar o apego à liberdade e à 27

igualdade, o devotamento ao interesse geral, ao espírito cívico que ela reclama . Ora, é possível ao partido

político concretizar essa missão de ensinar o apego à liberdade se elencar, entre as suas finalidades

constitutivas, pretensão diametralmente oposta, ou seja, de eliminação de uma das mais expressivas

liberdades públicas, com a estruturação de um Estado teocrático?

Partindo de todas as premissas já lançadas, em especial da constatação de a laicidade ser princípio

orientador das práticas estatais e da umbilical interseção lógica entre a garantia da liberdade religiosa e a

preservação do Estado laico, a única conclusão possível, em face da expressa vedação do texto

constitucional, é a inconstitucionalidade da criação de um partido político que estabeleça, em seu

programa, a finalidade de estruturação de um Estado teocrático; tal finalidade seria inconstitucional por

25O Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADI nº 1.351/DF e ADI nº 1.354/DF (Relator Ministro Marco Aurélio,

decisão de 7-12-2006 – informativo STF nº 451, Seção I, p. 1), assegurou, inclusive em relação ao funcionamento parlamentar,

que a competência do legislador ordinário não deve ser tomada a ponto de esvaziarem-se os princípios constitucionais

elencados no caput, do artigo 17, da Constituição (Moraes, Direito Constitucional, 2012, p. 279-280).26PINTO, Djalma. Direito Eleitoral: Improbidade Administrativa e Responsabilidade Fiscal. 3ª edição, São Paulo:

Atlas, 2006, p. 95, apud LUCON, Código eleitoral interpretado, 2011, p. 569.27O partido político, 1974, p. 16-17.

Page 75: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE76

dupla ofensa a preceitos da Carta Magna, seja o que estabelece a garantia de liberdade de crença e de culto,

do artigo 5º, VI, seja o do artigo 17, caput, que estabelece a vedação de criação de partido político sem 28

resguardo de direito pessoa humana, no caso, a liberdade religiosa . Nesse contexto, portanto, a vedação à

criação do partido político poderia sustentada em face da ofensa à sua razão constitucional de existência e

da contrariedade à sua missão democrática, ambas representadas na materialização de ato tendente à

extinção da laicidade e, em decorrência, da liberdade de religião.

Outra hipotética questão: caberia a implantação de um Estado teocrático brasileiro por um poder

constituinte originário? A resposta deve ser alcançada com base no estudo do poder político de

implantação de uma nova ordem constitucional.

De acordo com PAULO BONAVIDES, há dois poderes constituintes denominados originários: aquele

que emana de movimento revolucionário, que é visível, manifesto, palpável, o poder constituinte do povo,

da nação, do Estado em sua manifestação mais profunda, concretizado em uma constituinte com a função

principal de criação de um novo sistema jurídico, de um novo regime, de uma nova forma de Estado com

um novo complexo de instituições; há, ainda, um outro poder “também tido habitualmente como

originário por determinados publicistas”, responsável pela elaboração e promulgação do maior número de

Constituições, concretizado pela implantação de uma Assembleia Constituinte para redação de uma nova

Carta Magna, a exemplo do ocorrido em 1987 no Brasil, um poder de “menor densidade legitimante,

alicerçado nas profundezas intactas da ordem jurídica estabelecida, que ele vem apenas remover,

transformar, refazer, por via da legitimidade de uma nova Carta Magna, sem contudo derruir-lhe as bases 29

institucionais, donde procede” .

O texto de BONAVIDES é claro ao demonstrar que o único poder constituinte originário supremo,

soberano e ilimitado é o decorrente de revolução. O outro, embora fora da Constituição, padece “de

limitações da ordem jurídica quando faz Constituições; limitações, em geral tácitas, mas da mesma 30

natureza jurídica daquelas impostas poder constituinte que está dentro da Constituição” , razão pela qual

afirma que alguns doutrinadores o entendem, na verdade, derivado (uma vez que advém de um primeiro

poder constituinte originário, hipotético, ou fático, que lhe confere legitimidade); esse poder, exatamente

pela sua derivação, não pode fundar um regime ou um sistema novo de governo, ou ainda reorganizar o

Estado, além dos limites da Constituição que o gerou. Afirma que a nossa Constituição de 1988 é uma

Constituinte Derivada, uma vez que foi elaborada por uma Assembleia Constituinte com poderes

limitados; ocorre que “a constituinte derivada está, desse modo, para a constituinte originária, assim como

a regra está para o princípio, o regimento para a lei e a lei para a Constituição; sempre na base de uma

inferioridade normativa, qual flui das postulações teóricas que a reflexão de Kelsen fez pacíficas na 31

doutrina e na jurisprudência” .28Em decorrência das normas constitucionais comentadas, a lei dos partidos políticos (lei 9.096-95) estabelece que eles se

destinam, entre outras finalidades, a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal (artigo 1º).29 BONAVIDES, A Constituinte de 1987-1988, in: CANOTILHO, Comentários, 2013, p. 53.30Idem, p. 53-54.31Idem, p. 54.

Page 76: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE77

Se a questão proposta for analisada pela ótica do poder constituinte originário emanado de

movimentos revolucionários, a resposta haveria de ser positiva, uma vez que por ele seriam extraídas, de

forma absoluta, eventuais profundas raízes da organização social e política que representariam 32

impedimentos à mutação constitucional estudada.

Por outro lado, se a pretensão de instituição de um Estado teocrático brasileiro decorrer do exercício

de um poder constituinte materializado por uma Assembleia Constituinte, como visto, ele encontrará

limites sócio-políticos tácitos, remanescendo a discussão no seguinte ponto: saber se a laicidade configura

uma das estruturas fundamentais imutáveis pelo exercício dessa espécie de poder constituinte.

BOBBIO entende serem os direitos fundamentais do homem e do cidadão, entre eles o direito à

religião, uma limitação ao poder político estatal:

“La última lucha por la limitación del poder político es la que combatió en el

terreno de los derecho fundamentales del hombre y del ciudadano, comenzando

por los derechos personales, ya enuniados en la Magna Charta (Carta Magna) de

Enrique III (1225), hasta los diversos derechos de libertad, religión, opinión

política, prensa, reunión y asociación, que constituyen la materia de los Bill of

Rights de los estados americanos y de las Declaraciones de los derechos del

hombre y del ciudadano emanadas durante la revolución francesa. Qualquiera que

sea el fundamento de los derechos del hombre, Dios, la naturaliza, la historia, el

consenso de las personas, ellos son considerados como derechos que el hombre

tiene en cuanto tal, independentemente del ser puestos por el poder político y que

por conseguiente el poder político no solamente debe respetar sino proteger.

Según la terminologia kelseniana, estos derechos constituyen límites a la validez 33

material del Estado.”

Sob o aspecto do reconhecimento de fundamentos sociais atuais caracterizadores daquelas citadas

“profundas raízes” que não poderiam ser transformadas por uma Constituinte derivada, pode-se

reconhecer que a realidade social brasileira decorre do pluralismo, identificado pelo reconhecimento da

diversidade de pensamentos e da coexistência de ideologias. Tal pluralismo é revelado como uma

característica imanente de cada um de nós e, assim, não pode ser desprezado pelo Estado. Nesse sentido é a

lição de GUSTAVO ZAGREBELSKY, ao elaborar estudo a respeito da “Constituição do pluralismo”:

“O pluralismo não é, todavia, apenas um dado de grande parte das nossas

32 “A Constituinte derivada não pode, enfim, estabelecer uma ordem institucional de todo distinta da que já existe. Isto

obviamente em virtude dos laços que ainda prendem o colégio constituinte, pelo ângulo jurídico, às raízes profundas da

organização social e política, raízes nunca extraídas em termos radicais e absolutos, como só acontece em se tratando da ação de

um poder constituinte revolucionário” (idem, p. 57).33 Op. cit., 1997, p. 138.

Page 77: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE78

sociedades. É também um dado interno a cada um de nós. O ser humano das

sociedades desenvolvidas do século XXI tornou-se complicado. Desejamos

tantas coisas e, frequentemente, coisas que, tomadas de modo absoluto, seriam

incompatíveis umas com as outras. Também a nossa psique deve ser

constitucionalizada entre as diversas tendências que a submetem a tensões:

desejamos liberdade e igualdade; segurança e garantias; amor e justiça; rigor e

piedade; sociabilidade e solidão; etc. Deve-se encontrar em si um equilíbrio que

não sacrifique nada de essencial para si. O pluralismo constitucional reflete-se,

assim, no pluralismo da consciência individual, que se predispõe à coexistência e 34

ao compromisso”.

ALEXANDRE DE MORAES afirma que “a conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira

consagração de maturidade de um povo, pois, como salientado por Themistocles Brandão Cavalcanti, é ela 35

verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação.”

Da análise de todas essas doutrinas citadas e tendo por base o raciocínio empreendido ao longo

desse estudo, não há outra conclusão a não ser aceitar a impossibilidade de alcance das finalidades

existenciais de um Estado sem a adoção da laicidade. O Estado deve ser concebido para a outorga, ao povo,

da paz, do equilíbrio social, do bem-estar coletivo e da proteção necessária ao alcance desses fins. Tais fins

são inexequíveis em uma sociedade pautada pela intolerância religiosa, pelas perseguições decorrentes da

multiplicidade de ideologias e pela não aceitação das diversidades caracterizadoras de cada um como ser

humano único e individualmente reconhecível. O ser humano tem no seu pensamento não manifestado o

único bem impassível de cerceamento. Ocorre que, do exercício do pensar, podem advir diversas

conclusões a respeito dos mais variados temas da vida. E, na imensidão da amplitude do pensamento, é

inequívoco que as conclusões alcançadas por um ser humano acabem distintas daquelas concretizadas na

mente de outros. Portanto, a diversidade cultural, comportamental, ideológica, científica, religiosa, ou

qualquer outra materializada como obra do pensar, é inevitável. Sendo inevitável, para a aceitação do ser

humano pela sua própria natureza humana (pelo seu pensar), é igualmente inevitável que o Estado que

pretenda organizar esse ser humano em premissas justas e harmônicas adote a laicidade como seu 36

fundamento . Acreditando ser verdadeira essa conclusão, afirmamos que o poder constituinte originário,

exercido por meio de uma Assembleia Constituinte, encontra, na laicidade, um limite instransponível para

o exercício de criação de uma nova Carta de Direitos.

34ZAGREBELSK, Estado Constitucional, in: ALMEIDA, Direito Constitucional, 2011, p. 301.35 Direito Constitucional, 2012, p. 46.

36 Segundo ROCHA (op. cit., p. 473): “Na impossibilidade da existência de um modo de pensar único e,

consequentemente, na irrealidade da ideia de que todos devam professar a mesma fé, a tolerância surge como a única

alternativa plausível para que a paz entre as pessoas seja possível a partir da “disposição de admitir, nos outros, modos de

pensar, de agir e de sentir diferentes dos nossos”.

Page 78: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE79

Conclusão

A pesquisa desenvolvida para a formalização deste escrito foi orientada para o alcance de respostas

sedimentadas a questões originadas do manejo da função legiferante e de outras condutas decorrentes do

exercício temporário, pelos representantes eleitos pelo povo, de outras atividades correlacionadas a esse

poder constituído estatal, em face da neutralidade pública religiosa imposta pela constitucionalização do

Estado laico brasileiro.

Almejando o acesso a conclusões viáveis, procurou-se empreender um raciocínio lógico-

sistemático para a dedução delas. Para tanto, de início, breves apontamentos foram apresentados com

relação às normas constitucionais disciplinadoras da distância mantida pelo Estado das questões

religiosas, com corte analítico a partir da independência da nossa nação. Alcançando o advento da atual

Carta Magna, ganhou relevo a análise das previsões normativas representativas da opção estatal pelo

modelo do Estado laico e a demonstração da umbilical relação existencial entre as bases da laicidade e a

consagração da liberdade religiosa. Na sequência houve ingresso no estudo das consequências estatais da

ramificação dos alicerces fático-jurídicos da laicidade, abordagem que objetivou a análise de temas

decorrentes da obrigatoriedade de não intervenção estatal em questões religiosas (com estudo da

imunidade constitucional material de impostos assegurada pelo artigo 150, VI, b, e da possibilidade de a

laicidade atuar como elemento limitador do exercício da função legislativa primária), do reconhecimento

do Estado laico como princípio norteador de decisões estatais resolutórias de conflitos de interesses, e da

feição positiva da prestação estatal voltada à manutenção do alicerce constitucional que sustenta a

laicidade. Por fim, desenvolveu-se a temática central do trabalho, ou seja, a análise dos limites à pretensão

legislativa de criação de um Estado teocrático brasileiro, com prévias reflexões acerca da adoção de

palavras religiosas nas nomenclaturas de partidos políticos, bem como da realização de liturgias, por

parlamentares, no seio de Casas Legislativas; e, após, com amparo em um exercício hipotético de

construção de situações nas quais se procurou identificar atos legislativos concretos, ou condutas

parlamentares preparatórias a tais práticas, aptos à efetiva abolição do Estado laico, foi discutida a

possibilidade de apresentação de projeto de emenda constitucional com essa finalidade, a viabilidade de

criação de um partido político que contivesse, em seu programa partidário, expressa pretensão de

instituição de um Estado teocrático, e, ao final, a existência de limitações ao exercício de eventuais poderes

constituintes originários que, na construção de uma nova Carta de Princípios, almejasse também a

mutação da laicidade para a teocracia estatal.

A defesa externada ao longo do texto pela manutenção da opção constitucional pátria pela adoção do

Estado laico, com a imprescindível separação do exercício das funções públicas da interferência de

ideologias eclesiásticas, teve como norte, acima de tudo, assegurar o respeito ao exercício da liberdade

religiosa, que certamente sofreria limitações e ofensas caso houvesse mobilidade constitucional para a

estruturação de um teocrático. Discriminações, perseguições e guerras motivadas por intolerância

religiosa são eventos sócio-políticos mundiais cíclicos na história da humanidade, que atingiram uma

Page 79: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE80

assustadora concretude na era moderna, justificadores da preocupação externada com a criação de

ambiente fértil para a potencialização e o desenvolvimento de condutas ofensivas não somente à

diversidade religiosa, mas a todo conjunto de direitos fundamentais que escoram a dignidade da pessoa

humana.

E externar tais incômodos filosóficos (infelizmente concretizados na realidade mundial) não

representa afastamento da convicção relativa à inequívoca interferência dos padrões religiosos na

formação da cultura de nosso povo. A religião é, de fato, ao longo dos tempos, um dos principais

fenômenos sociais estruturadores de nosso atual modo de vida. O apego à transcendência (não

necessariamente religiosa) é inerente ao âmago do ser, capaz de lhe demonstrar uma das fontes essenciais

de sua identificação como humano. Sendo assim, não há racionalidade na defesa do desligamento do

indivíduo de suas convicções ideológicas e religiosas para a condução de suas decisões, sendo mesmo

impossível essa dissociação, em termos amplos e completos, no momento do exercício das funções

estatais (não há como afastar do ser humano aquilo que lhe configura a essência e a própria natureza).

Ademais, sendo o nosso povo solidificado em padrões regulatórios histórico-sociais identificados, entre

outras origens, nos conceitos religiosos, não há como o afastar-se por completo o Estado dessa premissa

sob pena de as deliberações dele emanadas não representarem as soluções adequadas à materialização de

uma paz social estável.

O que não se pode aceitar é a ofensa a um dos pilares de sustentação de nosso Estado de Direito, a

igualdade, pelo exercício de uma alegada liberdade religiosa; é, sob o escudo da garantia da concretização

dessa liberdade, serem concedidos privilégios a crenças e cultos específicos e promovidas discriminações

e limitações de direitos aos que compartilham orientações eclesiásticas distintas; é a abolição das bases

democráticas pluralistas, consagradoras da individualidade, a partir das quais foi sedimentada essa mesma

liberdade religiosa, por meio da ingerência estatal indevida nessa seara representativa da essência humana.

Em resumo, se o indivíduo é livre para escolher seguir os preceitos de uma religião e mantê-los, para

praticar os ritos inerentes a ela e para professar sua fé, para deixar de ostentar convicções religiosas

específicas e adotar outras diversas, bem como para optar pelo não seguimento de nenhuma orientação

religiosa, somente por meio da imposição de vedações ao exercício estatal de limitações a essa liberdade e

da exigência de prestações estatais positivas para a eliminação às ofensas por ela sofridas, é possível

alcançar alguma racionalidade na aceitação da individualidade humana que tem, no exercício das próprias

convicções religiosas, uma das suas formas de representação.

Page 80: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE81

Bibliografia

BARCELOS, Ana Paula de. Anotação preliminar sobre o conteúdo e as funções dos princípios. In:

CANOTILHO, J. J. Gomes…[et. al.]. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina,

p. 97-102, 2013.

______________________; BARROSO, Luís Roberto. Preâmbulo da CR: Função e Normatividade. In:

CANOTILHO, J. J. Gomes…[et. al.]. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina,

p. 105-107, 2013.

BERGER, Benjamin. Moral Judgment, Criminal Law and the Constitutional Protection of Religion.

Supreme Court Law Review, Vol. 41, No. 2, 2008, THE CHARTER AND CRIMINAL JUSTICE:

TWENTY-FIVE YEARS LATER, Jamie Cameron, James Stribopoulos, eds., Toronto: LexisNexis

Butterworths, 2008.

BOBBIO, Norberto. Estado, gobierno y sociedade: por una teoría general de la política. Tradução de

José F. Fernández de Santillán. 5ª reimpressão. México D.F.: Fondo de Cultura Económica S.A., 1997.

BONAVIDES, Paulo. A Constituinte de 1987-1988 e a restauração do Estado de Direito. In: CANOTILHO,

J. J. Gomes…[et. al.]. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, p. 53-59,

2013.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 18ª edição. São Paulo:

Malheiros Editores, 2002.

FELDENS, Luciano. A Constituição Penal – a dupla face da proporcionalidade no controle de normas

penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005.

FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. O Partido Político na Democracia Brasileira. Folhetim da

Biblioteca de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1974.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2006.

FISCHER, Douglas. O que é garantismo penal (integral)? In: CALABRICH, Bruno; PELELLA, Eduardo;

_______________ (Organizadores). Garantismo Penal Integral: questões penais e processuais,

criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. 2ª edição. Salvador: JusPODIUM,

páginas 29-56, 2013.

LUCON, Paulo Henrique dos Santos; VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Código Eleitoral interpretado:

normas eleitorais complementares (Constituição...). 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2011.

MACHADO, Jonatas E. M. A jurisprudência constitucional portuguesa diante das ameaças à liberdade

religiosa. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, v. 82, p. 65-134, 2006.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 28ª edição. São Paulo: Atlas, 2012.

ROCHA, Luiz Alberto G. S. Notas sobre a relação entre o Estado e a Igreja. In: ALMEIDA, Fernando Dias

Menezes de. [et. al.] (coord.). Direito Constitucional, Estado de Direito e Democracia: Homenagem ao

Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Quartier Latim, p. 461-480, 2011.

Page 81: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE82

STRECK, Lênio Luiz. Entre Hobbes e Rousseau – a dupla face do princípio da proporcionalidade e o

cabimento de mandado de segurança criminal. In: ________________ (organizador). Direito Penal

em tempos de crise, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, p. 75-110, 2007.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 12ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014.

WALZER, Michael. Da Tolerância. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ZAGREBELSKY, Gustavo. Estado Constitucional. Tradução de Carlos Bastide Horbach e José Levi Mello

do Amaral Júnior. In: ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. [et. al.] (coord.). Direito Constitucional,

Estado de Direito e Democracia: Homenagem ao Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo:

Quartier Latim, p. 291-314, 2011.

Page 82: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE83

ENSAIO SOBRE ELABORAÇÃO DE LAUDO PERICIAL NAS AÇÕES

INDENIZATÓRIAS DECORRENTES DE DOENÇA OCUPACIONAL.

ORIENTAÇÕES AO PERITO

1Juliana Martins Barbosa 2Marco Antônio Miranda Mendes

RESUMO INFORMATIVO

O presente trabalho tem por escopo auxiliar os peritos médicos na elaboração do laudo pericial

que envolva doenças ocupacionais, mediante apresentação dos elementos necessários na redação do laudo

e emissão do parecer.

PALAVRAS-CHAVE: Laudo pericial; elementos; requisitos; doença ocupacional

ENSAIO SOBRE ELABORAÇÃO DE LAUDO PERICIAL NAS AÇÕES INDENIZATÓRIAS

DECORRENTES DE DOENÇA OCUPACIONAL. ORIENTAÇÕES AO PERITO

A Emenda Constitucional 45/2004 alargou substancialmente a competência da Justiça do

Trabalho, que, atualmente, inclui o processamento dos pleitos indenizatórios decorrentes de doença ou

acidente de trabalho (art. 114, inc. VI, da Carta Maior).

Em que pese todo o arcabouço jurídico de proteção ao trabalhador, a prática forense revela alto

índice de ações que envolvem pedidos de natureza acidentária – é raro o dia em que o magistrado não

manuseia processo no qual o trabalhador sofreu acidente de trabalho.

De bom alvitre lembrar que a expressão acidente de trabalho engloba também as doenças

ocupacionais e profissionais, por força do disposto no art. 21 da Lei nº 8.213/91. Essas doenças, que não

decorrem de um evento pontual específico assolam milhares de trabalhadores brasileiros, já que o

adoecimento é gradativo e, muitas vezes, há uma inércia na interrupção do processo degenerativo, o que

reflete no número de processos ajuizados que discutem questões indenizatórias referentes aos danos daí

advindos.

Nesse tipo de ação, a prova pericial assume papel de relevo, pois é ela que viabiliza a

apreciação dos pedidos com segurança e propicia a concretização da missão do juiz, qual seja, a promoção

da justiça.

Não obstante a importância da prova pericial, muitos laudos apresentam omissões e

incongruências, e isso leva o juiz à reabertura da instrução processual para que o perito preste

esclarecimentos, gerando um retrabalho do Judiciário (cita-se: necessidade de intimação das partes e

peritos, certificação de prazos, realização de carga, dentre outros), atrasando a marcha processual e ferindo

o princípio da celeridade.

Nossa experiência de vida profissional permitiu perceber que essas incongruências não

1Juíza do Trabalho Substituta

2Juiz Titular do Trabalho

Page 83: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE84

decorriam do despreparo do perito em sua área de formação (médica), e sim da forma como interagiam

com o juiz, como compreendiam o processo judicial e os conceitos jurídicos sobre nexo de causalidade e

concausalidade.

Diante da alegação de doença adquirida no trabalho, notamos em nossa área de atuação, que

havia casos em que o juiz de pronto nomeava perito da área da saúde para elaboração do laudo, sem antes

definir fatos que poderiam afetar o resultado da perícia, transferindo ao perito o ônus de investigar e

instruir o processo, dirimindo controvérsias, tais como: locais trabalhados pelo empregado; atividade

executada; eventual mudança do ambiente de trabalho; forma de trabalho (p. ex. se em pé, sentado); a

existência de pausas e micro-pausas; o tipo de doença a ser investigada.

Também notamos que em raríssimas ocasiões o magistrado fazia entrevista técnica com o

perito antes de nomeá-lo, o que transformava a primeira perícia numa verdadeira experiência.

Dessas observações, passamos a adotar um novo modelo de trabalho, que busca estreitar os

laços entre juiz e perito, chamando a atenção para os pontos relevantes da perspectiva processual e

material e também ouvindo quais eram as dificuldades para realização da perícia, pois não há dúvidas de

que, quando se abre espaço para o diálogo, cria-se espaço para a melhoria do próprio trabalho.

Antes de encaminhar os autos ao perito, passamos a instruir o processo, obtendo informações

relevantes, identificando a existência de controvérsia acerca dos locais trabalhados, atividades exercidas,

mudança do ambiente de trabalho, forma de trabalho (p. ex. se em pé, sentado, revezamento de atividade),

concessão de pausas e micro-pausas.

Também passamos a definir na audiência inicial o tipo de queixa a ser investigada (dor em

alguma parte do corpo, limitação de movimento) e procuramos investigar sobre a existência de exames

laboratoriais já realizados que não foram juntados aos autos, deferindo prazo para juntada. Igualmente,

procuramos saber se o empregado fez automedicação, se houve ou não abandono de tratamento (para saber

em quanto isso poderia ter agravado o estado de saúde do trabalhador).

Quando necessário, em casos em que já houve procedimento cirúrgico, ouvimos o médico que

fez a cirurgia e ministrou tratamento como testemunha do juízo, no próprio gabinete médico, em dia e

horário especialmente designado – o que tem se mostrado salutar, pois são apresentadas informações

relevantes.

Também diligenciamos no sentido de exigir a apresentação dos exames obrigatórios (ASO –

atestado de saúde ocupacional), ficha médica, ficha de internação. Por fim, buscamos levantar o histórico

laboral do reclamante (vida profissional pregressa, o que inclui detalhamento das atividades

desenvolvidas, o tempo de duração, bem como a existência de afastamentos previdenciários prévios,

dentro outros).

Somente depois de colhidas essas informações, encaminhamos os autos ao perito.

Ainda, passamos a entrevistar os peritos e a fornecer-lhes orientação por escrito sobre: a)

conceitos jurídicos de nexo de causalidade, concausalidade, b) verdade real e verdade processual, c)

limites da prova judicial, princípio do contraditório e ampla defesa, d) o que se espera do conteúdo do

laudo pericial, na nossa visão; e) deveres e modelos de laudos aprovados; f) explicações da administração

judiciária dos processos, acerca das cobranças de Metas do CNJ com relação celeridade judicial,

Page 84: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE85

enfatizando que o perito deve entregar o laudo no menor tempo possível

Também, passamos a fornecer subsídios ao perito: cópia da Lei nº 11.430/2006 com

orientações sobre aplicação do NTEP às perícias; OS INSS/DSS Nº 606, de 5 agosto de 1998, com

importantes recomendações sobre a investigação do perito e conteúdo do laudo pericial nos casos de

doenças ocupacionais; Res CFM nº 1.488/1998 que orienta o perito médico sobre atribuições.

Recomendanis que o perito estude as NRs, especialmente a NR 17 que trata da ergonomia.

O resultado foi uma melhoria substancial na qualidade do laudo apresentado, e um ganho

inegável de celeridade. Notamos uma substancial diminuição do tempo de elaboração do laudo, embora

neste momento não possamos apresentar as estatísticas reais.

O presente trabalho tem por escopo partilhar nossa experiência e apresentar uma espécie de

guia para auxiliar o perito na elaboração do laudo médico cujo objeto seja a investigação de doenças

ocupacionais, mas pode ser útil aos advogados e juízes.

Por opção didática, ele será dividido em quatro fases e, tendo em conta o público alvo, serão

apresentados alguns conceitos, que, para o operador do direito podem parecer básicos, mas que nem

sempre são de conhecimento do profissional da área de saúde.

FASE 01 – INVESTIGAÇÃO DO DANO

Inicialmente, é necessário avaliar a existência do dano, pois todo pedido indenizatório

pressupõe sua existência. Porém, nem todo dano será objeto de investigação pelo expert, uma vez que os

limites são fixados na petição inicial.

O juiz deve decidir a lide nos limites em que foi proposta (art. 128 do CPC). Nessa senda, o

perito deve nortear sua atuação em respeito àqueles limites. A exemplo, se o autor narrou na inicial que

desenvolveu problema nos membros superiores e, no momento da perícia, o expert constata que há

também lesão no membro inferior, essa última não deve ser objeto de perícia, porque além dos limites

noticiados na exordial.

Por outro lado, há casos em que existe exame evidenciando que, durante o contrato, o

trabalhador apresentou uma lesão. Todavia, no momento da anamnese pericial, o expert verifica que o

trabalhador está são. Nessa hipótese cabe ao perito prosseguir a diligência, pois a doença pode ter gerado

algum prejuízo pretérito, que deverá ser indenizado, caso haja pedido específico.

Prática salutar por nós adotada é, no momento da audiência inaugural, estabelecer os exatos

limites do objeto da perícia, deixando claro, inclusive, quais as doenças ou região corporal afetada que

serão objeto de estudo no processo.

Ao diagnosticar uma lesão ou doença o perito deve descrevê-la, de forma sintética, para que o

juiz possa compreender em que consiste a patologia, pois, muitas vezes os termos técnicos são

desconhecidos do magistrado e das partes. É aconselhável, também, que se informe sobre a gravidade da

doença, ou seja, o estágio em que a lesão se configura, porque esse dado pode servir de parâmetro na

valoração da indenização.

Para o diagnóstico o perito poderá utilizar-se de anamnese, análise de exames constantes do

caderno processual ou, ainda, solicitação de novos exames.

Page 85: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE86

Caso haja pedido de indenização por dano estético, o perito deve instruir o laudo com uma

fotografia da parte supostamente lesionada, possibilitando ao Juízo aferir a existência e extensão da lesão.

A depender da lesão, como cicatrizes, é possível que exista tratamento possibilitando a melhora do quadro

clínico, hipótese em que se recomenda ao perito noticiá-lo.

FASE 02 – EXISTÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE

Essa fase está condicionada a existência de dano, seja presente, ou pretérito. Logo, não

havendo constatação do dano, conseqüência é que o restante da perícia fica prejudicado.

O perito deve estar atento aos conceitos jurídicos de nexo de causalidade e de nexo de

concausalidade, sendo que as causas remotas não geram nexo de causalidade.

Nexo de causalidade com o trabalho ocorre quanto a atividade laboral é a única causa

determinante ao surgimento da patologia objeto de investigação.

Nexo de concausalidade com o trabalho ocorre quando a atividade laboral atua como causa de

agravamento da patologia, hipótese em que o trabalhador desenvolveria a patologia independente de estar

inserido na dinâmica laboral da empresa, contudo, a patologia apresentaria um grau menor.

Inexistência de nexo ocorre quando o trabalhador desenvolveria a patologia objeto de estudo,

no mesmo grau, independente da exposição ao ambiente laboral em que esteve inserido.

Atento a esses conceitos o perito deve emitir parecer acerca da existência de nexo de

causalidade/concausalidade entre a doença objeto de estudo nos autos e a atividade laboral desenvolvida.

Acaso exista nexo técnico epidemiológico entre a doença e a atividade, acreditamos na

existência de presunção de nexo de causalidade. Todavia, o perito deve proceder a análise do caso

concreto.

Orientamos que o perito compareça à empresa, e, observando o limite da verdade processual

definida pelo juiz, especialmente quando de comum acordo com as partes, avalie o ambiente de trabalho e

a dinâmica produtiva, esclarecendo porque a doença está ou não relacionada ao trabalho. Compete, então,

ao profissional, elencar as possíveis causas da patologia e expor com clareza quais dessas causas estavam

presentes na atividade laboratícia.

Acaso a causa seja os movimentos em posição anti-ergonômica, enriquece o trabalho coligir

fotografia do ambiente e da postura em que os membros permaneçam em angulação inadequada. Ainda, o

perito pode valer-se de elementos presentes nos autos, como cartões-ponto que evidenciem sobrejornada,

como elemento de convicção.

O perito deve estar ciente de que as conclusões do laudo são de probabilidade, especialmente

no que diz respeito ao nexo de causalidade entre a doença e do trabalho: muito provável, provável, pouco

provável ou improvável.

Há doenças que são multicausais. Havendo multicausalidade de fatores laborais e não

laborais, o perito deve considerá-los separadamente, por abstração. Acaso o parecer seja pelo nexo de

causalidade, compete ao perito esclarecer por qual motivo os outros fatores não foram a causa direta da

doença (a exemplo, porque não estavam presente em grau suficiente ao adoecimento; porque não restou

comprovada a exposição a tal fator; porque o grau evolutivo da patologia não se constata quando a causa é

Page 86: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE87

diversa).

Emitindo parecer acerca da concausalidade, cabe ao perito, arbitrar o percentual que a

atividade laborativa contribuiu para o surgimento ou agravamento da doença, pois, à luz a legislação

vigente, a reparação está atrelada à extensão do dano (art. 944 do Código Civil).

Do contrário, emitindo parecer acerca da concausalidade, cabe ao perito, arbitrar o percentual

que a atividade laborativa contribuiu para o surgimento ou agravamento da doença, pois, à luz a legislação

vigente, a reparação está atrelada à extensão do dano (art. 944 do Código Civil).

FASE 03 – ELEMENTOS DE CULPA

Na terceira fase de avaliação, cabe ao perito avaliar a existência de elementos de culpa no

surgimento do dano.

O presente trabalho não tem por escopo discutir teorias sobre responsabilização civil – se

objetiva, ou subjetiva. Diante disso, partiremos da regra geral, que é a responsabilidade civil subjetiva, ou

seja, exige-se a demonstração da culpa do causador do dano (art. 7º, inc. XXVI, da Constituição Federal e

caput do art. 927 do Código Civil).

De mais a mais, acreditamos que o bom laudo pericial deve sempre avaliar a existência de

culpa por parte do causador do dano, pois, ainda que em primeiro grau o magistrado adote uma postura

vanguardista de aplicação incondicionada da responsabilidade objetiva, não devemos olvidar que o duplo

grau de jurisdição existe, devendo, portanto, a prova ser a mais completa possível, possibilitando a análise

do pleito, tanto pela ótica da responsabilidade civil objetiva, quanto pela subjetiva.

Ao avaliar a culpa do causador do dano, o perito deve elencar quais as providências que a

reclamada deveria ter tomado para evitar a doença, apontando precisamente as Normas de Segurança e

Medicina do Trabalho infringidas (carga de trabalho, insuficiência de pausas, adequação de rodízio de

grupos musculares, retorno gradativo após licenças médicas, etc.). O bom perito deve ser profundo

conhecedor das NRs, especialmente da NR 17.

Muitas vezes, verificamos que, na prática, elementos de culpa se miscigenam com a própria

causa do dano. A exemplo, é comum que movimentos repetitivos prolongados causem doenças

osteomusculares. Logo, verificamos que a exposição contínua é causa da doença e também elemento de

culpa, pois acaso respeitada a jornada máxima constitucional a doença poderia ter sido evitada.

Diante disso, compete ao profissional pontuar essa característica na elaboração do parecer.

Outro fator que deve observado é a atitude do empregado. Isso porque há casos em que o

empregador pratica ação/omissão culposa, mas o empregado também é co-responsável pelo quadro

clínico apresentado. Ilustrativamente, constatamos que há muitos trabalhadores que se recusam a

participar dos programas preventivos promovidos pela empresa, que fazem uso de auto-medicação ou,

ainda, que não buscam auxílio-médico.

Nessas situações, em que a doença agrava-se ou prolonga-se por fatores conjugados atribuídos

tanto ao empregado quanto ao empregador, pensamos que o perito deve ter a atenção de fornecer esses

elementos ao Juízo, arbitrando, inclusive, um percentual de culpa do empregado no

surgimento/agravamento da doença.

Page 87: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE88

FASE 04 – AVALIAÇÃO DE EXTENSÃO DO DANO

Didaticamente, optamos por dispor na fase final a avaliação da extensão do dano. Todavia,

essa avaliação poderia ter ocorrido juntamente com a fase um, oportunidade em que o perito descreveu a

patologia.

Como a maioria da ações indenizatórias envolvem pedidos de pensionamento e de custeio de

tratamento médico, o perito deve informar se há tratamento médico que o trabalhador possa fazer,

possibilitando a cura ou remissão das patologias. Caso a resposta seja positiva, deverá informar o prazo

médio do tratamento, com base no seu conhecimento técnico e em casos análogos. É importante noticiar o

custo total desse tratamento, fornecendo elementos para o Juízo apreciar os pedidos de natureza

indenizatória.

Por fim, o expert deverá avaliar o trabalhador e informar se as doenças são incapacitantes para

trabalho e para a vida privada. Havendo incapacidade, o laudo deve apresentar o grau de incapacidade,

bem como a informação acerca da definitividade ou não dessa incapacidade. Compete ao perito, por

abstração, informar se remanescerá incapacidade (e em que grau) caso o trabalhador se submeta ao

integral tratamento indicado.

CONCLUSÃO

Os processos que visam reparação em decorrência de doença demandam percuciente dilação

probatória, pois neles se persegue a tutela (ainda que reparatória) de um caro direito assegurado ao

trabalhador – sua saúde, que, em última análise, contribui para uma existência digna.

Assim, a prova pericial é extremamente importante, na medida em que é o principal elemento

de convicção para o julgamento. O laudo bem redigido e completo, à luz de todo o exposto, é aquele no

qual o perito realiza uma análise sistêmica da doença, do ambiente de trabalho e também das atividades

extralaborais do empregado, pois o ser humano é complexo e multifacetário.

Compete, ainda, ao expert conhecer profundamente as NRs e fazer uma detida avaliação

acerca da existência de nexo de causalidade e extensão do dano, além de fornecer ao Juízo elementos para

avaliação da culpa das partes.

Nesse diapasão, a atuação do magistrado também é destacada nesse tipo de processo, sendo

aconselhável a análise de solução de pontos controvertidos antes de se remeter os autos ao profissional da

área técnica, a quesitação judicial e o estreitamento do diálogo entre magistrado e perito.

O trabalho conjunto, a nosso ver, é extremamente frutífero e suplanta eventuais dificuldades

de implementação, pois, a longo prazo, propicia a celeridade processual e confere maior segurança no

julgamento.

Page 88: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

O PAGAMENTO DE “SALÁRIO POR FORA” E SUAS CONSEQUÊNCIAS

PERANTE OS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS.

1Marcel de Avila Soares Marques

Resumo:

A Justiça do trabalho vem se deparando diuturnamente com a figura do pagamento de salário “por fora”,

não integrando a remuneração no momento da apuração do valor da contribuição previdenciária.

Consequência direta de tal prática é a redução considerável dos valores dos benefícios a serem concedidos

aos segurados. Debater-se-á, no presente artigo, tais consequências e a forma com que a Justiça do

Trabalho vem decidindo para amenizar tais prejuízos de ordem material.

ARTIGO:

A denominação salário decorre da época em que o pagamento era feito com pacotes de sal,

momento em que o papel moeda não tinha, ainda, se firmado. O sal era um produto valioso e de difícil

acesso, pois não se podia obter por cultivo.

Ainda que, atualmente, o sal seja um produto de fácil obtenção e de largo alcance da

sociedade, o termo salário se firmou e permanece sendo utilizado. Destaca-se que ainda remanesce a

possibilidade de o salário também ser pago por produtos e não apenas em papel moeda, como veremos nos

preceitos legais abaixo elencados.

O conceito mais básico de salário se restringe em afirmar que é a contraprestação pelo

serviço prestado. A nossa legislação trabalhista, especificamente a Consolidação das Leis do Trabalho

traz, em seu art. 457, que salário é a verba paga diretamente pelo empregador. O §1º do mesmo artigo

predispõe que “integram o salário, não apenas a importância fixa estipulada, como também as comissões,

percentagens, gratificações ajustadas, diárias para viagem e abonos pagos pelo empregador.

Já o art. 458, do mesmo diploma legal, prescreve que “além do pagamento em dinheiro,

compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras

prestações “in natura” que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao

empregado”.

Marcelo Moura afirma que “a teoria da contraprestação do contrato de trabalho” ampliou

os fundamentos de retribuição para abranger circunstâncias onde o empregado sequer está a disposição do

empregador, como nos descansos obrigatório, a exemplo do repouso semanal, férias, etc; a teoria abrange

também paralisações nos serviços do empregado nas quais seu trabalho é proibido, mas permanece a

obrigação de pagar salário, como na interrupção contratual por motivo de doença nos primeiros dias de

afastamento. A aplicação desta teoria, que é a mais aceita para explicar os fenômenos de interrupção do

contrato de trabalho, não justifica considerar todos os pagamentos feitos ao empregado como salário; a

retribuição prelo contrato de trabalho possui, predominantemente, natureza salarial, mas existem outros

pagamentos, também decorrentes do contrato de trabalho, que têm natureza indenizatória, como os

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE89

1Juiz do Trabalho do TRT15.

Page 89: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE90

exemplos da ajuda de custo e diárias para viagem que não excedam em 50% do salário do empregado.

Por fim, Amauri Mascaro Nascimento explica que “ampliou-se o pressuposto do

pagamento do salário que não se restringiu à contraprestação ou à disponibilidade, passando a abranger,

também, as paralizações remuneradas do trabalho, com o que a doutrina direcionou-se numa diretriz

excessivamente larga, a da correspondência entre salário e contrato de trabalho para afirmar que aquele é o

conjunto de pagamentos efetuados neste. É fácil desde logo ver que nem todos os pagamentos a que o

empregador está obrigado, como as indenizações, podem ser enquadrados no conceito de salário, o que

prejudica a amplitude da teoria”.

Destarte, adotamos o conceito construído por Amauri Mascaro Nascimento “considerando

salário como o conjunto de prestações econômicas do trabalhador, em contraprestação ao trabalho, por sua

disponibilidade e nas interrupções e intervalos remunerados pelo empregador”, excluindo-se as

prestações com natureza de indenização, as vantagens assistenciais e gastos destinados à capacitação

profissional do empregado.

Seguindo nessa toada passamos a analisar o conceito de remuneração. O art. 457 da

Consolidação das Leis do Trabalho traz expresso que “compreende-se na remuneração do empregado,

para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como

contraprestação do serviço, as gorjetas que receber”.

O artigo em comento sacramenta duas formas de pagamentos feitos ao empregado.

Homero Batista da Silva leciona no sentido de que “num primeiro conjunto se agregam todos os

pagamentos feitos pelo empregador, sob qualquer título e mediante qualquer frequência, sendo irrelevante

saber se o pagamento assumiu natureza salarial ou manteve o caráter meramente indenizatório. Num

segundo conjunto se aliam os pagamentos feitos por terceiros, parcelas essas que, conquanto não

provenham diretamente dos cofres do empregador, acham-se atreladas ao contrato de trabalho porque

somente por sua existência e pela prestação de serviços do trabalhador é que eles foram desencadeadas”.

Seguindo em sua lição, afirma que “em tese, poderia passar em brancas nuvens a diferença

entre o conjunto maior (remuneração) e o conjunto menor (salário), até porque são relativamente pouco

numerosas as profissões que se beneficiam de pagamentos feitos por terceiros. O exemplo do garçom, que

recebe gorjetas dos clientes por força de usos e costumes antiquíssimos, é sempre lembrado no estudo dos

pagamentos feitos por terceiros, mas se bem analisado o tema se percebe que essa profissão representa uma

exceção em meio a tantas outras que jamais auferem qualquer tipo de bonificação por parte dos clientes ou

dos fornecedores. Profissões existem, aliás, que nem ao menos conhecem a figura do cliente ou do

fornecedor, especialmente na área de prestação de serviços. Lembrem-se, ainda, das diversas profissões

que giram em torno de atividades não econômicas, coo os empregados de lares, casas de caridades, entes

públicos, etc”.

Page 90: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE91

Destacamos que, por ora, é desnecessário o aprofundamento da questão, o que devemos

destacar nesse momento é que o pagamento realizados por terceiros também integra a remuneração

gerando reflexos diretos nas demais verbas trabalhistas, bem como nas contribuições fiscais e

previdenciárias incidentes, com destaque maior às contribuições previdenciárias que geraram efeitos

diretamente nos benefícios previdenciários.

Cumpre destacar que a lei 8.212/91, ao fixar as bases de cálculo de suas contribuições,

estabeleceu a remuneração como seu principal conceito. Vamos nos debruçar sobre os conceitos de salário

de contribuição e salário de benefício.

A conceituação do salário de contribuição se mostra tamanho importante uma vez que ele é

base de cálculo das contribuições previdenciárias da maioria dos segurados, com a exceção do segurado

especial (a contribuição incide sobre a receita bruta da comercialização da sua produção) e também serve

para fixar a base de cálculo das contribuições previdenciárias das empresas, além de servir como base de

cálculo do salário de benefício, responsável pela quantificação de grande parte dos benefícios

previdenciários concedidos.

O professos Fábio Zambitte explica que o salário de contribuição é “a expressão que

quantifica a base de cálculo da contribuição previdenciária dos segurados da previdência social,

configurando a tradução numérica do fato gerador”.

A lei 8.212/91, como afirmado anteriormente, conceituou, em seu art. 28, o instituto do

salário de contribuição, inclusive especificando este conceito em relação a cada tipo de segurado do

Regime Geral de Previdência Social.

Giza o artigo:

Art. 28. Entende-se por salário-de-contribuição:

I - para o empregado e trabalhador avulso: a remuneração auferida em uma ou mais

empresas, assim entendida a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título,

durante o mês, destinados a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os

ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos

serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços nos

termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa;

(Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)

II - para o empregado doméstico: a remuneração registrada na Carteira de Trabalho e

Previdência Social, observadas as normas a serem estabelecidas em regulamento para comprovação do

vínculo empregatício e do valor da remuneração;

III - para o trabalhador autônomo e equiparado, empresário e facultativo: o salário-base,

observado o disposto no art. 29.

III - para o contribuinte individual: a remuneração auferida em uma ou mais empresas ou

pelo exercício de sua atividade por conta própria, durante o mês, observado o limite máximo a que se refere

o § 5o; (Redação dada pela Lei nº 9.876, de 1999).

IV - para o segurado facultativo: o valor por ele declarado, observado o limite máximo a

que se refere o § 5o. (Incluído pela Lei nº 9.876, de 1999).

Page 91: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE92

Quando se analisa os empregados e trabalhadores avulsos a lei é bem clara ao definir o

salário de contribuição a partir da remuneração do segurado, não sendo apenas a parte fixa, mas também as

comissões, gorjetas e todas a conquistas sociais condicionais como as horas extras, o adicional noturno, o

adicional de insalubridade e periculosidade, o 13º salário, etc. Merece destaque a expressão “a qualquer

título” que deixa claro que a denominação da parcela remuneratória não tem importância, devendo ser

levado em consideração apenas a realidade dos fatos, ou seja, caso concluído que a verba paga, creditada

ou devida ao trabalhador foi para retribuir pelo seu trabalho será corretamente considerado como salário

de contribuição.

Quantos aos empregados domésticos, a lei é autoexplicativa ao determinar que o salário de

contribuição é a remuneração registrada na Carteira de Trabalho e Previdência Social, observadas as

normas a serem estabelecidas em regulamento para comprovação do vínculo empregatício e do valor da

remuneração

Não nos debruçaremos na análise do salário de contribuição dos trabalhadores autônomos e

equiparados, contribuintes individuais e segurados facultativos pois em tais situações não nos deparamos

com relações empregatícias que permita a caracterização do salário pago “por fora”.

Diante de tais informações, vamos listar, de forma exemplificativa, parcelas que integram

ou não o salário de contribuição:

Integram: Salário, horas extras, comissões e percentagens, adicional de insalubridade e

periculosidade, adicional noturno, adicional de tempo de serviço, adicional de transferência, ajuda de

custo paga mensalmente, férias gozadas, 13º salário, 13º salário proporcional pago na rescisão, 13º salário

referente a 1/12 do aviso prévio indenizado, aviso prévio trabalhado, gratificações de desempenho pagas

habitualmente e diárias superiores a 50% da remuneração.

Não integram: Venda de 10 dias de férias, adicional de 1/3 de férias gozadas ou

indenizadas, férias indenizadas, gratificação de desempenho pagas eventualmente, diárias de até 50% da

remuneração, participação nos lucros e resultados, distribuição de lucros e dividendos, salário

maternidade, benefícios pagos pelo Regime Geral de Previdência Social, vale transporte, vale alimentação

ou cesta básica, auxílio creche ou auxílio babá, previdência complementar, plano de saúde, complemento

de auxílio doença, plano de educação, bolsa de estudos/estágio, multa de 40% do FGTS, ajuda de custo

para mudança paga em única parcela, seguro de vida em grupo, abono do PIS, programa de demissão

voluntária, direitos autorais e vale cultura.

Ultrapassado o conceito de salário de contribuição devemos analisar a figura do salário de

benefício. A maioria dos benefícios previdenciários utiliza, para apuração do seu valor, a técnica do

chamado salário de benefício.

A legislação prevê que o salário de benefício é o valor básico utilizado para o cálculo da

renda mensal dos benefícios de prestação continuada, exceto o salário família, a pensão por morte, o

salário maternidade e os demais benefícios de legislação especial (art. 31 do decreto 3.048/99).

O art. 28 da lei 8.213/91 também determina que o valor do benefício de prestação

continuada, inclusive o regido por norma especial e o decorrente de acidente do trabalho, exceto o salário

Page 92: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE93

família e o salário maternidade, será com base no salário de benefício.

A definição do benefício previdenciário se dá pela aplicação de um percentual sobre o

salário de benefício encontrado para o segurado.

Cada benefício tem determinado em lei a forma de apuração do valor a ser pago aos

segurados, com base no salário de benefício. A apuração do salário de benefício é obtida, em regra, pela

apuração da média aritmética dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% de todo o

período contributivo (art. 29 da Lei 8.213/91).

Superado os conceitos de salário, remuneração, salário de contribuição e salário de

benefício, cumpre destacar que a Justiça do Trabalho no Brasil tem se deparado, com alta frequência, com

a alegação de que o empregador paga parte do salário “por fora”, sem constar no contracheque e

consequentemente sem integrar a remuneração do empregado.

Tal situação gera efeitos diretos na apuração dos benefícios previdenciários a serem

recebidos pelo empregado segurado. Como vimos anteriormente, a contribuição previdenciária incide sob

o denominado salário de contribuição que tem por base a remuneração do empregado.

A apuração da remuneração do empregado se dá através da soma dos valores recebidos e o

documento que apresenta tais valores é o contracheque. Ademais, o Colendo TST já pacificou que toda e

qualquer verba paga deve ser explicitada individualmente no contracheque, não permitindo a figura do

salário complessivo (súmula 91 do TST).

Destarte, qualquer valor pago ao empregado que não tenha figurado em seu contracheque

não irá integrar a sua remuneração, consequentemente também não integrará o salário de contribuição,

bem como o salário de benefício, gerando como consequência direta a redução do valor do salário de

benefício e o benefício a ser recebido pelo empregado segurado.

Diante de tais constatações, surgiram na Justiça do Trabalho pedidos de indenização por

danos materiais decorrentes do pagamento de salário “por fora” que reduziram o valor do benefício

recebido pelo reclamante, seja qual for, já tendo nos deparado com os benefícios de aposentadoria por

tempo de contribuição, bem como o benefício de auxílio doença.

A Justiça do Trabalho não pode avalizar tal conduta, pois o pagamento de salário “por fora”

é ilegal devendo ser combatido. Em um primeiro momento, a justiça especializada reconheceu sua

incompetência para tal pedido pois o reconhecimento do pagamento de salário “por fora” gera,

automaticamente, o dever de recolher os valores devidos à título de contribuição previdenciário, fazendo

surgir o direito à revisão do benefício.

Em contrapartida, muitas condenações não obtiveram sucesso na execução das

contribuições previdenciárias e automaticamente o reclamante, parte diretamente lesada com tal prática,

continuava a ser lesada mensalmente recebendo benefício em valor inferior ao que deveria receber.

Diante de tal fato, recentemente, o Colendo TST decidiu acerca da matéria, reformando

decisões de Tribunais Regionais determinando que enquanto os recolhimentos e a revisão do benefício não

fossem efetivamente consolidados sejam pagos valores mensais a título de danos materiais em valores que

complementem os benefícios recebidos a menor.

Page 93: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE94

Colaciono decisão do TST nesse sentido:

Discute-se se o fato de a percepção de benefício previdenciário a menor, decorrente da ausência de integração de parcelas trabalhistas no cálculo do salário de contribuição, por culpa da reclamada, enseja o direito pelo empregado à reparação. No caso, não há dúvida de que se a reclamada tivesse cumprido com suas obrigações trabalhistas, aqui entendidas como o pagamento de todas as parcelas devidas durante o contrato de trabalho, nova renda mensal teria sido considerada para o cálculo do salário-de-contribuição. Ainda que não se negue a poss ibi l idade de revisão do benef íc io administrativamente, deve ser considerado que, ao longo da aposentadoria, o fato de o empregador ter deixado de cumprir suas obrigações quanto ao recolhimento da contribuição previdenciária, incorrendo, portanto, em ilegalidade, acarretou prejuízos ao empregado, com a percepção de benefício previdenciário a menor. Esse prejuízo se torna mais evidente quando se tem em mente que, para o cálculo da aposentadoria, é considerada a média dos maiores salários corrigidos, e que, com o reconhecimento do direito às parcelas que deixaram de integrar aquele cálculo, os reflexos dessa decisão somente alcançariam cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação (prescrição quinquenal). Com efeito, o art. 29 da Lei nº 8.213/91 estabelece que: Art. 29. O salário-de-benefício consiste:I - para os benefícios de que tratam as alíneas b e c do inciso I do art. 18, na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo, multiplicada pelo fator previdenciário; (Incluído pela Lei nº 9.876, de 26.11.99) II - para os benefícios de que tratam as alíneas a, d, e e h do inciso I do art. 18, na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo. (Incluído pela Lei nº 9.876, de 26.11.99) (grifou-se) Ou seja, além da violação do direito às parcelas devidas durante a relação de trabalho e da percepção do benefício previdenciário a menor por culpa da reclamada, o empregado não terá direito aos reflexos dessas parcelas em relação a todo o período contributivo. É o que se extrai dos precedentes do eg. Tribunal Regional Federal da 1ª Região: PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE BENEFÍCIO JÁ PROCEEDIDO PELA AUTARQUIA. COBRANÇA DE PARCELAS NÃO PAGAS. POSSIBILIDADE. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS DE MORA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. É inequívoco o direito da parte autora de receber as parcelas pretéritas de seu benefício previdenciário manifestamente reconhecido pelo INSS quando efetuou a revisão da RMI em 22.05.2005 para considerar o período laborado em condições especiais e alterar o valor do benefício inicialmente concedido, respeitada a prescrição quinquenal. 2. Os juros moratórios e a correção monetária incidentes sobre as parcelas atrasadas devem observar as orientações do Manual de Cálculos da Justiça Federal, aprovado pela Resolução/CJF 134, de 21.12.2010. 3. A verba honorária deve ser fixada no percentual de 10% dez por cento) incidentes apenas sobre as parcelas vencidas até a prolação da sentença, nos termos da Súmula nº 111 do eg. STJ, bem como em atendimento ao disposto no art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil.4. Apelação e remessa oficial parcialmente providas para determinar que a incidência de juros, honorários advocatícios e correção monetária se dêem na forma dos itens 2 e 3 desta ementa. (Numeração Única: 0014971-22.2010.4.01.3800 AC 2010.38.00.006004-2 / MG; APELAÇÃO CIVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES, PRIMEIRA TURMA, PUBLICAÇÃO 19/08/2013 e-DJF1 P. 906 (grifou-se) PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE BENEFÍCIO. RECÁLCULO DA RENDA MENSAL INICIAL. INCLUSÃO DE PARCELAS SALARIAIS RECONHECIDAS EM RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. POSSIBILIDADE. CORREÇÃO

Page 94: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE95

MONETÁRIA. JUROS DE MORA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. É devida a revisão do cálculo da RMI do benefício do autor, com a inclusão, nos salários-de-contribuição que compuseram o período básico de cálculo, das parcelas salariais reconhecidas em reclamação trabalhista, sobre as quais foram recolhidas as contribuições previdenciárias. 2. Caso em que o juiz de base extinguiu o processo por ausência do trânsito em julgado da reclamatória trabalhista. Sobrevindo o trânsito, conforme consulta ao sítio eletrônico do TRT da 3ª Região, encontra-se o feito em condições de julgamento, sendo-lhe aplicável o disposto no § 3º do art. 515 do Código de Processo Civil. 2. "O fato de o INSS não ter participado da lide trabalhista e a dúvida quanto à natureza das parcelas pleiteadas judicialmente (se integrantes ou não do salário-de-contribuição, a teor do disposto no art. 28 da Lei 8.212/91), não impedem a inclusão do valor reconhecido pela Justiça Obreira no cálculo do salário-de-benefício porque houve recolhimento da contribuição previdenciária. Precedentes: AC 2000.38.00.006658-6 /MG, Rel. Desembargador Federal ANTONIO SAVIO DE OLIVEIRA CHAVES, 1ª Turma, unânime, in DJ 24 /11 /2003 P.24; AC 2000.38.00.012387-5 /MG, 1ª Turma, Rel. Desembargador Federal JOSÉ AMILCAR MACHADO, unânime, in DJ 16 /02 /2004 P.22 e AC 1999.38.00.025417-5 /MG, 2ª Turma, Rel. Desembargador Federal CARLOS MOREIRA ALVES, unânime, in DJ 22 /03 /2004 P.40." (AC 2005.38.00.009932-8/MG, Rel. Desembargador Federal Luiz Gonzaga Barbosa Moreira, Primeira Turma,e-DJF1 p.93 de 16/09/2008) 3. Os juros moratórios e a correção monetária incidentes sobre as parcelas atrasadas devem observar as orientações do Manual de Cálculos da Justiça Federal, aprovado pela Resolução/CJF 134, de 21.12.2010. 4. Em vista da sucumbência da autarquia, a verba honorária deve ser fixada no percentual de 10% dez por cento) incidentes apenas sobre as parcelas vencidas até a prolação da sentença, nos termos da Súmula nº 111 do eg. STJ, bem como em atendimento ao disposto no art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil. 5. Apelação do autor a que se dá provimento, para, anulando a sentença e prosseguindo no julgamento do feito, condenar o INSS a retificar o cálculo da aposentadoria do autor incluindo as parcelas reconhecidas pela Justiça do Trabalho, sendo-lhe devidas as parcelas atrasadas, à exceção daquelas atingidas pela prescrição quinquenal, corrigidas monetariamente e acrescidas de juros consoante o disposto no item 3 desta ementa. Numeração Única: AC 0000760-02.2011.4.01.3814 / MG; APELAÇÃO CIVEL; DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES, PRIMEIRA TURMA, Publicação 19/08/2013 e-DJF1 P. 816 (grifou-se) , Sendo assim, por qualquer ângulo que se examine, resulta evidente o prejuízo sofrido pelo empregado, decorrente de ato ilícito praticado pelo empregador. Em uma época onde a defasagem dos benefícios previdenciários assombra os aposentados em geral, deixar que o reclamante arque com prejuízos decorrentes de irregularidade praticada pelo empregador compromete a própria Justiça social. Ouso dizer que o caso se traduz em prejuízo in re ipsa, que independe de prova e que atrai o direito pelo empregado à respectiva reparação. Com esses fundamentos, dou provimento ao recurso de revista para condenar a reclamada ao pagamento de indenização por perdas e danos, a ser apurado em liquidação, levando em consideração o teto a que fizer jus o autor, nos termos da Previdência Social, no período imprescrito, em face dos valores objeto da presente ação.PROCESSO Nº TST-RR-45-10.2011.5.15.0120

Diante de tal decisão, concluímos que a figura do pagamento de salário “por fora” deve ser

mais combatida, pois caso constatado o juízo autorizará o reconhecimento e o deferimento do pedido de

danos materiais.

A mudança jurisprudencial albergada pelo TST já começa a refletir no primeiro grau, pois

Page 95: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE96

decidindo dessa forma a execução previdenciária será adiantada e quando devidamente regularizada e o

benefício atualizado resta autorizado o fim da execução de danos materiais, através da ação revisional

Por fim, entendemos que os empregadores devem evitar a utilização de artifícios para pagar

encargos previdenciários reduzidos, pois tais atitudes causam efeitos direto nos futuros benefícios que os

empregados irão receber. O Brasil passou por uma intensa mudança nas últimas duas décadas, pois através

da redução da informalidade, aumento do número de empregados registrados, houve um aumento

considerável do número de segurados, sendo assim, resta inaceitável que tal formalização não ocorra em

sua integralidade, ou seja, com o salário de contribuição na sua integralidade e consequentemente o

benefício também.

.

BIBLIOGRAFIA

SILVA, Homero Batista da. Curso de direito do trabalho aplicado, vol. 5: livro da remuneração – Rio de

Janeiro: Elsevier, 2009.

MOURA, Marcelo. Consolidação das Leis do Trabalho: para concursos – Salvador: Editora JusPodium,

2011.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 25ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2010.

MENEZES, Adriana de Almeida. Direito Previdenciário. 4ª ed. – Salvador: Editora JusPodiuum, 2014.

Page 96: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE97

DANO MORAL COLETIVO: DIVERGÊNCIAS E EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL

1

Welton Rubens Volpe Vellasco

RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de realizar uma breve reflexão acerca do dano moral de

acordo com posicionamento contemporâneo dos Tribunais Superiores em relação à aplicabilidade ou não

na modalidade coletiva. Visando explicar de maneira direta a evolução do dano moral coletivo, foi

utilizado o método de pesquisa bibliográfica na doutrina do direito moderno positivo, bem como análise de

decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça. Como resultados parciais destaca-se que, apesar de o

dano moral constar na Constituição Federal, o Código Civil promulgado em 2002 deixou lacuna acerca do

dano moral coletivo, a qual, de acordo com o diálogo das fontes, tem sido preenchida com o Código de

Defesa do Consumidor instituído pela Lei n. 8.078/90. Assim, o referido código destaca-se, então, não

apenas pela defesa dos direitos individuais, mas também pelas ações coletivas de modo geral, que

garantem os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos de origem comum.

PALAVRAS-CHAVE: consumidor; dano moral coletivo; direito contemporâneo.

ABSTRACT: This study aims to conduct a brief reflection on the moral damage according to

contemporary positioning of the Superior Courts regarding the applicability or not the collective mode.

Aiming to explain in a straightforward manner the evolution of collective moral damage, we used the

method of literature in the teaching of modern positive law, as well as analysis of recent decisions of the

Court. As partial results is emphasized that, although the moral damage contained in the Federal

Constitution, the Civil Code promulgated in 2002 left gap about collective moral damage, which,

according to the sources dialogue has been filled with the Code of Consumer Protection established by

Law n. 8.078 / 90. Thus, the Code stands out, then not only the defense of individual rights but also the

collective actions in general, to ensure diffuse, collective and diffuse interests of common origin.

KEYWORDS: Consumer; Collective moral damage; Contemporary law.

1 Introdução

A indenização por dano moral faz parte de todo um complexo de direitos fundamentais, estando

2 3prevista na Carta Magna promulgada em 1988, mais precisamente em seu art. 5º, V e X .

Ao contrário do dano moral individual, na esfera coletiva não tem limites para alcançar os

prejudicados pela conduta lesiva. Por tal razão, o dano moral coletivo é amplo e subjetivo, devendo ser

analisado sob a ótica dos direitos da personalidade. Outro fator que merece destaque são os altos valores

arbitrados nas sentenças.

Vale destacar que a atuação lesiva ou culposa do agente; o dano patrimonial ou moral e o nexo

1Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil. Pós Graduado em Direito Processual Civil pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Direito - área de concentração: Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social, com linha de pesquisa em Empreendimentos Econômicos, Processualidade e Relações Jurídicas pela Universidade de Marília (UNIMAR). Membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI).2Art. 5º, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.3Art. 5, X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Page 97: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE98

causal entre a conduta e o dano são os elementos básicos da responsabilidade civil.

2 Constitucionalização do direito processual civil

O antigo Código de Processo Civil foi promulgado em 1973; já a Constituição Federal vigente em

1988, ou seja, a lei substantiva veio em momento posterior à legislação processual, por isso, alterações

importantes ocorreram no sistema jurídico brasileiro.

A Constituição Federal de 1988 garantiu a tutela constitucional do processo, juntamente com 4

instrumentos da jurisdição constitucional das liberdades. Para Cândido Rangel Dinamarco , a “tutela

constitucional do processo” está explícita na Constituição Federal, tendo por objetivo assegurar “processo

justo e équo”. A “jurisdição constitucional das liberdades”, é assegurada na Constituição por intermédio

dos remédios aplicáveis em circunstâncias determinadas, visando à garantia da liberdade constitucional,

material e moral de todos.

Com a evolução do Direito, ficou inaceitável falar em singularidade da tutela jurisdicional,

originada da cultura romana. Assim, a Constituição Federal de 1988 inovou, mais uma vez o cerne

processual, permitindo propositura de ações na forma coletiva.

Ao entrar em vigor, o Código de Processo Civil de 1973 legitimava a parte apenas na qualidade

individual, por entender que os efeitos da sentença atingiriam somente os litigantes. A sociedade evoluiu e

o individualismo vem perdendo espaço, devendo o Direito atender o indivíduo isoladamente, bem como a

coletividade ou grupo determinado de pessoas, em único provimento jurisdicional. Para chegar a esta

evolução jurídica, o Direito brasileiro foi influenciado pela cultura anglo-saxã e também pelo êxito da

class action norte-americana.5

Cassio Scarpinella Bueno define o instituto da class action como

O procedimento em que uma pessoa, considerada individualmente, ou um

pequeno grupo de pessoas, enquanto tal, passa a representar um grupo maior ou

classe de pessoas, desde que compartilhem, entre si, um interesse comum. Seu

cabimento restringe-se àquelas hipóteses em que a união de todos que poderiam

ser partes em um mesmo processo (que se afirmam titulares da lide levada ao

Estado-juiz, portanto) não é plausível (até porque seu número poderia chegar a

milhões) ou porque sua reunião, em um só processo, daria ensejo a dificuldades

insuperáveis quanto à jurisdição e à competência.

As tutelas coletivas não foram exclusividades da Constituição Federal promulgada em 1988.

Estas foram antecedidas pela lei nº 7.347/85, que instituiu a Ação Civil Pública, com objetivo principal de

zelar pelo meio-ambiente; mais tarde foi ampliado para garantir direitos consumerista, artístico, estético,

histórico, turístico e paisagístico. Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 possibilitou instrumentos a

serem utilizados para defender tutelas coletivas. Neste cenário, pode-se citar possibilidade das entidades

associativas representar em nome dos seus filiados, assim como sindicatos defender direitos da categoria,

mediante representação administrativa ou judicial e por fim, ampliou legitimidade de individual para

coletiva para impetrar o Mandado de Segurança.

Portanto, com todas estas modificações no âmbito processual, realizadas após promulgação da

4DINAMARCO, 2004, p. 180.5BUENO, Acesso em: 29.06.2016.

Page 98: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE99

Constituição Federal de 1988, foi necessário realizar adequações ao Código de Processo Civil de 1973.

2. Do dano moral coletivo

Como já se depreende do próprio nomen iuris, o dano moral coletivo defende os interesses de

toda coletividade nos mais variados âmbitos: ambiental, consumerista, bens com valores artístico,

histórico e turístico, e também pelas infrações à ordem econômica ou a qualquer outro interesse difuso ou

coletivo.

O Código de Defesa do Consumidor, destaca dentre os chamados direitos básicos dos

consumidores, "a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e 6

difusos".

André de Carvalho Ramos (1998) assegura que a proteção dos valores morais não está restrita aos

valores morais individuais da pessoa física. Com efeito, outros entes possuem valores morais próprios, 7

que se lesados, também merecem reparação pelo dano moral.

Sérgio Cavalieri Filho (2004) comenta que pelo fato do dano moral ser imaterial a sua prova não

pode ser feita com a utilização dos meios probatórios tradicionais do dano material. Em suas palavras:

“[...] o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que,

provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma 8

presunção hominis ou facti que decorre das regras de experiência comum”.9

Além de conceituar o dano moral coletivo, Carlos Alberto Bittar também alegou que não há

embasamento suficiente para afirmar que a coletividade não pode sofrer com dano moral.

A injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação

antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em

dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio

valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado,

foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico:

quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto

imaterial. (...)

Assim como cada indivíduo tem sua carga de valores, também a comunidade, por

ser um conjunto de indivíduos, tem uma dimensão ética. [...] Por isso mesmo,

instaura-se entre os destinos dos interessados tão firme união, que a satisfação de

um só implica de modo necessário a satisfação de todos; e, reciprocamente, a lesão

de um só constitui, ipso facto, lesão da coletividade inteira. (BITTAR, 1994, p.

50/55)

10Xisto Tiago de Medeiros Neto conceituou o instituto como

O dano moral coletivo corresponde à lesão injusta e intolerável a interesses ou

direitos titularizados pela coletividade (considerada em seu todo ou em qualquer

6Lei n. 8.078/90, art. 6°, VI.7RAMOS, 1998, p. 82.8CAVALIERI FILHO, 2004, p. 100.9BITTAR, 1994, p. 50-55.10MEDEIROS NETO, 2007, p. 137.

Page 99: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE100

de suas expressões - grupos, classes ou categorias de pessoas), os quais possuem

natureza extrapatrimonial, refletindo valores e bens fundamentais para a

sociedade. (MEDEIROS, 2007, p. 137)

O dano moral coletivo tem caráter compensatório da lesão sofrida pela coletividade, sendo que a

condenação não se destina às vítimas, mas ao Fundo previsto na lei de Ação Civil Pública, a ser revertido

em benefício de todos os lesados.

É importante atentar para a diferença entre o dano moral coletivo e o dano individual homogêneo.

O direito coletivo é quando o ato lesivo viola os direitos dos membros unidos por algo comum, não sendo

possível quantificar o dano individual de cada vítima. Diversamente, o direito individual homogêneo é

caracterizado quando há possibilidade de individualizar a indenização, devendo o direito ser declarado por

sentença proferida na Ação Civil Pública, servindo de base para liquidação do quantum.

O interesse individual homogêneo não é absoluto, pois, depende de liquidação individualizada

para o recebimento da indenização por dano moral. Como exemplo disso, é possível citar o conhecido caso

das pílulas de farinha, quando o laboratório fabricou e vendeu, equivocadamente, medicamento sem o

princípio ativo necessário para evitar a gravidez, fazendo com que várias consumidoras ficassem grávidas 11mesmo após tomar a suposta pílula anticoncepcional. O laboratório foi condenado na Ação Civil Pública ,

porém, apenas as consumidoras que engravidaram e se sentiram lesadas que poderão utilizar a sentença

para liquidar o dano sofrido. Sendo assim, as consumidoras que engravidaram e que acabaram se

realizando posteriormente como mãe, não poderão liquidar a sentença da Ação Civil Pública pelo fato de

não ter ocorrido o dano moral.

A responsabilidade no dano moral coletivo é objetiva, ou seja, independe de culpa ou dolo do

agressor. Basta que exista ligação jurídica entre o dano e o nexo causal, bem como entre o ato ilícito e o

resultado final da ação lesiva.

Por não ser necessário provar o dano, ou o prejuízo de toda uma coletividade, aplica-se a teoria

damnum in re ipsa, por meio da qual se presume a ocorrência do fato alegado.

Imperioso destacar que o dano moral coletivo deverá ter caráter punitivo e também pedagógico, a

fim de que o agressor seja desestimulado à prática de atos ilícitos por reiteradas vezes.

3 Divergência jurisprudencial

Ao contrário do antigo Código Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973 que tinham

como base o cunho patrimonial e individualista, a jurisprudência vem superando o individualismo da

responsabilidade civil, preocupando-se atualmente não só com a pessoa física individualmente, mas,

também com a coletividade em caso de lesão por dano moral, dando maior eficácia e aplicabilidade à

função social do dano moral coletivo.

No entanto, mesmo com o pensamento contemporâneo, o Superior Tribunal de Justiça ainda não

pacificou o entendimento sobre os danos morais coletivos.

A discussão é tratada com bastante cautela, vez que parte do Superior Tribunal de Justiça defende

a posição de que não há vinculação de dor, sofrimento psíquico e de caráter individual, razão pela qual não

há como reconhecer o dano moral coletivo pela falta de indivisibilidade da ofensa e por não ser possível

determinar a vítima com exatidão. Com base na exigência de prova, é o voto prevalecente do Ministro 12Teori Albino Zavascki , ou, considerando o caráter não presumível do dano moral, conforme voto

11Recurso Especial 866.636, 3ª T., Dj 29/11/2007, DJe 06/12/2007.12Recurso Especial 971.844, 1ª T., Dj 03/12/2009, DJe 12/02/2010.

Page 100: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE101

13prevalecente do Ministro Luiz Fux . Corroborando com esta parte da jurisprudência, o Ministro Ari

Pargendler reiterou que

“a Primeira Seção desta Corte possui entendimento no sentido de que a natureza

do dano moral não se coaduna com a noção de transindividualidade, de modo que

se tem rechaçado a condenação em danos morais quando não individualizado o

sujeito passivo, de modo a se poder mensurar o sofrimento psíquico que

possibilita a fixação de indenização." (Agravo no Recurso Especial

1.305.977/MG - 1ª T., Dj 09/04/2013, DJe 16/04/2013).

Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça vem evoluindo a respeito do tema, prova disto é a

jurisprudência atual e majoritária que defende o cabimento do dano moral coletivo, independente de 14

prova. A Ministra Eliana Calmon reconheceu os precedentes que afastavam a possibilidade de se

configurar tal dano à coletividade, porém, asseverou que a posição não poderia mais ser aceita, pois “[...] as

relações jurídicas caminham para uma massificação, e a lesão aos interesses de massa não pode ficar sem

reparação, sob pena de criar-se litigiosidade contida que levará ao fracasso do direito como forma de

prevenir e reparar os conflitos sociais”, inclusive em casos fora do alcance do Código de Defesa do

Consumidor, como por exemplo por dano ambiental. Nesse sentido, em dezembro de 2010 a corte 15

condenou empresa em danos morais coletivos por degradação ambiental.

A Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi, ao julgar o Recurso Especial

636.021, afirmou que o Código de Defesa do Consumidor foi fator relevante para a discussão do dano

moral coletivo. No julgamento, frisou que o artigo 81 do código consumerista rompeu com a tradição

jurídica clássica, de que só indivíduos seriam titulares de um interesse juridicamente tutelado ou de uma

vontade protegida pelo ordenamento. Concluiu ainda, que a evolução dos preceitos legais reconheceu o

dano moral coletivo no que tange a lesão de um bem difuso ou coletivo corresponde a um dano não

patrimonial. Para a Ministra, "criam-se direitos cujo sujeito é uma coletividade difusa, indeterminada, que

não goza de personalidade jurídica e cuja pretensão só pode ser satisfeita quando deduzida em juízo por

representantes adequados".

Para o Superior Tribunal de Justiça, quando for admitida a indenização sobre a violação dos

interesses coletivos em razão da relação de consumo, o dano deve ser examinado e mensurado. Com isso,

não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode ser caracterizado como dano moral 16

coletivo. A respeito disso, Ministro Massami Uyeda assim entendeu: "É preciso que o fato transgressor

seja de razoável significância e transborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para

produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem

extrapatrimonial coletiva."

Tamanha é a polêmica que torna imperioso citar as duas posições da Corte. Esta primeira

jurisprudência veiculada no Informativo nº 418 do Superior Tribunal de Justiça, tem posicionamento

contrário à configuração do dano moral coletivo:

DANO MORAL COLETIVO. TELEFONIA - A Turma entendeu que não houve

13Recurso Especial 821.891, 1ª T., Dj 08/04/2008, DJe 12/05/2008.14Recurso Especial 1.057.274, 2ª T., Dj 01/12/2009, DJe 26/02/2010.15Recurso Especial 1.180.078, 2ª T., Dj 02/12/2010, DJe 28/02/2012.16Recurso Especial 1.221.756, 3ª T., Dj 02/02/2012, DJe 10/02/2012.

Page 101: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

impugnação do recorrente, devendo-se aplicar analogicamente a Súmula n. 283-

STF, quanto aos fundamentos do aresto recorrido de que a instalação de novos

postos de atendimento ao usuário de telefonia é obrigação não prevista no contrato

de concessão e de que não cabe ao Poder Judiciário definir quais localidades

deverão ser atendidas, por ensejar incursão ao campo discricionário da

Administração Pública. No que diz respeito ao dano moral coletivo, a Turma,

nessa parte, negou provimento ao recurso, pois reiterou o entendimento de que é

necessária a vinculação do dano moral com a noção de dor, sofrimento psíquico e

de caráter individual, incompatível, assim, com a noção de transindividualidade –

indeterminabilidade do sujeito passivo, indivisibilidade da ofensa e de reparação

da lesão. Precedentes citados: REsp 598.281-MG, DJ 1/6/2006, e REsp 821.891-

RS, DJe 12/5/2008. REsp 971.844-RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado

em 3/12/2009.

Para demonstrar melhor o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, transcreve-se a

decisão que determinou a reparação integral pela empresa de transporte coletivo de idosos, por ter ficado

demonstrado o dano moral coletivo:

ADMINISTRATIVO - TRANSPORTE - PASSE LIVRE - IDOSOS - DANO

MORAL COLETIVO - DESNECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA DOR

E DE SOFRIMENTO - APLICAÇÃO EXCLUSIVA AO DANO MORAL

INDIVIDUAL - CADASTRAMENTO DE IDOSOS PARA USUFRUTO DE

DIREITO ILEGALIDADE DA EXIGÊNCIA PELA EMPRESA DE

TRANSPORTE - ART. 39, § 1º DO ESTATUTO DO IDOSO - LEI 1.0741/2003

VIAÇÃO NÃO PREQUESTIONADO. 1. O dano moral coletivo, assim

entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de

pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral

coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como

segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base. 2. O dano

extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de

abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas

inaplicável aos interesses difusos e coletivos. 3. Na espécie, o dano coletivo

apontado foi a submissão dos idosos a procedimento de cadastramento para o

gozo do benefício do passe livre, cujo deslocamento foi custeado pelos

interessados, quando o Estatuto do Idoso, art. 39, § 1º exige apenas a apresentação

de documento de identidade. 4. Conduta da empresa de viação injurídica se

considerado o sistema normativo. 5. Afastada a sanção pecuniária pelo Tribunal

que considerou as circunstancias fáticas e probatória e restando sem

prequestionamento o Estatuto do Idoso, mantém-se a decisão. 6. Recurso especial

parcialmente provido. (STJ - REsp. 1.057.274 - RS - 2.ª T. - Min. Eliana Calmon -

j. 01.12.2009)

Em outro julgamento recente pela Segunda Turma17, o dano moral coletivo também foi aceito,

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE102

17Recurso Especial 1.269.494, 2ª T., Dj 24/09/2013, DJe 01/10/2013.

Page 102: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE103

só que na esfera ambiental:

AMBIENTAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL

PÚBLICA. PROTEÇÃO E PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE.

COMPLEXO PARQUE DO SABIÁ. OFENSA AO ART. 535, II, DO CPC NÃO

CONFIGURADA. CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÕES DE FAZER COM

INDENIZAÇÃO PECUNIÁRIA. ART. 3 º DA LEI 7 .347 /1985 .

POSSIBILIDADE. DANOS MORAIS COLETIVOS. CABIMENTO.

1. Não ocorre ofensa ao art. 535 do CPC, se o Tribunal de origem decide,

fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide.

2. Segundo a jurisprudência do STJ, a logicidade hermenêutica do art. 3º da Lei

7.347/1985 permite a cumulação das condenações em obrigações de fazer ou não

fazer e indenização pecuniária em sede de ação civil pública, a fim de possibilitar a

concreta e cabal reparação do dano ambiental pretérito, já consumado.

Microssistema de tutela coletiva.

3. O dano ao meio ambiente, por ser bem público, gera repercussão geral,

impondo conscientização coletiva à sua reparação, a fim de resguardar o direito

das futuras gerações a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

4. O dano moral coletivo ambiental atinge direitos de personalidade do grupo

massificado, sendo desnecessária a demonstração de que a coletividade sinta a

dor, a repulsa, a indignação, tal qual fosse um indivíduo isolado.

5. Recurso especial provido, para reconhecer, em tese, a possibilidade de

cumulação de indenização pecuniária com as obrigações de fazer, bem como a

condenação em danos morais coletivos, com a devolução dos autos ao Tribunal de

origem para que verifique se, no caso, há dano indenizável e fixação do eventual

quantum debeatur.

Além de encontrar assento legal e doutrinário, a responsabilização civil por danos morais

coletivos é uma realidade cada vez mais presente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

4 Conclusão

A sociedade atual, conhecida por terceira geração, vem atuando de diversas formas em defesa das

normas sociais, tornando o individualismo uma questão ultrapassada. Por esta razão, iniciou a defesa dos

interesses de toda coletividade.

Antes da Constituição Federal de 1988, muito se discutia sobre a aceitação do dano moral

individual, sem qualquer referência à coletividade. O dano moral era descrito como tudo que não fizesse

parte do campo patrimonial ou aquilo que interferisse na ordem psíquica do ser humano.

Com a promulgação da Carta Magna atual, tornou-se aceitável a condenação por dano moral

coletivo, bem como a possibilidade das pessoas jurídicas serem indenizadas por ofensa à sua honra. O

dano moral passou a ser uma lesão à dignidade da pessoa humana, caracterizando-se pela ofensa à

igualdade, liberdade, solidariedade e integridade psicofísica.

O dano moral não está necessariamente relacionado a alguma reação psíquica do ofendido. Pode

ser que a lesão seja em relação à dignidade da pessoa humana sem que haja dor, vexame, sofrimento, assim

Page 103: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

Revista Jurídica - O SABER COMPLETAMENTE104

como pode haver dor, vexame e sofrimento sem violação da dignidade. Estes sentimentos podem ser

consequências e não causas. Assim, o dano moral coletivo preza pelo princípio da dignidade da pessoa

humana.

O Código de Defesa do Consumidor completou 25 anos de vigência, porém, o tema aqui

abordado vem ganhando destaque pela evolução do pensamento coletivo da sociedade.

5 Fontes Bibliográficas

BITTAR, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista de

Direito do Consumidor, São Paulo, v. 12, jan./mar. 1994.

BUENO. Cassio Scarpinella As class actions norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: pontos

para uma reflexão conjunta. Disponível em: <http://www.scarpinellabueno.com.br/Textos/Class%

20action%20e%20direito%20brasileiro.pdf>. Acesso em: 07.01.2016.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Curso de programa de responsabilidade civil. 5. ed., 2004.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4. ed. rev. São Paulo:

Malheiros, 2004.

MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. 2. ed. São Paulo: LTr, 2007.

RAMOS, André de Carvalho. A ação civil pública e o dano moral coletivo. Revista de Direito do

Consumidor, São Paulo, n. 25, jan./mar. 1998.

Page 104: REVISTA JURÍDICA O SABER - faeca.com.br · Este trabalho ocupa-se da educação como processo de elaboração da identidade ... O dizer é de Mário Manacorda (2004, p. 6), ... gerais

FAECA DOM BOSCO DE MONTE APRAZÍVEL

REVISTA JURÍDICA

O SABERCOMPLETAMENTE

ISSN 2179-7714 - Volume 1 - Revista nº 6 - Outubro/2016