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66 IMPRENSA | JULHO 2013 LITERATURA ROMANCISTA CONSAGRADO, GRACILIANO RAMOS DEIXOU MAIS DE UMA CENTENA DE CRÔNICAS QUE ANTECIPARAM O FICCIONISTA E AJUDARAM A COMPOR O CENÁRIO DA MODERNA MÍDIA BRASILEIRA GRAÇA, O CRONISTA POR GUILHERME SARDAS DA REPORTAGEM Cândido Portinari | Acervo Projeto Portinari

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Matéria sobre a obra cronística de Graciliano Ramos, publicada em razão do lançamento de livro sobre o assunto, no ano de comemoração dos 60 anos da morte do escritor alagoano.

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L I T E R A T U R A

ROMANCISTA CONSAGRADO, GRACILIANO

RAMOS DEIXOU MAIS DE UMA CENTENA

DE CRÔNICAS QUE ANTECIPARAM O

FICCIONISTA E AJUDARAM A COMPOR O

CENÁRIO DA MODERNA MÍDIA BRASILEIRA

GRAÇA, OCRONISTA

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Qualquer lista de grandes escritores brasileiros que se preze deve, por mérito, incluir o alagoano Graci-liano Ramos (1892-1953). Um dos mestres do romance social, o autor

deixou clássicos como “Caetés” (1933), “São Ber-nardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas Secas” (1938), só pra ficar em alguns. Inevitável, assim, que a faceta mais célebre seja a do romancista.

Mas o autor trafegou pelos gêneros, assumindo “vozes”, como a de J. Calisto, Lambda, Lúcio Gue-des, Anastácio Anacleto e R.O. (sigla de Ramos de Oliveira, seu sobrenome). Todos pseudônimos es-tampados em jornais muito antes de o nome Gra-ciliano impor o respeito habitual, principalmente após deixar a prisão na ditadura getulista, em 1937.

Se havia nome postiço só para as poesias (Anastácio Anacleto), havia também os que vi-viam no limiar da literatura e da prosa jorna-lística: a crônica. Mesmo que pouco exaltado, o Graciliano cronista deixou cerca de uma centena e meia de textos, escritos entre 1915 e 1953.

Esta obra tem sido estudada pelo jornalista e pesquisador da USP Thiago Mio Salla, que, de-pois de se debruçar sobre “Linhas Tortas” e “Vi-ventes de Alagoas” – livros de crônicas publi-cados em 1962 –, lançou “Garranchos: achados inéditos de Graciliano Ramos” [Ed. Boitempo, 2012], uma compilação em sua maioria de crô-nicas que chegou ao público no ano passado, 120 anos depois do nascimento do autor.

Na mesma época, a biografia “O velho Gra-ça” [referência ao apelido do escritor], de Dênis Moraes, de 1992, foi relançada pela Boitempo. Neste 2013, completam-se 60 anos de sua morte e 80 anos de seu romance de estreia, “Caetés”. Graciliano é ainda o grande homenageado desta Flip, a Feira Literária Internacional de Paraty.

QUASE LÁ

Em 1915, chegado à capital fluminense aos 22 anos para tentar a vida de escritor, Graciliano começou a escrever crônicas para o Jornal de Alagoas como correspondente e para o Paraíba do Sul, da cidade homônima do interior do Rio. Assinava como R .O., que, diferentemente de um cronista convencional, encarnava em uma série de 13 textos uma espécie de narrador-per-sonagem, prenúncio do futuro ficcionista.

Na voz deste narrador mordaz e sarcástico, o tema da prática jornalística aparece mais de uma vez. Em uma das crônicas, fala da diferen-ça de abordagem de uma crítica literária so-

bre uma poetisa publicada em dois veículos de posições editoriais distintas: um que elogiava tudo, outro que criticava. Diz ele:

“Como veem os leitores, não poupei à sonetista os encômios [elogios] que convém a uma rapariga bonita, nem as acres censuras que todo o crítico que se preza deve atirar a um mau poeta, embora o poeta vista saias e a gente não tenha lido sua obra. A coisa mais fácil do mundo é fazer crítica, fiquem sabendo, principalmente crítica literária.”

Na última, R.O. comenta sua saída da publi-cação, redigindo uma carta (Verdadeira ou falsa? Objetiva ou ficcional?) a Rodolfo, suposto edi-tor do jornal, que teria criticado o cronista. Na verdade, uma banalidade: o suposto editor teria ficado insatisfeito com uma expressão usada por R.O. em um de seus textos.

As crônicas do Paraíba do Sul geraram con-vite especial: escrever para a Gazeta de Notícias, então o maior jornal do país, em que Machado de Assis e José de Alencar já haviam tido espaço cativo. Estava quase lá. Mas... “Pesquisei o jornal no ano de 1915 e não achei nada de Graciliano, nem de seus pseudônimos”, diz Thiago Salla, que acrescenta: “Naquele ano, teve um surto de peste bubônica na cidade dele, Palmeira dos Ín-dios, inclusive alguns irmãos dele morreram. Ele teve de voltar a Alagoas por causa dessa tragédia familiar e, mais tarde, assumir a loja do pai”.

DE VOLTADe volta à cidade natal, abandonaria a vida de

escriba por seis anos, tempo suficiente para que casasse, tivesse quatro filhos e ficasse viúvo de Maria Augusta de Barros, sua primeira esposa. Em 1921, colaboraria para o O Índio, jornal do pa-dre da cidade, escrevendo crônicas sob os pseu-dôminos J. Calisto, J.C. e Lambda.

Também uma voz sarcástica, focando, agora, questões triviais da cidade, a partir da qual des-trinchava temas amplos. “É uma escrita marcada pelos faits devers, que, traduzindo, são ‘fatos di-versos’. Então, ele toma pequenos fatos jornalís-ticos para daí extrair a crônica”, explica Salla.

Quatro anos depois, Graciliano começaria “Ca-etés”, terminado em 1928, ano em que se tornaria prefeito da pequena cidade. Nem na função buro-crática o talento com a pena ficou oculto. Os rela-tórios de prestação de contas que escrevia ao go-vernador Álvaro Paes ficariam conhecidos por seu veio poético, mesmo nos assuntos mais triviais. Como no trecho de 1930, em que diz no tópico “projetos”: “Há pouco tempo, com a iluminação

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que temos, pérfida, dissimulavam-se nas ruas sé-rias ameaças à integridade das canelas impruden-tes que por ali transitassem em noites de escuro”.

Renunciaria em 1929, assumindo a Imprensa Oficial do Estado de Alagoas, que hoje leva seu nome. Ficou ali cerca de um ano. Entre 1930 e 1935, Graciliano publicou “Caetés” e “São Bernardo” e, além de assumir outras funções burocráticas no governo local, foi preso em 1936, ao ser acusado de envolvimento com a Intentona Comunista, de 1935. Saiu da prisão dez meses depois.

O cárcere é um divisor de águas na sua vida e obra, inclusive na cronística, que toma dois rumos. “Um que é mais literário, que vai muito mais para um conto mesmo. Além disso, como ele já está em outro patamar, há muitos textos sobre literatura, então a crônica dele vai para o lado do ensaio. O cronista inicial está mais na linha factual.”

IMPRENSA DE FICÇÃOÉ difícil definir quem carrega mais do outro:

se o ficcionista Graciliano do cronista-jornalista ou se o cronista-jornalista do ficcionista. “Ape-sar de ser difícil situar essas fronteiras, talvez eu veja mais a influência do texto dele sobre o jornalismo do que o contrário.”

A partir dos anos 1920, com a influência dos modernistas nos jornais, a linguagem jornalística elimina ranços de beletrismo e simplifica o tom. Graciliano pode ser sido como um modelo deste literato que ajudou a transformar a imprensa, já

que, além da prosa enxuta, coesa, concreta e subs-tantivada, também atuou como copidesque, espé-cie de redator/revisor de jornais em sua fase ma-dura. Após deixar a prisão, exerceu a função, por exemplo, no Correio da Manhã. Deixou sua marca, literalmente, nas páginas dos jornalões da época.

Outro ponto liga sua obra ficcional ao jorna-lismo: a própria imagem da imprensa refletida em seus romances. Em “Angústia”, o clima de opressão que abate o protagonista – um funcio-nário público que também colabora para a im-prensa – traz um esboço de luta de classes entre o jornalista e o proprietário (burguês) do jornal, ideia coerente com um Graciliano que se decla-raria “oficialmente” comunista em 1945.

No romance de estreia, “Caetés”, o homem que ousa escrever como ofício aparece nas várias fa-cetas da personagem central: do escriturário, do colaborador de jornal e do “homem comum” que planeja um romance. Sobra ainda espaço para a passagem memorável de “São Bernardo”, em que o autoritário coronel Paulo Honório, indignado com as críticas que recebe do jornal da cidade vizinha, viaja para ter com o jornalista responsável. Não he-sita em dar-lhe uma surra. Bastante simbólico.

“O episódio mostra a maneira completamen-te interesseira dessa imprensa marrom da época que usa o expediente da extorsão para conseguir dinheiro. Você tem o embate de duas violências: a física, do Paulo Honório, e a intelectual, que essa imprensa praticava”, explica Salla.

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