revista estação da leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/revista... ·...

133
Programa Estação da Leitura Ano 1-Nº1- 2017 Revista Estação da Leitura

Upload: doankien

Post on 21-Nov-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

Programa Estação da Leitura

Ano 1-Nº1- 2017

Revista Estação da Leitura

Page 2: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

2

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Centro de Estudos da Leitura- CEL

Programa Estação da Leitura- ESTALE Ensino, Pesquisa e Extensão

Fone: 73. 3528-9646/ FAX: 73. 3525-6683/ 3528-9732 E-mail: [email protected]

www.uesb.br e http://estacao-da-leitura.webnode.pt/

Revista

Estação da Leitura

Jequié-BA

2017

Page 3: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

3

Revista Estação da Leitura

Publicação do Centro de Estudos da Leitura/ Programa Estação da Leitura Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Editoração e Revisão:

Maria Afonsina Ferreira Matos

Davi Carvalho Porto

Maria Vitória da Silva

Carla da Silva Lima

Projeto gráfico:

Davi Carvalho Porto

Fotos:

Arquivo ESTALE

Page 4: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

4

Editores:

Profª. Drª. Maria Afonsina Ferreira Matos/UESB

Profº. Esp. Davi Carvalho Porto/ HU-UFS/ EBSERH

Profª. Drª. Maria Vitória da Silva/ UESB

Profª. Ms. Carla da Silva Lima/UESB

Conselho Editorial:

Profª. Drª. Eliana Yunes (Puc-RJ)

Profª. Drª. Vera Teixeira Aguiar (Puc- RS)

Profª. Drª. Hilda Lontra (UNB)

Profª. Drª. Maria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)

Profº. Drº. João Luís Cecantini (UNESP)

Profª. Drª. Glória Kirinus (UFPR)

Profª. Drª. Lívia Diana Rocha Magalhães (UESB)

Profº. Drº José Batista de Sales (UFMS)

Escritor Ruy Espinheira Filho

Profº. Drº. Jacques Jules Sonneville (UNEB)

Profº. Drº. José Hélder Pinheiro (UFCG)

Digitação

Paulo Sérgio Lima de Jesus/CEL-UESB

Page 5: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

5

ISSN 2526-6918

Ano 01, nº 01- 2017

SUMÁRIO

Ficha catalográfica elaborada por Jandira de S. Leal Rangel, Bibliotecária CRB - 5 /1056

R349 Revista Estação da Leitura/Programa Estação da Leitura .- Jequié, UESB – Centro de Estudos da Leitura, 2017.

ano 1, nº 1, il.; (Periódico)

1. Leitura e literatura. Editores e revisores: I. Matos, Maria Afonsina Ferreira II. Porto, Davi Carvalho III. Silva, Maria Vitória da IV. Lima, Carla da Silva V. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia VI. Título.

CDD – 809.89282

Page 6: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

6

NOTA À PRIMEIRA EDIÇÃO

Caros leitores, o Programa Estação da Leitura/ ESTALE vinculado ao Centro de

Estudos da Leitura/ CEL, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/ UESB,

completou 25 anos de existência em 2016. Para comemorar essa história, iniciada pelas

professoras Maria Afonsina, Diva do Carmo e Ednalva Almeida nos idos de 1991,

organizamos essa publicação que chega as suas mãos, ela é fruto de muito trabalho e

prova de que estamos no caminho certo, ou melhor, nos trilhos certos.

Na revista, você encontrará artigos científicos, relatos de experiência, resenhas e

entrevistas que enfocam a leitura e a literatura, tomando-as como ponto de partida para

discussões e críticas pertinentes. Neste número nascedouro estão textos de

pesquisadores e escritores diversas partes do país, cada qual imprimindo sua marca

identitária nos escritos e convidando-nos às reflexões. Deixamos registrados nossos

agradecimentos aos colaboradores e ao conselho editorial.

Visando delimitar as partes de um todo e adotando uma visão interdisciplinar,

agrupamos os textos em eixos-temáticos: Leitura e Literatura Infanto-Juvenil; Leitura,

escrita e letramento; Leitura e Cultura; Leitura e Filosofia; Leitura, memória,

autobiografias e histórias de vida; Leitura e Análise do Discurso; Leitura e Psicanálise;

Resenhas e Entrevistas.

Esperamos contribuir para discussões sobre a leitura, a formação de leitores, a difusão

do livro e do conhecimento, a educação e humanização do homem em sentido amplo.

Desejamos que a Revista Estação da Leitura seja estação central de encontro dos

amantes da leitura e da literatura, e que a mesma tenha vida longa. Para tal, convidamos

você para iniciar a viagem!

Davi Porto

Janeiro de 2017

Page 7: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

7

AULA DE LEITURA

Ricardo Azevedo

A leitura é muito mais do que decifrar palavras Quem quiser parar pra ver pode até se surpreender vai ler nas folhas do chão se é outono ou verão; nas ondas soltas do mar se é hora de navegar; e no jeito da pessoa se trabalha ou se é à-toa na cara do lutador, quando está sentindo dor; vai ler na casa de alguém o gosto que o dono tem; e no pêlo do cachorro, se é melhor gritar socorro; e na cinza da fumaça, o tamanho da desgraça; e no tom que sopra o vento, se corre o barco ou se vai lento; e também no calor da fruta, e no cheiro da comida, e no ronco do motor, e nos dentes do cavalo, e na pele da pessoa, e no brilho do sorriso, vai ler nas nuvens no céu, vai ler na palma da mão, vai ler até nas estrelas, e no som do coração. Uma arte que dá medo é a de ler um olhar, pois os olhos tem segredos difíceis de decifrar.

Ricardo Azevedo, escritor, ilustrador, compositor e pesquisador paulista, nascido em 1949, é autor de vários livros para crianças e jovens. Tem, além disso, dado palestras e publicado estudos e artigos a respeito de temas como o discurso popular, literatura e poesia, problemas do uso da literatura na escola, cultura popular, música popular brasileira e questões relativas à ilustração de livros.

http://www.ricardoazevedo.com.br/

Page 8: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

8

SUMÁRIO

LEITURA & LITERATURA INFANTO-JUVENIL Contar para ler- Eliana Yunes.........................................................................................11 Monteiro Lobato e o Leitor Cidadão: a utopia possível- Maria Teresa Gonçalves Pereira..............................................................................................................................17

Poetando e Proseando- Elias José....................................................................................27

LEITURA, ESCRITA & LETRAMENTO

Ensino-aprendizagem da leitura, interpretação e produção de texto– Uma proposta integrada- Odilon Pinto de Mesquita Filho............................................................................37

(Re) Pensando o papel do lúdico à alfabetização de Jovens e Adultos- Marilete Calegari

Cardoso............................................................................................................................47

LEITURA & CULTURA

Embora uma provocação com os Ecossistemas: O Que é Cultura?- Maria das Graças de Santana Rodrigué...........................................................................................................59

LEITURA & FILOSOFIA

O Amor na mitologia: uma leitura arcaica do mito grego poeticamente acolhido- Dante Augusto Galeffi..............................................................................................................68

Leituras em Memórias de Infância: reflexões a partir das experiências de Sartre e Graciliano Ramos- Luciano Chaves Sampaio................................................................78

LEITURA, MEMÓRIA, AUTOBIOGRAFIAS & HISTÓRIAS DE VIDA

Minha História de Leitura- Diva do Carmo Godim Pires..............................................87

Leituras: fios que tecem a cidadania...- Mônica Neves da Silva Lopes........................97

Page 9: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

9

LEITURA & ANÁLISE DO DISCURSO

Tá rindo de que?- Rosely Costa Silva Gomes..............................................................105

LEITURA & PSICANÁLISE

Simbologia Psicanalítica de João e o Pé de Feijão- Sandra Suely de Oliveira

Souza............................................................................................................................113

LEITURAS, RESENHAS & ENTREVISTAS Exercícios de Ser Criança. Manoel de Barros. – Maria Vitória da Silva.....................124

FATOS & FOTOS.....................................................................................................125

Page 10: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

10

LEITURA &

LITERATURA INFANTO-JUVENIL

Page 11: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

11

CONTAR PARA LER

Eliana Yunes1 Para Ernesto Rodríguez

Em memória do encanto de ouvi-lo contar os medievais.

Há duas décadas atrás, a prática de contar e ouvir histórias era algo rememorável

das experiências da infância, registrada em nossos melhores autores. Carlos Drummond

de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Monteiro Lobato entre outros. Ou

reminiscência doméstica dos que tiveram a sadia “promiscuidade” de conviver com

diferentes estratos sócio-culturais e geracionais nas famílias então mais numerosas com

agregados, em cidades pequenas onde “causos” vividos, logo se transformavam em

histórias que eram as notícias do lugar. Com raras exceções, contar histórias era tarefa

materna para embalar o sono dos infantes ou coisa de aventureiros no relato de suas

proezas. O excepcional Graciliano Ramos deixou em dois livros, (não por acaso

tomados como menores, mas por efeito daquilo mesmo de que se ocupavam) a força

desta tradição: Histórias da Velha Totonha e Alexandre e outros heróis tratam destas

diferentes linhagens da contação. No primeiro está a tradição oral portuguesa mesclada

a dos índios e negros numa síntese curiosa e inteligente; no último, as verdadeiras

mentiras (ficções) de uma personagem tratando das ocorrências extraordinárias em sua

ordinária vida sertaneja.

Com o advento de programas mais substantivos, articulados e conseqüentes, ao

menos teoricamente, discutindo estratégias de promoção da leitura e (hoje se vê), não

apenas em países periféricos e carentes de alfabetização, a narração oral de textos

autorais e da herança popular tornou-se, pouco a pouco, uma prática sedutora e

fascinante, capaz de reunir um público heterogêneo em idade e interesses para,

simplesmente ouvir histórias, retomando o contato com a tradição da palavra. O fascínio

que a narrativa exerce sobre o homem, nunca dependem em verdade dos suportes,

como registra Paul Zumthor: antes dos rolos e da escrita, a oralidade oferecem ao

ocidente suas mais fundantes narrativas, guardadas na memória por excelência, o

coração. 1 Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Doutora em Letras.

Page 12: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

12

No entanto, por ignorar tanto a história da literatura em suas fontes, quanto os

estudos contemporâneos de história oral, mas, sobretudo contrariando as mais

contundentes experiências sobre a iniciação e fomento da escrita, há os que vem

ingenuamente propondo que não se conte senão diante de um livro aberto para que não

ocorra a desvalorização do objeto-suporte da almejada alfabetização.

Mais que isto, a contação tem sido apontada como um retrocesso, um atraso

capaz de estimular a preguiça e manter na bem-aventurada comodidade os que mais

necessitam esgrimir as letras. É bom lembrar que aprender a escrita ou mesmo a leitura

não é um problema de letras, nem de palavras ou frases, é uma questão de

entendimento, de sentido, que se sobrepõe à decifração do código.

Os ingênuos defensores desta tese não percebem que contradizem na prática, a

experiência conformada de que alfabetização não é letramento e que decifrar palavras

não corresponde a construir sentidos.

Dominar o código é sim algo importante e que ocorrerá, sim pela reiteração da

leitura textual, mas ela só se dará sem traumas e repulsas quando o iniciado nas letras já

tiver sido iniciado – e seduzido – pelo mistério da linguagem, traduzido melhor que

nunca pela narratividade do contar.

Este porém, não é o espaço para discutir este ponto, embora seja imprescindível

assinalar o comum equívoco de se supor que a leitura é uma consequência da escrita e

que, portanto, dela decorre .

Tentemos antes, compreender o que seja a oralidade, suas modalidades e

diversidade de funções ao longo dos tempos. Foi com o recurso da oralidade que os

homens começaram a fazer história e não apenas quando da extraordinária revolução

que na Grécia inventou o alfabeto de uma vez por todas. O que nos aparece registrado

nas epopéias e tragédias, com assinatura autoral e certamente, arranjo genial de seus

compiladores, circulava há muito de boca em boca nos relatos populares. Isto é

vivenciados pelo povo, no horizonte de celebrações que não podiam ignorar.

E mais: não se tratava de uma oralidade comum e corrente, da que usavam e

usamos para nos comunicarmos em situações ordinárias de vida diária. Havia uma

oralidade secundária, viva até hoje, nos ditados, nos trava-línguas, nas adivinhações, nas

rezas e celebrações que se impunham quase rituais, por trazerem o “espírito” daquilo

Page 13: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

13

que invocavam ou rememoravam. Isto lhes permitia não confundir as oralidades, a

visual e a ritual nem esquecer as “fórmulas”: era justamente a forma, ou seja, as marcas

específicas de ritmo, ressonância, as imagens e figuras que recordavam a experiência, o

vivido. Esta oralidade era guardada no coração, de modo que a sabiam “de cor”.

A doação do alfabeto, como instrumento da escrita e preservação das memórias,

aparece narrada por Platão no Fedro e sublinha a faca de dois gumes deste poderoso

artefato. A um só tempo, veneno e cura para a memória e o esquecimento, a escrita

distanciou o homens da experiência, não apenas dos sentidos, mas da vivência e criou

pela lógica das proposições e ordenação sintagmática dos discursos, um modo de pensar

racional que, lentamente, desqualificou o que não fosse dedutível pelo próprio discurso.

A experiência do poiético, do místico, do afetivo foram, ao longo dos últimos séculos,

cartesianamente dispensados por serem improváveis, irrepetíveis sem generalizações

confortáveis.

Recapitulando: há diferentes oralidades desde a gênese da escrita que

subsistiram a ela nossa conversa jogada fora e a poesia da música popular, como a dos

antigos menestréis, são suas variantes contemporâneas. Não há pois, razão para temer as

oralidades como um retrocesso porque ela é uma realidade que não desapareceu com a

escrita, nem apenas a antecedeu. Por outro lado, seria também providencial recordar que

o livro é apenas o mais fascinante e prático dos suportes da escrita e que uma rede de

computadores que nos permite um acesso quase ilimitado à informação escrita, não

precisa ser temido como um inimigo da leitura. Seria no mínimo hilário, daqui ou uma

dezena de anos, imaginar-se alguém contando histórias (porque a prática, vem substituir

enquanto formos homens) vem tirar os olhos de um computador de pulso onde fosse

lendo o contasse.

Igualmente será necessário recordar que a oralidade pós-escrita foi

decisivamente influenciada por seus estamentos e que, hoje nos incomoda uma

oralidade primária que não se organize de modo lógico e encadeado, dispensando os

conectivos fáticos, tais como e, de repente, aí, então, sabe?...

A correção deste problema vem com naturalidade, a medida que a familiaridade

com a leitura aproxima as estruturas do “bem-dizer” da fluência oral do falante. Isto

significa, em outras palavras que, quanto mais ele ouvir textos bem escritos, melhor será

seu repertório lingüístico tal como a qualidade do desempenho de falantes nativos em

Page 14: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

14

torno de um infante, determinará a qualidade de seu aprendizado da língua oral. Seu

verbal, falando, terá resistências cada vez menores à escrita e a leitura. Se estivéssemos

lendo Conan Doyle, nós o ouviríamos completar: “Elementar, meu caro Watson”...

Além destes argumentos bastante acessíveis à lógica de quem pesquisa, e não

apenas age de forma opiniática podemos recorrer ao próprio contexto atual para

justificar a retomada calorosa da audição de histórias. No momento em que a

velocidade das informações parece tecnologicamente cada vez mais, importante, às

vezes em detrimento até de sua qualidade, passa a ser uma arma poderosa em favor da

disseminação da literatura e uma provocação com gosto de “quero-mais”, a contação de

histórias tal como se oferece de imediato à fruição do público. Quem não parece ter

tempo para abrir um livro durante uma hora, senta-se para ouvir contos autorais durante

horas a fio, criando intimidades com imagens e sonoridades.

Ainda que as transposições cinematográficas nem sempre sejam das melhores,

nunca se ouviu dizer que o cinema devesse ser interditado pelo fato de colaborar com a

preguiça de ler. Ao contrário, muitas editoras tem usado vídeos para contar a história

do livro e histórias que elas mesmas editaram em papel são acompanhadas de uma

edição em multimídia.

Por que então, o esforço inútil de combater o que é apenas uma estratégia das

mais ricas e baratas para levar o ouvinte a amar a literatura, a reconhecer que é capaz,

sim, de entender o que escrevem estes “gênios”, a desejar dispor do texto na hora que

quiser, sem depender do contador buscando sua referência? Há algo estranho no reino

da Dinamarca, como disse Shakespeare, em Hamlet.

Se desejamos democratizar o acesso ao livro, não basta baixar os preços (embora

isto seja absolutamente necessário) mas é preciso tornar acessível a própria linguagem,

isto é, fazê-la familiar ao potencial leitor. Não, nada de adaptar, simplificar, reduzir,

adulterar facilitar – o texto, mas torná-lo legível pela audição. O contador faz a

história viva, como nos velhos tempos, agora na condição de narrador oral que,

conforme Benjamim, já não pode falar do que testemunha, mas procura falar do que tem

experiência pela linguagem.

É bom ainda possível lembrar que, no seu trabalho profissional, o contador de

histórias é um divulgador da obra de muitos autores e das próprias editoras, uma vez

Page 15: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

15

que não se deve fazer narração sem o anúncio das fontes. Abre-se pois, a possibilidade

de circulação de autores pouco conhecidos, obras mais raras, textos abandonados e

visões culturais sui-generis que merecem ser apresentadas como modos de pensar, ser

e agir de outros povos, tempos e culturas.

É interessante notar que, em lançamentos sobretudo de poesia, quando os recitais

são freqüentes, não costuma ser invocada qualquer relutância ao proclamador dos

versos, nem se exige dele que declame com o livro aberto diante dos olhos. E não foi

assim com as tragédias, tanto clássicas quanto renascentistas, de Sófocles a

Shakespeare, escritas e encenadas sem nenhum prejuízo de seu consumo como leitura?

Afinal, desaparecido o último livro, ainda assim os homens poderão narrar suas

vivências do mundo. No creo en las brujas, pero... A resistência à queima dos livros das

ideias é justamente a de memorizá-los inteiros, tornando cada homem um livro vivo.

Vale um registro de que o contador de histórias da tradição tinha um papel social

ora mais reservado, ora mais sagrado, confundindo-se sua figura com a de veiculador de

verdades e portanto, com força para pronunciar moralidades, costumes, princípios,

porta-voz de memórias e ideologias, mesmo em comunidades que já não eram ágrafas.

Contemporaneamente, estas funções se alteraram face aos novos suportes para a escrita

que despontaram com Gutemberg e ainda não se esgotaram. Nem por isso a oralidade

deve ser apagada – que tal lembrar Farhenheit 451 (François Truffaut, 1996)? – Ou os

contadores serão agora considerados os inimigos públicos da alfabetização? Parece

pouco inteligente e razoável agir grosseiramente contra a narração oral como certos

grupos que acreditam na linearidade e progresso dos tempos visão que, já no séc. XIX,

as contradições entre marxistas deixaram entreler. Com Nietzche e Freud esta ideia da

substituição dos saberes já fora denunciada.

A propósito, os milhares ou milhões de analfabetos funcionais ou alfabetizados

secundários que passaram pela escola de livro na mão, por que não teriam tomado o

gosto de ler? Por que o gosto de ler não passa pelo tato com o livro, de visão do

impresso, mas pelo contato amoroso e prazeroso do ouvir, olhos nos olhos, hálito como

alento? Coisa que as mães, amas e avós souberam fazer às noites, ao pé da cama, ou os

peregrinos, ao pé do fogo, para criar laços e simpatias, entre eles mesmos e para com os

outros rememorados! Assim as narrativas sobreviveram para serem escritas. E

recontadas. Veja-se que o apogeu da relação escrita e visão na tela do computador não

Page 16: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

16

abdicou que encontrar tecnologia que permuta ver/ouvir um contador sem que o texto

monotonamente se reproduza na tela! Que diremos aos surdos? Que a linguagem gestual

é um atraso em seu aprendizado da língua oral? O que ele deve ser bilíngue, leitor de

múltiplas linguagens?

Por fim, um esclarecimento supérfluo para os de bom-senso: contar é só hoje

uma estratégia de sensibilização para começar a sedução para o relato, esteja ele sobre

que suporte estiver, inclusive o da escrita. A leitura que pré-existe à escrita – lembremos

que só há escrita quando já houve leitura- é um modo de colher o que há, o que

interessa, o que necessita o apanhador no campo do mundo... a leitura é condição para a

escrita.

Bem sabemos, no entanto, que envenenados pelo esquecimento, muitas vezes, só

entendendo as letras, entenderemos o mundo que nelas foi cifrado: a escrita tem seus

segredos. Às vezes, só ao pronunciá-las, ficamos curados do feitiço, da paralisia que

causa não ter vivido o que está escrito. A lei só foi dada como registro do que já era

costume: se o costume é vivo, a lei não é necessária. Ele se transforma e à lei, sendo o

homem sua medida – isto que está nas escrituras sagradas, vale para as profanas!

Por fim cá entre nós, do Gênesis às histórias dos mil e um milênios, a Palavra é

em si mesma, o que se pronuncia para criar realidade humana: Deus não escreveu Faça-

se a luz, mas disse e fez. Que mal haveria em dizermos contos escritos, além de realizá-

los aos olhos (e ouvidos) dos outros?

Page 17: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

17

MONTEIRO LOBATO E O LEITOR CIDADÃO:

A UTOPIA POSSÍVEL

Maria Teresa Gonçalves Pereira1

Devemos escrever para crianças do mesmo jeito que escrevemos para os adultos. Só que melhor.

(Maximo Gorki)

Monteiro Lobato, considerado por vários críticos como um homem à frente de

seu tempo, acreditava na educação para resolver os problemas sócio-político-

econômicos do país. O espírito polêmico e individualista é passado reiteradamente para

o leitor em suas obras destinadas às crianças e aos adultos. Tal polêmica não se sustenta

somente na realidade que o rodeava, mas na posição sistematicamente contrária que

assumia, nas soluções que propunha e na reformulação das próprias ideias, exercendo

sempre elevado senso crítico. Em suas múltiplas atividades – promotor, fazendeiro,

político, editor, escritor – lutou pela modernização do país contra a máscara ufanista da

riqueza e do desenvolvimento.

A consciência nacionalista, alcançada pelo viés da educação, pressupunha que

não bastava só saber, era necessário fazer, realizar, pôr em prática. A ideia de que cada

um deve mudar para mudar a massa, assim como a preocupação constante de incentivar

no indivíduo a liberdade de pensamento e ação inserem-se na linha de frente do

pensamento lobatiano.

É na criança que Monteiro Lobato (1955, T2, 292, 293) aposta:

“Ando com ideias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé do Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar.”

1 Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ; Doutora em Letras.

Page 18: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

18

Conta com elas para as possibilidades de mudança, colocando-as como agente

principal do seu projeto de vida, harmonizando-as com o mundo através de suas

potencialidades e energias.

Apesar de todas as dificuldades, Monteiro Lobato viabilizou a circulação do

texto literário entre nós, trazendo para primeiro plano as condições de produção,

circulação e consumo num processo de modernização em termos da indústria editorial.

É singular a sua inserção na história da literatura brasileira nos papéis de escritor e

editor, atuando em ambos os lados dessa questão cultural: a produção e a recepção.

A sua obra literária – a infantil e a adulta – confirma a importância de que se

reveste para Lobato o ato da leitura e, por extensão, o objeto livro. Dona Benta recebe

livros pelo correio e os lê com os netos, Alice conversa em português porque já foi

“traduzida”, os moradores de Oblívion manuseiam os três livros da cidadezinha, os

narradores dos contos lembram-se de leituras em suas histórias, só para citar alguns

exemplos.

Na passagem do século, a literatura infantil brasileira não se impunha por sua

criatividade – os textos nada mais eram do que traduções ou versões da literatura

europeia da época. Aqueles considerados originais apresentavam uma visão

conservadora da infância, com personagens-modelos e padrões rígidos de

comportamento.

Sendo literatura infantil brasileira como formação histórica moderna, torna-se

significativo, então, o fato de Lobato ter-se nela distinguido. Essa literatura, ao surgir

em 1921 – A Menina do Narizinho Arrebitado depois Reinações de Narizinho – aponta

para a maturidade da formação burguesa de certas faixas da população estratificada em

diferentes leitores. O sucesso do escritor reforça sua afinidade com o mundo da época.

Além de todos os notórios sinais da modernidade de Lobato, há uma série de

procedimentos literários reconhecidos como modernistas e de vanguarda pela crítica a

partir de 1922.

Começaríamos por destacar a oralidade da narrativa – uma maneira de criticar

violentamente o rigor acadêmico de velhas fórmulas, os modelos importados – dentro

de ambiente popular, dando margem ao aparecimento de um trabalho inovador com a

Page 19: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

19

linguagem, tanto reproduzindo quando criando, rompendo com o convencional, da

sintaxe ao léxico.

Focalizando apenas sua obra infantil, podemos dizer que o sítio de Dona Benta,

microcosmo do Brasil, retoma e transfigura Itaoca, das Cidades Mortas. As aventuras

transitam entre O Sítio e outros espaços (a Grécia Antiga, os contos europeus das

fadas), lembrando o recurso da colagem; a mudança dos personagens dos contos da

Carochinha para o Sítio, o ribeirão que o corta abrigar o Reino-das-Águas-Claras e ser o

ponto de partida para uma viagem ao céu deixam o Sítio, segundo Marisa Lajolo

(1982), parecido com o sertão de Guimarães Rosa, o mundo. Para ela também o modus

operandi de Macunaíma já se delineia na ruptura dos limites geográficos, no tempo

inesgotável, no recurso do pirlimpimpim e no jogo do faz-de-conta.

O senso crítico lobatiano é presença forte, afinando-se com outros projetos de

vanguarda. A própria retomada da tradição literária europeia se faz, pelo viés da

recriação, no seu olhar nacional singularíssimo, carregado de interações ao avaliar o

contexto tradicional.

A síntese perfeita da liberdade de pensamento e ação que suas histórias

defendiam está na “boneca” Emília ou na “evolução gental”, como ela mesma se

definia. É o pensamento mais importante para se compreender o universo lobatiano, já

que vive em tensão dialética com os outros. Representa a ambiguidade do homem com

suas características positivas, as realizações, as preocupações sociais, a crítica franca, a

curiosidade e a sua tendência ao despotismo (exploração do Visconde), a tentativa de

domínio, a exacerbação da individualidade. Emília, acima de qualquer julgamento, é

ousada, perseverante, franca. Não só tem ideias, executa-as, cria condições para que o

saber e o fazer caminhem sempre juntos.

A historiografia contemporânea privilegiou a corrente modernista em detrimento

das outras que a antecederam, minimizando Lobato. Já é tempo, pois, de resgatar sua

importância, não só como festejado escritor infantil. Torna-se fundamental destacar seu

engajamento político e a atuação nos mais diversos campos, objetivando solucionar os

graves problemas do país. Desde 1914 – bem antes da Semana de 22 – Lobato tentava

resgatar nossas raízes nos mais variados campos do saber e da criação artístico-literária.

Para o crítico Wilson Martins, deveria ter sido o líder natural do movimento modernista,

já que pregava e praticava um projeto de modernização do país que transcendia as

Page 20: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

20

letras. Só ao longo do tempo, como a descoberta de outras fontes e novas pesquisas,

fatos considerados verdades absolutas, puderam ser revistos, desfazendo certos mitos

como as relações de Lobato com o movimento modernista.

Deve-se celebrá-lo pela sua preocupação com a renovação da literatura no

sentido do encontro com o autêntico da realidade brasileira com a linguagem brasileira.

Estudos recentes derrubam a tese do rompimento radical de Lobato com os

modernistas. Basta ver o seu diálogo com Oswald de Andrade e Sérgio Milliet na

década de 20, embora o último tenha amargado seu discurso sobre o autor de Urupês

nos anos seguintes. É curioso também o fato de que, em 1922, Lobato, o mais

importante editor brasileiro na época, colocava no mercado livros de autores

modernistas com capas de Anita Malfati, justamente o motivo do polêmico gerado a

partir da crítica à exposição da pintora em 1917, que redundou em tantos

desdobramentos. Sem entrar no mérito da questão, pois não é esse o nosso objetivo,

cabe ressaltar que Lobato não era adepto de nenhum “ismo” importado: futurismo,

cubismo, dadaísmo, etc. nem das experimentações herméticas, na língua escrita ou nas

artes plásticas. Acreditava com convicção que o país não podia pensar em francês e

escrever na língua portuguesa de Portugal. Sempre foi um brasileiro informado,

tentando compreender, através de sua personalidade polivalente e inquieta, a realidade

para modificá-la. E, sem dúvida, em sua trajetória, a independência foi marca muito

forte.

Dentro do comprometimento com as coisas do seu país, o fato é que a maioria

dos problemas que Lobato denunciava e tentava mudar, continuam os mesmos nos dias

de hoje – às vezes até maiores. Na área da saúde (Problema Vital, 1918), na distribuição

da terra na reforma agrária (Zé Brasil, 1947), na socialização da cultura, na ética da

política, na justiça social, muito pouco ou nada se avançou, considerando fatores

diversos. Constatamos, então, que suas preocupações permanecem atualíssimas. A

figura – e o que simboliza – do jeca Tatu, que tanto mal faz à terra, infelizmente, ainda é

uma triste e cruel realidade.

Cassiano Nunes em artigo da Folha de São de Paulo (1998), num suplemento

especial dedicado a homenagear Lobato pelo cinquentenário de sua morte, ressalta ele

ter sido:

Page 21: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

21

“o primeiro autor brasileiro a tratar as crianças como seres pensantes, capazes de ponderar sobre assuntos “sérios” e juízos contraditórios a fim de formar convicção própria, se não houvesse sido, antes, simplesmente o primeiro escritor que se dedicou a elas. Bastariam essas razões para que lhe fosse confirmado o epíteto de clássico, num país onde eles não são frequentes a ponto de se dispersarem com um “piparote” – como ele próprio diria.”

Monteiro Lobato busca uma renovação constante nas possibilidades inúmeras

que a língua nos oferece, dinamizando-a, explorando-lhe ao máximo as potencialidades,

as suas diversas realizações, não se prendendo ao convencional, mesmo quando dele

precisa para reavaliá-lo, reaproveitá-lo ou partir para novas propostas. Passa a ideia de

que a língua não é rígida, se prestando a diferentes usos que dependem de contexto e

posição.

A maioria dos experimentos linguísticos se realiza através do personagem

Emília. O estatuto da boneca lhe confere liberdade de atitudes e de “falações”. Tudo lhe

é permitido, gerando uma prática, eminentemente lúdica, no trato com a palavra.

Subverte a ordem estabelecida, a regra, instaurando próprias regras. A sua visão da

linguagem é prática, funcional. Ela está a seu serviço:

“– A gramática, minha filha, é uma criada da língua e não uma dona. O dono da língua somos nós, o povo – e a gramática o que tem a fazer é, humildemente, ir registrando o nosso modo de falar. Quem manda é o uso geral e não a gramática. Se todos nós começarmos a usar o tu e o você misturados, a gramática só tem uma coisa a fazer...”

“- Eu sei o que ela tem a fazer, vovó! – gritou Pedrinho. É pôr o rabo entre as pernas e murchar as orelhas...” (Fábulas, 48).

A entrada da Emília no mundo das palavras é curiosa. A célebre “torneirinha de

asneiras” se abre por efeito das pílulas falantes do Doutor Caramujo ou Doutor Cara-de-

Coruja, no dizer da boneca, quando sua fala ainda não estava bem regulada. Durante

todas as narrativas lobatianas, essa característica será uma constante – a da manipulação

– das palavras e, consequentemente, das ideias, usando para isso, vários caminhos ou

recursos, conforme o caso.

Emília forja tal comportamento lingüístico, esse à vontade em que transita com

desenvoltura e naturalidade entre o estabelecido e o diferente, instaurando nova e

instigante ordem. Através da Emília, Monteiro Lobato cria, mas não no sentido ao qual

Page 22: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

22

estamos habituados, de inovar por inovar. Regem-no o bom senso, a visão do gênio para

ousar, sem que as aparentes transgressões violentem as estruturas linguísticas.

Há passagens deliciosas em que Emília explora o trocadilho, o jogo com as

palavras:

“Também você Bruto!” – e caiu atravessado pelos punhais assassinos.

Nesse ponto Emília deu uma piadinha:

- Acho que a morte de César foi uma brutalidade...” (Hércules I, 153)

“Depois dividiram o quilo em mil partes iguais, e cada parte ficou sendo um grama.

- E os vendeiros têm agora de gramar ali no peso certo, não é assim?

- Nossa Senhora! – exclamou Dona Benta. Até trocadilho esta diabinha já faz... (Aritmética, 153)

O aproveitamento da etimologia popular com base na analogia dá ensejo AP

aparecimento de situações lingüísticas como:

“Um letreiro amarelo em língua sueca e a palavra Jonkoping embaixo. O povo dizia que eram fósforos do João dos Copinhos...” (Invenções, 47)

A significação das palavras é dada através de sua própria camada fônica:

“- Com certeza vocês sabem o que é Vesúvio...

- Sei! ... gritou Emília que acabara de entrar na cozinha onde estivera atropelando Tia Nastácia. Vesúvio quer dizer: tu vês, mas o u já viu.” (História, 116)

A derivação e a composição aparecem nos textos de Lobato sob ótica

inspiradíssima, já que faz combinações desusadas com grande efeito expressivo, numa

engenhosa atividade criadora:

“... a história do Pégaso, do Bucéfalo, do cavalo de Tróia e outras “cavalências” célebres.” (Reinações, 208)

“Será possível? – exclamou Pedrinho.

Emília não tirava os olhos do binóculo.

- Bis-possível! – murmurou.” (Picapau, 171)

Page 23: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

23

“Vocês façam esses “pratos-bonitezas” que eu faço os meus “pratos-gostosuras”.” (Picapau, 161)

“Pronto que foi o borboletograma, surgiu uma dificuldade. A quem endereçá-lo.” (Reinações, 59)

Monteiro Lobato redefine certos fatos, objetos, comportamentos através de

traços mais poéticos, mais exóticos, mas com total logicidade nos princípios que lhes

norteiam o aparecimento:

“Sei – disse Emília. Essas árvores são as vacas vegetais do Amazonas. Os tais seringueiros tiram-lhe o leite e fazem coalhada; depois da coalhada fazem requeijão – que é a borracha. (Gramática, 34)

“Nós, gramáticos, usamos um nome feio para designar tais substantivos – Epicenos.”

“- Isso não é designar, é xingar! – disse Emília.” (Gramática, 34)

As criações vocabulares se efetivam pela necessidade de nomear o fato

linguístico, não importando se o referente é novo. É fundamental tal criação ser

adequada ao espírito lobatiano, ao contexto em que se insere:

“Não perdem tempo em enfeitar palavras com bolostroquinhas dispensáveis.” (Gramática 157)

“Porque o Visconde diz que os animais do “naipe” dos ratos já nascem sabendo o que é gato.” (Fábulas, 110)

Publicada em 1934, Emília no País da Gramática leva o pessoal do Sítio a

visitar os conceitos gramaticais. Lobato aproveita para criticar, de forma contundente, a

ortodoxia gramatical com toda rigidez e apego excessivo ao passado. Faz um libelo

apaixonado – que perpassa todas as suas obras – a favor de uma língua viva, funcional e

criativa com os usuários manipulando-a de acordo com as suas necessidades, sem

traumas e limitações.

A questão do ensino da língua, desprovido de criatividade e reflexão críticas,

merecia de Lobato sérias restrições. Pedrinho é seu porta-voz:

“Se meu professor ensinasse como a senhora, a tal gramática até virava brincadeira. Mas o homem obriga a gente a decorar uma porção de definições que ninguém entende. Ditongos, fonemas, gerúndio...” (p.7)

Page 24: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

24

Certas regras vigentes são contestadas. À recomendação de se usarem aspas nas

palavras estrangeiras, cabe o comentário de Narizinho:

“Acho odioso isso. Assim como num país entram livremente homens de todas as raças – italianos, franceses, ingleses, russos, polacos, assim também devia ser com as palavras. Eu se fosse ditadora, abria as portas da nossa língua a todas as palavras que quisessem entrar – e não exigiria que as coitadinhas de fora andassem marcadas com os tais grifos e as tais aspas.” (p. 23)

Monteiro Lobato encontra um jeito especialíssimo para “ensinar” a noção

gramatical:

“As frases formam-se para exprimir o pensamento dos homens, e a boa ordem das palavras na frase ajuda a expressão do pensamento... A senhora tem toda razão – concordou a boneca. Lá no sítio de Dona Benta o Substantivo Nastácia também gosta de dar ordem a tudo, porque a ordem facilita a vida, diz ela.” (p. 122)

Nesta obra, Lobato ratifica sua própria postura crítica em relação á realidade

objetiva, instaurando-a por meio da linguagem e com seu inestimável auxílio. Tal fato o

coloca ao lado dos modernistas da década de 20. Mesmo que Emília no País da

Gramática date de 1934, as mudanças propostas já vinham de 1918, quatro anos antes

da Semana de Arte Moderna.

Ainda não se falou tudo a respeito de Monteiro Lobato. Sua obra adulta, por

exemplo, merece mais vozes, não simplesmente “ecos”. Silviano Santiago no já citado

suplemento da Folha de São Paulo faz, em boa hora, uma análise dessa literatura,

comentada, dentre outros assuntos, a obsessão do escritor pela ideia de decadência, a

confiança no progresso e o horror à estilização em obras como Urupês e Cidades

Mortas. A própria literatura infantil deveria ser mais valorizada. Ainda não se

desvelaram completamente as múltiplas facetas do escritor.

José Roberto Whitaker Penteado, autor de Os filhos de Lobato (1997), afirma

que o escritor não fez proselitismo ideológico. Sua maior importância e sua vitória

foram contribuir, com inteligência e emoção, para o permanente processo de

individualização de cada leitor, saindo “da morada de seus livros diretamente ao

encontro de nós mesmos.”

Page 25: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

25

Os estudos existentes sobre Lobato, em sua maioria, abordam aspectos relativos

à produção: questões biográficas, ideológicas, estéticas, linguísticas. Há teses, artigos,

livros que enfocam tal vertente. Penteado tem o grande mérito, aliás, de trilhar outro

caminho, voltando-se para o eixo da recepção da obra lobatiana. O trabalho é

interdisciplinar, explorando não só o literário, como o social, o psicológico, o

econômico.

É bastante original na conclusiva constatação, depois de exaustiva pesquisa, de

que uma geração de homens e mulheres bem-sucedidas leu Monteiro Lobato.

Banqueiros, economistas, juízes, engenheiros, médicos, professores tornaram-se

melhores e mais criativos profissionais após frequentarem assiduamente O Sítio do

Picapau Amarelo.

Incluímo-nos, com orgulho assumido, na relação acima, ratificando a admiração

pelo genial criador que povoou de beleza e encantamento a nossa infância, atualmente

servindo-nos do pirlimpimpim na justa medida à nossa realidade pessoal e profissional,

no ato fundamental de transformar o saber em fazer com sabor e arte.

Muito se fala a respeito da importância de Monteiro Lobato na formação de

gerações de leitores brasileiros. Isso se materializou de diferentes maneiras para cada

um que leu Lobato. Magia, encantamento, liberdade, curiosidade, emancipação,

autonomia, criatividade, perspicácia, crítica. A concepção lobatiana de leitura integra

essas e tantas outras questões.

O Sítio é um espaço real para todos nós, leitores, uma vez que incorporamos tão

concretamente a “alma” de um lugar abstrato, produto da imaginação e do gênio de um

homem que acreditava verdadeiramente no poder da ação para modificar o destino.

As palavras de Edgar Carvalho, no prefácio de A Barca de Gleyre, a reunião das

cartas de Lobato para Godofredo Rangel, são conclusivas:

“Que os moços procurem nestas cartas o caminho percorrido pelo mestre, não para imitá-lo ou submeter-se passivamente ao seu modo de ver e de sentir as coisas, mas sim como ponto de partida para outras aquisições e outros feitos. Procurem, não só a lição do conteur, mas do mestre da vida, daquele que já no fim da carreira podia escrever ao amigo: ‘Tenho sido tudo e creio que minha verdadeira vocação é procurar o que valha a pena ser’. Insatisfação, inquietude, inconformismo...

Ai dos satisfeitos, dos suficientes, dos conformados!...” (1955, p.13)

Page 26: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

26

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Vera Teixeira de (org). Atualidade de Monteiro Lobato: uma revisão crítica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

AZEVEDO, Carmen Lucia de et al. Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo: Senac, 1997.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 5. Ed. Revista. 1991.

FOLHA DE SÃO PAULO. Caderno Mais!, 28/06/1998.

LAJOLO, Marisa. A modernidade em Monteiro Lobato. In: Letras de Hoje. PUC/RS, nº 49, set. 1980.

LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre. Tomo 1º e tomo 2º. 6ª ed. São Paulo. Brasiliense, 1955.

LOBATO, Monteiro. Emília no país da gramática. São Paulo: Brasiliense, 1958.

PENTEADO, José Roberto Whitaker. Os filhos de lobato: o imaginário infantil na ideologia do adulto. Qualitymark/ Dunya, 1997.

PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. Processos expressivos na literatura infantil de Monteiro Lobato. Dissertação de Mestrado. PUC/ RJ, 1980.

PROLEITURA. Meio século sem Lobato. Ano 5, nº 18, UNESP, fev. 98.

Page 27: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

27

POETANDO E PROSEANDO

Elias José1

A CONTADORA DE HISTÓRIA

A tarde estava cinza,

chata, dura e amarga.

Aí chegou tia Danusa,

a contadora de histórias.

Magra, pequena e feinha.

De cara, ninguém deu bola.

Mas aí tia Danusa abriu a boca

e soltou um largo “boa-tarde”.

Jogou os braços como asas

e fez mil caras e mil falas

e cantos de gente e bichos.

E o sol foi se abrindo

e as nossas asas crescendo

e uma magia pairou no ar.

O sol e a doçura eram tia Danusa!

Com as histórias e a contadora,

crianças e adultos viajavam.

Todos ganhavam longos braços

e acariciavam nuvens e arco-íris.

1 Escritor, professor e poeta.

Page 28: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

28

Todos se transformaram

em fadas, feiticeiros, bruxas, feras,

príncipes, princesas e sapos.

E ninguém tinha visto antes mulher

maior e mais bela do que tia Danusa.

E ninguém dava bola pro mundo

fora das suas histórias.

Elias José – A família Belas Artes

Era uma vez... Nas noites dos tempos, sem que possamos dizer primeiro onde

nem quando, o homem nasceu cantando ou contando.

De repente, o homem primitivo prestou atenção nos sons do mundo. Ouviu os

pássaros cantarem com suavidade e de forma variada. Gostou dos muitos ritmos

marcando o movimento das águas dos rios e mares. Achou que o vento fazia um som

bonito e diferenciado ao movimentar toda a natureza. Percebeu que podia, com o seu

corpo, imitar os sons que ouvia. Mais que tudo, começou a observar a beleza dos sons

que soltava e que os outros homens soltavam. E havia o ritmo do choro e do riso, os

barulhos das criancinhas e dos casais fazendo amor. As primeiras onomatopeias e

repetições vinham plenas de musicalidade, portanto de poesia.

Aí o homem se aventurou a caminho do conhecer, tocar, modificar o mundo que

o cercava. E voltava para o seu agrupamento todo prosa, querendo contar acrescentando

pontos a cada ação que fez ou viu os outros fazerem. Contar e acrescentar eram formas

de enriquecer o visto, enriqueciam o seu cantar. E começou a prosear e a poetar por tudo

e por nada, por necessidades lógicas e psicológicas ou por simples encantamento.

O era uma vez passou a ser uma necessidade primária e fundamental do homem.

A música da prosa e da poesia fazia parte do seu ser e viver e o encantava. Estava em

seus ouvidos e em todos os demais sentidos, agora mais aguçados. Contar e cantar eram

Page 29: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

29

passes de mágica, varinhas de condão que o levavam ao mundo do faz-de-conta e

davam-lhe mais alegria e sentido para a vida. Eram fórmulas mágicas de desligar o

homem ou a criança do seu cotidiano repetitivo e vazio, levando-os por um certo tempo

para o país dos sonhos. Para lugares onde tudo é livre, belo, possível e permitido.

Contar e cantar passaram a ser formas de bem viver e reviver, de marcar o ser e

estar no mundo e de deixar lembranças vivas na memória do outro.

E o homem registrou sentimentos e lembranças nas inscrições rupestres e nas

cavernas. Contou e cantou aventuras com vontade de eternizá-las, de eternizar-se.

Cantar e contar foram formas mágicas de encantar, de conquistar, de fincar

bandeiras no coração do outro, de mostrar-lhe e demonstrar-lhe amor e amizade. Foram

formas de registrar a vida vivida e a idealizada, de pôr para fora os sentimentos e de

criar fortes laços humanos.

Sherazade sofisticou o feitiço do faz de conta. Acrescentou doses de amor,

poesia e sensualidade em cada aventura narrada, primeiro para o seu rei, depois para

todos nós...

Selvagens africanos ou os nossos índios, nas selvas, mostraram, em seu era uma

vez e nos cantos líricos ou guerreiros, o seu espírito épico ou o seu convívio afetivo com

o outro, com os bichos, com água, com a terra e plantas e com os céus.

Guerreiros e aventureiros, por mares e terras nunca antes tocados, abriram

caminhos, conquistaram terras e gentes. Contaram, cantaram e ouviram histórias.

“Navegar é preciso / viver não é preciso.”. Viver é preciso no sentido de ser necessário,

mas é impreciso no sentido de ser sempre a vida uma aventura inesperada, imprecisa.

Narrar e cantar é preciso para enriquecer e para melhor conhecer a vida.

Graças à sua inteligência, sensibilidade e poder criativo, o homem se

desenvolveu e desenvolveu a sociedade. Criou formas e formas de expressar o seu canto

e o seu conto, a sua sensibilidade especial. Formas que se desenvolveram e se

aperfeiçoaram com os tempos. E o homem passou a dançar, representar, desenhar,

escrever, publicar livros e jornais, cantar e gravar a voz em discos e filmar.

Feliz da criança que teve pais, avós ou babás que enriqueceram o seu imaginário

com muitas histórias, varando, virando e transformando o mundo pelo poder mágico da

Page 30: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

30

ficção. Pessoas que a fizeram dormir mais tranquilamente ao som dolente de uma

cantiga de ninar.

Triste criança de hoje, que tem que se contentar com as histórias cantadas ou

contadas pela televisão. Histórias mais cínicas e perversas do que lírico-poéticas, mais

interessadas em vender produtos do que em oferecer prazer e magia.

Sou um poeta e contador de histórias. Conto e canto, onde sou ou não

convidado. Hoje e sempre, mais do que nunca é preciso contar e cantar. Se uma voz se

perde no meio de tantas vozes, é preciso treinar muito, ter muito fôlego, insistir sempre

e mais, para que o canto e o conto quebrem o muro das indiferenças.

Os cantores e contadores não nasceram do nada, tiveram uma história de vida

vivida, uma iniciação mágica. Tiveram alguém que jogou sementes, adubou e cuidou

muito do seu imaginário, só pelo prazer de passar alegria, sem intenção didático-

educativa.

Ouvi muitas histórias contadas por minha avó paterna. Dona Joana era uma

libanesa pequenina, pobre, sofrida, comum, talvez mais feia do que bonita, que mal

sabia falar o português, mas que sabia contar histórias. Ela crescia, ficava bela,

incomum, quando contava as suas histórias. A fala diferente era um recurso a mais que,

ligada aos gestos, ganhava mais expressividade. Contar era reviver e despertar amor à

terra distante. Era oferecer aos netos um tapete voador capaz de levá-los a árduos

desertos ou a castelos aveludados, coloridos e luxuosos. Era conviver com as

personagens incomuns, reis e princesas apaixonados, Ali-Babá e os quarenta ladrões,

Aladim, guerreiros bons ou vingativos. Era abrir o imaginário com uma única palavra

de ordem: abracadabra.

Li muitas histórias dos muitos livros que minha mãe nos dava quando viajava,

nos aniversários ou no Natal, acompanhando roupas, calçados e brinquedos simples. Se

recontássemos as histórias, mostrando a opinião, os próximos brinquedos seriam

melhores. Depois do recontar, vinha o inteligente e lúdico acrescentar coisas,

transformar partes, mudar o final ou inventar o que poderia acontecer nos outros dias

depois do desfecho. E pensar que minha mãe, grande leitora de romances, mulher como

uma certeza muito grande na necessidade de estudo para ser alguém na vida, era uma

autodidata, sem ter completado sequer o curso primário.

Page 31: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

31

O meu pai era calado e não contava histórias, mas tinha quem contasse por ele.

Tinha uma fazenda de café, com vários colonos. O homem do campo em Minas, penso

que em todo mundo, é um contador de “causos” fantástico. Para emocionar o ouvinte,

aumenta muitos pontos na história, fantasia de modo natural, sem alterar a voz ou

exagerar nos gestos. Poucas vezes cacei ou pesquei de verdade, mas participei das

pescarias e caçadas mais emocionantes e bem realizadas, através da voz deles. De vez

em quando, ainda tremo ou me arrepio de medo ao me lembrar das histórias de

assombração e lobisomens, mulas-sem-cabeça pondo fogo pelas ventas. Eram ex-

fazendeiros mortos que voltavam às suas antigas propriedades para dar ordens aos

herdeiros ou atuais donos de suas terras. Antigos escravos que, mesmos mortos,

soltavam gemidos de dor e de raiva contra os seus donos.

Devo muito a algumas poucas professoras que me estimularam a ler, a escrever, a copiar e a declamar poemas.

Com o tempo e o prazer de ler, fiz muitas viagens pelos variados espaços e tempos

de mil e uma narrativas. Convivi com as personagens de ficção, vivendo as histórias que

elas viviam. Senti na alma e na pele o que os poemas me passavam. Tornei-me parceiro

apaixonado de grandes poetas e prosadores, pois o bom leitor é sempre um co-autor. Aí,

era uma vez em que achei que também poderia escrever. Poderia começar a contar e a

cantar.

A tremenda vontade de escrever e de mostrar meus textos para quem entendia me

levou, ainda muito jovem e tímido, a enviá-los para escritores de nome. Muitos sequer

me responderam. Outros me abriram muitos caminhos. Leram carinhosamente os meus

contos iniciais, me sugeriram, anotaram erros e me deram oportunidades. Osman Lins, o

mais exigente de meus críticos, o que mais me cobrava assumir compromissos políticos

com o ato de escrever, enviou-me O ofício de escritor, livro de Nelson Werneck Sodré.

O romancista e crítico Octávio de Faria, que primeiro escreveu em jornal de circulação

nacional sobre os meus contos, enviou-me Cartas a um jovem poeta. Se o primeiro livro

me ensinava olhar para fora, para o social, o segundo me ensinava a olhar para dentro,

para a minha infância, para os meus problemas. Ambos foram muitos úteis para a minha

formação, me fizeram caminhar pelos caminhos do mundo e pelos meus caminhos,

desvios e encruzilhadas. Fizeram-me buscar por conta própria outras obras que deveria

conhecer. O tempo passou e muitas coisas boas e difíceis aconteceram. Se não era fácil

o ofício de escritor, impossível não era. Se era trabalhoso, descobri que me dava muito

Page 32: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

32

prazer. Escrever e ser lido. Que experiência humana incrível, apaixonante! Como é bom

saber que a literatura me possibilitou um diálogo silencioso, solitário (por isso mesmo

mais rico) com o outro, o meu leitor! Estive horas com ele e não conheço o seu rosto.

Como explicar isto?

O jovem que sonhava ter um livro publicado um dia, antes de morrer, hoje,

quase quarenta anos depois, tem perto de cem livros publicados, alguns com prêmios

significativos. Muitos deles com várias edições, prova que foram lidos e, às vezes,

amado e odiado.

Como podem ver, um escritor não nasce do nada. Sempre há uma história

pessoal, tecida com a trama de muitas histórias ouvidas ou lidas. Um poeta-cantor não

nasce do nada. Sempre tem em seus ouvidos o ritmo de cantos e poemas ouvidos. O

canto provoca o canto. O conto provoca outros contos e recontos. E como é

emocionante saber que o meu conto e o meu canto serão ouvidos, lidos, contados e

cantados por outras pessoas! E como é compensador saber que muitas crianças terão

uma infância mais lúdica e feliz, alimentada por meu jeito carinhoso de cantar e de

contar! E como me faz bem saber que faço algo de bom às pessoas e a mim mesmo – e

faço com uma febre, uma energia, uma alegria e uma paixão que tornam a minha vida

melhor.

Não me importa saber se o homem nasce cantando ou contando. O bom mesmo

é saber o que a poesia e a prosa significam em nossas vidas. De minha parte, seria uma

felicidade morrer (o mais tarde possível) escrevendo coisas para outras pessoas

cantarem ou contarem comigo.

O FICCIONISTA

Para satisfazer estranho ego

Para nutrir meus pesadelos

Para recriar medos infantis

invento fantasmas.

Page 33: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

33

Para defender minhas posses

Para visualizar as referências

Para alimentar as minhas garras

_ invento espantalhos.

Para segurar perdidas fases

Para somar variadas faces

Para adular noturnas companhias

_ invento personagens.

Para torturar meu santo lado

Para desfazer dos bens herdados

Para chefiar minhas cruzadas

_ invento demônios.

Para proteger minhas encruzilhadas

Para facilitar confusas travessias

Para segurar o menino que rezava

_ invento arcanjos.

Para implantar as minhas raízes

Para colocar as minhas bandeiras

Para instalar-me em tempo de tédio

_ invento continentes.

Para sentir chão, água e verde

Para renovar ar, vida, fé e chama

Para levantar refeitos restos de vida

_ invento histórias.

Page 34: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

34

TEXTOS DE EDUARDO GALEANO

JANELA SOBRE A PALAVRA – 1

Os contadores de história, os contadores de história, só podem contar enquanto a neve

cai. A tradição manda que seja assim. Os índios do norte da América têm muito cuidado

com essa questão dos contos. Dizem que quando os contos soam, as plantas não se

preocupam em crescer e os pássaros esquecem a comida de seus filhotes.

JANELA SOBRE A PALAVRA – 2

No Haiti não se pode contar histórias de dia. Quem conta de dia merece desgraça: a

montanha jogará uma pedra em sua cabeça, sua mão só conseguirá andar de quatro.

Os contos são contados de noite, porque na noite vive o sagrado, e quem sabe contar

conta sabendo que o nome é a coisa que o nome chama.

A PAIXÃO DE DIZER

Marcela esteve nas neves do Norte. Em Oslo (Noruega), uma noite, conheceu uma

mulher que canta e conta. Entre canção e canção, essa mulher conta boas histórias, e as

conta espiando papeizinhos, como quem lê a sorte de soslaio.

Essa mulher de Oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos. Dos bolsos vai

tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história de fundação

e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por arte de bruxaria. E

assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos; e das profundidades desta saia

vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo

vai.

Em O livro dos abraços – L&PM

Page 35: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

35

HISTÓRIAS PARA O REI

Nunca podia imagina que fosse tão agradável a função de contar histórias, para a qual

fui nomeado por decreto do Rei. A nomeação colheu-me de surpresa, pois jamais

exercitara dotes de imaginação, e até me exprimo com certa dificuldade verbal. Mas

bastou que o Rei confiasse em mim para que as histórias me jorrassem da boca à

maneira de água corrente. Nem carecia inventá-las. Inventavam-se a si mesmas.

Este prazer durou seis meses. Um dia, a Rainha foi falar ao Rei que eu estava

exagerando. Contava tantas histórias que não havia tempo para apreciá-las, e mesmo

para ouvi-las. O Rei, que julgava minha facúndia uma qualidade, passou a considerá-la

defeito, e ordenou que eu só contasse meia história por dia, e descansasse aos domingos.

Fiquei triste, pois não sabia inventar meia história. Minha insuficiência desagradou, e

fui substituído por um mudo, que narra por meio de sinais, e arranca maiores aplausos.

Carlos Drummond de Andrade – Contos plausíveis

Page 36: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

36

LEITURA, ESCRITA & LETRAMENTO

Page 37: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

37

ENSINO-APRENDIZAGEM DE LEITURA, INTERPRETAÇÃO E PRODUÇÃO DE TEXTO – UMA PROPOSTA INTEGRADA

Odilon Pinto de Mesquita Filho1

Esse trabalho apresenta uma proposta “integrada” de ensino-aprendizagem de

leitura, interpretação e produção de texto, como alternativa para o ensino tradicional. Os

resultados preliminares obtidos mostram maior eficácia da proposta integrada, quanto à

coerência, coesão, compreensão, criatividade e à instituição do sujeito da enunciação.

Essa proposta integrada assume a interpretação como uma construção de sentido,

feita pelo leitor, a partir dos seus conhecimentos prévios e com base nas pistas textuais,

numa relação interlocutiva. “Nem o autor, nem o leitor são as fontes únicas do sentido.

Elegemos a própria relação interlocutiva como o espaço a iluminar a historicidade dos

acontecimentos construídos nesta relação. O texto é, pois, o lugar onde o encontro se

dá” (GERALDI, 1993, p. 167).

KLEIMAN (1995, p.12) vê a leitura

“como processo psicológico em que o leitor utiliza diversas estratégias baseadas no seu conhecimento lingüístico, sociocultural, enciclopédico. Tal utilização requer a mobilização e a interação de diversos níveis de conhecimento, o que exige operações cognitivas de ordem superior, inacessíveis à observação e demonstração, como a inferência, a evocação, a analogia, a síntese e a análise.”

Nessa perspectiva, o aluno tem papel ativo e principal na construção de sentido

do texto que lê e interpreta.

Tal concepção de leitura se opõe a prática autoritária, comum em sala de aula,

“que parte do pressuposto de que há apenas UMA maneira de abordar o texto e UMA

interpretação a ser alcançada.” (KLEIMAN, 1995, p.23. Grifos nossos.). Essa maneira

de trabalhar a leitura, a interpretação e a produção de texto é chamada aqui de

“tradicional”. Nela, a interpretação é assumida como re-conhecimento de um sentido

único existente no texto. Grande parte dos professores de português ainda trabalham a

leitura e interpretação de texto assim: a) Motivação do aluno, através de uma conversa

sobre o assunto geral do texto; b) Leitura silenciosa, sublinhando as palavras 1 Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz- UESC; Doutor em Letras e Linguística.

Page 38: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

38

desconhecidas; c) Leitura em voz alta, por alguns alunos, ou por todos os alunos, em

grupo; d) Leitura em voz alta, pelo professor; e) Elaboração de perguntas sobre o texto,

por parte do professor, como “Onde ocorreu a estória?”, “Quando? “A quem” e outras

perguntas sobre elementos explícitos; f) Reprodução do texto ( ou outra atividade de

redação ligada ao tema do texto).”

A construção de um texto se dá por operações discursivas, com as quais o

locutor faz uma “proposta de compreensão” a seu interlocutor, numa relação interativa.

(GERALDI: 1993, p. 194). Desta forma, para se produzir um texto, é preciso: a) ter o

que dizer; b) ter uma razão para dizer o que se tem a dizer; c) ter a quem dizer o que se

tem a dizer; d) construir-se enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz; e)

escolher as estratégias adequadas para realizar (a), (b), (c) e (d). (GERALDI, 1993,

p.137)

A produção de texto é um complexo processo comunicativo e cognitivo. Por

isso, em sala de aula, é preciso propor:

Situação de produção de uma grande variedade de textos de fato e ‘aproximar’ as condições de produção às circunstâncias na quais se produzem os textos reais. (...) Um escritor competente é alguém que sabe reconhecer diferentes tipos de texto e escolher o apropriado a seus objetivos num determinado momento. (...) é também capaz de olhar para o próprio texto como um objeto e verificar se está confuso, ambíguo, redundante, obscuro ou incompleto. Ou seja, é capaz de revisá-lo e reescrevê-lo até considerá-lo satisfatório para o momento. É ainda um leitor competente, capaz de recorrer, com sucesso, a outros textos quando precisa utilizar fontes escritas para a sua própria produção (MEC, 1995, p. 23).

Essa perspectiva se contrapõe à prática escolar tradicional de produção de texto,

onde há “poucas e mal dirigidas atividades específicas de leitura e escrita e praticamente

nenhuma reflexão sobre o que se escreveu ou de trabalhos de reescritura.” (BRITTO,

1997, p. 108). Essa prática escolar tradicional de produção de texto se caracteriza por

não levar em conta as operações discursivas, citadas acima, fazendo em que o aluno

restrinja estas operações ao objetivo de “agradar ao professor”. Cardoso (1998) observa

que:

o conhecimento das práticas pedagógicas que circulam nas escolas nos últimos decênios, nas aulas de Português, e também de outras disciplinas, nos revela que (...) a prática de leitura e de produção de textos nem sempre foi uma prática de produção de discursos entre interlocutores concretos, situados numa situação concreta de discurso.

Page 39: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

39

Um processo integrado de ensino-aprendizagem de leitura, interpretação e

produção de texto é enfocado pelos PNC (MEC, 1995, p. 20):

Leitura e escrita são práticas complementares e fortemente relacionadas (...) leitura e escrita são práticas que permitem que o aluno vá construindo seu conhecimento sobre os diferentes gêneros, sobre os procedimentos mais adequados para lê-los e escrevê-los, sobre as circunstâncias de uso da escrita.

Também Geraldi (1993, p. 165-6) aponta relações estreitas entre as duas

práticas:

Grande parte do trabalho com leitura é “integrado” à produção em dois sentidos: de um lado ela incide sobre “o que se tem a dizer”, pela compreensão responsiva que possibilita, na contrapalavra do leitor à palavra do texto que se lê; de outro lado, ela incide sobre “as estratégias do dizer”.

Essa visão integrada do ensino-aprendizagem de leitura, interpretação e

produção de texto, não orienta a maior parte das atividades escolares. Estas reduzem tal

integração a uma mera repetição do texto lido, solicitando ao aluno que escreva sobre o

que entendeu da leitura; ou a uma produção aleatória, que toma o texto lido apenas

como pretexto. Tal prática integra o que é chamado aqui de “integrada” e outra,

“tradicional”. A proposta integrada consiste em:

a) Ativação de conhecimentos prévios dos alunos;

b) Objetivo de leitura; Leitura protocolar (opcional)

c) Leitura silenciosa;

d) Discussão do texto lido em grupos;

e) Produção textual individual;

f) Leitura para reescrita do texto;

g) Análise linguística;

h) Uso do texto em situação real;

i) Feedback e novo ciclo de comunicação.

(a) A ativação de conhecimentos prévios consiste em trazer à “consciousness”

dos alunos os conhecimentos com base nos quais o professor deseja que eles

façam a interpretação do texto a ser lido e a produção de texto a ser feita.

Fulgêncio e Liberato (1996, p. 70-1) definem “consciousness”

Page 40: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

40

Como um estágio da memória humana intermediário entre as chamadas Memória de Longo Termo (MLT) e Memória de Curto Termo (MCT). A MLT é a parte da memória humana onde fica armazenado todo o conhecimento que se tem do mundo. A compreensão de textos por parte de um receptor é um processo que se baseia no conhecimento que ele já possui anteriormente. Então, o emissor deve adaptar o que diz ao que ele presume que está na MLT de seu receptor, para facilitar a comunicação. O falante deve ajustar a forma de sua mensagem ao conhecimento do ouvinte. Esse ajuste não se faz apenas em relação ao suposto conhecimento geral do ouvinte, mas também em relação à parte desse conhecimento que o falante presume que esteja presente na mente do ouvinte no momento da comunicação.

Essa parte temporária da memória que é chamada “consciousness”. Ativar um

conhecimento prévio, portanto, é colocá-lo na “consciousness” dos alunos. Caso o

professor não faça essa ativação, as interpretações do texto lido podem variar numa

escala mais ampla, conforme os conhecimentos prévios ativados por cada aluno, o que

dificulta um objetivo de leitura comum a ser trabalhado pela classe.

O professor pode ativar os conhecimentos prévios dos alunos, fazendo com que

estes falem sobre suas experiências relacionadas com o conhecimento desejado. Por

exemplo, se o texto a ser lido for a história de Chapeuzinho Vermelho e o objetivo de

leitura a ser dado for produzir um cartaz com os cuidados que se deve ter na rua, o

professor pode ativar os conhecimentos prévios desejados fazendo os alunos falarem

sobre suas experiências, diretas ou indiretas, (casos conhecidos, notícias de jornais,

filmes, TV, casos ouvidos, etc.), relacionadas com acidentes ocorridos com crianças na

rua, como atropelamento, ataques de cachorros, sequestros, contatos com loucos, etc. O

professor deve deixar as crianças falarem sobre tais conhecimentos durante uns vinte

minutos. Neste ponto, espera-se que todos os alunos estejam com seus conhecimentos

prévios sobre acidentes na rua ativados, isto é, em sua “consciousness’.

(b) Antes de dar o texto a ser lido, o professor deve indicar o objetivo da leitura,

uma vez que objetivos e interesses que possuímos ao ler determinam a compreensão da

leitura.

Page 41: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

41

“Tradicionalmente, na escola, o aluno é levado a ler sem saber para que lê. Isto acarreta sérias consequências na formação do leitor. Assim, estabelecer objetivos na leitura leva o indivíduo a refletir e controlar conscientemente o conhecimento, (...) Quando o objetivo da leitura é claro e consciente para o leitor, ele exercitará estratégias de seleção de dados, de informações relevantes que o texto dispõe e que se relacionam com suas pretensões” (MEC, 1995, p. 15).

No exemplo dado acima, para a história de Chapeuzinho Vermelho, o objetivo

de leitura pode ser: produzir um cartaz, a ser exposto na escola, sobre os cuidados que

uma criança deve ter ao andar na rua.

(c) Quando se trabalha interpretação de texto, a leitura mais adequada é a

silenciosa porque

o olho é mais rápido que a voz e inibe estratégias de adivinhações do material periférico à visão, durante a leitura. Quando o aluno fala uma palavra que não está no texto, é porque o aluno está prestando atenção ao significado e não apenas à forma. É preciso permitir a leitura silenciosa, sob pena de inibir o desenvolvimento de estratégias adequadas de processamento do texto escrito (KLEIMAN, 1995: 36).

A leitura m voz alta pode também ser feita, quando se tratar de texto dramático,

diálogos ou poesia.

(d) A discussão do texto lido em grupos possibilita uma ampliação da

interpretação individual.

(e) Após a discussão em grupo, é feita a produção individual de texto, conforme

o objetivo dado. Ainda que a produção final seja coletiva, como no caso da confecção

de um cartaz, a produção individual deve anteceder a execução coletiva.

(f) Após produzir o texto, o aluno deverá lê-lo, com o objetivo de reescrever

trechos menos claros ou ambíguos. Deve-se evitar neste ponto que o aluno dê atenção

excessiva a questões de ortografia e gramaticais.

(g) Após a reescrita do texto, o aluno deve fazer a análise linguística, voltando-

se mais para a correção gramatical e ortográfica. Esse trabalho deve ser feito em grupo,

sob a orientação do professor.

Page 42: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

42

A proposta tradicional consiste em:

(a) Leitura do texto em voz alta pelo professor;

(b) Leitura do texto em voz alta por alguns alunos;

(c) Professor pede aos alunos que escrevam sobre o que entenderam do texto

lido.

As duas propostas foram aplicadas e turmas diferentes da mesma série do Ensino

Fundamental, em escolas públicas.

A qualidade dos textos produzidos pelos alunos foi analisada quanto aos

seguintes aspectos: coerência, coesão, compreensão do texto lido, criatividade e

constituição do sujeito.

A coerência é uma instância do texto, no plano conceitual, constituída na

interação entre autor e leitor. (MEC, 1995, p. 19). Os critérios de coerência são:

continuidade, progressão e articulação. A coerência “diz respeito à maneira como os

componentes do universo textual – conceitos e relações subjacentes ao texto de

superfície – se unem numa configuração, de modo acessível e relevante” (KOCH, 1992,

p. 85) Foi levado em conta apenas o uso de elementos anafóricos (pronomes, sinônimos

e elipses) em lugar da repetição de palavras.

A compreensão do texto lido foi avaliada a partir de citações adequadas ou referências feitas pelos alunos em sua produção textual.

A criatividade foi avaliada com base nos argumentos, exemplos, expressões e estratégias usadas pelos alunos na produção textual.

A constituição do sujeito diz respeito à maneira como o aluno se institui como

sujeito do seu texto. Essa operação discursiva está relacionada ao interlocutor, ao

objetivo e ao conteúdo de sua produção textual. Na prática escolar, o aluno costuma

restringir-se a simplesmente “agradar ao professor”, não se instituindo como sujeito do

seu texto.

A aplicação das propostas foi feita sempre nas escolas com a presença de cerca

de 70 professores, participantes das oficinas do Projeto Pró-Leitura. Isto cria uma

situação “estranha” para os alunos e prejudica a espontaneidade com que deve ser

Page 43: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

43

conduzida a aplicação. Tentou-se diminuir este efeito negativo, “explicando” aos alunos

que aqueles professores estavam ali fazendo uma determinada campanha nas escolas.

Em alguns casos, os alunos foram convocados à escola em dias e/ou horários

não habituais, para que fosse feito o experimento. Isto se constitui em um fator negativo

a mais, com reflexos nos resultados.

A primeira aplicação das duas propostas foi feita com duas turmas de quarta

série (5º ano) da escola pública “Brasília Baraúna”, em Itabuna:

Quadro 1: Qualidade dos textos produzidos por alunos da escola “Brasília Baraúna”, em Itabuna

Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada

Coerência 54% 100%

Coesão 83% 95%

Compreensão 70% 100%

Criatividade 91% 95%

Sujeito 100% 100%

Nessa escola, os professores participam do Projeto Pró-Leitura e já trabalham a

Proposta Integrada em sala de aula. Tal situação, ao que parece, interferiu nos resultados

do experimento porque a Proposta Tradicional foi aplicada a uma turma de alunos, cuja

professora trabalha em sala de aula, com a Proposta Integrada.

Outra aplicação das duas propostas foi feita em duas turmas da 5ª série

(atualmente 6º ano), na escola Paulo Américo, em Ilhéus.

Quadro 2: Qualidade dos textos produzidos por alunos da escola “Paulo Américo”, em Ilhéus

Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada

Coerência 77,4% 100%

Page 44: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

44

Coesão 61,2% 96,8%

Compreensão 58% 75%

Criatividade 32,2% 75%

Sujeito 22,5% 93,7%

Os dados acima mostram que a coesão e a coerência apresentam superioridade

significativa em favor da Proposta Integrada. A coesão, a criatividade e a instituição do

sujeito foram os aspectos mais afetados pelas duas propostas aplicadas.

Numa escola municipal de Uma, as propostas foram aplicadas em duas turmas

de 4ª série (5º ano).

Quadro 3: Qualidade dos textos produzidos por alunos de uma escola municipal em Uma

Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada

Coerência 61,5% 78%

Coesão 50% 86%

Compreensão 23,5% 65%

Criatividade 36% 67,5%

Sujeito 47% 67%

O quadro mostra que a coerência e a criatividade não foram significativamente

afetadas pelas diferenças metodológicas aplicadas. Entretanto, a coesão, a compreensão

e a instituição do sujeito apresentam superioridade significativa em favor da Proposta

Integrada.

As propostas foram aplicadas ainda em quatro turmas de 4ª série (5º ano) numa

escola municipal de Itabuna.

Page 45: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

45

Quadro 4: Qualidade dos textos produzidos por alunos de uma escola municipal, em Itabuna

Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada

Coerência 61, 5% 78%

Coesão 50% 86%

Compreensão 23,5% 65%

Criatividade 36% 67,5%

Sujeito 61,9% 100%

Os dados apontam uma qualidade superior para os textos produzidos, segundo a

Proposta Integrada.

Considerações finais

Podemos reunir os resultados acima num quadro único, com as médias

aritméticas das porcentagens encontradas:

Quadro 5: Média da qualidade dos textos produzidos

Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada

Coerência 70,8% 94,5%

Coesão 60,4% 94,4%

Compreensão 56,9% 83,7%

Criatividade 56,4% 74,3%

Sujeito 57,8% 90,1%

Os resultados até agora encontrados mostram uma qualidade superior nos textos

produzidos por alunos, trabalhados na Proposta Integrada. Essa qualidade é analisada

aqui quanto aos aspectos: coerência, coesão, compreensão do texto lido, criatividade e

instituição do sujeito.

Page 46: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

46

Os aspectos analisados parecem não ser ainda suficientes para demonstrar a

significativa diferença de qualidade esperada entre os textos produzidos, segundo as

duas propostas de ensino-aprendizagem. Ao mesmo tempo, estes aspectos podem ainda

ter sua análise refinada, através de uma conceituação mais precisa e de uma aferição

mais rigorosa.

Por outro lado, esse trabalho não é capaz de mostrar diferenças de qualidade em

leitura, interpretação, análise linguística, oralidade e outras, causadas pelas duas

propostas de ensino-aprendizagem.

De qualquer maneira, os resultados conseguidos até agora são significativos e

apontam, ainda que com certa precariedade, a maior eficácia da Proposta Integrada em

relação ao processo de ensino-aprendizagem tradicional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRITTO, Luis Percival Leme. A sombra do caos. Ensino de língua x tradição gramatical. Campinas, SP: ALB: Mercado de Letras, 1997. (Coleção Leituras no Brasil)

CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Análise do discurso no ensino do português. Mimeografado, 1998.

FULGÊNCIO, Lúcia e LIBERATO, Yara. Como facilitar a leitura. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 1996. (Coleção Repensando a Língua Portuguesa).

GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 2ª Ed. S. Paulo: Martins Fontes, 1993.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. 3ª Ed. Campinas, SP: Pontes; 1995.

KOCH, Ingedore G. “Dificuldades na Leitura/Produção de Textos: os Conectores Interfrásticos” In: CLEMENTE, Elvo e KIRST, H. B. (Orgs.) Linguística aplicada ao ensino de português. 2ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.

MEC (Kátia Lambra Bräkling, Rosaura A. Soligo, Telma Weisz). Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa. Versão preliminar, 1995.

MEC (Secretaria do Ensino Fundamental). Projeto Pró-Leitura. Mimeografado. 1995.

Page 47: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

47

(RE) PENSANDO O PAPEL DO LÚDICO À ALFABETIZAÇÃO

DE JOVENS E ADULTOS

Marilete Calegari Cardoso1

INTRODUÇÃO

Um dos grandes desafios da sociedade brasileira é ainda, sem dúvida, diminuir o

número de jovens e adultos analfabetos. Várias contribuições para reflexão neste

campo, que se centram nas concepções da escrita, são muito relevantes, uma vez que

trazem novas nuances e dimensões para questões importantes do cotidiano pedagógico,

como a psicogênese da alfabetização do adulto, dificuldades de aprendizagem, método e

materiais didáticos para utilizar na progressão do ensino, como escolher textos

adequados e o que ensinar primeiro.

Acreditamos no emprego do lúdico na concepção social da escrita no curso de

alfabetização de jovens e adultos. A concepção de escrita que se tem mostrado mais

produtiva na alfabetização de jovens e adultos é a que enfatiza a dimensão social, tanto

da aprendizagem de leitura e produção de textos, quanto dos usos dos materiais escritos.

Por dimensão social estamos entendendo o caráter não-individual, sendo assim, a

ludicidade contribui muito neste aspecto, pois os jogos em grupos envolvem a

linguagem oral/ escrita e corporal.

Entretanto, ainda existem muitas dúvidas sobre o lúdico, o brincar, que afetam

diretamente a atividade humana no trabalho, na vida diária na escola e principalmente

para alunos jovens e adultos. Questões como: O adulto precisa brincar? Será que o jogo

desenvolve aprendizagens significativas na alfabetização do adulto, como acontece com

as crianças? Como é possível alfabetizar o adulto brincando? É justamente nestas

indagações que vamos nos deter, para refletir sobre a importância do lúdico para a

alfabetização de adultos dentro da concepção histórica – cultural. 1 Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB; Mestre em Educação.

Page 48: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

48

A NECESSIDADE DO LÚDICO PARA O ADULTO

Segundo Freire (1996 p.41), uma das tarefas mais importantes da prática

educativo-crítica é proporcionar as condições em que os educandos em suas relações

uns com os outros, e todos com o professor ou professora ensaiam a experiência

profunda de assumir-se. Por conseguinte, na alfabetização de jovens e adultos somos

levados a refletir sobre quais são essas novas maneiras de participação, e o

envolvimento lúdico é, sem dúvida, uma prática educativa política, moral e

gnosiológica, por que faz com que o alfabetizando vivencie atividades corporais com

seu grupo, e posteriormente relate suas experiências. Como nas palavras de Winnicott

(1975):

São essas experiências que fornecem a continuidade da raça humana que transcende a existência pessoal. Parto da hipótese de que as experiências culturais estão em continuidade direta com a brincadeira: a brincadeira daqueles que ainda não ouviram falar em jogos. (Winnicott, 1975, p.139)

Neste sentido, a atividade central do lúdico é o jogo. É importante explicar que

foi utilizada a palavra jogo para referir-se ao "brincar", vocábulo predominante da

Língua Portuguesa quando se trata de atividade lúdica infantil. A palavra "jogo" se

origina do vocábulo latino ludus, que significa diversão, brincadeira. A palavra jogo se

utiliza para expressar o brincar.

Nesta direção, deve-se oportunizar que os adultos voltem a brincar criando um

clima de permissividade, criatividade e de interação. Contudo, o adulto que volta a jogar

(brincar) não se torna criança, como se costuma dizer, mas vivencia sensações de prazer

que desbloqueiam suas resistências, seus “fantasmas corporais”, que muitas vezes os

transformam em pessoas com bloqueios emocionais, levando-os a sentirem-se não

capazes de aprender, de se comunicarem e relacionar-se com os outros. Neste sentido,

suas expressões estão muito mais a serviço do inconsciente que do consciente.

Portanto, o adulto trabalha com suas memórias, resgatando e reelaborando suas histórias

e não com a imaginação, como a criança pequena, apesar de usar muita sua imaginação

no ato de brincar. Wygotsky (1998), aborda esta questão dizendo o seguinte:

Page 49: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

49

O brinquedo é muito mais que a lembrança de alguma coisa que realmente aconteceu do que imaginação. É mais memória em ação do que uma situação imaginária nova. (Wygotsky, 1998, p.135)

Na sua tese principal sobre o brincar, Winnicott afirma:

O lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial existente entre o individuo e o meio ambiente (originalmente, o objeto). O mesmo se pode dizer do brincar. A experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira. ...Para todo indivíduo, o uso desse espaço é determinado pelas experiências de vida que se efetuam nos estágios primitivos de sua existência. (1975. p.139)

Podemos refletir que, para os dois autores supracitados, a vivência com atividades

lúdicas proporciona aos alfabetizados o autoconhecimento, permitindo-os assumir-se

como sujeitos que pensam e falam de acordo com sua subjetividade, com direito de se

transcenderem no tempo, no espaço e nos desejos. A subjetividade é impossível de ser

ignorada, uma vez que cada um interpreta o mundo e cria uma fantasia única conforme

a incorporação daquilo que vivenciou, e isso transforma cada sujeito em um enigma a

ser decifrado. Segundo Freire (Ibid, 1996, p.41) o homem deve assumir-se como ser

social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador

de sonhos, capaz de ter raiva porque sabe amar.

As discussões e reflexões durante ou após as brincadeiras corporais, também

proporcionam ao aluno jovem e adulto uma formação pessoal, que lhe possibilita

compreender o homem inserido numa temporalidade histórica e cultural que o faz ser

inacabado e transcendente, portanto sujeito capaz de aprender. Deste modo, o educando

se abre para uma visão real das limitações de cada individuo frente às diferentes

situações culturais em que vive, adquirindo preparo para ter uma postura de escuta em

relação ao outro sujeito, melhorando assim sua compreensão e seu relacionamento com

este.

Page 50: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

50

ALFABETIZAÇÃO DE ADULTO COM LÚDICO TORNA AS APRENDIZAGENS

MAIS SIGNIFICATIVAS

Eu sabia muito bem que com um pau não se pode matar um pássaro, nem mesmo deflagrar qualquer tiro...Se a gente começasse a pensar desse modo, então não deveria mais andar a cavalo nas cadeiras. E, entretanto, o próprio Volódia haveria de recordar muito bem que durante os comprimidos serões de inverno nós cobríamos uma poltrona com xales e a transformávamos em carruagem. Uma fazia de cocheiro, o outro de lacaio, e as meninas ficavam no meio: as três cadeiras eram a tróica de cavalos, e nos púnhamos a caminho. E que aventuras nos aconteciam nessa viagem imaginária! E com que rapidez se passavam os longos e alegres serões de inverno! Se se enxerga tudo com os olhos da razão, já não é possível brincar. E se não se brinca, que nos resta, então?(Apud: Alonso, 2000, p.10).

A reflexão acima sobre a brincadeira é uma das passagens da obra de L. Tolstoi

(Wajskop 1997), cuja abordagem do ato de brincar nos revela o entendimento de que

existe uma visão de brinquedo para o mundo infantil e uma visão de brinquedo para o

mundo adulto. E qual seria a diferença destas duas concepções? Alonso (2000) descreve

com propriedade a questão:

...Se, por um lado, na concepção infantil os brinquedos aparecem por redução, no mundo adulto aparecem como uma conquista. O adulto aceita a redução a brinquedos de coisas que foram importantes para ele, afim de que elas não desapareçam quando o tempo passar. Essa redução surge nos brinquedos que já foram, em outros tempos, objetos sagrados, como as bonecas; instrumentos de guerra, como arco e a flecha, ou as máscaras que os atores de teatro usavam para representar. (p.10, grifo meu).

Resgatar as brincadeiras de infância através de projetos com os jovens e adultos

é levá-los para rever sua cultura, sua sociedade e seus conhecimentos, que foram

construídos através dos brinquedos quando criança. É um trabalho que promove

aprendizagens e competências que contribuem para a formação de sujeitos autônomos

com possibilidades de intervirem, de forma significativa, na construção de uma

sociedade cidadã.

Segundo Negrine (2000, p.21) a capacidade lúdica do adulto está diretamente

relacionada a sua pré-história de vida e é, antes de qualquer coisa, um estado de

espírito, relacionado à cultura do corpo. Escreve ele:

Page 51: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

51

A concepção de que o brincar está reservado às crianças nada mais é do que a perda da naturalidade humana, imposta pelo homem ao próprio homem, já que_ a história nos diz _ o adulto costumava dedicar muitas horas ao lazer (p.21).

Não podemos esquecer que somos, consequentemente, filhos e frutos de um

regime indigesto que utilizou a educação como processo de alienação corporal, artística

e intelectual de nós brasileiros, resultando neste caos aparentemente irreversível que

vemos hoje na escola. Portanto, certamente ainda encontramos hoje em dia pessoas que

privilegiam e defendem valores de força, de capacidade de trabalho, principalmente

como reflexo da forte influencia de uma sociedade altamente competitiva e seletiva. No

entanto, independente de qualquer idade, cada cidadão deve ter respeitado o seu espaço

de participação social, resgatando e construindo elementos culturais carregados de

significações para o mundo do trabalho.

De acordo com as ideias de Vygotsky (1998), para que um sujeito se desenvolva e

aprenda, ele deve estar constantemente realizando atividades que envolvam simbolismo

(imaginação), corpo–eu (relação social), comunicação (linguagem) e emoção. Para este

autor só aprendemos aquilo que vivenciamos e, só podemos ensinar o que nós já

aprendemos. Não tão distante das idéias de Freire (2003), quando nos diz:

É preciso insistir: este saber necessário ao professor_ que ensinar não é transferir conhecimento_ não apenas precisa de ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser _ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa de ser constantemente testemunhado, vivido.(Freire, 2003, p.47)

Segundo Rego (1995, p.106), as ideias de Vygotsky a respeito da qualidade do

trabalho pedagógico estão associadas à capacidade de promoção de avanços no

desenvolvimento do aluno.

Vygotsky afirma que o bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento, ou seja, que se dirige às funções psicológicas que estão em vias de se completarem. Essa dimensão prospectiva do desenvolvimento psicológico é de grande importância para a educação, pois permite a compreensão de processos de desenvolvimento que, embora presentes no indivíduo, necessitam da intervenção, da colaboração de parceiros mais experientes da cultura para se consolidarem e, como consequência, ajuda a definir o campo e as possibilidades da atuação pedagógica. (REGO, 1995, p.106)

Page 52: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

52

Dessa forma, o jogo é reconhecido como meio de fornecer ao adulto um ambiente

agradável, motivador, planejado e enriquecido, que possibilita a aprendizagem de várias

habilidades. Portanto, aprendizagem é o processo de modificação da conduta por

treinamento e experiência, variando da simples aquisição de hábitos à técnicas mais

complexas. Por desenvolvimento, a designação do ato de desenvolver, progredir,

crescimento paulatino.

Nesta perspectiva, consideramos incorreto conceber o brinquedo como uma

atividade sem propósito para educandos adultos. Nos jogos atléticos, pode-se ganhar ou

perder; numa corrida, pode-se chegar em primeiro, segundo ou último lugar. Em

resumo, o propósito decide o jogo e justifica a atividade. O propósito, como objetivo

final determina a atitude afetiva da criança ou adulto no brinquedo. Vygotsky (1998),

afirma que:

Sob o ponto de vista do desenvolvimento, a criação de uma situação imaginária pode ser considerada como um meio para desenvolver o pensamento abstrato. O desenvolvimento correspondente de regras conduz a ações, com base nas quais torna-se possível a divisão entre o trabalho e brinquedo, divisão esta encontrada na idade escolar como um fato fundamental....O brinquedo é para uma criança um jogo sério, assim como o é para um adolescente ou adulto, embora, é claro, num sentido diferente da palavra; para uma criança pequena, brinquedo sério significa que ela brinca sem separar a situação imaginária da situação real. Pra um adolescente ou adulto, o brinquedo torna-se uma forma de atividade limitada, predominantemente do tipo atlético, que preenche um papel específico em seu desenvolvimento, e que não tem o mesmo significado do brinquedo para uma criança em idade pré-escolar. ( p.136)

Outros grandes pesquisadores que, como Vygotsky, desenvolveram trabalhos na

área de Psicologia Genética e se interessaram pelo jogo, foram Piaget e Wallon. Piaget

(1976, p.160) diz que a atividade lúdica é o berço obrigatório das atividades intelectuais

da criança e do adolescente. Estas não são apenas uma forma de desafogo ou

entretenimento para gastar energia dos educandos, mas meios que contribuem e

enriquecem o desenvolvimento intelectual. E Henri Wallon, analisando o estudo dos

estágios propostos por Piaget, fez inúmeros comentários onde evidenciava o caráter

emocional em que os jogos se desenvolvem e seus aspectos relativos à socialização.

Referindo-se não só a faixa etária infantil, Wallon (1979) demonstra seu interesse pelas

relações sociais nos momentos de jogo:

Page 53: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

53

A pessoa está continuamente em processo... Processo significa afirmar que há um movimento contínuo de mudanças, de transformações desde o início da vida até seu término. E os resultados dessas mudanças podem ser observados externamente. Internamente, esse processo se caracteriza por um jogo de forças, de tensões entre os conjuntos motor, afetivo e cognitivo. (Mahoney, 2000, p. 16).

O educador alfabetizador de jovens e adultos assume um papel de significância

muito grande quando, no desenvolvimento de um processo pedagógico, busque alcançar

sucesso em seus objetivos, ou seja, que tenha capacidade de transmitir adequadamente

os conhecimentos produzidos, acumulados e valorizados socialmente, ao mesmo tempo

em que os sujeitos envolvidos nesse trabalho revisem, recriem, critiquem e criem novos

conhecimentos.

Para que isso aconteça é necessário propor atividades que oportunizem a estes

educandos, em seu desenvolvimento contínuo, vivenciar de forma lúdica sua

expressividade corporal, sua comunicação e imaginação, como um meio a mais que vai

completar seu entendimento.

COMO É POSSÍVEL ENSINAR O JOVEM E O ADULTO BRINCANDO?

O importante é compreender que o analfabeto adulto atual, ao qual nos dirigimos, vive numa sociedade letrada e por isso suas exigências culturais implícitas são as da linguagem alfabética, que é o seu meio. Basta, portanto, retirá-lo das condições inferiores de existência em que vive e fazê-lo compreender sua realidade para imediatamente incorpore o saber letrado como elemento natural da consciência crítica que começa a produzir para si. (Pinto, 2000, p.100)

Um dos problemas mais relevantes que o professor encontra na sala de aula nas

turmas de alfabetização de jovens e adultos é a baixa auto-estima, o sentimento muito

forte de incapacidade, haja vista que grande parte da culpa recai sobre o educador,

devido a fatores como a falta de formação específica, motivação, falta de recursos

pedagógicos e assim por diante. Entretanto, o papel do professor é de incentivador,

estimulador de uma reação que passa toda ela no íntimo da consciência do

alfabetizando.

Page 54: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

54

Então, como é possível ensinar o jovem e o adulto numa classe de alfabetização

empregando o jogo? O trabalho a que nos propusemos surge, de uma experiência de

projeto de formação pessoal a um grupo de alguns jovens e adultos não alfabetizados e

outros que foram alfabetizados funcionalmente, ou seja, não conseguiam reconhecer a

função da leitura e escrita como meio social.

O projeto de formação pessoal foi desenvolvido na Escola Municipal Mariana de

Andrade, localizada na cidade de Ibirataia, estado da Bahia, no ano de 2000. O referido

projeto tinha como objetivo oportunizar ao educando vivenciar de forma lúdica sua

expressividade corporal, como um meio a mais que vai auxiliar sua formação,

possibilitando a este aluno a conscientização das limitações, habilidades e facilidades

que cada indivíduo apresenta na relação consigo mesmo, e com as demais pessoas que o

cercam. Eram organizados semanalmente jogos que trabalhavam a relação interpessoal,

intrapessoal, linguagem oral e escrita, matemática, fatos históricos e geográficos da

cidade e do estado, sempre que possível utilizando a expressão corporal. O trabalho foi

desenvolvido durante um semestre.

Após a realização da atividade, era realizado um debate a respeito dos seus

sentimentos e do significado do jogo (se gostaram, do que não gostaram, se foi bom, o

que mais gostaram, o que não repetiriam, enfim, o que realmente vinha de espontâneo

do aluno). Neste sentido, sustentamos a ideia de debater com o aluno alfabetizando, com

base no pensamento de Freire (2002), que eles nos fala o seguinte:

A conclusão dos debates gira em torno da dimensão da cultura como aquisição sistemática da experiência humana. E que esta aquisição, numa cultura letrada, já não se faz via oral apenas, como nas iletradas, a que falta a sinalização gráfica. Daí passa-se ao debate da democratização da cultura, com que se abrem as perspectiva para o início da alfabetização... todo este debate é altamente criticizador e motivador. O analfabeto apreende criticamente a necessidade de aprender a ler e a escrever. Prepara-se para ser o agente deste aprendizado. ( p.119)

Portanto, o debate é a matriz que atribui sentido de uma prática educativa

dialógica e somente através desta é, que podemos alcançar com efetividade e eficácia a

participação livre e crítica dos educando.

Page 55: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

55

Como culminância do jogo era feito, coletivamente, um relatório das atividades

desenvolvidas, bem como dos depoimentos, críticas e sugestões de novos jogos. Por

melhor que seja a comunicação escrita, é necessário vivenciar uma prática corporal para

que se possa dimensionar seu valor pedagógico. Portanto, a liberdade está dentro do

corpo do ser e não é diferente com o professor. Deixá-lo perceber, dar condição para tal,

é acreditar na transformação e principalmente na construção do novo perfil deste

Educador!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Promover a capacitação de professores para atuarem na Educação de Jovens e

Adultos, com base em uma metodologia diferenciada que atenda as especificidades

destes estudantes, comprometidos tanto com a teoria, quanto com a prática dessa

modalidade de oferta regular de ensino é o que muitas universidades estão fazendo para

melhorar a qualidade de vida destes educandos. Disciplinas como: A Ludicidade como

articuladora das metodologias de ensino, o Lúdico na educação de jovens e adultos, são

oferecidas por cursos de graduação ou Pós–graduação em diferentes áreas do

conhecimento.

Mostrar aos professores a importância que as atividades lúdicas possuem no

desenvolvimento educacional do aluno, assim como as atividades recreativas

transformam-se em excelente instrumento facilitador do ensino e da aprendizagem.

Estudar temas como a importância e o valor da recreação, jogos recreativos,

cooperativos e esportivos e também jogos cooperativos como exercício de convivência,

levaria os educandos a obterem uma melhor disponibilidade corpórea, a partir de

vivências culturais múltiplas, que vão possibilitar a conscientização das limitações,

habilidades e facilidades que cada indivíduo apresenta na relação consigo mesmo, com

os demais e com os objetos.

Page 56: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

56

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.

São Paulo: Paz e Terra, 1996.

_____________. Educação como prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

2000.

NEGRINE, Airton. Aprendizagem e desenvolvimento infantil: perspectivas

psicopedagógicas, vol.2. Porto Alegre – PRODIL,1994.

______________. Aprendizagem e desenvolvimento infantil: Simbolismo e jogo 2.

Porto Alegre – PRODIL, 1994.

_____________. Aprendizagem e desenvolvimento infantil: psicomotricidade

alternativa pedagógica. Porto Alegre: Edita, 1995.

PIAGET, Jean. Psicologia e Pedagogia. Trad. Por Dirceu Accioly Lindoso e Rosa

Maria Ribeiro da Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.,,

PINTO, Álvaro Vieira. Sete Lições Sobre Educação de Adultos. São Paulo: Cortez,

2000.

__________________. O lúdico no Contexto da Vida Humana: da primeira

infância À terceira idade. In. SANTOS, Santa Marli Pires (org).Brinquedoteca: A

criança, o Adulto e o Lúdico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p.15-24.

REGO, Teresa Cristina. VYGOTSKY: uma perspectiva histórico-cultural da

educação. Petrópolis-RJ: Vozes, 1995.

SANTOS, Santa Marli Pires dos. Brinquedoteca: o lúdico em diferentes contextos.

(org). Petrópolis, R.J.: Vozes, 1999.

___________________________. Brinquedoteca: A criança, o Adulto e o Lúdico.

(org). Petrópolis, R.J: Vozes, 2003.

WALLON, Henri. Psicologia e Educação da criança. Lisboa: Vega/Universidade,

1979.

Page 57: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

57

WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Zahar,1979.

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. 4 ed.São Paulo: Martins Fontes,

1991.

Page 58: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

58

LEITURA &

CULTURA

Page 59: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

59

Embora uma provocação com os Ecossistemas: O Que É Cultura?

Maria das Graças de Santana Rodrigué1

Sabe, que depois de meio século vivido, aprendi que a palavra embora é uma

aglutinação de em boa hora? Uma provocação, também é encontrar uma boa hora para

falar com você que, nesse ínterim secular, um dia escutei alguém dizer que, quem não

tem projeto de vida não se encontra em condições de elaborar um projeto, por mais

simples que ele seja, muito menos um projeto profissional. Essa provocação de

encontrar uma boa hora para falar sobre isto também significa encontrar uma boa causa

para escrever sobre um evento interdisciplinar de leitura cunhada pelo diálogo, quando a

Universidade reuniu professores, disciplinas, estudantes e sociedade, todos em torno de

um mesmo tema: a Cultura.

A origem deste artigo, portanto se pauta em um interrogante que perpassa a

realização do Projeto de Extensão intitulado: Seminário 2002.1. O Que É Cultura? Em

setembro do ano de 2002, vinte e cinco Professores da UESB estiveram pensando alto,

respondendo a questão acima, junto à sociedade a qual está inserida. Em primeira

instancia transparece simples, O Que É Cultura?

Portanto este texto, retrato cultural do evento, está constituído por uma mostra

sobre o desenvolvimento e execução desse Projeto Interdepartamental de Estudos

Antropológicos. Esta contribuição tem a intenção de se fazer ao aprender, a registrar,

valorizar o fazer história e não especificamente pensando em ensinar.

Ao pensar sobre a categoria antropológica, Vagner da Silva afirma que a

Antropologia estabeleceu sua identidade como ciência, entre outras coisas, através de

sua abordagem metodológica, na qual a ´observação participante´ tornou-se elemento

central.2 Mediante fato a Antropologia Cultural preserva sua unidade conquistada, mas

reconhece sua condição de disciplina e assume a necessidade de estender-se em um

círculo constituído da colaboração de outras áreas do saber. Nesta linha de pensamento 1 Doutora em Ciências da Religião pela PUC/São Paulo; Professora aposentada da Universidade Estadual do

Sudoeste da Bahia- UESB. 2 Silva, Vagner Gonçalves. Antropologia e Seus Espelhos. Seminário Temático. FFL-USP. São Paulo 1994.

Page 60: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

60

interdisciplinar abre-se em diálogo com outras disciplinas e em busca da produção de

conhecimento e da socialização do mesmo, de dentro para fora da sala de aula, e se

pergunta em público: O Que É Cultura? Graciela Chamourro estudiosa da palavra

guarani, nos recorda que existe uma condição de fundamental importância para que um

diálogo se estabeleça:

Precisa haver dois aprendizes que se reconhecem em condições iguais (estar no mesmo degrau), que querem levar-se a sério e aprender um com o outro. Sem esta condição e esta disposição só haverá um monólogo de um ensinador que prega, para os que estão embaixo, seu saber superior. 1

A convite da Antropologia, o DCHL abre sua Sala Cerimonial AD PLENAM

VITAM, em nome do Tempo, para esse diálogo entre as várias disciplinas em torno de

possíveis visões de mundo, concomitantemente visões de cultura: a Ecologia, a História,

a Geografia, a Sociologia, a Matemática, a Literatura, a Linguística, a Leitura, a

Biologia; acompanhadas da Metodologia da Pesquisa compareceram no auditório do

Centro de Cultura Antonio Carlos Magalhães da cidade de Jequié, entraram em cena e

brilhantemente encontraram respostas. Até a Física esteve presente. Um dia depois da

Física, a Matemática apresentou-se com sua nova faceta, vestida de etnomatemática e

esta foi apresentada ao público pela Saúde que com garbo declarou:

Realmente é muito gratificante discutir a questão da cultura e da matemática. Como falar de 200 gr. de açúcar, de 100 gr de sal, meio copo de leite, 1 k de carne, meio copo de cachaça, um copo de cerveja e por aí. Então presentes esses números, essa matemática que está no nosso dia a dia e que fazem parte da nossa cultura. Acho fundamental tentar desmitificar essa coisa que muitas pessoas ainda têm a ideia de que quando se fala em cultura é pra se falar de eventos culturais, ou em programações culturais ou em TV ou em rádio, ou em cultura de estudos. A cultura está na nossa vida cotidiana, e é por isso que desde que fui convidado a falar neste seminário fiquei bastante feliz. Que bom que tem gente preocupada de entender a cultura não no sentido lá longe, mas no sentido do nosso dia a dia.

... ouvindo por querer ouvir, e querer ouvir para querer ser alguma coisa mais, nessa perspectiva vou chamar o professor Edson, professor aqui dessa Universidade, particularmente amigo também, e que nos vai falar sobre essa questão da matemática e da cultura.2 E a etnomatemática em algum momento falou: Hoje o ensino caminha para um novo projeto educacional e as pesquisas apontam para trazer a matemática para a vida, para fora dos livros e é preciso que a matemática da escola esteja em sintonia com a matemática da vida.3

1 CHAMORRO, Graciela. A Espiritualidade Guarani: Uma Teologia Ameríndia da Palavra. Editora Sinodal: São

Leopoldo, RS. 2 José Maximiliano Henríquez Sandoval, Pós-Doutor em Comunicação na Saúde, Professor do

Departamento de Saúde, UESB, Jequié. Palestrante do Tema: Saúde e Cultura. 3 Edson Cardoso dos Reis, Professor Especialista de Matemática, DQE, UESB, Jequié. Palestrante do Tema:

Matemática e Cultura.

Page 61: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

61

No turno seguinte, o DS nos envia a Saúde que chega cantando e logo de entrada

explicita sua deferência à cultura, considera o título original, a Saúde e a Cultura,

porém anuncia o novo título em defesa da sua fala por ser uma sábia na área de

comunicação: A CULTURA COMO BASE DE SUSTENTAÇÃO E RITUALIZAÇÃO DO

CUIDADO DA SAÚDE.

Saúde é um conceito bastante complexo e diferente como forma de entendê-la, entretanto só tem a ver com a cultura. A cultura da vida é o que sustenta e o que ritualiza, desmitifica, modifica e reveste toda esta forma de cuidarmos da nossa saúde.1

Considerando-se, segundo Vagner Silva, autor de A Magia do Antropólogo, que

as culturas só se encontram através dos encontros dos homens. Ouve-se alto e em bom

tom a voz de quem apresenta a saúde falar: É fundamental para a gente pensar na questão da cultura e pensar na questão da saúde ou seja de cuidar da vida ou de que maneira a gente está cuidando da vida. Quando falo de cuidar da vida não falo apenas de cuidar da vida na perspectiva biológica nossa do ser humano de pessoa, mais sim de cuidar da vida da nossa sociedade, do nosso grupo, do meio ambiente, do ambiente que está em torno uma vida integral. Daí que você pode perguntar: Mas o que é vida?

Para começar a refletir em torno dessa questão polarizada entre a saúde e a

cultura, ela mesma, a saúde toda cheia de mistérios, trouxe uma mensagem constituída

de fôlego, embutida na respiração social. Podemos subentendê-la quando ela, a Saúde

cantou em ritmo de samba: ...viver é não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e

cantar na beleza de viver em uma terra feliz...

A Cultura Brasileira, disciplina com um ar de Vitória, Vitória da Conquista,

preparada com Maestria2 de quem a defendeu pelo DFCH. Unido ao DCHL fizeram

dessa manhã um deleite de autoconhecimentos. A Linguística, essa dama antiga, ciência

que estuda as línguas humanas se esmerou com sua causa advogada pelo Colegiado de

Letras do Campus de Jequié. Foi um presente experienciar as falas em condição

1 José Maximiliano Henríquez Sandoval, texto transcrito de gravações realizadas durante o evento. 2 Marília Seixas de Oliveira Flores, Mestre em Desenvolvimento Sustentável, Professora de Cultura

Brasileira do DFCH, UESB, Vitória da Conquista.

Page 62: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

62

laboratorial. A plateia participativa respirava aliviada por compreender os meandros da

língua portuguesa falada no Brasil, a sutileza dos estudos da fala... Também a beleza de

se saber apreciar a linguagem no contexto das culturas. E saber até que para se tornar

um bom leitor começa pelo ato de se autodescobrir1.

Durante o Seminário 2002.1 cada professor (a) com autoridade própria

propiciada pela disciplina ministrada esteve falando com quase quatrocentas pessoas

inscritas no evento, dentre estudantes de várias cidades de nossa região, os profissionais

de áreas e lugares diversos. A participação da Leitura está gravada em vídeo. Virou

documento do setor de Áudio Visual do Campus de Jequié.

Imagine você, a riqueza de aprendizado que foi escutá-los. Dos vinte e oito

professores convidados a repensar a cultura no palco do Centro de Cultura A.C.

Magalhães, vinte e cinco deles estiveram presentes e dialogaram com as cidades

representadas por sua gente carregada de valores das suas culturas. Será que você

conhece algum desses professores?

O campus de Itapetinga trouxe o cardápio brasileiro apresentado pelo

Departamento de Tecnologia Rural Animal, DTRA, através da área de Engenharia de

Alimentos, compareceu em alto estilo, com roupa de festa e bagagem própria para viajar

o país inteiro. Juntos embelezados pelas imagens passeamos com a gastronomia por

cada uma das regiões do Brasil.

A variedade de quadros importantes, ou seja, uma variedade de vegetação e consequentemente com esta variedade de vegetação uma variedade de alimentos típicos de uma determinada região e outros não se encontram tendo que estar importando de uma região para outra para podermos estar consumindo aquele determinado tipo de alimento.

As diferenças culturais se misturaram; as ervas, as frutas tropicais e os produtos regionais que nós temos me levou a quê? Ao cardápio cultural brasileiro que no decorrer iremos abordar para entender as diferenças que existem nas diferentes regiões.2

Obviamente pesquisando em qualquer enciclopédia ou dicionário (seja ele de

língua, etimológico ou de filosofia, ou mesmo via Internet, e. g.) teríamos verbetes a

altura de uma compreensão redonda sobre o termo Cultura. Aqui uma estudiosa do

1 Maria Afonsina Ferreira Matos, Doutora em Letras, Professora do DCHL, Coordenadora do Projeto de

Pesquisa e Extensão Estação da Leitura. UESB, Jequié. 2 Sibelli Passine Barbosa ferrão, Professora Ms. Coordenadora do DTRA, UESB, Itapetinga. Palestrante do

Tema: Alimentação e Cultura.

Page 63: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

63

assunto, Maristela G. André nos favorece com sua contribuição: Cultura é a infinita

capacidade humana de criar e inventar diversos modos e jeitos de viver em sociedade

que nos possibilita identificar como cultural o que, no primeiro momento, parecer

natural.

Porém a nossa intenção com esta pergunta tão direta, expressa parte do

compromisso de abordar atualizações com os alunos e refletir com a sociedade os vários

estudos, desmitificando a cultura em forma de Seminário. O Que É Cultura? Espelha

também outras questões que vão além de uma leitura imediata, questões essas que

envolvem uma atenção especial ao ato de escutar quem estudou, cada professor que

exerce com a competência o ministério pedagógico da disciplina incrustada na sua

atuação.

No meio intelectual escuta-se falar que existem mais de 160 definições do termo

cultura, ainda assim, agora menos que há três anos atrás, em nosso meio acadêmico, as

concepções de cultura aparecem descomprometidamente usadas com uma visão muito

reduzida; aplicam-se quase que exclusivamente a manifestações culturais, quando não

ao cumulativo de conhecimento adquirido, como alguém culto. Não só nós, mas a

novidade é que ainda hoje não chegamos a um consenso sobre o significado exato do

termo.

Compreendemos que o conceito antropológico de cultura (que embasa os

universos de modos de ser) é constituído como parte essencial da construção de visão de

mundo, sentido de vida, estado de consciência tão necessária para uma sociedade em

vias de desenvolvimento. Nesse contexto inevitavelmente temos que continuar os

estudos sobre as razões que determinam que o Brasil seja um país de perfil matizado por

sombras e luzes de tesouros culturais. Suas matrizes culturais, quiçá. Até porque

vivemos em um país culturalmente complexo constituído na sua origem por três grandes

matrizes: Indo-luso-africana.

A aceitação e o reconhecimento das diferenças culturais presentes no País transformam-se em marco fundamental desse processo construtivo. Mas não basta afirmar as diferenças. É preciso dizer o que as constitui para que a construção sempre dinâmica de nossa identidade se faça com os pés no chão. 1

1 BRITO, Ênio José da Costa. Anima Brasilis. . Identidade cultural e experiência religiosa. São Paulo: Olho

D’Água, 2000, p. 89.

Page 64: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

64

Para continuar a responder. Em meio às reflexões, chegou a hora de relembrar

algumas falas documentais, obviamente não como verdades únicas mas como preciosas

contribuições processadoras do nosso estudo. Em outras palavras, a experiência desse

diálogo foi um marco de produção de conhecimento constituído pela Universidade, uma

UESB mais engajada no processo artístico-cultural da sua sociedade1. No Centro de

Cultura a Geociências explicitou uma antiga caminhada que atualmente toma a forma de

projeto de pesquisa e extensão que no ensino faz história engajada na cultura do fazer

ciência.

A ciência está no trilho, o Projeto A Ciência na Trilha é uma proposta de levarmos estudantes das escolas de Jequié ao ambiente fazendo um levantamento da geologia, da paleontologia, da geomorfologia e através do conhecimento da realidade do ambiente de Jequié se consiga a preservação dos ecossistemas locais, onde os estudantes serão multiplicadores e assim teremos melhores condições de lutar pela preservação do meio ambiente. 2

Com a intervenção da Literatura Brasileira perpassamos entre visões didáticas

que nos levaram do laboratório de Ruy a poesia de Brecht. Bem dita seja a cultura.

Me falta a experiência de Ruy, Cecília e Guadalupe, pois bem, fico pensando que nós fazemos o tempo todo um pouco de arte como já dizia Brecht ‘eu comparo a arte com um pouco de Sol, dizem que o Sol é um pouco de fé, por mais que você não veja, não sinta o calor do Sol, ele sempre esta brilhando’ e assim que se faz arte quando o Departamento de Ciências Humanas e Letras decide colocar o coral de vozes da UESB e faz arte quando consegue colocar as quintas culturais coordenado por professor do Departamento de Letras e quando consegue realizar este evento proposto pela professora Rodrigué. Hoje nós tivemos a Prof. Dra. Maria Afonsina Ferreira Matos e quero lembrar que no dia 24, as 14:00 h o núcleo de arte da área de estudos literários estará aqui dialogando com vocês, espero incitar os meus alunos a fazer arte da melhor maneira possível, mais viável, fazendo e efetuando a própria arte que pode estar quieta mas não irrequieta. 3

Não nos restam dúvidas quanto à arte. Mas duvidando como é de se esperar no

mundo da ciência, fruto da epistemologia, lugar da dúvida dinâmica; sem certezas, mas

com evidencias em relação à Alimentação e Cultura. Escutai vós:

1 Jorge Barros, Professor Especialista do Departamento de Química UESB\ Jequié. Palestrante do tema

História da Arte na UESB e Cultura. 2 Ruy Macedo, Professor Esp.de Geociências do DQE, UESB\ Jequié. Convidado à Mesa de Apresentação

do Projeto do Museu de História Natural.

3 Anísio Assis Filho, Professor Especialista da disciplina Literatura Brasileira, DCHL,UESB/ Jequié.

Page 65: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

65

Existem hoje mudanças culturais muito fortes que estão fazendo transgredir os hábitos alimentares da população em função de uma mudança cultural que o povo de uma forma geral vem sofrendo ao longo dos anos. A primeira delas, a entrada da mulher no mercado de trabalho. Quando eu falo digo das estudantes que aqui estão, que irão entrar no mercado de trabalho têm que sair de casa para virem a faculdade. Ao sair o que acontece é que você larga o marido, os filhos, o cachorro, o papagaio para poder buscar algo na vida.

E sem que percebêssemos, uma mudança no cenário. No centro do palco a

memória do campus de Jequié, o DCB e o DQE e, com arte o Professor Jorge Barros já

no meio da conversa relata a História:

Mesmo porque para que não sabe, o ensino superior em Jequié faz 25 anos. Aqui o primeiro professor que deu aula em um curso foi o professor Ruy Macedo. Tenho uma foto sua, professor, e faço questão de colocar essa foto no mural. Retrata a primeira aula no curso de Ciências em agosto de 1977. No inicio da criação da UESB, ela participava de desfiles cívicos e porque se afastou, porque sabemos mais que as pessoas simples? Ledo engano.

É possível visualizar que o assunto essa noite se configurava entre a História da

Arte na UESB e o Projeto do Museu de Historia Natural. Professor Ruy Macedo sugere

que este se chame Museu Dinâmico de História Natural, e segue desenvolvendo seu

argumento:

Quando se fala em museu se imagina um espaço onde não tem movimento, onde não há ação, que é apenas um espaço de mostrar aquilo que já ocorreu e que está perpetuado. Com relação à parte da Geologia, a maioria das pessoas não sabe que já foi encontrado fóssil na região de Jequié, que está em fase de classificação e que será levado para o museu, pois muitos que aqui nascem e morrem na região de Jequié não tem conhecimento sobre a história da formação do espaço geográfico que é a região de Jequié, que não sabem que a formação geológica chamada Complexo de Jequié é conhecida no meio científico, como a região das mais antigas da terra que se formou a mais ou menos 4,5 bilhões de anos e que o Complexo de Jequié é muito importante e conhecido no mundo inteiro é formado principalmente de granito e rochas metamórficas. 1

Antigamente não existia Biólogo, afirma a Professora Guadalupe, existia naturalista, o curso era de ciências naturais, depois de historia natural e hoje biólogos, isso demonstra como o conhecimento foi crescendo a tal ponto de não podermos deixar às atribuições dos naturalistas toda responsabilidade que os biólogos têm com a história natural. Isso nos permite fazer o testemunho da natureza através da sua história, sendo fomentado através do museu, proposta apresentada pela Dr.ª Maria Cecília.

1 Ruy Macedo, Professor Especialista de Geociências do DQE, Membro titular do Comitê de Extensão da

PROEX, UESB/ Jequié.

Page 66: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

66

O biólogo hoje deixou de ser naturalista, porque a sua área de estudo ampliou muito. No passado o naturalista atendia a Paleontologia, a Geologia, a Botânica, a Genética. A área nos permitia até a formação de geólogos, que eram naturalistas e hoje, o botânico é botânico, o zoólogo é zoólogo, geneticista é geneticista... E ainda surgiram outros como o microbiologista... Na década de 50 para cá, esse conhecimento se multiplicou, a genética não existia, muitos professores não estudaram DNA, a genética com seus estudos avançados está dando passos aceleradíssimos em termos de conhecimento, então o Museu de Historia Natural contribuirá para o registro e divulgação, para mostrar e informar a sociedade todos os fatos históricos que avançam nas ciências naturais.1

Museu na verdade é um local de resgate. 2 O povo pode ter acesso a conhecer a cultura, a biodiversidade, os regionalismos, a história local através de suas coleções. Ao exibir espécimes, exemplares de organismos variados, onde se estudam através das coleções o habitat, a diversidade, o comportamento, o tamanho das populações, além de coleções didáticas que serão levadas em sala de aula para os alunos pesquisarem sua importância em estudos paleontológicos, da geologia através das rochas, e artefatos que viabilizam o aprofundamento das raízes de qualquer área, da antropologia, das ciências, da cultura. Objetiva-se atrair a sensibilidade da comunidade para o porquê preservar o ambiente natural.

Nós que vivemos aqui na região da caatinga observamos os animais que vivem na caatinga, qual o ambiente que caracteriza a caatinga, o que caracteriza esse ecossistema. Muita gente acha que é um ecossistema pobre, que deve ser queimado e transformado em pasto; a caatinga é um ecossistema valorizadíssimo que está se extinguindo por desinformação. Eu não sou contra áreas de pasto; o que deve existir é um desenvolvimento sustentável, se a gente refletir, vamos chegar à preservação de áreas que não foram devastadas, preservar as espécies, conservar com áreas utilizadas pelo homem.

O Brasil tem uma grande biodiversidade; a biodiversidade da nossa mata, dos nossos ecossistemas é muito grande. Não temos uma tradição de cuidar e preservar. Fora do Brasil se trabalha muito seriamente o material de ecossistemas locais do mundo todo. Então eles reconhecem o valor cultural e cientifico. 3

No mundo da fala a rigor eu compactuo com o outro, e através de códigos para o outro ou a outra me entenderem, porque se eu falar na minha linguagem própria, só minha ou da minha comunidade apenas, ninguém entende.

Em meio a lapsos e sustos de silêncio no auditório, as palmas; podemos considerar

que se encerrou a ocasião, o diálogo continua em pauta, elucidado com a proposta do

Profº. Drº. Manoel Sarmento é hora de dicionarizar o termo cultura.

1 Guadalupe, Professora Ms. Pesquisadora, na época Diretora do Departamento de Ciências Biológicas,

UESB/ Jequié. Profª. Convidado à Mesa Projeto do Museu de História Natural. 2 Maria Cecília Guerrazzi, Professora Drª. Pesquisadora do DCB, Coordenadora do Projeto do Museu de História Natural. UESB, Jequié. 3 Maria Cecília Professora Doutora do Departamento de Ciências Biológicas, UESB/ Jequié. Profª.

Convidada à Mesa e Coordenadora do Projeto do Museu de História Natural.

Page 67: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

67

LEITURA &

FILOSOFIA

Page 68: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

68

O AMOR NA MITOLOGIA:

UMA LEITURA ARCAICA DO MITO GREGO

POETICAMENTE ACOLHIDO1

Dante Augusto Galeffi 2

NOTA PRELIMINAR – O CONTEXTO DA LEITURA

Em primeiro lugar, agradeço o convite para participar desta mesa-redonda que

fará Leituras do Amor, cabendo-me tratar de O Amor na Mitologia. Espero,

sinceramente, não decepcioná-los com o que vou apresentar, porque, de forma decidida,

fiz voto de pobreza em relação ao conhecimento mitológico acumulado secularmente.

Assim, o fio condutor de minha fala é o despojamento radical de toda e qualquer

assertiva acerca do mito do amor, para com isso alcançar uma proximidade

hermenêutica com a fonte arcaica do mito em sua germinalidade primordial e não ainda

antropomórfica. Neste sentido, irei me ater exclusivamente à gênese arcaica do mito

grego do Amor, o que não invalida outras possibilidades de Leituras do Amor. É,

portanto, a partir de um perspectivismo radical que enveredo por este caminho de leitura

do mito do Amor, procurando com isto um modo de acesso, que permita admirá-lo em

sua nascente arcaica e poeticamente disposta.

E porque fiz voto de pobreza, não farei aqui o papel do mitológico erudito e

especialista no assunto. Pelo contrário, o meu interesse é essencialmente hermenêutico,

porque o que quero investigar não são as variações históricas do mito, a partir da

literatura consagrada, e sim sua força motriz originante, segundo as fontes históricas

rigorosamente trabalhadas. Neste sentido, uso de apenas duas fontes bibliográficas, que

são Kerényi (1998) e Brandão (1992), Karl Kerényi e Junito de Sousa Brandão.

Decididamente, não é o meu intuito fazer uma exposição exaustiva do tema e nem

muito menos demonstrar conhecimentos artesanais sobre as sagas mitológicas. O meu

intuito é realizar uma leitura arcaica do Mito do Amor, a partir do viés de Karl Kerényi,

1 Texto elaborado por ocasião da participação na mesa-redonda Leitura do Amor, realizada em 1º de agosto

de 2002, na UESB, Jequié/Ba, promovido pelo Curso de Especialização em Comunicação e Semiótica. O tema sugerido foi: O Amor na Mitologia.

2 Professor adjunto da UFBA – FACED; coordenador da Linha de Pesquisa Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA (mestrado e doutorado).

Page 69: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

69

tendo com horizonte tensivo o retorno radical às imagens primordiais recolhidas de três

fontes gregas, a dos poetas Homero, Orfeu e Hesíodo. É pela proximidade com a

perspectiva de Kerényi que pretendo, agora, ir direto ao assunto, recorrendo a Junito

Brandão quando se fizer necessário esclarecer a etimologia de algum nome relativo ao

deus do Amor, o deus Eros. A inspiração tirada da leitura de Kerényi, entretanto, é para

mim apenas pré-texto na construção/invenção deste texto que realiza uma leitura do

mito grego do amor, na perspectiva da sua origem poética e de sua vigência arcaica – no

sentido do arché, isto é, do que se encontra lançado na origem e no princípio, e,

enquanto lançado, vigora no tempo de sua permanência. Neste sentido, seguimos o

caminho de uma redução psicológica do mito do amor às suas imagens primordiais,

tiradas dos textos dos poetas evocados, através do texto de Kerényi, Os Deuses Gregos.

Com isto, acredito poder levar a sério uma advertência que este faz aos possíveis

leitores de seu livro. Ele diz que o mesmo foi escrito para adultos, e acrescenta:

...vale dizer, não apenas para especialistas empenhados em estudos clássicos, da história da religião ou da etimologia; menos ainda crianças, para as quais, no passado, os mitos clássicos eram remodelados ou, pelo menos, cuidadosamente escolhidos de modo que se ajustassem aos pontos de vista da educação tradicional; mas simplesmente para adultos cujo interesse principal – que pode implicar interesse por qualquer um dos ramos do saber supramencionados – reside no estudo dos seres humanos. (1998, p. 15)

Gostaria, assim, de poder falar para adultos, isto é, poder falar para aqueles que

tomam a mitologia como fonte de estudo dos seres humanos, na perspectiva de um

possível diálogo pensante, que tem por fim o êxito simples e despretensioso de um fazer

poético protegido nos limites do seu próprio jogo imagético. Nisto, estou na

consonância de Kerényi (1998, p. 16)

Se todo legado mitológico dos gregos for libertado da psicologia superficial de apresentações anteriores e revelado, em seu contexto original, como material sui generis, e tiver suas próprias leis, essa mitologia, como resultado inevitável, terá o mesmo efeito da psicologia mais direta – o efeito, em realidade, de uma atividade da psique exteriorizada em imagens.

De certo modo, encontro-me em um caminho de retorno radical à coisa mesma

do mito, isto é, pratico uma atitude fenomenológica diante da imagética do mito, através

da vivência de uma atividade especial e criativa, uma atividade eminentemente poética

da própria psique humana em suas possibilidades fabuladoras de caráter coletivo e

Page 70: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

70

individual. Isto para dizer, a mitologia vive de imagens e sua fruição é necessariamente

uma experiência imagética provinda de uma região superindividual, por assim dizer,

uma região objetivamente transpessoal. As imagens, assim, são o corpo fenomenal da

vivência mitológica, o que as torna objetivas naquilo que configuram como arquétipos

coletivos capazes de ressoar na ambiência de um instrumento humano singular e

sensível, gerando efeitos imprevisíveis em suas flutuações monótonas e surpreendentes.

Entretanto, uma tal objetividade da vivência mítica em nada se compara com a

objetividade da racionalidade humana instrumental. Pelo contrário, ela nada tem a ver

com a objetividade da razão metafísica moderna, pois sua objetividade diz respeito à

vivência do que se experiência distintamente na condição humana singular, o que,

portanto, é sempre uma manifestação de entusiasmo e de comoção estética genuína.

A objetividade do mito pertence ao mundo do extra-ordinário. Neste seu modo

peculiar de ser, ele é emotivo, vocativo, comotivo e evocativo ao mesmo tempo.

Portanto, o mito só faz sentido para quem acredita nele. Aí está a sua diferença e a sua

originária força: o mito é a narrativa das origens; ele é por natureza originante. O ser

objetivo do mito é sua pujança imaginífica: o não-lugar do ser em seu fluir permanente.

O mito antecipa o acontecimento dos seres no seu aparecer e mostrar-se imaginante.

Mas ele também vela o ser de sua dispersão propagante na imageabilidade especular

dos sentidos: a multiplicidade oculta o sentido no aberto do sem-sentido – propaga-se

no silenciar iluminante. Como pode, então, a razão polarizada, para a qual o mito não

passa de “fábula”, isto é, de fantasia humana desviante e infantil, compreender o mito

em sua nascente originante?

Acredito na possibilidade de vivermos o mito em sua dimensão estética

primordial. Esta minha crença, entretanto, pressupõe a distância apolínea, que permite

vivenciar sua narrativa a partir de um despojamento emocional radical. Ou seja, quando

digo que estou procurando dialogar com adultos, enfatizava justamente esta

possibilidade de partilhar o acolhimento do mito em sua ressonância extra-ordinária,

apesar de não poder garantir a ninguém o momento exato de uma precipitação vivencial

esteticamente significativa. Entretanto, quero também dizer que experiencio um

maravilhado diante do que se descortina nas imagens primordiais que vou passar a

narrar, e em me pensar acolho a imensidão do vazio primordial em eu caos anelante.

Para mim, as passagens aqui acolhidas são o signo do velamento protetor de todas as

possibilidades aprendentes relativas à arte dos mitos. E porque assumo a leitura do mito

Page 71: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

71

como uma vivência estética extra-ordinária, considero que o estado de ser adulto do

qual fala Kerényi, como condição para a sua experiência, é justamente o alcance do

estado de ressonância poética com a força criadora do mito em sua nascente primeva.

Em outras palavras, isto quer dizer que é preciso sempre recriar a força ingente do mito

a partir de um fazer com arte, um fazer que, ao fazer, inventa o seu próprio modo de

fazer (evocando aqui o conceito de formatividade de Luigi Pareyson), e isto de tal modo

que este mesmo fazer se torne o sentido de quem o faz em seu amor pelo incessante

recomeçar das Coisas mesmas...

O MITO DO AMOR EM SUA NASCENTE ARCAICA – O COMEÇO DAS COISAS...

Na origem, o mito do amor está circunscrito na narrativa do princípio das coisas.

Para compreendê-lo é preciso levar em conta os termos desta narrativa (ou narrativas) e

seu círculo gerativo retornante. As mitologias de todos os povos primevos da Terra

agrupam muitas narrativas acerca do princípio das coisas. A ocidental, de origem grega,

também tem suas cosmogonias originantes. A que se considera a mais velha parece ser a

que vem de Homero, quando atribui a Oceano a “origem de todos os deuses”, e a

“origem de tudo”. Como narra Kerényi, “Oceano era um deus-rios” (1998, p. 25). Como

deus-rios, possuía poderes inexauríveis de gerar, como acontece com os nossos rios.

Entretanto, Oceano não era um deus-rios comum, o seu ser-rio não era um rio comum.

A partir do momento em que tudo dele tem origem, dele tudo flui incessantemente nele

mesmo. Oceano é, assim, um deus-passagem, deus-fluxo em si mesmo. No princípio,

portanto, estava o FLUXO, ser origem e fluxo, “fluindo de volta sobre si mesmo num

círculo”. O Fluxo é, então, a força do que reflui incessantemente para si mesmo. O

Fluxo é o Mundo, o Cosmo, o Universo. Fluxo é a Vida em seu modo de ser-fluxo. O

Fluxo reflui de si mesmo para além de si mesmo, em si mesmo. Fluxo é campo de força

e vastidão: incomensurabilidade. A Água é Fluxo; o Fogo é Fluxo; a Terra é Fluxo; o Ar

é Fluxo. Tudo o que é, é Fluxo.

Fluxo, então, é o deus originante de tudo o que é. Oceano é o seu nome grego na

designação de um deus-rio. A água, portanto, é o seu elemento. E porque se trata da

água que jorra de uma nascente, o deus Água, Oceano, é a própria nascente em seu

Page 72: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

72

perene fluir: a nascente que se perpetua na nascente e se expande aos confins do seu

fluir, a para si mesmo retoma originando o Fluxo, na escuridão abissal do infundado

Caos.

No princípio, então, é o Fluxo. O Fluxo chamou-se Oceano; Oceano

presentificou a Água com elemento originante. Entretanto, Oceano em si mesmo é o par

de Tétis: ele mesmo é, enquanto Oceano, a própria Tétis, isto é, a Mãe de tudo o que é.

Oceano e Tétis formam o casal original. O Fluxo, portanto, é Fluxo fundado na

diferença entre o “O” e o “T”, isto é, no encontro de iguais enquanto Fluxo: o meio, não

o início, não o fim, mas apenas o que flui, o que jorra, o que escorre e o que passa

apenas para recomeçar a passar de novo, sempre outro, sempre o mesmo fluir-ir-e-vir.

Aos poucos indícios mitológicos acerca de Tétis a associam à Senhora do Mar, isto é, a

esposa de Oceano.

Contudo, procurando ouvir uma outra ressonância, aquela que perece provir do

poeta Orfeu, o sentido de Fluxo como o “casal original”, compreendendo aí a geração

de um campo de força no fluir incessante das coisas. Esta outra narrativa nos diz que no

princípio era a Noite (Nyx). A história a descreve como um pássaro de asas negras. A

Noite copula com o Vento e gera Eros. Na narrativa de Kerényi:

“A antiga Noite concebeu do Vento e botou o seu Ovo de prata no colo gigantesco da Escuridão”. Do Ovo saltou impetuoso o filho do Vento, um deus de asas de ouro. Chama-se Eros, o deus do amor; mas este é apenas um nome, o mais lindo de todos os nomes usados pelo deus. (1998, p. 26)

Nessa versão da origem dos deuses, Eros é o filho do casal primogênito. O ovo

do qual nasce Eros é de prata. Eros, entretanto, luze com suas asas de ouro. O amor,

assim, nesta imagem arcaica, é encantador e flamejante. O amor tem asas de ouro. Ou

melhor, o amor tem asas de fogo. O amor encadeia em seu próprio luzir dourado. O

amor, assim, é quase o astro rei em sua marcha perene. A solaridade do amor em suas

asas de ouro: o quente, o agitado, o fluido incandescer pulsante.

Eros é o deus do amor. Nesta revisão, os seus outros nomes aparecem como

atribuições de sua pujança ígnea. Assim, Eros é também conhecido como Protógono e

como Fanes. No primeiro caso, salienta-se que ele foi o “primogênito” de todos os

deuses, enquanto no segundo caso, indica-se exatamente o seu primeiro ato ao sair do

Ovo: “revelou e trouxe à luz tudo o que antigamente jazera escondido no Ovo de prata -

Page 73: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

73

em outras palavras, o mundo inteiro” (Kerényi, 1998, p. 26). Acima deste Ovo de prata

estava o vazio, isto é, o Céu. Abaixo dele, o Repouso. Os gregos chamavam este vazio

de “Caos”, ou seja, simplesmente aquilo que “bocejava”, a absoluta ausência de

qualquer coisa, a Escuridão abissal do Nada. Só com o passar do tempo é que a palavra

“Caos” irá adquirir o sentido de tumulto, confusão e desordem. Este perda do sentido

mais original de “Caos” ocorre em virtude do surgimento do pensamento originário

grego, que elabora uma doutrina dos Quatro Elementos. Deste modo, na sua forma

primeva, o Caos encontrava-se abaixo do Ovo em estado de quietude; o Caos era

Repouso. Segundo uma outra versão da história, a terra jazia abaixo do Ovo, e o céu e a

terra se uniram. “Essa foi a obra do deus Eros, que os trouxe para a luz e depois os

obrigou a se misturarem. Eles produziram um irmão e uma irmã, Oceano e Tétis, como

diz Kerényi (1998, p. 26).

Essa velha história de origem órfica, provavelmente, tinha sua continuidade na

narrativa que dizia que, no princípio, Oceano encontrava-se abaixo no Ovo, não estando

só, mas acompanhado de Tétis. Este par primordial foi o primeiro a agir sob a

compulsão de Eros. Como se encontra em um poema de Orfeu: “Oceano, o que flui

lindamente, foi o primeiro a se casar: tomou por esposa Tétis, sua irmã por parte de

Mãe”, isto é, a Noite (Nyx).

Isso mostra, na versão órfica. Eros como o primogênito de todos os deuses

nascidos da união da Noite com o Vento. A partir de Eros ocorre o refluir da própria

origem como Fluxo. Eros, assim, é a origem da união dos opostos em fluxo e refluxo

contínuo. O amor, desta forma, em sua origem é a força de atração e repulsão de tudo o

que é. O Eros primordial é a força de coesão do mundo: a união dos opostos em

perpétuo fluir gerador – a gênese da multiplicidade. O Amor, assim, como deus

originante, é a incandescência da vida em seu esplendor instante: o intemporal que

freme na temporalidade – a superfície ígnea. O Amor primordial, assim, é o verbo

“amar”.

Etimologicamente, Eros, em grego “Érõs”, provém do verbo “érasthai”, que

significa estar inflamado de amor, designado algo como desejo incoercível dos

sentidos. Há, também, uma versão de Carnoy que faz uma aproximação deste verbo

com o indo-europeu (e)rem, que significa comprazer-se, deleitar-se (Brandão, 1993, p.

356). De qualquer modo, é como verbo que o deus Eros se mostra na origem: o verbo

Page 74: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

74

Amar. Isto indica, entre outras coisas, o desejo incoercível dos sentidos: comprazer-se,

deleitar-se; indica, portanto, o querer-ser de tudo o que é vivo e vivente. O Amor

primordial, assim, encontra-se despersonificado, o que não quer dizer que se encontre

desencarnado. De forma precisa, ele é a encarnação da vida-sendo: o Fluxo. E o Amor,

enquanto Fluxo, cinge, no mesmo Ovo de ouro, a Necessidade e a Liberdade. O Amor é

justamente o meio de propagação desta união. Unido é o Amor na perpetuação do Fluxo

vivente da diferença primordial dos opostos. O Amor, portanto, está sempre no caminho

de si mesmo: por isso é sempre um consumar-se perpétuo, um dilacerar-se incansável.

O Amor é sim, desejo: a carnalidade dos sentidos. O Amor sente, ele é sentido-sendo. O

Amor é, assim, também cego: nele não se pode encontrar o ordinário, o corriqueiro, o

plausível, o racional, o sensato. Ele, o Amor, é a encarnação do que freme de vida em

todas as direções e sentidos. O Amor ama. Ao amar, o Amor se consuma em

superfícies. Ele goza o gozo por si mesmo, e nunca depende do outro para gozar. O

outro é, assim, para o Amor, motivo de si mesmo: o outro é o Amor do outro – afinal,

tudo flui incessantemente para o sempre outro de si. Envolto em sua igneidade velada, o

Amor sempre surpreende o seu amante. O amante é para o Amor o seu desejo no amar

do outro: a alteridade luzente do Fluxo.

Para fechar o círculo das narrativas arcaicas e despersonalizadas, irei agora

relatar a terceira versão do mito do princípio, na qual o Amor (Eros) aparece em sua

forma originante. A mesma encontra-se na Teogonia de Hesíodo. Preferimos, aqui,

transcrever os versos de Hesíodo (1992) pela tradução de Jaa Torrano. Situando a

narração da origem, Hesíodo evoca as Musas para que falem do princípio de tudo. No

que elas respondem:

Os Deuses primordiais

Sim bem primeiro nasceu caos, depois também

Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,

Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,

E Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,

E Eros: o mais belo entre os Deuses imortais,

Solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos

Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.

(Hesíodo, 1992, p. 111)

Page 75: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

75

Nessa passagem breve do poema de Hesíodo, Eros aparece como “o mais belo

entre os Deuses imortais”, libertador dos membros dos deuses e dos homens, e

governante do espírito de todos os deuses e homens. Sim, em Hesíodo é apenas esta a

presentificação do Amor primordial. Eros, assim, de forma velada, aparece como um

deus que é o mais luzente de todos, isto é, o mais brilhante – o mais belo. Da suprema

beleza de Eros provém a força que desconcerta deuses e homens: “doma no peito o

espírito e a prudente vontade”. Isto é o Amor (Eros) na versão hesíodica.

Entretanto, acolhendo a interpretação de Kerényi, é preciso observar a situação

de Hesíodo em sua ambivalência histórica particular. Pastor, lavrador e poeta ao mesmo

tempo, quando jovem pastoreava carneiros na montanha divina do Hélicon, local de

culto ao deus Eros e às Musas. Circulavam pelas redondezas do monte Hélicon os

discípulos de Orfeu, que devotavam especial reverência a essas divindades. Significa

dizer que Hesíodo provavelmente não desconhecia a versão órfica do mito da origem.

Concordando com Kerényi, a história contada por Hesíodo soa como se ele tivesse

omitido o ovo da história da Noite, o Ovo e Eros, apresentando Geia, a Terra, como a

deusa primordial, justamente pela sua proximidade com o elemento terra, na qualidade

de agricultor. E se em sua Teogonia ele cita primeiro o Caos, este não era para ele uma

divindade, mas tão somente um “bocejo” vazio – isto é, o efeito do ovo vazio depois de

retirada a casca.

De qualquer modo, também em Hesíodo, Eros é um deus que não se encontra

ainda personificado, apesar de mostrar-se como “o mais belos entre Deuses imortais”, o

que também indica uma distinção que apresenta uma diferença: Eros é o que liberta os

imortais e os mortais dos grilhões da indistinção e da não-vida. Assim, Eros também

aqui se mantém como força jorrante, na medida em que “doma no peito o espírito e a

prudente vontade” dos imortais, assim como dos mortais. Tudo, deste modo, é

perpassado pelo agir de Eros em seu fulgor extasiante. Na versão de Hesíodo, Eros

permanece sendo uma força ingente que a tudo arrasta em sua desconcertante marcha.

Entretanto, ele consegue conjugar a força desconcertante do Amor – que a todos “solta-

membros”, isto é, enlouquece, libera, multiplica, extasia -, com a força capaz de domar

no peito (coração) o espírito, levando a vontade a temperar-se no caminho do meio, isto

é, na prudente sabedoria. O Amor primordial em Hesíodo, deste modo, apesar de

Page 76: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

76

esconder-se em sua vastidão incomensurável, é tanto a paixão bruta do desejo cego, a

híbris, como a sabedoria hineante da mais bela harmonia, a diké. O Amor é o

“descomedimento” e o “comedimento” conjuntamente, o “desequilíbrio” e o

“equilíbrio” em um só fruir. O Amor é assim: oras é arrebatamento, oras é sabedoria;

oras rebento ingente, oras apaziguamento vívido, despojamento serenojovial e humor

benfazejo. O Amor se esconde em muitas faces: ele se metamorfoseia em diversidades

sempre inesperadas.

Em Hesíodo, o Amor primordial, o deus Eros, é apenas evocado em sua luzência

fundante: ele perde os contornos de sua imperância primordial, para distribuir-se como

Idade da Justiça, a denominada Era de Zeus. A saga de sua Teogonia compreende um

arco de tempo que vai do Caos até Zeus, ou seja, vai do Caos até a culminância da

terceira geração divina, identificada como a Era da Justiça. A partir do enfoque de uma

decadência brutal do espírito dos homens, tendo vivido ele mesmo na pele o despotismo

de senhores feudais desonestos e injustos, promotores da injustiça entre os homens,

Hesíodo profetiza o advento de uma nova era. E porque o enfoque de Hesíodo é a

rememoração do que foi e o que virá, o mito do Amor em sua forma arcaica é deixado

de lado para dar lugar a uma outra criação: a criação do homem. Este, no entanto, é

fruto de relações incestuosas entre os imortais e os mortais, são neste sentido “heróis”,

isto é, filhos nascidos das relações amorosas entre os diferentes pólos do desejo. E

porque com Hesíodo envereda-se em uma passagem onde mortais e imortais se

aproximam como nunca, o Deus do Amor se faz também a temperança de um

temperamento justo: alcança o Amor maduro. Neste aspecto, teríamos que percorrer

outros caminhos e desembocar no grande Oceano do Amor Sábio. Este, entretanto,

sempre se vela nas peripécias de sua divina mania: não se deixa nunca capturar em

redes fixas e em casas abandonadas. O Amor Sábio, em Hesíodo, parece confundir-se

com a figura do grande Zeus. Zeus, assim, seria a presentificação do Amor maduro, isto

é, o Amor Sábio: a justa medida.

Nessa transposição arriscada, o Amor Maduro perde o seu contorno primevo e se

encarna na poeticidade do fazer humano. Esta passagem, entretanto, não é feita de uma

só vez, o que não cabe ao mito explicar, pois, enquanto narrativa originante, o mito do

Amor não foi deixado para trás no tempo das “fábulas” e das “fabulações”, mas

continuamente faz acontecer o ser em sua ingente beleza: tudo sempre precisa sempre

recomeçar para poder fazer algum sentido.

Page 77: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

77

O mito do Amor, deste modo lido, arcaicamente lido, não é, portanto, uma mera

“fábula”. Ele, em sua fala estranha e estrangeira, me faz cantar em sua vigência e em

seu nome dizer de novo: não é preciso acreditar no Amor para que ele exista. Neste

sentido, o Amor não pode ser objeto de crença e sua personificação, qualquer que ela

seja, não passará de sombra pálida de sua luzência perene. Sua luzência, entretanto, não

é visível apenas pelos sentidos comuns, mas também se propaga fora da visão e dos

sentidos. Sua luzência é a perenidade da doação pulsiva e liberadora. Assim, sua

luzência nada tem a ver com as luzes da razão sempre certa, sempre lógica. Pelo

contrário, o Amor prima pela sua irrazão, ou melhor, por sua abundância jorrante e

sempre sensível.

A partir dessa perspectiva apresentada do Amor mítico, o mesmo foi acolhido

poeticamente em sua força ingente e originante. Para mim, isto quer dizer uma coisa

muito simples: nesta minha fala não fiz mais nada do que reencontrá-lo em mim

mesmo. Sinceramente, não fiz senão executar um cântico amante do Amor. Esta é a

minha parte da lenha necessária para acender a fogueira coletiva desta mesa-redonda.

Espero não tê-los entediado em demasia com essa leitura arcaica do Amor. Amor que se

abriu como desvelamento de tudo o que é vivo e vivente. Amor despojado de suas

infinitas manifestações singulares: força motriz de tudo – vida-sempre-viva

ultrapassando-se. Obrigado pela atenção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KERÉNYI, Karl. Os Deuses Gregos. Tradução: Octavio Mendes cajado. 10ª ed. São

Paulo: Editora Cultrix, 1998.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Dicionário Mítico-Etimológico. V. I

(A-I). 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

HESÍODO. Teogonia. A Origem dos Deuses. Tradução: Jaa Torrano. 2ª ed. São Paulo,

Iluminuras, 1992.

Page 78: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

78

LEITURAS EM MEMÓRIAS DE INFÂNCIA:

REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DE

SARTRE E GRACILIANO RAMOS1

Luciano Chaves Sampaio2

Para falar sobre esse tema, poderia recorrer e até me perder nos meandros do

universo autobiográfico que faz uma exposição, quase interminável, de relatos de

infância. Andando por essa galeria, podemos encontrar aquarelas com as primeiras

leituras de Simone Beauvoir (em, Memórias de uma moça bem- comportada), Marcel

Proust (em, Sobre a leitura ), Bertrand Russel (em, Retratos de Memórias) e até Carlos

Drummond quando ele descobre não saber que a sua história era mais bonita que a de

Robinson Crusoé.

Mas, por questão de tempo, de respeito a minha área de estudos e também por

motivo de identificação, vou deter o olhar sobre duas autobiografias para falar da leitura

em memórias de infância. São os relatos de infância do Filósofo Francês Jean-Paul

Sartre e do escritor nordestino Graciliano Ramos:

JEAN-PAUL SARTRE: AS PALAVRAS

Primeiro, vou convidar a atenção de vocês a se demorar sobre a história de

Sartre. Jean-Paul Sartre que nasceu em Paris, no ano de 1908, no seio de uma família

culta e economicamente estável.

1 Palestra proferida na Mesa-Redonda: A Literatura e o Leitor promovida pelo Programa Estação da Leitura,

julho/2003 2 Professor Titular do Departamento de Química e Exatas (DQE), Universidade Estadual do Sudoeste da

Bahia (UESB); Especialista em Metodologia do Ensino Superior (UEFS).

Page 79: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

79

Numa entrevista, em 1970, para uma TV francesa, reproduzida pelo canal Futura, ele

declara:

As recordações e a doce despreocupação de uma infância no campo não existem em mim. Nunca mexi na terra nem fui atrás de ninhos. Nunca plantei nem joguei pedras nos pássaros. Mas os livros foram meus pássaros e meus ninhos, meus bichos de estimação, meu estábulo e meu campo. A biblioteca era o mundo aprisionado em um espelho. Ela continha o infinito, a variedade, a imprevisibilidade. Platônico, eu partia dos acontecimentos ao objeto. Para mim, a idéia era mais real do que a coisa, porque a idéia era anterior à coisa e porque ela se dava como uma coisa. Foi nos livros que conheci o Universo: assimilei, classifiquei, etiquetei, pensei, ainda que assustador fosse. E confundi a desordem das minhas experiências livresca com os acontecimentos reais. Daí veio o idealismo do qual só me livraria 30 anos depois. A leitura teve um papel muito importante desde minha infância. Eu me refugiava nas palavras, nos livros. ( grifos meus).

Como se vê, neste depoimento, a leitura dos livros o fez ir além na sua relação

com o mundo, um mundo adulto, culto. Nas lembranças reconstruídas, os livros são, a

princípio, objetos, peças de mobiliário por onde ele transitava. Depois, eles, se tornam

motivação para a transcendência, a superação do seu meio e de si ...

Isso se confirma no seu livro As Palavras (1967) onde, aos 58 anos, ele registra

suas lembranças de menino. Aí, se vê, por exemplo, dentre seus iniciadores, a

influência do avô: Sartre perdeu o seu pai cedo e foi com sua mãe viver com os avós

dos 3 aos 11 anos. Sua vida foi sempre marcada por leituras livrescas, vivia grande

parte do seu tempo dentro de uma biblioteca. O seu avô mantinha com os livros uma

relação de culto ritualizada e privilegiada: “Todos os dias eu assistia a cerimônia cujo

sentido me escapava: meu avô – geralmente tão desajeitado que minha mãe tinha de

abotoar suas luvas – manejava esses objetos culturais com uma destreza de oficiante”.

(p. 27).

Essa herança do avô preparou Sartre desde cedo para tratar a literatura como

uma paixão. (p. 30). A voz do seu avô soava como ordem que o levava a ler e escrever.

Mas, como ele mesmo diz, essas ordens não seria ordem, se ele já não tivesse esse

desejo de ler e escrever dentro de si. O avô o acordava para tanto.

Page 80: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

80

Sua mãe também teve um papel muito grande em sua vida como iniciadora da

leitura. Conta Sartre que um certo dia sentado e ouvindo as leituras de sua mãe, ele

imaginava:

era o livro que falava. Dele saíam frases que me davam medo: eram verdadeiras centopéias, que expeliam desordenadamente sílabas e letras, esticavam ditongos, faziam vibrar as consoantes duplas... (...) Quando ela acabou de ler, peguei vivamente os livros e os levei embaixo do braço sem dizer obrigado. (p. 31).

Mas isso não era tudo no ambiente leiturizador em que o Sartre menino viveu.

Além de dois iniciadores de peso (avô e a mãe), ele cresceu convivendo naturalmente

com livros e letras. Como ele mesmo diz encarcerado em uma biblioteca, conheceu os

objetos as plantas e animais.

Como aluno, tive o zelo de um catecúmeno; chegava a dar aulas particulares a mim mesmo; subia no meu Catre, com o ‘Sans Famille’, de Hector Melot, que eu já conhecia de cor, e meio recitando, meio decifrando, percorri todas as páginas, uma após outra. Quando virei a última, sabia ler. (1967, p.36)

É certo que esse encarceramento, como ele mesmo afirma, o envolveu num

idealismo exagerado que só começaria a se estremecer após o segundo casamento da

mãe e a convivência com os colegas mundanos de Le Rochelle. Só nesse momento,

Sartre cai de ponta cabeça no mundo para decifrar seus códigos e leis.

GRACILIANO RAMOS: INFÂNCIA

O segundo autor escolhido para a apreciação é Graciliano Ramos, que nasceu no

ano de 1892, em uma pacata cidade de Alagoas que tem um estranho nome de

Quebrangulo. Graciliano que contrapõe a Sartre pelo ambiente adverso em que viveu e

com o qual, exatamente, pelas adversidades me identifico.

Ao ler Graciliano deparo-me com situações semelhantes às da minha história de

vida no espaço escolar e no campo. Ao contrário de Sartre, Graciliano é uma referência

que glorifica minhas origens simples do campo. De alguma maneira posso até fazer um

paralelo entre minha experiência e a do romancista.

Em nossas primeiras leituras, o mundo é que era um grande livro aberto.

Graciliano, como eu, começou lendo os espaços em redor, as pessoas, os gestos, as

Page 81: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

81

asperezas da vida para depois aos livros ...Achava-me em uma vasta sala, de paredes

sujas. Com certeza não era vasta, como presumi (p. 08).

Minhas primeiras recordações da escola também eram de uma sala escura e uma

professora séria, gorda e feia, sem graça, que todos os dias, deixava-me de castigo por

não saber soletrar - um b com a – ba; um b com e - be ou por não ter recitado a tabuada.

Eu terminava por me submeter a essa decoreba sem explicação lógica dos números.

Sobre sua alfabetização, Graciliano conta: o pai não tinha vocação para ensino,

mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou – e o resultado foi um

desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me (1967, p. 96). Nesse clima, cada

aula, se tornava uma sessão de tortura, conforme se vê no seu livro Infância:

Uma vez por dia o grito severo me chamava à lição. Levantava-me, com um baque por dentro, dirigia-me à sala, gelado. E emburrava: a língua fugia dos dentes, engrolava ruídos confusos. Livrara-me do aperto crismado as consoantes difíceis: o T era um boi, o D uma peruinha. Meu pai rira da inovação, mas retomara depressa a exigência e a gravidade. Impossível contentá-lo. E o côvado me batia nas mãos.

Minhas primeiras leituras se deram em ambiente semelhante ao descrito por

Graciliano. Na minha experiência particular, em casa a aprendizagem sob as ordens do

meu pai, era de uma maneira instável e insegura. Quando falava sobre as coisas do

campo (o trabalho) tinha uma forma de ensinar prática espontânea e feliz. Era um

grande mestre no conhecimento da natureza (da vida animal e vegetal), entretanto, não

permitia intervenção ou contestação. O seu ensino fora do campo era um fracasso total.

Na escola, as coisas pioravam: Lembro-me de uma vez em que a professora,

mandou-me abrir um livro de ciência onde falava de animais, dos peixes, aves, os sapos,

etc. Na minha infância, pegávamos sapos de mão, brincávamos com eles. Nunca achei

um sapo feio, nem via os animais simplesmente como úteis e necessários para nossa

alimentação. Para mim, eram meus amigos e companheiros.

Os livros escolares não conseguiam comunicar essa relação afetiva com os

animais. Tanta indiferença me inquietava e distanciava-me das letras impressas. Nessa

mesma direção Graciliano diz, também:

Page 82: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

82

Aos nove anos, eu era quase analfabeto. E achava-me inferior aos Matos Lima, nossos vizinhos, muito inferior. Esses garotos, felizes, para mim eram perfeitos: andavam limpos, riam alto, freqüentavam escolas decentes e possuíam máquinas que rodavam na calçada com trens. Eu vestia roupas ordinárias, usava tamancos, enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de barros, falava pouco. (p. 183).

Essa auto-imagem diminuída, em Graciliano, só vai se debilitar quando ele

descobre o prazer de ler: primeiro com uma professora que nada sabia, mas era

especialista em contar histórias de Trancoso, depois com o padre que o apresentou os

trechos da Bíblia e, por fim, com a descoberta da Biblioteca de Jerônimo Barreto

(tabelião)– que lhe forneceu a provisão de sonhos.

Sentimento semelhante, experimentei diante dos colegas nos primeiros anos de

escola. Desse sentimento só consegui libertar-me quando entrei na Faculdade de

Economia e me tornei um dos melhores alunos. Em Sartre a situação é inversa. Ele saiu

do aconchego do seu lar e deparou-se com o mundo exterior. Sua ignorância num novo

mundo o condenava. Ele era humilhado pelos colegas por ser diferente por ser uma

criança “bem educada” que falava corretamente e cheio de conhecimentos livrescos.

Por razões diversas eu, Graciliano e Sartre fomos humilhados e desprezados.

Nós (eu e Graça), pela inexperiência no domínio dos códigos da educação formal e

Sartre, pela pobreza de leituras do mundo. Felizmente não sucumbimos à exclusão:

Sartre combinou seu conhecimento livresco com a perplexidade diante do mundo e se

tornou um filósofo existencialista. Graciliano “pagou sua hospitalidade neste mundo”

escrevendo o que viu – se tornou escritor. Eu, continuo superando-me a cada dia, indo

dos livros ao mundo e do mundo aos livros, para tentar assegurar meu lugar de sujeito

na história de um menino, um menino do campo que intenta dialogar com outros

mundos...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalmente, posso dizer que entrar no horizonte cultural de origem guardado nos

relatos de infância em busca de memórias de leitores é uma viagem curiosa: é ter a

chance de vivenciar outros ambientes educativos no tempo e no espaço; é viver práticas

leitoras das mais variadas; é conhecer os inúmeros personagens que se fizeram

Page 83: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

83

iniciadores – o pai de Simone Beauvoir, o avô de Sartre, a professora de Graciliano

Ramos etc. São exemplos de construção do conhecimento em espaços de educação,

formal, ou não, que fazem indagar sobre a nossa própria história de leitores da vida e

dos livros dentro e fora da escola. São depoimentos que revelam ações comuns a todos

(atos de ler, atos de conhecer) desempenhadas segundo as possibilidades únicas de cada

um, colocando em jogo o ser humano em sua igualdade singular. São histórias de vida

nas quais o aprendiz, pelo contato com o livro, com a história, se reconhece ou estranha

num exercício de auto-reflexão onde, cuidando do outro, ele também cuida de si. São,

assim, narrativas que podem se tornar exemplares quando se quer pensar a educação do

ser numa perspectiva de uma educação voltada para a humanidade do homem. São

histórias vividas.

No meu caso particular, o contato inicial com as memórias de infância de

Graciliano Ramos e Jean- Paul Sartre possibilitou-me os movimentos do despertar, os

movimentos de um olhar mais cuidadoso acerca dos conceitos e preconceitos que, no

meu ponto de vista, rondam o saber acadêmico. Em Graciliano, percebi as

características de um homem do campo que superou as limitações da vida humilde, do

estudante rebelde e avesso à escola. Sartre, mostrou-me as lições do estudante ideal: aos

nove anos de idade ele já tinha lido muitas obras enquanto Graciliano, nessa idade

iniciou sua escolarização. Sartre, no entanto, mesmo fechado no espaço de uma

biblioteca, tentava brincar, subia na escada para alcançar os livros, deitava-se no tapete

para ler,como nós subíamos em árvores para alcançar frutos, deitávamos na relva para

contemplar as formas das nuvens.

Percebo, nas distâncias da vida uma comunhão de princípios. Vejo nessas

experiências, forjadas de forma tão diferente pela história, uma igualdade originante: o

desejo de ir além. Sartre teve a oportunidade de saber isso desde cedo num ambiente

amorosamente fértil; eu e Graciliano, não: só o descobrimos, quando fomos arrancados

da aridez da linguagem escolar pela palavra afetiva...

Tais experiências relatadas são de fundamental importância para os estudos da

leitura, pois cada história, cada pessoa é parte de um todo, de uma comunidade, de um

comum-pertencer mesmo que, no acontecer histórico, cada um tenha uma presença

individualizada, uma existência individual que só pode ser superada pelo diálogo. Para

Page 84: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

84

mim, onde não há diálogo entre parte e todo, a estrela perde o brilho porque se tornou

incapaz de escutar ao ser, de participar do brilho dentro de uma constelação.

De alguma maneira, posso dizer que, enquanto leitores, estamos todos

precisando relembrar Drummond em suas palavras poéticas:

Lá longe meu pai campeava

No mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé. 1

E se sua história não for mais bonita que a de Robinson Crusoé, ela, com certeza

é tão bonita quanto. E o convite que eu quero deixar, aqui, com estas palavras sobre

memórias de leitura é que vocês encontrem tempo para pensar sua própria história:

- Como vocês se constituíram leitores?

- Quem foram seus iniciadores?

- Que ambiente de leitura lhes foi favorável?

- Quais foram suas primeiras leituras? Qual foi o significado delas em sua vida?

Responder essas perguntas será uma viagem mnemônica fantástica, fascinante,

porque interior, sentimental e originante:

- Interior como os subterrâneos da liberdade;

- Sentimental como a música dos afetos;

- Originante como tudo o que, num tempo primordial, nos fez leitores da vida e dos

livros.

1 ANDRADE, C. D. Infância. In: Obra poética de Carlos Drumonnd de Andrade. Rio de Janeiro: José

Olimpio, 1983, vol I, p. 4.

Page 85: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

85

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRAISSE, E. (org.) Representação e imagem de leitura. São Paulo: Ática, 1997.

MATOS, M. A. F. Memórias de Leitura e Escola. Dissertação de Mestrado, PUC/Rio,

1996.

SARTRE, J. P. As palavras. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Européia de

Livro, 1967.

_____________. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução:

Paulo Perdigão. Editora Petrópolis, Rio de Janeiro, 1997.

RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1995.

________________. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1996.

________________. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1995.

YUNES, E. Literatura e Educação a formação do sujeito. In.: Os Contrapontos da

Literatura. Petrópolis: Vozes, 1984.

Page 86: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

86

LEITURA, MEMÓRIA,

AUTOBIOGRAFIAS

& HISTÓRIAS DE VIDA

Page 87: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

87

MINHA HISTÓRIA DE LEITURA

Diva do Carmo Godim Pires1

Contar a minha história de leitura é fazer uma saudosa e deliciosa viagem de

muitos anos no “túnel do tempo” de minha vida para resgatar, desde a infância, as

memórias mais caras desta experiência singular que é a leitura.

Aprendi com meu pai a gostar de ler. Ele era amante dos livros apesar do seu

“pouco estudo” como ele mesmo costumava falar. Era um autodidata. Tendo

freqüentado somente até o terceiro ano primário, como era denominado no seu tempo, o

começo do século XX, era uma mente ávida de conhecimento: ouvia rádio, lia jornal, lia

revistas, lia almanaques e lia romances.

Quem diria que Contendas do Sincorá, tão pequenina e pobre, hoje em franca

decadência, já teve um dia uma biblioteca pública!

Pois bem, meu pai, Herculano de Brito Gondim, conhecido por todos como

“Seu” Culita, fazia parte do grupo daqueles que promoviam as atividades culturais

daquela vila que só mais tarde passou à categoria de cidade. E dentre essas atividades

culturais figurava a organização de uma biblioteca.

Meu pai era um bom leitor e isso me influenciou bastante. Aliás, toda a minha

vida foi e continua sendo influenciada pelas lições de vida do meu pai. Antes mesmo da

leitura dos livros e de qualquer texto escrito, meu pai ensinou-me a ler a vida através

dos provérbios e ditos populares. Por meio deles formou-me o caráter e a têmpera que

hoje tenho. Para cada situação de vida meu pai tinha um dizer apropriado. Quando

queria nos ensinar a não vivermos pelas casas dos vizinhos dizia: “Boa romaria faz,

quem em sua casa vive em paz!”; se não nos contentávamos em comer moderadamente,

logo ouvíamos sua palavra de admoestação: “Quem come e guarda, come duas vezes.”;

se desperdiçávamos as coisas, usando-as sem parcimônia, ele argumentava, dizendo:

“Dias de muito, véspera de nada”; quantas vezes ele nos aconselhava a buscar sempre 1 Professora Aposentada da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB.

Page 88: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

88

boas companhias, advertindo: “Dize-me com quem andas e eu te direi quem és”. E

assim, para cada situação de vida, ele tinha uma lição em forma de provérbio para nos

ensinar com aquele seu jeito especial, tranqüilo e sábio de orientar. Penso até em

escrever um livreto com as memórias dos ensinamentos do meu pai para que sirva de

aconselhamento para os meus filhos.

Quando cheguei na vida do meu pai, ele trabalhava na roça, mas tinha um

pequena casa de comércio para onde se deslocava no final da semana, até que, por

motivo de saúde, estabeleceu-se definitivamente na vila e organizou uma loja para

venda de tecidos, mas que vendia de tudo. Nesta loja aprendi a ler e ao chegar a época

de ir à escola, eu já sabia ler. Recordo-me, até hoje, a primeira palavra que li:

CONFIANÇA. Era a marca de uma mescla (um tecido grosso para calças de homem)

que meu pai vendia. A peça da fazenda, com uma grande etiqueta, ficava em pé na

prateleira. Era uma mescla de muito boa qualidade, bem resistente e por isso mesmo

muito procurada pelos trabalhadores da roça e da cidade. E de tanto ouvir falar este

nome e olhar para a etiqueta que meu pai apontava para os fregueses, lia CONFIANÇA

com a maior naturalidade e de CONFIANÇA passei a outras palavras.

Aprendi a ler. A loja de meu pai foi minha sala de alfabetização. Lá também

aprendi os numerais nas folhinhas de “números” enormes que meu pai ganhava dos

viajantes. Também na loja aprendi a fazer contas. Desta forma, as diversas

aprendizagens aconteciam da forma mais natural possível.

Não consigo recordar com detalhes as histórias e livros lidos na infância como

atividades orientadas pela escola, mas recordo que a leitura sempre esteve presente e

sou capaz de afirmar que vem de lá o gosto e prazer de ler. Lembro-me até de uma

ocorrência freqüente e curiosa dos tempos de menina. Dentre as diversas mercadorias

comercializadas por meu pai, figurava um sabonete chamado Eucalol. Esse sabonete

vinha numa caixinha bem decorada e em cada caixinha encontrava-se uma estampa, do

tipo carta de baralho, com gravuras as mais variadas e no verso a descrição do que

estava estampado no anverso. Eu colecionava essas estampas e, de certa forma, ia

enriquecendo os meus conhecimentos gerais. Outra prática constante em nossa casa era

a leitura de almanaques. Os diversos laboratórios tinham nos almanaques a sua forma

mais segura de publicidade e, como na época não havia um número maior nem variado

de portadores de conhecimentos e informações para a massa popular, o veículo mais

Page 89: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

89

garantido era o almanaque. Tínhamos também a revista O Cruzeiro, Seleções e os

jornais de Salvador. Todo esse material chegava até a minha terra pelo trem de ferro.

Em Contendas do Sincorá localizava-se uma das muitas estações de parada obrigatória,

pois lá estava uma das sedes do Escritório da Leste Brasileiro com um grande Depósito

para abastecimento e reparos de avarias das máquinas e vagões dos trens que

trafegavam por aquela ferrovia.

Dentre as diversas seções das revistas lidas, havia aquelas de maior preferência:

nos almanaques, a cada ano, eu procurava com avidez a seção que anunciava os eclipses

lunares e solares de cada ano para acompanhar aqueles que fossem visíveis no Brasil.

Também gostava de ler as piadas e curiosidades. Da revista O Cruzeiro, antes de

qualquer coisa, lia com muito interesse “O Amigo da Onça” e em Seleções a seção “Rir

é o melhor Remédio”. Penso que o humor deve significar algo para mim, pois até hoje

aprecio este gênero agora representado nas charges. Fato é que eu lia muita coisa e ler

era para mim uma forma de me sentir livre.

Meu pai foi sempre alguém muito cioso das responsabilidades da criação de

uma menina sem raízes familiares, negra, e por isso mesmo exposta à exploração de

tantos quantos imaginavam que eu poderia ser presa de qualquer um. Em virtude destas

circunstâncias, meu pai criou-me com vigilância redobrada. Quando saía a passeio pelas

casas de parentes e amigos, era sempre ladeada por meu pai e minha mãe. O tempo todo

era sempre em casa e a leitura era meu modo de viajar, de voar nas asas da imaginação,

de conhecer outros mundos, outras pessoas...

Meu pai possuía uma estante sobre uma mesa no quarto do Santo. Em toda casa

antiga de pessoas de fé havia o quarto do Santo, onde a família fazia as suas orações.

Pois bem, lá em casa, o quarto do Santo era também a “biblioteca” de meu pai.

Da minha infância, recordo e guardo alguns poucos exemplares: Um feriado no

céu...e outras lendas; Céos e Terras do Brasil pelo Visconde de Taunay; Espumas

Flutuantes (poesias de Castro Alves); um exemplar do “Novo Diccionario de

Synonymos”e a Crestomatia, uma espécie de Antologia poética. Da Crestomatia recordo

com muito zelo o texto “Retrato de Cristo” que contém fragmentos da carta de Públio

Lêntulo, nobre romano, governador da Judéia, ao Senado do grande Império (Roma),

descrevendo a pessoa do Homem Deus – Jesus Cristo.

Page 90: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

90

A esta altura da minha narrativa, é redundante afirmar que meu pai foi meu

modelo de leitor. Mas o faço para homenageá-lo pela experiência de leitura que me

proporcionou.

Logo cedo fui levada ao colégio de freiras. Meu pai entendia (e que maravilhoso

entendimento!) que nos colégios de freiras era o melhor lugar para se educar uma

jovem, pois, do conhecimento intelectual à experiência da fé, tudo estaria contemplado.

Assim, aos nove anos fui estudar no Colégio Nossa Senhora das Mercês, em Santo

Antônio de Jesus, onde cursei da terceira à quinta série do então Curso Primário. Desta

fase, não consigo nada recordar sobre as leituras feitas. As melhores recordações

chegam-me do “ginásio”, agora já em Salvador, no Colégio São José, dirigido pelas

Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas, onde permaneci desde a primeira série do

curso ginasial até o terceiro Colegial Normal, quando me formei.

No Colégio São José, o incentivo à leitura era muito grande. Havia livros em

toda parte. Os mesmos eram distribuídos em bibliotecas selecionadas pela faixa etária

dos leitores. Havia a sala de leitura para as alunas do curso primário; sala de leitura para

as alunas do ginásio; sala de leitura para as alunas do curso colegial – normal, científico

ou clássico.

Em plena adolescência, devorei os romances de M. Delly, uma coleção de vários

volumes. Li diversos exemplares do Tesouro da Juventude, muitas biografias de Santos,

pois as irmãs eram muito ciosas de nossa formação espiritual. Afinal era um colégio de

religiosas e fazia parte do carisma da congregação a educação total, incluindo a

religiosa. Havia também as leituras proibidas, e Monteiro Lobato foi uma delas.

Naquele tempo, o comunismo era tido e havido como a maior praga da humanidade e

como Lobato era considerado um deles por suas idéias revolucionárias, ficamos

privadas de suas leituras o que hoje considero um enorme déficit em minha bagagem

intelectual. Não obstante essas pequenas dificuldades, em nosso colégio eram realizadas

diversas atividades de incentivo à leitura: concursos, maratonas, gincanas, competições

entre os vários colégios de freiras da capital. Eu mesma ganhei um Missal, em latim e

português, por ter participado e conseguido o primeiro lugar em uma Maratona Bíblica.

Recordo-me também que eram realizadas dramatizações e até peças teatrais

como extrapolação do estudo de literatura.

Page 91: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

91

Na verdade, todo ambiente do colégio conspirava a favor da leitura. Lá éramos

incentivados a aprender música, em especial piano e acordeon (eu mesma aprendi a

tocar acordeon); com isso tínhamos que ler partituras musicais com toda a simbologia

de ritmos e sons. No último domingo de cada mês éramos levadas à Reitoria da UFBA

para assistir ao Concerto para a Juventude apresentado pela Orquestra Sinfônica da

Bahia; com isso, nos educavam para ouvir e apreciar os clássicos, o que nos obrigava,

no bom sentido, a ler as biografias dos grandes compositores nas enciclopédias da

biblioteca. Aos domingos, os padres passionistas da Paróquia da Boa Viagem passavam

filmes para nós, o que muito nos alegrava. Acho que vem daí o meu grande interesse

por cinema. Eu tinha até uma cadernetinha na qual anotava os nomes dos filmes e dos

atores principais. Essa era outra forma de leitura muito cultivada no colégio.

Ao chegar ao curso colegial, foi-nos facultada a leitura de livros de formação

sexual e romances selecionados para esse tempo, quando já éramos consideradas mais

maduras. Dessa época recordo-me da leitura de José de Alencar, Machado de Assis,

Humberto de Campos e muitos autores da literatura nacional e internacional que nem dá

para citar é também dessa época a leitura do Pequeno Príncipe, Polyanna, O menino do

dedo verde e tantos outros dos quais no momento não recordo os títulos. Foi também o

tempo de reler ou ler as historinhas infantis, pois todas as alunas que se candidatavam

ao Curso Normal deveriam apresentar um álbum de historinhas com o qual se preparava

para o ensino primário. Guardo até hoje o álbum que preparei há mais de 40 anos...

Desta época guardo vários livros inclusive um livro que ganhei de presente da Madre

Superiora: A Filha do Condenado, um grande romance!

Após minha formatura, voltei para Contendas, onde comecei a minha carreira

profissional. A pedido de meu pai, não segui logo o curso superior. Deveria devolver à

minha terra um pouco do que aprendera. Assim aconteceu e lá fiquei por 10 anos.

Durante o tempo em que fiquei em Contendas, nunca deixei de ler. Sempre nas

férias, viajava para Salvador e a ida às livrarias era uma atividade obrigatória, pois as

irmãs nos incutiram a necessidade de reciclagem permanente para não ficarmos

“atrasadas” no tempo, como elas diziam. A cada ida à capital, renovava meu pequeno

acervo religioso e cultural.

Das minhas leituras desse período, há um episódio marcante que merece ser

relatado. Havia em Palmeiras, povoado de Contendas, uma professora muito conhecida.

Page 92: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

92

Ela era natural de Salvador, mas por ter-se casado com um jovem de Palmeiras teve que

ir morar lá. Essa professora chamava-se Libânia. Dedicada à boa leitura, trouxe os seus

livros para Palmeiras. Em conversa com ela, pois era grande amiga do meu pai,

resolvemos trocar nossas leituras. O meio de transportes mais freqüente entre Palmeiras

e Contendas era o eqüino e assim, a cada sábado, dia de feira em Contendas, lá vinha

um romance para mim, no lombo de um burro, e seguia outro, no mesmo “transporte”,

dentro de um embornal (capanga de brim) para Libânia. Dessa troca salutar, recordo

pelo menos três grandes romances: A Dama do Colar Vermelho que Libânia

conseguiu, colecionando pacientemente das páginas do jornal A Tarde, que publicava

um capítulo a cada semana e depois encadernando; As Mulheres de Bronze, um

romance da literatura francesa e o maior e mais impressionante deles – A Toutinegra

do Moinho, cujo tamanho e espessura aproximava-se do Dicionário Aurélio.

Além dos livros que conseguia por empréstimo, eu também comprava sempre

muitos livros, pois sempre considerei a leitura algo vital, tão necessária para a vida

intelectual e espiritual como o alimento para o corpo. Nessa época adquiri as coleções

de José de Alencar e Machado de Assis, algumas enciclopédias, pois já estava casada e

a chegada e crescimento dos filhos exigia já a preparação de um ambiente propício à

leitura e a criação de um suporte cultural para que eles pudessem desenvolver-se bem na

escola.

Depois de 10 anos em Contendas e após alguns episódios políticos

desagradáveis, decidimos vir para Jequié, onde imaginamos ser um ambiente mais

desenvolvido para a educação dos nossos filhos.

Na minha família sempre incentivei o hábito da leitura e fazia questão de

presentear a cada um com um livro em suas datas especiais. Estava sempre atenta às

necessidades de cada curso para adquirir o que fosse necessário às exigências de cada

disciplina feita por eles. Assinava revistas, comprava jornais, coleções e tudo o que me

fosse possível adquirir para dar suporte ao desenvolvimento intelectual dos filhos. Foi

nesse tempo que adquiri a Enciclopédia Mirador que nos serve até hoje, quando o

caçula de uma turma de seis já está na faculdade.

Percebo que ler e estudar foi uma prática assimilada por todos os filhos: Vânia, a

mais velha, é médica, com pós-graduação, é leitora inveterada, inclusive por força da

profissão; Álvaro, o segundo, é economiário e faz agora pós-graduação; Roberto, o

Page 93: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

93

terceiro, é professor, meu colega da UESB e Mestre em educação como eu; Antônia

Lúcia, a quarta, é bancária e professora, tendo feito dois cursos superiores; Aurélio, o

quinto, é analista previdenciário e matriculado no curso de Metodologia do Ensino

Superior da UESB e Thiago, o sexto, é estudante da FTC e tem-se mostrado um bom

leitor, pois o curso de Administração com concentração em Marketing exige muitas e

variadas leituras. Todos eles têm um ponto em comum comigo além da leitura de livros,

é o gosto por cinema, que segundo o meu entendimento é uma forma muito especial de

leitura. Lembro-me agora de que, quando eram adolescentes, todos ainda em casa, aos

domingos, Edvaldo, o pai deles, comprava o jornal e cada um destacava uma parte e

seguia para um lado para as leituras de seu interesse. Os meninos pegavam a parte de

esportes, as meninas o caderno das novelas e modas, o pai gostava de ler a parte que

falava de política e eu lia as notícias, as reportagens, seguindo as manchetes da primeira

página. Intrigante foi e é o meu interesse, sempre que pego um jornal é a busca quase

instintiva pela coluna dos falecidos. Pretendo investigar os motivos para tal interesse.

Houve um tempo em que a febre de leitura entre as professoras em Jequié eram

os romances da série Sabrina e Bianca. Era um passatempo divertido. Líamos um sem

número daqueles livretos, comprávamos semanalmente e depois trocávamos umas com

as outras, até que fomos descobrindo que as histórias eram muito previsíveis, tudo

muito igual e fomos perdendo o interesse por Sabrina e Bianca.

Depois de alguns anos morando em Jequié, eis que chega a oportunidade

promissora. Surge a Faculdade de Formação de Professores de Jequié. Faço o primeiro

vestibular e sou aprovada. Começa uma nova fase em minha vida. Novas leituras, novos

autores, novos temas. A relação com o livro não muda, aliás, intensifica-se. Sempre tive

uma estante para os livros em minha casa, desde quando morava em Contendas.

Atualmente foi necessário adquirir mais outras, pois o acervo foi-se ampliando. O curso

de graduação trouxe novos livros; o curso de especialização em Língua Portuguesa

trouxe mais livros ainda e o Mestrado em Educação nem se fala; o tema é vastíssimo e

as modernas pesquisas em educação apresentam uma enorme bibliografia, obrigando-

nos a adquirir uma quantidade muito grande de obras dos mais renomados autores. Não

dá para comprar muito, mas é urgente e necessário adquirir vários. A mini biblioteca vai

crescendo e hoje com cinco estantes e três peças menores conta com 1.658

volumes, distribuídos entre livros de Língua Portuguesa e Literatura, Livros de

Educação, Metodologia Científica e Formação geral, Enciclopédias, Coleções,

Page 94: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

94

Dicionários e muitos livros da literatura religiosa e Bíblias das mais diversas traduções,

uma vez que primo intensamente pela minha formação espiritual.

Entre a Graduação e a Pós-Graduação, como membro ativo da Igreja Católica,

fiz também o Curso de Teologia para Leigos, no Seminário de Ilhéus. Eu e mais três

colegas, Camila Braga, Seleneh Cotrim e Zélia Alves, nas férias de janeiro e de julho,

seguíamos para Ilhéus onde estudávamos muito, pois o curso era bem puxado. O então

bispo daquela Diocese, D. Valfredo Tepe, hoje de saudosa memória, mandava buscar

professores renomados do Instituo de Petrópolis e da PUC de São Paulo, uma vez que

esta era também a oportunidade de reciclar os seus sacerdotes. Desta forma, éramos

duplamente beneficiados, pelo curso e pelo nível dos professores.

A Teologia é uma área de variadas e profundas leituras. Como agente de

pastoral, eu era encarregada de fazer palestras nos diversos cursos promovidos pela

Igreja e constantes leituras durante as celebrações e, ler durante uma celebração, implica

uma postura de proclamação da palavra lida. Isso aprendi com a disciplina Liturgia e

esta postura de leitura proclamada eu a assumo até hoje. Vê-se que a leitura nos prepara

para as diversas circunstâncias da vida.

Para acompanharmos o desenvolvimento acelerado dos últimos tempos, a vida

acadêmica tem exigido de nós, de forma positiva e produtiva, uma busca intensa de

novas leituras sob pena de ficarmos desatualizados com relação ao que se pesquisa, se

produz e se lança no mercado editorial brasileiro e até mundial. Para isso, inscrevemo-

nos nos sites das editoras mais confiáveis, a nosso juízo, para receber das mesmas os

mais novos lançamentos dentro das áreas de nossa atuação. Recebemos também visitas

das editoras da região. É dessa forma que ficamos sabendo dos novos títulos e pelas

resenhas apresentadas, escolhemos aqueles que apresentam novidades significativas ao

nosso conhecimento e ao nosso trabalho.

Entre nós, colegas do Curso de Letras da UESB, há uma prática muito saudável.

Cada um que vai a um evento em outra universidade traz, para os que ficaram, notícias

ou mesmo exemplares de livros novos que adquiriu e isso vai nos influenciando e

incentivando a novas aquisições.

Sobre leitura de textos xerografados, digo que não é a mesma sensação que se

experimenta ao lermos um livro impresso em editora, mas, quando não é possível o

texto editado, a alternativa é ler xérox. O mesmo sentimento eu nutro quando sou

Page 95: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

95

obrigada a indicar leitura de xérox para os meus alunos. Não gosto, mas sou obrigada às

vezes. Entretanto estou sempre incentivando-os a adquirirem os seus livros para que

formem gradativamente as suas bibliotecas, principalmente aqueles que já são

professores. Estou sempre recordando que ser professor não é ser enciclopédia

ambulante, mas que ao professor compete estar bem informado de como auxiliar os

alunos em suas buscas e pesquisas.

Como já relatei inicialmente, a leitura para mim sempre foi algo vital. Gosto

quase que de todo gênero de leitura, em especial da leitura que me entretém, que me

eleva espiritualmente, que me educa, que me ensina, que me enriquece. Não sou

moralista nem preconceituosa, mas por questão de coerência, não leio nada que afete

diretamente a minha fé e a minha moral. Gosto de ler em silêncio, pois assim consigo

ficar mais concentrada. As minhas leituras são geralmente datadas, grifadas e

comentadas. Quem passa por meus livros sabe quando foram lidos, o que mais chamou

a minha atenção e que comentários fiz na época.

Eu me concebo uma leitora razoável. Poderia ser mais bem disciplinada, pois

chego a ler três ou mais livros por vez. A pressa, a urgência, a curiosidade quando surge

uma leitura instigante, faz-me atropelar as leituras que estou fazendo. Outras vezes,

alguns livros são começados e ficam na estante, até que eu tenha tempo de terminá-los.

Ultimamente tenho alguns livros na fila de espera: Um Pilar de Ferro (a vida de Cícero

– 780 páginas) de Taylor Caldwell, autora de O Grande Amigo de Deus (vida

romanceada de São Paulo) e Médico de Homens e de Almas (vida romanceada de São

Lucas), já lidos por mim; Inteligência Multifocal, do Dr. Augusto Jorge Cury;

Profetas e Profecias, de Maria Clara e Eliana Yunes; As Chaves do Inconsciente, de

Renate Moraes e A Insondável Riqueza de Cristo, de Pe. Francisco Janssen. Estes são

alguns dos muitos livros que aguardam tempo para serem terminados.

Jequié é uma cidade de poucas livrarias de grande porte. Depois que a

universidade passou a oferecer vários cursos, as livrarias que expõem lá têm procurado

oferecer alguns dos títulos que sugerimos, mas ainda é muito pouco. Como a procura

ainda não é intensa, a oferta se faz tímida. Na verdade, a experiência de leitura ainda

não se faz de forma significativa. Como professora de Língua Portuguesa, tento

desenvolver esta prática a partir de pequenos textos que seleciono a dedo para as

atividades das disciplinas com as quais trabalho. Faço propaganda dos livros que leio e

Page 96: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

96

dos filmes a que assisto, tentando influenciar colegas e alunos para que embarquem

nesta viagem maravilhosa ao “país da leitura”.

Ultimamente participei de um seminário sobre Análise do Discurso o que me

deixou severamente curiosa sobre as condições de produção do discurso, o que muda

completamente a nossa perspectiva de interpretação dos textos produzidos. Em razão

deste fato, estou freqüentando um grupo de estudos da Análise do Discurso, o NIEAD,

para capacitar-me melhor para a leitura. É grande a minha expectativa frente ao NIEAD,

pois desejo aprender a ler mais e melhor com a experiência desse grupo. Afinal a leitura

é uma experiência incomparável e aprender ler a maior das conquistas que realizamos.

Ziraldo, a propósito de leitura diz: “...a leitura é o passaporte para a descoberta de tantos

mundos que habitam em nós mesmos”.

Page 97: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

97

LEITURAS: FIOS QUE TECEM A CIDADANIA...

Mônica Neves da Silva Lopes1

(...) Mas os livros que em nossa vida entraram

São como a radiação de um corpo negro

Apontando para a expansão do Universo

Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso

(É, sem dúvida, sobretudo o verso)

É o que pode lançar mundos no mundo(...).

Caetano Veloso

Ser feliz...eis o grande desafio do ser humano! Buscar a felicidade em plenitude

é, sem dúvida, o pano de fundo que rege a orquestra da vida, uma vez que todos querem

ser simplesmente felizes. Felicidade...algo efêmero, fulgaz e, sobretudo, idiossincrático.

Isso porque, apesar de ser igual, o ser humano é um estranho ímpar, como assevera

Drummond, logo a busca pelo ser feliz é muito pessoal e muda entre culturas e de

acordo com o espaço temporal e histórico.

Uma das formas de buscar a felicidade é a conquista da cidadania. Isso porque o

homem não nasce cidadão, ou seja, a cidadania não é uma faculdade inerente ao ser

humano, por isso ele torna-se cidadão. Tornar-se cidadão é poder refletir, criticar,

inferir, modificar, significar...O homem cidadão é aquele que questiona verdades ditas

absolutas, que tem liberdade de escolhas, que participa, que faz cultura, que ama, que

sente, que diz... É aquele que sabe que sua voz será ouvida, mesmo na solitude...

Cidadania, que abrange dimensões políticas, civis e sociais, se pauta na

consolidação de direitos e no respeito ao sistema democrático. Nesse sentido, a posse de

direitos deve estar intimamente correlacionada com valores e virtudes que fazem do

homem um ser ativo e participativo, ou seja, valores que se transformam em uma ética

1Especialista em Leitura e Literatura Infanto-Juvenil pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Graduada em Letras Vernáculas e professora da rede particular de ensino do município de Jequié

Page 98: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

98

cidadã. Vista por essa ótica, a cidadania é um espaço de construção, de significados e

nunca algo finalista, acabado.

A escola, como protagonista na formação de consciências coletivas, pode e deve

pautar sua práxis no sentido da conscientização, da constante dialética entre sociedade e

ensino. Dialética esta, que deve formar e informar a comunidade escolar de maneira

reflexiva através de valores conscientes e coerentes cuja autonomia do pensamento seja

a principal fonte de inspiração.

A autonomia do pensamento e a conseqüente liberdade por ela proporcionada

podem ser viabilizadas através de um modo em que se conjugue leitura e cidadania.

Com a leitura se articulam as formas e as possibilidades de consciência. Isso decorre do

fato de ser a leitura primordial tanto para o aclaramento quanto para o encantamento.

Assim, a leitura como ação inteligente, confere ao homem reflexão e

compreensão da realidade que o circunda. Ler é, pois, um trabalho de interpretação pelo

qual se flexibiliza e se estimula a explicação de realidades, proporcionando a ampliação

da visão de mundo, de homem e do outro. Logo, cabe dizer que a leitura realiza um

papel fundamental no processo de formação do homem dentro do contexto no qual se

insere. Isso porque, quando se faz uma reflexão acerca da construção do conhecimento

com a leitura não se pode deixar de levar em consideração o modo como é transmitida a

informação, sobretudo, a que está presente na língua escrita de circulação pública, nem

todo o processo ideológico dentro do qual se consubstanciam valores e informações

predominantes na sociedade de massa as quais delineiam as práticas de leitura.

Isso não implica dizer que conhecimento esteja intimamente atrelado a

informação ou vice-versa. Ou, ainda, que se caracteriza por questões valorativas de

quantidade de informação disponível em uma dada pessoa. Na verdade, o conhecimento

só pode ser construído quando o sujeito dispõe, dentro de um contexto histórico, de

condições de manejo, acesso a dados, teorias, interpretações, fatos de diversos graus de

complexidade.

Com a leitura é possível tocar no cerne da sensibilidade humana, ou seja, é

possível dedilhar os acordes da imaginação. Imaginação que se fertiliza e poliniza na

medida em que as intersubjeções se multiplicam, gerando símbolos, imagens. Viajar,

Page 99: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

99

então, pelos céus da imaginação, possibilita ao sujeito intelectivo a exploração da

realidade com a qual ele se identifica.

Nesse sentido, ler criticamente é poder transformar, é poder abrir universos, é

unir e fundir cores... Isso implica dizer que no âmbito da comunicação social, a leitura

assume uma dimensão bem mais ampla que a mera decifração do código verbal e não-

verbal, dado que o cerne da comunicação se estabelece no campo da experiência

comum, pois arvora o diálogo entre as pessoas e viabiliza a aquisição de novas

informações por grupos ou coletividades. Portanto, não se deve pensar a leitura apenas

no polo da receptividade, visto que poderia reduzi-la a uma experiência unilateral e vista

como ato mecânico de aprender significados e estocá-los. Assim, leitura pode e deve

referenciar o ato de emissão-recepção a uma unidade cultural capaz de atribuir

significados que perpassem ao que está sendo manipulado por meio de símbolos. A

simbologia presente no cotidiano comunicacional das pessoas como meio de

manipulação é uma constante, por isso se faz urgente esse reaprendizado em relação à

leitura; não a leitura mecânica, mas a crítica, a transcendente e significativa.

Sob esse prisma, a leitura é um processo cognitivo, bem como uma prática que

se constitui historicamente, ou seja, não resulta apenas de acúmulo de informações, mas

da representação da realidade existente no texto lido. Ler, portanto, é um

posicionamento político diante do mundo circundante, no qual depende da consciência

do sujeito diante desse processo para que a sua leitura se torne mais autônoma.

Esse posicionamento crítico permitido pela leitura é, entre outras coisas, uma

forma de cidadania. É um posicionamento que arvora o poder conhecer, o discernir. É

perceber o mundo de forma plural, é saber que existem as harmonias e as diversidades...

Portanto, não se deve conceber a leitura apenas como fonte de prazer, dado que

ela expressa a multiplicidade das relações, processos e estruturas que alicerçam a

organização e o ir e vir da vida social. Tudo que diz respeito à leitura está envolto e

impregnado de cultura, logo compreende, explica, sublima, desrealiza, cria o turbilhão

sócio-histórico no qual estão inseridos indivíduos e coletividade, grupos e classes

sociais, países... cidades... enfim, o mundo em sua totalidade.

A leitura é, pois, nessa perspectiva, um bem social. Como tal, deve e pode ser

democratizada, cidadanizada a fim de favorecer escolhas, de permitir arbítrios. Logo,

Page 100: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

100

saber ler de forma crítica proporciona rever discursos, ponderar idéias, refletir posturas,

analisar o mundo, o outro e a si mesmo diante de contextos individuais e coletivos. Isso

porque, muitas vezes os meios que possibilitam a comunicação infantilizam o homem,

diminuem a capacidade de pensar, invertem realidades e prometem a felicidade imediata

através da indústria mercadológica. Por esse viés, a passividade se configura em forma

de docilidade e os meios de informar se tornam, em geral, instrumentos de inculcação

de valores, hábitos e idéias de sorte que o receptor passa a se considerar incapaz de

valorar, julgar, entender o que lê no meio circundante e torna-se inseguro, incompetente

diante de si e do mundo e, assim, passível de alienação.

O sujeito-leitor é um cosmopolita dentro de seu próprio espaço. O homem que lê

é um cidadão do próprio mundo e do mundo do outro. E esse leitor cosmopolita jamais

será hierarquizado por valores de dominante e dominado, de burguesia e proletariado...

E por esse aclive, cabe lembrar o pensamento de Dostoievski: O homem é essa

realidade em que dois e dois não são quatro.

Para finalizar este momento em que a leitura cidadã está em evidência, cabe aqui

ler um texto feito por mim para meu pai. Ele, que foi meu mestre de leitura, sempre

procurou ser um andarilho nas estradas da leitura e nos provou que ler é a busca pelo

próprio caminho, pela própria estrada... O caminhar pelas estradas das leituras é um

direito de todos, por isso a ascendência na trilha dependerá de como cada um irá

transpô-la, se em retas ou em curvas, se sozinho ou em grupo, parando, estacionando ou

sempre continuando...

HERANÇA

Meu pai é meu maior ídolo. Ídolo porque sempre foi um vencedor num mundo

ingrato, no qual as desigualdades sociais ditam e determinam soberanamente as regras

de sobrevivência. Aos onze anos – como tantos outros – abandonou a escola. Fez isso

não por imposição de seus pais, mas pela imaturidade de uma criança vendo e

vivenciando os martírios constantes que a instabilidade financeira acarreta numa

família. Assim, filho mais velho entre sete irmãos, resolveu priorizar o trabalho em

detrimento aos estudos, deixando para quem sabe um dia, realizar um grande sonho:

Page 101: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

101

escrever versos, contos, romances, enfim, adentrar no mundo rico, infindo e criativo das

letras...

O sonho não se concretizou, porém, os infortúnios da vida e suas conseqüências

não o tornaram menos digno, honesto ou íntegro; ao contrário, em desafio à lei de causa

e efeito, lutou muito para vencer – não uma vitória financeira, todavia uma vitória

pessoal que o transformaria num homem produto de si mesmo, tecido ponto a ponto

com doses cavalares de perseverança, tenacidade e brilhantismo.

Cresci num ambiente familiar harmônico, saudável e feliz. Sempre que me

lembro da minha infância sinto saudades daquele lar recheado de tanta poesia. Digo

poesia porque nela exprimimos os nossos mais íntimos sentimentos. E na poesia do meu

lar caberia respeito, amor, compreensão e partilha.

Foi na interação de idéias que nasceu dentro de mim a vontade de contar, narrar,

versificar, ironizar, por meio da reunião de palavras, experiências lidas e vividas, as

quais transformadas são a representação da imaginação. E essa imaginação que me

permite viajar com liberdade por tantos lugares, foi fertilizada há muitos anos passados

por um escritor sem lápis e papel: meu pai.

Guiada por uma mente sensível, aprendi a embarcar nas viagens propiciadas

pelas leituras. Foram elas que me possibilitaram entrar na disputa entre os Amaral e os

Terra Cambará, deixando que o tempo e o vento me levassem até lá. Entrei também na

casmurrice de um Machado amolado que derruba Aires, transforma em Cubas e renasce

no Borba. Com Bandeira voei até Pasárgada, conheci Joana, a louca de Espanha e

conquistei nesse reino a liberdade almejada; vi também o bicho no meio das ondas

gigantescas do rio Capibaribe na linda Recife. Catei as pedras de Drummond, fui

apresentada a José sem nome, e segui de mãos dadas rumo ao congresso internacional

do medo. Fiquei encarcerada na angustia de São Bernardo e na vida seca de um tal

Graciliano. Vi as mil caras da Bahia nas terras do sem fim, nos São Jorge dos Ilhéus

com Gabriela, Tieta e Dona Flor levada pelos olhos do velho marinheiro tão amado.

Viajar é sempre muito bom, ainda mais quando a viagem nos oferece vantagens

imensuráveis. Os livros, nos quais viajo - e que qualquer um pode fazer o mesmo - não

pago passagem, não preciso de passaporte e ainda escolho em qual transporte irei,

independente das condições de vôos, estradas e oceanos. Basta escolher e pronto! Nada

Page 102: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

102

me impedirá de ir e vir, de parar no meio do caminho ou reiniciar todo o trajeto

novamente.

Meu pai, em sua grande sabedoria, mostrou-me também que os livros poderiam

fazer-me embrenhar pelo túnel do tempo, levando-me ao passado ou futuro e estes (os

livros) me apresentariam a personalidades importantes como o Rei Artur e seus

destemidos cavaleiros ou vivenciar as grandes conquistas de Roma em seu tempo de

glória, como também ir além, isto é, conhecer o admirável mundo novo que se

pronuncia, visitar outros planetas, galáxias, portanto, fazer um turismo cultural pelo

universo das leituras tendo com cicerone os seus acervos maiores: os livros.

Muitas vezes paro para recordar àqueles tempos que jamais voltarão e vejo como

foram cruciais à formação que tenho e a que construo continuamente. A Literatura é a

arte da palavra; compreendê-la e conhecê-la significa crescer evolutivamente através

dos pensamentos e dos sentimentos humano. É aprender ler nas entrelinhas, extraindo

de lá seu sentido mais profundo e íntimo a fim de partilhar também de outros mundos

que compõem o cosmo da leitura...

Olhar meu pai sentado em sua cadeira de rodas lendo um livro é sentir a

sensação de que os anos não passaram; congelaram-se como um retrato que se modifica

apenas pela aparência da idade. Com seus mais de setenta, invalidados por um mal que

o parquisionou, treme tanto que, mesmo tentando, não consegue esconder. Entretanto,

como guerreiro que sempre foi e continua sendo, permanece no palco encenando mais

uma peça da vida. E ao ler os textos os quais escrevo, ouço aquela voz grave que

sempre me fascinou, filosofando uma tese de um semi-analfabeto de escola, porém

acadêmico pós-graduado nas experiências edificadas nos livros, emocionada, tentando

disfarçar uma lágrima que teima cair, dizer:

— Filha, você já é uma grande escritora...

Page 103: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, José Juvêncio. Alfabetização e Leitura. São Paulo: Cortez, 1994.

BEJARD, Elie. Ler e Dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. São

Paulo: Cortez, 1995.

BRITO, Luis Percival Leme. Leitura e Política. In: Leitura: teoria e prática. Campinas, São Paulo: Mercado Aberto, ano 18, nº 33, p.3-10, jun 1999.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13ª. Ed. São Paulo: Ática, 2003.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 29ed. São Paulo: Cortez, 1994.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

SILVA, Ezequiel T. da. Elementos da pedagogia da leitura. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2ªed. Belo Horizonte,

Minas Gerais: Autêntica, 2002.

Page 104: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

104

LEITURA &

ANÁLISE DO DISCURSO

Page 105: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

105

Tá rindo de quê? Uma proposta de leitura do gênero piada

Rosely Costa Silva Gomes1

O stress coletivo que toma conta da população nas últimas décadas tem obrigado

o homem a buscar formas alternativas de garantir a sua sobrevivência nesta imensa

selva de pedras na qual se transformou a vida em sociedade. Esta é possivelmente a

razão pela qual vemos crescer a cada dia uma tendência que aponta os benefícios do riso

para a saúde e o bem-estar das pessoas. Muitos estudos encaminham-se no sentido de

mostrar os efeitos do riso no organismo humano: riso e humor diminuem estresse e

ansiedade, reforça a imunidade, relaxa a tensão muscular e diminui a dor.

(CARDOSO, 2001).

Cientes do poder de persuasão provocados pelo humor, estudiosos da área de

comunicação – a exemplo de Talvani Lange2- também vêm se ocupando da temática.

Não é, portanto, sem razão que os meios de comunicação investem cada vez mais em

programas provocadores do riso.

Os efeitos do humor em sala de aula também têm sido tomados como objeto de

estudo por educadores.

Em busca da explicitação dos mecanismos que interferem na produção do humor

vamos encontrar os estudos de Bérgson (2001) sobre a significação do cômico, os

estudos de Freud (1969) sobre os chistes, os estudos de Raskin (1985) sobre os

mecanismos semânticos do humor, os estudos de Possenti (1998) sobre os fatores

lingüísticos geradores de humor, entre outros.

Em sintonia com a temática supracitada, este estudo pretende, somando-se aos já

existentes, dar a sua colaboração no sentido de evidenciar os motivos pelos quais rimos,

afastando-se daqueles, entretanto, por tentar descortinar, nesses motivos, as formas

como certos grupos sociais e étnicos veiculam, através da linguagem, seus valores e

1 Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB/Jequié. Doutora em Linguística.

2 Publicitário, pós-graduado pela Universidade Metodista de São Paulo em Ciências da Comunicação.

Concentra seu trabalho científico nos estudos do humor aplicado às técnicas publicitárias e promocionais.

Page 106: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

106

idéias e tentam provocar o enquadramento de forças adversárias como forma de

manutenção da sua hegemonia. Objetivamos, portanto, desenvolver, no âmbito da

Análise do Discurso, perspectivas voltadas para a leitura crítica do gênero piada.

Pretende-se, a partir de reflexões acerca da linguagem e da análise de uma mostra desse

gênero, demonstrar que o ato de ler deve se constituir num desvelamento do embate

entre formações imaginárias e ideológicas, e não apenas num processo de mera

decodificação de símbolos. Por acreditarmos que pensar leitura é, antes de mais nada,

pensar linguagem, pensar língua , sentimo-nos na necessidade de apresentar a

concepção de linguagem que serviu de base a esta alternativa de leitura. Em vista disso,

partiremos de três definições que podem sintetizar as formas como a linguagem humana

tem sido concebida, no curso da História: como representação do mundo e do

pensamento, como instrumento de comunicação, como forma de ação ou interação.

A primeira concepção busca explicar a linguagem a partir das condições de vida

psíquica individual do sujeito falante. A enunciação é apresentada como um ato

monológico, individual, construído no interior da mente, sendo sua exteriorização

apenas uma tradução.

A segunda concepção apresenta a língua como um código, ou seja, um conjunto

de signos que se combinam segundo regras e que é capaz de transmitir uma mensagem,

uma informação de um emissor a um receptor. Esse código deve ser dominado pelos

falantes para que a comunicação possa ser efetivada... Sobre essa tendência, pode-se

afirmar que também se encontra voltada para o estudo da enunciação monológica

isolada.

Para a terceira concepção, a verdadeira substância da linguagem é constituída

pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação. Nesta

perspectiva, a definição que se coloca como ponto de partida é a que caracteriza a

linguagem como transformadora. Tomar a palavra é um ato social com todas as suas

implicações: conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades

(ORLANDI, 2001, p.17).

Feitas essas considerações, já podemos especificar o domínio no qual este

trabalho está assentado. Tomando a terceira concepção como recorte teórico vê-se o ato

de ler ganhar novos contornos. A compreensão do fenômeno da linguagem não mais

estará centrado na língua, sistema ideologicamente neutro (conforme a primeira e

Page 107: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

107

segunda concepção), mas no discurso - ponto de articulação dos processos ideológicos e

dos fenômenos lingüísticos.(BRANDÃO, 1995, p.12). Entendemos com Amaral (2002)

que uma primeira discussão, necessária aos fundamentos do quadro teórico da Análise

do Discurso, remete para a compreensão de que o discurso é produzido em um

determinado momento histórico-social, é tecido por “milhares de fios ideológicos

(BAKHTIN apud AMARAL, 2002, p.25) e responde as necessidades postas nas

relações entre os homens para a produção e reprodução de sua existência em sociedade.

Nesse sentido todo discurso é discurso de um sujeito e todo sujeito é ideológico.

(PÊCHEUX apud SOUZA, 2001, p.176).

Dessa forma, afastando-se das análises de uma lingüística imanente, será

adotado um enfoque que articule o lingüístico e o social, buscando as relações que

vinculam a linguagem à ideologia. Serão considerados, portanto, nesta proposta de

leitura, os dados lingüísticos e as condições de produção, que compreendem, segundo

ORLANDI (2001, p.30) os sujeitos, o contexto sócio-histórico-ideológico, o contexto

imediato e a memória – tratada como interdiscurso.

A primeira definição da noção de Condições de Produção foi apresentada por

Pêcheux. Tendo como referência o esquema informacional de Jakobson, Pêcheux

coloca em xeque a noção de sujeito- organismo humano individual - e traz à tona uma

série de formações imaginárias que indicam os lugares que os interlocutores dos

discursos atribuem a si mesmos e aos outros. Os protagonistas do discurso não devem

ser considerados, portanto, apenas como seres empíricos. Eles devem ser tomados como

representação de lugares determinados na estrutura social.

Essas condições nos levam a poder afirmar que as escolhas de quem diz não são

aleatórias. A leitura realizada tendo em vista as condições de produção do discurso não

visa apenas ao estudo das formas de organização dos elementos que constituem o texto,

mas principalmente as formas de instituição do seu sentido.

Pretendemos destacar que, por se mostrar como um meio eficaz de comunicação

e por sua livre circulação e fácil aceitação, os gêneros ligados ao humor – a exemplo da

piada - são, por vezes, utilizados para a disseminação e manutenção de posturas

ideológicas de grupos dominantes.

Page 108: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

108

A fim de melhor ilustrar a tendência de leitura proposta, tomaremos como

exemplo uma piada, cuja autoria não foi possível identificar.

E saindo do clima da terrinha Maguila, voltando dos EUA, foi logo ser

entrevistado:

- E aí Maguila, gostou dos EUA?

- Eu gostei muicho, mas assim que eu achar um tal de Well, eu encho este filho da

puta de porrada.

- Ueh, mas por quê? Você conhece esse Well?

- Conhecê, eu num cunheço não, mas assim que eu achar eu parto ele em dois.

- Mas por quê, Maguila?

- Porque assim que eu cheguei no aeroporto, tinha uma baita faixa dizendo:

“WELL COME MAGUILA” . Ninguém sai desta vivo e já mandei até fazer uma faixa

para colocar no galeão dizendo: “Maguila come Well também”.

Temos, no texto em questão, um locutor que se dirige a um alocutário, leitor

virtual inscrito no texto. Um leitor constituído no próprio ato da escrita. Com este, o

locutor estabelece um contrato de significação: o objetivo da enunciação é provocar o

riso, fato que o locutor pressupõe ser do conhecimento e do consentimento do

alocutário. O gênero discursivo cujo formato mais se adequa ao seu intento é a piada,

visto que dos gêneros discursivos, a piada é aquele que incita uma predisposição ao riso.

Através de índices específicos, o locutor vai construindo a cena enunciativa a

partir de uma situação que envolve o personagem Maguila. Convém frisar que não há

dados que comprovem tratar-se de uma situação real. O fato é, portanto, ficção.

Ao selecionar essa temática e criar a situação ficcional, o locutor já tem em mente

o contrato que se estabelece com o alocutário: ele é alguém que conhece Maguila e que

sabe como a mídia vem construindo a imagem deste: trata-se de um sujeito de pouco

refinamento.

O produtor desse texto, a partir da imagem que tem do referente e da que ele

acredita ter o leitor (alocutário), constrói uma situação que não condiz com a posição

Page 109: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

109

social e com imagem que comumente alimentamos dos famosos. A contradição em

relação a essa imagem é sustentada pela inserção do discurso direto, que contribui ainda

mais para o processo de descaracterização do famoso: “Eu gostei muicho, mas assim

que eu achar um tal de Well, eu encho este filho da puta de porrada.”

Maguila, ao contrário do esperado, expressa-se numa variedade lingüística não-

padrão. A inserção do discurso direto contribui para o processo de construção da

imagem da ignorância (no sentido de falta de conhecimento), que, contrastando com a

condição financeira do boxeador, tornou-se o motivo da piada.

A situação é agravada pelo contexto sócio-histórico em que vivemos, o qual

contribui para a construção de arquétipos artísticos. Os famosos são sempre ricos,

inteligentes, infalíveis. Tudo conhecem, tudo sabem. Se considerarmos as características

apresentadas, observaremos que, em pelo menos quatro delas, Maguila não se enquadra.

Levando-se em consideração o jogo de imagens proposto por Pêcheux que se

estabelece durante a interlocução, é possível destacar algumas questões implícitas no

gênero apresentado: quem é Maguila para viajar para os EUA? Como pode ele

freqüentar tal sociedade se não domina a senha de passagem para o primeiro mundo?

O fato de ter furado a barreira na estrutura social e não ter sofrido o processo de

assujeitamento às condições impostas por aquele grupo, transforma-o em motivo de

chacota.

Muitas questões poderiam ser ainda aqui colocadas, entretanto considera-se

razoável finalizar este estudo comentando sobre a importância dessa alternativa de

leitura. Ela nos coloca frente a realidades que uma leitura que considerasse o texto

apenas em sua imanência não daria conta. Quantos preconceitos camuflados, dos quais

rimos sem nos apercebermos. Quantas falsas verdades proclamadas e, pela maioria,

acatadas simplesmente pela imagem que temos do seu produtor. Esta proposta de leitura

poderá, ainda, propiciar o desenvolvimento de uma consciência crítica em relação aos

gêneros discursivos que circulam socialmente, apontando para a necessidade de se

desenvolver gestos de leitura diferenciados para cada um desses. As abordagens que

consideram a linguagem apenas em relação a sua materialidade lingüística tendem para

uma uniformização do tratamento dado aos gêneros discursivos. A perspectiva

Page 110: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

110

discursiva aponta para o desenvolvimento de abordagens diferenciadas considerando-se

a natureza do gênero posto para leitura, os propósitos do leitor, etc.

Isso mostra como a leitura é um processo complexo, onde o que está em jogo é

mais do que decifrar símbolos.

Ler é ir em busca dos diversos sentidos possíveis, é desvelar o camuflado, trazer

à tona não-dito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Maria Virgínia Borges. Análise do Discurso: Língua, História e Ideologia. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística – CHLA. Maceió: n. 23: 25-46, 1999.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 7ª edição. Campinas, SP: Editora da UNICAMP. 1998?

CARDOSO, Silvia Helena Cardoso. O Poder do Riso. In: Revista Cérebro e Mente. Universidade Estadual de Campinas. Junho 2002. Disponível em: http://www.cerebromente.org.br/n15/mente/laughter2/info-ciencia.html-. Acesso em 16 out.2004.

COURTINE, J. –J. Analyse du discours politique (le discours communiste adressé aux chrétiens). Langages, 62, 1981.

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, v.8.

LINS, Maria da Penha Pereira. O humor em tiras de quadrinhos: uma análise de alinhamentos e enquadres em Mafalda. Vitória: Grafer, 2002.

NEDER, M.L. Concepções de Linguagem e Ensino de Português. In POLIFONIA, MT, 1993

ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. 6ª ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001.

_______________. Análise de Discurso – Princípios e procedimentos. Campinas, SP: Editora Pontes, 4ª edição, 2002.

Page 111: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

111

POSSENTI, Sírio. Os humores da Língua: análises lingüísticas de piadas. – Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.

RASKIN, VICTOR. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht, Holland: Reidel Publishing Company: 1985.

SOUZA, Lícia Regina C. Moreira de Souza. Contexto Sócio-histórico e Cultural e a Análise do Discurso in: Discursos e Análises: coletânia de trabalhos. Salvador: Universidade Católica do Salvador. p. 176-178, 2001.

Page 112: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

112

LEITURA &

PSICANÁLISE

Page 113: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

113

SIMBOLOGIA PSICANALÍTICA DE JOÃO E O PÉ DE FEIJÃO

Sandra Suely de Oliveira Souza1

O presente trabalho visa relacionar alguns aspectos psicológicos constituintes da

natureza humana, tendo como âncora os símbolos contidos no conto de fadas de João e

o pé de feijão, numa versão cinematográfica atual. Pretendemos elucidar algumas

passagens da ficção, restaurando elementos simbólicos significativos como

representação dos movimentos vividos no próprio interior do ser humano. Os contrastes

humanos decorrentes da própria cultura, dos costumes e tradições não impedem que

esses elementos psicológicos sejam compartilhados numa dimensão mais profunda,

surgindo daí o que chamamos de humanidade.

Os contos de fadas cumprem relevante papel para organização psíquica da

criança, pois são expressões cristalinas e simples de nosso mundo psicológico profundo.

De estrutura mais simples que os mitos e as lendas, mas de conteúdo muito mais rico do

que o mero teor moral encontrado na maioria das fábulas.

Em essência, os contos de fadas podem ser vistos como pequenas obras de arte,

capazes que são de nos envolver em seu enredo, de nos instigar a mente e comover-nos

com a sorte de seus personagens. Causam impacto em nosso psiquismo porque tratam

das experiências cotidianas, permitindo que nos identifiquemos com as dificuldades ou

alegrias de seus heróis, cujos feitos narrados expressam, em suma, a condição humana

frente às provações da vida.

Em A Psicanálise dos Contos de Fadas (Editora Paz e Terra), o psicanalista

austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990) argumenta:

Os psicanalistas freudianos se preocupam em mostrar que tipo de material reprimido ou inconsciente está subjacente nos mitos e contos de fadas, e como esses se relacionam aos sonhos e devaneios. Já os junguianos...

1 Pedagoga, Psicanalista e Doutora em Educação. Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da

Bahia – UESB.

Page 114: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

114

Ele continua:

...frisam em acréscimo que as figuras e os acontecimentos dessas histórias estão de acordo com fenômenos arquetípicos, e simbolicamente sugerem a necessidade de se atingir um estado mais elevado de autoconfiança, uma renovação interna conseguida à custa de forças inconscientes que se tornam disponíveis ao indivíduo.

O próprio Jung disse certa vez que "nos contos de fadas melhor podemos estudar

a anatomia comparada da psique". Quis dizer com isso, (explica-nos sua discípula Marie

Louise Von Franz, em Interpretação dos Contos de Fadas), os contos de fadas espelham

a estrutura mais simples, ou o "esqueleto" da psique, e que suas muitas peças acabam

por fundir-se, compondo os grandes mitos que expressam toda uma produção cultural

mais elaborada.

Essas narrativas têm a magia e a beleza para restaurar elementos psíquicos que

refletem uma trajetória revestida por símbolos significativos como indicadores das

possíveis transformações humanas, sendo estas agradáveis ou não.

Fazemos neste momento uma breve trajetória da estória de João e o pé de feijão

que já foi traduzida por diversas vezes e hoje mais uma vez foi contada em um material

cinematográfico que nos leva a uma versão revisada dos outros contos narrados até

então.

A estória retrata a vida adulta de João, passada por várias gerações e na última,

apresenta um João empresário, dono de uma grande fortuna. Este não tem mais a sua

mãe ao seu alcance. Sua vida é totalmente voltada para o trabalho, para administrar os

bens deixados por seu pai que morreu ainda jovem. O filme inicia com um sonho

contínuo de João que se transporta para sua fase infantil, vivendo momentos felizes com

seu pai. Sua mãe não aparece neste sonho. No sonho João e seu pai são perseguidos por

um gigante e o pai diz para ele correr rápido para não ser alcançado.

João acorda. Começa seu dia de trabalho, as responsabilidades e muitos

compromissos. Sua vida é destituída de diversões, ele é muito solitário e tem consigo

apenas o conforto que a riqueza pode comprar. Ao lado dele tem o seu mordomo, uma

pessoa de sua confiança que o protege e está sempre a sua disposição. No desenrolar da

trama aparece o diretor de suas empresas que tem uma característica ambiciosa.

Page 115: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

115

O contraste com as outras estórias é a maldição imposta a sua família por várias

gerações, morrendo os homens ao completar 40 anos. Assim foi com seu pai e seus

antepassados. João está próximo de completar esta idade e é justamente neste momento

que os sonhos revestidos de material psíquico estarão mais presentes, trazendo

lembranças e acontecimentos estranhos.

Uma personagem surge, passando-se por jornalista, mas deixa evidente que

conhece João e sua história de vida. Por alguma razão ele fica encantado pela moça.

Mas sempre ficou distante dos relacionamentos amorosos.

Um outro fato é a perpetuação da mãe do João do passado que faz a fortuna

quando desce do pé de feijão, carregando o ganso que põe ovos de ouro e a harpa que

toca belíssimas melodias. Ela traz o segredo de gerações e passa para João do presente a

missão de libertar a família da maldição de quatrocentos anos. Para isso, basta que ele

tenha em mãos o último feijão que não foi plantado. A magia do feijão só acontece se

ele for capaz ainda de fantasiar ou imaginar. João então, já numa fase adulta terá que

passar por uma aventura fantástica para garantir sua sobrevivência.

Ao contrário das outras estórias, o vilão é João e o gigante é a vítima da astúcia e

ambição dos seus antepassados. Outro aspecto muito importante é a questão temporal.

Para cada dia vivido na cidade dos gigantes, é um ano vivido na terra. Trezentos e

noventa dias equivalem aos trezentos e noventa anos passados pelas gerações de João.

João terá que salvar sua vida para garantir a perpetuação de sua família. A mãe

do primeiro João tem a maldição de nunca morrer para ver de perto as perdas dos seus

descendentes. Ela narra uma estória que mostra a maldade do gigante e a fuga do seu

filho com o ganso e a harpa. O gigante o persegue cheio de fúria, mas o pé de feijão é

cortado por João, causando a queda e a morte do gigante.

Essa foi a versão de todos os tempos. João terá que elaborar uma outra história,

diferente da contada pelos habitantes daquela cidade. Seus bens foram adquiridos de

forma desonesta e teria que pagar pelo erro de seus antepassados. Para isso teria que

voltar e prestar contas frente a um tribunal composto de gigantes que têm o poder sobre

os pequenos seres humanos.

Page 116: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

116

Quem se disponibiliza a salvá-lo é uma jovem, que já tinha sido enganada por

João do passado, fazendo-lhe acreditar que era uma pessoa honesta. A jovem, apesar da

decepção amorosa, resolve ajudar o João do presente, fazendo um acordo com os

gigantes para libertá-lo, a fim de trazer de volta o ganso e a harpa.

Assim sendo, eles retornam para a terra e sete anos se passaram desde o início de

sua aventura na terra dos gigantes. Ele foi dado como morto e todos os seus bens foram

apropriados por seu antigo diretor. Quem o ajuda é o antigo mordomo que o reconhece,

oferecendo-lhe abrigo seguro.

A trama termina quando João devolve o ganso e a harpa, restaurando o

equilíbrio das plantações na cidade dos gigantes. Tudo volta a florescer. A mãe do João

do passado já pode morrer e o João do presente não está mais sobre o efeito da

maldição.

Terminamos de ver uma obra de ficção que retrata acontecimentos

extraordinários e, por isso mesmo, fantasiosos. Se levarmos para o campo interno,

poderíamos fazer uma interpretação psicológica na natureza humana de João que vive

conflitos existenciais recheados de identificação, projeções e culpabilidade. Falando

psicologicamente, a projeção é um processo inconsciente, autônomo, pelo qual vemos

primeiro nas pessoas, nos desejos e nos acontecimentos às tendências, características,

potencialidades e deficiências que, na verdade, são nossas. Povoamos o mundo exterior

de feiticeiras e princesas, diabos e heróis do drama sepultado em nossas profundezas.

A projeção do nosso mundo interior no exterior não é coisa que fazemos de

propósito. É simplesmente a maneira como funciona a psique. Em realidade, a projeção

acontece de forma tão contínua e inconsciente que costumamos não dar conta de que ela

está acontecendo. No entanto, tais projeções são instrumentos úteis à conquista do

autoconhecimento. Contemplando as imagens que atiramos na realidade exterior, como

reflexos de espelho da realidade interior, conseguimos conhecermos.

Page 117: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

117

Os papéis que desempenhamos no teatro da vida estão revestidos de índices do

inconsciente coletivo chamados por Jung (1990:19) de arquétipos1. Este aborda que

além do consciente e inconsciente pessoal, existiria uma zona ou faixa psíquica onde

estariam as figuras, símbolos e conteúdos arquetípicos de caráter universal,

freqüentemente, expressos em temas mitológicos.

Conquanto a forma específica que as imagens podem assumir variem de cultura

para cultura e de pessoa para pessoa, o seu caráter essencial é universal. Pessoas de

todas as idades e culturas têm sonhado, historiado e cantado acerca da Mãe, do Pai, do

Herói, das Bruxas e Gigantes ou mesmo do Salvador e do Velho Sábio arquetípicos.

Enquanto o inconsciente pessoal consiste de material reprimido e de complexos,

o inconsciente coletivo é composto fundamentalmente de uma tendência para

sensibilizar-se com certas imagens, ou melhor, símbolos que exprimem sentimentos

profundos de apelo universal.

Assim, o inconsciente coletivo é uma faixa intrapsíquica e interpsíquica, repleto

de material representativo com forte carga afetiva comum a toda humanidade. Por

exemplo, a associação do feminino com características maternas de acolhimento e

proteção, que, ao mesmo tempo, em seu lado escuro resulta a estados cruéis. A mãe boa,

por exemplo, é um aspecto do arquétipo do feminino na psique, que pode ter a figura de

uma deusa ou de uma fada. Já da mãe má, pode possuir os traços de uma bruxa ou

aquela que castiga ou abandona seu filho à própria sorte. As figuras em si, mais ou

menos semelhantes em várias culturas, são os arquétipos, como “corpos” que dão forma

aos conteúdos que representam.

João é uma figura humana do cotidiano, vivendo a opressão das exigências

materiais com grande carga emocional que retrata o sentimento de solidão em meio a

uma selva social. Ao mesmo tempo em que está como ator desta massificação social

recolhe-se na fantasia como asseguramento da identidade construída ainda numa época

que o pai seria a referência para a construção dos seus valores. Ocorre aí a identificação.

O arquétipo do pai bom, que ensina, está presente na figura do gigante bom. O bem e o

mau fazem parte da mesma moeda. Na vida diária, João é o gigante mau quando se

recusa, na empresa, a investir tempo e dinheiro em assuntos de ordem social, como 1 Jung aborda amplamente sobre os arquétipos em sua obra AION: estudos sobre o simbolismo do si-

mesmo.

Page 118: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

118

plantar as sementes que iriam permitir alimentar pessoas que passam fome. A

racionalidade leva a praticidade e as decisões são rápidas. No inconsciente, é restaurado

o sentimento de culpa e o gigante bom minimiza a culpa dando lugar para a possível

manifestação de bondade, solidariedade e a ingenuidade, aquela perdida quando foi

forçado a ser adulto.

O pai é a força, o exemplo, o referencial de ordem e segurança. Este protege,

acompanha e orienta o filho amado. Isso é fortemente projetado na cultura; ganhando,

desta forma, a força do símbolo de proteção, disciplina e segurança. É aquele que salva

o filho dos perigos.

A mãe também está, fortemente, representada na vida de João, identificando-se

com a personagem que retorna de sua cidade para avisá-lo dos prejuízos causados

quando o João do passado roubou os tesouros do seu povo.

Novamente, a culpa restaura o ideal de mãe, de mulher que acolhe e permite

uma segunda oportunidade. Ela sempre perdoa, devolvendo-lhe a tranqüilidade e o bem

estar. Em meio a dor de nossos infortúnios, podemos reencontrar a proteção e a

segurança nos braços da nossa mãe. Mas esta ,também, é marcada por sua própria

fragilidade e desencanto.

A este nível do mito, que é provavelmente o que melhor expressa a natureza do

inconsciente coletivo, a mãe é, simultaneamente, velha e jovem (...) e o filho é, ao

mesmo tempo, esposo e criança adormecida de peito num estágio de indescritível

plenitude, com a qual nem de longe se podem escapar as impressões da vida real, os

esforços e as fadigas empregadas no processo de adaptação, bem como o sofrimento

causado pelas inúmeras decepções com a realidade.

Esta projeção tem o valor de trazer o sentido da verdadeira mãe como a imago

materna. Jung (1998, p.11) diz que a projeção só se desfaz quando o filho percebe que

há uma imago tanto da mãe como da filha, da irmã e da amada, da deusa celeste

universalmente presente sem idade, sendo portadoras e geradoras dos reflexos

inerentes à natureza humana. Ao mesmo tempo que é a fidelidade que se deve guardar

em determinado momento da vida, também é a aflição, as decepções, e desenganos. É o

consolo e a sedutora geradora de ilusões em relação a esta existência.

Page 119: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

119

Esta imagem é a anima representando o inconsciente onde quer que se manifeste, não se

tratando de uma substituição da mãe, mas resgatando as qualidades desta figura,

originando-se o arquétipo coletivo que se encarna de novo em cada criança do sexo

masculino, supondo-se também que na mulher há um correlato, animus, significando

razão ou espírito. Para Jung (1998, p.9):

Ele espera ser captado, sugado, velado e tragado. Ele procura, de certo modo, a órbita protetora e nutridora da mãe, a condição de criança de peito, distanciada de qualquer preocupação com a vida e na qual o mundo exterior lhe vem ao encontro e até mesmo lhe impõe sua felicidade. Por isso não é de espantar que o mundo real se lhe retraía (...).

Se dramatizarmos este estado, como o inconsciente em geral o faz, o que vemos

no proscênio psicológico é alguém que vive para trás, procurando a infância e a mãe, e

fugindo do mundo mau e frio que não quer compreendê-lo de modo algum.

A passagem na estória atual de João lida freqüentemente com a questão

temporal. Os anos e os dias se mesclam. O sonho é atemporal. Não é fixo o tempo e

nem o lugar. O ontem e o amanhã são o hoje dentro dos elementos simbólicos

representativos da dimensão psíquica.

Sonhar é uma experiência humana universal. Em sentido fenomenológico, o

sonho é uma experiência da vida que se reconhece, em retrospecto, ter ocorrido na

mente enquanto adormecida, embora no momento em que tenha acontecido contivesse o

mesmo senso de verossimilhança que associamos às experiências da vida vígil; ou seja,

parece acontecer no mundo “real” que só em retrospecto é reconhecido como um

mundo “onírico”.(HALL, 1987: 29).

Remetendo-nos mais uma vez as idéias de Jung, o símbolo nasce da própria

alma, surgindo do próprio conflito psíquico inerente a esta, conjugando em si por um

lado, o arquétipo, não possuindo forma nem norma, configurando o inconsciente, e de

outro, uma imagem concreta, retirada do meio o que ao revestir dá forma ao arquétipo,

dando-lhe também existência, criando-o e diferenciando-o do caos que é sua verdadeira

origem, como se deste modo fosse realizado o próprio ato cosmológico da Criação.

Page 120: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

120

Está reservado a esta imagem simbólica um outro privilégio além do de revestir

o arquétipo. É através desta fixação de imagem que esta energia se converte em

possibilidade de transformação real, posto que mediante esta lhe surge a chance de

adentrar os limites da consciência, de ser por esta digerida e de lançar por fim, como

reflexo do seu objetivo final, uma nova parcela de energia ao EU consciente.

É na solidão, que João reencontra o Ser, momentaneamente traído. Divórcio

entre a vontade de poder, inerente ao homem, e a realidade de uma existência

fundamentalmente humilhada na absurda condição humana de se ver prisioneiro e

solitário. Passar pelo tribunal dos Gigantes é o momento para reconhecer seus próprios

atos, sua ganância e astúcia.

O homem tem medo, medo de ser torturado, medo de se desnudar da sua própria

arrogância. É preciso que sua coragem conheça este momento de fraqueza para que ele

assuma integralmente a condição humana. Tomar consciência que, para salvar a vida, é

preciso perder-se a si mesmo, renegar o que até então fora a sua vontade, construída

com seus atos. O arquétipo dos heróis se caracteriza por uma concepção da vontade que,

desafiando e desprezando a ordem vigente, reserva-se o direito de agir livremente, para

além do bem e do mal.

Na estória João é o herói, mas é também o vilão. Este é o conflito interior versus

exterior. Interior é antes de tudo, a imagem de um mundo protegido, o abrigo seguro

contra o exterior perigoso, o domínio do mal, a guerra. Jung (1998, p.14) nos diz que: A

natureza é conservadora e não se altera facilmente em seus domínios. O animus e a

anima constituem parte de um domínio especial da natureza, que defende sua

inviolabilidade com o máximo de obstinação. Por isso é muito mais difícil

conscientizar-se das próprias projeções do par animus-anima, do que reconhecer seu

lado sombrio. Neste caso, é necessário vencer certas resistências morais como a

vaidade, a cobiça, a presunção, os ressentimentos, etc.

Agora vejamos: a integração do conteúdo (animus e anima) só pode se dá,

quando há correspondência entre o duplo aspecto: afetivo e intelectual. Para Jung, isto é

o mais difícil porque estes se repelem. Segundo o autor (1998, p.13): Todas as vezes

que o animus e a anima se encontram, o animus lança mão da espada de seu poder e a

anima asperge o veneno de suas ilusões e seduções. Mas, o resultado nem sempre será

negativo, pois há também a possibilidade de que os dois se apaixonem um pelo outro.

Page 121: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

121

Os dois aspectos lutam entre si. E quem quiser realizar esta difícil tarefa, terá

que defrontar-se com o animus ou com a anima. Jung diz que este é o pré-requisito

indispensável para se chegar a totalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na verdade, o que dá sentido a nossa condição humana é poder ampliar os

sentidos das coisas. Recuperamos pelo caminho simbólico as lembranças coletivas que

pouco a pouco restauram nossa lembrança particular. Os conteúdos dessas lembranças

dão o significado correspondente àquele que interpreta o material simbólico.

A natureza humana sempre foi um mistério. Este fato sempre foi instigante para

muitos inquietos, que se dedicaram a investigar este mundo desconhecido, dentre os

quais Jung, que, na procura de respostas fora do quadro teórico da ciência moderna,

contrapõe-se ao modelo científico dominante, buscando sustentação teórica na

perspectiva fenomenológica do fato psíquico.

Até onde foi realizado, este estudo mostra muito timidamente uma releitura da

ficção de João e o pé de feijão com um olhar pelo viés da compreensão psicológica.

Outros autores já se debruçaram para tecer suas reflexões em torno desta obra e,

certamente, muitos outros autores continuarão ressignificando este clássico da literatura.

O mais interessante é percebermos que: Só o homem é dotado da capacidade de

compreender, interpretar e traduzir um pensamento em outro pensamento num

movimento ininterrupto. (Santaella: 1999:52).

Page 122: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

122

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlete Caetano, 11ª

ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.

FRANZ, Marie-Louíse Von. Reflexos da Alma: Projeção e recolhimento interior na

psicologia de C. G. Jung. Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo: Cultrix, 1988.

JUNG, C. Gustav. O desenvolvimento da personalidade. Trad. Frei Valdemar do

Amaral. Petrópolis: Vozes, 1998.

________________. AION, estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Rio de janeiro:

Vozes, 1998.

SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1999.

Page 123: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

123

LEITURAS, RESENHAS

&

ENTREVISTAS

Page 124: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

124

BARROS, Manoel de. Exercícios de ser criança; bordados de Antonia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Marilda, Martha e Savia Dumont sobre desenhos de Demósthenes Vargas. Rio de Janeiro: Salamandra,1999.

Manoel de Barros, com sua forma de escrever capaz de envolver tanto grandes como pequenos, reúne, no livro “Exercícios de ser criança”, duas histórias cheias de emoção, criatividade e expressão. As histórias – “O menino que carregava água na peneira” e “A menina avoada” – aparentemente cheias de despropósitos e peraltices de duas crianças, conseguem mexer com nossos sentimentos de maneira tão profunda que nos identificamos com ele e nos vemos tentados a mudar as coisas, a brincar de faz de conta, a gostar do vazio por nos mostrar o infinito e do que não existe por poder começar a existir.

O livro, ilustrado pela magia dos bordados de seis mãos, é gostoso de ser visto, sentido, lido, vivido... tanto pelas ilustrações quanto pelas palavras também bordadas pela magia de Manoel de Barros.

“Exercícios de ser criança” é uma obra recheada por sonhos e brincadeiras infantis capaz de nos levar a um mundo que realmente existe – o imaginário – gestado no nosso cotidiano, no exercício constante de tornar belo cada obstáculo; de fazer brotar flores nas pedras; de ver a beleza que os dias nublados também escondem...

É um livro cuja estética por si só já desperta a curiosidade que é capaz de levar o leitor a carregar água na peneira e a atravessar um rio inventado num constante “Exercício de ser criança”, mas para isso é necessário começar a leitura. Vamos?

Maria Vitória da Silva1

[email protected]

1 Professora Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; Doutora em Educação.

Page 125: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

125

FATOS & FOTOS

Profª. Drª. Maria Afonsina palestrando na UESB. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Ms. Ana Sayonara e Profª. Iana Oliveira palestrando na UESB. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Page 126: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

126

Profª. Drª. Adriana Barbosa palestrando em Ibirataia. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Drª. Elane Nardotto palestrando para alunos da Esc. Mun. Adolpho Ribeiro. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profº. Antônio Jeferson Barreto Xavier lendo Contos Árabes. (Fonte. Acervo Estale 2013).

Profº. Oscimar Novaes lendo O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. (Fonte. Acervo Estale 2013).

Page 127: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

127

Profª. Esp. Gizelen Pinheiro contando história para os alunos. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Aline Santos contando história para os alunos. (Fonte. Acervo ESTALE 2013)

Alunos do Gin. Mun. Drº. Celi de Freitas com as máscaras da fábula O Leão e O Ratinho. (Fonte. Acervo ESTALE

2013).

Profª. Iana Oliveira realizando a leitura de um texto com os alunos. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Page 128: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

128

Profº. Taniela Macedo ministrando a oficina de charges. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profº. Daniela Santos organizando a oficina no Col. Luiz Viana. (Fonte. Acervo Estale 2013).

Profº. Oscimar Novaes contando O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Jeane de Almeida ministrando oficina na ERTE. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Page 129: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

129

Profª. Amanda Cardoso dividindo a turma em equipes para a oficina. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Iana Oliveira dividiu a turma em equipes e realizou a oficina. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Carmem ministrando oficina em Ibirataia. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Lindiana Oliveira ministrou a oficina para uma turminha animada. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Page 130: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

130

Profª. Amanda Cardoso contando a história da caçada da onça. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Amanda ministrando oficina no IFBA- Jequié. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Jeane de Almeida ministrando oficina no IFBA- Jequié. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Profª. Nícia Verena contando história na APAE- Jequié-BA (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Page 131: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

131

Profº.Caio Cesar realizando a oficina na APAE. (Fonte. Acervo Pessoal do ministrante).

Alunos participantes da oficina. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Participantes da oficina assistem ao filme apresentado (Fonte. Acervo ESTALE 2013).

Os alunos participando da oficina na sala de informática. (Fonte. ESTALE 2013).

Page 132: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

132

Profª. Selma Melo contando a história da caçada da onça no Sítio (Fonte. Acervo ESTALE/ 2013).

Geane, Amanda Cardoso, Jeane, Daniele, Antônio Jeferson e Gizelen Pinheiro (Fonte. Acervo ESTALE/ 2012).

Profª. Drª. Maria Afonsina em lançamento de seu livro Mais uma história de três porquinhos (Fonte. Acervo

ESTALE/ 2011).

Profª. Esp. Carla Valéria em Oficina de leitura do Projeto No Reino da Imaginação (Fonte. Acervo ESTALE/ 2012).

Page 133: Revista Estação da Leiturafiles.estacao-da-leitura.webnode.pt/200000489-45804467a1/Revista... · e no ronco do motor, ... capaz de estimular a preguiça e manter na bem -aventurada

133

E a História continua: embarcando sentidos antigos, desembarcando novos significados, a cada estação de leitura...

(Equipe ESTALE/2014)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA

CENTRO DE ESTUDOS DA LEITURA

AVENIDA JOSÉ MOREIRA SOBRINHO S/N

JEQUIEZINHO, JEQUIÉ-BA

CEP: 45.206-190

Programa Estação da Leitura- ESTALE Ensino, Pesquisa e Extensão

Fone: 73. 3528-9646/ FAX: 73. 3525-6683/ 3528-9732 E-mail: [email protected]

www.uesb.br e http://estacao-da-leitura.webnode.pt/