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Programa Estação da Leitura
Ano 1-Nº1- 2017
Revista Estação da Leitura
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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Centro de Estudos da Leitura- CEL
Programa Estação da Leitura- ESTALE Ensino, Pesquisa e Extensão
Fone: 73. 3528-9646/ FAX: 73. 3525-6683/ 3528-9732 E-mail: [email protected]
www.uesb.br e http://estacao-da-leitura.webnode.pt/
Revista
Estação da Leitura
Jequié-BA
2017
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Revista Estação da Leitura
Publicação do Centro de Estudos da Leitura/ Programa Estação da Leitura Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Editoração e Revisão:
Maria Afonsina Ferreira Matos
Davi Carvalho Porto
Maria Vitória da Silva
Carla da Silva Lima
Projeto gráfico:
Davi Carvalho Porto
Fotos:
Arquivo ESTALE
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Editores:
Profª. Drª. Maria Afonsina Ferreira Matos/UESB
Profº. Esp. Davi Carvalho Porto/ HU-UFS/ EBSERH
Profª. Drª. Maria Vitória da Silva/ UESB
Profª. Ms. Carla da Silva Lima/UESB
Conselho Editorial:
Profª. Drª. Eliana Yunes (Puc-RJ)
Profª. Drª. Vera Teixeira Aguiar (Puc- RS)
Profª. Drª. Hilda Lontra (UNB)
Profª. Drª. Maria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)
Profº. Drº. João Luís Cecantini (UNESP)
Profª. Drª. Glória Kirinus (UFPR)
Profª. Drª. Lívia Diana Rocha Magalhães (UESB)
Profº. Drº José Batista de Sales (UFMS)
Escritor Ruy Espinheira Filho
Profº. Drº. Jacques Jules Sonneville (UNEB)
Profº. Drº. José Hélder Pinheiro (UFCG)
Digitação
Paulo Sérgio Lima de Jesus/CEL-UESB
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ISSN 2526-6918
Ano 01, nº 01- 2017
SUMÁRIO
Ficha catalográfica elaborada por Jandira de S. Leal Rangel, Bibliotecária CRB - 5 /1056
R349 Revista Estação da Leitura/Programa Estação da Leitura .- Jequié, UESB – Centro de Estudos da Leitura, 2017.
ano 1, nº 1, il.; (Periódico)
1. Leitura e literatura. Editores e revisores: I. Matos, Maria Afonsina Ferreira II. Porto, Davi Carvalho III. Silva, Maria Vitória da IV. Lima, Carla da Silva V. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia VI. Título.
CDD – 809.89282
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NOTA À PRIMEIRA EDIÇÃO
Caros leitores, o Programa Estação da Leitura/ ESTALE vinculado ao Centro de
Estudos da Leitura/ CEL, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/ UESB,
completou 25 anos de existência em 2016. Para comemorar essa história, iniciada pelas
professoras Maria Afonsina, Diva do Carmo e Ednalva Almeida nos idos de 1991,
organizamos essa publicação que chega as suas mãos, ela é fruto de muito trabalho e
prova de que estamos no caminho certo, ou melhor, nos trilhos certos.
Na revista, você encontrará artigos científicos, relatos de experiência, resenhas e
entrevistas que enfocam a leitura e a literatura, tomando-as como ponto de partida para
discussões e críticas pertinentes. Neste número nascedouro estão textos de
pesquisadores e escritores diversas partes do país, cada qual imprimindo sua marca
identitária nos escritos e convidando-nos às reflexões. Deixamos registrados nossos
agradecimentos aos colaboradores e ao conselho editorial.
Visando delimitar as partes de um todo e adotando uma visão interdisciplinar,
agrupamos os textos em eixos-temáticos: Leitura e Literatura Infanto-Juvenil; Leitura,
escrita e letramento; Leitura e Cultura; Leitura e Filosofia; Leitura, memória,
autobiografias e histórias de vida; Leitura e Análise do Discurso; Leitura e Psicanálise;
Resenhas e Entrevistas.
Esperamos contribuir para discussões sobre a leitura, a formação de leitores, a difusão
do livro e do conhecimento, a educação e humanização do homem em sentido amplo.
Desejamos que a Revista Estação da Leitura seja estação central de encontro dos
amantes da leitura e da literatura, e que a mesma tenha vida longa. Para tal, convidamos
você para iniciar a viagem!
Davi Porto
Janeiro de 2017
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AULA DE LEITURA
Ricardo Azevedo
A leitura é muito mais do que decifrar palavras Quem quiser parar pra ver pode até se surpreender vai ler nas folhas do chão se é outono ou verão; nas ondas soltas do mar se é hora de navegar; e no jeito da pessoa se trabalha ou se é à-toa na cara do lutador, quando está sentindo dor; vai ler na casa de alguém o gosto que o dono tem; e no pêlo do cachorro, se é melhor gritar socorro; e na cinza da fumaça, o tamanho da desgraça; e no tom que sopra o vento, se corre o barco ou se vai lento; e também no calor da fruta, e no cheiro da comida, e no ronco do motor, e nos dentes do cavalo, e na pele da pessoa, e no brilho do sorriso, vai ler nas nuvens no céu, vai ler na palma da mão, vai ler até nas estrelas, e no som do coração. Uma arte que dá medo é a de ler um olhar, pois os olhos tem segredos difíceis de decifrar.
Ricardo Azevedo, escritor, ilustrador, compositor e pesquisador paulista, nascido em 1949, é autor de vários livros para crianças e jovens. Tem, além disso, dado palestras e publicado estudos e artigos a respeito de temas como o discurso popular, literatura e poesia, problemas do uso da literatura na escola, cultura popular, música popular brasileira e questões relativas à ilustração de livros.
http://www.ricardoazevedo.com.br/
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SUMÁRIO
LEITURA & LITERATURA INFANTO-JUVENIL Contar para ler- Eliana Yunes.........................................................................................11 Monteiro Lobato e o Leitor Cidadão: a utopia possível- Maria Teresa Gonçalves Pereira..............................................................................................................................17
Poetando e Proseando- Elias José....................................................................................27
LEITURA, ESCRITA & LETRAMENTO
Ensino-aprendizagem da leitura, interpretação e produção de texto– Uma proposta integrada- Odilon Pinto de Mesquita Filho............................................................................37
(Re) Pensando o papel do lúdico à alfabetização de Jovens e Adultos- Marilete Calegari
Cardoso............................................................................................................................47
LEITURA & CULTURA
Embora uma provocação com os Ecossistemas: O Que é Cultura?- Maria das Graças de Santana Rodrigué...........................................................................................................59
LEITURA & FILOSOFIA
O Amor na mitologia: uma leitura arcaica do mito grego poeticamente acolhido- Dante Augusto Galeffi..............................................................................................................68
Leituras em Memórias de Infância: reflexões a partir das experiências de Sartre e Graciliano Ramos- Luciano Chaves Sampaio................................................................78
LEITURA, MEMÓRIA, AUTOBIOGRAFIAS & HISTÓRIAS DE VIDA
Minha História de Leitura- Diva do Carmo Godim Pires..............................................87
Leituras: fios que tecem a cidadania...- Mônica Neves da Silva Lopes........................97
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LEITURA & ANÁLISE DO DISCURSO
Tá rindo de que?- Rosely Costa Silva Gomes..............................................................105
LEITURA & PSICANÁLISE
Simbologia Psicanalítica de João e o Pé de Feijão- Sandra Suely de Oliveira
Souza............................................................................................................................113
LEITURAS, RESENHAS & ENTREVISTAS Exercícios de Ser Criança. Manoel de Barros. – Maria Vitória da Silva.....................124
FATOS & FOTOS.....................................................................................................125
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LEITURA &
LITERATURA INFANTO-JUVENIL
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CONTAR PARA LER
Eliana Yunes1 Para Ernesto Rodríguez
Em memória do encanto de ouvi-lo contar os medievais.
Há duas décadas atrás, a prática de contar e ouvir histórias era algo rememorável
das experiências da infância, registrada em nossos melhores autores. Carlos Drummond
de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Monteiro Lobato entre outros. Ou
reminiscência doméstica dos que tiveram a sadia “promiscuidade” de conviver com
diferentes estratos sócio-culturais e geracionais nas famílias então mais numerosas com
agregados, em cidades pequenas onde “causos” vividos, logo se transformavam em
histórias que eram as notícias do lugar. Com raras exceções, contar histórias era tarefa
materna para embalar o sono dos infantes ou coisa de aventureiros no relato de suas
proezas. O excepcional Graciliano Ramos deixou em dois livros, (não por acaso
tomados como menores, mas por efeito daquilo mesmo de que se ocupavam) a força
desta tradição: Histórias da Velha Totonha e Alexandre e outros heróis tratam destas
diferentes linhagens da contação. No primeiro está a tradição oral portuguesa mesclada
a dos índios e negros numa síntese curiosa e inteligente; no último, as verdadeiras
mentiras (ficções) de uma personagem tratando das ocorrências extraordinárias em sua
ordinária vida sertaneja.
Com o advento de programas mais substantivos, articulados e conseqüentes, ao
menos teoricamente, discutindo estratégias de promoção da leitura e (hoje se vê), não
apenas em países periféricos e carentes de alfabetização, a narração oral de textos
autorais e da herança popular tornou-se, pouco a pouco, uma prática sedutora e
fascinante, capaz de reunir um público heterogêneo em idade e interesses para,
simplesmente ouvir histórias, retomando o contato com a tradição da palavra. O fascínio
que a narrativa exerce sobre o homem, nunca dependem em verdade dos suportes,
como registra Paul Zumthor: antes dos rolos e da escrita, a oralidade oferecem ao
ocidente suas mais fundantes narrativas, guardadas na memória por excelência, o
coração. 1 Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Doutora em Letras.
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No entanto, por ignorar tanto a história da literatura em suas fontes, quanto os
estudos contemporâneos de história oral, mas, sobretudo contrariando as mais
contundentes experiências sobre a iniciação e fomento da escrita, há os que vem
ingenuamente propondo que não se conte senão diante de um livro aberto para que não
ocorra a desvalorização do objeto-suporte da almejada alfabetização.
Mais que isto, a contação tem sido apontada como um retrocesso, um atraso
capaz de estimular a preguiça e manter na bem-aventurada comodidade os que mais
necessitam esgrimir as letras. É bom lembrar que aprender a escrita ou mesmo a leitura
não é um problema de letras, nem de palavras ou frases, é uma questão de
entendimento, de sentido, que se sobrepõe à decifração do código.
Os ingênuos defensores desta tese não percebem que contradizem na prática, a
experiência conformada de que alfabetização não é letramento e que decifrar palavras
não corresponde a construir sentidos.
Dominar o código é sim algo importante e que ocorrerá, sim pela reiteração da
leitura textual, mas ela só se dará sem traumas e repulsas quando o iniciado nas letras já
tiver sido iniciado – e seduzido – pelo mistério da linguagem, traduzido melhor que
nunca pela narratividade do contar.
Este porém, não é o espaço para discutir este ponto, embora seja imprescindível
assinalar o comum equívoco de se supor que a leitura é uma consequência da escrita e
que, portanto, dela decorre .
Tentemos antes, compreender o que seja a oralidade, suas modalidades e
diversidade de funções ao longo dos tempos. Foi com o recurso da oralidade que os
homens começaram a fazer história e não apenas quando da extraordinária revolução
que na Grécia inventou o alfabeto de uma vez por todas. O que nos aparece registrado
nas epopéias e tragédias, com assinatura autoral e certamente, arranjo genial de seus
compiladores, circulava há muito de boca em boca nos relatos populares. Isto é
vivenciados pelo povo, no horizonte de celebrações que não podiam ignorar.
E mais: não se tratava de uma oralidade comum e corrente, da que usavam e
usamos para nos comunicarmos em situações ordinárias de vida diária. Havia uma
oralidade secundária, viva até hoje, nos ditados, nos trava-línguas, nas adivinhações, nas
rezas e celebrações que se impunham quase rituais, por trazerem o “espírito” daquilo
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que invocavam ou rememoravam. Isto lhes permitia não confundir as oralidades, a
visual e a ritual nem esquecer as “fórmulas”: era justamente a forma, ou seja, as marcas
específicas de ritmo, ressonância, as imagens e figuras que recordavam a experiência, o
vivido. Esta oralidade era guardada no coração, de modo que a sabiam “de cor”.
A doação do alfabeto, como instrumento da escrita e preservação das memórias,
aparece narrada por Platão no Fedro e sublinha a faca de dois gumes deste poderoso
artefato. A um só tempo, veneno e cura para a memória e o esquecimento, a escrita
distanciou o homens da experiência, não apenas dos sentidos, mas da vivência e criou
pela lógica das proposições e ordenação sintagmática dos discursos, um modo de pensar
racional que, lentamente, desqualificou o que não fosse dedutível pelo próprio discurso.
A experiência do poiético, do místico, do afetivo foram, ao longo dos últimos séculos,
cartesianamente dispensados por serem improváveis, irrepetíveis sem generalizações
confortáveis.
Recapitulando: há diferentes oralidades desde a gênese da escrita que
subsistiram a ela nossa conversa jogada fora e a poesia da música popular, como a dos
antigos menestréis, são suas variantes contemporâneas. Não há pois, razão para temer as
oralidades como um retrocesso porque ela é uma realidade que não desapareceu com a
escrita, nem apenas a antecedeu. Por outro lado, seria também providencial recordar que
o livro é apenas o mais fascinante e prático dos suportes da escrita e que uma rede de
computadores que nos permite um acesso quase ilimitado à informação escrita, não
precisa ser temido como um inimigo da leitura. Seria no mínimo hilário, daqui ou uma
dezena de anos, imaginar-se alguém contando histórias (porque a prática, vem substituir
enquanto formos homens) vem tirar os olhos de um computador de pulso onde fosse
lendo o contasse.
Igualmente será necessário recordar que a oralidade pós-escrita foi
decisivamente influenciada por seus estamentos e que, hoje nos incomoda uma
oralidade primária que não se organize de modo lógico e encadeado, dispensando os
conectivos fáticos, tais como e, de repente, aí, então, sabe?...
A correção deste problema vem com naturalidade, a medida que a familiaridade
com a leitura aproxima as estruturas do “bem-dizer” da fluência oral do falante. Isto
significa, em outras palavras que, quanto mais ele ouvir textos bem escritos, melhor será
seu repertório lingüístico tal como a qualidade do desempenho de falantes nativos em
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torno de um infante, determinará a qualidade de seu aprendizado da língua oral. Seu
verbal, falando, terá resistências cada vez menores à escrita e a leitura. Se estivéssemos
lendo Conan Doyle, nós o ouviríamos completar: “Elementar, meu caro Watson”...
Além destes argumentos bastante acessíveis à lógica de quem pesquisa, e não
apenas age de forma opiniática podemos recorrer ao próprio contexto atual para
justificar a retomada calorosa da audição de histórias. No momento em que a
velocidade das informações parece tecnologicamente cada vez mais, importante, às
vezes em detrimento até de sua qualidade, passa a ser uma arma poderosa em favor da
disseminação da literatura e uma provocação com gosto de “quero-mais”, a contação de
histórias tal como se oferece de imediato à fruição do público. Quem não parece ter
tempo para abrir um livro durante uma hora, senta-se para ouvir contos autorais durante
horas a fio, criando intimidades com imagens e sonoridades.
Ainda que as transposições cinematográficas nem sempre sejam das melhores,
nunca se ouviu dizer que o cinema devesse ser interditado pelo fato de colaborar com a
preguiça de ler. Ao contrário, muitas editoras tem usado vídeos para contar a história
do livro e histórias que elas mesmas editaram em papel são acompanhadas de uma
edição em multimídia.
Por que então, o esforço inútil de combater o que é apenas uma estratégia das
mais ricas e baratas para levar o ouvinte a amar a literatura, a reconhecer que é capaz,
sim, de entender o que escrevem estes “gênios”, a desejar dispor do texto na hora que
quiser, sem depender do contador buscando sua referência? Há algo estranho no reino
da Dinamarca, como disse Shakespeare, em Hamlet.
Se desejamos democratizar o acesso ao livro, não basta baixar os preços (embora
isto seja absolutamente necessário) mas é preciso tornar acessível a própria linguagem,
isto é, fazê-la familiar ao potencial leitor. Não, nada de adaptar, simplificar, reduzir,
adulterar facilitar – o texto, mas torná-lo legível pela audição. O contador faz a
história viva, como nos velhos tempos, agora na condição de narrador oral que,
conforme Benjamim, já não pode falar do que testemunha, mas procura falar do que tem
experiência pela linguagem.
É bom ainda possível lembrar que, no seu trabalho profissional, o contador de
histórias é um divulgador da obra de muitos autores e das próprias editoras, uma vez
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que não se deve fazer narração sem o anúncio das fontes. Abre-se pois, a possibilidade
de circulação de autores pouco conhecidos, obras mais raras, textos abandonados e
visões culturais sui-generis que merecem ser apresentadas como modos de pensar, ser
e agir de outros povos, tempos e culturas.
É interessante notar que, em lançamentos sobretudo de poesia, quando os recitais
são freqüentes, não costuma ser invocada qualquer relutância ao proclamador dos
versos, nem se exige dele que declame com o livro aberto diante dos olhos. E não foi
assim com as tragédias, tanto clássicas quanto renascentistas, de Sófocles a
Shakespeare, escritas e encenadas sem nenhum prejuízo de seu consumo como leitura?
Afinal, desaparecido o último livro, ainda assim os homens poderão narrar suas
vivências do mundo. No creo en las brujas, pero... A resistência à queima dos livros das
ideias é justamente a de memorizá-los inteiros, tornando cada homem um livro vivo.
Vale um registro de que o contador de histórias da tradição tinha um papel social
ora mais reservado, ora mais sagrado, confundindo-se sua figura com a de veiculador de
verdades e portanto, com força para pronunciar moralidades, costumes, princípios,
porta-voz de memórias e ideologias, mesmo em comunidades que já não eram ágrafas.
Contemporaneamente, estas funções se alteraram face aos novos suportes para a escrita
que despontaram com Gutemberg e ainda não se esgotaram. Nem por isso a oralidade
deve ser apagada – que tal lembrar Farhenheit 451 (François Truffaut, 1996)? – Ou os
contadores serão agora considerados os inimigos públicos da alfabetização? Parece
pouco inteligente e razoável agir grosseiramente contra a narração oral como certos
grupos que acreditam na linearidade e progresso dos tempos visão que, já no séc. XIX,
as contradições entre marxistas deixaram entreler. Com Nietzche e Freud esta ideia da
substituição dos saberes já fora denunciada.
A propósito, os milhares ou milhões de analfabetos funcionais ou alfabetizados
secundários que passaram pela escola de livro na mão, por que não teriam tomado o
gosto de ler? Por que o gosto de ler não passa pelo tato com o livro, de visão do
impresso, mas pelo contato amoroso e prazeroso do ouvir, olhos nos olhos, hálito como
alento? Coisa que as mães, amas e avós souberam fazer às noites, ao pé da cama, ou os
peregrinos, ao pé do fogo, para criar laços e simpatias, entre eles mesmos e para com os
outros rememorados! Assim as narrativas sobreviveram para serem escritas. E
recontadas. Veja-se que o apogeu da relação escrita e visão na tela do computador não
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abdicou que encontrar tecnologia que permuta ver/ouvir um contador sem que o texto
monotonamente se reproduza na tela! Que diremos aos surdos? Que a linguagem gestual
é um atraso em seu aprendizado da língua oral? O que ele deve ser bilíngue, leitor de
múltiplas linguagens?
Por fim, um esclarecimento supérfluo para os de bom-senso: contar é só hoje
uma estratégia de sensibilização para começar a sedução para o relato, esteja ele sobre
que suporte estiver, inclusive o da escrita. A leitura que pré-existe à escrita – lembremos
que só há escrita quando já houve leitura- é um modo de colher o que há, o que
interessa, o que necessita o apanhador no campo do mundo... a leitura é condição para a
escrita.
Bem sabemos, no entanto, que envenenados pelo esquecimento, muitas vezes, só
entendendo as letras, entenderemos o mundo que nelas foi cifrado: a escrita tem seus
segredos. Às vezes, só ao pronunciá-las, ficamos curados do feitiço, da paralisia que
causa não ter vivido o que está escrito. A lei só foi dada como registro do que já era
costume: se o costume é vivo, a lei não é necessária. Ele se transforma e à lei, sendo o
homem sua medida – isto que está nas escrituras sagradas, vale para as profanas!
Por fim cá entre nós, do Gênesis às histórias dos mil e um milênios, a Palavra é
em si mesma, o que se pronuncia para criar realidade humana: Deus não escreveu Faça-
se a luz, mas disse e fez. Que mal haveria em dizermos contos escritos, além de realizá-
los aos olhos (e ouvidos) dos outros?
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MONTEIRO LOBATO E O LEITOR CIDADÃO:
A UTOPIA POSSÍVEL
Maria Teresa Gonçalves Pereira1
Devemos escrever para crianças do mesmo jeito que escrevemos para os adultos. Só que melhor.
(Maximo Gorki)
Monteiro Lobato, considerado por vários críticos como um homem à frente de
seu tempo, acreditava na educação para resolver os problemas sócio-político-
econômicos do país. O espírito polêmico e individualista é passado reiteradamente para
o leitor em suas obras destinadas às crianças e aos adultos. Tal polêmica não se sustenta
somente na realidade que o rodeava, mas na posição sistematicamente contrária que
assumia, nas soluções que propunha e na reformulação das próprias ideias, exercendo
sempre elevado senso crítico. Em suas múltiplas atividades – promotor, fazendeiro,
político, editor, escritor – lutou pela modernização do país contra a máscara ufanista da
riqueza e do desenvolvimento.
A consciência nacionalista, alcançada pelo viés da educação, pressupunha que
não bastava só saber, era necessário fazer, realizar, pôr em prática. A ideia de que cada
um deve mudar para mudar a massa, assim como a preocupação constante de incentivar
no indivíduo a liberdade de pensamento e ação inserem-se na linha de frente do
pensamento lobatiano.
É na criança que Monteiro Lobato (1955, T2, 292, 293) aposta:
“Ando com ideias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé do Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar.”
1 Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ; Doutora em Letras.
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Conta com elas para as possibilidades de mudança, colocando-as como agente
principal do seu projeto de vida, harmonizando-as com o mundo através de suas
potencialidades e energias.
Apesar de todas as dificuldades, Monteiro Lobato viabilizou a circulação do
texto literário entre nós, trazendo para primeiro plano as condições de produção,
circulação e consumo num processo de modernização em termos da indústria editorial.
É singular a sua inserção na história da literatura brasileira nos papéis de escritor e
editor, atuando em ambos os lados dessa questão cultural: a produção e a recepção.
A sua obra literária – a infantil e a adulta – confirma a importância de que se
reveste para Lobato o ato da leitura e, por extensão, o objeto livro. Dona Benta recebe
livros pelo correio e os lê com os netos, Alice conversa em português porque já foi
“traduzida”, os moradores de Oblívion manuseiam os três livros da cidadezinha, os
narradores dos contos lembram-se de leituras em suas histórias, só para citar alguns
exemplos.
Na passagem do século, a literatura infantil brasileira não se impunha por sua
criatividade – os textos nada mais eram do que traduções ou versões da literatura
europeia da época. Aqueles considerados originais apresentavam uma visão
conservadora da infância, com personagens-modelos e padrões rígidos de
comportamento.
Sendo literatura infantil brasileira como formação histórica moderna, torna-se
significativo, então, o fato de Lobato ter-se nela distinguido. Essa literatura, ao surgir
em 1921 – A Menina do Narizinho Arrebitado depois Reinações de Narizinho – aponta
para a maturidade da formação burguesa de certas faixas da população estratificada em
diferentes leitores. O sucesso do escritor reforça sua afinidade com o mundo da época.
Além de todos os notórios sinais da modernidade de Lobato, há uma série de
procedimentos literários reconhecidos como modernistas e de vanguarda pela crítica a
partir de 1922.
Começaríamos por destacar a oralidade da narrativa – uma maneira de criticar
violentamente o rigor acadêmico de velhas fórmulas, os modelos importados – dentro
de ambiente popular, dando margem ao aparecimento de um trabalho inovador com a
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linguagem, tanto reproduzindo quando criando, rompendo com o convencional, da
sintaxe ao léxico.
Focalizando apenas sua obra infantil, podemos dizer que o sítio de Dona Benta,
microcosmo do Brasil, retoma e transfigura Itaoca, das Cidades Mortas. As aventuras
transitam entre O Sítio e outros espaços (a Grécia Antiga, os contos europeus das
fadas), lembrando o recurso da colagem; a mudança dos personagens dos contos da
Carochinha para o Sítio, o ribeirão que o corta abrigar o Reino-das-Águas-Claras e ser o
ponto de partida para uma viagem ao céu deixam o Sítio, segundo Marisa Lajolo
(1982), parecido com o sertão de Guimarães Rosa, o mundo. Para ela também o modus
operandi de Macunaíma já se delineia na ruptura dos limites geográficos, no tempo
inesgotável, no recurso do pirlimpimpim e no jogo do faz-de-conta.
O senso crítico lobatiano é presença forte, afinando-se com outros projetos de
vanguarda. A própria retomada da tradição literária europeia se faz, pelo viés da
recriação, no seu olhar nacional singularíssimo, carregado de interações ao avaliar o
contexto tradicional.
A síntese perfeita da liberdade de pensamento e ação que suas histórias
defendiam está na “boneca” Emília ou na “evolução gental”, como ela mesma se
definia. É o pensamento mais importante para se compreender o universo lobatiano, já
que vive em tensão dialética com os outros. Representa a ambiguidade do homem com
suas características positivas, as realizações, as preocupações sociais, a crítica franca, a
curiosidade e a sua tendência ao despotismo (exploração do Visconde), a tentativa de
domínio, a exacerbação da individualidade. Emília, acima de qualquer julgamento, é
ousada, perseverante, franca. Não só tem ideias, executa-as, cria condições para que o
saber e o fazer caminhem sempre juntos.
A historiografia contemporânea privilegiou a corrente modernista em detrimento
das outras que a antecederam, minimizando Lobato. Já é tempo, pois, de resgatar sua
importância, não só como festejado escritor infantil. Torna-se fundamental destacar seu
engajamento político e a atuação nos mais diversos campos, objetivando solucionar os
graves problemas do país. Desde 1914 – bem antes da Semana de 22 – Lobato tentava
resgatar nossas raízes nos mais variados campos do saber e da criação artístico-literária.
Para o crítico Wilson Martins, deveria ter sido o líder natural do movimento modernista,
já que pregava e praticava um projeto de modernização do país que transcendia as
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letras. Só ao longo do tempo, como a descoberta de outras fontes e novas pesquisas,
fatos considerados verdades absolutas, puderam ser revistos, desfazendo certos mitos
como as relações de Lobato com o movimento modernista.
Deve-se celebrá-lo pela sua preocupação com a renovação da literatura no
sentido do encontro com o autêntico da realidade brasileira com a linguagem brasileira.
Estudos recentes derrubam a tese do rompimento radical de Lobato com os
modernistas. Basta ver o seu diálogo com Oswald de Andrade e Sérgio Milliet na
década de 20, embora o último tenha amargado seu discurso sobre o autor de Urupês
nos anos seguintes. É curioso também o fato de que, em 1922, Lobato, o mais
importante editor brasileiro na época, colocava no mercado livros de autores
modernistas com capas de Anita Malfati, justamente o motivo do polêmico gerado a
partir da crítica à exposição da pintora em 1917, que redundou em tantos
desdobramentos. Sem entrar no mérito da questão, pois não é esse o nosso objetivo,
cabe ressaltar que Lobato não era adepto de nenhum “ismo” importado: futurismo,
cubismo, dadaísmo, etc. nem das experimentações herméticas, na língua escrita ou nas
artes plásticas. Acreditava com convicção que o país não podia pensar em francês e
escrever na língua portuguesa de Portugal. Sempre foi um brasileiro informado,
tentando compreender, através de sua personalidade polivalente e inquieta, a realidade
para modificá-la. E, sem dúvida, em sua trajetória, a independência foi marca muito
forte.
Dentro do comprometimento com as coisas do seu país, o fato é que a maioria
dos problemas que Lobato denunciava e tentava mudar, continuam os mesmos nos dias
de hoje – às vezes até maiores. Na área da saúde (Problema Vital, 1918), na distribuição
da terra na reforma agrária (Zé Brasil, 1947), na socialização da cultura, na ética da
política, na justiça social, muito pouco ou nada se avançou, considerando fatores
diversos. Constatamos, então, que suas preocupações permanecem atualíssimas. A
figura – e o que simboliza – do jeca Tatu, que tanto mal faz à terra, infelizmente, ainda é
uma triste e cruel realidade.
Cassiano Nunes em artigo da Folha de São de Paulo (1998), num suplemento
especial dedicado a homenagear Lobato pelo cinquentenário de sua morte, ressalta ele
ter sido:
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“o primeiro autor brasileiro a tratar as crianças como seres pensantes, capazes de ponderar sobre assuntos “sérios” e juízos contraditórios a fim de formar convicção própria, se não houvesse sido, antes, simplesmente o primeiro escritor que se dedicou a elas. Bastariam essas razões para que lhe fosse confirmado o epíteto de clássico, num país onde eles não são frequentes a ponto de se dispersarem com um “piparote” – como ele próprio diria.”
Monteiro Lobato busca uma renovação constante nas possibilidades inúmeras
que a língua nos oferece, dinamizando-a, explorando-lhe ao máximo as potencialidades,
as suas diversas realizações, não se prendendo ao convencional, mesmo quando dele
precisa para reavaliá-lo, reaproveitá-lo ou partir para novas propostas. Passa a ideia de
que a língua não é rígida, se prestando a diferentes usos que dependem de contexto e
posição.
A maioria dos experimentos linguísticos se realiza através do personagem
Emília. O estatuto da boneca lhe confere liberdade de atitudes e de “falações”. Tudo lhe
é permitido, gerando uma prática, eminentemente lúdica, no trato com a palavra.
Subverte a ordem estabelecida, a regra, instaurando próprias regras. A sua visão da
linguagem é prática, funcional. Ela está a seu serviço:
“– A gramática, minha filha, é uma criada da língua e não uma dona. O dono da língua somos nós, o povo – e a gramática o que tem a fazer é, humildemente, ir registrando o nosso modo de falar. Quem manda é o uso geral e não a gramática. Se todos nós começarmos a usar o tu e o você misturados, a gramática só tem uma coisa a fazer...”
“- Eu sei o que ela tem a fazer, vovó! – gritou Pedrinho. É pôr o rabo entre as pernas e murchar as orelhas...” (Fábulas, 48).
A entrada da Emília no mundo das palavras é curiosa. A célebre “torneirinha de
asneiras” se abre por efeito das pílulas falantes do Doutor Caramujo ou Doutor Cara-de-
Coruja, no dizer da boneca, quando sua fala ainda não estava bem regulada. Durante
todas as narrativas lobatianas, essa característica será uma constante – a da manipulação
– das palavras e, consequentemente, das ideias, usando para isso, vários caminhos ou
recursos, conforme o caso.
Emília forja tal comportamento lingüístico, esse à vontade em que transita com
desenvoltura e naturalidade entre o estabelecido e o diferente, instaurando nova e
instigante ordem. Através da Emília, Monteiro Lobato cria, mas não no sentido ao qual
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estamos habituados, de inovar por inovar. Regem-no o bom senso, a visão do gênio para
ousar, sem que as aparentes transgressões violentem as estruturas linguísticas.
Há passagens deliciosas em que Emília explora o trocadilho, o jogo com as
palavras:
“Também você Bruto!” – e caiu atravessado pelos punhais assassinos.
Nesse ponto Emília deu uma piadinha:
- Acho que a morte de César foi uma brutalidade...” (Hércules I, 153)
“Depois dividiram o quilo em mil partes iguais, e cada parte ficou sendo um grama.
- E os vendeiros têm agora de gramar ali no peso certo, não é assim?
- Nossa Senhora! – exclamou Dona Benta. Até trocadilho esta diabinha já faz... (Aritmética, 153)
O aproveitamento da etimologia popular com base na analogia dá ensejo AP
aparecimento de situações lingüísticas como:
“Um letreiro amarelo em língua sueca e a palavra Jonkoping embaixo. O povo dizia que eram fósforos do João dos Copinhos...” (Invenções, 47)
A significação das palavras é dada através de sua própria camada fônica:
“- Com certeza vocês sabem o que é Vesúvio...
- Sei! ... gritou Emília que acabara de entrar na cozinha onde estivera atropelando Tia Nastácia. Vesúvio quer dizer: tu vês, mas o u já viu.” (História, 116)
A derivação e a composição aparecem nos textos de Lobato sob ótica
inspiradíssima, já que faz combinações desusadas com grande efeito expressivo, numa
engenhosa atividade criadora:
“... a história do Pégaso, do Bucéfalo, do cavalo de Tróia e outras “cavalências” célebres.” (Reinações, 208)
“Será possível? – exclamou Pedrinho.
Emília não tirava os olhos do binóculo.
- Bis-possível! – murmurou.” (Picapau, 171)
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“Vocês façam esses “pratos-bonitezas” que eu faço os meus “pratos-gostosuras”.” (Picapau, 161)
“Pronto que foi o borboletograma, surgiu uma dificuldade. A quem endereçá-lo.” (Reinações, 59)
Monteiro Lobato redefine certos fatos, objetos, comportamentos através de
traços mais poéticos, mais exóticos, mas com total logicidade nos princípios que lhes
norteiam o aparecimento:
“Sei – disse Emília. Essas árvores são as vacas vegetais do Amazonas. Os tais seringueiros tiram-lhe o leite e fazem coalhada; depois da coalhada fazem requeijão – que é a borracha. (Gramática, 34)
“Nós, gramáticos, usamos um nome feio para designar tais substantivos – Epicenos.”
“- Isso não é designar, é xingar! – disse Emília.” (Gramática, 34)
As criações vocabulares se efetivam pela necessidade de nomear o fato
linguístico, não importando se o referente é novo. É fundamental tal criação ser
adequada ao espírito lobatiano, ao contexto em que se insere:
“Não perdem tempo em enfeitar palavras com bolostroquinhas dispensáveis.” (Gramática 157)
“Porque o Visconde diz que os animais do “naipe” dos ratos já nascem sabendo o que é gato.” (Fábulas, 110)
Publicada em 1934, Emília no País da Gramática leva o pessoal do Sítio a
visitar os conceitos gramaticais. Lobato aproveita para criticar, de forma contundente, a
ortodoxia gramatical com toda rigidez e apego excessivo ao passado. Faz um libelo
apaixonado – que perpassa todas as suas obras – a favor de uma língua viva, funcional e
criativa com os usuários manipulando-a de acordo com as suas necessidades, sem
traumas e limitações.
A questão do ensino da língua, desprovido de criatividade e reflexão críticas,
merecia de Lobato sérias restrições. Pedrinho é seu porta-voz:
“Se meu professor ensinasse como a senhora, a tal gramática até virava brincadeira. Mas o homem obriga a gente a decorar uma porção de definições que ninguém entende. Ditongos, fonemas, gerúndio...” (p.7)
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Certas regras vigentes são contestadas. À recomendação de se usarem aspas nas
palavras estrangeiras, cabe o comentário de Narizinho:
“Acho odioso isso. Assim como num país entram livremente homens de todas as raças – italianos, franceses, ingleses, russos, polacos, assim também devia ser com as palavras. Eu se fosse ditadora, abria as portas da nossa língua a todas as palavras que quisessem entrar – e não exigiria que as coitadinhas de fora andassem marcadas com os tais grifos e as tais aspas.” (p. 23)
Monteiro Lobato encontra um jeito especialíssimo para “ensinar” a noção
gramatical:
“As frases formam-se para exprimir o pensamento dos homens, e a boa ordem das palavras na frase ajuda a expressão do pensamento... A senhora tem toda razão – concordou a boneca. Lá no sítio de Dona Benta o Substantivo Nastácia também gosta de dar ordem a tudo, porque a ordem facilita a vida, diz ela.” (p. 122)
Nesta obra, Lobato ratifica sua própria postura crítica em relação á realidade
objetiva, instaurando-a por meio da linguagem e com seu inestimável auxílio. Tal fato o
coloca ao lado dos modernistas da década de 20. Mesmo que Emília no País da
Gramática date de 1934, as mudanças propostas já vinham de 1918, quatro anos antes
da Semana de Arte Moderna.
Ainda não se falou tudo a respeito de Monteiro Lobato. Sua obra adulta, por
exemplo, merece mais vozes, não simplesmente “ecos”. Silviano Santiago no já citado
suplemento da Folha de São Paulo faz, em boa hora, uma análise dessa literatura,
comentada, dentre outros assuntos, a obsessão do escritor pela ideia de decadência, a
confiança no progresso e o horror à estilização em obras como Urupês e Cidades
Mortas. A própria literatura infantil deveria ser mais valorizada. Ainda não se
desvelaram completamente as múltiplas facetas do escritor.
José Roberto Whitaker Penteado, autor de Os filhos de Lobato (1997), afirma
que o escritor não fez proselitismo ideológico. Sua maior importância e sua vitória
foram contribuir, com inteligência e emoção, para o permanente processo de
individualização de cada leitor, saindo “da morada de seus livros diretamente ao
encontro de nós mesmos.”
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Os estudos existentes sobre Lobato, em sua maioria, abordam aspectos relativos
à produção: questões biográficas, ideológicas, estéticas, linguísticas. Há teses, artigos,
livros que enfocam tal vertente. Penteado tem o grande mérito, aliás, de trilhar outro
caminho, voltando-se para o eixo da recepção da obra lobatiana. O trabalho é
interdisciplinar, explorando não só o literário, como o social, o psicológico, o
econômico.
É bastante original na conclusiva constatação, depois de exaustiva pesquisa, de
que uma geração de homens e mulheres bem-sucedidas leu Monteiro Lobato.
Banqueiros, economistas, juízes, engenheiros, médicos, professores tornaram-se
melhores e mais criativos profissionais após frequentarem assiduamente O Sítio do
Picapau Amarelo.
Incluímo-nos, com orgulho assumido, na relação acima, ratificando a admiração
pelo genial criador que povoou de beleza e encantamento a nossa infância, atualmente
servindo-nos do pirlimpimpim na justa medida à nossa realidade pessoal e profissional,
no ato fundamental de transformar o saber em fazer com sabor e arte.
Muito se fala a respeito da importância de Monteiro Lobato na formação de
gerações de leitores brasileiros. Isso se materializou de diferentes maneiras para cada
um que leu Lobato. Magia, encantamento, liberdade, curiosidade, emancipação,
autonomia, criatividade, perspicácia, crítica. A concepção lobatiana de leitura integra
essas e tantas outras questões.
O Sítio é um espaço real para todos nós, leitores, uma vez que incorporamos tão
concretamente a “alma” de um lugar abstrato, produto da imaginação e do gênio de um
homem que acreditava verdadeiramente no poder da ação para modificar o destino.
As palavras de Edgar Carvalho, no prefácio de A Barca de Gleyre, a reunião das
cartas de Lobato para Godofredo Rangel, são conclusivas:
“Que os moços procurem nestas cartas o caminho percorrido pelo mestre, não para imitá-lo ou submeter-se passivamente ao seu modo de ver e de sentir as coisas, mas sim como ponto de partida para outras aquisições e outros feitos. Procurem, não só a lição do conteur, mas do mestre da vida, daquele que já no fim da carreira podia escrever ao amigo: ‘Tenho sido tudo e creio que minha verdadeira vocação é procurar o que valha a pena ser’. Insatisfação, inquietude, inconformismo...
Ai dos satisfeitos, dos suficientes, dos conformados!...” (1955, p.13)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Vera Teixeira de (org). Atualidade de Monteiro Lobato: uma revisão crítica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
AZEVEDO, Carmen Lucia de et al. Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo: Senac, 1997.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 5. Ed. Revista. 1991.
FOLHA DE SÃO PAULO. Caderno Mais!, 28/06/1998.
LAJOLO, Marisa. A modernidade em Monteiro Lobato. In: Letras de Hoje. PUC/RS, nº 49, set. 1980.
LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre. Tomo 1º e tomo 2º. 6ª ed. São Paulo. Brasiliense, 1955.
LOBATO, Monteiro. Emília no país da gramática. São Paulo: Brasiliense, 1958.
PENTEADO, José Roberto Whitaker. Os filhos de lobato: o imaginário infantil na ideologia do adulto. Qualitymark/ Dunya, 1997.
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. Processos expressivos na literatura infantil de Monteiro Lobato. Dissertação de Mestrado. PUC/ RJ, 1980.
PROLEITURA. Meio século sem Lobato. Ano 5, nº 18, UNESP, fev. 98.
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POETANDO E PROSEANDO
Elias José1
A CONTADORA DE HISTÓRIA
A tarde estava cinza,
chata, dura e amarga.
Aí chegou tia Danusa,
a contadora de histórias.
Magra, pequena e feinha.
De cara, ninguém deu bola.
Mas aí tia Danusa abriu a boca
e soltou um largo “boa-tarde”.
Jogou os braços como asas
e fez mil caras e mil falas
e cantos de gente e bichos.
E o sol foi se abrindo
e as nossas asas crescendo
e uma magia pairou no ar.
O sol e a doçura eram tia Danusa!
Com as histórias e a contadora,
crianças e adultos viajavam.
Todos ganhavam longos braços
e acariciavam nuvens e arco-íris.
1 Escritor, professor e poeta.
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Todos se transformaram
em fadas, feiticeiros, bruxas, feras,
príncipes, princesas e sapos.
E ninguém tinha visto antes mulher
maior e mais bela do que tia Danusa.
E ninguém dava bola pro mundo
fora das suas histórias.
Elias José – A família Belas Artes
Era uma vez... Nas noites dos tempos, sem que possamos dizer primeiro onde
nem quando, o homem nasceu cantando ou contando.
De repente, o homem primitivo prestou atenção nos sons do mundo. Ouviu os
pássaros cantarem com suavidade e de forma variada. Gostou dos muitos ritmos
marcando o movimento das águas dos rios e mares. Achou que o vento fazia um som
bonito e diferenciado ao movimentar toda a natureza. Percebeu que podia, com o seu
corpo, imitar os sons que ouvia. Mais que tudo, começou a observar a beleza dos sons
que soltava e que os outros homens soltavam. E havia o ritmo do choro e do riso, os
barulhos das criancinhas e dos casais fazendo amor. As primeiras onomatopeias e
repetições vinham plenas de musicalidade, portanto de poesia.
Aí o homem se aventurou a caminho do conhecer, tocar, modificar o mundo que
o cercava. E voltava para o seu agrupamento todo prosa, querendo contar acrescentando
pontos a cada ação que fez ou viu os outros fazerem. Contar e acrescentar eram formas
de enriquecer o visto, enriqueciam o seu cantar. E começou a prosear e a poetar por tudo
e por nada, por necessidades lógicas e psicológicas ou por simples encantamento.
O era uma vez passou a ser uma necessidade primária e fundamental do homem.
A música da prosa e da poesia fazia parte do seu ser e viver e o encantava. Estava em
seus ouvidos e em todos os demais sentidos, agora mais aguçados. Contar e cantar eram
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passes de mágica, varinhas de condão que o levavam ao mundo do faz-de-conta e
davam-lhe mais alegria e sentido para a vida. Eram fórmulas mágicas de desligar o
homem ou a criança do seu cotidiano repetitivo e vazio, levando-os por um certo tempo
para o país dos sonhos. Para lugares onde tudo é livre, belo, possível e permitido.
Contar e cantar passaram a ser formas de bem viver e reviver, de marcar o ser e
estar no mundo e de deixar lembranças vivas na memória do outro.
E o homem registrou sentimentos e lembranças nas inscrições rupestres e nas
cavernas. Contou e cantou aventuras com vontade de eternizá-las, de eternizar-se.
Cantar e contar foram formas mágicas de encantar, de conquistar, de fincar
bandeiras no coração do outro, de mostrar-lhe e demonstrar-lhe amor e amizade. Foram
formas de registrar a vida vivida e a idealizada, de pôr para fora os sentimentos e de
criar fortes laços humanos.
Sherazade sofisticou o feitiço do faz de conta. Acrescentou doses de amor,
poesia e sensualidade em cada aventura narrada, primeiro para o seu rei, depois para
todos nós...
Selvagens africanos ou os nossos índios, nas selvas, mostraram, em seu era uma
vez e nos cantos líricos ou guerreiros, o seu espírito épico ou o seu convívio afetivo com
o outro, com os bichos, com água, com a terra e plantas e com os céus.
Guerreiros e aventureiros, por mares e terras nunca antes tocados, abriram
caminhos, conquistaram terras e gentes. Contaram, cantaram e ouviram histórias.
“Navegar é preciso / viver não é preciso.”. Viver é preciso no sentido de ser necessário,
mas é impreciso no sentido de ser sempre a vida uma aventura inesperada, imprecisa.
Narrar e cantar é preciso para enriquecer e para melhor conhecer a vida.
Graças à sua inteligência, sensibilidade e poder criativo, o homem se
desenvolveu e desenvolveu a sociedade. Criou formas e formas de expressar o seu canto
e o seu conto, a sua sensibilidade especial. Formas que se desenvolveram e se
aperfeiçoaram com os tempos. E o homem passou a dançar, representar, desenhar,
escrever, publicar livros e jornais, cantar e gravar a voz em discos e filmar.
Feliz da criança que teve pais, avós ou babás que enriqueceram o seu imaginário
com muitas histórias, varando, virando e transformando o mundo pelo poder mágico da
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ficção. Pessoas que a fizeram dormir mais tranquilamente ao som dolente de uma
cantiga de ninar.
Triste criança de hoje, que tem que se contentar com as histórias cantadas ou
contadas pela televisão. Histórias mais cínicas e perversas do que lírico-poéticas, mais
interessadas em vender produtos do que em oferecer prazer e magia.
Sou um poeta e contador de histórias. Conto e canto, onde sou ou não
convidado. Hoje e sempre, mais do que nunca é preciso contar e cantar. Se uma voz se
perde no meio de tantas vozes, é preciso treinar muito, ter muito fôlego, insistir sempre
e mais, para que o canto e o conto quebrem o muro das indiferenças.
Os cantores e contadores não nasceram do nada, tiveram uma história de vida
vivida, uma iniciação mágica. Tiveram alguém que jogou sementes, adubou e cuidou
muito do seu imaginário, só pelo prazer de passar alegria, sem intenção didático-
educativa.
Ouvi muitas histórias contadas por minha avó paterna. Dona Joana era uma
libanesa pequenina, pobre, sofrida, comum, talvez mais feia do que bonita, que mal
sabia falar o português, mas que sabia contar histórias. Ela crescia, ficava bela,
incomum, quando contava as suas histórias. A fala diferente era um recurso a mais que,
ligada aos gestos, ganhava mais expressividade. Contar era reviver e despertar amor à
terra distante. Era oferecer aos netos um tapete voador capaz de levá-los a árduos
desertos ou a castelos aveludados, coloridos e luxuosos. Era conviver com as
personagens incomuns, reis e princesas apaixonados, Ali-Babá e os quarenta ladrões,
Aladim, guerreiros bons ou vingativos. Era abrir o imaginário com uma única palavra
de ordem: abracadabra.
Li muitas histórias dos muitos livros que minha mãe nos dava quando viajava,
nos aniversários ou no Natal, acompanhando roupas, calçados e brinquedos simples. Se
recontássemos as histórias, mostrando a opinião, os próximos brinquedos seriam
melhores. Depois do recontar, vinha o inteligente e lúdico acrescentar coisas,
transformar partes, mudar o final ou inventar o que poderia acontecer nos outros dias
depois do desfecho. E pensar que minha mãe, grande leitora de romances, mulher como
uma certeza muito grande na necessidade de estudo para ser alguém na vida, era uma
autodidata, sem ter completado sequer o curso primário.
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O meu pai era calado e não contava histórias, mas tinha quem contasse por ele.
Tinha uma fazenda de café, com vários colonos. O homem do campo em Minas, penso
que em todo mundo, é um contador de “causos” fantástico. Para emocionar o ouvinte,
aumenta muitos pontos na história, fantasia de modo natural, sem alterar a voz ou
exagerar nos gestos. Poucas vezes cacei ou pesquei de verdade, mas participei das
pescarias e caçadas mais emocionantes e bem realizadas, através da voz deles. De vez
em quando, ainda tremo ou me arrepio de medo ao me lembrar das histórias de
assombração e lobisomens, mulas-sem-cabeça pondo fogo pelas ventas. Eram ex-
fazendeiros mortos que voltavam às suas antigas propriedades para dar ordens aos
herdeiros ou atuais donos de suas terras. Antigos escravos que, mesmos mortos,
soltavam gemidos de dor e de raiva contra os seus donos.
Devo muito a algumas poucas professoras que me estimularam a ler, a escrever, a copiar e a declamar poemas.
Com o tempo e o prazer de ler, fiz muitas viagens pelos variados espaços e tempos
de mil e uma narrativas. Convivi com as personagens de ficção, vivendo as histórias que
elas viviam. Senti na alma e na pele o que os poemas me passavam. Tornei-me parceiro
apaixonado de grandes poetas e prosadores, pois o bom leitor é sempre um co-autor. Aí,
era uma vez em que achei que também poderia escrever. Poderia começar a contar e a
cantar.
A tremenda vontade de escrever e de mostrar meus textos para quem entendia me
levou, ainda muito jovem e tímido, a enviá-los para escritores de nome. Muitos sequer
me responderam. Outros me abriram muitos caminhos. Leram carinhosamente os meus
contos iniciais, me sugeriram, anotaram erros e me deram oportunidades. Osman Lins, o
mais exigente de meus críticos, o que mais me cobrava assumir compromissos políticos
com o ato de escrever, enviou-me O ofício de escritor, livro de Nelson Werneck Sodré.
O romancista e crítico Octávio de Faria, que primeiro escreveu em jornal de circulação
nacional sobre os meus contos, enviou-me Cartas a um jovem poeta. Se o primeiro livro
me ensinava olhar para fora, para o social, o segundo me ensinava a olhar para dentro,
para a minha infância, para os meus problemas. Ambos foram muitos úteis para a minha
formação, me fizeram caminhar pelos caminhos do mundo e pelos meus caminhos,
desvios e encruzilhadas. Fizeram-me buscar por conta própria outras obras que deveria
conhecer. O tempo passou e muitas coisas boas e difíceis aconteceram. Se não era fácil
o ofício de escritor, impossível não era. Se era trabalhoso, descobri que me dava muito
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prazer. Escrever e ser lido. Que experiência humana incrível, apaixonante! Como é bom
saber que a literatura me possibilitou um diálogo silencioso, solitário (por isso mesmo
mais rico) com o outro, o meu leitor! Estive horas com ele e não conheço o seu rosto.
Como explicar isto?
O jovem que sonhava ter um livro publicado um dia, antes de morrer, hoje,
quase quarenta anos depois, tem perto de cem livros publicados, alguns com prêmios
significativos. Muitos deles com várias edições, prova que foram lidos e, às vezes,
amado e odiado.
Como podem ver, um escritor não nasce do nada. Sempre há uma história
pessoal, tecida com a trama de muitas histórias ouvidas ou lidas. Um poeta-cantor não
nasce do nada. Sempre tem em seus ouvidos o ritmo de cantos e poemas ouvidos. O
canto provoca o canto. O conto provoca outros contos e recontos. E como é
emocionante saber que o meu conto e o meu canto serão ouvidos, lidos, contados e
cantados por outras pessoas! E como é compensador saber que muitas crianças terão
uma infância mais lúdica e feliz, alimentada por meu jeito carinhoso de cantar e de
contar! E como me faz bem saber que faço algo de bom às pessoas e a mim mesmo – e
faço com uma febre, uma energia, uma alegria e uma paixão que tornam a minha vida
melhor.
Não me importa saber se o homem nasce cantando ou contando. O bom mesmo
é saber o que a poesia e a prosa significam em nossas vidas. De minha parte, seria uma
felicidade morrer (o mais tarde possível) escrevendo coisas para outras pessoas
cantarem ou contarem comigo.
O FICCIONISTA
Para satisfazer estranho ego
Para nutrir meus pesadelos
Para recriar medos infantis
invento fantasmas.
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Para defender minhas posses
Para visualizar as referências
Para alimentar as minhas garras
_ invento espantalhos.
Para segurar perdidas fases
Para somar variadas faces
Para adular noturnas companhias
_ invento personagens.
Para torturar meu santo lado
Para desfazer dos bens herdados
Para chefiar minhas cruzadas
_ invento demônios.
Para proteger minhas encruzilhadas
Para facilitar confusas travessias
Para segurar o menino que rezava
_ invento arcanjos.
Para implantar as minhas raízes
Para colocar as minhas bandeiras
Para instalar-me em tempo de tédio
_ invento continentes.
Para sentir chão, água e verde
Para renovar ar, vida, fé e chama
Para levantar refeitos restos de vida
_ invento histórias.
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TEXTOS DE EDUARDO GALEANO
JANELA SOBRE A PALAVRA – 1
Os contadores de história, os contadores de história, só podem contar enquanto a neve
cai. A tradição manda que seja assim. Os índios do norte da América têm muito cuidado
com essa questão dos contos. Dizem que quando os contos soam, as plantas não se
preocupam em crescer e os pássaros esquecem a comida de seus filhotes.
JANELA SOBRE A PALAVRA – 2
No Haiti não se pode contar histórias de dia. Quem conta de dia merece desgraça: a
montanha jogará uma pedra em sua cabeça, sua mão só conseguirá andar de quatro.
Os contos são contados de noite, porque na noite vive o sagrado, e quem sabe contar
conta sabendo que o nome é a coisa que o nome chama.
A PAIXÃO DE DIZER
Marcela esteve nas neves do Norte. Em Oslo (Noruega), uma noite, conheceu uma
mulher que canta e conta. Entre canção e canção, essa mulher conta boas histórias, e as
conta espiando papeizinhos, como quem lê a sorte de soslaio.
Essa mulher de Oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos. Dos bolsos vai
tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história de fundação
e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por arte de bruxaria. E
assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos; e das profundidades desta saia
vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo
vai.
Em O livro dos abraços – L&PM
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HISTÓRIAS PARA O REI
Nunca podia imagina que fosse tão agradável a função de contar histórias, para a qual
fui nomeado por decreto do Rei. A nomeação colheu-me de surpresa, pois jamais
exercitara dotes de imaginação, e até me exprimo com certa dificuldade verbal. Mas
bastou que o Rei confiasse em mim para que as histórias me jorrassem da boca à
maneira de água corrente. Nem carecia inventá-las. Inventavam-se a si mesmas.
Este prazer durou seis meses. Um dia, a Rainha foi falar ao Rei que eu estava
exagerando. Contava tantas histórias que não havia tempo para apreciá-las, e mesmo
para ouvi-las. O Rei, que julgava minha facúndia uma qualidade, passou a considerá-la
defeito, e ordenou que eu só contasse meia história por dia, e descansasse aos domingos.
Fiquei triste, pois não sabia inventar meia história. Minha insuficiência desagradou, e
fui substituído por um mudo, que narra por meio de sinais, e arranca maiores aplausos.
Carlos Drummond de Andrade – Contos plausíveis
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LEITURA, ESCRITA & LETRAMENTO
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ENSINO-APRENDIZAGEM DE LEITURA, INTERPRETAÇÃO E PRODUÇÃO DE TEXTO – UMA PROPOSTA INTEGRADA
Odilon Pinto de Mesquita Filho1
Esse trabalho apresenta uma proposta “integrada” de ensino-aprendizagem de
leitura, interpretação e produção de texto, como alternativa para o ensino tradicional. Os
resultados preliminares obtidos mostram maior eficácia da proposta integrada, quanto à
coerência, coesão, compreensão, criatividade e à instituição do sujeito da enunciação.
Essa proposta integrada assume a interpretação como uma construção de sentido,
feita pelo leitor, a partir dos seus conhecimentos prévios e com base nas pistas textuais,
numa relação interlocutiva. “Nem o autor, nem o leitor são as fontes únicas do sentido.
Elegemos a própria relação interlocutiva como o espaço a iluminar a historicidade dos
acontecimentos construídos nesta relação. O texto é, pois, o lugar onde o encontro se
dá” (GERALDI, 1993, p. 167).
KLEIMAN (1995, p.12) vê a leitura
“como processo psicológico em que o leitor utiliza diversas estratégias baseadas no seu conhecimento lingüístico, sociocultural, enciclopédico. Tal utilização requer a mobilização e a interação de diversos níveis de conhecimento, o que exige operações cognitivas de ordem superior, inacessíveis à observação e demonstração, como a inferência, a evocação, a analogia, a síntese e a análise.”
Nessa perspectiva, o aluno tem papel ativo e principal na construção de sentido
do texto que lê e interpreta.
Tal concepção de leitura se opõe a prática autoritária, comum em sala de aula,
“que parte do pressuposto de que há apenas UMA maneira de abordar o texto e UMA
interpretação a ser alcançada.” (KLEIMAN, 1995, p.23. Grifos nossos.). Essa maneira
de trabalhar a leitura, a interpretação e a produção de texto é chamada aqui de
“tradicional”. Nela, a interpretação é assumida como re-conhecimento de um sentido
único existente no texto. Grande parte dos professores de português ainda trabalham a
leitura e interpretação de texto assim: a) Motivação do aluno, através de uma conversa
sobre o assunto geral do texto; b) Leitura silenciosa, sublinhando as palavras 1 Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz- UESC; Doutor em Letras e Linguística.
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desconhecidas; c) Leitura em voz alta, por alguns alunos, ou por todos os alunos, em
grupo; d) Leitura em voz alta, pelo professor; e) Elaboração de perguntas sobre o texto,
por parte do professor, como “Onde ocorreu a estória?”, “Quando? “A quem” e outras
perguntas sobre elementos explícitos; f) Reprodução do texto ( ou outra atividade de
redação ligada ao tema do texto).”
A construção de um texto se dá por operações discursivas, com as quais o
locutor faz uma “proposta de compreensão” a seu interlocutor, numa relação interativa.
(GERALDI: 1993, p. 194). Desta forma, para se produzir um texto, é preciso: a) ter o
que dizer; b) ter uma razão para dizer o que se tem a dizer; c) ter a quem dizer o que se
tem a dizer; d) construir-se enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz; e)
escolher as estratégias adequadas para realizar (a), (b), (c) e (d). (GERALDI, 1993,
p.137)
A produção de texto é um complexo processo comunicativo e cognitivo. Por
isso, em sala de aula, é preciso propor:
Situação de produção de uma grande variedade de textos de fato e ‘aproximar’ as condições de produção às circunstâncias na quais se produzem os textos reais. (...) Um escritor competente é alguém que sabe reconhecer diferentes tipos de texto e escolher o apropriado a seus objetivos num determinado momento. (...) é também capaz de olhar para o próprio texto como um objeto e verificar se está confuso, ambíguo, redundante, obscuro ou incompleto. Ou seja, é capaz de revisá-lo e reescrevê-lo até considerá-lo satisfatório para o momento. É ainda um leitor competente, capaz de recorrer, com sucesso, a outros textos quando precisa utilizar fontes escritas para a sua própria produção (MEC, 1995, p. 23).
Essa perspectiva se contrapõe à prática escolar tradicional de produção de texto,
onde há “poucas e mal dirigidas atividades específicas de leitura e escrita e praticamente
nenhuma reflexão sobre o que se escreveu ou de trabalhos de reescritura.” (BRITTO,
1997, p. 108). Essa prática escolar tradicional de produção de texto se caracteriza por
não levar em conta as operações discursivas, citadas acima, fazendo em que o aluno
restrinja estas operações ao objetivo de “agradar ao professor”. Cardoso (1998) observa
que:
o conhecimento das práticas pedagógicas que circulam nas escolas nos últimos decênios, nas aulas de Português, e também de outras disciplinas, nos revela que (...) a prática de leitura e de produção de textos nem sempre foi uma prática de produção de discursos entre interlocutores concretos, situados numa situação concreta de discurso.
39
Um processo integrado de ensino-aprendizagem de leitura, interpretação e
produção de texto é enfocado pelos PNC (MEC, 1995, p. 20):
Leitura e escrita são práticas complementares e fortemente relacionadas (...) leitura e escrita são práticas que permitem que o aluno vá construindo seu conhecimento sobre os diferentes gêneros, sobre os procedimentos mais adequados para lê-los e escrevê-los, sobre as circunstâncias de uso da escrita.
Também Geraldi (1993, p. 165-6) aponta relações estreitas entre as duas
práticas:
Grande parte do trabalho com leitura é “integrado” à produção em dois sentidos: de um lado ela incide sobre “o que se tem a dizer”, pela compreensão responsiva que possibilita, na contrapalavra do leitor à palavra do texto que se lê; de outro lado, ela incide sobre “as estratégias do dizer”.
Essa visão integrada do ensino-aprendizagem de leitura, interpretação e
produção de texto, não orienta a maior parte das atividades escolares. Estas reduzem tal
integração a uma mera repetição do texto lido, solicitando ao aluno que escreva sobre o
que entendeu da leitura; ou a uma produção aleatória, que toma o texto lido apenas
como pretexto. Tal prática integra o que é chamado aqui de “integrada” e outra,
“tradicional”. A proposta integrada consiste em:
a) Ativação de conhecimentos prévios dos alunos;
b) Objetivo de leitura; Leitura protocolar (opcional)
c) Leitura silenciosa;
d) Discussão do texto lido em grupos;
e) Produção textual individual;
f) Leitura para reescrita do texto;
g) Análise linguística;
h) Uso do texto em situação real;
i) Feedback e novo ciclo de comunicação.
(a) A ativação de conhecimentos prévios consiste em trazer à “consciousness”
dos alunos os conhecimentos com base nos quais o professor deseja que eles
façam a interpretação do texto a ser lido e a produção de texto a ser feita.
Fulgêncio e Liberato (1996, p. 70-1) definem “consciousness”
40
Como um estágio da memória humana intermediário entre as chamadas Memória de Longo Termo (MLT) e Memória de Curto Termo (MCT). A MLT é a parte da memória humana onde fica armazenado todo o conhecimento que se tem do mundo. A compreensão de textos por parte de um receptor é um processo que se baseia no conhecimento que ele já possui anteriormente. Então, o emissor deve adaptar o que diz ao que ele presume que está na MLT de seu receptor, para facilitar a comunicação. O falante deve ajustar a forma de sua mensagem ao conhecimento do ouvinte. Esse ajuste não se faz apenas em relação ao suposto conhecimento geral do ouvinte, mas também em relação à parte desse conhecimento que o falante presume que esteja presente na mente do ouvinte no momento da comunicação.
Essa parte temporária da memória que é chamada “consciousness”. Ativar um
conhecimento prévio, portanto, é colocá-lo na “consciousness” dos alunos. Caso o
professor não faça essa ativação, as interpretações do texto lido podem variar numa
escala mais ampla, conforme os conhecimentos prévios ativados por cada aluno, o que
dificulta um objetivo de leitura comum a ser trabalhado pela classe.
O professor pode ativar os conhecimentos prévios dos alunos, fazendo com que
estes falem sobre suas experiências relacionadas com o conhecimento desejado. Por
exemplo, se o texto a ser lido for a história de Chapeuzinho Vermelho e o objetivo de
leitura a ser dado for produzir um cartaz com os cuidados que se deve ter na rua, o
professor pode ativar os conhecimentos prévios desejados fazendo os alunos falarem
sobre suas experiências, diretas ou indiretas, (casos conhecidos, notícias de jornais,
filmes, TV, casos ouvidos, etc.), relacionadas com acidentes ocorridos com crianças na
rua, como atropelamento, ataques de cachorros, sequestros, contatos com loucos, etc. O
professor deve deixar as crianças falarem sobre tais conhecimentos durante uns vinte
minutos. Neste ponto, espera-se que todos os alunos estejam com seus conhecimentos
prévios sobre acidentes na rua ativados, isto é, em sua “consciousness’.
(b) Antes de dar o texto a ser lido, o professor deve indicar o objetivo da leitura,
uma vez que objetivos e interesses que possuímos ao ler determinam a compreensão da
leitura.
41
“Tradicionalmente, na escola, o aluno é levado a ler sem saber para que lê. Isto acarreta sérias consequências na formação do leitor. Assim, estabelecer objetivos na leitura leva o indivíduo a refletir e controlar conscientemente o conhecimento, (...) Quando o objetivo da leitura é claro e consciente para o leitor, ele exercitará estratégias de seleção de dados, de informações relevantes que o texto dispõe e que se relacionam com suas pretensões” (MEC, 1995, p. 15).
No exemplo dado acima, para a história de Chapeuzinho Vermelho, o objetivo
de leitura pode ser: produzir um cartaz, a ser exposto na escola, sobre os cuidados que
uma criança deve ter ao andar na rua.
(c) Quando se trabalha interpretação de texto, a leitura mais adequada é a
silenciosa porque
o olho é mais rápido que a voz e inibe estratégias de adivinhações do material periférico à visão, durante a leitura. Quando o aluno fala uma palavra que não está no texto, é porque o aluno está prestando atenção ao significado e não apenas à forma. É preciso permitir a leitura silenciosa, sob pena de inibir o desenvolvimento de estratégias adequadas de processamento do texto escrito (KLEIMAN, 1995: 36).
A leitura m voz alta pode também ser feita, quando se tratar de texto dramático,
diálogos ou poesia.
(d) A discussão do texto lido em grupos possibilita uma ampliação da
interpretação individual.
(e) Após a discussão em grupo, é feita a produção individual de texto, conforme
o objetivo dado. Ainda que a produção final seja coletiva, como no caso da confecção
de um cartaz, a produção individual deve anteceder a execução coletiva.
(f) Após produzir o texto, o aluno deverá lê-lo, com o objetivo de reescrever
trechos menos claros ou ambíguos. Deve-se evitar neste ponto que o aluno dê atenção
excessiva a questões de ortografia e gramaticais.
(g) Após a reescrita do texto, o aluno deve fazer a análise linguística, voltando-
se mais para a correção gramatical e ortográfica. Esse trabalho deve ser feito em grupo,
sob a orientação do professor.
42
A proposta tradicional consiste em:
(a) Leitura do texto em voz alta pelo professor;
(b) Leitura do texto em voz alta por alguns alunos;
(c) Professor pede aos alunos que escrevam sobre o que entenderam do texto
lido.
As duas propostas foram aplicadas e turmas diferentes da mesma série do Ensino
Fundamental, em escolas públicas.
A qualidade dos textos produzidos pelos alunos foi analisada quanto aos
seguintes aspectos: coerência, coesão, compreensão do texto lido, criatividade e
constituição do sujeito.
A coerência é uma instância do texto, no plano conceitual, constituída na
interação entre autor e leitor. (MEC, 1995, p. 19). Os critérios de coerência são:
continuidade, progressão e articulação. A coerência “diz respeito à maneira como os
componentes do universo textual – conceitos e relações subjacentes ao texto de
superfície – se unem numa configuração, de modo acessível e relevante” (KOCH, 1992,
p. 85) Foi levado em conta apenas o uso de elementos anafóricos (pronomes, sinônimos
e elipses) em lugar da repetição de palavras.
A compreensão do texto lido foi avaliada a partir de citações adequadas ou referências feitas pelos alunos em sua produção textual.
A criatividade foi avaliada com base nos argumentos, exemplos, expressões e estratégias usadas pelos alunos na produção textual.
A constituição do sujeito diz respeito à maneira como o aluno se institui como
sujeito do seu texto. Essa operação discursiva está relacionada ao interlocutor, ao
objetivo e ao conteúdo de sua produção textual. Na prática escolar, o aluno costuma
restringir-se a simplesmente “agradar ao professor”, não se instituindo como sujeito do
seu texto.
A aplicação das propostas foi feita sempre nas escolas com a presença de cerca
de 70 professores, participantes das oficinas do Projeto Pró-Leitura. Isto cria uma
situação “estranha” para os alunos e prejudica a espontaneidade com que deve ser
43
conduzida a aplicação. Tentou-se diminuir este efeito negativo, “explicando” aos alunos
que aqueles professores estavam ali fazendo uma determinada campanha nas escolas.
Em alguns casos, os alunos foram convocados à escola em dias e/ou horários
não habituais, para que fosse feito o experimento. Isto se constitui em um fator negativo
a mais, com reflexos nos resultados.
A primeira aplicação das duas propostas foi feita com duas turmas de quarta
série (5º ano) da escola pública “Brasília Baraúna”, em Itabuna:
Quadro 1: Qualidade dos textos produzidos por alunos da escola “Brasília Baraúna”, em Itabuna
Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada
Coerência 54% 100%
Coesão 83% 95%
Compreensão 70% 100%
Criatividade 91% 95%
Sujeito 100% 100%
Nessa escola, os professores participam do Projeto Pró-Leitura e já trabalham a
Proposta Integrada em sala de aula. Tal situação, ao que parece, interferiu nos resultados
do experimento porque a Proposta Tradicional foi aplicada a uma turma de alunos, cuja
professora trabalha em sala de aula, com a Proposta Integrada.
Outra aplicação das duas propostas foi feita em duas turmas da 5ª série
(atualmente 6º ano), na escola Paulo Américo, em Ilhéus.
Quadro 2: Qualidade dos textos produzidos por alunos da escola “Paulo Américo”, em Ilhéus
Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada
Coerência 77,4% 100%
44
Coesão 61,2% 96,8%
Compreensão 58% 75%
Criatividade 32,2% 75%
Sujeito 22,5% 93,7%
Os dados acima mostram que a coesão e a coerência apresentam superioridade
significativa em favor da Proposta Integrada. A coesão, a criatividade e a instituição do
sujeito foram os aspectos mais afetados pelas duas propostas aplicadas.
Numa escola municipal de Uma, as propostas foram aplicadas em duas turmas
de 4ª série (5º ano).
Quadro 3: Qualidade dos textos produzidos por alunos de uma escola municipal em Uma
Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada
Coerência 61,5% 78%
Coesão 50% 86%
Compreensão 23,5% 65%
Criatividade 36% 67,5%
Sujeito 47% 67%
O quadro mostra que a coerência e a criatividade não foram significativamente
afetadas pelas diferenças metodológicas aplicadas. Entretanto, a coesão, a compreensão
e a instituição do sujeito apresentam superioridade significativa em favor da Proposta
Integrada.
As propostas foram aplicadas ainda em quatro turmas de 4ª série (5º ano) numa
escola municipal de Itabuna.
45
Quadro 4: Qualidade dos textos produzidos por alunos de uma escola municipal, em Itabuna
Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada
Coerência 61, 5% 78%
Coesão 50% 86%
Compreensão 23,5% 65%
Criatividade 36% 67,5%
Sujeito 61,9% 100%
Os dados apontam uma qualidade superior para os textos produzidos, segundo a
Proposta Integrada.
Considerações finais
Podemos reunir os resultados acima num quadro único, com as médias
aritméticas das porcentagens encontradas:
Quadro 5: Média da qualidade dos textos produzidos
Aspecto Proposta Tradicional Proposta Integrada
Coerência 70,8% 94,5%
Coesão 60,4% 94,4%
Compreensão 56,9% 83,7%
Criatividade 56,4% 74,3%
Sujeito 57,8% 90,1%
Os resultados até agora encontrados mostram uma qualidade superior nos textos
produzidos por alunos, trabalhados na Proposta Integrada. Essa qualidade é analisada
aqui quanto aos aspectos: coerência, coesão, compreensão do texto lido, criatividade e
instituição do sujeito.
46
Os aspectos analisados parecem não ser ainda suficientes para demonstrar a
significativa diferença de qualidade esperada entre os textos produzidos, segundo as
duas propostas de ensino-aprendizagem. Ao mesmo tempo, estes aspectos podem ainda
ter sua análise refinada, através de uma conceituação mais precisa e de uma aferição
mais rigorosa.
Por outro lado, esse trabalho não é capaz de mostrar diferenças de qualidade em
leitura, interpretação, análise linguística, oralidade e outras, causadas pelas duas
propostas de ensino-aprendizagem.
De qualquer maneira, os resultados conseguidos até agora são significativos e
apontam, ainda que com certa precariedade, a maior eficácia da Proposta Integrada em
relação ao processo de ensino-aprendizagem tradicional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITTO, Luis Percival Leme. A sombra do caos. Ensino de língua x tradição gramatical. Campinas, SP: ALB: Mercado de Letras, 1997. (Coleção Leituras no Brasil)
CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Análise do discurso no ensino do português. Mimeografado, 1998.
FULGÊNCIO, Lúcia e LIBERATO, Yara. Como facilitar a leitura. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 1996. (Coleção Repensando a Língua Portuguesa).
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 2ª Ed. S. Paulo: Martins Fontes, 1993.
KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. 3ª Ed. Campinas, SP: Pontes; 1995.
KOCH, Ingedore G. “Dificuldades na Leitura/Produção de Textos: os Conectores Interfrásticos” In: CLEMENTE, Elvo e KIRST, H. B. (Orgs.) Linguística aplicada ao ensino de português. 2ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
MEC (Kátia Lambra Bräkling, Rosaura A. Soligo, Telma Weisz). Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa. Versão preliminar, 1995.
MEC (Secretaria do Ensino Fundamental). Projeto Pró-Leitura. Mimeografado. 1995.
47
(RE) PENSANDO O PAPEL DO LÚDICO À ALFABETIZAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
Marilete Calegari Cardoso1
INTRODUÇÃO
Um dos grandes desafios da sociedade brasileira é ainda, sem dúvida, diminuir o
número de jovens e adultos analfabetos. Várias contribuições para reflexão neste
campo, que se centram nas concepções da escrita, são muito relevantes, uma vez que
trazem novas nuances e dimensões para questões importantes do cotidiano pedagógico,
como a psicogênese da alfabetização do adulto, dificuldades de aprendizagem, método e
materiais didáticos para utilizar na progressão do ensino, como escolher textos
adequados e o que ensinar primeiro.
Acreditamos no emprego do lúdico na concepção social da escrita no curso de
alfabetização de jovens e adultos. A concepção de escrita que se tem mostrado mais
produtiva na alfabetização de jovens e adultos é a que enfatiza a dimensão social, tanto
da aprendizagem de leitura e produção de textos, quanto dos usos dos materiais escritos.
Por dimensão social estamos entendendo o caráter não-individual, sendo assim, a
ludicidade contribui muito neste aspecto, pois os jogos em grupos envolvem a
linguagem oral/ escrita e corporal.
Entretanto, ainda existem muitas dúvidas sobre o lúdico, o brincar, que afetam
diretamente a atividade humana no trabalho, na vida diária na escola e principalmente
para alunos jovens e adultos. Questões como: O adulto precisa brincar? Será que o jogo
desenvolve aprendizagens significativas na alfabetização do adulto, como acontece com
as crianças? Como é possível alfabetizar o adulto brincando? É justamente nestas
indagações que vamos nos deter, para refletir sobre a importância do lúdico para a
alfabetização de adultos dentro da concepção histórica – cultural. 1 Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB; Mestre em Educação.
48
A NECESSIDADE DO LÚDICO PARA O ADULTO
Segundo Freire (1996 p.41), uma das tarefas mais importantes da prática
educativo-crítica é proporcionar as condições em que os educandos em suas relações
uns com os outros, e todos com o professor ou professora ensaiam a experiência
profunda de assumir-se. Por conseguinte, na alfabetização de jovens e adultos somos
levados a refletir sobre quais são essas novas maneiras de participação, e o
envolvimento lúdico é, sem dúvida, uma prática educativa política, moral e
gnosiológica, por que faz com que o alfabetizando vivencie atividades corporais com
seu grupo, e posteriormente relate suas experiências. Como nas palavras de Winnicott
(1975):
São essas experiências que fornecem a continuidade da raça humana que transcende a existência pessoal. Parto da hipótese de que as experiências culturais estão em continuidade direta com a brincadeira: a brincadeira daqueles que ainda não ouviram falar em jogos. (Winnicott, 1975, p.139)
Neste sentido, a atividade central do lúdico é o jogo. É importante explicar que
foi utilizada a palavra jogo para referir-se ao "brincar", vocábulo predominante da
Língua Portuguesa quando se trata de atividade lúdica infantil. A palavra "jogo" se
origina do vocábulo latino ludus, que significa diversão, brincadeira. A palavra jogo se
utiliza para expressar o brincar.
Nesta direção, deve-se oportunizar que os adultos voltem a brincar criando um
clima de permissividade, criatividade e de interação. Contudo, o adulto que volta a jogar
(brincar) não se torna criança, como se costuma dizer, mas vivencia sensações de prazer
que desbloqueiam suas resistências, seus “fantasmas corporais”, que muitas vezes os
transformam em pessoas com bloqueios emocionais, levando-os a sentirem-se não
capazes de aprender, de se comunicarem e relacionar-se com os outros. Neste sentido,
suas expressões estão muito mais a serviço do inconsciente que do consciente.
Portanto, o adulto trabalha com suas memórias, resgatando e reelaborando suas histórias
e não com a imaginação, como a criança pequena, apesar de usar muita sua imaginação
no ato de brincar. Wygotsky (1998), aborda esta questão dizendo o seguinte:
49
O brinquedo é muito mais que a lembrança de alguma coisa que realmente aconteceu do que imaginação. É mais memória em ação do que uma situação imaginária nova. (Wygotsky, 1998, p.135)
Na sua tese principal sobre o brincar, Winnicott afirma:
O lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial existente entre o individuo e o meio ambiente (originalmente, o objeto). O mesmo se pode dizer do brincar. A experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira. ...Para todo indivíduo, o uso desse espaço é determinado pelas experiências de vida que se efetuam nos estágios primitivos de sua existência. (1975. p.139)
Podemos refletir que, para os dois autores supracitados, a vivência com atividades
lúdicas proporciona aos alfabetizados o autoconhecimento, permitindo-os assumir-se
como sujeitos que pensam e falam de acordo com sua subjetividade, com direito de se
transcenderem no tempo, no espaço e nos desejos. A subjetividade é impossível de ser
ignorada, uma vez que cada um interpreta o mundo e cria uma fantasia única conforme
a incorporação daquilo que vivenciou, e isso transforma cada sujeito em um enigma a
ser decifrado. Segundo Freire (Ibid, 1996, p.41) o homem deve assumir-se como ser
social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador
de sonhos, capaz de ter raiva porque sabe amar.
As discussões e reflexões durante ou após as brincadeiras corporais, também
proporcionam ao aluno jovem e adulto uma formação pessoal, que lhe possibilita
compreender o homem inserido numa temporalidade histórica e cultural que o faz ser
inacabado e transcendente, portanto sujeito capaz de aprender. Deste modo, o educando
se abre para uma visão real das limitações de cada individuo frente às diferentes
situações culturais em que vive, adquirindo preparo para ter uma postura de escuta em
relação ao outro sujeito, melhorando assim sua compreensão e seu relacionamento com
este.
50
ALFABETIZAÇÃO DE ADULTO COM LÚDICO TORNA AS APRENDIZAGENS
MAIS SIGNIFICATIVAS
Eu sabia muito bem que com um pau não se pode matar um pássaro, nem mesmo deflagrar qualquer tiro...Se a gente começasse a pensar desse modo, então não deveria mais andar a cavalo nas cadeiras. E, entretanto, o próprio Volódia haveria de recordar muito bem que durante os comprimidos serões de inverno nós cobríamos uma poltrona com xales e a transformávamos em carruagem. Uma fazia de cocheiro, o outro de lacaio, e as meninas ficavam no meio: as três cadeiras eram a tróica de cavalos, e nos púnhamos a caminho. E que aventuras nos aconteciam nessa viagem imaginária! E com que rapidez se passavam os longos e alegres serões de inverno! Se se enxerga tudo com os olhos da razão, já não é possível brincar. E se não se brinca, que nos resta, então?(Apud: Alonso, 2000, p.10).
A reflexão acima sobre a brincadeira é uma das passagens da obra de L. Tolstoi
(Wajskop 1997), cuja abordagem do ato de brincar nos revela o entendimento de que
existe uma visão de brinquedo para o mundo infantil e uma visão de brinquedo para o
mundo adulto. E qual seria a diferença destas duas concepções? Alonso (2000) descreve
com propriedade a questão:
...Se, por um lado, na concepção infantil os brinquedos aparecem por redução, no mundo adulto aparecem como uma conquista. O adulto aceita a redução a brinquedos de coisas que foram importantes para ele, afim de que elas não desapareçam quando o tempo passar. Essa redução surge nos brinquedos que já foram, em outros tempos, objetos sagrados, como as bonecas; instrumentos de guerra, como arco e a flecha, ou as máscaras que os atores de teatro usavam para representar. (p.10, grifo meu).
Resgatar as brincadeiras de infância através de projetos com os jovens e adultos
é levá-los para rever sua cultura, sua sociedade e seus conhecimentos, que foram
construídos através dos brinquedos quando criança. É um trabalho que promove
aprendizagens e competências que contribuem para a formação de sujeitos autônomos
com possibilidades de intervirem, de forma significativa, na construção de uma
sociedade cidadã.
Segundo Negrine (2000, p.21) a capacidade lúdica do adulto está diretamente
relacionada a sua pré-história de vida e é, antes de qualquer coisa, um estado de
espírito, relacionado à cultura do corpo. Escreve ele:
51
A concepção de que o brincar está reservado às crianças nada mais é do que a perda da naturalidade humana, imposta pelo homem ao próprio homem, já que_ a história nos diz _ o adulto costumava dedicar muitas horas ao lazer (p.21).
Não podemos esquecer que somos, consequentemente, filhos e frutos de um
regime indigesto que utilizou a educação como processo de alienação corporal, artística
e intelectual de nós brasileiros, resultando neste caos aparentemente irreversível que
vemos hoje na escola. Portanto, certamente ainda encontramos hoje em dia pessoas que
privilegiam e defendem valores de força, de capacidade de trabalho, principalmente
como reflexo da forte influencia de uma sociedade altamente competitiva e seletiva. No
entanto, independente de qualquer idade, cada cidadão deve ter respeitado o seu espaço
de participação social, resgatando e construindo elementos culturais carregados de
significações para o mundo do trabalho.
De acordo com as ideias de Vygotsky (1998), para que um sujeito se desenvolva e
aprenda, ele deve estar constantemente realizando atividades que envolvam simbolismo
(imaginação), corpo–eu (relação social), comunicação (linguagem) e emoção. Para este
autor só aprendemos aquilo que vivenciamos e, só podemos ensinar o que nós já
aprendemos. Não tão distante das idéias de Freire (2003), quando nos diz:
É preciso insistir: este saber necessário ao professor_ que ensinar não é transferir conhecimento_ não apenas precisa de ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser _ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa de ser constantemente testemunhado, vivido.(Freire, 2003, p.47)
Segundo Rego (1995, p.106), as ideias de Vygotsky a respeito da qualidade do
trabalho pedagógico estão associadas à capacidade de promoção de avanços no
desenvolvimento do aluno.
Vygotsky afirma que o bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento, ou seja, que se dirige às funções psicológicas que estão em vias de se completarem. Essa dimensão prospectiva do desenvolvimento psicológico é de grande importância para a educação, pois permite a compreensão de processos de desenvolvimento que, embora presentes no indivíduo, necessitam da intervenção, da colaboração de parceiros mais experientes da cultura para se consolidarem e, como consequência, ajuda a definir o campo e as possibilidades da atuação pedagógica. (REGO, 1995, p.106)
52
Dessa forma, o jogo é reconhecido como meio de fornecer ao adulto um ambiente
agradável, motivador, planejado e enriquecido, que possibilita a aprendizagem de várias
habilidades. Portanto, aprendizagem é o processo de modificação da conduta por
treinamento e experiência, variando da simples aquisição de hábitos à técnicas mais
complexas. Por desenvolvimento, a designação do ato de desenvolver, progredir,
crescimento paulatino.
Nesta perspectiva, consideramos incorreto conceber o brinquedo como uma
atividade sem propósito para educandos adultos. Nos jogos atléticos, pode-se ganhar ou
perder; numa corrida, pode-se chegar em primeiro, segundo ou último lugar. Em
resumo, o propósito decide o jogo e justifica a atividade. O propósito, como objetivo
final determina a atitude afetiva da criança ou adulto no brinquedo. Vygotsky (1998),
afirma que:
Sob o ponto de vista do desenvolvimento, a criação de uma situação imaginária pode ser considerada como um meio para desenvolver o pensamento abstrato. O desenvolvimento correspondente de regras conduz a ações, com base nas quais torna-se possível a divisão entre o trabalho e brinquedo, divisão esta encontrada na idade escolar como um fato fundamental....O brinquedo é para uma criança um jogo sério, assim como o é para um adolescente ou adulto, embora, é claro, num sentido diferente da palavra; para uma criança pequena, brinquedo sério significa que ela brinca sem separar a situação imaginária da situação real. Pra um adolescente ou adulto, o brinquedo torna-se uma forma de atividade limitada, predominantemente do tipo atlético, que preenche um papel específico em seu desenvolvimento, e que não tem o mesmo significado do brinquedo para uma criança em idade pré-escolar. ( p.136)
Outros grandes pesquisadores que, como Vygotsky, desenvolveram trabalhos na
área de Psicologia Genética e se interessaram pelo jogo, foram Piaget e Wallon. Piaget
(1976, p.160) diz que a atividade lúdica é o berço obrigatório das atividades intelectuais
da criança e do adolescente. Estas não são apenas uma forma de desafogo ou
entretenimento para gastar energia dos educandos, mas meios que contribuem e
enriquecem o desenvolvimento intelectual. E Henri Wallon, analisando o estudo dos
estágios propostos por Piaget, fez inúmeros comentários onde evidenciava o caráter
emocional em que os jogos se desenvolvem e seus aspectos relativos à socialização.
Referindo-se não só a faixa etária infantil, Wallon (1979) demonstra seu interesse pelas
relações sociais nos momentos de jogo:
53
A pessoa está continuamente em processo... Processo significa afirmar que há um movimento contínuo de mudanças, de transformações desde o início da vida até seu término. E os resultados dessas mudanças podem ser observados externamente. Internamente, esse processo se caracteriza por um jogo de forças, de tensões entre os conjuntos motor, afetivo e cognitivo. (Mahoney, 2000, p. 16).
O educador alfabetizador de jovens e adultos assume um papel de significância
muito grande quando, no desenvolvimento de um processo pedagógico, busque alcançar
sucesso em seus objetivos, ou seja, que tenha capacidade de transmitir adequadamente
os conhecimentos produzidos, acumulados e valorizados socialmente, ao mesmo tempo
em que os sujeitos envolvidos nesse trabalho revisem, recriem, critiquem e criem novos
conhecimentos.
Para que isso aconteça é necessário propor atividades que oportunizem a estes
educandos, em seu desenvolvimento contínuo, vivenciar de forma lúdica sua
expressividade corporal, sua comunicação e imaginação, como um meio a mais que vai
completar seu entendimento.
COMO É POSSÍVEL ENSINAR O JOVEM E O ADULTO BRINCANDO?
O importante é compreender que o analfabeto adulto atual, ao qual nos dirigimos, vive numa sociedade letrada e por isso suas exigências culturais implícitas são as da linguagem alfabética, que é o seu meio. Basta, portanto, retirá-lo das condições inferiores de existência em que vive e fazê-lo compreender sua realidade para imediatamente incorpore o saber letrado como elemento natural da consciência crítica que começa a produzir para si. (Pinto, 2000, p.100)
Um dos problemas mais relevantes que o professor encontra na sala de aula nas
turmas de alfabetização de jovens e adultos é a baixa auto-estima, o sentimento muito
forte de incapacidade, haja vista que grande parte da culpa recai sobre o educador,
devido a fatores como a falta de formação específica, motivação, falta de recursos
pedagógicos e assim por diante. Entretanto, o papel do professor é de incentivador,
estimulador de uma reação que passa toda ela no íntimo da consciência do
alfabetizando.
54
Então, como é possível ensinar o jovem e o adulto numa classe de alfabetização
empregando o jogo? O trabalho a que nos propusemos surge, de uma experiência de
projeto de formação pessoal a um grupo de alguns jovens e adultos não alfabetizados e
outros que foram alfabetizados funcionalmente, ou seja, não conseguiam reconhecer a
função da leitura e escrita como meio social.
O projeto de formação pessoal foi desenvolvido na Escola Municipal Mariana de
Andrade, localizada na cidade de Ibirataia, estado da Bahia, no ano de 2000. O referido
projeto tinha como objetivo oportunizar ao educando vivenciar de forma lúdica sua
expressividade corporal, como um meio a mais que vai auxiliar sua formação,
possibilitando a este aluno a conscientização das limitações, habilidades e facilidades
que cada indivíduo apresenta na relação consigo mesmo, e com as demais pessoas que o
cercam. Eram organizados semanalmente jogos que trabalhavam a relação interpessoal,
intrapessoal, linguagem oral e escrita, matemática, fatos históricos e geográficos da
cidade e do estado, sempre que possível utilizando a expressão corporal. O trabalho foi
desenvolvido durante um semestre.
Após a realização da atividade, era realizado um debate a respeito dos seus
sentimentos e do significado do jogo (se gostaram, do que não gostaram, se foi bom, o
que mais gostaram, o que não repetiriam, enfim, o que realmente vinha de espontâneo
do aluno). Neste sentido, sustentamos a ideia de debater com o aluno alfabetizando, com
base no pensamento de Freire (2002), que eles nos fala o seguinte:
A conclusão dos debates gira em torno da dimensão da cultura como aquisição sistemática da experiência humana. E que esta aquisição, numa cultura letrada, já não se faz via oral apenas, como nas iletradas, a que falta a sinalização gráfica. Daí passa-se ao debate da democratização da cultura, com que se abrem as perspectiva para o início da alfabetização... todo este debate é altamente criticizador e motivador. O analfabeto apreende criticamente a necessidade de aprender a ler e a escrever. Prepara-se para ser o agente deste aprendizado. ( p.119)
Portanto, o debate é a matriz que atribui sentido de uma prática educativa
dialógica e somente através desta é, que podemos alcançar com efetividade e eficácia a
participação livre e crítica dos educando.
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Como culminância do jogo era feito, coletivamente, um relatório das atividades
desenvolvidas, bem como dos depoimentos, críticas e sugestões de novos jogos. Por
melhor que seja a comunicação escrita, é necessário vivenciar uma prática corporal para
que se possa dimensionar seu valor pedagógico. Portanto, a liberdade está dentro do
corpo do ser e não é diferente com o professor. Deixá-lo perceber, dar condição para tal,
é acreditar na transformação e principalmente na construção do novo perfil deste
Educador!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Promover a capacitação de professores para atuarem na Educação de Jovens e
Adultos, com base em uma metodologia diferenciada que atenda as especificidades
destes estudantes, comprometidos tanto com a teoria, quanto com a prática dessa
modalidade de oferta regular de ensino é o que muitas universidades estão fazendo para
melhorar a qualidade de vida destes educandos. Disciplinas como: A Ludicidade como
articuladora das metodologias de ensino, o Lúdico na educação de jovens e adultos, são
oferecidas por cursos de graduação ou Pós–graduação em diferentes áreas do
conhecimento.
Mostrar aos professores a importância que as atividades lúdicas possuem no
desenvolvimento educacional do aluno, assim como as atividades recreativas
transformam-se em excelente instrumento facilitador do ensino e da aprendizagem.
Estudar temas como a importância e o valor da recreação, jogos recreativos,
cooperativos e esportivos e também jogos cooperativos como exercício de convivência,
levaria os educandos a obterem uma melhor disponibilidade corpórea, a partir de
vivências culturais múltiplas, que vão possibilitar a conscientização das limitações,
habilidades e facilidades que cada indivíduo apresenta na relação consigo mesmo, com
os demais e com os objetos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
_____________. Educação como prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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psicopedagógicas, vol.2. Porto Alegre – PRODIL,1994.
______________. Aprendizagem e desenvolvimento infantil: Simbolismo e jogo 2.
Porto Alegre – PRODIL, 1994.
_____________. Aprendizagem e desenvolvimento infantil: psicomotricidade
alternativa pedagógica. Porto Alegre: Edita, 1995.
PIAGET, Jean. Psicologia e Pedagogia. Trad. Por Dirceu Accioly Lindoso e Rosa
Maria Ribeiro da Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.,,
PINTO, Álvaro Vieira. Sete Lições Sobre Educação de Adultos. São Paulo: Cortez,
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__________________. O lúdico no Contexto da Vida Humana: da primeira
infância À terceira idade. In. SANTOS, Santa Marli Pires (org).Brinquedoteca: A
criança, o Adulto e o Lúdico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p.15-24.
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SANTOS, Santa Marli Pires dos. Brinquedoteca: o lúdico em diferentes contextos.
(org). Petrópolis, R.J.: Vozes, 1999.
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(org). Petrópolis, R.J: Vozes, 2003.
WALLON, Henri. Psicologia e Educação da criança. Lisboa: Vega/Universidade,
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57
WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Zahar,1979.
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. 4 ed.São Paulo: Martins Fontes,
1991.
58
LEITURA &
CULTURA
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Embora uma provocação com os Ecossistemas: O Que É Cultura?
Maria das Graças de Santana Rodrigué1
Sabe, que depois de meio século vivido, aprendi que a palavra embora é uma
aglutinação de em boa hora? Uma provocação, também é encontrar uma boa hora para
falar com você que, nesse ínterim secular, um dia escutei alguém dizer que, quem não
tem projeto de vida não se encontra em condições de elaborar um projeto, por mais
simples que ele seja, muito menos um projeto profissional. Essa provocação de
encontrar uma boa hora para falar sobre isto também significa encontrar uma boa causa
para escrever sobre um evento interdisciplinar de leitura cunhada pelo diálogo, quando a
Universidade reuniu professores, disciplinas, estudantes e sociedade, todos em torno de
um mesmo tema: a Cultura.
A origem deste artigo, portanto se pauta em um interrogante que perpassa a
realização do Projeto de Extensão intitulado: Seminário 2002.1. O Que É Cultura? Em
setembro do ano de 2002, vinte e cinco Professores da UESB estiveram pensando alto,
respondendo a questão acima, junto à sociedade a qual está inserida. Em primeira
instancia transparece simples, O Que É Cultura?
Portanto este texto, retrato cultural do evento, está constituído por uma mostra
sobre o desenvolvimento e execução desse Projeto Interdepartamental de Estudos
Antropológicos. Esta contribuição tem a intenção de se fazer ao aprender, a registrar,
valorizar o fazer história e não especificamente pensando em ensinar.
Ao pensar sobre a categoria antropológica, Vagner da Silva afirma que a
Antropologia estabeleceu sua identidade como ciência, entre outras coisas, através de
sua abordagem metodológica, na qual a ´observação participante´ tornou-se elemento
central.2 Mediante fato a Antropologia Cultural preserva sua unidade conquistada, mas
reconhece sua condição de disciplina e assume a necessidade de estender-se em um
círculo constituído da colaboração de outras áreas do saber. Nesta linha de pensamento 1 Doutora em Ciências da Religião pela PUC/São Paulo; Professora aposentada da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia- UESB. 2 Silva, Vagner Gonçalves. Antropologia e Seus Espelhos. Seminário Temático. FFL-USP. São Paulo 1994.
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interdisciplinar abre-se em diálogo com outras disciplinas e em busca da produção de
conhecimento e da socialização do mesmo, de dentro para fora da sala de aula, e se
pergunta em público: O Que É Cultura? Graciela Chamourro estudiosa da palavra
guarani, nos recorda que existe uma condição de fundamental importância para que um
diálogo se estabeleça:
Precisa haver dois aprendizes que se reconhecem em condições iguais (estar no mesmo degrau), que querem levar-se a sério e aprender um com o outro. Sem esta condição e esta disposição só haverá um monólogo de um ensinador que prega, para os que estão embaixo, seu saber superior. 1
A convite da Antropologia, o DCHL abre sua Sala Cerimonial AD PLENAM
VITAM, em nome do Tempo, para esse diálogo entre as várias disciplinas em torno de
possíveis visões de mundo, concomitantemente visões de cultura: a Ecologia, a História,
a Geografia, a Sociologia, a Matemática, a Literatura, a Linguística, a Leitura, a
Biologia; acompanhadas da Metodologia da Pesquisa compareceram no auditório do
Centro de Cultura Antonio Carlos Magalhães da cidade de Jequié, entraram em cena e
brilhantemente encontraram respostas. Até a Física esteve presente. Um dia depois da
Física, a Matemática apresentou-se com sua nova faceta, vestida de etnomatemática e
esta foi apresentada ao público pela Saúde que com garbo declarou:
Realmente é muito gratificante discutir a questão da cultura e da matemática. Como falar de 200 gr. de açúcar, de 100 gr de sal, meio copo de leite, 1 k de carne, meio copo de cachaça, um copo de cerveja e por aí. Então presentes esses números, essa matemática que está no nosso dia a dia e que fazem parte da nossa cultura. Acho fundamental tentar desmitificar essa coisa que muitas pessoas ainda têm a ideia de que quando se fala em cultura é pra se falar de eventos culturais, ou em programações culturais ou em TV ou em rádio, ou em cultura de estudos. A cultura está na nossa vida cotidiana, e é por isso que desde que fui convidado a falar neste seminário fiquei bastante feliz. Que bom que tem gente preocupada de entender a cultura não no sentido lá longe, mas no sentido do nosso dia a dia.
... ouvindo por querer ouvir, e querer ouvir para querer ser alguma coisa mais, nessa perspectiva vou chamar o professor Edson, professor aqui dessa Universidade, particularmente amigo também, e que nos vai falar sobre essa questão da matemática e da cultura.2 E a etnomatemática em algum momento falou: Hoje o ensino caminha para um novo projeto educacional e as pesquisas apontam para trazer a matemática para a vida, para fora dos livros e é preciso que a matemática da escola esteja em sintonia com a matemática da vida.3
1 CHAMORRO, Graciela. A Espiritualidade Guarani: Uma Teologia Ameríndia da Palavra. Editora Sinodal: São
Leopoldo, RS. 2 José Maximiliano Henríquez Sandoval, Pós-Doutor em Comunicação na Saúde, Professor do
Departamento de Saúde, UESB, Jequié. Palestrante do Tema: Saúde e Cultura. 3 Edson Cardoso dos Reis, Professor Especialista de Matemática, DQE, UESB, Jequié. Palestrante do Tema:
Matemática e Cultura.
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No turno seguinte, o DS nos envia a Saúde que chega cantando e logo de entrada
explicita sua deferência à cultura, considera o título original, a Saúde e a Cultura,
porém anuncia o novo título em defesa da sua fala por ser uma sábia na área de
comunicação: A CULTURA COMO BASE DE SUSTENTAÇÃO E RITUALIZAÇÃO DO
CUIDADO DA SAÚDE.
Saúde é um conceito bastante complexo e diferente como forma de entendê-la, entretanto só tem a ver com a cultura. A cultura da vida é o que sustenta e o que ritualiza, desmitifica, modifica e reveste toda esta forma de cuidarmos da nossa saúde.1
Considerando-se, segundo Vagner Silva, autor de A Magia do Antropólogo, que
as culturas só se encontram através dos encontros dos homens. Ouve-se alto e em bom
tom a voz de quem apresenta a saúde falar: É fundamental para a gente pensar na questão da cultura e pensar na questão da saúde ou seja de cuidar da vida ou de que maneira a gente está cuidando da vida. Quando falo de cuidar da vida não falo apenas de cuidar da vida na perspectiva biológica nossa do ser humano de pessoa, mais sim de cuidar da vida da nossa sociedade, do nosso grupo, do meio ambiente, do ambiente que está em torno uma vida integral. Daí que você pode perguntar: Mas o que é vida?
Para começar a refletir em torno dessa questão polarizada entre a saúde e a
cultura, ela mesma, a saúde toda cheia de mistérios, trouxe uma mensagem constituída
de fôlego, embutida na respiração social. Podemos subentendê-la quando ela, a Saúde
cantou em ritmo de samba: ...viver é não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e
cantar na beleza de viver em uma terra feliz...
A Cultura Brasileira, disciplina com um ar de Vitória, Vitória da Conquista,
preparada com Maestria2 de quem a defendeu pelo DFCH. Unido ao DCHL fizeram
dessa manhã um deleite de autoconhecimentos. A Linguística, essa dama antiga, ciência
que estuda as línguas humanas se esmerou com sua causa advogada pelo Colegiado de
Letras do Campus de Jequié. Foi um presente experienciar as falas em condição
1 José Maximiliano Henríquez Sandoval, texto transcrito de gravações realizadas durante o evento. 2 Marília Seixas de Oliveira Flores, Mestre em Desenvolvimento Sustentável, Professora de Cultura
Brasileira do DFCH, UESB, Vitória da Conquista.
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laboratorial. A plateia participativa respirava aliviada por compreender os meandros da
língua portuguesa falada no Brasil, a sutileza dos estudos da fala... Também a beleza de
se saber apreciar a linguagem no contexto das culturas. E saber até que para se tornar
um bom leitor começa pelo ato de se autodescobrir1.
Durante o Seminário 2002.1 cada professor (a) com autoridade própria
propiciada pela disciplina ministrada esteve falando com quase quatrocentas pessoas
inscritas no evento, dentre estudantes de várias cidades de nossa região, os profissionais
de áreas e lugares diversos. A participação da Leitura está gravada em vídeo. Virou
documento do setor de Áudio Visual do Campus de Jequié.
Imagine você, a riqueza de aprendizado que foi escutá-los. Dos vinte e oito
professores convidados a repensar a cultura no palco do Centro de Cultura A.C.
Magalhães, vinte e cinco deles estiveram presentes e dialogaram com as cidades
representadas por sua gente carregada de valores das suas culturas. Será que você
conhece algum desses professores?
O campus de Itapetinga trouxe o cardápio brasileiro apresentado pelo
Departamento de Tecnologia Rural Animal, DTRA, através da área de Engenharia de
Alimentos, compareceu em alto estilo, com roupa de festa e bagagem própria para viajar
o país inteiro. Juntos embelezados pelas imagens passeamos com a gastronomia por
cada uma das regiões do Brasil.
A variedade de quadros importantes, ou seja, uma variedade de vegetação e consequentemente com esta variedade de vegetação uma variedade de alimentos típicos de uma determinada região e outros não se encontram tendo que estar importando de uma região para outra para podermos estar consumindo aquele determinado tipo de alimento.
As diferenças culturais se misturaram; as ervas, as frutas tropicais e os produtos regionais que nós temos me levou a quê? Ao cardápio cultural brasileiro que no decorrer iremos abordar para entender as diferenças que existem nas diferentes regiões.2
Obviamente pesquisando em qualquer enciclopédia ou dicionário (seja ele de
língua, etimológico ou de filosofia, ou mesmo via Internet, e. g.) teríamos verbetes a
altura de uma compreensão redonda sobre o termo Cultura. Aqui uma estudiosa do
1 Maria Afonsina Ferreira Matos, Doutora em Letras, Professora do DCHL, Coordenadora do Projeto de
Pesquisa e Extensão Estação da Leitura. UESB, Jequié. 2 Sibelli Passine Barbosa ferrão, Professora Ms. Coordenadora do DTRA, UESB, Itapetinga. Palestrante do
Tema: Alimentação e Cultura.
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assunto, Maristela G. André nos favorece com sua contribuição: Cultura é a infinita
capacidade humana de criar e inventar diversos modos e jeitos de viver em sociedade
que nos possibilita identificar como cultural o que, no primeiro momento, parecer
natural.
Porém a nossa intenção com esta pergunta tão direta, expressa parte do
compromisso de abordar atualizações com os alunos e refletir com a sociedade os vários
estudos, desmitificando a cultura em forma de Seminário. O Que É Cultura? Espelha
também outras questões que vão além de uma leitura imediata, questões essas que
envolvem uma atenção especial ao ato de escutar quem estudou, cada professor que
exerce com a competência o ministério pedagógico da disciplina incrustada na sua
atuação.
No meio intelectual escuta-se falar que existem mais de 160 definições do termo
cultura, ainda assim, agora menos que há três anos atrás, em nosso meio acadêmico, as
concepções de cultura aparecem descomprometidamente usadas com uma visão muito
reduzida; aplicam-se quase que exclusivamente a manifestações culturais, quando não
ao cumulativo de conhecimento adquirido, como alguém culto. Não só nós, mas a
novidade é que ainda hoje não chegamos a um consenso sobre o significado exato do
termo.
Compreendemos que o conceito antropológico de cultura (que embasa os
universos de modos de ser) é constituído como parte essencial da construção de visão de
mundo, sentido de vida, estado de consciência tão necessária para uma sociedade em
vias de desenvolvimento. Nesse contexto inevitavelmente temos que continuar os
estudos sobre as razões que determinam que o Brasil seja um país de perfil matizado por
sombras e luzes de tesouros culturais. Suas matrizes culturais, quiçá. Até porque
vivemos em um país culturalmente complexo constituído na sua origem por três grandes
matrizes: Indo-luso-africana.
A aceitação e o reconhecimento das diferenças culturais presentes no País transformam-se em marco fundamental desse processo construtivo. Mas não basta afirmar as diferenças. É preciso dizer o que as constitui para que a construção sempre dinâmica de nossa identidade se faça com os pés no chão. 1
1 BRITO, Ênio José da Costa. Anima Brasilis. . Identidade cultural e experiência religiosa. São Paulo: Olho
D’Água, 2000, p. 89.
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Para continuar a responder. Em meio às reflexões, chegou a hora de relembrar
algumas falas documentais, obviamente não como verdades únicas mas como preciosas
contribuições processadoras do nosso estudo. Em outras palavras, a experiência desse
diálogo foi um marco de produção de conhecimento constituído pela Universidade, uma
UESB mais engajada no processo artístico-cultural da sua sociedade1. No Centro de
Cultura a Geociências explicitou uma antiga caminhada que atualmente toma a forma de
projeto de pesquisa e extensão que no ensino faz história engajada na cultura do fazer
ciência.
A ciência está no trilho, o Projeto A Ciência na Trilha é uma proposta de levarmos estudantes das escolas de Jequié ao ambiente fazendo um levantamento da geologia, da paleontologia, da geomorfologia e através do conhecimento da realidade do ambiente de Jequié se consiga a preservação dos ecossistemas locais, onde os estudantes serão multiplicadores e assim teremos melhores condições de lutar pela preservação do meio ambiente. 2
Com a intervenção da Literatura Brasileira perpassamos entre visões didáticas
que nos levaram do laboratório de Ruy a poesia de Brecht. Bem dita seja a cultura.
Me falta a experiência de Ruy, Cecília e Guadalupe, pois bem, fico pensando que nós fazemos o tempo todo um pouco de arte como já dizia Brecht ‘eu comparo a arte com um pouco de Sol, dizem que o Sol é um pouco de fé, por mais que você não veja, não sinta o calor do Sol, ele sempre esta brilhando’ e assim que se faz arte quando o Departamento de Ciências Humanas e Letras decide colocar o coral de vozes da UESB e faz arte quando consegue colocar as quintas culturais coordenado por professor do Departamento de Letras e quando consegue realizar este evento proposto pela professora Rodrigué. Hoje nós tivemos a Prof. Dra. Maria Afonsina Ferreira Matos e quero lembrar que no dia 24, as 14:00 h o núcleo de arte da área de estudos literários estará aqui dialogando com vocês, espero incitar os meus alunos a fazer arte da melhor maneira possível, mais viável, fazendo e efetuando a própria arte que pode estar quieta mas não irrequieta. 3
Não nos restam dúvidas quanto à arte. Mas duvidando como é de se esperar no
mundo da ciência, fruto da epistemologia, lugar da dúvida dinâmica; sem certezas, mas
com evidencias em relação à Alimentação e Cultura. Escutai vós:
1 Jorge Barros, Professor Especialista do Departamento de Química UESB\ Jequié. Palestrante do tema
História da Arte na UESB e Cultura. 2 Ruy Macedo, Professor Esp.de Geociências do DQE, UESB\ Jequié. Convidado à Mesa de Apresentação
do Projeto do Museu de História Natural.
3 Anísio Assis Filho, Professor Especialista da disciplina Literatura Brasileira, DCHL,UESB/ Jequié.
65
Existem hoje mudanças culturais muito fortes que estão fazendo transgredir os hábitos alimentares da população em função de uma mudança cultural que o povo de uma forma geral vem sofrendo ao longo dos anos. A primeira delas, a entrada da mulher no mercado de trabalho. Quando eu falo digo das estudantes que aqui estão, que irão entrar no mercado de trabalho têm que sair de casa para virem a faculdade. Ao sair o que acontece é que você larga o marido, os filhos, o cachorro, o papagaio para poder buscar algo na vida.
E sem que percebêssemos, uma mudança no cenário. No centro do palco a
memória do campus de Jequié, o DCB e o DQE e, com arte o Professor Jorge Barros já
no meio da conversa relata a História:
Mesmo porque para que não sabe, o ensino superior em Jequié faz 25 anos. Aqui o primeiro professor que deu aula em um curso foi o professor Ruy Macedo. Tenho uma foto sua, professor, e faço questão de colocar essa foto no mural. Retrata a primeira aula no curso de Ciências em agosto de 1977. No inicio da criação da UESB, ela participava de desfiles cívicos e porque se afastou, porque sabemos mais que as pessoas simples? Ledo engano.
É possível visualizar que o assunto essa noite se configurava entre a História da
Arte na UESB e o Projeto do Museu de Historia Natural. Professor Ruy Macedo sugere
que este se chame Museu Dinâmico de História Natural, e segue desenvolvendo seu
argumento:
Quando se fala em museu se imagina um espaço onde não tem movimento, onde não há ação, que é apenas um espaço de mostrar aquilo que já ocorreu e que está perpetuado. Com relação à parte da Geologia, a maioria das pessoas não sabe que já foi encontrado fóssil na região de Jequié, que está em fase de classificação e que será levado para o museu, pois muitos que aqui nascem e morrem na região de Jequié não tem conhecimento sobre a história da formação do espaço geográfico que é a região de Jequié, que não sabem que a formação geológica chamada Complexo de Jequié é conhecida no meio científico, como a região das mais antigas da terra que se formou a mais ou menos 4,5 bilhões de anos e que o Complexo de Jequié é muito importante e conhecido no mundo inteiro é formado principalmente de granito e rochas metamórficas. 1
Antigamente não existia Biólogo, afirma a Professora Guadalupe, existia naturalista, o curso era de ciências naturais, depois de historia natural e hoje biólogos, isso demonstra como o conhecimento foi crescendo a tal ponto de não podermos deixar às atribuições dos naturalistas toda responsabilidade que os biólogos têm com a história natural. Isso nos permite fazer o testemunho da natureza através da sua história, sendo fomentado através do museu, proposta apresentada pela Dr.ª Maria Cecília.
1 Ruy Macedo, Professor Especialista de Geociências do DQE, Membro titular do Comitê de Extensão da
PROEX, UESB/ Jequié.
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O biólogo hoje deixou de ser naturalista, porque a sua área de estudo ampliou muito. No passado o naturalista atendia a Paleontologia, a Geologia, a Botânica, a Genética. A área nos permitia até a formação de geólogos, que eram naturalistas e hoje, o botânico é botânico, o zoólogo é zoólogo, geneticista é geneticista... E ainda surgiram outros como o microbiologista... Na década de 50 para cá, esse conhecimento se multiplicou, a genética não existia, muitos professores não estudaram DNA, a genética com seus estudos avançados está dando passos aceleradíssimos em termos de conhecimento, então o Museu de Historia Natural contribuirá para o registro e divulgação, para mostrar e informar a sociedade todos os fatos históricos que avançam nas ciências naturais.1
Museu na verdade é um local de resgate. 2 O povo pode ter acesso a conhecer a cultura, a biodiversidade, os regionalismos, a história local através de suas coleções. Ao exibir espécimes, exemplares de organismos variados, onde se estudam através das coleções o habitat, a diversidade, o comportamento, o tamanho das populações, além de coleções didáticas que serão levadas em sala de aula para os alunos pesquisarem sua importância em estudos paleontológicos, da geologia através das rochas, e artefatos que viabilizam o aprofundamento das raízes de qualquer área, da antropologia, das ciências, da cultura. Objetiva-se atrair a sensibilidade da comunidade para o porquê preservar o ambiente natural.
Nós que vivemos aqui na região da caatinga observamos os animais que vivem na caatinga, qual o ambiente que caracteriza a caatinga, o que caracteriza esse ecossistema. Muita gente acha que é um ecossistema pobre, que deve ser queimado e transformado em pasto; a caatinga é um ecossistema valorizadíssimo que está se extinguindo por desinformação. Eu não sou contra áreas de pasto; o que deve existir é um desenvolvimento sustentável, se a gente refletir, vamos chegar à preservação de áreas que não foram devastadas, preservar as espécies, conservar com áreas utilizadas pelo homem.
O Brasil tem uma grande biodiversidade; a biodiversidade da nossa mata, dos nossos ecossistemas é muito grande. Não temos uma tradição de cuidar e preservar. Fora do Brasil se trabalha muito seriamente o material de ecossistemas locais do mundo todo. Então eles reconhecem o valor cultural e cientifico. 3
No mundo da fala a rigor eu compactuo com o outro, e através de códigos para o outro ou a outra me entenderem, porque se eu falar na minha linguagem própria, só minha ou da minha comunidade apenas, ninguém entende.
Em meio a lapsos e sustos de silêncio no auditório, as palmas; podemos considerar
que se encerrou a ocasião, o diálogo continua em pauta, elucidado com a proposta do
Profº. Drº. Manoel Sarmento é hora de dicionarizar o termo cultura.
1 Guadalupe, Professora Ms. Pesquisadora, na época Diretora do Departamento de Ciências Biológicas,
UESB/ Jequié. Profª. Convidado à Mesa Projeto do Museu de História Natural. 2 Maria Cecília Guerrazzi, Professora Drª. Pesquisadora do DCB, Coordenadora do Projeto do Museu de História Natural. UESB, Jequié. 3 Maria Cecília Professora Doutora do Departamento de Ciências Biológicas, UESB/ Jequié. Profª.
Convidada à Mesa e Coordenadora do Projeto do Museu de História Natural.
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LEITURA &
FILOSOFIA
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O AMOR NA MITOLOGIA:
UMA LEITURA ARCAICA DO MITO GREGO
POETICAMENTE ACOLHIDO1
Dante Augusto Galeffi 2
NOTA PRELIMINAR – O CONTEXTO DA LEITURA
Em primeiro lugar, agradeço o convite para participar desta mesa-redonda que
fará Leituras do Amor, cabendo-me tratar de O Amor na Mitologia. Espero,
sinceramente, não decepcioná-los com o que vou apresentar, porque, de forma decidida,
fiz voto de pobreza em relação ao conhecimento mitológico acumulado secularmente.
Assim, o fio condutor de minha fala é o despojamento radical de toda e qualquer
assertiva acerca do mito do amor, para com isso alcançar uma proximidade
hermenêutica com a fonte arcaica do mito em sua germinalidade primordial e não ainda
antropomórfica. Neste sentido, irei me ater exclusivamente à gênese arcaica do mito
grego do Amor, o que não invalida outras possibilidades de Leituras do Amor. É,
portanto, a partir de um perspectivismo radical que enveredo por este caminho de leitura
do mito do Amor, procurando com isto um modo de acesso, que permita admirá-lo em
sua nascente arcaica e poeticamente disposta.
E porque fiz voto de pobreza, não farei aqui o papel do mitológico erudito e
especialista no assunto. Pelo contrário, o meu interesse é essencialmente hermenêutico,
porque o que quero investigar não são as variações históricas do mito, a partir da
literatura consagrada, e sim sua força motriz originante, segundo as fontes históricas
rigorosamente trabalhadas. Neste sentido, uso de apenas duas fontes bibliográficas, que
são Kerényi (1998) e Brandão (1992), Karl Kerényi e Junito de Sousa Brandão.
Decididamente, não é o meu intuito fazer uma exposição exaustiva do tema e nem
muito menos demonstrar conhecimentos artesanais sobre as sagas mitológicas. O meu
intuito é realizar uma leitura arcaica do Mito do Amor, a partir do viés de Karl Kerényi,
1 Texto elaborado por ocasião da participação na mesa-redonda Leitura do Amor, realizada em 1º de agosto
de 2002, na UESB, Jequié/Ba, promovido pelo Curso de Especialização em Comunicação e Semiótica. O tema sugerido foi: O Amor na Mitologia.
2 Professor adjunto da UFBA – FACED; coordenador da Linha de Pesquisa Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA (mestrado e doutorado).
69
tendo com horizonte tensivo o retorno radical às imagens primordiais recolhidas de três
fontes gregas, a dos poetas Homero, Orfeu e Hesíodo. É pela proximidade com a
perspectiva de Kerényi que pretendo, agora, ir direto ao assunto, recorrendo a Junito
Brandão quando se fizer necessário esclarecer a etimologia de algum nome relativo ao
deus do Amor, o deus Eros. A inspiração tirada da leitura de Kerényi, entretanto, é para
mim apenas pré-texto na construção/invenção deste texto que realiza uma leitura do
mito grego do amor, na perspectiva da sua origem poética e de sua vigência arcaica – no
sentido do arché, isto é, do que se encontra lançado na origem e no princípio, e,
enquanto lançado, vigora no tempo de sua permanência. Neste sentido, seguimos o
caminho de uma redução psicológica do mito do amor às suas imagens primordiais,
tiradas dos textos dos poetas evocados, através do texto de Kerényi, Os Deuses Gregos.
Com isto, acredito poder levar a sério uma advertência que este faz aos possíveis
leitores de seu livro. Ele diz que o mesmo foi escrito para adultos, e acrescenta:
...vale dizer, não apenas para especialistas empenhados em estudos clássicos, da história da religião ou da etimologia; menos ainda crianças, para as quais, no passado, os mitos clássicos eram remodelados ou, pelo menos, cuidadosamente escolhidos de modo que se ajustassem aos pontos de vista da educação tradicional; mas simplesmente para adultos cujo interesse principal – que pode implicar interesse por qualquer um dos ramos do saber supramencionados – reside no estudo dos seres humanos. (1998, p. 15)
Gostaria, assim, de poder falar para adultos, isto é, poder falar para aqueles que
tomam a mitologia como fonte de estudo dos seres humanos, na perspectiva de um
possível diálogo pensante, que tem por fim o êxito simples e despretensioso de um fazer
poético protegido nos limites do seu próprio jogo imagético. Nisto, estou na
consonância de Kerényi (1998, p. 16)
Se todo legado mitológico dos gregos for libertado da psicologia superficial de apresentações anteriores e revelado, em seu contexto original, como material sui generis, e tiver suas próprias leis, essa mitologia, como resultado inevitável, terá o mesmo efeito da psicologia mais direta – o efeito, em realidade, de uma atividade da psique exteriorizada em imagens.
De certo modo, encontro-me em um caminho de retorno radical à coisa mesma
do mito, isto é, pratico uma atitude fenomenológica diante da imagética do mito, através
da vivência de uma atividade especial e criativa, uma atividade eminentemente poética
da própria psique humana em suas possibilidades fabuladoras de caráter coletivo e
70
individual. Isto para dizer, a mitologia vive de imagens e sua fruição é necessariamente
uma experiência imagética provinda de uma região superindividual, por assim dizer,
uma região objetivamente transpessoal. As imagens, assim, são o corpo fenomenal da
vivência mitológica, o que as torna objetivas naquilo que configuram como arquétipos
coletivos capazes de ressoar na ambiência de um instrumento humano singular e
sensível, gerando efeitos imprevisíveis em suas flutuações monótonas e surpreendentes.
Entretanto, uma tal objetividade da vivência mítica em nada se compara com a
objetividade da racionalidade humana instrumental. Pelo contrário, ela nada tem a ver
com a objetividade da razão metafísica moderna, pois sua objetividade diz respeito à
vivência do que se experiência distintamente na condição humana singular, o que,
portanto, é sempre uma manifestação de entusiasmo e de comoção estética genuína.
A objetividade do mito pertence ao mundo do extra-ordinário. Neste seu modo
peculiar de ser, ele é emotivo, vocativo, comotivo e evocativo ao mesmo tempo.
Portanto, o mito só faz sentido para quem acredita nele. Aí está a sua diferença e a sua
originária força: o mito é a narrativa das origens; ele é por natureza originante. O ser
objetivo do mito é sua pujança imaginífica: o não-lugar do ser em seu fluir permanente.
O mito antecipa o acontecimento dos seres no seu aparecer e mostrar-se imaginante.
Mas ele também vela o ser de sua dispersão propagante na imageabilidade especular
dos sentidos: a multiplicidade oculta o sentido no aberto do sem-sentido – propaga-se
no silenciar iluminante. Como pode, então, a razão polarizada, para a qual o mito não
passa de “fábula”, isto é, de fantasia humana desviante e infantil, compreender o mito
em sua nascente originante?
Acredito na possibilidade de vivermos o mito em sua dimensão estética
primordial. Esta minha crença, entretanto, pressupõe a distância apolínea, que permite
vivenciar sua narrativa a partir de um despojamento emocional radical. Ou seja, quando
digo que estou procurando dialogar com adultos, enfatizava justamente esta
possibilidade de partilhar o acolhimento do mito em sua ressonância extra-ordinária,
apesar de não poder garantir a ninguém o momento exato de uma precipitação vivencial
esteticamente significativa. Entretanto, quero também dizer que experiencio um
maravilhado diante do que se descortina nas imagens primordiais que vou passar a
narrar, e em me pensar acolho a imensidão do vazio primordial em eu caos anelante.
Para mim, as passagens aqui acolhidas são o signo do velamento protetor de todas as
possibilidades aprendentes relativas à arte dos mitos. E porque assumo a leitura do mito
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como uma vivência estética extra-ordinária, considero que o estado de ser adulto do
qual fala Kerényi, como condição para a sua experiência, é justamente o alcance do
estado de ressonância poética com a força criadora do mito em sua nascente primeva.
Em outras palavras, isto quer dizer que é preciso sempre recriar a força ingente do mito
a partir de um fazer com arte, um fazer que, ao fazer, inventa o seu próprio modo de
fazer (evocando aqui o conceito de formatividade de Luigi Pareyson), e isto de tal modo
que este mesmo fazer se torne o sentido de quem o faz em seu amor pelo incessante
recomeçar das Coisas mesmas...
O MITO DO AMOR EM SUA NASCENTE ARCAICA – O COMEÇO DAS COISAS...
Na origem, o mito do amor está circunscrito na narrativa do princípio das coisas.
Para compreendê-lo é preciso levar em conta os termos desta narrativa (ou narrativas) e
seu círculo gerativo retornante. As mitologias de todos os povos primevos da Terra
agrupam muitas narrativas acerca do princípio das coisas. A ocidental, de origem grega,
também tem suas cosmogonias originantes. A que se considera a mais velha parece ser a
que vem de Homero, quando atribui a Oceano a “origem de todos os deuses”, e a
“origem de tudo”. Como narra Kerényi, “Oceano era um deus-rios” (1998, p. 25). Como
deus-rios, possuía poderes inexauríveis de gerar, como acontece com os nossos rios.
Entretanto, Oceano não era um deus-rios comum, o seu ser-rio não era um rio comum.
A partir do momento em que tudo dele tem origem, dele tudo flui incessantemente nele
mesmo. Oceano é, assim, um deus-passagem, deus-fluxo em si mesmo. No princípio,
portanto, estava o FLUXO, ser origem e fluxo, “fluindo de volta sobre si mesmo num
círculo”. O Fluxo é, então, a força do que reflui incessantemente para si mesmo. O
Fluxo é o Mundo, o Cosmo, o Universo. Fluxo é a Vida em seu modo de ser-fluxo. O
Fluxo reflui de si mesmo para além de si mesmo, em si mesmo. Fluxo é campo de força
e vastidão: incomensurabilidade. A Água é Fluxo; o Fogo é Fluxo; a Terra é Fluxo; o Ar
é Fluxo. Tudo o que é, é Fluxo.
Fluxo, então, é o deus originante de tudo o que é. Oceano é o seu nome grego na
designação de um deus-rio. A água, portanto, é o seu elemento. E porque se trata da
água que jorra de uma nascente, o deus Água, Oceano, é a própria nascente em seu
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perene fluir: a nascente que se perpetua na nascente e se expande aos confins do seu
fluir, a para si mesmo retoma originando o Fluxo, na escuridão abissal do infundado
Caos.
No princípio, então, é o Fluxo. O Fluxo chamou-se Oceano; Oceano
presentificou a Água com elemento originante. Entretanto, Oceano em si mesmo é o par
de Tétis: ele mesmo é, enquanto Oceano, a própria Tétis, isto é, a Mãe de tudo o que é.
Oceano e Tétis formam o casal original. O Fluxo, portanto, é Fluxo fundado na
diferença entre o “O” e o “T”, isto é, no encontro de iguais enquanto Fluxo: o meio, não
o início, não o fim, mas apenas o que flui, o que jorra, o que escorre e o que passa
apenas para recomeçar a passar de novo, sempre outro, sempre o mesmo fluir-ir-e-vir.
Aos poucos indícios mitológicos acerca de Tétis a associam à Senhora do Mar, isto é, a
esposa de Oceano.
Contudo, procurando ouvir uma outra ressonância, aquela que perece provir do
poeta Orfeu, o sentido de Fluxo como o “casal original”, compreendendo aí a geração
de um campo de força no fluir incessante das coisas. Esta outra narrativa nos diz que no
princípio era a Noite (Nyx). A história a descreve como um pássaro de asas negras. A
Noite copula com o Vento e gera Eros. Na narrativa de Kerényi:
“A antiga Noite concebeu do Vento e botou o seu Ovo de prata no colo gigantesco da Escuridão”. Do Ovo saltou impetuoso o filho do Vento, um deus de asas de ouro. Chama-se Eros, o deus do amor; mas este é apenas um nome, o mais lindo de todos os nomes usados pelo deus. (1998, p. 26)
Nessa versão da origem dos deuses, Eros é o filho do casal primogênito. O ovo
do qual nasce Eros é de prata. Eros, entretanto, luze com suas asas de ouro. O amor,
assim, nesta imagem arcaica, é encantador e flamejante. O amor tem asas de ouro. Ou
melhor, o amor tem asas de fogo. O amor encadeia em seu próprio luzir dourado. O
amor, assim, é quase o astro rei em sua marcha perene. A solaridade do amor em suas
asas de ouro: o quente, o agitado, o fluido incandescer pulsante.
Eros é o deus do amor. Nesta revisão, os seus outros nomes aparecem como
atribuições de sua pujança ígnea. Assim, Eros é também conhecido como Protógono e
como Fanes. No primeiro caso, salienta-se que ele foi o “primogênito” de todos os
deuses, enquanto no segundo caso, indica-se exatamente o seu primeiro ato ao sair do
Ovo: “revelou e trouxe à luz tudo o que antigamente jazera escondido no Ovo de prata -
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em outras palavras, o mundo inteiro” (Kerényi, 1998, p. 26). Acima deste Ovo de prata
estava o vazio, isto é, o Céu. Abaixo dele, o Repouso. Os gregos chamavam este vazio
de “Caos”, ou seja, simplesmente aquilo que “bocejava”, a absoluta ausência de
qualquer coisa, a Escuridão abissal do Nada. Só com o passar do tempo é que a palavra
“Caos” irá adquirir o sentido de tumulto, confusão e desordem. Este perda do sentido
mais original de “Caos” ocorre em virtude do surgimento do pensamento originário
grego, que elabora uma doutrina dos Quatro Elementos. Deste modo, na sua forma
primeva, o Caos encontrava-se abaixo do Ovo em estado de quietude; o Caos era
Repouso. Segundo uma outra versão da história, a terra jazia abaixo do Ovo, e o céu e a
terra se uniram. “Essa foi a obra do deus Eros, que os trouxe para a luz e depois os
obrigou a se misturarem. Eles produziram um irmão e uma irmã, Oceano e Tétis, como
diz Kerényi (1998, p. 26).
Essa velha história de origem órfica, provavelmente, tinha sua continuidade na
narrativa que dizia que, no princípio, Oceano encontrava-se abaixo no Ovo, não estando
só, mas acompanhado de Tétis. Este par primordial foi o primeiro a agir sob a
compulsão de Eros. Como se encontra em um poema de Orfeu: “Oceano, o que flui
lindamente, foi o primeiro a se casar: tomou por esposa Tétis, sua irmã por parte de
Mãe”, isto é, a Noite (Nyx).
Isso mostra, na versão órfica. Eros como o primogênito de todos os deuses
nascidos da união da Noite com o Vento. A partir de Eros ocorre o refluir da própria
origem como Fluxo. Eros, assim, é a origem da união dos opostos em fluxo e refluxo
contínuo. O amor, desta forma, em sua origem é a força de atração e repulsão de tudo o
que é. O Eros primordial é a força de coesão do mundo: a união dos opostos em
perpétuo fluir gerador – a gênese da multiplicidade. O Amor, assim, como deus
originante, é a incandescência da vida em seu esplendor instante: o intemporal que
freme na temporalidade – a superfície ígnea. O Amor primordial, assim, é o verbo
“amar”.
Etimologicamente, Eros, em grego “Érõs”, provém do verbo “érasthai”, que
significa estar inflamado de amor, designado algo como desejo incoercível dos
sentidos. Há, também, uma versão de Carnoy que faz uma aproximação deste verbo
com o indo-europeu (e)rem, que significa comprazer-se, deleitar-se (Brandão, 1993, p.
356). De qualquer modo, é como verbo que o deus Eros se mostra na origem: o verbo
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Amar. Isto indica, entre outras coisas, o desejo incoercível dos sentidos: comprazer-se,
deleitar-se; indica, portanto, o querer-ser de tudo o que é vivo e vivente. O Amor
primordial, assim, encontra-se despersonificado, o que não quer dizer que se encontre
desencarnado. De forma precisa, ele é a encarnação da vida-sendo: o Fluxo. E o Amor,
enquanto Fluxo, cinge, no mesmo Ovo de ouro, a Necessidade e a Liberdade. O Amor é
justamente o meio de propagação desta união. Unido é o Amor na perpetuação do Fluxo
vivente da diferença primordial dos opostos. O Amor, portanto, está sempre no caminho
de si mesmo: por isso é sempre um consumar-se perpétuo, um dilacerar-se incansável.
O Amor é sim, desejo: a carnalidade dos sentidos. O Amor sente, ele é sentido-sendo. O
Amor é, assim, também cego: nele não se pode encontrar o ordinário, o corriqueiro, o
plausível, o racional, o sensato. Ele, o Amor, é a encarnação do que freme de vida em
todas as direções e sentidos. O Amor ama. Ao amar, o Amor se consuma em
superfícies. Ele goza o gozo por si mesmo, e nunca depende do outro para gozar. O
outro é, assim, para o Amor, motivo de si mesmo: o outro é o Amor do outro – afinal,
tudo flui incessantemente para o sempre outro de si. Envolto em sua igneidade velada, o
Amor sempre surpreende o seu amante. O amante é para o Amor o seu desejo no amar
do outro: a alteridade luzente do Fluxo.
Para fechar o círculo das narrativas arcaicas e despersonalizadas, irei agora
relatar a terceira versão do mito do princípio, na qual o Amor (Eros) aparece em sua
forma originante. A mesma encontra-se na Teogonia de Hesíodo. Preferimos, aqui,
transcrever os versos de Hesíodo (1992) pela tradução de Jaa Torrano. Situando a
narração da origem, Hesíodo evoca as Musas para que falem do princípio de tudo. No
que elas respondem:
Os Deuses primordiais
Sim bem primeiro nasceu caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
E Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
E Eros: o mais belo entre os Deuses imortais,
Solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos
Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
(Hesíodo, 1992, p. 111)
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Nessa passagem breve do poema de Hesíodo, Eros aparece como “o mais belo
entre os Deuses imortais”, libertador dos membros dos deuses e dos homens, e
governante do espírito de todos os deuses e homens. Sim, em Hesíodo é apenas esta a
presentificação do Amor primordial. Eros, assim, de forma velada, aparece como um
deus que é o mais luzente de todos, isto é, o mais brilhante – o mais belo. Da suprema
beleza de Eros provém a força que desconcerta deuses e homens: “doma no peito o
espírito e a prudente vontade”. Isto é o Amor (Eros) na versão hesíodica.
Entretanto, acolhendo a interpretação de Kerényi, é preciso observar a situação
de Hesíodo em sua ambivalência histórica particular. Pastor, lavrador e poeta ao mesmo
tempo, quando jovem pastoreava carneiros na montanha divina do Hélicon, local de
culto ao deus Eros e às Musas. Circulavam pelas redondezas do monte Hélicon os
discípulos de Orfeu, que devotavam especial reverência a essas divindades. Significa
dizer que Hesíodo provavelmente não desconhecia a versão órfica do mito da origem.
Concordando com Kerényi, a história contada por Hesíodo soa como se ele tivesse
omitido o ovo da história da Noite, o Ovo e Eros, apresentando Geia, a Terra, como a
deusa primordial, justamente pela sua proximidade com o elemento terra, na qualidade
de agricultor. E se em sua Teogonia ele cita primeiro o Caos, este não era para ele uma
divindade, mas tão somente um “bocejo” vazio – isto é, o efeito do ovo vazio depois de
retirada a casca.
De qualquer modo, também em Hesíodo, Eros é um deus que não se encontra
ainda personificado, apesar de mostrar-se como “o mais belos entre Deuses imortais”, o
que também indica uma distinção que apresenta uma diferença: Eros é o que liberta os
imortais e os mortais dos grilhões da indistinção e da não-vida. Assim, Eros também
aqui se mantém como força jorrante, na medida em que “doma no peito o espírito e a
prudente vontade” dos imortais, assim como dos mortais. Tudo, deste modo, é
perpassado pelo agir de Eros em seu fulgor extasiante. Na versão de Hesíodo, Eros
permanece sendo uma força ingente que a tudo arrasta em sua desconcertante marcha.
Entretanto, ele consegue conjugar a força desconcertante do Amor – que a todos “solta-
membros”, isto é, enlouquece, libera, multiplica, extasia -, com a força capaz de domar
no peito (coração) o espírito, levando a vontade a temperar-se no caminho do meio, isto
é, na prudente sabedoria. O Amor primordial em Hesíodo, deste modo, apesar de
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esconder-se em sua vastidão incomensurável, é tanto a paixão bruta do desejo cego, a
híbris, como a sabedoria hineante da mais bela harmonia, a diké. O Amor é o
“descomedimento” e o “comedimento” conjuntamente, o “desequilíbrio” e o
“equilíbrio” em um só fruir. O Amor é assim: oras é arrebatamento, oras é sabedoria;
oras rebento ingente, oras apaziguamento vívido, despojamento serenojovial e humor
benfazejo. O Amor se esconde em muitas faces: ele se metamorfoseia em diversidades
sempre inesperadas.
Em Hesíodo, o Amor primordial, o deus Eros, é apenas evocado em sua luzência
fundante: ele perde os contornos de sua imperância primordial, para distribuir-se como
Idade da Justiça, a denominada Era de Zeus. A saga de sua Teogonia compreende um
arco de tempo que vai do Caos até Zeus, ou seja, vai do Caos até a culminância da
terceira geração divina, identificada como a Era da Justiça. A partir do enfoque de uma
decadência brutal do espírito dos homens, tendo vivido ele mesmo na pele o despotismo
de senhores feudais desonestos e injustos, promotores da injustiça entre os homens,
Hesíodo profetiza o advento de uma nova era. E porque o enfoque de Hesíodo é a
rememoração do que foi e o que virá, o mito do Amor em sua forma arcaica é deixado
de lado para dar lugar a uma outra criação: a criação do homem. Este, no entanto, é
fruto de relações incestuosas entre os imortais e os mortais, são neste sentido “heróis”,
isto é, filhos nascidos das relações amorosas entre os diferentes pólos do desejo. E
porque com Hesíodo envereda-se em uma passagem onde mortais e imortais se
aproximam como nunca, o Deus do Amor se faz também a temperança de um
temperamento justo: alcança o Amor maduro. Neste aspecto, teríamos que percorrer
outros caminhos e desembocar no grande Oceano do Amor Sábio. Este, entretanto,
sempre se vela nas peripécias de sua divina mania: não se deixa nunca capturar em
redes fixas e em casas abandonadas. O Amor Sábio, em Hesíodo, parece confundir-se
com a figura do grande Zeus. Zeus, assim, seria a presentificação do Amor maduro, isto
é, o Amor Sábio: a justa medida.
Nessa transposição arriscada, o Amor Maduro perde o seu contorno primevo e se
encarna na poeticidade do fazer humano. Esta passagem, entretanto, não é feita de uma
só vez, o que não cabe ao mito explicar, pois, enquanto narrativa originante, o mito do
Amor não foi deixado para trás no tempo das “fábulas” e das “fabulações”, mas
continuamente faz acontecer o ser em sua ingente beleza: tudo sempre precisa sempre
recomeçar para poder fazer algum sentido.
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O mito do Amor, deste modo lido, arcaicamente lido, não é, portanto, uma mera
“fábula”. Ele, em sua fala estranha e estrangeira, me faz cantar em sua vigência e em
seu nome dizer de novo: não é preciso acreditar no Amor para que ele exista. Neste
sentido, o Amor não pode ser objeto de crença e sua personificação, qualquer que ela
seja, não passará de sombra pálida de sua luzência perene. Sua luzência, entretanto, não
é visível apenas pelos sentidos comuns, mas também se propaga fora da visão e dos
sentidos. Sua luzência é a perenidade da doação pulsiva e liberadora. Assim, sua
luzência nada tem a ver com as luzes da razão sempre certa, sempre lógica. Pelo
contrário, o Amor prima pela sua irrazão, ou melhor, por sua abundância jorrante e
sempre sensível.
A partir dessa perspectiva apresentada do Amor mítico, o mesmo foi acolhido
poeticamente em sua força ingente e originante. Para mim, isto quer dizer uma coisa
muito simples: nesta minha fala não fiz mais nada do que reencontrá-lo em mim
mesmo. Sinceramente, não fiz senão executar um cântico amante do Amor. Esta é a
minha parte da lenha necessária para acender a fogueira coletiva desta mesa-redonda.
Espero não tê-los entediado em demasia com essa leitura arcaica do Amor. Amor que se
abriu como desvelamento de tudo o que é vivo e vivente. Amor despojado de suas
infinitas manifestações singulares: força motriz de tudo – vida-sempre-viva
ultrapassando-se. Obrigado pela atenção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KERÉNYI, Karl. Os Deuses Gregos. Tradução: Octavio Mendes cajado. 10ª ed. São
Paulo: Editora Cultrix, 1998.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Dicionário Mítico-Etimológico. V. I
(A-I). 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
HESÍODO. Teogonia. A Origem dos Deuses. Tradução: Jaa Torrano. 2ª ed. São Paulo,
Iluminuras, 1992.
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LEITURAS EM MEMÓRIAS DE INFÂNCIA:
REFLEXÕES A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DE
SARTRE E GRACILIANO RAMOS1
Luciano Chaves Sampaio2
Para falar sobre esse tema, poderia recorrer e até me perder nos meandros do
universo autobiográfico que faz uma exposição, quase interminável, de relatos de
infância. Andando por essa galeria, podemos encontrar aquarelas com as primeiras
leituras de Simone Beauvoir (em, Memórias de uma moça bem- comportada), Marcel
Proust (em, Sobre a leitura ), Bertrand Russel (em, Retratos de Memórias) e até Carlos
Drummond quando ele descobre não saber que a sua história era mais bonita que a de
Robinson Crusoé.
Mas, por questão de tempo, de respeito a minha área de estudos e também por
motivo de identificação, vou deter o olhar sobre duas autobiografias para falar da leitura
em memórias de infância. São os relatos de infância do Filósofo Francês Jean-Paul
Sartre e do escritor nordestino Graciliano Ramos:
JEAN-PAUL SARTRE: AS PALAVRAS
Primeiro, vou convidar a atenção de vocês a se demorar sobre a história de
Sartre. Jean-Paul Sartre que nasceu em Paris, no ano de 1908, no seio de uma família
culta e economicamente estável.
1 Palestra proferida na Mesa-Redonda: A Literatura e o Leitor promovida pelo Programa Estação da Leitura,
julho/2003 2 Professor Titular do Departamento de Química e Exatas (DQE), Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (UESB); Especialista em Metodologia do Ensino Superior (UEFS).
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Numa entrevista, em 1970, para uma TV francesa, reproduzida pelo canal Futura, ele
declara:
As recordações e a doce despreocupação de uma infância no campo não existem em mim. Nunca mexi na terra nem fui atrás de ninhos. Nunca plantei nem joguei pedras nos pássaros. Mas os livros foram meus pássaros e meus ninhos, meus bichos de estimação, meu estábulo e meu campo. A biblioteca era o mundo aprisionado em um espelho. Ela continha o infinito, a variedade, a imprevisibilidade. Platônico, eu partia dos acontecimentos ao objeto. Para mim, a idéia era mais real do que a coisa, porque a idéia era anterior à coisa e porque ela se dava como uma coisa. Foi nos livros que conheci o Universo: assimilei, classifiquei, etiquetei, pensei, ainda que assustador fosse. E confundi a desordem das minhas experiências livresca com os acontecimentos reais. Daí veio o idealismo do qual só me livraria 30 anos depois. A leitura teve um papel muito importante desde minha infância. Eu me refugiava nas palavras, nos livros. ( grifos meus).
Como se vê, neste depoimento, a leitura dos livros o fez ir além na sua relação
com o mundo, um mundo adulto, culto. Nas lembranças reconstruídas, os livros são, a
princípio, objetos, peças de mobiliário por onde ele transitava. Depois, eles, se tornam
motivação para a transcendência, a superação do seu meio e de si ...
Isso se confirma no seu livro As Palavras (1967) onde, aos 58 anos, ele registra
suas lembranças de menino. Aí, se vê, por exemplo, dentre seus iniciadores, a
influência do avô: Sartre perdeu o seu pai cedo e foi com sua mãe viver com os avós
dos 3 aos 11 anos. Sua vida foi sempre marcada por leituras livrescas, vivia grande
parte do seu tempo dentro de uma biblioteca. O seu avô mantinha com os livros uma
relação de culto ritualizada e privilegiada: “Todos os dias eu assistia a cerimônia cujo
sentido me escapava: meu avô – geralmente tão desajeitado que minha mãe tinha de
abotoar suas luvas – manejava esses objetos culturais com uma destreza de oficiante”.
(p. 27).
Essa herança do avô preparou Sartre desde cedo para tratar a literatura como
uma paixão. (p. 30). A voz do seu avô soava como ordem que o levava a ler e escrever.
Mas, como ele mesmo diz, essas ordens não seria ordem, se ele já não tivesse esse
desejo de ler e escrever dentro de si. O avô o acordava para tanto.
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Sua mãe também teve um papel muito grande em sua vida como iniciadora da
leitura. Conta Sartre que um certo dia sentado e ouvindo as leituras de sua mãe, ele
imaginava:
era o livro que falava. Dele saíam frases que me davam medo: eram verdadeiras centopéias, que expeliam desordenadamente sílabas e letras, esticavam ditongos, faziam vibrar as consoantes duplas... (...) Quando ela acabou de ler, peguei vivamente os livros e os levei embaixo do braço sem dizer obrigado. (p. 31).
Mas isso não era tudo no ambiente leiturizador em que o Sartre menino viveu.
Além de dois iniciadores de peso (avô e a mãe), ele cresceu convivendo naturalmente
com livros e letras. Como ele mesmo diz encarcerado em uma biblioteca, conheceu os
objetos as plantas e animais.
Como aluno, tive o zelo de um catecúmeno; chegava a dar aulas particulares a mim mesmo; subia no meu Catre, com o ‘Sans Famille’, de Hector Melot, que eu já conhecia de cor, e meio recitando, meio decifrando, percorri todas as páginas, uma após outra. Quando virei a última, sabia ler. (1967, p.36)
É certo que esse encarceramento, como ele mesmo afirma, o envolveu num
idealismo exagerado que só começaria a se estremecer após o segundo casamento da
mãe e a convivência com os colegas mundanos de Le Rochelle. Só nesse momento,
Sartre cai de ponta cabeça no mundo para decifrar seus códigos e leis.
GRACILIANO RAMOS: INFÂNCIA
O segundo autor escolhido para a apreciação é Graciliano Ramos, que nasceu no
ano de 1892, em uma pacata cidade de Alagoas que tem um estranho nome de
Quebrangulo. Graciliano que contrapõe a Sartre pelo ambiente adverso em que viveu e
com o qual, exatamente, pelas adversidades me identifico.
Ao ler Graciliano deparo-me com situações semelhantes às da minha história de
vida no espaço escolar e no campo. Ao contrário de Sartre, Graciliano é uma referência
que glorifica minhas origens simples do campo. De alguma maneira posso até fazer um
paralelo entre minha experiência e a do romancista.
Em nossas primeiras leituras, o mundo é que era um grande livro aberto.
Graciliano, como eu, começou lendo os espaços em redor, as pessoas, os gestos, as
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asperezas da vida para depois aos livros ...Achava-me em uma vasta sala, de paredes
sujas. Com certeza não era vasta, como presumi (p. 08).
Minhas primeiras recordações da escola também eram de uma sala escura e uma
professora séria, gorda e feia, sem graça, que todos os dias, deixava-me de castigo por
não saber soletrar - um b com a – ba; um b com e - be ou por não ter recitado a tabuada.
Eu terminava por me submeter a essa decoreba sem explicação lógica dos números.
Sobre sua alfabetização, Graciliano conta: o pai não tinha vocação para ensino,
mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou – e o resultado foi um
desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me (1967, p. 96). Nesse clima, cada
aula, se tornava uma sessão de tortura, conforme se vê no seu livro Infância:
Uma vez por dia o grito severo me chamava à lição. Levantava-me, com um baque por dentro, dirigia-me à sala, gelado. E emburrava: a língua fugia dos dentes, engrolava ruídos confusos. Livrara-me do aperto crismado as consoantes difíceis: o T era um boi, o D uma peruinha. Meu pai rira da inovação, mas retomara depressa a exigência e a gravidade. Impossível contentá-lo. E o côvado me batia nas mãos.
Minhas primeiras leituras se deram em ambiente semelhante ao descrito por
Graciliano. Na minha experiência particular, em casa a aprendizagem sob as ordens do
meu pai, era de uma maneira instável e insegura. Quando falava sobre as coisas do
campo (o trabalho) tinha uma forma de ensinar prática espontânea e feliz. Era um
grande mestre no conhecimento da natureza (da vida animal e vegetal), entretanto, não
permitia intervenção ou contestação. O seu ensino fora do campo era um fracasso total.
Na escola, as coisas pioravam: Lembro-me de uma vez em que a professora,
mandou-me abrir um livro de ciência onde falava de animais, dos peixes, aves, os sapos,
etc. Na minha infância, pegávamos sapos de mão, brincávamos com eles. Nunca achei
um sapo feio, nem via os animais simplesmente como úteis e necessários para nossa
alimentação. Para mim, eram meus amigos e companheiros.
Os livros escolares não conseguiam comunicar essa relação afetiva com os
animais. Tanta indiferença me inquietava e distanciava-me das letras impressas. Nessa
mesma direção Graciliano diz, também:
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Aos nove anos, eu era quase analfabeto. E achava-me inferior aos Matos Lima, nossos vizinhos, muito inferior. Esses garotos, felizes, para mim eram perfeitos: andavam limpos, riam alto, freqüentavam escolas decentes e possuíam máquinas que rodavam na calçada com trens. Eu vestia roupas ordinárias, usava tamancos, enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de barros, falava pouco. (p. 183).
Essa auto-imagem diminuída, em Graciliano, só vai se debilitar quando ele
descobre o prazer de ler: primeiro com uma professora que nada sabia, mas era
especialista em contar histórias de Trancoso, depois com o padre que o apresentou os
trechos da Bíblia e, por fim, com a descoberta da Biblioteca de Jerônimo Barreto
(tabelião)– que lhe forneceu a provisão de sonhos.
Sentimento semelhante, experimentei diante dos colegas nos primeiros anos de
escola. Desse sentimento só consegui libertar-me quando entrei na Faculdade de
Economia e me tornei um dos melhores alunos. Em Sartre a situação é inversa. Ele saiu
do aconchego do seu lar e deparou-se com o mundo exterior. Sua ignorância num novo
mundo o condenava. Ele era humilhado pelos colegas por ser diferente por ser uma
criança “bem educada” que falava corretamente e cheio de conhecimentos livrescos.
Por razões diversas eu, Graciliano e Sartre fomos humilhados e desprezados.
Nós (eu e Graça), pela inexperiência no domínio dos códigos da educação formal e
Sartre, pela pobreza de leituras do mundo. Felizmente não sucumbimos à exclusão:
Sartre combinou seu conhecimento livresco com a perplexidade diante do mundo e se
tornou um filósofo existencialista. Graciliano “pagou sua hospitalidade neste mundo”
escrevendo o que viu – se tornou escritor. Eu, continuo superando-me a cada dia, indo
dos livros ao mundo e do mundo aos livros, para tentar assegurar meu lugar de sujeito
na história de um menino, um menino do campo que intenta dialogar com outros
mundos...
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalmente, posso dizer que entrar no horizonte cultural de origem guardado nos
relatos de infância em busca de memórias de leitores é uma viagem curiosa: é ter a
chance de vivenciar outros ambientes educativos no tempo e no espaço; é viver práticas
leitoras das mais variadas; é conhecer os inúmeros personagens que se fizeram
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iniciadores – o pai de Simone Beauvoir, o avô de Sartre, a professora de Graciliano
Ramos etc. São exemplos de construção do conhecimento em espaços de educação,
formal, ou não, que fazem indagar sobre a nossa própria história de leitores da vida e
dos livros dentro e fora da escola. São depoimentos que revelam ações comuns a todos
(atos de ler, atos de conhecer) desempenhadas segundo as possibilidades únicas de cada
um, colocando em jogo o ser humano em sua igualdade singular. São histórias de vida
nas quais o aprendiz, pelo contato com o livro, com a história, se reconhece ou estranha
num exercício de auto-reflexão onde, cuidando do outro, ele também cuida de si. São,
assim, narrativas que podem se tornar exemplares quando se quer pensar a educação do
ser numa perspectiva de uma educação voltada para a humanidade do homem. São
histórias vividas.
No meu caso particular, o contato inicial com as memórias de infância de
Graciliano Ramos e Jean- Paul Sartre possibilitou-me os movimentos do despertar, os
movimentos de um olhar mais cuidadoso acerca dos conceitos e preconceitos que, no
meu ponto de vista, rondam o saber acadêmico. Em Graciliano, percebi as
características de um homem do campo que superou as limitações da vida humilde, do
estudante rebelde e avesso à escola. Sartre, mostrou-me as lições do estudante ideal: aos
nove anos de idade ele já tinha lido muitas obras enquanto Graciliano, nessa idade
iniciou sua escolarização. Sartre, no entanto, mesmo fechado no espaço de uma
biblioteca, tentava brincar, subia na escada para alcançar os livros, deitava-se no tapete
para ler,como nós subíamos em árvores para alcançar frutos, deitávamos na relva para
contemplar as formas das nuvens.
Percebo, nas distâncias da vida uma comunhão de princípios. Vejo nessas
experiências, forjadas de forma tão diferente pela história, uma igualdade originante: o
desejo de ir além. Sartre teve a oportunidade de saber isso desde cedo num ambiente
amorosamente fértil; eu e Graciliano, não: só o descobrimos, quando fomos arrancados
da aridez da linguagem escolar pela palavra afetiva...
Tais experiências relatadas são de fundamental importância para os estudos da
leitura, pois cada história, cada pessoa é parte de um todo, de uma comunidade, de um
comum-pertencer mesmo que, no acontecer histórico, cada um tenha uma presença
individualizada, uma existência individual que só pode ser superada pelo diálogo. Para
84
mim, onde não há diálogo entre parte e todo, a estrela perde o brilho porque se tornou
incapaz de escutar ao ser, de participar do brilho dentro de uma constelação.
De alguma maneira, posso dizer que, enquanto leitores, estamos todos
precisando relembrar Drummond em suas palavras poéticas:
Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé. 1
E se sua história não for mais bonita que a de Robinson Crusoé, ela, com certeza
é tão bonita quanto. E o convite que eu quero deixar, aqui, com estas palavras sobre
memórias de leitura é que vocês encontrem tempo para pensar sua própria história:
- Como vocês se constituíram leitores?
- Quem foram seus iniciadores?
- Que ambiente de leitura lhes foi favorável?
- Quais foram suas primeiras leituras? Qual foi o significado delas em sua vida?
Responder essas perguntas será uma viagem mnemônica fantástica, fascinante,
porque interior, sentimental e originante:
- Interior como os subterrâneos da liberdade;
- Sentimental como a música dos afetos;
- Originante como tudo o que, num tempo primordial, nos fez leitores da vida e dos
livros.
1 ANDRADE, C. D. Infância. In: Obra poética de Carlos Drumonnd de Andrade. Rio de Janeiro: José
Olimpio, 1983, vol I, p. 4.
85
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRAISSE, E. (org.) Representação e imagem de leitura. São Paulo: Ática, 1997.
MATOS, M. A. F. Memórias de Leitura e Escola. Dissertação de Mestrado, PUC/Rio,
1996.
SARTRE, J. P. As palavras. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Européia de
Livro, 1967.
_____________. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução:
Paulo Perdigão. Editora Petrópolis, Rio de Janeiro, 1997.
RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1995.
________________. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1996.
________________. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1995.
YUNES, E. Literatura e Educação a formação do sujeito. In.: Os Contrapontos da
Literatura. Petrópolis: Vozes, 1984.
86
LEITURA, MEMÓRIA,
AUTOBIOGRAFIAS
& HISTÓRIAS DE VIDA
87
MINHA HISTÓRIA DE LEITURA
Diva do Carmo Godim Pires1
Contar a minha história de leitura é fazer uma saudosa e deliciosa viagem de
muitos anos no “túnel do tempo” de minha vida para resgatar, desde a infância, as
memórias mais caras desta experiência singular que é a leitura.
Aprendi com meu pai a gostar de ler. Ele era amante dos livros apesar do seu
“pouco estudo” como ele mesmo costumava falar. Era um autodidata. Tendo
freqüentado somente até o terceiro ano primário, como era denominado no seu tempo, o
começo do século XX, era uma mente ávida de conhecimento: ouvia rádio, lia jornal, lia
revistas, lia almanaques e lia romances.
Quem diria que Contendas do Sincorá, tão pequenina e pobre, hoje em franca
decadência, já teve um dia uma biblioteca pública!
Pois bem, meu pai, Herculano de Brito Gondim, conhecido por todos como
“Seu” Culita, fazia parte do grupo daqueles que promoviam as atividades culturais
daquela vila que só mais tarde passou à categoria de cidade. E dentre essas atividades
culturais figurava a organização de uma biblioteca.
Meu pai era um bom leitor e isso me influenciou bastante. Aliás, toda a minha
vida foi e continua sendo influenciada pelas lições de vida do meu pai. Antes mesmo da
leitura dos livros e de qualquer texto escrito, meu pai ensinou-me a ler a vida através
dos provérbios e ditos populares. Por meio deles formou-me o caráter e a têmpera que
hoje tenho. Para cada situação de vida meu pai tinha um dizer apropriado. Quando
queria nos ensinar a não vivermos pelas casas dos vizinhos dizia: “Boa romaria faz,
quem em sua casa vive em paz!”; se não nos contentávamos em comer moderadamente,
logo ouvíamos sua palavra de admoestação: “Quem come e guarda, come duas vezes.”;
se desperdiçávamos as coisas, usando-as sem parcimônia, ele argumentava, dizendo:
“Dias de muito, véspera de nada”; quantas vezes ele nos aconselhava a buscar sempre 1 Professora Aposentada da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB.
88
boas companhias, advertindo: “Dize-me com quem andas e eu te direi quem és”. E
assim, para cada situação de vida, ele tinha uma lição em forma de provérbio para nos
ensinar com aquele seu jeito especial, tranqüilo e sábio de orientar. Penso até em
escrever um livreto com as memórias dos ensinamentos do meu pai para que sirva de
aconselhamento para os meus filhos.
Quando cheguei na vida do meu pai, ele trabalhava na roça, mas tinha um
pequena casa de comércio para onde se deslocava no final da semana, até que, por
motivo de saúde, estabeleceu-se definitivamente na vila e organizou uma loja para
venda de tecidos, mas que vendia de tudo. Nesta loja aprendi a ler e ao chegar a época
de ir à escola, eu já sabia ler. Recordo-me, até hoje, a primeira palavra que li:
CONFIANÇA. Era a marca de uma mescla (um tecido grosso para calças de homem)
que meu pai vendia. A peça da fazenda, com uma grande etiqueta, ficava em pé na
prateleira. Era uma mescla de muito boa qualidade, bem resistente e por isso mesmo
muito procurada pelos trabalhadores da roça e da cidade. E de tanto ouvir falar este
nome e olhar para a etiqueta que meu pai apontava para os fregueses, lia CONFIANÇA
com a maior naturalidade e de CONFIANÇA passei a outras palavras.
Aprendi a ler. A loja de meu pai foi minha sala de alfabetização. Lá também
aprendi os numerais nas folhinhas de “números” enormes que meu pai ganhava dos
viajantes. Também na loja aprendi a fazer contas. Desta forma, as diversas
aprendizagens aconteciam da forma mais natural possível.
Não consigo recordar com detalhes as histórias e livros lidos na infância como
atividades orientadas pela escola, mas recordo que a leitura sempre esteve presente e
sou capaz de afirmar que vem de lá o gosto e prazer de ler. Lembro-me até de uma
ocorrência freqüente e curiosa dos tempos de menina. Dentre as diversas mercadorias
comercializadas por meu pai, figurava um sabonete chamado Eucalol. Esse sabonete
vinha numa caixinha bem decorada e em cada caixinha encontrava-se uma estampa, do
tipo carta de baralho, com gravuras as mais variadas e no verso a descrição do que
estava estampado no anverso. Eu colecionava essas estampas e, de certa forma, ia
enriquecendo os meus conhecimentos gerais. Outra prática constante em nossa casa era
a leitura de almanaques. Os diversos laboratórios tinham nos almanaques a sua forma
mais segura de publicidade e, como na época não havia um número maior nem variado
de portadores de conhecimentos e informações para a massa popular, o veículo mais
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garantido era o almanaque. Tínhamos também a revista O Cruzeiro, Seleções e os
jornais de Salvador. Todo esse material chegava até a minha terra pelo trem de ferro.
Em Contendas do Sincorá localizava-se uma das muitas estações de parada obrigatória,
pois lá estava uma das sedes do Escritório da Leste Brasileiro com um grande Depósito
para abastecimento e reparos de avarias das máquinas e vagões dos trens que
trafegavam por aquela ferrovia.
Dentre as diversas seções das revistas lidas, havia aquelas de maior preferência:
nos almanaques, a cada ano, eu procurava com avidez a seção que anunciava os eclipses
lunares e solares de cada ano para acompanhar aqueles que fossem visíveis no Brasil.
Também gostava de ler as piadas e curiosidades. Da revista O Cruzeiro, antes de
qualquer coisa, lia com muito interesse “O Amigo da Onça” e em Seleções a seção “Rir
é o melhor Remédio”. Penso que o humor deve significar algo para mim, pois até hoje
aprecio este gênero agora representado nas charges. Fato é que eu lia muita coisa e ler
era para mim uma forma de me sentir livre.
Meu pai foi sempre alguém muito cioso das responsabilidades da criação de
uma menina sem raízes familiares, negra, e por isso mesmo exposta à exploração de
tantos quantos imaginavam que eu poderia ser presa de qualquer um. Em virtude destas
circunstâncias, meu pai criou-me com vigilância redobrada. Quando saía a passeio pelas
casas de parentes e amigos, era sempre ladeada por meu pai e minha mãe. O tempo todo
era sempre em casa e a leitura era meu modo de viajar, de voar nas asas da imaginação,
de conhecer outros mundos, outras pessoas...
Meu pai possuía uma estante sobre uma mesa no quarto do Santo. Em toda casa
antiga de pessoas de fé havia o quarto do Santo, onde a família fazia as suas orações.
Pois bem, lá em casa, o quarto do Santo era também a “biblioteca” de meu pai.
Da minha infância, recordo e guardo alguns poucos exemplares: Um feriado no
céu...e outras lendas; Céos e Terras do Brasil pelo Visconde de Taunay; Espumas
Flutuantes (poesias de Castro Alves); um exemplar do “Novo Diccionario de
Synonymos”e a Crestomatia, uma espécie de Antologia poética. Da Crestomatia recordo
com muito zelo o texto “Retrato de Cristo” que contém fragmentos da carta de Públio
Lêntulo, nobre romano, governador da Judéia, ao Senado do grande Império (Roma),
descrevendo a pessoa do Homem Deus – Jesus Cristo.
90
A esta altura da minha narrativa, é redundante afirmar que meu pai foi meu
modelo de leitor. Mas o faço para homenageá-lo pela experiência de leitura que me
proporcionou.
Logo cedo fui levada ao colégio de freiras. Meu pai entendia (e que maravilhoso
entendimento!) que nos colégios de freiras era o melhor lugar para se educar uma
jovem, pois, do conhecimento intelectual à experiência da fé, tudo estaria contemplado.
Assim, aos nove anos fui estudar no Colégio Nossa Senhora das Mercês, em Santo
Antônio de Jesus, onde cursei da terceira à quinta série do então Curso Primário. Desta
fase, não consigo nada recordar sobre as leituras feitas. As melhores recordações
chegam-me do “ginásio”, agora já em Salvador, no Colégio São José, dirigido pelas
Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas, onde permaneci desde a primeira série do
curso ginasial até o terceiro Colegial Normal, quando me formei.
No Colégio São José, o incentivo à leitura era muito grande. Havia livros em
toda parte. Os mesmos eram distribuídos em bibliotecas selecionadas pela faixa etária
dos leitores. Havia a sala de leitura para as alunas do curso primário; sala de leitura para
as alunas do ginásio; sala de leitura para as alunas do curso colegial – normal, científico
ou clássico.
Em plena adolescência, devorei os romances de M. Delly, uma coleção de vários
volumes. Li diversos exemplares do Tesouro da Juventude, muitas biografias de Santos,
pois as irmãs eram muito ciosas de nossa formação espiritual. Afinal era um colégio de
religiosas e fazia parte do carisma da congregação a educação total, incluindo a
religiosa. Havia também as leituras proibidas, e Monteiro Lobato foi uma delas.
Naquele tempo, o comunismo era tido e havido como a maior praga da humanidade e
como Lobato era considerado um deles por suas idéias revolucionárias, ficamos
privadas de suas leituras o que hoje considero um enorme déficit em minha bagagem
intelectual. Não obstante essas pequenas dificuldades, em nosso colégio eram realizadas
diversas atividades de incentivo à leitura: concursos, maratonas, gincanas, competições
entre os vários colégios de freiras da capital. Eu mesma ganhei um Missal, em latim e
português, por ter participado e conseguido o primeiro lugar em uma Maratona Bíblica.
Recordo-me também que eram realizadas dramatizações e até peças teatrais
como extrapolação do estudo de literatura.
91
Na verdade, todo ambiente do colégio conspirava a favor da leitura. Lá éramos
incentivados a aprender música, em especial piano e acordeon (eu mesma aprendi a
tocar acordeon); com isso tínhamos que ler partituras musicais com toda a simbologia
de ritmos e sons. No último domingo de cada mês éramos levadas à Reitoria da UFBA
para assistir ao Concerto para a Juventude apresentado pela Orquestra Sinfônica da
Bahia; com isso, nos educavam para ouvir e apreciar os clássicos, o que nos obrigava,
no bom sentido, a ler as biografias dos grandes compositores nas enciclopédias da
biblioteca. Aos domingos, os padres passionistas da Paróquia da Boa Viagem passavam
filmes para nós, o que muito nos alegrava. Acho que vem daí o meu grande interesse
por cinema. Eu tinha até uma cadernetinha na qual anotava os nomes dos filmes e dos
atores principais. Essa era outra forma de leitura muito cultivada no colégio.
Ao chegar ao curso colegial, foi-nos facultada a leitura de livros de formação
sexual e romances selecionados para esse tempo, quando já éramos consideradas mais
maduras. Dessa época recordo-me da leitura de José de Alencar, Machado de Assis,
Humberto de Campos e muitos autores da literatura nacional e internacional que nem dá
para citar é também dessa época a leitura do Pequeno Príncipe, Polyanna, O menino do
dedo verde e tantos outros dos quais no momento não recordo os títulos. Foi também o
tempo de reler ou ler as historinhas infantis, pois todas as alunas que se candidatavam
ao Curso Normal deveriam apresentar um álbum de historinhas com o qual se preparava
para o ensino primário. Guardo até hoje o álbum que preparei há mais de 40 anos...
Desta época guardo vários livros inclusive um livro que ganhei de presente da Madre
Superiora: A Filha do Condenado, um grande romance!
Após minha formatura, voltei para Contendas, onde comecei a minha carreira
profissional. A pedido de meu pai, não segui logo o curso superior. Deveria devolver à
minha terra um pouco do que aprendera. Assim aconteceu e lá fiquei por 10 anos.
Durante o tempo em que fiquei em Contendas, nunca deixei de ler. Sempre nas
férias, viajava para Salvador e a ida às livrarias era uma atividade obrigatória, pois as
irmãs nos incutiram a necessidade de reciclagem permanente para não ficarmos
“atrasadas” no tempo, como elas diziam. A cada ida à capital, renovava meu pequeno
acervo religioso e cultural.
Das minhas leituras desse período, há um episódio marcante que merece ser
relatado. Havia em Palmeiras, povoado de Contendas, uma professora muito conhecida.
92
Ela era natural de Salvador, mas por ter-se casado com um jovem de Palmeiras teve que
ir morar lá. Essa professora chamava-se Libânia. Dedicada à boa leitura, trouxe os seus
livros para Palmeiras. Em conversa com ela, pois era grande amiga do meu pai,
resolvemos trocar nossas leituras. O meio de transportes mais freqüente entre Palmeiras
e Contendas era o eqüino e assim, a cada sábado, dia de feira em Contendas, lá vinha
um romance para mim, no lombo de um burro, e seguia outro, no mesmo “transporte”,
dentro de um embornal (capanga de brim) para Libânia. Dessa troca salutar, recordo
pelo menos três grandes romances: A Dama do Colar Vermelho que Libânia
conseguiu, colecionando pacientemente das páginas do jornal A Tarde, que publicava
um capítulo a cada semana e depois encadernando; As Mulheres de Bronze, um
romance da literatura francesa e o maior e mais impressionante deles – A Toutinegra
do Moinho, cujo tamanho e espessura aproximava-se do Dicionário Aurélio.
Além dos livros que conseguia por empréstimo, eu também comprava sempre
muitos livros, pois sempre considerei a leitura algo vital, tão necessária para a vida
intelectual e espiritual como o alimento para o corpo. Nessa época adquiri as coleções
de José de Alencar e Machado de Assis, algumas enciclopédias, pois já estava casada e
a chegada e crescimento dos filhos exigia já a preparação de um ambiente propício à
leitura e a criação de um suporte cultural para que eles pudessem desenvolver-se bem na
escola.
Depois de 10 anos em Contendas e após alguns episódios políticos
desagradáveis, decidimos vir para Jequié, onde imaginamos ser um ambiente mais
desenvolvido para a educação dos nossos filhos.
Na minha família sempre incentivei o hábito da leitura e fazia questão de
presentear a cada um com um livro em suas datas especiais. Estava sempre atenta às
necessidades de cada curso para adquirir o que fosse necessário às exigências de cada
disciplina feita por eles. Assinava revistas, comprava jornais, coleções e tudo o que me
fosse possível adquirir para dar suporte ao desenvolvimento intelectual dos filhos. Foi
nesse tempo que adquiri a Enciclopédia Mirador que nos serve até hoje, quando o
caçula de uma turma de seis já está na faculdade.
Percebo que ler e estudar foi uma prática assimilada por todos os filhos: Vânia, a
mais velha, é médica, com pós-graduação, é leitora inveterada, inclusive por força da
profissão; Álvaro, o segundo, é economiário e faz agora pós-graduação; Roberto, o
93
terceiro, é professor, meu colega da UESB e Mestre em educação como eu; Antônia
Lúcia, a quarta, é bancária e professora, tendo feito dois cursos superiores; Aurélio, o
quinto, é analista previdenciário e matriculado no curso de Metodologia do Ensino
Superior da UESB e Thiago, o sexto, é estudante da FTC e tem-se mostrado um bom
leitor, pois o curso de Administração com concentração em Marketing exige muitas e
variadas leituras. Todos eles têm um ponto em comum comigo além da leitura de livros,
é o gosto por cinema, que segundo o meu entendimento é uma forma muito especial de
leitura. Lembro-me agora de que, quando eram adolescentes, todos ainda em casa, aos
domingos, Edvaldo, o pai deles, comprava o jornal e cada um destacava uma parte e
seguia para um lado para as leituras de seu interesse. Os meninos pegavam a parte de
esportes, as meninas o caderno das novelas e modas, o pai gostava de ler a parte que
falava de política e eu lia as notícias, as reportagens, seguindo as manchetes da primeira
página. Intrigante foi e é o meu interesse, sempre que pego um jornal é a busca quase
instintiva pela coluna dos falecidos. Pretendo investigar os motivos para tal interesse.
Houve um tempo em que a febre de leitura entre as professoras em Jequié eram
os romances da série Sabrina e Bianca. Era um passatempo divertido. Líamos um sem
número daqueles livretos, comprávamos semanalmente e depois trocávamos umas com
as outras, até que fomos descobrindo que as histórias eram muito previsíveis, tudo
muito igual e fomos perdendo o interesse por Sabrina e Bianca.
Depois de alguns anos morando em Jequié, eis que chega a oportunidade
promissora. Surge a Faculdade de Formação de Professores de Jequié. Faço o primeiro
vestibular e sou aprovada. Começa uma nova fase em minha vida. Novas leituras, novos
autores, novos temas. A relação com o livro não muda, aliás, intensifica-se. Sempre tive
uma estante para os livros em minha casa, desde quando morava em Contendas.
Atualmente foi necessário adquirir mais outras, pois o acervo foi-se ampliando. O curso
de graduação trouxe novos livros; o curso de especialização em Língua Portuguesa
trouxe mais livros ainda e o Mestrado em Educação nem se fala; o tema é vastíssimo e
as modernas pesquisas em educação apresentam uma enorme bibliografia, obrigando-
nos a adquirir uma quantidade muito grande de obras dos mais renomados autores. Não
dá para comprar muito, mas é urgente e necessário adquirir vários. A mini biblioteca vai
crescendo e hoje com cinco estantes e três peças menores conta com 1.658
volumes, distribuídos entre livros de Língua Portuguesa e Literatura, Livros de
Educação, Metodologia Científica e Formação geral, Enciclopédias, Coleções,
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Dicionários e muitos livros da literatura religiosa e Bíblias das mais diversas traduções,
uma vez que primo intensamente pela minha formação espiritual.
Entre a Graduação e a Pós-Graduação, como membro ativo da Igreja Católica,
fiz também o Curso de Teologia para Leigos, no Seminário de Ilhéus. Eu e mais três
colegas, Camila Braga, Seleneh Cotrim e Zélia Alves, nas férias de janeiro e de julho,
seguíamos para Ilhéus onde estudávamos muito, pois o curso era bem puxado. O então
bispo daquela Diocese, D. Valfredo Tepe, hoje de saudosa memória, mandava buscar
professores renomados do Instituo de Petrópolis e da PUC de São Paulo, uma vez que
esta era também a oportunidade de reciclar os seus sacerdotes. Desta forma, éramos
duplamente beneficiados, pelo curso e pelo nível dos professores.
A Teologia é uma área de variadas e profundas leituras. Como agente de
pastoral, eu era encarregada de fazer palestras nos diversos cursos promovidos pela
Igreja e constantes leituras durante as celebrações e, ler durante uma celebração, implica
uma postura de proclamação da palavra lida. Isso aprendi com a disciplina Liturgia e
esta postura de leitura proclamada eu a assumo até hoje. Vê-se que a leitura nos prepara
para as diversas circunstâncias da vida.
Para acompanharmos o desenvolvimento acelerado dos últimos tempos, a vida
acadêmica tem exigido de nós, de forma positiva e produtiva, uma busca intensa de
novas leituras sob pena de ficarmos desatualizados com relação ao que se pesquisa, se
produz e se lança no mercado editorial brasileiro e até mundial. Para isso, inscrevemo-
nos nos sites das editoras mais confiáveis, a nosso juízo, para receber das mesmas os
mais novos lançamentos dentro das áreas de nossa atuação. Recebemos também visitas
das editoras da região. É dessa forma que ficamos sabendo dos novos títulos e pelas
resenhas apresentadas, escolhemos aqueles que apresentam novidades significativas ao
nosso conhecimento e ao nosso trabalho.
Entre nós, colegas do Curso de Letras da UESB, há uma prática muito saudável.
Cada um que vai a um evento em outra universidade traz, para os que ficaram, notícias
ou mesmo exemplares de livros novos que adquiriu e isso vai nos influenciando e
incentivando a novas aquisições.
Sobre leitura de textos xerografados, digo que não é a mesma sensação que se
experimenta ao lermos um livro impresso em editora, mas, quando não é possível o
texto editado, a alternativa é ler xérox. O mesmo sentimento eu nutro quando sou
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obrigada a indicar leitura de xérox para os meus alunos. Não gosto, mas sou obrigada às
vezes. Entretanto estou sempre incentivando-os a adquirirem os seus livros para que
formem gradativamente as suas bibliotecas, principalmente aqueles que já são
professores. Estou sempre recordando que ser professor não é ser enciclopédia
ambulante, mas que ao professor compete estar bem informado de como auxiliar os
alunos em suas buscas e pesquisas.
Como já relatei inicialmente, a leitura para mim sempre foi algo vital. Gosto
quase que de todo gênero de leitura, em especial da leitura que me entretém, que me
eleva espiritualmente, que me educa, que me ensina, que me enriquece. Não sou
moralista nem preconceituosa, mas por questão de coerência, não leio nada que afete
diretamente a minha fé e a minha moral. Gosto de ler em silêncio, pois assim consigo
ficar mais concentrada. As minhas leituras são geralmente datadas, grifadas e
comentadas. Quem passa por meus livros sabe quando foram lidos, o que mais chamou
a minha atenção e que comentários fiz na época.
Eu me concebo uma leitora razoável. Poderia ser mais bem disciplinada, pois
chego a ler três ou mais livros por vez. A pressa, a urgência, a curiosidade quando surge
uma leitura instigante, faz-me atropelar as leituras que estou fazendo. Outras vezes,
alguns livros são começados e ficam na estante, até que eu tenha tempo de terminá-los.
Ultimamente tenho alguns livros na fila de espera: Um Pilar de Ferro (a vida de Cícero
– 780 páginas) de Taylor Caldwell, autora de O Grande Amigo de Deus (vida
romanceada de São Paulo) e Médico de Homens e de Almas (vida romanceada de São
Lucas), já lidos por mim; Inteligência Multifocal, do Dr. Augusto Jorge Cury;
Profetas e Profecias, de Maria Clara e Eliana Yunes; As Chaves do Inconsciente, de
Renate Moraes e A Insondável Riqueza de Cristo, de Pe. Francisco Janssen. Estes são
alguns dos muitos livros que aguardam tempo para serem terminados.
Jequié é uma cidade de poucas livrarias de grande porte. Depois que a
universidade passou a oferecer vários cursos, as livrarias que expõem lá têm procurado
oferecer alguns dos títulos que sugerimos, mas ainda é muito pouco. Como a procura
ainda não é intensa, a oferta se faz tímida. Na verdade, a experiência de leitura ainda
não se faz de forma significativa. Como professora de Língua Portuguesa, tento
desenvolver esta prática a partir de pequenos textos que seleciono a dedo para as
atividades das disciplinas com as quais trabalho. Faço propaganda dos livros que leio e
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dos filmes a que assisto, tentando influenciar colegas e alunos para que embarquem
nesta viagem maravilhosa ao “país da leitura”.
Ultimamente participei de um seminário sobre Análise do Discurso o que me
deixou severamente curiosa sobre as condições de produção do discurso, o que muda
completamente a nossa perspectiva de interpretação dos textos produzidos. Em razão
deste fato, estou freqüentando um grupo de estudos da Análise do Discurso, o NIEAD,
para capacitar-me melhor para a leitura. É grande a minha expectativa frente ao NIEAD,
pois desejo aprender a ler mais e melhor com a experiência desse grupo. Afinal a leitura
é uma experiência incomparável e aprender ler a maior das conquistas que realizamos.
Ziraldo, a propósito de leitura diz: “...a leitura é o passaporte para a descoberta de tantos
mundos que habitam em nós mesmos”.
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LEITURAS: FIOS QUE TECEM A CIDADANIA...
Mônica Neves da Silva Lopes1
(...) Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando para a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(É, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo(...).
Caetano Veloso
Ser feliz...eis o grande desafio do ser humano! Buscar a felicidade em plenitude
é, sem dúvida, o pano de fundo que rege a orquestra da vida, uma vez que todos querem
ser simplesmente felizes. Felicidade...algo efêmero, fulgaz e, sobretudo, idiossincrático.
Isso porque, apesar de ser igual, o ser humano é um estranho ímpar, como assevera
Drummond, logo a busca pelo ser feliz é muito pessoal e muda entre culturas e de
acordo com o espaço temporal e histórico.
Uma das formas de buscar a felicidade é a conquista da cidadania. Isso porque o
homem não nasce cidadão, ou seja, a cidadania não é uma faculdade inerente ao ser
humano, por isso ele torna-se cidadão. Tornar-se cidadão é poder refletir, criticar,
inferir, modificar, significar...O homem cidadão é aquele que questiona verdades ditas
absolutas, que tem liberdade de escolhas, que participa, que faz cultura, que ama, que
sente, que diz... É aquele que sabe que sua voz será ouvida, mesmo na solitude...
Cidadania, que abrange dimensões políticas, civis e sociais, se pauta na
consolidação de direitos e no respeito ao sistema democrático. Nesse sentido, a posse de
direitos deve estar intimamente correlacionada com valores e virtudes que fazem do
homem um ser ativo e participativo, ou seja, valores que se transformam em uma ética
1Especialista em Leitura e Literatura Infanto-Juvenil pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Graduada em Letras Vernáculas e professora da rede particular de ensino do município de Jequié
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cidadã. Vista por essa ótica, a cidadania é um espaço de construção, de significados e
nunca algo finalista, acabado.
A escola, como protagonista na formação de consciências coletivas, pode e deve
pautar sua práxis no sentido da conscientização, da constante dialética entre sociedade e
ensino. Dialética esta, que deve formar e informar a comunidade escolar de maneira
reflexiva através de valores conscientes e coerentes cuja autonomia do pensamento seja
a principal fonte de inspiração.
A autonomia do pensamento e a conseqüente liberdade por ela proporcionada
podem ser viabilizadas através de um modo em que se conjugue leitura e cidadania.
Com a leitura se articulam as formas e as possibilidades de consciência. Isso decorre do
fato de ser a leitura primordial tanto para o aclaramento quanto para o encantamento.
Assim, a leitura como ação inteligente, confere ao homem reflexão e
compreensão da realidade que o circunda. Ler é, pois, um trabalho de interpretação pelo
qual se flexibiliza e se estimula a explicação de realidades, proporcionando a ampliação
da visão de mundo, de homem e do outro. Logo, cabe dizer que a leitura realiza um
papel fundamental no processo de formação do homem dentro do contexto no qual se
insere. Isso porque, quando se faz uma reflexão acerca da construção do conhecimento
com a leitura não se pode deixar de levar em consideração o modo como é transmitida a
informação, sobretudo, a que está presente na língua escrita de circulação pública, nem
todo o processo ideológico dentro do qual se consubstanciam valores e informações
predominantes na sociedade de massa as quais delineiam as práticas de leitura.
Isso não implica dizer que conhecimento esteja intimamente atrelado a
informação ou vice-versa. Ou, ainda, que se caracteriza por questões valorativas de
quantidade de informação disponível em uma dada pessoa. Na verdade, o conhecimento
só pode ser construído quando o sujeito dispõe, dentro de um contexto histórico, de
condições de manejo, acesso a dados, teorias, interpretações, fatos de diversos graus de
complexidade.
Com a leitura é possível tocar no cerne da sensibilidade humana, ou seja, é
possível dedilhar os acordes da imaginação. Imaginação que se fertiliza e poliniza na
medida em que as intersubjeções se multiplicam, gerando símbolos, imagens. Viajar,
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então, pelos céus da imaginação, possibilita ao sujeito intelectivo a exploração da
realidade com a qual ele se identifica.
Nesse sentido, ler criticamente é poder transformar, é poder abrir universos, é
unir e fundir cores... Isso implica dizer que no âmbito da comunicação social, a leitura
assume uma dimensão bem mais ampla que a mera decifração do código verbal e não-
verbal, dado que o cerne da comunicação se estabelece no campo da experiência
comum, pois arvora o diálogo entre as pessoas e viabiliza a aquisição de novas
informações por grupos ou coletividades. Portanto, não se deve pensar a leitura apenas
no polo da receptividade, visto que poderia reduzi-la a uma experiência unilateral e vista
como ato mecânico de aprender significados e estocá-los. Assim, leitura pode e deve
referenciar o ato de emissão-recepção a uma unidade cultural capaz de atribuir
significados que perpassem ao que está sendo manipulado por meio de símbolos. A
simbologia presente no cotidiano comunicacional das pessoas como meio de
manipulação é uma constante, por isso se faz urgente esse reaprendizado em relação à
leitura; não a leitura mecânica, mas a crítica, a transcendente e significativa.
Sob esse prisma, a leitura é um processo cognitivo, bem como uma prática que
se constitui historicamente, ou seja, não resulta apenas de acúmulo de informações, mas
da representação da realidade existente no texto lido. Ler, portanto, é um
posicionamento político diante do mundo circundante, no qual depende da consciência
do sujeito diante desse processo para que a sua leitura se torne mais autônoma.
Esse posicionamento crítico permitido pela leitura é, entre outras coisas, uma
forma de cidadania. É um posicionamento que arvora o poder conhecer, o discernir. É
perceber o mundo de forma plural, é saber que existem as harmonias e as diversidades...
Portanto, não se deve conceber a leitura apenas como fonte de prazer, dado que
ela expressa a multiplicidade das relações, processos e estruturas que alicerçam a
organização e o ir e vir da vida social. Tudo que diz respeito à leitura está envolto e
impregnado de cultura, logo compreende, explica, sublima, desrealiza, cria o turbilhão
sócio-histórico no qual estão inseridos indivíduos e coletividade, grupos e classes
sociais, países... cidades... enfim, o mundo em sua totalidade.
A leitura é, pois, nessa perspectiva, um bem social. Como tal, deve e pode ser
democratizada, cidadanizada a fim de favorecer escolhas, de permitir arbítrios. Logo,
100
saber ler de forma crítica proporciona rever discursos, ponderar idéias, refletir posturas,
analisar o mundo, o outro e a si mesmo diante de contextos individuais e coletivos. Isso
porque, muitas vezes os meios que possibilitam a comunicação infantilizam o homem,
diminuem a capacidade de pensar, invertem realidades e prometem a felicidade imediata
através da indústria mercadológica. Por esse viés, a passividade se configura em forma
de docilidade e os meios de informar se tornam, em geral, instrumentos de inculcação
de valores, hábitos e idéias de sorte que o receptor passa a se considerar incapaz de
valorar, julgar, entender o que lê no meio circundante e torna-se inseguro, incompetente
diante de si e do mundo e, assim, passível de alienação.
O sujeito-leitor é um cosmopolita dentro de seu próprio espaço. O homem que lê
é um cidadão do próprio mundo e do mundo do outro. E esse leitor cosmopolita jamais
será hierarquizado por valores de dominante e dominado, de burguesia e proletariado...
E por esse aclive, cabe lembrar o pensamento de Dostoievski: O homem é essa
realidade em que dois e dois não são quatro.
Para finalizar este momento em que a leitura cidadã está em evidência, cabe aqui
ler um texto feito por mim para meu pai. Ele, que foi meu mestre de leitura, sempre
procurou ser um andarilho nas estradas da leitura e nos provou que ler é a busca pelo
próprio caminho, pela própria estrada... O caminhar pelas estradas das leituras é um
direito de todos, por isso a ascendência na trilha dependerá de como cada um irá
transpô-la, se em retas ou em curvas, se sozinho ou em grupo, parando, estacionando ou
sempre continuando...
HERANÇA
Meu pai é meu maior ídolo. Ídolo porque sempre foi um vencedor num mundo
ingrato, no qual as desigualdades sociais ditam e determinam soberanamente as regras
de sobrevivência. Aos onze anos – como tantos outros – abandonou a escola. Fez isso
não por imposição de seus pais, mas pela imaturidade de uma criança vendo e
vivenciando os martírios constantes que a instabilidade financeira acarreta numa
família. Assim, filho mais velho entre sete irmãos, resolveu priorizar o trabalho em
detrimento aos estudos, deixando para quem sabe um dia, realizar um grande sonho:
101
escrever versos, contos, romances, enfim, adentrar no mundo rico, infindo e criativo das
letras...
O sonho não se concretizou, porém, os infortúnios da vida e suas conseqüências
não o tornaram menos digno, honesto ou íntegro; ao contrário, em desafio à lei de causa
e efeito, lutou muito para vencer – não uma vitória financeira, todavia uma vitória
pessoal que o transformaria num homem produto de si mesmo, tecido ponto a ponto
com doses cavalares de perseverança, tenacidade e brilhantismo.
Cresci num ambiente familiar harmônico, saudável e feliz. Sempre que me
lembro da minha infância sinto saudades daquele lar recheado de tanta poesia. Digo
poesia porque nela exprimimos os nossos mais íntimos sentimentos. E na poesia do meu
lar caberia respeito, amor, compreensão e partilha.
Foi na interação de idéias que nasceu dentro de mim a vontade de contar, narrar,
versificar, ironizar, por meio da reunião de palavras, experiências lidas e vividas, as
quais transformadas são a representação da imaginação. E essa imaginação que me
permite viajar com liberdade por tantos lugares, foi fertilizada há muitos anos passados
por um escritor sem lápis e papel: meu pai.
Guiada por uma mente sensível, aprendi a embarcar nas viagens propiciadas
pelas leituras. Foram elas que me possibilitaram entrar na disputa entre os Amaral e os
Terra Cambará, deixando que o tempo e o vento me levassem até lá. Entrei também na
casmurrice de um Machado amolado que derruba Aires, transforma em Cubas e renasce
no Borba. Com Bandeira voei até Pasárgada, conheci Joana, a louca de Espanha e
conquistei nesse reino a liberdade almejada; vi também o bicho no meio das ondas
gigantescas do rio Capibaribe na linda Recife. Catei as pedras de Drummond, fui
apresentada a José sem nome, e segui de mãos dadas rumo ao congresso internacional
do medo. Fiquei encarcerada na angustia de São Bernardo e na vida seca de um tal
Graciliano. Vi as mil caras da Bahia nas terras do sem fim, nos São Jorge dos Ilhéus
com Gabriela, Tieta e Dona Flor levada pelos olhos do velho marinheiro tão amado.
Viajar é sempre muito bom, ainda mais quando a viagem nos oferece vantagens
imensuráveis. Os livros, nos quais viajo - e que qualquer um pode fazer o mesmo - não
pago passagem, não preciso de passaporte e ainda escolho em qual transporte irei,
independente das condições de vôos, estradas e oceanos. Basta escolher e pronto! Nada
102
me impedirá de ir e vir, de parar no meio do caminho ou reiniciar todo o trajeto
novamente.
Meu pai, em sua grande sabedoria, mostrou-me também que os livros poderiam
fazer-me embrenhar pelo túnel do tempo, levando-me ao passado ou futuro e estes (os
livros) me apresentariam a personalidades importantes como o Rei Artur e seus
destemidos cavaleiros ou vivenciar as grandes conquistas de Roma em seu tempo de
glória, como também ir além, isto é, conhecer o admirável mundo novo que se
pronuncia, visitar outros planetas, galáxias, portanto, fazer um turismo cultural pelo
universo das leituras tendo com cicerone os seus acervos maiores: os livros.
Muitas vezes paro para recordar àqueles tempos que jamais voltarão e vejo como
foram cruciais à formação que tenho e a que construo continuamente. A Literatura é a
arte da palavra; compreendê-la e conhecê-la significa crescer evolutivamente através
dos pensamentos e dos sentimentos humano. É aprender ler nas entrelinhas, extraindo
de lá seu sentido mais profundo e íntimo a fim de partilhar também de outros mundos
que compõem o cosmo da leitura...
Olhar meu pai sentado em sua cadeira de rodas lendo um livro é sentir a
sensação de que os anos não passaram; congelaram-se como um retrato que se modifica
apenas pela aparência da idade. Com seus mais de setenta, invalidados por um mal que
o parquisionou, treme tanto que, mesmo tentando, não consegue esconder. Entretanto,
como guerreiro que sempre foi e continua sendo, permanece no palco encenando mais
uma peça da vida. E ao ler os textos os quais escrevo, ouço aquela voz grave que
sempre me fascinou, filosofando uma tese de um semi-analfabeto de escola, porém
acadêmico pós-graduado nas experiências edificadas nos livros, emocionada, tentando
disfarçar uma lágrima que teima cair, dizer:
— Filha, você já é uma grande escritora...
103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, José Juvêncio. Alfabetização e Leitura. São Paulo: Cortez, 1994.
BEJARD, Elie. Ler e Dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. São
Paulo: Cortez, 1995.
BRITO, Luis Percival Leme. Leitura e Política. In: Leitura: teoria e prática. Campinas, São Paulo: Mercado Aberto, ano 18, nº 33, p.3-10, jun 1999.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13ª. Ed. São Paulo: Ática, 2003.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 29ed. São Paulo: Cortez, 1994.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
SILVA, Ezequiel T. da. Elementos da pedagogia da leitura. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2ªed. Belo Horizonte,
Minas Gerais: Autêntica, 2002.
104
LEITURA &
ANÁLISE DO DISCURSO
105
Tá rindo de quê? Uma proposta de leitura do gênero piada
Rosely Costa Silva Gomes1
O stress coletivo que toma conta da população nas últimas décadas tem obrigado
o homem a buscar formas alternativas de garantir a sua sobrevivência nesta imensa
selva de pedras na qual se transformou a vida em sociedade. Esta é possivelmente a
razão pela qual vemos crescer a cada dia uma tendência que aponta os benefícios do riso
para a saúde e o bem-estar das pessoas. Muitos estudos encaminham-se no sentido de
mostrar os efeitos do riso no organismo humano: riso e humor diminuem estresse e
ansiedade, reforça a imunidade, relaxa a tensão muscular e diminui a dor.
(CARDOSO, 2001).
Cientes do poder de persuasão provocados pelo humor, estudiosos da área de
comunicação – a exemplo de Talvani Lange2- também vêm se ocupando da temática.
Não é, portanto, sem razão que os meios de comunicação investem cada vez mais em
programas provocadores do riso.
Os efeitos do humor em sala de aula também têm sido tomados como objeto de
estudo por educadores.
Em busca da explicitação dos mecanismos que interferem na produção do humor
vamos encontrar os estudos de Bérgson (2001) sobre a significação do cômico, os
estudos de Freud (1969) sobre os chistes, os estudos de Raskin (1985) sobre os
mecanismos semânticos do humor, os estudos de Possenti (1998) sobre os fatores
lingüísticos geradores de humor, entre outros.
Em sintonia com a temática supracitada, este estudo pretende, somando-se aos já
existentes, dar a sua colaboração no sentido de evidenciar os motivos pelos quais rimos,
afastando-se daqueles, entretanto, por tentar descortinar, nesses motivos, as formas
como certos grupos sociais e étnicos veiculam, através da linguagem, seus valores e
1 Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB/Jequié. Doutora em Linguística.
2 Publicitário, pós-graduado pela Universidade Metodista de São Paulo em Ciências da Comunicação.
Concentra seu trabalho científico nos estudos do humor aplicado às técnicas publicitárias e promocionais.
106
idéias e tentam provocar o enquadramento de forças adversárias como forma de
manutenção da sua hegemonia. Objetivamos, portanto, desenvolver, no âmbito da
Análise do Discurso, perspectivas voltadas para a leitura crítica do gênero piada.
Pretende-se, a partir de reflexões acerca da linguagem e da análise de uma mostra desse
gênero, demonstrar que o ato de ler deve se constituir num desvelamento do embate
entre formações imaginárias e ideológicas, e não apenas num processo de mera
decodificação de símbolos. Por acreditarmos que pensar leitura é, antes de mais nada,
pensar linguagem, pensar língua , sentimo-nos na necessidade de apresentar a
concepção de linguagem que serviu de base a esta alternativa de leitura. Em vista disso,
partiremos de três definições que podem sintetizar as formas como a linguagem humana
tem sido concebida, no curso da História: como representação do mundo e do
pensamento, como instrumento de comunicação, como forma de ação ou interação.
A primeira concepção busca explicar a linguagem a partir das condições de vida
psíquica individual do sujeito falante. A enunciação é apresentada como um ato
monológico, individual, construído no interior da mente, sendo sua exteriorização
apenas uma tradução.
A segunda concepção apresenta a língua como um código, ou seja, um conjunto
de signos que se combinam segundo regras e que é capaz de transmitir uma mensagem,
uma informação de um emissor a um receptor. Esse código deve ser dominado pelos
falantes para que a comunicação possa ser efetivada... Sobre essa tendência, pode-se
afirmar que também se encontra voltada para o estudo da enunciação monológica
isolada.
Para a terceira concepção, a verdadeira substância da linguagem é constituída
pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação. Nesta
perspectiva, a definição que se coloca como ponto de partida é a que caracteriza a
linguagem como transformadora. Tomar a palavra é um ato social com todas as suas
implicações: conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades
(ORLANDI, 2001, p.17).
Feitas essas considerações, já podemos especificar o domínio no qual este
trabalho está assentado. Tomando a terceira concepção como recorte teórico vê-se o ato
de ler ganhar novos contornos. A compreensão do fenômeno da linguagem não mais
estará centrado na língua, sistema ideologicamente neutro (conforme a primeira e
107
segunda concepção), mas no discurso - ponto de articulação dos processos ideológicos e
dos fenômenos lingüísticos.(BRANDÃO, 1995, p.12). Entendemos com Amaral (2002)
que uma primeira discussão, necessária aos fundamentos do quadro teórico da Análise
do Discurso, remete para a compreensão de que o discurso é produzido em um
determinado momento histórico-social, é tecido por “milhares de fios ideológicos
(BAKHTIN apud AMARAL, 2002, p.25) e responde as necessidades postas nas
relações entre os homens para a produção e reprodução de sua existência em sociedade.
Nesse sentido todo discurso é discurso de um sujeito e todo sujeito é ideológico.
(PÊCHEUX apud SOUZA, 2001, p.176).
Dessa forma, afastando-se das análises de uma lingüística imanente, será
adotado um enfoque que articule o lingüístico e o social, buscando as relações que
vinculam a linguagem à ideologia. Serão considerados, portanto, nesta proposta de
leitura, os dados lingüísticos e as condições de produção, que compreendem, segundo
ORLANDI (2001, p.30) os sujeitos, o contexto sócio-histórico-ideológico, o contexto
imediato e a memória – tratada como interdiscurso.
A primeira definição da noção de Condições de Produção foi apresentada por
Pêcheux. Tendo como referência o esquema informacional de Jakobson, Pêcheux
coloca em xeque a noção de sujeito- organismo humano individual - e traz à tona uma
série de formações imaginárias que indicam os lugares que os interlocutores dos
discursos atribuem a si mesmos e aos outros. Os protagonistas do discurso não devem
ser considerados, portanto, apenas como seres empíricos. Eles devem ser tomados como
representação de lugares determinados na estrutura social.
Essas condições nos levam a poder afirmar que as escolhas de quem diz não são
aleatórias. A leitura realizada tendo em vista as condições de produção do discurso não
visa apenas ao estudo das formas de organização dos elementos que constituem o texto,
mas principalmente as formas de instituição do seu sentido.
Pretendemos destacar que, por se mostrar como um meio eficaz de comunicação
e por sua livre circulação e fácil aceitação, os gêneros ligados ao humor – a exemplo da
piada - são, por vezes, utilizados para a disseminação e manutenção de posturas
ideológicas de grupos dominantes.
108
A fim de melhor ilustrar a tendência de leitura proposta, tomaremos como
exemplo uma piada, cuja autoria não foi possível identificar.
E saindo do clima da terrinha Maguila, voltando dos EUA, foi logo ser
entrevistado:
- E aí Maguila, gostou dos EUA?
- Eu gostei muicho, mas assim que eu achar um tal de Well, eu encho este filho da
puta de porrada.
- Ueh, mas por quê? Você conhece esse Well?
- Conhecê, eu num cunheço não, mas assim que eu achar eu parto ele em dois.
- Mas por quê, Maguila?
- Porque assim que eu cheguei no aeroporto, tinha uma baita faixa dizendo:
“WELL COME MAGUILA” . Ninguém sai desta vivo e já mandei até fazer uma faixa
para colocar no galeão dizendo: “Maguila come Well também”.
Temos, no texto em questão, um locutor que se dirige a um alocutário, leitor
virtual inscrito no texto. Um leitor constituído no próprio ato da escrita. Com este, o
locutor estabelece um contrato de significação: o objetivo da enunciação é provocar o
riso, fato que o locutor pressupõe ser do conhecimento e do consentimento do
alocutário. O gênero discursivo cujo formato mais se adequa ao seu intento é a piada,
visto que dos gêneros discursivos, a piada é aquele que incita uma predisposição ao riso.
Através de índices específicos, o locutor vai construindo a cena enunciativa a
partir de uma situação que envolve o personagem Maguila. Convém frisar que não há
dados que comprovem tratar-se de uma situação real. O fato é, portanto, ficção.
Ao selecionar essa temática e criar a situação ficcional, o locutor já tem em mente
o contrato que se estabelece com o alocutário: ele é alguém que conhece Maguila e que
sabe como a mídia vem construindo a imagem deste: trata-se de um sujeito de pouco
refinamento.
O produtor desse texto, a partir da imagem que tem do referente e da que ele
acredita ter o leitor (alocutário), constrói uma situação que não condiz com a posição
109
social e com imagem que comumente alimentamos dos famosos. A contradição em
relação a essa imagem é sustentada pela inserção do discurso direto, que contribui ainda
mais para o processo de descaracterização do famoso: “Eu gostei muicho, mas assim
que eu achar um tal de Well, eu encho este filho da puta de porrada.”
Maguila, ao contrário do esperado, expressa-se numa variedade lingüística não-
padrão. A inserção do discurso direto contribui para o processo de construção da
imagem da ignorância (no sentido de falta de conhecimento), que, contrastando com a
condição financeira do boxeador, tornou-se o motivo da piada.
A situação é agravada pelo contexto sócio-histórico em que vivemos, o qual
contribui para a construção de arquétipos artísticos. Os famosos são sempre ricos,
inteligentes, infalíveis. Tudo conhecem, tudo sabem. Se considerarmos as características
apresentadas, observaremos que, em pelo menos quatro delas, Maguila não se enquadra.
Levando-se em consideração o jogo de imagens proposto por Pêcheux que se
estabelece durante a interlocução, é possível destacar algumas questões implícitas no
gênero apresentado: quem é Maguila para viajar para os EUA? Como pode ele
freqüentar tal sociedade se não domina a senha de passagem para o primeiro mundo?
O fato de ter furado a barreira na estrutura social e não ter sofrido o processo de
assujeitamento às condições impostas por aquele grupo, transforma-o em motivo de
chacota.
Muitas questões poderiam ser ainda aqui colocadas, entretanto considera-se
razoável finalizar este estudo comentando sobre a importância dessa alternativa de
leitura. Ela nos coloca frente a realidades que uma leitura que considerasse o texto
apenas em sua imanência não daria conta. Quantos preconceitos camuflados, dos quais
rimos sem nos apercebermos. Quantas falsas verdades proclamadas e, pela maioria,
acatadas simplesmente pela imagem que temos do seu produtor. Esta proposta de leitura
poderá, ainda, propiciar o desenvolvimento de uma consciência crítica em relação aos
gêneros discursivos que circulam socialmente, apontando para a necessidade de se
desenvolver gestos de leitura diferenciados para cada um desses. As abordagens que
consideram a linguagem apenas em relação a sua materialidade lingüística tendem para
uma uniformização do tratamento dado aos gêneros discursivos. A perspectiva
110
discursiva aponta para o desenvolvimento de abordagens diferenciadas considerando-se
a natureza do gênero posto para leitura, os propósitos do leitor, etc.
Isso mostra como a leitura é um processo complexo, onde o que está em jogo é
mais do que decifrar símbolos.
Ler é ir em busca dos diversos sentidos possíveis, é desvelar o camuflado, trazer
à tona não-dito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Maria Virgínia Borges. Análise do Discurso: Língua, História e Ideologia. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística – CHLA. Maceió: n. 23: 25-46, 1999.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 7ª edição. Campinas, SP: Editora da UNICAMP. 1998?
CARDOSO, Silvia Helena Cardoso. O Poder do Riso. In: Revista Cérebro e Mente. Universidade Estadual de Campinas. Junho 2002. Disponível em: http://www.cerebromente.org.br/n15/mente/laughter2/info-ciencia.html-. Acesso em 16 out.2004.
COURTINE, J. –J. Analyse du discours politique (le discours communiste adressé aux chrétiens). Langages, 62, 1981.
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, v.8.
LINS, Maria da Penha Pereira. O humor em tiras de quadrinhos: uma análise de alinhamentos e enquadres em Mafalda. Vitória: Grafer, 2002.
NEDER, M.L. Concepções de Linguagem e Ensino de Português. In POLIFONIA, MT, 1993
ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. 6ª ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001.
_______________. Análise de Discurso – Princípios e procedimentos. Campinas, SP: Editora Pontes, 4ª edição, 2002.
111
POSSENTI, Sírio. Os humores da Língua: análises lingüísticas de piadas. – Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.
RASKIN, VICTOR. Semantic mechanisms of humor. Dordrecht, Holland: Reidel Publishing Company: 1985.
SOUZA, Lícia Regina C. Moreira de Souza. Contexto Sócio-histórico e Cultural e a Análise do Discurso in: Discursos e Análises: coletânia de trabalhos. Salvador: Universidade Católica do Salvador. p. 176-178, 2001.
112
LEITURA &
PSICANÁLISE
113
SIMBOLOGIA PSICANALÍTICA DE JOÃO E O PÉ DE FEIJÃO
Sandra Suely de Oliveira Souza1
O presente trabalho visa relacionar alguns aspectos psicológicos constituintes da
natureza humana, tendo como âncora os símbolos contidos no conto de fadas de João e
o pé de feijão, numa versão cinematográfica atual. Pretendemos elucidar algumas
passagens da ficção, restaurando elementos simbólicos significativos como
representação dos movimentos vividos no próprio interior do ser humano. Os contrastes
humanos decorrentes da própria cultura, dos costumes e tradições não impedem que
esses elementos psicológicos sejam compartilhados numa dimensão mais profunda,
surgindo daí o que chamamos de humanidade.
Os contos de fadas cumprem relevante papel para organização psíquica da
criança, pois são expressões cristalinas e simples de nosso mundo psicológico profundo.
De estrutura mais simples que os mitos e as lendas, mas de conteúdo muito mais rico do
que o mero teor moral encontrado na maioria das fábulas.
Em essência, os contos de fadas podem ser vistos como pequenas obras de arte,
capazes que são de nos envolver em seu enredo, de nos instigar a mente e comover-nos
com a sorte de seus personagens. Causam impacto em nosso psiquismo porque tratam
das experiências cotidianas, permitindo que nos identifiquemos com as dificuldades ou
alegrias de seus heróis, cujos feitos narrados expressam, em suma, a condição humana
frente às provações da vida.
Em A Psicanálise dos Contos de Fadas (Editora Paz e Terra), o psicanalista
austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990) argumenta:
Os psicanalistas freudianos se preocupam em mostrar que tipo de material reprimido ou inconsciente está subjacente nos mitos e contos de fadas, e como esses se relacionam aos sonhos e devaneios. Já os junguianos...
1 Pedagoga, Psicanalista e Doutora em Educação. Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia – UESB.
114
Ele continua:
...frisam em acréscimo que as figuras e os acontecimentos dessas histórias estão de acordo com fenômenos arquetípicos, e simbolicamente sugerem a necessidade de se atingir um estado mais elevado de autoconfiança, uma renovação interna conseguida à custa de forças inconscientes que se tornam disponíveis ao indivíduo.
O próprio Jung disse certa vez que "nos contos de fadas melhor podemos estudar
a anatomia comparada da psique". Quis dizer com isso, (explica-nos sua discípula Marie
Louise Von Franz, em Interpretação dos Contos de Fadas), os contos de fadas espelham
a estrutura mais simples, ou o "esqueleto" da psique, e que suas muitas peças acabam
por fundir-se, compondo os grandes mitos que expressam toda uma produção cultural
mais elaborada.
Essas narrativas têm a magia e a beleza para restaurar elementos psíquicos que
refletem uma trajetória revestida por símbolos significativos como indicadores das
possíveis transformações humanas, sendo estas agradáveis ou não.
Fazemos neste momento uma breve trajetória da estória de João e o pé de feijão
que já foi traduzida por diversas vezes e hoje mais uma vez foi contada em um material
cinematográfico que nos leva a uma versão revisada dos outros contos narrados até
então.
A estória retrata a vida adulta de João, passada por várias gerações e na última,
apresenta um João empresário, dono de uma grande fortuna. Este não tem mais a sua
mãe ao seu alcance. Sua vida é totalmente voltada para o trabalho, para administrar os
bens deixados por seu pai que morreu ainda jovem. O filme inicia com um sonho
contínuo de João que se transporta para sua fase infantil, vivendo momentos felizes com
seu pai. Sua mãe não aparece neste sonho. No sonho João e seu pai são perseguidos por
um gigante e o pai diz para ele correr rápido para não ser alcançado.
João acorda. Começa seu dia de trabalho, as responsabilidades e muitos
compromissos. Sua vida é destituída de diversões, ele é muito solitário e tem consigo
apenas o conforto que a riqueza pode comprar. Ao lado dele tem o seu mordomo, uma
pessoa de sua confiança que o protege e está sempre a sua disposição. No desenrolar da
trama aparece o diretor de suas empresas que tem uma característica ambiciosa.
115
O contraste com as outras estórias é a maldição imposta a sua família por várias
gerações, morrendo os homens ao completar 40 anos. Assim foi com seu pai e seus
antepassados. João está próximo de completar esta idade e é justamente neste momento
que os sonhos revestidos de material psíquico estarão mais presentes, trazendo
lembranças e acontecimentos estranhos.
Uma personagem surge, passando-se por jornalista, mas deixa evidente que
conhece João e sua história de vida. Por alguma razão ele fica encantado pela moça.
Mas sempre ficou distante dos relacionamentos amorosos.
Um outro fato é a perpetuação da mãe do João do passado que faz a fortuna
quando desce do pé de feijão, carregando o ganso que põe ovos de ouro e a harpa que
toca belíssimas melodias. Ela traz o segredo de gerações e passa para João do presente a
missão de libertar a família da maldição de quatrocentos anos. Para isso, basta que ele
tenha em mãos o último feijão que não foi plantado. A magia do feijão só acontece se
ele for capaz ainda de fantasiar ou imaginar. João então, já numa fase adulta terá que
passar por uma aventura fantástica para garantir sua sobrevivência.
Ao contrário das outras estórias, o vilão é João e o gigante é a vítima da astúcia e
ambição dos seus antepassados. Outro aspecto muito importante é a questão temporal.
Para cada dia vivido na cidade dos gigantes, é um ano vivido na terra. Trezentos e
noventa dias equivalem aos trezentos e noventa anos passados pelas gerações de João.
João terá que salvar sua vida para garantir a perpetuação de sua família. A mãe
do primeiro João tem a maldição de nunca morrer para ver de perto as perdas dos seus
descendentes. Ela narra uma estória que mostra a maldade do gigante e a fuga do seu
filho com o ganso e a harpa. O gigante o persegue cheio de fúria, mas o pé de feijão é
cortado por João, causando a queda e a morte do gigante.
Essa foi a versão de todos os tempos. João terá que elaborar uma outra história,
diferente da contada pelos habitantes daquela cidade. Seus bens foram adquiridos de
forma desonesta e teria que pagar pelo erro de seus antepassados. Para isso teria que
voltar e prestar contas frente a um tribunal composto de gigantes que têm o poder sobre
os pequenos seres humanos.
116
Quem se disponibiliza a salvá-lo é uma jovem, que já tinha sido enganada por
João do passado, fazendo-lhe acreditar que era uma pessoa honesta. A jovem, apesar da
decepção amorosa, resolve ajudar o João do presente, fazendo um acordo com os
gigantes para libertá-lo, a fim de trazer de volta o ganso e a harpa.
Assim sendo, eles retornam para a terra e sete anos se passaram desde o início de
sua aventura na terra dos gigantes. Ele foi dado como morto e todos os seus bens foram
apropriados por seu antigo diretor. Quem o ajuda é o antigo mordomo que o reconhece,
oferecendo-lhe abrigo seguro.
A trama termina quando João devolve o ganso e a harpa, restaurando o
equilíbrio das plantações na cidade dos gigantes. Tudo volta a florescer. A mãe do João
do passado já pode morrer e o João do presente não está mais sobre o efeito da
maldição.
Terminamos de ver uma obra de ficção que retrata acontecimentos
extraordinários e, por isso mesmo, fantasiosos. Se levarmos para o campo interno,
poderíamos fazer uma interpretação psicológica na natureza humana de João que vive
conflitos existenciais recheados de identificação, projeções e culpabilidade. Falando
psicologicamente, a projeção é um processo inconsciente, autônomo, pelo qual vemos
primeiro nas pessoas, nos desejos e nos acontecimentos às tendências, características,
potencialidades e deficiências que, na verdade, são nossas. Povoamos o mundo exterior
de feiticeiras e princesas, diabos e heróis do drama sepultado em nossas profundezas.
A projeção do nosso mundo interior no exterior não é coisa que fazemos de
propósito. É simplesmente a maneira como funciona a psique. Em realidade, a projeção
acontece de forma tão contínua e inconsciente que costumamos não dar conta de que ela
está acontecendo. No entanto, tais projeções são instrumentos úteis à conquista do
autoconhecimento. Contemplando as imagens que atiramos na realidade exterior, como
reflexos de espelho da realidade interior, conseguimos conhecermos.
117
Os papéis que desempenhamos no teatro da vida estão revestidos de índices do
inconsciente coletivo chamados por Jung (1990:19) de arquétipos1. Este aborda que
além do consciente e inconsciente pessoal, existiria uma zona ou faixa psíquica onde
estariam as figuras, símbolos e conteúdos arquetípicos de caráter universal,
freqüentemente, expressos em temas mitológicos.
Conquanto a forma específica que as imagens podem assumir variem de cultura
para cultura e de pessoa para pessoa, o seu caráter essencial é universal. Pessoas de
todas as idades e culturas têm sonhado, historiado e cantado acerca da Mãe, do Pai, do
Herói, das Bruxas e Gigantes ou mesmo do Salvador e do Velho Sábio arquetípicos.
Enquanto o inconsciente pessoal consiste de material reprimido e de complexos,
o inconsciente coletivo é composto fundamentalmente de uma tendência para
sensibilizar-se com certas imagens, ou melhor, símbolos que exprimem sentimentos
profundos de apelo universal.
Assim, o inconsciente coletivo é uma faixa intrapsíquica e interpsíquica, repleto
de material representativo com forte carga afetiva comum a toda humanidade. Por
exemplo, a associação do feminino com características maternas de acolhimento e
proteção, que, ao mesmo tempo, em seu lado escuro resulta a estados cruéis. A mãe boa,
por exemplo, é um aspecto do arquétipo do feminino na psique, que pode ter a figura de
uma deusa ou de uma fada. Já da mãe má, pode possuir os traços de uma bruxa ou
aquela que castiga ou abandona seu filho à própria sorte. As figuras em si, mais ou
menos semelhantes em várias culturas, são os arquétipos, como “corpos” que dão forma
aos conteúdos que representam.
João é uma figura humana do cotidiano, vivendo a opressão das exigências
materiais com grande carga emocional que retrata o sentimento de solidão em meio a
uma selva social. Ao mesmo tempo em que está como ator desta massificação social
recolhe-se na fantasia como asseguramento da identidade construída ainda numa época
que o pai seria a referência para a construção dos seus valores. Ocorre aí a identificação.
O arquétipo do pai bom, que ensina, está presente na figura do gigante bom. O bem e o
mau fazem parte da mesma moeda. Na vida diária, João é o gigante mau quando se
recusa, na empresa, a investir tempo e dinheiro em assuntos de ordem social, como 1 Jung aborda amplamente sobre os arquétipos em sua obra AION: estudos sobre o simbolismo do si-
mesmo.
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plantar as sementes que iriam permitir alimentar pessoas que passam fome. A
racionalidade leva a praticidade e as decisões são rápidas. No inconsciente, é restaurado
o sentimento de culpa e o gigante bom minimiza a culpa dando lugar para a possível
manifestação de bondade, solidariedade e a ingenuidade, aquela perdida quando foi
forçado a ser adulto.
O pai é a força, o exemplo, o referencial de ordem e segurança. Este protege,
acompanha e orienta o filho amado. Isso é fortemente projetado na cultura; ganhando,
desta forma, a força do símbolo de proteção, disciplina e segurança. É aquele que salva
o filho dos perigos.
A mãe também está, fortemente, representada na vida de João, identificando-se
com a personagem que retorna de sua cidade para avisá-lo dos prejuízos causados
quando o João do passado roubou os tesouros do seu povo.
Novamente, a culpa restaura o ideal de mãe, de mulher que acolhe e permite
uma segunda oportunidade. Ela sempre perdoa, devolvendo-lhe a tranqüilidade e o bem
estar. Em meio a dor de nossos infortúnios, podemos reencontrar a proteção e a
segurança nos braços da nossa mãe. Mas esta ,também, é marcada por sua própria
fragilidade e desencanto.
A este nível do mito, que é provavelmente o que melhor expressa a natureza do
inconsciente coletivo, a mãe é, simultaneamente, velha e jovem (...) e o filho é, ao
mesmo tempo, esposo e criança adormecida de peito num estágio de indescritível
plenitude, com a qual nem de longe se podem escapar as impressões da vida real, os
esforços e as fadigas empregadas no processo de adaptação, bem como o sofrimento
causado pelas inúmeras decepções com a realidade.
Esta projeção tem o valor de trazer o sentido da verdadeira mãe como a imago
materna. Jung (1998, p.11) diz que a projeção só se desfaz quando o filho percebe que
há uma imago tanto da mãe como da filha, da irmã e da amada, da deusa celeste
universalmente presente sem idade, sendo portadoras e geradoras dos reflexos
inerentes à natureza humana. Ao mesmo tempo que é a fidelidade que se deve guardar
em determinado momento da vida, também é a aflição, as decepções, e desenganos. É o
consolo e a sedutora geradora de ilusões em relação a esta existência.
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Esta imagem é a anima representando o inconsciente onde quer que se manifeste, não se
tratando de uma substituição da mãe, mas resgatando as qualidades desta figura,
originando-se o arquétipo coletivo que se encarna de novo em cada criança do sexo
masculino, supondo-se também que na mulher há um correlato, animus, significando
razão ou espírito. Para Jung (1998, p.9):
Ele espera ser captado, sugado, velado e tragado. Ele procura, de certo modo, a órbita protetora e nutridora da mãe, a condição de criança de peito, distanciada de qualquer preocupação com a vida e na qual o mundo exterior lhe vem ao encontro e até mesmo lhe impõe sua felicidade. Por isso não é de espantar que o mundo real se lhe retraía (...).
Se dramatizarmos este estado, como o inconsciente em geral o faz, o que vemos
no proscênio psicológico é alguém que vive para trás, procurando a infância e a mãe, e
fugindo do mundo mau e frio que não quer compreendê-lo de modo algum.
A passagem na estória atual de João lida freqüentemente com a questão
temporal. Os anos e os dias se mesclam. O sonho é atemporal. Não é fixo o tempo e
nem o lugar. O ontem e o amanhã são o hoje dentro dos elementos simbólicos
representativos da dimensão psíquica.
Sonhar é uma experiência humana universal. Em sentido fenomenológico, o
sonho é uma experiência da vida que se reconhece, em retrospecto, ter ocorrido na
mente enquanto adormecida, embora no momento em que tenha acontecido contivesse o
mesmo senso de verossimilhança que associamos às experiências da vida vígil; ou seja,
parece acontecer no mundo “real” que só em retrospecto é reconhecido como um
mundo “onírico”.(HALL, 1987: 29).
Remetendo-nos mais uma vez as idéias de Jung, o símbolo nasce da própria
alma, surgindo do próprio conflito psíquico inerente a esta, conjugando em si por um
lado, o arquétipo, não possuindo forma nem norma, configurando o inconsciente, e de
outro, uma imagem concreta, retirada do meio o que ao revestir dá forma ao arquétipo,
dando-lhe também existência, criando-o e diferenciando-o do caos que é sua verdadeira
origem, como se deste modo fosse realizado o próprio ato cosmológico da Criação.
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Está reservado a esta imagem simbólica um outro privilégio além do de revestir
o arquétipo. É através desta fixação de imagem que esta energia se converte em
possibilidade de transformação real, posto que mediante esta lhe surge a chance de
adentrar os limites da consciência, de ser por esta digerida e de lançar por fim, como
reflexo do seu objetivo final, uma nova parcela de energia ao EU consciente.
É na solidão, que João reencontra o Ser, momentaneamente traído. Divórcio
entre a vontade de poder, inerente ao homem, e a realidade de uma existência
fundamentalmente humilhada na absurda condição humana de se ver prisioneiro e
solitário. Passar pelo tribunal dos Gigantes é o momento para reconhecer seus próprios
atos, sua ganância e astúcia.
O homem tem medo, medo de ser torturado, medo de se desnudar da sua própria
arrogância. É preciso que sua coragem conheça este momento de fraqueza para que ele
assuma integralmente a condição humana. Tomar consciência que, para salvar a vida, é
preciso perder-se a si mesmo, renegar o que até então fora a sua vontade, construída
com seus atos. O arquétipo dos heróis se caracteriza por uma concepção da vontade que,
desafiando e desprezando a ordem vigente, reserva-se o direito de agir livremente, para
além do bem e do mal.
Na estória João é o herói, mas é também o vilão. Este é o conflito interior versus
exterior. Interior é antes de tudo, a imagem de um mundo protegido, o abrigo seguro
contra o exterior perigoso, o domínio do mal, a guerra. Jung (1998, p.14) nos diz que: A
natureza é conservadora e não se altera facilmente em seus domínios. O animus e a
anima constituem parte de um domínio especial da natureza, que defende sua
inviolabilidade com o máximo de obstinação. Por isso é muito mais difícil
conscientizar-se das próprias projeções do par animus-anima, do que reconhecer seu
lado sombrio. Neste caso, é necessário vencer certas resistências morais como a
vaidade, a cobiça, a presunção, os ressentimentos, etc.
Agora vejamos: a integração do conteúdo (animus e anima) só pode se dá,
quando há correspondência entre o duplo aspecto: afetivo e intelectual. Para Jung, isto é
o mais difícil porque estes se repelem. Segundo o autor (1998, p.13): Todas as vezes
que o animus e a anima se encontram, o animus lança mão da espada de seu poder e a
anima asperge o veneno de suas ilusões e seduções. Mas, o resultado nem sempre será
negativo, pois há também a possibilidade de que os dois se apaixonem um pelo outro.
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Os dois aspectos lutam entre si. E quem quiser realizar esta difícil tarefa, terá
que defrontar-se com o animus ou com a anima. Jung diz que este é o pré-requisito
indispensável para se chegar a totalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na verdade, o que dá sentido a nossa condição humana é poder ampliar os
sentidos das coisas. Recuperamos pelo caminho simbólico as lembranças coletivas que
pouco a pouco restauram nossa lembrança particular. Os conteúdos dessas lembranças
dão o significado correspondente àquele que interpreta o material simbólico.
A natureza humana sempre foi um mistério. Este fato sempre foi instigante para
muitos inquietos, que se dedicaram a investigar este mundo desconhecido, dentre os
quais Jung, que, na procura de respostas fora do quadro teórico da ciência moderna,
contrapõe-se ao modelo científico dominante, buscando sustentação teórica na
perspectiva fenomenológica do fato psíquico.
Até onde foi realizado, este estudo mostra muito timidamente uma releitura da
ficção de João e o pé de feijão com um olhar pelo viés da compreensão psicológica.
Outros autores já se debruçaram para tecer suas reflexões em torno desta obra e,
certamente, muitos outros autores continuarão ressignificando este clássico da literatura.
O mais interessante é percebermos que: Só o homem é dotado da capacidade de
compreender, interpretar e traduzir um pensamento em outro pensamento num
movimento ininterrupto. (Santaella: 1999:52).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlete Caetano, 11ª
ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
FRANZ, Marie-Louíse Von. Reflexos da Alma: Projeção e recolhimento interior na
psicologia de C. G. Jung. Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo: Cultrix, 1988.
JUNG, C. Gustav. O desenvolvimento da personalidade. Trad. Frei Valdemar do
Amaral. Petrópolis: Vozes, 1998.
________________. AION, estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Rio de janeiro:
Vozes, 1998.
SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1999.
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LEITURAS, RESENHAS
&
ENTREVISTAS
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BARROS, Manoel de. Exercícios de ser criança; bordados de Antonia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Marilda, Martha e Savia Dumont sobre desenhos de Demósthenes Vargas. Rio de Janeiro: Salamandra,1999.
Manoel de Barros, com sua forma de escrever capaz de envolver tanto grandes como pequenos, reúne, no livro “Exercícios de ser criança”, duas histórias cheias de emoção, criatividade e expressão. As histórias – “O menino que carregava água na peneira” e “A menina avoada” – aparentemente cheias de despropósitos e peraltices de duas crianças, conseguem mexer com nossos sentimentos de maneira tão profunda que nos identificamos com ele e nos vemos tentados a mudar as coisas, a brincar de faz de conta, a gostar do vazio por nos mostrar o infinito e do que não existe por poder começar a existir.
O livro, ilustrado pela magia dos bordados de seis mãos, é gostoso de ser visto, sentido, lido, vivido... tanto pelas ilustrações quanto pelas palavras também bordadas pela magia de Manoel de Barros.
“Exercícios de ser criança” é uma obra recheada por sonhos e brincadeiras infantis capaz de nos levar a um mundo que realmente existe – o imaginário – gestado no nosso cotidiano, no exercício constante de tornar belo cada obstáculo; de fazer brotar flores nas pedras; de ver a beleza que os dias nublados também escondem...
É um livro cuja estética por si só já desperta a curiosidade que é capaz de levar o leitor a carregar água na peneira e a atravessar um rio inventado num constante “Exercício de ser criança”, mas para isso é necessário começar a leitura. Vamos?
Maria Vitória da Silva1
1 Professora Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; Doutora em Educação.
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FATOS & FOTOS
Profª. Drª. Maria Afonsina palestrando na UESB. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Ms. Ana Sayonara e Profª. Iana Oliveira palestrando na UESB. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
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Profª. Drª. Adriana Barbosa palestrando em Ibirataia. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Drª. Elane Nardotto palestrando para alunos da Esc. Mun. Adolpho Ribeiro. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profº. Antônio Jeferson Barreto Xavier lendo Contos Árabes. (Fonte. Acervo Estale 2013).
Profº. Oscimar Novaes lendo O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. (Fonte. Acervo Estale 2013).
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Profª. Esp. Gizelen Pinheiro contando história para os alunos. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Aline Santos contando história para os alunos. (Fonte. Acervo ESTALE 2013)
Alunos do Gin. Mun. Drº. Celi de Freitas com as máscaras da fábula O Leão e O Ratinho. (Fonte. Acervo ESTALE
2013).
Profª. Iana Oliveira realizando a leitura de um texto com os alunos. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
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Profº. Taniela Macedo ministrando a oficina de charges. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profº. Daniela Santos organizando a oficina no Col. Luiz Viana. (Fonte. Acervo Estale 2013).
Profº. Oscimar Novaes contando O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Jeane de Almeida ministrando oficina na ERTE. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
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Profª. Amanda Cardoso dividindo a turma em equipes para a oficina. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Iana Oliveira dividiu a turma em equipes e realizou a oficina. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Carmem ministrando oficina em Ibirataia. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Lindiana Oliveira ministrou a oficina para uma turminha animada. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
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Profª. Amanda Cardoso contando a história da caçada da onça. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Amanda ministrando oficina no IFBA- Jequié. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Jeane de Almeida ministrando oficina no IFBA- Jequié. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Profª. Nícia Verena contando história na APAE- Jequié-BA (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
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Profº.Caio Cesar realizando a oficina na APAE. (Fonte. Acervo Pessoal do ministrante).
Alunos participantes da oficina. (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Participantes da oficina assistem ao filme apresentado (Fonte. Acervo ESTALE 2013).
Os alunos participando da oficina na sala de informática. (Fonte. ESTALE 2013).
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Profª. Selma Melo contando a história da caçada da onça no Sítio (Fonte. Acervo ESTALE/ 2013).
Geane, Amanda Cardoso, Jeane, Daniele, Antônio Jeferson e Gizelen Pinheiro (Fonte. Acervo ESTALE/ 2012).
Profª. Drª. Maria Afonsina em lançamento de seu livro Mais uma história de três porquinhos (Fonte. Acervo
ESTALE/ 2011).
Profª. Esp. Carla Valéria em Oficina de leitura do Projeto No Reino da Imaginação (Fonte. Acervo ESTALE/ 2012).
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E a História continua: embarcando sentidos antigos, desembarcando novos significados, a cada estação de leitura...
(Equipe ESTALE/2014)
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA
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