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21 EDIÇÃO EM HOMENAGEM A Mauro de Freitas Corrêa ISSN 1809-5917 in memoriam

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  • nº21EDIÇÃO EM HOMENAGEM A

    Mauro de Freitas Corrêa

    ISSN 1809-5917

    in memoriam

  • Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria Geral de Justiça

    Revista

    do Ministério Público

    do Estado de Goiás

    Goiânia2011

  • APRESENTAÇÃO.................................................................

    HOMENAGEM A MAURO DE FREITAS CORRÊA.........................

    ASSUNTOS GERAIS

    Integração econômica, globalização e soberania: umareflexão sobre a sua necessária compatibilidade..........MARCELO CARDOSO PEREIRA

    DIREITO PENAL

    Por que punir?.................................................................VICENTE DE PAULO BARRETTO

    HJFG

    A doação voluntária de sangue como pena restritiva dedireitos.............................................................................JAYME WALMER DE FREITAS

    DIREITO PÚBLICO

    O direito à vida dos portadores de anencefalia noestado democrático de direito...................................ANGELA ACOSTA GIOVANINI DE MOURA

    HJFG

    Infrações administrativas, ministério público e estatutodo idoso............................................................................IZABEL CRISTINA SALVADOR SALOMÃO

    SUMÁRIO

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    27HJFG

    45

    77HJFG

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  • Embargos declaratórios para fins de modular os efeitosda declaração de inconstitucionalidade: novo posiciona-mento do STF e sua principal consequência jurídica.......ELISEU ANTÔNIO DA SILVA BELO

    HJFG

    O tratamento homeopático e suas implicações frente aoestabelecido no estatuto da criança e do adolescentena garantia do direito à vida e à saúde............................LUIZ ANTONIO MIGUEL FERREIRA

    HJFG

    Declaração de independência e constituição ameri-cana: uma história própria de federalizar o estado..........BRUNO J. R. BOAVENTURA

    HJFG

    O poder de polícia em razão da segurança pública e afundamentação legal da abordagem policial sob oenfoque do estado democrático de direito..................ADRIANO FIGUEIREDO CARNEIRO

    HJFG

    Do não cabimento de liberdade provisória no crime de tráficode drogas: leitura da jurisprudência do STF e do STJ.........ANDRÉ WAGNER MELGAÇO REIS

    DIREITO INSTITUCIONAL

    Abusos e omissões do ministério público e de seusmembros..........................................................................CLÁUDIO BARROS SILVA

    DIREITO ESTRANGEIRO

    La senda del derecho administrativo en la jurisprudenciade la corte suprema de justicia de la nación.....................NICOLÁS DIANA

    NICOLÁS BONINA

    Garantismo penal: ¿mito o realidad?...........................FLÁVIO CARDOSO PEREIRA

    127

    HJFG

    135

    HJFG

    155

    HJFG

    179

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  • 5

    'Visto que posso escrever, porque não o farei? Mas

    escrever o quê?' A tormentosa constatação já povoava amente de melancólico personagem da sublime obra O últimodia de um condenado (1829) de Victor Hugo, escrita quandotinha apenas vinte e sete anos.

    Escreve-se por vários motivos. Para compartilhar um va-lioso pensamento, para aproximar-se de algo ou alguém, parasuperar algo, para degustar boas experiências, etc. Mas, o fun-damental é que nunca se interrompa a arte de escrever, afinal,quando o pensamento é encaixado nas palavras deixa de per-tencer a seu autor e passa a existir para todos os outros.

    Com essa provocação, a Escola Superior do MinistérioPúblico apresenta a nova edição da Revista do Ministério Pú-blico de Goiás. O desafio maior é o de incrementar a produçãoacadêmica no âmbito da Instituição, divulgando ideias e posicio-namentos jurídicos, especialmente aqueles ligados à Instituiçãoe atuação funcional dos promotores e procuradores de Justiça.

    Além disso, esta edição é muito especial, vez quelançada em homenagem póstuma a um dos mais notáveismembros da Instituição, o procurador de Justiça e professorda Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás,Mauro de Freitas Corrêa.

    Professor Maurão, durante sua estada entre nós, reali-zou de forma humilde, mas grandiosa, sua missão: bom amigo,professor dedicado, promotor combativo, rara inteligência,conciliador. Homem simples, mas culto. Contribuiu imensamente

    APRESENTAÇÃO

  • 6

    para a trajetória ascendente da Instituição e ajudou a moldar ocaráter jurídico de inúmeros colegas. A ele, a Escola Superior doMinistério Público rende as homenagens.

    Por fim, é desejo desta Escola, por meio de seusintegrantes, agradecer a todos aqueles que participaram eenriqueceram o conteúdo desta edição, enviando artigos etextos de sólida qualidade. O Ministério Público e o meio jurídicose engrandecem com mais essa publicação.

    Goiânia, junho de 2011.

    Spiridon N. AnyfantisPromotor de JustiçaDiretor da ESMP-GO

  • Todos nós temos uma história. Discorrer sobre pedaços da vida de um homem que,

    entre tantas virtudes, destacou-se pela simplicidade, sua maiorriqueza, parece tarefa fácil. No entanto, colocar num singeloescrito fatos importantes de uma vida de luta sem trégua nãoé tão simples.

    De origem humilde desde cedo soube diferenciar a po-breza material da espiritual. A primeira foi companheira assíduapor longos anos; a segunda, ao contrário, jamais conheceu.

    Lutou sozinho. Nunca teve mão que o puxasse ou que oempurrasse com o propósito de fazer subir um degrau sequer daespinhosa estrada que propôs trilhar. Com o olhar sempre fixono horizonte de sua vida, removeu todas as pedras que lhe apa-receram ou lhe foram postas no caminho. Superou todos os obs-táculos que, maliciosa ou gratuitamente, pudessem impedir o seucaminhar em busca de um futuro.

    Venceu! Nasceu em 07 de agosto de 1927, pelas mãos de seus

    avós maternos, num humilde casebre lá pelas bandas do rio Ca-beleira, modesto riacho que integrava a rede hidrográfica doentão município de Rio Verde, neste Estado. Ali viveu grandeparte de sua infância. Segundo dizia, "os melhores tempos de

    7

    HomeNAgem PóStumA A mAuro de FreitAS CorrêAPromotor de Justiça em Goiás

    Professor Livre-Docente em Direito

    na Universidade Federal de Goiás

    (1927-2011)

  • 8

    sua vida". Na sua ingenuidade de criança não era capaz deimaginar quantas dificuldades a vida ainda lhe reservava, masem meio a tantos infortúnios e com uma determinação invejávelalcançou seus objetivos almejados.

    Em 15 de maio de 1944, o "dia D de sua vida", comodizia, ingressou na Polícia Militar do Estado de Goiás, deixandopara trás dias de miséria. Ali permaneceu por 22 anos chegando,com sua dedicação, a oficial Superior da centenária corporação.Não satisfeito, continuou desafiando seu destino sempre a pro-cura de dias melhores.

    Tornou-se brilhante advogado, militou na comarca dePalmeiras de Goiás, onde, pelo grande senso de justiça que lheera inerente, dedicou grande parte de sua vida profissional aosmenos favorecidos. Estudou com profundidade e dedicação oprocesso penal, lutou pela liberdade de muitos, obteve incontá-veis êxitos, graças à excelência de sua oratória.

    Mas quis ir além e, em maio de 1966, via de memorávelconcurso, ingressou no Ministério Público goiano, classificando-se em primeiro lugar. Sentia-se vitorioso, orgulhoso por integraruma instituição, que por definição legal, "é permanente, essen-cial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa daordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais eindividuais indisponíveis". Uma instituição que trabalha defen-dendo tudo em que sempre acreditou.

    Inicialmente, pela brilhante classificação ocupou a co-marca de Nerópolis, mas um ano depois foi convidado a prestarserviços na Procuradoria, ocasião em que já estava em ebuliçãoa ideia da fundação desta Associação. Entusiasmado, abraçoude corpo e alma a ideia e quando a fundaram foi eleito tesoureiro,tarefa espinhosa, pois, como dizia - "não era permitido fazer des-contos em folha salarial, passou a andar com blocos de recibono bolso e onde via um colega procurava receber a contribuiçãode dez cruzeiros por mês". Tempos difíceis. Chegou à presidên-cia, enfrentou muitos obstáculos, mas não desistiu, deu sua con-tribuição para que esta chegasse onde hoje está.

    Posteriormente, deu-se a fundação da CONAMP,evento acontecido em Ouro Preto – MG, ao qual compareceramrepresentantes das Associações de diversos Estados, além de

  • 9

    convidados especiais, incluindo o professor José Frederico Mar-ques, já falecido, que, segundo dizia, era um grande amigo doMinistério Público e que, mais tarde, viria a compor a bancaexaminadora do Concurso de Livre Docência da Cadeira de Di-reito Processual Penal da Faculdade de Direito da UniversidadeFederal de Goiás, em 1972, no qual foi aprovado com avanta-jada média.

    Naquela instituição de ensino federal ingressou em 1969,como Auxiliar de Ensino. Também chegou ao topo da carreira,submetendo-se a quatro concursos, sendo o último o de Profes-sor Titular, no qual conquistou a maior média até então atribuídaa um candidato a esse cargo. Chegou a Diretor e levou paracasa, ainda, o honroso título de Professor Emérito, concedido porunanimidade de votos pelo Egrégio Conselho Universitário daUniversidade Federal de Goiás.

    Por suas mãos passaram milhares de alunos. Foi eleo responsável pela formação de grandes profissionais do direito,inclusive brilhantes membros integrantes desta Instituição, quepassaram pelo rigoroso crivo do professor "Maurão" - como eraconhecido na graduação ou por ocasião do ingresso na carreirado Ministério Público.

    Todos aqueles, inclusive a autora, que tiveram o privilé-gio de receber do grande docente, detentor de uma didática ini-gualável, preciosos ensinamentos, certamente jamais oesquecerão e sempre lembrarão do mestre com eterna gratidãoe profundo carinho.

    Aqueles que o conheceram mais de perto podem confir-mar o que aqui está escrito, e sabem que, de todos os honrososcargos que ocupou ao longo de seus quase 45 anos de serviçopúblico, o de que mais se orgulhava era o de "Professor", gostavade ser chamado de "Professor Mauro".

    Sinto-me privilegiada por ser filha deste grande homem,que sempre cumpriu com honestidade, dignidade, e, sobretudo,humildade, seu desiderato. Ele partiu, deixando para nós, seusfilhos, netos, parentes e eternos discentes um grande legado, re-pito, sua maior riqueza - a simplicidade - e a certeza de que umhomem vale não pelas posições que ocupa, mas sim pelo queverdadeiramente conquistou.

  • 10

    Este foi e sempre será o meu amado mestre e pai.Oportunamente, agradecemos esta honrosa homena-

    gem e tenho certeza de que onde quer que ele esteja, neste mo-mento está entre nós.

    Profª ivone elizabeth Corrêa SantoméFilha

  • O Palácio Conde dos Arcos e ao fundo, a Catedral de Santana, edifícios doPatrimônio Histórico da Humanidade da Cidade de Goiás.

    ASSUNTOS GERAISGENERAL AFFAIRS

    ASUNTOS GENERALES

  • 13

    Marcelo Cardoso Pereira*

    INTEGRAÇÃO ECONÔMICA, GLOBALIZAÇÃOE SOBERANIA: UMA REFLEXÃO SOBRE A

    SUA NECESSÁRIA COMPATIBILIDADE

    ECONOMIC INTEGRATION, GLOBALIZATION AND SOVEREIGNTY:

    A REFLECTION ON ITS REQUIRED COMPATIBILITY

    INTEGRACIÓN ECONÓMICA, GLOBALIZACIÓN Y SOBERANÍA:

    UNA REFLEXIÓN SOBRE SU NECESARIA COMPATIBILIDAD

    Resumo:

    Atualmente, os processos de integração econômica, não

    obstante os obstáculos que lhe são inerentes, encontram-se em

    pleno desenvolvimento. São, inegavelmente, tão atuais como o

    fenômeno da globalização, além de não serem, com esta, incom-

    patíveis. Neste contexto, surge a necessidade de uma reflexão

    sobre a soberania dos Estados participantes de tais processos,

    com o objetivo de demonstrar que continuam como titulares da

    soberania, cedendo, somente, o exercício da mesma.

    Abstract:

    Currently, the processes of economic integration, despite the

    obstacles that are inherent, are at full development. They are,

    undeniably, as current as the phenomenon of globalization, and

    are not, with this last one, incompatible. In this context, arises the

    need for a reflection on the sovereignty of participating States in

    such processes, in order to show their continued as holders of

    sovereignty, giving only the exercise thereof

    * Advogado. Professor Universitário. Mestre e Doutor em Direito pelaUniversidad Complutense de Madrid, Espanha.

  • 14

    Resumen:

    En la actualidad, los procesos de integración económica, a pesar

    de los obstáculos que le son inherentes, están en plena marcha.

    Son, sin lugar a dudas, tan actuales como el fenómeno de la glo-

    balización, y no son, con esta, incompatibles. En este contexto,

    surge la necesidad de una reflexión sobre la soberanía de los Es-

    tados participantes en dichos procesos, con el fin de mostrar la

    continuidad de su calidad de titulares de la soberanía, cediendo,

    tan sólo, su ejercicio.

    Palavras-chaves:

    Integração econômica, globalização, soberania.

    Keywords:

    Economic integration, globalization, sovereignty.

    Palabras clave:

    Integración económica, globalización, soberanía.

    Introdução

    O presente trabalho possui, como escopo precípuo,apresentar subsídios para uma reflexão sobre a compatibili-dade dos processos de integração econômica e da globali-zação frente ao clássico instituto da soberania dos Estados.O tema, de inquestionável atualidade, desperta um interesseparticular no caso brasileiro, uma vez que formamos partede um processo de integração econômica que visa a forma-ção de um mercado comum. O dito processo, como é cediço,

  • denomina-se MERCOSUL1, vale dizer, Mercado Comum doSul. Ademais, no âmbito europeu temos o mais bem-suce-dido modelo de integração econômica, porém não isento deimperfeições e efeitos negativos, qual seja, a União Euro-peia, que serve de experiência para que o MERCOSULpossa se desenvolver, com a necessária compatibilizaçãoentre os mencionados processos e o instituto da soberania.Eis, pois, o desafio para se alcançar um modelo pleno, e efi-caz, de integração econômica Sul-Americana.

    Integração econômica versus globalização

    Em primeiro lugar, entendemos oportuno admoestar queo estudo destes institutos e processos se mostra, atualmente,imprescindível ante a consolidação do Direito Comunitário2,novel ramo do direito3. Com efeito, a globalização, ao contráriodo que se sustenta, não é incompatível com a integração eco-nômica. São fenômenos que guardam estreita relação. Destarte,

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    1 O Mercado Comum do Sul (Mercosul) é um amplo projeto de integração con-cebido por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Envolve dimensões econômi-cas, políticas e sociais, o que se pode inferir da diversidade de órgãos que orao compõem, os quais cuidam de temas tão variados quanto agricultura familiarou cinema, por exemplo. No aspecto econômico, o Mercosul assume, hoje, ocaráter de União Aduaneira, mas seu fim último é constituir-se em verdadeiroMercado Comum, seguindo os objetivos estabelecidos no Tratado de Assunção,por meio do qual o bloco foi fundado, em 1991. Conceito retirado da páginaWeb institucional do MERCOSUL: www.mercosul.gov.br.2 Entende-se por Direito Comunitário o ramo do direito formado por um con-junto de normas as quais regulamentam as relações jurídicas levadas a cabopor Estados reunidos em um bloco, com o escopo precípuo, porém não único,de integração econômica.3 Sobre o fenômeno da globalização, e desde uma perspectiva introdutória,vide Dehesa (2007). Uma visão aprofundada acerca do papel do direito na glo-balização pode ser encontrada em Cassese (2006). Para uma excelente apro-ximação à globalização do ponto de vista nacional, consulte-se Caldas (1999).

  • poder-se-ia afirmar que a integração econômica apresenta-secomo uma consequência da globalização, tendo em vista queos blocos regionais se formam com o escopo de proteger-se dosaspectos negativos oriundos da mesma.

    Nesse contexto, assevera Lewandowski (2008, p. 294) que

    Enquanto a globalização possui uma dinâmica própria, deri-vada em especial desse novo modo de produção capitalista,sobre o qual os distintos países isoladamente não têm nenhumdomínio, a regionalização permite um certo controle sobre asvariáveis do processo, dentro de um espaço territorial menor.

    Em que pese não ser um processo exclusivamente eco-nômico4, a globalização caracteriza-se como uma integração glo-bal, a qual nos conduz a uma inegável ilação: presenciamos,atualmente, um crescimento da relação de interdependênciaentre as nações. Por outro lado, a integração econômica reveste-se de uma característica singular, qual seja, a de aproximar Es-tados que compartilham pontos em comum, sejam eles de ordemgeográfica, cultural, política, etc., oferecendo, mutuamente, van-tagens no campo econômico-comercial e tendo como escopoprecípuo o fortalecimento no cenário internacional.

    Destarte, quer se situe aludida relação a nível global, querseja em âmbito regional, “O grau de interdependência das rela-ções entre os Estados soberanos conduz para a sistematizaçãodos processos de aproximação” (LEMBO, 2004, p. 8). Por conse-guinte, a noção de independência absoluta dos países, alicerçadano conceito inveterado de soberania, não é conciliável com o atualsistema internacional, mormente no campo econômico.

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    4 Esta é a opinião de Silva. Para ele (2007, p. 17-18): “Ao longo do século XX, aglobalização do capital foi conduzindo a globalização da informação e dos pa-drões culturais e de consumo”. No mesmo sentido, adverte Vieira para o fato deque: “A globalização, todavia, não se resume a esse novo modo de produçãocapitalista, estruturado em escala mundial. Ela decorre também da universali-zação dos padrões culturais e da necessidade de equacionamento comum dosproblemas que afetam a totalidade do planeta, como a degradação do meio am-biente a explosão demográfica [...]” (VIEIRA, 1997, p. 73).

  • Afastada, portanto, qualquer iniciativa de isolamento co-mercial, vale dizer, de rechaço à hodierna realidade econômicamundial, baseada no estreitamento das relações entre os Esta-dos, caberia refletir sobre os efeitos positivos e negativos dessainterdependência. Nesse sentido nos relata Böhlke (2003, p. 33),ainda que aludindo, particularmente, aos processos de integra-ção regional, que:

    A interdependência pode ser [...] positiva ou negativa. A inter-dependência positiva ocorre quando uma mudança desejávelverificada em determinado país desencadeia reação tambémdesejável em outro Estado. Será ainda considerada positiva ainterdependência se a mudança for prejudicial em certo Estado,gerando reações também prejudiciais em outro. A interde-pendência negativa é aquela que dá ensejo a conseqüênciasdiversas em outro Estado, ou seja, uma mudança desejávelpara um Estado que gere reações prejudiciais em outro.

    Poder-se-ia pensar, à princípio, que recai em equívocoo mencionado autor ao afirmar que a interdependência será po-sitiva quando um Estado suportar mudança perniciosa, a qualprojeta seus efeitos para outro(s) Estado(s). Entretanto, a apro-ximação entre os países, especialmente em seara de integraçãoeconômica regional, implica em um elo de tamanha intensidadeentre os mesmos que benefícios e malefícios devem ser supor-tados em conjunto, em prol do objetivo comum almejado.

    Em suma, tanto a integração econômica (regional),quanto a globalização, apresentam-se como fenômenos que im-pactaram, e seguem impactando, a economia internacional5. São,em nossa opinião, processos irreversíveis, entenda-se tendência

    17

    5 No tocante à evolução histórica da integração econômica, posteriormente te-remos oportunidade de a ela nos aproximarmos quando do estudo do processointegracionista europeu. De outra sorte, seria uma conclusão falaz imaginar-seque a globalização apresenta-se como um fenômeno historicamente recente.Oportunamente, admoesta Roberto Luiz Silva (2007, p. 17-18) que: “A doutrinamajoritária identifica [a globalização] como um processo que teve seu início noperíodo dos grandes descobrimentos, no século XV. Com efeito, as expediçõeslideradas pelo navegante genovês Cristóvão Colombo e financiadas pelo Reino

  • mundial, cabendo a cada Estado que compõe a sociedade inter-nacional deles participar, segundo seus próprios interesses, tendocomo parâmetro o grau de soberania que deseja compartilhar.

    Integração econômica e soberania

    Analisando desde uma perspectiva histórica, a integra-ção econômica apresentar-se-ia como um processo recente eem constante evolução. Ante esse panorama, adverte Böhlke(2003, p. 30) que “O fenômeno da integração ainda não está su-ficientemente delimitado e sistematizado, principalmente porquecompreende temática nova e bastante mutável”.

    Quiçá por esse motivo se discuta, ainda, se tal fenômenoseria compatível com o instituto da soberania. Entretanto, e antesde enfrentarmos essa intricada quaestio, parece-nos aconselháveltecer alguns comentários sobre tal instituto. Não obstante as vá-rias vertentes que apresenta a soberania6, a mesma pode ser de-finida, desde a óptica da Ciência Política, como a autoridade do

    18

    de Castilla y Aragón, romperam, em 1492, o isolamento entre o ‘Velho’ e o ‘NovoMundo’ e implicaram crescente contato entre os países então existente, se-guindo-se a criação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (1621),com o objetivo de eliminar a competição entre diferentes postos mercantis es-tabelecidos pelos mercadores, e a Companhia das Índias Orientais, criada pelaInglaterra a partir da fusão de diferentes sociedades, aspirantes ao monopóliodo comércio com aquela parte do mundo, em uma única companhia, em 1702”.Há quem situe o surgimento histórico da globalização em momento anterior.Nesse sentido, afirma Soares (2002, p. 51) que: “A chamada globalização cons-titui um processo que vem se desenvolvendo desde o passado remoto da hu-manidade. Compreendida num sentido amplo, começa com as migrações dohomo sapiens, transita pelas conquistas dos antigos romanos, pela expansãodo cristianismo e do Islã [...] culminando com a aldeia global que caracteriza omundo de hoje”.6 Nesse contexto, constatamos a existência, teórica, da soberania interna, dasoberania internacional, da soberania popular, da soberania política, entre ou-tras. Para uma aproximação ao tema, vide Saskia (2001). No âmbito da doutrinanacional, consulte-se Diniz (1998, p. 387-388).

  • Estado, o que o torna supremo, não podendo tal autoridade serlimitada por outro poder. No mesmo sentido, entende o saudosojurista Sahid Maluf (2003, p. 29) que “Soberania é uma autoridadesuperior que não pode ser limitada por nenhtum outro poder”7.

    Sem embargo, o conceito de soberania, que deve ser fle-xível, isso por estar susceptível à evolução, não mais comportainterpretação restritiva. Com efeito, os fenômenos até aqui ana-lisados, quais sejam, a integração econômica, bem como a glo-balização, impactaram a noção clássica de soberania. Portanto,a interdependência, que é característica marcante desses pro-cessos, permite que atualmente a soberania seja compreendida,ainda, como o poder (autoridade) peculiar do Estado, mas quenão impede que este possa, soberanamente, compartilhar algu-mas competências, seja com outros países ou com organizaçõesinternacionais.

    Assim, e desde o ponto de vista particular da integraçãoeconômica, dependendo da fase ou etapa em que se encontreum grupo de Estados (bloco econômico) poder-se-á constatar oquanto foi mitigada a noção tradicional de soberania. Ademais,quando determinados países se unem com o intuito de promoverum processo integracionista, provavelmente, para não dizer cer-tamente, nos depararemos com Estados heterogêneos, mor-mente no campo do desenvolvimento social e econômico. Talaspecto justifica a existência de processos de integração econô-mica de grande complexidade e outros, contrariamente, incom-plexos.

    Nesse contexto, e de forma perspicaz, pondera GonçalvesPortela (2009, p. 770-771):

    19

    7 Contudo, esclarece esse autor (2003, p. 30) que a soberania “Não pode sofrerrestrições de qualquer tipo, salvo, naturalmente, as que decorrem dos imperativosde convivência pacífica das nações soberanas no plano do direito internacional”.Evidentemente, o saudoso autor desconsiderou outras hipóteses de “erosão” doconceito de soberania, uma vez que vinculava a possibilidade de restrições aopoder (autoridade) do Estado somente quando o escopo fosse manter o convíviopacífico entre os países.

  • O regionalismo atual vai atrair Estados em diferentes estágios dedesenvolvimento, que criarão espaços mais ou menos institu-cionalizados e com objetivos que variam da mera promoção deinteresses no âmbito econômico-comercial à integração mais pro-funda, atingindo os campos político e social e limitando vigorosa-mente a soberania estatal.

    Por outro lado, e de forma diametralmente oposta, háquem não aceite qualquer argumento no sentido de limitação, re-dução ou, até mesmo, perda de soberania, por parte de paísesque decidiram participar de processos de integração econômica.Autores, os quais comungam tal posicionamento, afirmam, inclu-sive, que a soberania não sofreu qualquer impacto, nem mesmopelo fenômeno, de grande abrangência, da globalização. Alémdisso, entendem, de forma acertada, que no plano interno os paí-ses preservam sua soberania, não havendo, acima deles, ne-nhum outro poder. Na esfera internacional, os Estados somenteassumiriam obrigações se, soberanamente, assim o desejassem,mantendo sua independência em relação aos outros países e àsorganizações internacionais.

    Partindo dessa premissa observa, de forma criteriosa,Lewandowski (2008, p. 296):

    Nem mesmo os integrantes da União Européia, que se sub-meteram ao direito comunitário, renunciaram à soberania oua parcela desta. Simplesmente passaram a atuar de modoconjunto em determinadas áreas, sobretudo no campo daeconomia, para conferir maior eficácia às respectivas ações.Dito de outra forma, passaram a compartilhar as respectivassoberanias, em áreas consideradas críticas, por intermédiode órgãos supranacionais, aos quais delegaram um certonúmero de competências, taxativamente explicitadas nostratados constitutivos.

    Não obstante esse embate doutrinário, manifestamosnosso entendimento no sentido de não ser pertinente falar-se emperda de soberania por parte de Estados que se submeteram a umprocesso de integração econômica. Por outro lado, reconhecemos

    20

  • que tal processo implica em uma revisão da tradicional concepçãode soberania. Porém, não se trata de cessão da soberania estatal,vale dizer, de parcela desta. Admoestamos para o fato de que umprocesso integracionista caracteriza-se pela cessão do exercício,e não titularidade, de determinadas competências, mormente aque-las imprescindíveis desde a perspectiva econômica.

    Com efeito, e valendo-nos do exemplo da União Euro-peia, os países que a integram estão autorizados, constitucio-nalmente, a ceder tal parcela de competências (soberania) aessa organização internacional de caráter regional. Nesse con-texto, e à título ilustrativo, dispõe o artigo 93 da ConstituiçãoEspanhola de 1978, in verbis: “Mediante la ley orgánica sepodrá autorizar la celebración de tratados por los que se atri-buya a una organización o institución internacional el ejerciciode competencias derivadas de la Constitución8” (grifo nosso).

    Destarte, resulta ilação incontestável que a titularidade dascompetências cedidas queda intacta e vinculada à soberania do Estado,em que pese as consequências práticas dessa transferência, máximedo ponto de vista jurídico. De fato, uma parte do poder do país deixa deser exercido pelo mesmo, através de seus órgãos, deslocando-se parauma organização de caráter supranacional que passará, e aí o efeitomais peculiar da cessão de competências, a criar e aplicar normas sobreas matérias a elas transferidas (cf. TREMPS, 2000, p. 116).

    Conclusão

    Por todo o exposto, não corroboramos o entendimentode parte da doutrina no sentido de que a delegação de poderes

    21

    8 Disponível em: http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/titulos/articu-los.jsp?ini=93&fin=96&tipo=2.

  • executivos (competências), por parte dos Estados às organiza-ções internacionais, por certo supranacionais, seria excepcional,uma vez que aqueles resistiriam a fazê-lo9, evidentemente am-parados na noção arcaica de soberania.

    Em suma, não há que se falar em perda de soberaniaquando do ingresso de um Estado em um processo integracionistade cunho econômico, uma vez que a titularidade das competênciascedidas permanece com o ente estatal o qual, ressalte-se, não foiobrigado a ceder tal parcela de sua soberania, o fazendo, ao con-trário, na plenitude do exercício de sua soberania.

    Referências

    BöHLkE, M. Integração regional & autonomia do seu ordena-mento jurídico. Curitiba: Juruá, 2003.

    CALDAS, R. W. O Brasil e o mito da globalização. São Paulo:Celso Bastos, 1999.

    CASSESE, S. La globalización jurídica. 1. ed. Madrid: MarcialPons, 2006.

    CORRêA LIMA, S. M. Tratados Internacionais no Brasil e In-tegração. São Paulo: Ltr, 1998.

    GONçALVES PORTELA, P. H. Direito Internacional Público e Pri-vado. Salvador: JusPodivm, 2009.

    DINIZ, M. H. Dicionário Jurídico. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1998.

    22

    9 Vide, entre outros, Côrrea Lima (1998, p. 67)

  • LEMBO, C. M. et al. Negociações Multilaterais de Comércio, o Pro-cesso de Integração Econômica e a Formação de Blocos Regionais.In: AMARAL, A. C. R. do (Coord.). Direito do Comércio Internacional- Aspectos Fundamentais. São Paulo: Aduaneiras, 2004.

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  • 24

  • DIREITO PENALCRIMINAL LAW

    DERECHO PENAL

  • Vicente de Paulo Barretto*

    Por que Punir?

    WHY TO PUNISH?

    ¿POR qUé PUNIR?

    Resumo:

    A questão da punição e da responsabilidade penal e civil constitui

    uma vexata quaestio na cultura jurídica nacional. Tema central

    na tradição do pensamento filosófico e político, a questão da pu-

    nição no estado democrático de direito pressupõe o estabeleci-

    mento de seus fundamentos éticos como condição para a própria

    eficácia do sistema jurídico.

    Abstract:

    The question of punishment and criminal and civil liability is a

    vexed question in the national legal culture. Central issue in the

    tradition of philosophical and political thought, the question of

    punishment in Rule of Law presupposes the establishment of its

    ethical foundations as a condition for the effectiveness of the

    legal system.

    Resumen:

    La cuestión de la punición y de la responsabilidad penal y civil

    constituye es una cuestión controvertida en la cultura jurídica na-

    cional. Tema central en la tradición del pensamiento filosófico y

    político, la cuestión de la punición en el Estado democrático de

    derecho supone el establecimiento de sus fundamentos éticos

    como condición para la eficacia del sistema legal.

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    * Professor no PPG em Direito da UERJ e da UNESA. Professor Visitante doPPG em Direito da UNISINOS

  • Palavras-chaves:

    Moral, crime, punição, responsabilidade.

    Keywords:

    Ethics, crime, punishment, liability.

    Palabras clave:

    Moral, crimen, punición, responsabilidad.

    i. Da natureza da punição

    As reflexões que me proponho a fazer sobre os funda-mentos éticos da punição têm uma dupla origem. Nasceram, emprimeiro lugar, de uma indignação mais psicológica do que racio-nal, provocada pelo grau e pela variedade da violência que tomouconta do Brasil. Originaram-se, também, da necessidade intelec-tual de procurar uma resposta para a constatação de que o grandedesafio que ronda, e ameaça, a sociedade brasileira contempo-rânea consiste na cultura da falta de punição. Essa cultura, porsua vez, vai expressar-se e consagrar-se na impunidade, meraexpressão sociolegal da ausência de punição.

    Não me parece que a impunidade, simples materializaçãolegal de uma atitude moral e intelectual, seja o problema, pois pordetrás das leis, do descaso e da corrupção encontra-se um germeantissocial mais ativo e destrutivo. Idêntico a uma célula cance-rosa no corpo humano, multiplica-se e desdobra-se ao perpassare contaminar todo o corpo da sociedade. Manifesta-se na facili-dade com que se aceita a transformação da criança na tirana dospais, dos irmãos, dos colegas, impondo, em seguida, sua vontadedescontrolada à família, à escola e à sociedade. Esse problema

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  • central também irá ser detectado na própria tentativa de justifica-tiva racional para a falta de punição, pois esta é considerada, pormuitos doutrinadores, como constituindo-se, ela própria, a grandeviolência contra a pessoa humana.

    Algumas teorias têm tratado da justificativa, não tanto dapunição, mas da pena. Desde a conhecida definição de puniçãodada por Grotius (1925, cap. XVII, I. 1), no século XVII (malumpassionis quod infligitur ob malum actionis – mal de paixão, infligidoem virtude de uma má ação), a teoria da pena tem abandonado aanálise das razões primeiras de sua aplicação e tratado mais desuas finalidades do que de sua natureza. Isso porque a pena pas-sou a ser considerada como um mal em si mesmo, assim como ocastigo da criança constitui-se, na ótica de algumas escolas peda-gógicas, em violência e atentado aos direitos da criança.

    Podemos utilizar a definição de Grotius como parâmetrode referência para a análise dos fundamentos da punição na con-temporaneidade. Essa definição talvez possibilite delimitar ocampo conceitual, que poderá ajudar a compreender e a explicara natureza da punição na sociedade humana. Da definição gro-ciana podemos determinar as seguintes características de todae qualquer forma de punição:

    1. quando se fala em punição estamos fazendo referên-cia a um mal, vale dizer, a alguma coisa que não é pra-zerosa, implicando no cerceamento da liberdade e deseus benefícios;2. Aplica-se a punição em consequência de ato praticadoanteriormente e condenado pela lei. Trata-se do segundode um par de termos relacionados, como no título do ro-mance de Dostoievsky, Crime e castigo. Ainda que sepossa infligir dor em outro indivíduo, sem causa ou porsimples crueldade, ou mesmo acreditando-se que seestá proporcionando um benefício à vítima, agir dessa

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  • forma não caracteriza uma punição legal, legítima, exe-cutada através do poder público;3. Para que se caracterize a punição, deve existir umarelação, estabelecida por lei, entre a punição e o ato quea provocou. Pelo menos, deve-se ter explícito na puniçãoque o infrator deverá vivenciar, na privação da liberdadee na sua consciência, a angústia e o tormento provocadopelo crime na vítima e na comunidade;4. A punição é imposta. Resulta de um ato da autoridadepública e não é uma forma de retaliação da vítima. En-tende-se, assim, como a vingança é uma das conse-quências maléficas da banalidade da violência nosnossos dias, pois substitui a ideia de punição, como atolegítimo, pelo recurso à vingança primitiva, que se ex-pressa na máxima e na prática de que “bandido bom ébandido morto”;5. A punição restringe-se à aplicação de uma pena aocriminoso individualmente ou a alguém responsável poratos considerados criminosos pelas leis. Não se estendeaos seus familiares e nem se constitui no elo de uma ca-deia de punições, que se desdobra para as famílias doscriminosos e que se propaga por gerações sucessivas.

    Seguindo o argumento de Grotius, devem-se diferenciarduas questões, para que se possam estabelecer os contornos doespaço da punição na sociedade contemporânea. Estas encontramnas respostas a serem dadas às seguintes questões: Ob quod? eCuius ergo? Nem todo ato que viola as normas e os costumes deuma sociedade pode ser considerado como um ato criminoso.Deve-se perguntar, como faz Grotius, qual a ofensa que justifica apunição legal e com que finalidade é o criminoso punido.

    A resposta a essas perguntas tem-se constituído em casusbelli na cultura contemporânea, especificamente no pensamento

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  • social e jurídico, envolvendo uma gama enorme de filósofos, juris-tas, cientistas sociais, economistas e legisladores. Encontramos di-ferenças radicais nas respostas dadas a essas questões, muitasdelas mais preocupadas em responder à interrogação sobre a fi-nalidade da pena do que em considerar a questão nuclear que con-siste em desvendar a sua natureza ética.

    As opiniões encontradas na filosofia e na ciência do di-reito sobre quais ofensas devem ser punidas e as razões para aaplicação da pena dividem-se, grosso modo, em três grupos. Oprimeiro afirma que é sempre justificável punir as violações dasnormas sociais e jurídicas, ainda que nem sempre seja possível,na prática, materializar-se a punição; o segundo grupo sustentaque a punição é, às vezes, justificável, e, às vezes, não; final-mente, o terceiro grupo sustenta ser a punição sempre desne-cessária e injustificável (MOBERLY, 1968).

    Ob quod?

    A primeira pergunta de Grotius possibilitará a recuperaçãoda relação entre a natureza da violação da lei e a punição. qualtipo de ofensa deve ser punido? Essa pergunta tem encontrado,desde as primeiras civilizações, uma resposta comum. Historica-mente, a punição deita suas raízes em tempos arcaicos, quandoa pena era aplicada em virtude da violação de princípios religiosos.O ato criminoso, por mais insignificante que fosse, constituía-seno rompimento de uma ordem sagrada e natural. Entre os crimes,o homicídio, principalmente, era considerado como tendo um sim-bolismo e significado moral único, pois representava um assalto àordem natural sagrada e a sua reparação somente seria possívelcom a morte do próprio homicida (WILSON, 2007, p. 158).

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  • A resposta a essa primeira questão, suscitada pelo textode Grotius, é simples e imediata, pois afirma que a punição é aaplicação do princípio geral de justiça em virtude do qual cadaindivíduo deve responder por seus atos. Essa justificativa encon-tra-se expressa na conhecida máxima latina: ut, qui malum fecit,malum ferat, aquele que com o mal fere, com o mal deverá serferido. Nesse sentido, a punição serviria para expressar e satis-fazer a indignação da comunidade diante da transgressão, sendoa pena considerada como tendo uma finalidade em si mesma.

    Essas raízes profundas da punição encontram-se no es-paço de uma antropologia que pode explicar-se pela relaçãoentre o ato e sua repercussão na vítima, na sociedade e no cri-minoso. Não existe dúvida de que essa concepção da puniçãoresponde a uma demanda profundamente enraizada na naturezahumana. Torna-se necessário, entretanto, determinar a relaçãomoral existente entre o indivíduo, o criminoso e a punição. A ideiada punição será então estabelecida em função da atitude do in-divíduo em relação ao crime e ao criminoso. Resta, entretanto,uma dúvida sobre a qualidade dessa atitude e dessa demanda:ela será de Deus ou do Diabo?

    quando um indivíduo agride o outro, um terceiro expe-rimenta – do ponto de vista moral – um duplo sentimento. Emprimeiro lugar, sente a necessidade de defender a vítima e, emsegundo lugar, de recuperar para o agressor a racionalidadeque se constitui no alicerce da vida social. Ambas as reaçõesque se experimenta diante do crime deitam as suas raízes norespeito à vida e à dignidade da pessoa. O sofrimento mentalvivenciado pela vítima consiste, assim, no fato de que a suadignidade foi violada, fato que se liga à degradação, também,dessa dignidade na pessoa do criminoso. Nos dois casos,torna-se necessário que essa dignidade violada e degradadaseja restabelecida (SOLOVIEV, 1997, p. 302), na vítima e nocriminoso. Na construção da fonte ética da punição teremos

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  • assim o primeiro alicerce: o restabelecimento da dignidadetanto na vítima quanto no criminoso.

    Como escreve Soloviev, essa necessidade de restabe-lecimento da justiça origina-se do princípio moral que exige, nocaso de um crime, i. e., quando ocorre uma ofensa de um homemcontra outro homem, que a sociedade tome antes de tudo umaatitude moral em relação ao agressor e à vítima. Mas a atitude aser tomada irá depender de qual ponto de vista adotaremos.Podem-se considerar exclusivamente os direitos da vítima ou dacomunidade a ser defendida ou vingada; o criminoso será consi-derado, então, como simples objeto de punição, sem os direitosque lhe foram retirados pelo próprio fato de ter sido condenado.Essa posição simplista nos remete às práticas da vingança pri-mitiva e suscitam, por sua vez, uma reação, muito encontrada naatualidade entre doutrinadores, juristas e legisladores, que reco-nhece o direito do ofensor a ser punido unicamente através dapersuasão verbal e não admite coerção punitiva em relação aocriminoso, o que na prática resulta em privar a vítima e a socie-dade do seu direito de defesa. Essas duas atitudes morais e in-telectuais constituem-se na fonte de dois grupos de doutrinaspenais contraditórias: as doutrinas da vingança e a doutrina dapersuasão verbal (SOLOVIEV, 1997, p. 304-305).

    Psicologicamente, o nosso sentimento pela vítima é di-ferente daquele que temos pelo agressor, pois pela vítima senti-mos piedade e, pelo agressor, revolta e indignação moral. Aexigência moral faz com que não deixemos a nossa indignaçãotransformar-se em vingança, na negação do seu direito, aindaque materialmente esse direito distingue-se do direito da vítima.Esta tem o direito de ser defendida pela sociedade, enquanto oagressor tem o direito de ser reconduzido à razão. A base moraldesses dois tipos de relacionamento é a mesma: o valor absolutoou a dignidade da pessoa humana, que reconhecemos em nóse nos outros.

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  • Cujus ergo?

    Ambos os modelos teóricos que justificam a aplicaçãoda pena representam um passo à frente no sentido de normati-zar, por meio da lei, a aplicação da punição. Trata-se da supera-ção da ideia de que o ofensor é um inimigo do qual deve asociedade vingar-se, e não um criminoso que deve ser punido.Esse tipo de resposta à segunda pergunta, formulada por Gro-tius, representou um estágio na evolução moral da humanidadee, como escreveu Beccaria (1991), a ideia de que nunca se devepunir pela satisfação da punição. A contribuição de Beccaria parao tema não se reduziu à defesa da ideia da punição como pena,mas prosseguiu para distinguir entre dois níveis de punibilidade:o religioso e o político.

    Durante séculos, pecado e crime foram consideradoscomo duas faces de uma mesma moeda. O ofensor da lei civilera também um pecador. Além dessa confusão de níveis – oreligioso e o civil – um servindo ao outro, como no caso da In-quisição, não se tinha presente na consciência jurídica a dife-rença entre níveis de criminalidade. Assim, por exemplo, naIdade Média, o homicídio não era considerado como um crimecapital para a consciência jurídica, mas a falsificação de moedaimplicava na aplicação da pena capital, pois o criminoso violavaum privilégio do poder real e isso significava, por essa razão,um crime político, pois o que se encontrava em causa era a se-gurança da Igreja e do Estado. Vivia-se a época em que Vol-taire, (1768), em carta a Beccaria, escrevia como sendo aquelaem que se cometeu (a propósito da execução do cavaleiro deLa Barre) um “[...]crime jurídico”. E Voltaitre apontava para asconsequências de o Estado ser o braço punitivo da Igreja: “Masque abominável jurisprudência a de sustentar a religião so-mente pelo carrasco”.

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  • Beccaria foi quem separou as esferas da Igreja e do Es-tado no que se refere ao direito de punir. A Igreja poderia continuara punir o pecado e o estado deveria considerar a desobediênciaà lei civil ao avaliar e sopesar o dano que o seu descumprimentotraria para o indivíduo e para a sociedade. Como escreve Venturi(1971), o grau de utilidade ou não utilidade passaria a ser o critériode medição de todas as ações humanas. A punição deixaria deconstituir-se na expiação de um pecado religioso e civil e o direitopenal perderia todo o seu conteúdo sagrado.

    A influência de Beccaria propagou-se exercendo papel de-cisivo na abolição da tortura como pena, na supressão dos suplí-cios e na humanização das leis penais. Ainda no século XX,Camus considerava Beccaria o humanista que, sem ter pertencidoa um movimento religioso ou político, tinha exercido a mais pro-funda influência no pensamento europeu (CAMUS, 1979, p. 60).

    A humanização e a secularização do direito de punir rea-lizada por Beccaria não elidiu, entretanto, a questão central danecessidade ou não do dever de punição pelo poder públicocomo condição de existência da sociedade. A aliança entre hu-manismo e reformismo penal marca uma radical reavaliação daideia de punição penal na sociedade moderna. Considera-se,porém, que a pena legal constitui-se a transformação históricada vingança do sangue e, por essa razão, deve ser consideradasob outra perspectiva. Em torno desse tema irão se diferenciaras escolas do pensamento social e jurídico do século XIX e XXque procuram, em face de um sistema punitivo injusto, propor so-luções mais humanas para a questão da pena.

    Permanece em debate, entretanto, quais as razões doato de punir e como punir significa necessariamente provocar, dealguma forma, dor – física ou espiritual – e é sempre uma agres-são à pessoa; algumas vezes, no entanto, é um mal menor dianteda alternativa de não se punir. A punição seria, então, justificadasomente como um instrumento com vistas a uma finalidade: a de

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  • prevenir futuros crimes. A pena ideal teria o papel de servir comoexemplo, sendo destinada a impedir delitos a serem praticadosno futuro.

    Mas a pena destina-se, também, a produzir efeitos be-néficos para o próprio criminoso, que ficaria impedido de praticaroutros crimes em três distintas situações. O indivíduo pode serimpedido de praticar outros crimes pelas seguintes causas:morte, prisão ou mutilação; pode sentir-se ameaçado e, assim,enquadrar-se nas normas sociais; finalmente, pode recuperar-separa a vida social.

    Sob esse ponto de vista a punição deve ser julgada nãoporque corrige atos passados, mas sim pelas consequências fu-turas de sua aplicação. Portanto, não por sua justiça, mas por suautilidade. Não deve ser considerada como uma retaliação a ofen-sas passadas, mas como uma defesa preventiva contra futuroscrimes.

    Menos penas e mais justiça

    No contexto do debate contemporâneo sobre o crime, doponto de vista dessa dimensão utilitarista, foram contestadas teo-rias e legislações variadas, que erigiram a pena como tendo ca-racterísticas essencialmente educativas e com a função derecuperação do infrator. Uma importante contribuição à teoriaética da punição é aquela desenvolvida contemporaneamentepelos doutrinadores do abolicionismo penal e do garantismopenal. Essas teorias originaram-se de uma compreensível reaçãoàs penas desumanas, aviltantes e a sistemas penitenciários quese transformaram em fábricas de criminosos, tanto na pessoa docriminoso, quanto na do executor das sentenças penais.

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  • Como soluções, sustentam essas escolas a tese de quea punição nunca é remédio para um crime cometido, pois os sis-temas penais contemporâneos transformaram-se em sistemasautorreprodutores dos crimes que se propõem coibir. Essa teoriaassume diversas formas na contemporaneidade, principalmenteem dois modelos teóricos. O primeiro é encontrado nos trabalhosde Christie (1998), Hulsmam e Celis (1993) e Baker (2004), con-figurando formas de abolicionismo radical, definido por Ferrajoili(2001, p. 249), como um conjunto um tanto heterogêneo de teo-rias, doutrinas e atitudes ético-culturais unificadas pela negaçãode qualquer classe de justificação ou legitimidade do exercíciodo poder punitivo por parte do Estado. O garantismo penal, porsua vez, se insere nesse processo de reavaliação crítica do di-reito penal clássico e será desenvolvido plenamente na obra deFerrajoli sobre o garantismo penal.

    A corrente doutrinária do abolicionismo radical resulta daobservação empírica, psicológica ou sociológica dos criminosos.O crime é explicado, ou pelo menos a maioria deles, como resul-tado de alguma distorção na razão do criminoso ou fruto do seuambiente social. O uso da punição como forma de dissuasãotem-se revelado fútil e cruel e, portanto, essa escola de pensa-mento sustenta que a sociedade deve procurar coibir a incidênciade crime através do tratamento dos possíveis futuros criminosos,e não de sua punição.

    Outro paradigma teórico que procura responder a per-gunta sobre a natureza da punição é o garantismo penal. Essateoria argumenta que a questão das razões da punição e os tiposde infração que devem ser considerados como crimes passíveisde punição, ao contrário do que sustentam a teoria clássica retri-butiva e a teoria do abolicionismo penal, devem ser consideradosem função de parâmetros teóricos e empíricos específicos.

    O garantismo de Ferrajoli, o chamado “utilitarismo refor-mado”, consiste na tutela de valores ou direitos fundamentais

    37

  • cuja satisfação, ainda que contra os interesses da maioria, é ofim justificador do direito penal: a imunidade dos cidadãos contraa arbitrariedade das proibições e dos castigos, a defesa dos maisfracos mediante regras de jogo iguais para todos, a dignidade dapessoa do imputado e, por conseguinte, a garantia de sua liber-dade mediante o respeito também da sua verdade. A garantiadesses direitos fundamentais é que possibilita a aceitação portodos, inclusive a minoria dos réus e dos imputados, do direitopenal e do próprio princípio majoritário (FERRAJOLI, 2001, p.335-336). Mais adiante, esclarece Ferrajoli (idem, p. 336) que“um sistema penal somente estará justificado quando a soma dasviolências – delitos, vinganças e castigos arbitrários – que se en-contra em condições de impedir é superior ao das violênciasconstituídas pelos delitos prevenidos e pelas penas para essesestabelecidas”.

    Por uma fundamentação ética

    Esse ideal punitivo acha-se desmentido, porém, pelarealidade da sociedade brasileira contemporânea, na qual o au-mento da criminalidade encontra-se, talvez, diretamente rela-cionado com a ausência da punição do infrator. Nesse contexto,em que se perderam, na cultura cívica, os argumentos racionaisque possam legitimar o sistema punitivo, torna-se necessáriauma reflexão que procure a fundamentação ética e, portanto,filosófica da punição. Essa justificativa ética destina-se a formu-lar argumentos razoáveis para convicções que temos como in-divíduos e cidadãos, fruto de predisposições instintivas, masque nós, agentes morais, necessitamos justificar em nossaconsciência.

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  • A dificuldade primeira em se situar diante do avanço dacriminalidade encontra-se, em primeiro lugar, na repulsa encon-trada na cultura cívica a respeito da punição. O mal acaba sendoa punição, e não o crime, e isso porque o sistema punitivo, porfalta precisamente dessa fundamentação ética, tornou-se um sis-tema reprodutor do crime que deveria punir. Uma constataçãoempírica, que se revela sintomática, a propósito, reside na au-sência na literatura filosófica e jurídica brasileira de textos quetratem da fundamentação ético-filosófica da punição.

    Para suprir essa lacuna, que se reflete na legislação ena aplicação da pena, encontramo-nos em face de um desafio.Como justificar a punição, quando se reconhece na sociedadeum ambiente criminógeno? A resposta provavelmente não se en-contra nas razões psicológicas, sociológicas ou religiosas quepodem levar ao crime. Essas razões são relevantes, e uma éticada punição deverá considerá-las como o patamar empírico sobreo qual será construída a fundamentação ética. Mas essas razõesnão são suficientes, por si mesmas, para explicar e justificar umsistema penal eficiente. O desafio com que nos encontramos noBrasil contemporâneo reside em refletirmos sobre essa realidadeem função de princípios morais que servem de alicerce para aprópria sociedade.

    Por que punir? Essa pergunta, implícita no debate sobreo crime permanece atualíssima e, para que possamos, pelomenos, situá-la racionalmente no âmbito do espaço público, é ne-cessário recuperarmos para a cultura cívica nacional algumas in-dagações sobre a natureza da pessoa, da sociedade e do crime.A pessoa como agente moral – ser dotado de razão e autonomia– constrói a sociedade, o estado e estabelece leis comuns comvistas a preservar, precisamente, a sua dimensão moral maior. Acondição de sobrevivência da sociedade reside, assim, no reco-nhecimento, antes da própria explicitação do sistema de normasjurídicas, de um conjunto de valores fruto da consciência moral

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  • de cada indivíduo. Essa é a ideia que se encontra nas teorias con-tratualistas da justificação da sociedade, do estado e do direito.

    Logo, a punição com vistas, antes de tudo, a restabelecera igualdade violada pelo ato criminoso – quando um indivíduofurta, ele está, em última análise, estabelecendo uma relação dedesigualdade na sociedade – torna-se, assim, um problema moralantes de legal. Por essa razão, para que possamos ser tambémmoralmente justos no exercício do direito de punir, a punição doscrimes deve atender a duas exigências: defender a vítima e fazercom que o criminoso, através da pena, recupere a racionalidadeperdida, base de todo o relacionamento humano. O castigo con-cebido como vingança e o abolicionismo penal negam, um eoutro, esses dois aspectos inseparáveis da natureza da punição.

    Crime e direitos do criminoso

    Encontra-se no terreno da consciência moral uma ques-tão que ronda todo o debate sobre a natureza e a dimensão dapena. Essa questão pode ser formulada da seguinte forma: o fatode haver cometido um crime priva o criminoso dos seus direitoscomo pessoa? A resposta das teorias de que a pena é uma formanecessária de vingança desdobra-se na defesa da pena de mortee de que “bandido bom é bandido morto”. Acrescente-se à sedede vingança que se encontra entranhada na revolta diante docrime, as vinculações entre a pobreza e a criminalidade, temaesse que recebeu de muitos antropólogos e sociólogos um trata-mento inocente e abstrato. A impossibilidade de recuperação docriminoso dentro de um sistema penitenciário corrupto e violentolevou a outros tantos idealistas da criminologia ao paradoxo deafirmar que a pena em si mesma é um mal e que nada se pode e

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  • deve fazer diante do crime. Todo exercício de força ou uso da vio-lência contra o indivíduo é um ato ilícito e, por essa razão, a açãocontra o criminoso deve limitar-se a palavras de persuasão.

    O mérito dessas doutrinas talvez possa residir no seuidealismo, mas o seu defeito consiste em não atingir seus obje-tivos. O princípio de tomar uma atitude passiva diante do crimi-noso rejeita qualquer medida de vingança ou de intimidação,mas exclui também as medidas necessárias para prevenir oscrimes ou mesmo para educar os criminosos. No fundo, essacegueira face às dimensões patológicas do ser humano e à rea-lidade social, fazem com que se torne irrelevante o fato de quea sociedade pressupõe a organização do bem, e não a liber-dade do mal.

    O fato de o sistema de prisões ter se tornado uma má-quina de humilhação e degradação da pessoa do criminoso nãojustifica o enfraquecimento brutal da ação punitiva do Estado e,portanto, das próprias condições de recuperação do criminoso.Sustentar que a punição tornou-se ilegítima em virtude das con-dições de execução da pena seria o mesmo que sustentar quenão cabe ao Estado, por exemplo, intervir na educação públicadas crianças porque as escolas se encontram em estado de-plorável. Negar a punição significa abandonar a vítima a suaprópria sorte, de um lado, e, de outro, impedir que o infratorpossa trilhar o único caminho moralmente legítimo que lheresta: o cumprimento da pena como etapa na sua recuperaçãomoral e como cidadão.

    A fundamentação ética da punição exigirá, assim, parasua formulação, que se aceitem três condições:

    1. a punição expressa a condenação moral expressa,portanto, a repulsa moral da comunidade diante docrime praticado;2. destina-se a punição a servir como uma lição para

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  • todos os indivíduos, mostrando que tais atos são mausem si mesmos;3. pretende corrigir e recuperar o criminoso, fazendo comque cumpra uma pena e, com isso, possa emendar-se econformar-se com as leis sociais.

    A punição, portanto, somente atenderá a essas exigên-cias quando significar algo mais do que a simples pena. Significaque o criminoso, pelo seu ato, se encontra em estado de dete-rioração moral e, ainda, que o ato criminoso provoca consequên-cias socialmente maléficas. Tanto para a sociedade, quanto parao criminoso, a resposta dada através da lei constitui-se em umaobrigação moral, pois somente assim sedimentam-se os laçosde respeito ao outro e o tratamento de todos obedecendo a umcritério de igualdade, alicerces da sociedade.

    Nesse sentido, a punição reveste-se de um duploaspecto. Em primeiro lugar, ela se destina a dissuadir, e impedir,a prática de outros crimes. A punição visa, portanto, punir e,também, desencorajar o criminoso a reincidir no crime e servirde exemplo para toda a sociedade. Mas, por outro lado, a puni-ção tem a função de passar um julgamento sobre determinadocomportamento e mostrar quais valores a sociedade considerarelevantes para que sejam preservados. Assim, a re-educaçãodo criminoso torna-se um objetivo mediato da punição e não oseu objetivo principal. O criminoso, ao ser condenado, é res-ponsabilizado e o processo deve mostrar toda a sua deformi-dade moral e como isso repercute na consciência do infrator eda sociedade.

    Como escreveu Soloviev (1997, p. 318), o fato de que asformas mais violentas de vingança ou de intimidação desapare-ceram das legislações penais modernas, além de representar umavanço no processo de garantia da justiça, tornou esses sistemaspunitivos mais eficazes, e, em última análise, constitui também

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  • um progresso moral. Esse progresso, entretanto, somente poderáser assegurado na medida em que não se considerar a puniçãodo criminoso como uma violência moral. Longe de ser imoral, apunição será obrigatória em consciência e deriva dos própriosprincípios morais alicerces da sociedade. Impedir um indivíduo depraticar um crime ou puni-lo pela sua prática significa, do pontode vista moral, que procuramos preservar no criminoso a sua pró-pria dignidade humana, gravemente ameaçada pela intenção eviolada pelo ato criminoso.

    Uma reflexão pública sobre a questão da punição e dapena, que se situe para além das importantes dimensões socio-lógicas, econômicas, antropológicas e jurídicas dessa questão,tem ocorrido em diferentes países, como na Grã-Bretanha, naFrança, na Itália e na Espanha. A questão da segurança deve,assim, ser precedida por um debate público, que tenha por obje-tivo estabelecer os fundamentos do sistema de segurança no es-tado democrático de direito. No Brasil, essa reflexão sobre osistema penal somente receberá a prioridade espiritual, culturale social que lhe é devida nas sociedades democráticas quandoa inteligência nacional estiver esclarecida sobre a necessáriafundamentação filosófica da punição.

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  • 45

    Jayme Walmer de Freitas*

    A DOAÇÃO VOLUNTÁRIA DE SANGUECOMO PENA RESTRITIVA DE DIREITOS

    VOLUNTARY BLOOD DONATION AS THE

    RESTRICTION OF RIGHTS PENALTY

    LA DONACIóN VOLUNTARIA DE SANGRE COMO

    PENA RESCRICTIVA DE DERECHOS

    Resumo:

    O presente artigo tem por fim oferecer diretrizes seguras de

    enquadramento da doação de sangue como pena restritiva de

    direitos. Desde a vigência da Constituição Federal, em 1988,

    a doação de sangue tornou-se bandeira para muitos, como mo-

    dalidade de prestação de serviços à comunidade ou a entida-

    des públicas. Porém, o STF decidiu em sentido contrário e a

    doutrina seguiu a interpretação dada. Este trabalho enquadra

    a doação de sangue, a exemplo da doação de cestas básicas,

    não no rol das penas restritivas típicas, mas sim no das penas

    alternativas inominadas previstas no art. 45, §2º, do diploma

    penal. Parte-se da premissa que não pode ser imposta por sen-

    tença condenatória, mas fruto de acordo, de consenso, nas in-

    frações de menor e médio potencial ofensivo. Para sua

    * Mestre e doutorando em Processo Penal pela PUC/SP. Professor e Coor-denador Regional de Pós-Graduação da Escola Paulista da Magistratura.Autor das obras Prisão Temporária (2 ed.), OAB – 2ª Fase – Área Penal (3ed), Penal Especial, na Coleção SOS Direito, todas pela Editora Saraiva.Coordenador da Coleção OAB – 2ª Fase, pela mesma Editora. Coautor dolivro Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, sob a coordenação deJorge Miranda e Marco Antonio Marques da Silva, pela Editora QuartierLatin. Palestrante.

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    adequação ao modelo sugerido, exige-se ofereça duas ou mais

    propostas – uma delas contendo a doação de sangue –, para

    que o autor do fato ou réu, acompanhado de seu advogado,

    exerça sua opção, respeitando-se sua individualidade.

    Abstract:

    This article aims at providing guidelines for secure framework of

    blood donation as a punishment involving the restriction of rights

    penalty. As of the Federal Constitution in 1988, donating blood

    has become a logo for many, as a way of rendering services to

    the community or to public entities. However, the Supreme Court

    has ruled to the contrary and the doctrine has adhered to such

    interpretation. This paper incorporates blood donation, as in the

    donation of food baskets, not to the list of typical restrictive pe-

    nalties, but to the unnamed alternative penalties provided for in

    art. 45, § 2, of the penal law. It starts from the premise that it can-

    not be imposed by a final verdict of guilty, but it is the result of an

    agreement, of a consensus, in minor and middle potential offense

    infractions. For its suitability to the suggested model, it is required

    two or more proposals - one containing blood donation - so the

    perpetrator or defendant, accompanied by his/her lawyer, exerci-

    ses his/her option, respecting his/her individuality.

    Resumen:

    Este artículo tiene por objeto proporcionar directrices para un

    marco de seguridad de la donación de sangre como pena restric-

    tiva de derechos. Desde la vigencia de la Constitución Federal en

    1988, la donación de sangre se ha convertido en una bandera para

    muchos, como un medio para la prestación de servicios a la co-

    munidad o a las entidades públicas. Sin embargo, el Supremo Tri-

    bunal Fedral decidió en sentido contrario y la doctrina siguió la

    interpretación dada. Este trabajo se ajusta a la donación de sangre,

    a ejemplo de la donación de cestas de alimentos, no en la lista de

  • las penas restrictivas típicas, pero en la de las penas alternativas

    no identificadas previstas en el art. 45, § 2, de la ley penal. Co-

    mienza con la premisa de que no puede ser impuesta por una sen-

    tencia condenatoria, sino como el resultado de un acuerdo, de un

    consenso, en las infracciones de menor y medio potencial ofen-

    sivo. Para su adecuación al modelo propuesto es necesario que

    se ofrezcan dos o más propuestas - una de ellas sobre la donación

    de sangre-, para que el autor de hecho o el acusado, acompañado

    por su abogado, ejerza su opción, respetándose su individualidad.

    Palavras-chaves:

    Doação, sangue, pena restritiva de direitos.

    Keywords:

    Donation, blood, restriction of rights.

    Palabras clave:

    Donación, sangre, pena restrictiva de derechos.

    As penas restritivas de direitos

    No Brasil, as penas restritivas de direitos foram disciplinadaspela primeira vez na reforma de 1984, limitando-se às infraçõescuja pena não alcançasse o patamar de um ano e às culposas.As penas restritivas previstas naquele momento histórico eram deprestação de serviços à comunidade ou às entidades públicas;proibição de exercício de cargo, função ou atividade pública;proibição de exercício de profissão, atividade ou ofício; suspensãode autorização ou habilitação para dirigir veículo; limitação de fimde semana; e multa.

    47

  • O perfil de admissão de penas não privativas de liber-dade foi acentuado logo após, com a Constituição Federal, em1988. Em seu art. 5º, XLVI, a Carta Magna garantiu fundamen-talmente que a individualização da pena seria disciplinada porlei ordinária e estabeleceu como penas, entre outras, a priva-ção ou restrição da liberdade; a perda de bens; a multa; a pres-tação social alternativa; e a suspensão ou interdição dedireitos.

    As penas restritivas de direitos, uma vez admitidas pelaLei Maior, receberam, dez anos mais tarde, relativa inovaçãoatravés da Lei 9.714/98, que alterou o Código Penal. O art. 43do Código Penal trata das penas restritivas de direitos e foi rees-crito, passando a prever, além daquelas mencionadas acima, aspenas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, proibi-ção de frequentar determinados lugares e prestação alternativainominada.

    Ampliou o âmbito de incidência das penas restritivas.Essas são autônomas e substituem as penas privativas de liber-dade de crime cuja pena máxima não seja superior a 4 (quatro)anos e desde que este não tenha sido praticado com violênciaou grave ameaça ou se for culposo. São autônomas, porque nãosão acessórias, independem da imposição de sanção detentiva(reclusão, detenção ou prisão simples), como leciona Damásiode Jesus (2006, p. 178); e substitutivas, porque, individualizadaa pena privativa de liberdade, o magistrado poderá substituí-lapela restritiva. Pode-se dizer que o legislador, sabiamente, optoupelo não encarceramento do criminoso que pratica infrações deleve e médio potencial ofensivo consciente da falência do sistemapenitenciário.

    No consistente artigo “Em busca da legalidade das al-ternativas penais”, apresentado no I Congresso Brasileiro de Exe-cução de Penas e Medidas Alternativas, realizado em Curitiba noano de 2005, a Promotora de Justiça paranaense Mônica Louise

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  • de Azevedo, citando Claus Roxin e diversos outros penalistas derenome, aponta caminhos para a superação da pena corporal forada clausura do sistema penitenciário, com ênfase às medidas al-ternativas em infrações leves e de médio potencial ofensivo. Pon-derou, aliás, que o festejado penalista alemão,

    observando os avanços e retrocessos dos últimos séculos dahistória das idéias penais, arrisca um prognóstico para o direitopenal do século XXI, que acredita continuará existindo comofator de controle social secularizado: a gradativa substituiçãoda pena privativa de liberdade por outras penas ou conseqüên-cias jurídicas ao ilícito; a supressão definitiva das penas corpo-rais, por se constituírem em atentados contra a dignidadehumana; o retrocesso da utilização da pena de prisão e o sur-gimento de novas formas de controle eletrônico e de medidasterapêuticas sociais, além da maior utilização do trabalho co-munitário e da reparação civil do dano. Justifica esta previsãopela inexistência de vagas e recursos financeiros para executara pena de prisão de forma humanitária e pela impossibilidadede punir a maioria dos delitos com ela.

    A falência do sistema prisional e a adoção de medidasinovadoras que atinjam o mesmo fim proposto pela pena, semencarceramento, fizeram surgir, três anos antes da modifica-ção da codificação penal, a Lei 9.099/95, que abarca infraçõesde menor potencial ofensivo – as contravenções penais e,atualmente, os crimes a que a lei comina pena máxima nãosuperior a 2 (dois) anos –, e detém como objetivos maiores areparação do dano à vítima e a aplicação de pena não priva-tiva de liberdade (art. 62, in fine). Inspirada na mitigação doprincípio da legalidade e no consensualismo, o diploma per-mite a barganha entre o acusador e o autor do fato e seu ad-vogado. O art. 76 preceitua que o órgão ministerial, aooferecer sua proposta de acordo, poderá oferecer transaçãopenal consistente na aplicação imediata de pena restritiva dedireitos ou multas. Há mais. No art. 89, ao oferecer a denúncia– nos crimes em que a pena máxima cominada for igual ou in-ferior a 1 (um) ano –, o órgão ministerial, nos crimes previstos

    49

  • em qualquer lei, poderá propor a suspensão condicional doprocesso, mediante condições determinadas.

    Tanto na transação penal como no sursis processual, épraxe dos integrantes do Ministério Público, e até dos querelan-tes – nas ações penais de natureza privada – ofertarem propos-tas que contenham penas não catalogadas, como, por exemplo,a doação de cestas básicas, que se tornou “coqueluche” emnossa nação por seu caráter altruísta, pedagógico e socializante.Registre-se que, não obstante o teor das propostas, o agente dodelito e seu advogado podem repeli-las ou questioná-las visandoseu abrandamento. É a busca do consenso.

    No mesmo diapasão, insere-se o foco principal dopresente trabalho: a doação de sangue. Esta, diferentemente dequalquer outra pena restritiva de direitos, pressupõe contato pes-soal entre o magistrado ou conciliador com o agente para explana-ção das nuances específicas desse ato de benevolência. Em outrostermos, como se exporá no curso deste trabalho, a pena consis-tente na doação de sangue somente pode derivar de transaçãopenal e de suspensão condicional de processo, não de condena-ção, por sentença. É pressuposto inarredável o contato humanoentre juiz, Ministério Público, agente e seu patrono. Nas palavrasde Sérgio Salomão Shecaira (1993, p. 90), “O processo de aplica-ção da pena deve ser dialógico”.

    Explica-se: somente após o autor da infração e seu ad-vogado optarem, dentre as propostas ministeriais, por aquelaconcernente à doação de sangue é que lhe será apresentadoum questionário inicial com as exigências mínimas para o ato.Ultrapassada essa etapa, será lavrado o acordo a ser homolo-gado judicialmente. Isso porque nem todos estão aptos a doarsangue, fator que, por si só, inviabiliza um decisório com seme-lhante determinação.

    50

  • A prestação de serviços à comunidade

    Dentre as penas restritivas, estou convencido de que aprestação de serviços à comunidade ou às entidades públicas é aque mais aproxima o autor do fato, nas infrações de menor poten-cial ofensivo, ou o réu, nas de médio potencial, de seu semelhantee o torna um cidadão útil a si – melhoria na autoestima –, à família– da qual não fica segregado – e à sociedade – por receber algoconcreto a seu favor e aprovar a não segregação do semelhante.Essas penas têm a natureza de respeitar o homem em seu bemmaior – a dignidade –, porquanto de sua aptidão e habilidade pes-soal é que será determinado o que realizará em favor da comuni-dade. O autor da infração cumprirá a pena trabalhando para asociedade. Objetivamente, favorece a comunidade em que vive.

    Observa-se, em Guilherme de Souza Nucci (2003), pen-samento similar. Dispõe o doutrinador que “Trata-se, em nossoentender, da melhor sanção penal substitutiva da pena privativade liberdade, pois obriga o autor de crime a reparar o dano cau-sado através de seu trabalho, reeducando-se, enquanto cumprepena” (idem, p. 235).

    Por seu caráter de cidadania e inserção ou reinserçãosocial, pode ser considerada a mais adequada para a maioriados casos.

    Ensinava Shecaira (1993, p. 90-91), no início da décadade 90, que

    No direito europeu e norte-americano – e nas legislações maisrecentes e modernas – é a prestação de serviços à comuni-dade a principal alternativa penal à provação de liberdade decurta duração [...]. Em um país que apresenta um quadro comgrande número de pessoas que cometem pequenos delitos(especialmente crimes contra o patrimônio) e, de outro lado,que tem uma situação crônica de presídios superlotados, aprestação de serviços à comunidade é medida eficaz a ser in-centivada como alternativa à pena prisional de curta duração.

    51

  • E quais são os momentos processuais rotineiros para suaimposição? São três: a) transação penal em crimes de ação públicaou privada; b) suspensão condicional do processo, no procedimentosumaríssimo da Lei 9.099/95; e c) suspensão condicional do pro-cesso, no rito ordinário do Código de Processo Penal ou especialde Lei Extravagante. Qualifiquei-os como rotineiros uma vez que hásituações excepcionais, como na emendatio libelli e na mutatio libelli,em que, no curso do processo, com a instrução praticamente finali-zada, descobre-se o cabimento dos institutos despenalizadores.

    A prestação de serviços à comunidade, em grande partedo Estado de São Paulo, é desenvolvida por órgão afeto à Secre-taria de Administração Penitenciária, denominado de Central dePenas e Medidas Alternativas, e que o torna um braço forte e im-portante para as Varas de Execuções Penais.

    Em sua estratégia de ação, a Central de Penas realiza con-vênios com diversas entidades públicas e privadas, de modo a pro-piciar um leque de alternativas para o agente. Após entrevista prévia,o atendente, ciente do perfil do entrevistado, indica a instituição maisapropriada para o trabalho e, estando o agente concorde, será en-caminhado para cumprir sua pena. De forma efetiva e palpável, ocondenado retribui, para a coletividade, o mal que praticou.

    Alberto Silva Franco (2007, p. 285) esclarece que

    é ele obrigado a prestar pessoalmente, durante certo númerode horas semanais que se prolongam por tempo predetermi-nado, tarefas gratuitas junto a determinadas entidades, públicasou particulares. Ao fazê-lo, é evidente que não dispõe mais dotempo livre correspondente a essas horas semanais já que, sobacompanhamento, vê-se na contingência, nesse espaço tem-poral, de realizar, sem remuneração, algum tipo de trabalho.

    O art. 149, §1º, da Lei de Execuções Penais, prescreve que

    “O trabalho terá a duração de oito horas semanais e será rea-lizado aos sábados, domingos e feriados, ou em dias úteis,de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho, noshorários estabelecidos pelo Juiz.

    52

  • Emana claro do esposado que é da essência da presta-ção de serviços a realização de um trabalho personalíssimo, exer-cido pelo agente em dia e horário que não afetem o seu labordiário. Daí poder ser realizado em finais de semanas e feriadosou em horário compatível com aquele.

    Por essa razão que, quando da primeira ideia de implan-tação da doação de sangue no Brasil, esta foi coibida pelo Su-premo Tribunal Federal. Na ocasião, interpretava-se comomodalidade de prestação de serviços à comunidade, o que, porinterpretação ampliativa, não deixaria de ser. No entanto, em votoda lavra do erudito ministro Celso de Mello, a interpretação foi res-tritiva e o sonho foi afastado até o início deste século. Naquelaoportunidade, o STF foi instado a se manifestar acerca de sen-tença em que magistrado fluminense substituíra a pena privativade liberdade por pena restritiva de direitos consistente em doaçãode sangue. Pelo voto, a mesma foi cassada e determinada queoutra fosse prolatada (HC 68.309/DF). No voto, o Ministro Celsode Mello destacou que

    A exigência judicial de doação de sangue não se ajusta aos parâ-metros conceituais, fixados pelo ordenamento positivo, pertinentesà própria inteligência da expressão legal ‘prestação de serviços àcomunidade’, cujo sentido, claro e inequívoco, veicula a ideia derealização, pelo próprio condenado, de encargos de caráter ex-clusivamente laboral. Tratando-se de exigência conflitante com omodelo jurídico-legal peculiar ao sistema de penas alternativas ousubstitutivas, não há como prestigiá-la e nem mantê-la.

    Como ciência que é o Direito evolui, com o passar dosanos surge a doação de cestas básicas como a salvação dosmais humildes. Os integrantes do tripé jurídico encararam a novi-dade e foi encontrada, no próprio ordenamento jurídico – o CódigoPenal –, a qualificação técnico-jurídica para enquadramento doinstituto. Por idênticos fundamentos, a doação de sangue devereceber o mesmo enquadramento e se tornar uma realidade pau-lista e nacional igualmente simpática aos olhos da sociedade.

    53

  • A doação de cestas básicas. Natureza jurídica: prestaçãoalternativa inominada (CP, art. 45, §2º)

    A mesma afinidade que nutria pela pena restritiva dedireitos, consistente na prestação de serviços à comunidade oua entidades públicas, passou a me seduzir na pena alternativainominada, por permitir a doação de cestas básicas para entida-des que a revertem em prol de pessoas carentes. Idêntica sim-patia me veio porque, agora – nunca é tarde para a consecuçãode objetivos sociais relevantes –, vislumbrei que a doação desangue é tecnicamente idêntica.

    Existe um adensamento doutrinário no sentido de que a doa-ção de cestas básicas é uma prestação inominada. Não obstante,essa mesma doutrina pondera que a pena em questão – prestaçãoalternativa inominada –, tal qual posta no diploma penal, ofende prin-cípios basilares de Direito Penal e seria inconstitucional.

    No escólio de Renato Marcão (2010, p. 267), respaldadopor Cezar Roberto Bitencourt e Damásio de Jesus,

    A pena de prestação de outra natureza ou inominada padece deflagrante inconstitucionalidade, já que equivale a uma pena inde-terminada, contrariando o princípio da reserva legal albergado noart. 1º do Código Penal, de prestígio constitucional, conforme de-corre do disposto no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal.

    É que o § 2º do art. 45 do diploma penal dispõe que “Nocaso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, aprestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza”.

    Acrescenta Renato Marcão (2010, p. 267) que

    Conforme asseverou Cezar Roberto Bitencourt, “em termos desanções criminais são inadmissíveis, pelo princípio da legali-dade, expressões vagas, equívocas ou ambíguas. E a nova re-dação desse dispositivo, segundo Damásio de Jesus, cominasanção de conteúdo vago, impreciso e incerto”.

    54

  • Cezar Roberto Bitencourt (2004), mesmo após criticar apena inominada por ser indeterminada e, por conseguinte, viola-dora do princípio da reserva legal, arremata afirmando que essapena seria, na realidade, “uma espécie substituta da substitutada pena de prisão!”. E, como a substituição da prestação pecu-niária se dá por uma prestação de outra natureza e dependenteda aceitação do beneficiário, certamente é dotada de caráterconsensual (grifos nossos). E quem seria o beneficiário da penaconvertida? Defende, com razão, que é “o beneficiário do resul-tado da aplicação dessa pena pecuniária, que, como afirmamos,tem caráter indenizatório (idem, p. 518-519).

    No mesmo sentido, a lição de René Ariel Dotti (1999, p.100): "O Juiz não pode aplicar pena que não esteja expressa-mente prevista na lei. Trata-se de reafirmar o princípio da ante-rioridade da lei quanto à definição do crime e o estabelecimentoda sanção".

    Perfilha a mesma linha de entendimento, Luiz FlávioGomes (1999, p. 64). Luiz Flávio lembra que Beccaria, há maisde duzentos anos, já postulava não só a existência de lei para acriação de delitos e penas, senão também a vinculação do juizao texto legal e, sobretudo, a legitimidade exclusiva do legisladorpara criar tais leis.

    A despeito das respeitáveis críticas doutrinárias, o textolegal propiciou a abertura de um espectro de penas alternativasao magistrado com o fito de permitir, sempre, a transação, desdeque se evite o encarceramento e se respeite os lindes constitu-cionais para tal fim. Caso o autor da infração não esteja em con-dições de arcar com determinada prestação alternativanominada, um rol de opções lhe pode ser oferecido para atenderà exigência estatal de cumprimento da pena.

    Se o intérprete atentar para a redação do § 2º poderá in-ferir que, na doação de cestas básicas, o dispositivo é atendidoem toda a sua amplitude. Conquanto se critique a redação

    55

  • aberta, sujeita a toda espécie de interpretação subjetiva judicial,a doação se amolda perfeitamente ao disposto.

    Vejamos: para distribuir cestas básicas, o magistrado cri-minal cadastra uma série de instituições em sua Vara, aptas ecom estrutura para o recebimento e distribuição das mercadoriasaos mais carentes da comunidade. A instituição deve ser reco-nhecidamente de utilidade pública e prestigiada nos meios sociaispelo seu trabalho em favor dos mais necessitados. Com este pré-requisito fundamental, preenche-se o tópico do dispositivo ati-nente a se houver aceitação do beneficiário. Como o art. 45, §1º, exige que seja “entidade pública ou privada com destinaçãosocial”, o cadastramento é o bastante.

    A proposta ministerial de doação de cestas básicas a umainstituição de caridade aceita pelo agente constitui-se, então, naformalização de uma pena restritiva de direitos inominada. Nesseacordo homologado judicialmente, o autor da infração assume aobrigação de entregar, dentro de certo lapso temporal, determi-nada quantidade de cestas básicas.

    A doação de cestas básicas é, portanto, modalidade deprestação alternativa inominada não pecuniária homologadajudicialmente.

    Damásio Evangelista de Jesus (2006), ao discorrer sobreo indigitado polêmico parágrafo e discutir as críticas sobre sua re-dação, defende que prestação de qualquer natureza como estána Lei significa, de fato, pecuniária ou não (grifos nossos). Con-tradiz a maioria da doutrina ao asseverar que o dispositivo se en-contra em consonância com as Regras de Tóquio, uma vez queestas recomendam ao juiz a aplicação, se necessário e conve-niente, de qualquer medida que não envolva detenção pessoal.E acrescenta:

    Medida liberal corresponde, entretanto, ao ideal de justiça, pelaqual ao juiz, nas infrações de menor gravidade lesiva cometidaspor acusados não perigosos, atribuir-se-ia o poder de aplicarqualquer pena, respeitados os princípios de segurança social

    56

  • e da dignidade, desde que adequada ao fato e às condiçõespessoais do delinquente. (idem, p. 188-189).

    Jesus, em meu sentir, está coberto de razão ao defenderque a prestação pode ter natureza pecuniária ou não, porquantoa lei, ao prever a substituição da prestação pecuniária por pres-tação de outra natureza, permitiu aos envolvidos no negócio ju-rídico, a ser travado entre partes e juiz, escolher uma pena quecorresponda aos ideais preconizados pela Carta Magna, desdeque não privativa da liberdade e ajustada à realidade do agente.

    Nessa esteira, Celso Delmanto et alli (2007, p. 165)orienta que, excluída a prestação pecuniária, a prestação de outranatureza “poderá consistir, v.g., na doação de cestas básicas ouem serviços de mão-de-obra”.

    Sem destoar, Mirabete declina (1999, p. 295) que

    se houver aceitação do beneficiário, ou seja, do ofendido ou daentidade pública ou privada com destinação social, a prestaçãopecuniária poderá constituir-se, por decisão, do juiz, em pres-tação de outra natureza, como o fornecimento de cestas bási-cas, por exemplo.

    Também Fernando Capez (2001, p. 358) pugna, ao cuidarda prestação inominada, que

    a prestação pecuniária poderá consistir em prestação de outranatureza, como, por exemplo, entrega de cestas básicas a ca-rentes, em entidades públicas ou privadas. A interpretação,aqui, deve ser a mais ampla possível, sendo, no entanto, im-prescindível o consenso do beneficiário quando o crime tivercomo vítima pessoa determinada.

    O Pleno do STF, em voto da lavra do Min. Joaquim Bar-bosa, nos autos do Inquérito 2.721/DF, em 08.10.2009, deu porcorreta a decisão judicial que homologou a doação de cestasbásicas como pen