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A revista DEP Diplomacia, Estratgia e Poltica um peridico, editado em portugus, espanhol e ingls, sobre temas sul-americanos, publicado no mbito do Projeto Ral Prebisch, com o apoio do Ministrio das Relaes Exteriores (MRE/ Funag Fundao Alexandre de Gusmo e seu Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais Ipri), da Construtora Norberto Odebrecht S. A., da Andrade Gutierrez S. A. e da Embraer Empresa Brasileira de Aeronutica S. A.

Editor Carlos Henrique Cardim Endereo para correspondncia: Revista DEP Caixa Postal 2431 Braslia, DF Brasil CEP 70842-970 [email protected] www.funag.gov.br/dep

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)DEP: Diplomacia, Estratgia e Poltica/Projeto Ral Prebisch no. 10 (outubro/dezembro 2009) . Braslia : Projeto Ral Prebisch, 2009. Editada em portugus, espanhol e ingls. ISSN 1808-0480 1. Amrica do Sul. 2. Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Colmbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela. I. Projeto Ral Prebisch. CDU 327(05)

DEPDIPLOMACIA ESTRATGIA POLTICA Nmero 10 Outubro / Dezembro 2009

Sumrio 5 27 52 75 88 117A integrao sul-americana Celso Amorim Argentina: economia e poltica internacional. Os processos histricos Mario Rapoport A transformao do Estado boliviano Luis Tapia A construo do modelo industrialista brasileiro Amado Luiz Cervo Economia e sociedade no Chile. Um retrospecto histrico Luciano Tomassini Progressos e desafios na Colmbia de hoje Alfredo Rangel

129 149 162 181 205 220 272 289

Formao socioeconmica do Equador Marco P. Naranjo Chiriboga Guiana: histria e desenvolvimento econmico Tota C. Mangar Paraguai: os desafios de uma economia mediterrnea Juan Carlos Herken Krauer Novos olhares sobre a formao econmica peruana Manuel Burga Vista geral sobre a economia do Suriname nos sculos XIX e XX Jerome Egger Uruguai, regio e insero internacional Gerardo Caetano Desafios da Venezuela no sculo XXI Jorge Prez Mancebo Juventude na fazenda Sylvia M. Gooswit

A integrao sul-americanaCelso Amorim**

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ueria comear com algumas reflexes e alguns fatos sobre a integrao da Amrica do Sul, no quadro mais amplo da integrao da Amrica Latina e do Caribe. Evidentemente, no minha pretenso fazer um histrico de todos os esforos de integrao que houve desde as utopias bolivarianas e de outros libertadores no incio da nossa vida independente, at os primeiros ensaios concretos com a Alalc, nos anos 60, com a Aladi mais tarde. Eu vou me deter na parte mais recente, em que eu tive experincia pessoal e sobre a qual eu posso acrescentar alguma coisa que talvez vocs no encontrem nos livros: uma viso especfica de quem teve a sorte, o acaso ou a coincidncia de participar de vrios momentos dessa integrao nos anos mais recentes. Eu me refiro propriamente ao processo de criao do Mercosul at os nossos dias. No vou me estender excessivamente sobre cada um deles, mas, gostaria de fazer uma breve referncia a cada processo em que ns estivemos envolvidos. Primeiro, o Mercosul. Como comeou o Mercosul? Vocs j tero* Conferncia de abertura do VI Curso para Diplomatas Sul-Americanos, organizado pela Fundao Alexandre de Gusmo (Funag) e seu Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais (Ipri). Rio de Janeiro, 9 de abril de 2009. ** Ministro de Estado das Relaes Exteriores do Brasil. [email protected] Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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ouvido isso de outras pessoas. Vocs encontraram o Embaixador Samuel Pinheiro Guimares, que foi muito ativo nesse processo, antes um pouco at do incio do Mercosul propriamente dito, no processo de aproximao Brasil e Argentina. Isso crucial. Os argentinos e brasileiros sabem disso muito bem, creio que os outros membros do Mercosul tambm o sabem, mas, talvez nos outros pases isso no esteja to claro. Na realidade, o grande impulso aproximao Brasil-Argentina foi de natureza poltica. Quando os dois pases saam de governos militares, governos autoritrios, eles perceberam que era preciso criar uma comunidade de interesses e que essa comunidade de interesses no poderia se esgotar nos contatos polticos. Era importante que essa comunidade de interesses tambm se lastreasse na parte econmica. Foi por isso que, no processo de aproximao Brasil-Argentina, se deu tanta nfase ao aspecto comercial desde o primeiro momento. Estou me referindo ao ano de 1985, quando o Presidente Alfonsn recentemente falecido, o que todos ns lamentamos e sentimos profundamente porque foi um grande democrata da regio e o Presidente Sarney que no por coincidncia nos representou nas homenagens aps a morte do Presidente Alfonsn iniciaram um processo de dilogo que teve vrias vertentes. No foi apenas a vertente econmica. Teve, por exemplo, uma vertente muito importante na rea da energia nuclear. At ento se dizia que Brasil e Argentina competiam, que queriam ter a bomba atmica e que a bomba atmica brasileira serviria para jogar em Buenos Aires e a da Argentina serviria para jogar no Rio de Janeiro, ou em So Paulo, ou em Braslia. De qualquer maneira, havia essa ideia de uma grande rivalidade, de uma grande competio. Esse esforo tambm teve ramificaes em outras reas, como a rea de cincia e tecnologia e a rea cultural. Houve vrias iniciativas importantes. Alis, um pouco antes da inaugurao da Ponte Tancredo Neves, pelo Presidente Alfonsn e Sarney, se realizou, em Foz do Iguau e Iguau, na Argentina, um Encontro sobre Biotecnologia. Na poca, eu trabalhava na rea de cincia e tecnologia e tambm estive envolvido com esse processo de alguma forma. Houve, enfim, um grande esforo de aproximao econmica que foi muito importante, sobretudo, pelo que ele gerou de dinmica poltica. Se estudarmos as estatsticas entre 1985 e 1990, verificamos que houve um grande esforo, uma grande movimentao entre os dois pases, mas, os resultados propriamente comerciais foram pequenos. Eu deveria dizer tambm que, mais6Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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para o fim desse processo, em 1988 e 1989, o Uruguai comeou a participar, de alguma maneira, porque havia encontros entre Brasil e Argentina, e o Presidente Sanguinetti era convidado. A partir de 1990, curiosamente, e at paradoxalmente, quando Brasil e Argentina tinham governos mais voltados para uma poltica neoliberal, em perodo de grande abertura de mercados do Brasil para o mundo, e tambm da Argentina para o mundo, nesse perodo houve algo muito interessante no plano da integrao regional. importante notar isso porque vocs vero tambm o papel das burocracias de Estado. Muitas vezes, ns pensamos que as coisas ocorrem apenas num plano, ou s no plano burocrtico, ou s no plano poltico. claro que o impulso poltico indispensvel porque, sem o impulso poltico, nada segue, mas, as burocracias de Estado muitas vezes tm o seu papel tambm. Nesse caso da integrao Brasil-Argentina e, logo em seguida, do conjunto do Mercosul, com o Uruguai e Paraguai, nesse momento crtico em que os pases estavam fazendo uma abertura comercial muito grande para o mundo, foram principalmente, as burocracias de Estado que perceberam que, apesar dos riscos que poderia haver naquela abertura, havia tambm uma oportunidade para a integrao, desde que ns soubssemos aproveitar aquele momento, que j era caracterizado por certa abertura em relao a terceiros pases, para fazermos uma abertura mais rpida entre ns mesmos. Logo no incio dos anos 90, esse processo vai se espelhar no Acordo de Complementao Econmica n. 14, que um Acordo Comercial entre o Brasil e Argentina, que prev, de maneira mais clara, com tabelas e cronogramas, a eliminao das tarifas entre Brasil e Argentina, num prazo bastante ambicioso de cinco anos. Ns vimos depois que muitas coisas no puderam ocorrer como previsto. Mas, esse voluntarismo, talvez, caracterstico dos polticos da poca, ao mesmo tempo, com uma viso das burocracias de Estado de que era o momento para levar adiante o objetivo de maior aproximao entre Brasil e Argentina, a conjugao desses fatores permitiu que realmente se lanasse um processo dinmico e irreversvel. Logo a ele se juntou o Uruguai e, pouco depois, o Paraguai. Vou falar um pouco da circunstncia em que isso se deu. J havia uma coordenao poltica com o Uruguai. O Paraguai estava ainda numa transio para um governo democrtico e, consolidado esse governo democrtico, ele se aproximou de ns tambm e foi incorporado ao processo. Mas, h umDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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fator muito interessante que vai levar a que essa negociao, inicialmente, entre Brasil e Argentina, e logo em seguida ampliada para Paraguai e Uruguai, resulte em algo mais ambicioso do que um acordo de livre comrcio. O ACE 14 essencialmente um acordo de livre comrcio. Quando o Paraguai e o Uruguai se juntam e isso coincide com o lanamento da Iniciativa para as Amricas, pelo Presidente Bush, o pai h a percepo de que preciso haver uma posio conjunta, no s de Brasil e Argentina, mas tambm, de Uruguai e Paraguai, j nessa poca envolvidos na negociao para liberar o comrcio entre os quatro. Por que esse fato importante? Porque foi a necessidade dessa negociao conjunta com os Estados Unidos que nos levou a evoluir da ideia de simplesmente liberalizar o comrcio, para a ideia de uma poltica comercial comum. Por isso, levou ideia tambm da tarifa externa comum, que uma caracterstica do Mercosul. Com todas as imperfeies que tem a tarifa externa comum, ela define uma unio aduaneira, define um nvel de integrao, que muito maior do que simplesmente uma rea de livre comrcio. Esse fator foi muito importante. Eu poderia relatar vrios episdios, que so muito longos, mas, tem um que me parece importante porque vai ter reflexos em processos subsequentes. Num primeiro momento, at porque o Paraguai era um pas que vinha recentemente de um governo no democrtico, a primeira ideia que surgiu para a coordenao de posies em relao aos Estados Unidos, envolvia quatro pases: Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. Na poca, eu era Diretor de Assuntos Econmicos e acompanhei esse tema de perto. A primeira reunio que ns tivemos no Palcio do Itamaraty de Braslia na sala que hoje ns chamamos Sala Rui Barbosa, em homenagem a um poltico diplomata, multilateralista, que o Brasil teve verificou-se que no era possvel ter uma posio comum porque o Chile tinha j uma poltica comercial estabelecida em bases diferentes. O Chile j havia adotado uma poltica em que as tarifas eram sistematicamente mais baixas do que as dos demais pases que viriam a constituir o Mercosul. Embora a reunio tenha sido muito til para troca de impresses e de conversas, ficou claro que no era possvel, naquele momento, uma coordenao plena de posies. Esse momento coincidiu aproximadamente com as gestes do Paraguai para se integrar ao nosso processo de negociao. Ento, houve uma coincidncia no tempo, que a incorporao do Uruguai e, depois, do Paraguai, a esse processo Brasil-Argentina, de liberalizao comercial entre os pases, e a necessidade de se ter uma frente comum para negociar com os Estados8Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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Unidos. Esse um processo que vai redundar num acordo conhecido como Acordo 4+1, ou Acordo Jardim de Rosas, porque foi assinado l no Jardim de Rosas da Casa Branca, entre o Mercosul e os Estados Unidos. Uma peculiaridade das negociaes que levaram a esse acordo que foi a primeira vez que houve o exerccio de uma coordenao efetiva, o que causou muita surpresa aos Estados Unidos. Quando falamos em coordenao no uma figura de retrica, foi algo real. Isso causou muita surpresa aos Estados Unidos. Primeiro, eles relutaram muito em discutir com os quatro pases. Eles achavam que deveriam discutir com cada pas separadamente, ou no conjunto das Amricas, digamos assim. Finalmente, aceitaram. Mas, mesmo depois que aceitaram, eles achavam que era uma reunio de cinco pases e ns tivemos que explicar para eles que no era uma reunio de cinco pases, mas sim, de 4+1. Inclusive, eu vou contar um pequeno episdio diplomtico porque, vocs que estudaram histria diplomtica sabem como, s vezes, importante o formato de uma mesa e isso apareceu nas conversaes do fim da Guerra do Vietn, ou nas conversaes da ALCA. Enfim, isso acabou se refletindo no formato da mesa porque, em vez de se ter uma mesa de cinco, pentagonal, como os Estados Unidos haviam pensado que deveria ser feito, foi uma mesa de dois lados: de um lado o Mercosul e do outro lado os Estados Unidos. Isso foi possvel graas a um exerccio de coordenao realmente intenso. Como havia vrios temas a serem tratados (servios, propriedade intelectual, bens, antidumping, entre outros), ns organizamos a reunio de tal maneira que cada pas fosse responsvel pela exposio de um tema. Ento, ficou claramente estabelecido que ali no estvamos negociando individualmente com os Estados Unidos. No passado, todo o nosso processo de integrao aqui na regio era hub-andspoke. O que hub-and-spoke? o centro e o aro de uma roda. Ou seja, voc s se integra com o outro passando pela grande potncia. Em suma, se tiver que haver uma integrao entre o Uruguai e a Guiana, teria que passar pelos Estados Unidos, entre o Brasil e a Argentina, tambm teria que passar pelos Estados Unidos. Ali, no era assim porque, claramente, ns estvamos atuando como um nico bloco. Esse um pequeno episdio que tem o seu interesse pela histria das negociaes. Mas, o mais importante que o fato de termos que estabelecer essa frente comum nos imps a tarefa de, muito rapidamente, chegarmos definio quanto a termos uma tarifa externa comum entre os quatro pases e a sermos uma unio aduaneira.9

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Em 1991, foi assinado o Tratado de Assuno e, trs anos depois, se concluiu o processo da unio aduaneira propriamente dito. O processo de desgravao comeou antes, a partir do Tratado de Assuno, mas, a aplicao da tarifa externa comum s comeou a partir de 1994. Vale a pena dizer que, j ento, os pases procuraram se coordenar, inclusive, nas suas polticas em relao OMC. O caso do Paraguai era um pouco diferente porque o Paraguai estava, ao mesmo tempo, negociando com o Mercosul, e negociando a sua adeso OMC, ento, estava recebendo demandas que eram um pouco diferentes. Como era um processo que j estava em andamento, isso teve que ser respeitado. Como tambm teve que ser respeitado o fato de que, tanto a Argentina, quanto o Brasil e o Uruguai, j tinham tambm feito concesses tarifrias, que j constavam das listas da OMC e essas ns no poderamos mudar sem dar compensao em outras reas. Isso seria algo complicado. O importante que, j ento, Uruguai, Argentina e Brasil procuraram coordenar as posies em relao consolidao de tarifas na Rodada Uruguai. Vocs podem verificar que grande parte das tarifas dos trs pases, o ceiling binding, ou seja, o teto tarifrio de 35%. Ns conseguimos algumas excees na rea agrcola, em que alguns produtos chegam a 55%, mas so muito poucas. Na realidade, esse era o teto tarifrio e isso nos permitia continuar discutindo a nossa tarifa externa comum. Esse processo da discusso da tarifa externa comum, uma vez dado o impulso poltico e reconhecida a indispensabilidade de uma unio aduaneira para poder agir frente ao mundo e para aprofundar a integrao, se concluiu, basicamente, em 1994, quando foi assinado o Protocolo de Ouro Preto. Na realidade, o Protocolo de Ouro Preto no sobre isso. sobre a parte institucional do Mercosul. Mas, coincidentemente, na mesma ocasio, tambm se acertaram as bases da tarifa externa comum e as bases do regime automotivo. Tudo isso depois foi evoluindo, houve mudanas, mas as bases foram assentadas a. Vou contar apenas um ou dois episdios que me parecem importantes nesse processo. Havia no Brasil, e certamente tambm na Argentina, no Uruguai e Paraguai, muito ceticismo em relao ao Mercosul. Era muito comum as pessoas dizerem: Por que perder tempo com pases em desenvolvimento? O Brasil tinha que estar negociando com os Estados Unidos, separadamente, o Brasil tinha que buscar uma negociao com a Unio Europeia. Tudo bem que10Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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tenha um acordo comercial com a Argentina, com o Uruguai ou o Paraguai, isso no atrapalha, mas, por que esse esforo todo de criar uma unio aduaneira e de ter uma tarifa externa comum?. Havia essa percepo, esse ceticismo. Participei da negociao do Tratado de Assuno. Sa, fui ser Embaixador em Genebra e voltei, primeiro, como Secretrio Geral e, depois, como Ministro das Relaes Exteriores. Voltei j com a ideia de ampliar, de poder trabalhar algo para o conjunto da Amrica do Sul. Mas, eu quis testar um pouco os empresrios brasileiros e trabalhar com a ideia de uma rea de livre comrcio sul-americana. Alis, essa ideia foi exposta, pela primeira vez, pelo Presidente Itamar Franco, numa reunio do Grupo do Rio no Chile, em 1993. Depois eu explico por que uma rea de livre comrcio e no uma unio aduaneira. Eu quis testar essa ideia. Como havia um Conselho Empresarial no Ministrio das Relaes Exteriores, que havia sido criado pelo meu antecessor frente do Itamaraty e depois Presidente Fernando Henrique Cardoso, eu tive uma reunio com os empresrios. Estavam presentes grandes banqueiros, industriais, o Olavo Setbal, que era uma figura importante do setor financeiro e vrios outros. Eu expus a ideia para eles de que achava importante ns termos um projeto no apenas para o Mercosul mas para toda a Amrica do Sul. At porque, naquela poca, se confundia muito o Mercosul, com o Cone Sul. O Mercosul o Mercado Comum do Sul, at para deixar essa abertura para outros pases. A prpria mdia brasileira, e at analistas que estudam esse assunto, dizem que o Mercado do Cone Sul, o que no e nem nunca foi. At porque, o Brasil no se resume ao Cone Sul. Mesmo que ns queiramos, ns no podemos nos reduzir a isso. Nessa reunio, foram colocadas vrias ideias. Eu me lembro at que o Embaixador Jeronimo Moscardo, que foi Embaixador na Aladi, antes de ser Ministro da Cultura, sugeriu que se elaborasse tambm um projeto para o norte. Isso era perfeitamente correto mas, simplesmente, no se podia cortar o Brasil em dois e fazer uma parte para o Merconorte e outra parte para o Mercosul. Ento, ns tnhamos que ter um projeto que fosse, ao mesmo tempo, compatvel com a existncia do Mercosul e que pudesse abranger o conjunto da Amrica do Sul. A ideia dessa rea de livre comrcio sul-americana surgiu nesse contexto. E eu resolvi test-la com os empresrios. A mesma classe empresarial, que havia manifestado tanto ceticismo, dois ou trs anos antes de ser assinado o Tratado da Assuno, dizia: Mas, temos que tomar cuidado para no prejudicar o Mercosul!. J naquela poca, o Mercosul tinha se tornado uma fonte de receita muito importante para os empresriosDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios. Ento, algo que antes era visto com grande ceticismo, era agora algo a ser preservado. Quis enfatizar um pouco o nascimento do Mercosul e essa caracterstica da tarifa externa comum e da unio aduaneira porque tenho a convico de que o Mercosul o ncleo dinmico para a integrao da Amrica do Sul, com todo o respeito Comunidade Andina, que ns sabemos que foi pioneira na Amrica Latina. O Pacto Andino foi uma ao de coragem do ponto de vista poltico, mas, do ponto de vista prtico, acho que o ncleo dinmico para a integrao da Amrica do Sul est no Mercosul porque foi o ncleo que criou maior densidade. Essa densidade est ligada ao fato de ele no ser apenas uma rea de livre comrcio, mas ser tambm uma unio aduaneira, sem falar das outras caractersticas que ele desenvolveu na rea social, na rea poltica, tendo um Parlamento. Mas, a unio aduaneira o verdadeiro cimento do Mercosul. Quando me perguntavam por que essa diferena, eu costumava dizer que a diferena a histria quem mostra. As reas de livre comrcio vm e vo; as unies aduaneiras ficam. Esse um fato histrico. A Unio Europeia se baseia numa unio aduaneira que foi crescendo, tendo mais polticas comuns. Hoje, grande parte dos pases tm uma moeda comum. Nos primrdios, quando o Mercado Comum Europeu foi criado, havia um outro grupo de pases que no queria ser parte da unio aduaneira naquela poca. Ser parte de uma unio aduaneira impe vantagens e limitaes. Voc no pode negociar livremente com outros sem ouvir os seus parceiros. Naquela poca, criou-se o European Free Trade Association (EFTA), a rea europeia de livre comrcio. Eu no sei se muitas pessoas em torno dessa mesa se lembram do que foi o EFTA. Na realidade, ele ainda existe, mas, hoje em dia, est reduzido a quatro pases. No digo isso com nenhum demrito porque cada pas tem seu projeto, mas o EFTA est reduzido Sua, Islndia, Noruega e Liechtenstein. A relevncia do EFTA no mundo, como bloco, muito pequena. Obviamente, a Unio Europeia tem uma relevncia muito maior. Ento, a importncia de criar esse ncleo de integrao, que a unio aduaneira, foi muito grande. J na poca do Presidente Itamar pensou-se que, j que no era possvel termos uma unio aduaneira de toda a Amrica do Sul, at porque, havia pases que estavam comeando a negociar acordos de livre comrcio, ou tinham estruturas tarifrias mais baixas, como o Chile, ou pensavam em negociar12Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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acordos de livre comrcio com os Estados Unidos ou outros pases de fora da regio, j que no era possvel ter uma unio aduaneira de toda a Amrica do Sul, ns poderamos, ao menos, ter uma rea de livre comrcio. No era o mesmo nvel de integrao, mas era algum nvel de integrao. Ento, essa ideia foi lanada e houve reaes mistas, na poca, por razes diferentes. Eu me lembro que alguns pases estavam pouco entusiasmados com a ideia. Um deles era a Colmbia, talvez, porque j estivesse pensando em ter um acordo com os Estados Unidos, o que mais do que legtimo e natural. Mas, enfim, no havia entusiasmo. Outros pases tambm no viam, naquele momento, propsito de buscarem uma integrao maior. A relao entre os pases sulamericanos era muito pequena. No prprio Mercosul, antes do ACE 14 e do Tratado de Assuno, do ponto de vista brasileiro, o conjunto das exportaes para o Mercosul era de mais ou menos 4% do total. Com a Amrica do Sul, deveria ser de 7%, se tanto. Ento, havia muitas dvidas. Vou dar um salto no tempo porque depois veio o Governo Fernando Henrique, houve vrias crises internacionais que tiveram consequncias muito fortes na regio, inclusive, cambiais, e que atrapalharam um pouco o processo de integrao. Devo assinalar que o Presidente Fernando Henrique teve uma iniciativa importante, que foi a realizao da I Cpula de Pases da Amrica do Sul em Braslia, em 2000. Foi a que nasceu a Iirsa. Ento, no que a ideia tivesse sido abandonada de todo, mas, ela no teve a dinmica que se esperava, em funo de outros fatores. Um outro fator que, naquela poca, acabou tirando fora do projeto de uma rea de livre comrcio sul-americana, que foi muito embrionrio porque no chegou a se desenvolver, foi o lanamento da ALCA. O lanamento da ALCA foi feito pelo Presidente Clinton, no final de 1994, com muita fora poltica. De uma forma ou de outra, todos acabaram aderindo ALCA, embora houvesse vises diversas sobre o que deveramos fazer. Creio que os pases tinham uma preocupao de no se deixar engolfar totalmente num tipo de integrao cujos benefcios seriam muito discutveis, principalmente, os pases que tinham uma base industrial maior. Pelo menos, ns conseguimos estabelecer um prazo de dez anos, e no cinco anos, como estava proposto. Depois, o prazo se alongou muito mais, at desaparecer. Tambm conseguimos colocar alguns temas que eram do nosso interesse, como agricultura e antidumping, que pelo menos nos permitiriam ter algum instrumento de barganha na discusso.Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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O fato que o lanamento da ALCA foi um fator overwhelming, que tomou totalmente as atenes. Reconhecendo a importncia da convocao da I Cpula da Amrica do Sul e da Iirsa, no incio do Governo do Presidente Lula, com a liberdade que o Presidente Lula permite aos seus assessores, eu disse: Presidente, a nossa prioridade em matria de integrao o Mercosul, no ? Sim. Presidente, vou decepcion-lo, porque no . H 10 ou 12 pessoas aqui nos Ministrios que trabalham com o Mercosul e 40 ou 50 pessoas que trabalham na ALCA. Ento, a prioridade no o Mercosul, a prioridade a ALCA. Ou seja, ns sabemos que a fora de uma proposta norte-americana muito grande e ela acabou engolfando. Ns tnhamos uma postura que, inicialmente, era mais defensiva, havia uma sucesso de muros que foram caindo, mas, a ALCA era um processo avassalador. Quando se discute e se compara o que se negociou na OMC, ou o que se pode negociar na OMC, com relao ALCA, as bases so totalmente diferentes. Havia-se aceito que as negociaes tarifrias, para produtos industriais, seriam feitas a partir da tarifa aplicada e no da tarifa consolidada. Para quem no especialista do ramo, h essa diferena: a tarifa consolidada aquela que voc est internacionalmente obrigado a manter porque voc declarou isso na OMC e virou uma obrigao jurdica. A tarifa aplicada aquela que voc aplica e que pode variar um pouco. No caso do Mercosul, a Tarifa Externa Comum TEC. Para vocs terem uma ideia da diferena, no caso do Mercosul, a tarifa consolidada poderia ser 35%, a mdia de 26% ou 27% e a aplicada de 11%. Ento, em vez de negociar a partir de 35%, ns negociamos a partir de 11%, o que algo muito mais difcil e complicado, e que nos colocava em um processo de liberalizao diante da maior economia do mundo, de forma quase que avassaladora. E, com todas as dificuldades para que temas do nosso interesse, como agricultura ou antidumping, pudessem ser tratados de maneira adequada nesse contexto. Seja como for, a ALCA era um processo avassalador e tomou conta de tudo. Isso contribuiu para que o Mercosul desacelerasse o passo e fez com que outras iniciativas, como a rea de livre comrcio sul-americano Alcsa no se desenvolvessem.14Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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Logo no incio do governo, o Presidente Lula tomou a deciso de caminharmos em dois sentidos: um era fortalecer o Mercosul e o outro era retomar projeto de integrao de toda a Amrica do Sul. Com relao ao Mercosul, logo numa das primeiras reunies, no Uruguai, ns passamos a aceitar o conceito de assimetria. As solues encontradas podem at no ter funcionado plenamente, mas foram basicamente as que pediam o Uruguai e Paraguai naquela poca. Houve um esforo para fortalecer o Mercosul de mais de uma maneira. Reconhecemos as assimetrias; aos poucos, fomos criando um instrumento financeiro para ajuda aos pases. Este instrumento o Focem, para o qual o Brasil contribui com cerca de 70%, a Argentina com mais ou menos 20% e os outros pases menores contribuem com um pouco. A grande maioria dos fundos vai para o Uruguai e Paraguai. um reconhecimento de que necessrio compensar as assimetrias com investimentos maiores nesses pases. A parte social e de movimentao de pessoas se desenvolveu muitssimo nesses anos, a parte poltica tambm, com a instalao do Parlamento do Mercosul. Enfim, houve vrios avanos importantes, embora, em certos aspectos, e com razo, alguns pases se queixem de que ns no avanamos o suficiente. Avanamos um pouco na rea de servios; enfim, houve alguns avanos. Ao mesmo tempo em que ns tratvamos de aprofundar o Mercosul, ns procuramos tambm retomar a ideia de um processo de integrao para o conjunto da Amrica do Sul. Ns j tnhamos a Iirsa, que teve que ser adaptado s novas prioridades. Eram obras de infraestrutura nos vrios pases que, pela primeira vez, estaro ligando o Atlntico ao Pacfico, de maneira efetiva em vrios pontos: no meio norte do continente, saindo pelo Peru ou eventualmente pelo Equador; mais ao sul, passando pela Bolvia, Argentina e Chile. Pela primeira vez, a Amrica do Sul vai ter ligaes efetivas entre o Atlntico e o Pacfico, coisa que na Amrica do Norte aconteceu no sculo XIX. Ns levamos praticamente um sculo e meio para fazer o que foi feito h muito tempo na Amrica do Norte, como uma das bases do desenvolvimento do mercado interno norte-americano. Acho que algo em que ns temos que pensar num mercado interno sul-americano. O conjunto da Amrica do Sul um enorme mercado, somos quase 400 milhes de habitantes, com um PIB que deve estar por volta dos 3 trilhes de dlares. Ns tnhamos que ter um projeto para esse conjunto da regio. Na grande maioria, com exceo da Guiana e de Suriname, so populaes que falam lnguas que se comunicam, que se entendem razoavelmente. EraDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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preciso retomar esse processo. Tnhamos a parte de infraestrutura e voltamos ideia de um acordo de livre comrcio. S que, talvez, com um pouco mais de pragmatismo, em vez de propormos um esquema abrangente, que sempre desperta um pouco de ceticismo e, s vezes, at temores, ns propusemos acordos do Mercosul com os outros pases. J tnhamos um acordo com o Chile, porque o Chile, justia seja feita, embora no pudesse participar do Mercosul pela sua estrutura tarifria, tambm era um pas muito interessado na integrao comercial com os outros pases da regio. Ns j tnhamos um acordo com o Chile e com a Bolvia. Tnhamos que fazer um acordo com o conjunto do Pacto Andino. Ento, esse foi o esforo que tomou muito do nosso tempo diplomtico e o do prprio Presidente. O Presidente Lula recebeu visitas de todos os presidentes sul-americanos no primeiro ano de governo e visitou todos os pases sul-americanos em dois anos de governo, incluindo, a Guiana e Suriname, naturalmente. Eu tinha sido Ministro do Governo Itamar Franco, embora s por um ano e meio, e, naquela ocasio, nunca fui ao Peru, nem ao Equador, Guiana ou Suriname. Eu acho que, em dois anos do Governo Lula, eu estive seis vezes no Peru, umas trs ou quatro vezes no Equador, fui muitas vezes Colmbia, enfim, houve uma mudana na dinmica. A Colmbia foi, de certa forma, o ponto de inflexo que nos permitiu chegar a um acordo. Continuava a haver alguma resistncia, no- ideolgica, devo dizer, at porque o que ns estvamos propondo era um acordo de livre comrcio, que no limitava ningum. Quem quisesse negociar com outras reas poderia continuar negociando, mas, havia certo receio. Eu me lembro de um dilogo que tive com o Ministro Jorge Botero, que era o Ministro do Comrcio Exterior da Colmbia naquela poca. Foi um dilogo denso, interessante e profundo. Foi talvez um dilogo que at me ajudou a ver um pouco mais quais eram as preocupaes. Em determinado momento, eu disse para o Ministro Botero: Eu no consigo entender uma coisa e vou precisar que vocs me expliquem. Por que os empresrios colombianos tm medo da concorrncia da indstria brasileira e no tm medo da concorrncia da indstria norte-americana? Isso eu no consigo entender. Realmente, no era fcil de entender. Eu sei que ns continuamos aprofundando a discusso, fomos refinando o processo de negociao, fomos incluindo clusulas que reconheciam assimetrias, que variavam de pas para pas. Tomando a Colmbia como um exemplo, o processo de liberalizao do Brasil em relao Colmbia16Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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mais rpido do que o da Colmbia em relao ao Brasil. O nmero de excees para a Colmbia maior do que as excees para o Brasil. Ento, fomos reconhecendo esse tipo de assimetrias. Houve resistncias aqui no Brasil tambm. Ns comeamos a negociao com o Peru, separadamente. Na verdade, o primeiro grande passo foi dado com o Peru e deve-se fazer justia ao Presidente Toledo porque ele tinha grande interesse. Mas, na realidade, foi o ltimo pas a concluir o acordo porque havia problemas na rea agrcola, que foram finalmente resolvidos com concesses de parte a parte. Enfim, conseguimos fazer os acordos de livre comrcio. Quando ns tnhamos acertado as linhas gerais desses acordos, o framework dos acordos de livre comrcio, ns incorporamos isso na Aladi. Houve uma reunio da Aladi porque tudo isso tem que ser feito sob o amparo da Aladi, at para poder ser legal junto OMC. Ns fomos a uma reunio da Aladi e a coisa mais interessante foi a declarao que eu ouvi da Ministra das Relaes Exteriores da Colmbia, que era um pas que tinha demonstrado algum ceticismo, dez anos antes. Eu fui muito cauteloso no meu discurso, para no dar a impresso que ns estvamos querendo avanar para reas que pudessem ser consideradas mais sensveis. Mas a Ministra da Colmbia disse: Com esses acordos que ns estamos assinando, na prtica, estamos criando uma rea de livre comrcio da Amrica do Sul. claro que o caso da Guiana e Suriname sempre foi especial, no s por pertencerem ao Caricom, mas tambm, porque so economias mais frgeis que tero que ter um tratamento diferente nesse processo de integrao. Com relao aos demais pases, era verdade. Ns estvamos criando uma rea de livre comrcio da Amrica do Sul. Tendo j esses dois pilares da integrao sul-americana estabelecidos, embora no seja uma integrao to profunda quanto a do Mercosul, mas, uma integrao, com uma rea de livre comrcio e integrao fsica de infra-estrutura, faltava uma vertente poltica. A ordem no necessariamente cronolgica porque isso ocorre simultaneamente, mas, faltava a vertente poltica. Quando foi assinado o Acordo Quadro entre Mercosul e Peru, o Presidente Toledo anunciou que aquele acordo, provavelmente, iria se estender para o conjunto da Comunidade Andina. Com isso, ns estvamos criando uma Comunidade Sul-americana de Naes CASA, como foi conhecido esse esforo de unio sul-americana, at cerca de dois anos atrs, quando houve a proposta de cham-lo de Unasul.Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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Ento, essa reunio lanou o processo. Levou algum tempo para que chegssemos a uma reunio fundadora da CASA, o que ocorreu tambm no Peru. Era ainda um processo de natureza poltica. A CASA no tinha uma institucionalidade jurdica. A institucionalidade jurdica s vai ocorrer com a Unasul. Ns tivemos mais uns dois anos de discusses, at que, no ano passado, finalmente, foi concludo o Tratado da Unasul, com vrias vertentes: a vertente do livre comrcio, da integrao comercial; a vertente da infraestrutura; a vertente da energia, que ganhou muita fora nesses anos; a vertente de defesa, que, na realidade, s veio a se materializar um pouco mais tarde com a criao do Conselho de Defesa; e agora j tem o Conselho de Sade, enfim, h vrios outros que esto se desenvolvendo. A Unasul um processo extremamente vivo e importante, que permite regio se coordenar e se apresentar diante do mundo. Eu costumo dizer que algo que chama a ateno que nunca esses pases tenham assinado um tratado, um instrumento jurdico entre eles, pelo menos, de carter amplo. No sei se existe em alguma rea especfica, como na rea de turismo, mas, no creio. Ento, o tratado constitutivo da Unasul um grande passo. Estamos ainda s voltas com vrios aspectos, naturalmente. Ningum pode querer sobrepor a tcnica poltica porque a poltica continua existindo. Ela resolve muitos problemas, mas cria outros. Temos ainda algumas questes para resolver, mas o fato que a Unasul, mesmo antes de estar totalmente consolidada juridicamente at porque, foram poucos os pases que j ratificaram, creio que a Bolvia foi o primeiro e o Brasil mesmo no ratificou mas enfim, mesmo antes de ela estar completa juridicamente, ela j uma realidade. Eu vou citar dois exemplos muito rpidos. Um deles a reunio que houve em Santiago do Chile, no momento de uma crise importante na Bolvia. A Unasul funcionou como um foro real de pacificao e de soluo de conflitos na regio. No caso, foi at um conflito interno. A pedido da prpria Bolvia a questo foi levada Unasul. L se encontraram maneiras que permitiram, depois, que houvesse o referendo, as eleies. Esse foi um caso. Agora, mais recentemente claro que uma situao muito menos dramtica, mas importante notar acaba de se realizar a II Cpula dos Pases da Amrica do Sul com Pases rabes. Todos os Presidentes falaram. O Presidente Lula falou porque o Brasil sediou a I Cpula, mas, quem18Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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falou em nome da Amrica do Sul foi a Presidente do Chile, porque est presidindo a Unasul. Assim, embora a Unasul no tenha uma personalidade jurdica totalmente consolidada, porque necessria a ratificao para a plena vigncia dos acordos, a Unasul j uma realidade poltica e aceita por outros interlocutores. Esse um passo muito importante. Quero fazer uma distino. O Mercosul um processo de integrao que j se encontra em estgio mais avanado, mais profundo. Na Amrica do Sul, ns temos o processo de integrao possvel, que parte do reconhecimento que os pases tm polticas comerciais diversas. No que as polticas comerciais dos membros do Mercosul sejam idnticas. Mas a nossa estrutura tarifria, com algumas excees, razoavelmente homognea. H um esforo para eliminar cobranas duplas; h vrios aspectos da poltica de incentivos que so discutidos no Mercosul. Na Unasul, ns no temos isso, mas temos um acordo de livre comrcio, temos a infraestrutura e temos uma estrutura poltica que permite tambm uma cooperao intensa em algumas reas, como defesa, energia, sade, educao, cultura etc. E nesse processo, a Guiana e o Suriname esto plenamente integrados. Alis, creio que um dos poucos foros do mundo em que o neerlands lngua oficial. Foi utilizada, no s na reunio de Braslia, mas nos prprios documentos que ns assinamos, em funo da presena do Suriname. claro que, no caso da Guiana, o ingls uma lngua mais conhecida, alm do portugus e do espanhol. Eu queria fazer um ltimo comentrio sobre a dinmica entre a Amrica do Sul e Amrica Latina e Caribe. Isso importante para todos ns porque todos ns temos relaes intensas com alguns pases como o Mxico, como Cuba ou mesmo a Amrica Central. No caso a Guiana e o Suriname, eles so membros do Caricom. Como conciliar esses processos? Eu vou voltar um pouco inspirao poltica e realizao diplomtica. A inspirao poltica, at por obrigao constitucional nossa, a integrao na Amrica Latina e Caribe. Entende-se hoje que a Amrica Latina a Amrica Latina e Caribe. s vezes, para abreviar um pouco, ns falamos s Amrica Latina, mas, preciso deixar claro que o Caribe est contido nesse conceito. Eu omiti um fato muito importante. Ao longo desse processo de negociao com a Comunidade Andina, a Venezuela decidiu ser membro pleno do Mercosul, o que vir a fortalecer ainda mais o Mercosul, em minha opinio, e eliminar, de uma vez por todas, essa ideia de que o Mercosul um acordo do Cone Sul. O MercosulDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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passa a ser algo que vai do Caribe Terra do Fogo. O processo ainda est em andamento. Espero que o Senado brasileiro vote a adeso da Venezuela em breve. Temos que respeitar as formas e os rituais da democracia. Creio que o Paraguai tambm est numa fase final de aprovao e tenho grande esperana que possamos, muito em breve, ter a Venezuela no Mercosul plenamente. Havia essa ideia de que, no Mercosul, se podia avanar mais em certos aspectos. Quer dizer, mais fcil se falar de uma cadeia produtiva e, efetivamente, comear a discutir cadeias de valor no Mercosul do que no conjunto da Amrica do Sul porque uma unio aduaneira, onde mais fcil tratar do tema. Uma coisa o empresrio brasileiro saber que est concorrendo com um produto que feito na Argentina, parcialmente, mas cujos insumos pagaram uma tarifa externa comum. Outra coisa um empresrio argentino, ou brasileiro, estar lidando com um produto do Paraguai, do Uruguai ou do Brasil, que entrou nesses pases, mas tem um insumo que no pagou tarifa externa comum, como pode ser o caso de produtos que entraram em outros pases da Amrica do Sul. Ento, h uma diferena prtica no que voc pode evoluir quando se trata de uma unio aduaneira ou no. Ns tnhamos esse processo e, de qualquer maneira, tnhamos a conscincia de que, embora o objetivo de mais longo prazo fosse integrar a Amrica Latina e o Caribe como um todo, a integrao possvel e operativa era a da Amrica do Sul. Por qu? Porque a maioria dos outros pases da Amrica Central, seno todos, e o prprio Mxico, estavam num processo de abertura muito rpida em relao aos Estados Unidos. Alguns estavam negociando com a Unio Europeia tambm. Ns no poderamos ter um processo de integrao da Amrica Latina como um todo, nem os outros pases desejavam, porque eles tinham sua ateno voltada para outros temas. Para vocs terem uma ideia, ns j tivemos umas trs ou quatro Reunies Ministeriais Mercosul/SICA, que o processo de integrao da Amrica Central, mas, at hoje, ns no conseguimos iniciar uma negociao. Em parte, porque h os mesmos temores que havia aqui na Amrica do Sul, em parte porque as atenes estiveram voltadas para os Estados Unidos e agora esto voltadas para a Unio Europeia. So coisas que ns compreendemos, mas o que ns no podamos era retardar o nosso processo de integrao para adapt-lo a essas outras realidades. Ento, ns tivemos que fazer com que os nossos amigos mexicanos, os nossos amigos cubanos, os nossos outros amigos da Amrica Central e do Caribe entendessem que, na realidade, a Amrica do Sul era fundamental. No que ns quisssemos20Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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abandonar a ideia mais ampla da integrao latino-americana e caribenha. Por isso, depois de muitas conversas aqui na regio da Amrica do Sul e fora dela, depois de ampla consulta a todos os pases da regio, o Brasil resolveu fazer uma grande Cpula dos Pases da Amrica Central e do Caribe, que tambm tem esse ineditismo. Nunca tinha havido sequer uma reunio, nem de Ministros, quanto mais de Presidentes de toda a Amrica Latina e do Caribe que no fosse patrocinada por alguma potncia de fora. Ou seja, a Amrica Latina e o Caribe podiam se reunir com os Estados Unidos, sem Cuba; com Cuba, mas, sem o Caribe, e com Espanha e Portugal, na Ibero-Americana; e ela toda com a Unio Europeia; mas, no podia se reunir ela toda sozinha. uma espcie de crculo de giz, uma limitao que ns mesmos nos traamos. Era como se ns no tivssemos coragem de assumir o fato de que poderamos discutir os nossos problemas, sem prejuzo das outras relaes. Vamos continuar conversando com a Unio Europeia, com a Cpula Ibero-Americana, vamos continuar com um processo, que eu espero que algum dia venha a ser totalmente inclusivo, da Cpula das Amricas. Tenho sempre dito que o que anmalo hoje a ausncia de Cuba, independente do que cada um possa pensar do Governo cubano. anmalo porque todos os pases do hemisfrio, inclusive o Canad, tm relaes com Cuba, a no ser os Estados Unidos. Ento, ns fizemos essa grande Cpula da Amrica Latina e Caribe (CALC), at para procurar encontrar pontos comuns no processo de integrao. O comparecimento foi espetacular para uma reunio desse tipo. Ns fizemos quatro Cpulas seguidas: Mercosul, Unasul, Grupo do Rio e a Cpula da Amrica Latina e Caribe. E, imediatamente, surgiram oferecimentos do Mxico e da Venezuela para fazer uma segunda e uma terceira CALC. Essa dinmica est em curso. O que eu sempre procurei dizer para os nossos amigos do Mxico, da Amrica Central e mesmo de Cuba, que tinham dvidas sobre porque ns colocvamos tanta nfase na Amrica do Sul, que fortalecer a Amrica do Sul indispensvel para a integrao da Amrica Latina e Caribe. At porque, necessrio criar um plo magntico alternativo que possa tambm ser um plo de atrao, econmico, cultural, empresarial, etc. Foi isso que ns fizemos. Agora, ns estamos vivendo alguns desafios importantes. Eu no quero usar a expresso crculos concntricos porque eles no so concntricos, nem geograficamente e nem tematicamente. Mas, h trs nveis de integrao:Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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(1) o Mercosul, uma unio aduaneira, com Parlamento, e j com polticas comuns em muitos aspectos; (2) a Amrica do Sul, que vive um processo de integrao bastante forte. Do ponto de vista da poltica externa e de poltica internacional, acho que ela tem um papel to grande, ou talvez maior do que o do Mercosul, porque os grandes temas que existem na regio, em geral, transcendem o aspecto do Mercosul; e (3) em um nvel um pouco menos cerrado, h o conjunto da Amrica Latina e Caribe, em que se reconhece os diferentes graus de desenvolvimento entre os pases. Todos esses processos no existem no vcuo. Temos o processo de integrao do Mercosul, da Unasul, que teve resultados espetaculares. O comrcio do conjunto dos pases da Amrica do Sul, nos ltimos seis anos, aumentou algo como 600%; as exportaes do Brasil para a Amrica do Sul, hoje, j so cerca de 20% do total das nossas exportaes. possvel que este ano caiam, pelos fatores que ns sabemos, mas, em 2008, eram 20% do total das nossas exportaes, ou seja, 60% a mais do que as exportaes do Brasil para os Estados Unidos. So resultados realmente espetaculares. Mas, subitamente, as condies mudaram no cenrio internacional com a crise financeira. muito difcil dizer quais sero as consequncias. Houve essa reunio do G-20, da qual participaram Brasil, Argentina, Mxico e outros pases da Amrica Latina, e houve algumas decises importantes, em minha opinio. Talvez o mais significativo tenha sido o reconhecimento da importncia dos pases em desenvolvimento. Sabemos que muitos no esto satisfeitos com o nvel de inclusividade do G-20, mas um avano. Acho que, em paralelo, como h outros esforos nas Naes Unidas, ser possvel ter discusses em foros mais amplos e mais democrticos. Mas, o grande avano realmente o reconhecimento dos pases em desenvolvimento, alm de algumas medidas concretas ligadas ao financiamento, ao aumento da liquidez internacional, ao controle sobre os bancos, os controles financeiros, inclusive, sobre hedge funds. Eu no vou repetir aqui esse lugar comum de que toda a crise tem riscos e oportunidades. Mas, a verdade que assim mesmo. Toda a crise tem desafios. O grande desafio para a Amrica do Sul, nesse contexto da crise, aumentar a sua integrao. Vale a pena fazer um paralelo, com todas as cautelas, com os anos 30 e 40. Durante a Crise da Depresso e, depois, com a Segunda Guerra, que tambm causou a interrupo do comrcio, muitos dos nossos22Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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pases iniciaram o seu processo de industrializao, ou desenvolveram o pouco que tinham iniciado antes. claro que agora no vamos fazer a mesma coisa porque a poca outra e no se poder trabalhar da mesma maneira. Algumas indstrias hoje so inevitavelmente globalizadas. No h como se pensar hoje num processo de substituio de importaes como existiu h 60 ou 70 anos atrs. Mas possvel pensar de uma maneira mais criativa num mercado interno sul-americano, como grande alavancador do nosso desenvolvimento. Isso vale para o Brasil, como vale para a Guiana; vale para o Uruguai, vale para o Equador. Todos tero muito a ganhar. A evoluo do comrcio nos ltimos anos demonstrou claramente o grande potencial que existe no comrcio na regio. O comrcio nos pases da regio cresceu imensamente e eu devo dizer que, nos ltimos anos, embora o Brasil seja superavitrio com quase todos os outros pases, com exceo da Bolvia (de quem ns compramos muito gs), para o conjunto dos pases esse supervit tem diminudo. Em alguns casos, tem diminudo em termos absolutos e, em alguns casos, tem diminudo em termos relativos. Isto , as nossas exportaes continuam crescendo, porm menos do que as importaes. Como elas so muito grandes, o valor absoluto do supervit continuou aumentando. o caso do nosso comrcio com a Argentina e com o Peru. Mas, em alguns casos, muito marcadamente, houve diminuio do supervit brasileiro. Acho que o Chile um desses casos. Ns achamos isso positivo porque demonstra que os outros pases da Amrica do Sul tambm esto usando o potencial do mercado interno dos demais pases, inclusive, do Brasil, que muito grande. Em relao crise, eu queria guardar essa ideia. No dizer que ver a crise como oportunidade porque crise crise. Algumas pessoas passam fome e outras no. Mas, os que no passam fome, passam angstias, tm medo de perder o emprego, passam dificuldades, tm que refazer seus planos de investimento, enfim, a crise uma crise. No vamos disfarar. Mas, sem dvida alguma, um desafio que ns temos que enfrentar o de aumentar a integrao nesse tempo de crise e utilizar plenamente, para os nossos produtores industriais, agrcolas, o potencial do mercado interno sulamericano, sem a preocupao de nos fecharmos para o resto do mundo. Outros desafios viro. Temos uma nova administrao nos Estados Unidos, obviamente, com aspectos positivos, a meu ver. Mas isso tambm nos coloca um desafio. De certa maneira, ns no Brasil tivemos uma relao boa com o Presidente Bush, do ponto de vista econmico e poltico mesmo. O Governo Bush insistiu muito na ALCA no incio, mas quando sentiu queDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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no podia continuar, tambm desistiu sem usar aquelas presses. Os pases que queriam fazer acordos com os Estados Unidos levaram isso adiante, como foi o caso da Colmbia, do Peru e outros. Os que no quiseram, tampouco sofreram presses, pelo menos, presses insuportveis, pelo que eu pude acompanhar. Ento, o Presidente Bush manteve um dilogo conosco. Agora, ns estamos diante de uma situao nova. um novo Presidente, que tem contra ele a prpria crise interna e seus efeitos internacionais, mas tem a seu favor o fato de representar uma mudana social importante, uma mudana cultural importante para os Estados Unidos. No sei se vocs sabem, mas, h uns 80 anos, um escritor brasileiro, conhecido na Argentina pelos seus livros infantis (at a Presidenta Kirchner leu os seus livros quando criana), escreveu um livro interessante. Monteiro Lobato. Ele esteve exilado na Argentina quando saiu do Brasil durante a guerra, morou l e isso facilitou a traduo de alguns de seus livros na Argentina. Monteiro Lobato escreveu tambm livros para adultos e um deles chamava-se O Presidente Negro. Era um livro sobre um presidente negro que era eleito nos Estados Unidos. Naquela poca era algo que parecia fabuloso e fora de qualquer possibilidade. curioso que, no livro, ele acaba ganhando a eleio porque os brancos se dividem entre os homens e as mulheres e o presidente negro tem a maioria. No a mesma coisa, mas parecido. O Presidente Obama um presidente que vem com propostas de mudanas, aberto ao dilogo, j revelou isso em relao ao Oriente Mdio, em relao ao Ir e tambm em relao ao desarmamento nuclear. H muito tempo que eu no ouo um presidente americano se que algum dia houve algum dizer que preciso partir da viso de um mundo sem armas nucleares. claro que, por enquanto, isso est no discurso, mas o discurso a primeira etapa para poder mudar as polticas. Em muitos anos, pela primeira vez, eu ouo um discurso que no fala s de no proliferao, mas fala tambm de desarmamento. Isso muito importante. uma oportunidade que os diplomatas no devem perder, cada um no seu caminho. Tenho certeza que ele tambm vai inovar em relao Amrica Latina e Caribe. No sei exatamente como. O Brasil tem dito publicamente que o grande teste para julgar a mudana Cuba. claro que ns no ignoramos as dificuldades internas que existem em relao a esse tema, mas ser o teste para a mudana. Por mais que haja outros temas agora na Cpula das Amricas, como energia, governabilidade,24Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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desenvolvimento sustentvel, inevitvel que as atenes sejam focalizadas naquilo que os Estados Unidos vo dizer sobre Cuba. Enfim, um presidente com capacidade de inovar. Eu acho que isso bom. Temos que usar isso positivamente, sem perder os progressos que ns realizamos em matria de integrao sul-americana e, na medida do possvel, tambm de integrao latino-americana e caribenha. At porque essa integrao nos habilita a negociar melhor com os Estados Unidos propostas futuras. Esse um outro desafio importante. Eu no creio que eles vo propor to cedo uma outra ALCA, nem nada do gnero. Eles estavam falando, por exemplo, num grande programa de energia. Eu mesmo, nos contatos que tive com a Secretria de Estado disse: Eu acho que os Estados Unidos tm que parar um pouco com essa ideia de terem um programa geral para a Amrica Latina e Caribe. Passou a era. Isso no existe mais. Voc pode ter atitudes e, depois, reconhecidas as diferenas, ver qual o campo em que voc pode cooperar com variados pases. Um quer cooperar na rea de energia renovvel; outro pode querer cooperar em melhor utilizao das energias tradicionais; ns, certamente, vamos querer cooperar em biocombustveis, at fazendo cooperao trilateral com pases menores; enfim, cada um vai cooperar do seu jeito. Mas, eu acho importante ter essa ideia de que no h mais como fazer um programa em Washington e, depois, com uma pequena adaptao, fazer dele um programa para o conjunto da regio. Isso no existir mais. Haver outros programas. Isso positivo, mas no deve, de maneira alguma, arrefecer o nosso nimo em relao integrao da Amrica do Sul e integrao da Amrica Latina e Caribe. Por isso, muito importante finalizar os trmites para que a Unasul entre em vigor, para que o Secretrio-Executivo da Unasul seja nomeado. O Mercosul tem que continuar fazendo os progressos que so necessrios, como a eliminao da dupla cobrana da tarifa externa comum para que se transforme numa verdadeira unio aduaneira, com as compensaes adequadas para os pases mais pobres. Foi o que se fez na Europa. O Presidente Lula j anunciou que o Brasil est disposto a dobrar a sua contribuio ao Focem. Estamos dispostos a pagar compensaes pela perda de receita aduaneira que possa ocorrer em algum pas da regio. importante manter esse nimo integracionista, sem perder de vista que ns vivemos num mundo que continuar a ser globalizado depois da crise. No vamos ter a iluso que cada um de ns vai construir uma economia totalmente fechada. Ningum vai. O estado da tecnologia no permite isso. Ento, o que ns temos queDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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encontrar nichos adequados e partir para competir no mundo, usando como base esse grande mercado que temos e que, progressivamente, no s do ponto de vista das regras comerciais, mas das ligaes fsicas, vai se tornando um nico mercado. A palavra essa: insistir na integrao diante tanto dos riscos da crise econmico-financeira, quanto de outras propostas que possam ser feitas, e que podem ser at aceitas, mas que no devem nos desviar desse objetivo principal. DEP

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Argentina: economia e poltica internacionalOs processos histricosMario Rapoport *

I. Introduo

esde fins do sculo XIX at o incio do XXI, a Argentina passou por etapas econmicas bem definidas: a fase agro-exportadora, a industrializao baseada na substituio de importaes e a de abertura, endividamento externo e auge da atividade de rendimentos financeiros que culminou na maior crise de sua histria. Ali se iniciou uma quarta etapa de retomada da industrializao, queda do endividamento e desenvolvimento econmico, pela qual ainda estamos passando. Quanto poltica exterior, tambm possvel estabelecer etapas vinculadas s precedentes. Longe das vises que destacam o carter errtico ou oscilante da poltica exterior argentina, observam-se tendncias dominantes em cada uma delas, explicadas pelos condicionamentos das diferentes estruturas econmicas e sociais. O objetivo do presente ensaio ser analisar a relao entre as etapas econmicas e as polticas externas,* Instituto de Pesquisas de Histria Econmica e Social da Universidade de Buenos Aires. [email protected] Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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levando em conta as caractersticas particulares dos diversos governos e regimes polticos.

II. A Argentina agro-exportadora, o liberalismo econmico e o vnculo privilegiado com a Gr-BretanhaA Argentina agro-exportadora se sustentava em uma estrutura scioeconmica na qual a propriedade da terra, o bem abundante, estava concentrada em um ncleo reduzido e poderoso de proprietrios fundirios, e onde os capitais externos, embora tivessem ajudado a montar o aparelho exportador, tinham em geral a rentabilidade garantida pelo Estado ou eram investidos com finalidades especulativas, criando um crescente endividamento externo e problemas no balano de pagamentos. Tudo isso obedecia a uma ideologia diretora: o liberalismo econmico. Nas palavras de Juan Bautista Alberdi, um de seus expositores mais lcidos, a Constituio argentina mais do que a liberdade poltica tendera a buscar a liberdade econmica. Assim, o pas chegou a fazer parte, de maneira destacada, como exportador de alimentos e matrias primas e importador de bens de capital e produtos manufaturados, de uma diviso internacional do trabalho, baseada no livre comrcio, cujo principal eixo era a Gr-Bretanha, o principal poder econmico da poca. Durante o perodo agro-exportador, os ciclos econmicos obedeciam, por um lado, s relaes entre o investimento, a produo e as exportaes, e por outro ao movimento favorvel ou adverso dos fluxos de capital, influenciados a partir do Banco da Inglaterra atravs do aumento ou reduo da taxa de juros. Houve uma expanso econmica notvel mas tambm uma dependncia dos mercados externos e desses movimentos de capital; quando estes se detinham, como em 1885, 1890 ou 1913, ou quando os mercados se contraam drasticamente, as crises estalavam. No que se refere ao sistema poltico interno, na altura de 1880 a unidade nacional tomou forma sob direo de governos oligrquicos. Esses governos conservaram as formas constitucionais, embora exclussem os setores de oposio do possvel exerccio do poder, e elegiam seus sucessores. Ao mesmo tempo, abriram as portas a novos imigrantes, mas no facilitavam sua converso em cidados nem o acesso propriedade da terra.

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Mario Rapoport

A poltica externa da ordem conservadora (1880-1916) tinha por objetivo dar garantias aos investidores estrangeiros, assegurar o financiamento externo do Estado e ampliar os mercados europeus, onde a Argentina colocava sua produo agro-exportadora. Essa poltica atlantista, liberal e aberta ao mundo sobretudo Europa dava as costas Amrica do Sul e desprezava alianas com os pases da regio. A Argentina aprofundava suas relaes diplomticas com o Velho Continente em geral e com a Inglaterra em particular, e ao mesmo tempo tentava obstruir as tentativas dos Estados Unidos de consolidar sua hegemonia continental. Esse consenso conservador se manifestou atravs de diversas correntes ideolgicas: a predominante, de matriz comercialista liberal, que tentava reduzir ao mnimo o surgimento de conflitos, e a da realpolitik do nacionalismo territorial, que impulsionava polticas de fora frente a naes vizinhas e alimentava a espiral armamentista. Por sua vez, na poltica exterior preconizada por cada grupo manifestavam-se os alinhamentos dos diversos setores da elite com interesses de origem britnica e de outros pases europeus. Essa disposio dos setores dirigentes se expressou, por exemplo, na oposio tentativa dos Estados Unidos de estabelecer uma unio aduaneira e uma moeda comum, na primeira conferncia pan-americana de 1889. Diante do lema esgrimido pelos Estados Unidos, a Amrica para os americanos, o representante argentino Roque Saenz Pea expressou outro diferente: a Amrica para a humanidade. Por outro lado, a conscincia da problemtica do endividamento externo se manifestou na doutrina Drago, de 1902, que condenava a interveno militar de pases europeus na Venezuela para obrigar esse pas a cumprir seus compromissos financeiros. Aps o fim do regime oligrquico, chegou ao poder o radicalismo (19161930), graas a uma nova lei eleitoral que garantia os direitos dos cidados e estabelecia um sistema mais democrtico instaurado pela lei Senz Pea, como voto secreto e obrigatrio para a populao masculina, em 1912. Embora, em termos gerais, existisse uma continuidade quanto estrutura produtiva e ao modelo econmico baseado na agro-exportao, produziram-se algumas mudanas em relao ao perodo anterior: implementou-se uma poltica fiscal que aumentava as cargas diretas sobre a terra e o capital, expandiu-se o gasto estatal principalmente o emprego pblico e houve certa redistribuio de renda em favor dos salrios das penses e da administrao, embora muitas lei propostas fossem barradas no Congresso da Nao porque a maioria doDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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Senado estava em mos da oposio conservadora. O conceito de reparao era utilizado para alentar essas mudanas, baseado em uma poltica que tratou de no afetar os ncleos de interesse sobre os quais se sustentava o esquema agro-exportador. No obstante, essa poltica fez com que o aumento de gastos crescesse em ritmo mais rpido do que o dos recursos disponveis, gerando um desequilbrio fiscal agravado nos perodos recessivos. A poltica exterior radical mostrou, por sua vez, maior autonomia em relao que sustentava o regime oligrquico. Na Primeira Guerra Mundial, aps a ascenso de Yrigoyen Presidncia, passou-se da neutralidade passiva decidida pelo conservador Victorino de la Plaza agradvel aos interesses britnicos, que pretendiam manter o comrcio bilateral com a Argentina a uma neutralidade ativa, que questionava os fundamentos da guerra entre as potncias, resistindo, desde 1917, ofensiva de Washington sobre o continente americano para que os pases da regio abandonassem a neutralidade. Pelo contrrio, o governo radical patrocinou um congresso de pases neutros do continente e em seguida retirou a Argentina da Liga das Naes, sustentando o princpio universal de que todas deviam gozar de igualdade de direitos. Esses elementos mostram o carter mais independente da poltica exterior, porm mantendo sempre a insero internacional que se havia estabelecido na etapa anterior e o vnculo privilegiado com a Inglaterra. A Yrigoyen sucedeu um governo radical de orientao mais conservadora, o de Marcelo T. de Alvear, que presidiu o pas num momento de retorno de certa prosperidade, mantendo externamente uma firme vinculao com a Europa. Em troca, a volta de Yrigoyen, em 1928, no foi bem vista pelas elites tradicionais, que comearam a preparar um golpe de Estado do qual participaram civis e militares. O golpe ocorreu em setembro de 1930, marcando o retorno ao poder da antiga oligarquia conservadora. Do ponto de vista econmico, pode-se observar na dcada de 1920 um aumento do comrcio e dos investimentos provenientes dos Estados Unidos. Comeou a desenvolver-se ento um tringulo de relaes comerciais e financeiras anglo-argentino-norte-americano, no qual a Inglaterra continuava a ser o principal mercado para os produtos argentinos, mas os fluxos de capitais e a manufaturas mais sofisticadas vinham do pas vizinho do norte. No obstante, este ltimo mantinha ou aumentava as barreiras para a entrada dos produtos agropecurios argentinos, considerados competitivos com30Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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sua prpria economia e criando fortes desavenas com as elites econmicas predominantes no pas.

III. A industrializao substitutiva, as novas formas de dependncia e as tentativas autonomistasA etapa da industrializao substitutiva pode ser subdividida, por sua vez, em trs perodos diferenciados: a industrializao espontnea (19301945), o processo industrializador peronista (1946-55) e a industrializao desenvolvimentista (1955-1976). As caractersticas de cada um desses perodos geraram condies diversas para a poltica exterior e para a insero internacional da Argentina. Os efeitos da crise desatada em 1929 afetaram as bases sobre as quais se apoiava a economia agro-exportadora. Os pases que tradicionalmente compravam a produo argentina comearam a proteger e impulsionar sua prpria produo de bens primrios (a Inglaterra, por exemplo, firmou em 1932 o Tratado de Ottawa, de preferncias imperiais). Nesse contexto, a Argentina viu suas exportaes reduzidas em volume e em preo, situao que ocasionou a falta de divisas no pas e reduziu sua capacidade de compra no mercado internacional. Essa escassez de divisas originou a necessidade de fabricar internamente muitos produtos anteriormente importados, estimulando o que passou a chamar industrializao baseada na substituio de importaes (ISI). Tambm foi reforada a presena do Estado na economia com a criao de diversas Juntas Reguladoras (cereais, carnes, etc), a implementao do controle de cmbio e a criao do Banco Central. No obstante, continuou a prevalecer o objetivo de favorecer a elite proprietria de terras, cujo exemplo mais claro o Tratado Roca-Runciman, de 1933, pelo qual a Inglaterra mantinha a quota argentina de exportao de carnes, e em troca eram outorgadas diversas contrapartidas, como a iseno do recm-implementado controle cambial, diminuio de tarifas alfandegrias e tratamento preferencial aos investimentos britnicos. Esse pacto ilustra o tipo de interesses predominantes, algo que no plano comercial se expressava por meio do lema comprar de quem nos compra, esgrimido pela Sociedade Rural Argentina. Quanto poltica exterior, o consenso dentro da coalizo no poder mantinha a subordinao hegemnica Gr-Bretanha, o queDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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implicara a entrada da Argentina na Sociedade das Naes e a oposio, nas conferncias pan-americanas da dcada de 1930, estratgia pan-americanista dos Estados Unidos. O incio da Segunda Guerra Mundial no gerou conflito no interior do grupo governante. A neutralidde era grata aos interesses britnicos, que necessitavam assegurar o abastecimento de alimentos argentinos e que compravam sem pagar de imediato, com libras bloqueadas em Londres com garantia em ouro, o que em breve iria trazer conseqncias negativas para o pas. Mas em dezembro de 1941, aps a entrada dos Estados Unidos na guerra, a ofensiva norte-americana em favor da ruptura de relaes com as potncias do Eixo se viu em parte detida pelo neutralismo conservador do Presidente Castillo e seu Chanceler Ruiz Guiaz, na Conferncia do Rio de Janeiro de 1942. A opo entre manter a neutralidade e incorporarse aos Aliados colocou em evidncia a rivalidade entre a Inglaterra e os Estados Unidos em influir na economia e na poltica argentinas, que se vinha manifestando por meio de relaes triangulares desde h duas dcadas. Em geral os britnicos se opuseram, na medida do possvel, poltica norteamericana em relao Argentina. Nos trs anos de regime militar, desde o golpe de Estado de junho de 1943, o eixo da poltica exterior, quando o desenvolvimento da guerra comeou a ser favorvel aos Aliados, transformou-se paulatinamente na expresso de um conflito bilateral entre os governos de Buenos Aires e de Washington. Os gestores do golpe foi um grupo de coronis no seio dos quais se destacava o carismtico Coronel Pern, que concentrou seu trabalho na capacitao dos sindicatos de trabalhadores e comeou a propor e desenvolver reformas sociais e a fazer contatos com foras e dirigentes polticos. Sua figura se fortaleceu ainda mais desde janeiro de 1944, quando o governo finalmente abandonou a poltica de neutralidade e o General Farrell assumiu a Presidncia, acompanhado por Pern como vice-Presidente. Nessas circunstncias surge com mais clareza que o objetivo principal de Cordell Hull, Secretrio de Estado norte-americano, no era que a Argentina rompesse relaes com o Eixo, e sim, pura e simplesmente, procurar o desmoronamento do regime militar e, em particular, o deslocamento de Pern. Era um objetivo compartilhado com a maioria da oposio poltica, que acusava o Coronel de pr-nazismo, mas que se opunha, antes de tudo, 32Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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sua liderana ascendente e a suas medidas sociais. O conflito com os Estados Unidos passou a constituir o elemento-chave da poltica interna. No obstante, em fins de 1944, produziram-se mudanas no Departamento de Estado que projetaram novos funcionrios dispostos a modificar uma poltica que alguns grupos de interesse do pas do norte interpretavam como errnea. Isso se traduziu em conversaes secretas com Pern e outros membros do governo argentino no incio do ano seguinte. Como resultado das mesmas, chegou-se a um acordo pelo qual a Argentina se comprometia a cumprir os compromissos que seriam estabelecidos na Conferncia de Chapultepec (Mxico) em fevereiro de 1945; reintegrar-seia ao concerto das naes latino-americanas e declararia guerra ao Eixo, ficando dessa forma em condies de ingressar nas Naes Unidas. Em troca, Washington abandonava a poltica de coero, em particular as sanes econmicas e diplomticas que havia imposto Argentina, coisa que efetivamente comeou a ocorrer. Esse interregno amistoso entre os dois pases se viu interrompido por uma nova mudana na diplomacia norte-americana em conseqncia da morte de Roosevelt, que havia se inclinado por uma postura mais flexvel, e o retorno de setores vinculados a uma linha dura para com a Argentina. Isso se materializou em maio de 1945 com a chegada a Buenos Aires do Embaixador Spruille Braden, que transformou em seu objetivo uma cruzada destinada a derrubar o regime ditatorial e fascista do Coronel Pern. Tratando de elimin-lo antes que as eleies previstas pudessem consagrar seu triunfo, Braden comeou a fazer intrigas para conseguir sua deposio: negociou com oficiais do exrcito opositores de Pern e transformou-se praticamente em lder dos setores polticos que se opunham ao regime militar, organizados na chamada Unio Democrtica, pronunciando discursos contra o governo ante o qual estava acreditado. Pern foi forado a renunciar at que a mobilizao popular de 17 de outubro de 1945 revertesse a situao, pois os trabalhadores temiam perder as conquistas obtidas naqueles anos e entregar o governo desacreditada elite poltica tradicional e aos setores que aceitavam a intromisso norte-americana nos assuntos internos. No incio de 1946, um dos eixos da campanha eleitoral do Coronel foi justamente Braden ou Pern, que levantando sentimentos nacionalistas facilitou ao novo lder poltico o triunfo nas eleies.Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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A dcada em que Pern governou marcou nova etapa no processo de industrializao e uma mudana na poltica externa argentina. A poltica econmica peronista previa aprofundar a industrializao substitutiva ampliando o mercado interno por meio de uma redistribuio de rendas (os assalariados chegaram a receber 50% da renda nacional), de leis sociais e de uma maior interveno do Estado. Os meios para estimular a indstria foram a criao de instituies como o Banco de Crdito Industrial (1944) e o Instituto Argentino de Promoo do Intercmbio que transferia recursos do campo para a indstria e a nacionalizao do Banco Central (1946) entre outros. O governo estabelecia um crculo de transferncia setorial de rendas coerente com a conformao de seu apoio poltico. Por outro lado, foram nacionalizados os principais servios pblicos e resgatada a dvida externa. Esse plano econmico entrou em crise em 1949, quando os termos de troca comearam a ser desfavorveis para o comrcio exterior e as exportaes argentinas diminuram sensivelmente. Porm, sobretudo, declinou a disponibilidade de divisas disponveis em seguida guerra (em parte por problemas decorrentes da inconvertibilidade da libra quando o principal fornecedor eram os Estados Unidos), o que gerou dificuldades aos empresrios industriais para a importao de maquinaria e matrias primas. Evidenciou-se assim a debilidade dos fundamentos da industrializao peronista e o comeo dos ciclos econmicos prprios do desenvolvimento industrial em pases perifricos. A crise de 1949-1952, agravada por duas secas sucessivas, mostrou que havia chegado a hora da austeridade, eixo do Plano Econmico de 1952, entre cujos objetivos estava o de frear a inflao e resolver o problema do dficit no balano de pagamentos. Foi feito um emprstimo no Eximbank, apelou-se para o capital estrangeiro (inclusive concesses petrolferas a empresas norteamericanas) e deu-se nfase produtividade do trabalho. A poltica industrialista, redistributiva e de maior autonomia econmica levada a cabo pelo peronismo se viu possibilitada por um cenrio internacional particular. O papel da Europa, sobretudo da Gr-Bretanha, foi afetado pelas nacionalizaes e diminuio do intercmbio comercial, ao mesmo tempo em que na Argentina se debilitavam os grupos da oligarquia favorecidos durante dcadas como scios e intermedirios das diversas potncias europias. No34Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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contexto de um mundo bi-polar, e com a idia de possvel deflagrao de uma nova guerra mundial, que no ocorreu mas deu lugar a vrios episdios blicos (naquele momento o da Coria), a Argentina da terceira posio tentava equilibrar o peso crescente dos Estados Unidos impulsionando o protagonismo da Amrica Latina, tratando de no perder os vnculos com a Europa e acrescentando agora os pases do bloco socialista, com os quais foram sendo estabelecidas relaes diplomticas. No obstante, a confrontao com os Estados Unidos e a afirmao nacionalista foram por alguns momentos deixados de lado, desenvolvendose uma estratgia de negociao mais pragmtica. Isso se pode observar, fundamentalmente, a partir da segunda Presidncia de Pern, quando paralelamente mudana de orientao econmica produziu-se uma aproximao com os Estados Unidos, embora tambm se tenha tentado recriar o ABC, mediante acordos com o Chile e o Brasil (neste ltimo caso, frustrado) e realizou-se o primeiro tratado comercial de um pas latino-americano com a Unio Sovitica. De todo modo, em setembro de 1955, e no quadro de um enfrentamento crescente com a Igreja Catlica e setores da oposio, que reprovava a existncia de um Estado onipresente e a crescente restrio das liberdades pblicas, alm a ao de outras foras polticas, Pern se viu retirado do poder por um golpe de Estado cvico-militar, embora contasse ainda com amplo apoio popular. Esse fato inaugura uma etapa de instabilidade poltica na Argentina, que levaria finalmente ditadura militar de 1976. Essa instabilidade se devia em parte ao pndulo econmico que continuava sem soluo durante esses 20 anos. Depois da queda de Pern, entre 1955 e 1976 sucederam-se perodos de avano da indstria e outros de estancamento, produzidos por polticas de estabilizao que favoreciam os setores agro-exportadores atravs dos conhecidos ciclos de stop and go. Na etapa de auge, diante do aumento da produo industrial vinculada ao consumo local, incrementavam-se as importaes, para comprar bens de capital e insumos bsicos, e reduziam-se as exportaes, devido maior demanda interna originada pela elevao dos salrios reais e dos nveis de renda. Mas o dficit da balana comercial e a reduo de divisas levavam a uma desvalorizao que provocava aumento dos preos dos produtos agrcolas exportados e dos insumos importados. Tudo isso se traduzia em crise do setor externo, inflaoDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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e polticas monetrias restritivas. A disputa inter-setorial se expressava, alm disso, em sucessivos golpes de Estado. Durante o breve governo da chamada Revoluo Libertadora, buscou-se a desperonizao da sociedade argentina, com a proscrio do partido ento majoritrio. Em matria econmica foram adotadas medidas de liberalizao da economia com o objetivo de incorporar o pas ao mercado internacional. O governo aderiu ao FMI e aos organismos financeiros internacionais, coisa a que se recusara o peronismo, e reduziu-se em grande medida a interveno do Estado na economia nacional. Em resumo, a Revoluo Libertadora significou um retorno ortodoxia econmica. A poltica exterior e a insero internacional no perodo 1955-1966 se mesclaram com os vaivns polticos e com os golpes de Estado. O golpe de 1955 aproximou a Argentina das linhas de poltica exterior impulsionadas pelos Estados Unidos para todo o hemisfrio no quadro da Guerra Fria. Em troca, a partir de 1958, o governo de Frondizi, apoiado nas eleies pelo peronismo proscrito, reorientou a poltica exterior em funo de seu projeto desenvolvimentista. Foi lanada uma nova poltica econmica que procurava fazer decolar as indstrias bsicas (energia, ao, qumica, papel, maquinaria e equipamento, veculos automotores) para o que era fundamental o abastecimento petrolfero e a tecnficao da agricultura. A fim de alcanar esses objetivos o governo resolveu apelar para o capital estrangeiro, sancionando as leis de Radicao de Capitais Estrangeiros e de Promoo Industrial, e assinando contratos petrolferos polmicos com empresas norte-americanas. O projeto desenvolvimentista, inspirado nas idias de Rogelio Frigerio, concordava de fato com os planos de grandes empresas transacionais de expanso e investimento na Amrica Latina. Isso permitiu vigoroso crescimento do setor industrial e na altura de 1962 conseguiu-se o auto-abastecimento de petrleo. Para Frondizi, porm, o custo poltico foi demasiadamente elevado (perdeu o apoio do sindicalismo peronista com suas polticas de estabilizao, distanciou-se do apoio de setores polticos e teve de enfrentar posicionamentos militares) e terminou em sua deposio aps haver aceito, em eleies parciais, a participao eleitoral do peronismo. Sua poltica exterior, baseada na inevitabilidade da coexistncia pacfica, esteve sujeita a controvrsias. Melhorou as relaes com os Estados Unidos e36Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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buscou tambm maior diversificao das relaes internacionais, especialmente com a Europa Ocidental e a Unio Sovitica. Deu nfase, igualmente, a uma aproximao com o Brasil, por meio do Tratado de Uruguaiana formado com o Presidente Quadros, criticou a Aliana para o Progresso e teve uma atitude compreensiva em relao a Cuba, negando-se a seguir os Estados Unidos em sua proposta de expulsar esse pas da OEA e recebendo em Buenos Aires a visita de Che Guevara, fato rapidamente divulgado e que causou agitao entre os militares. Essa poltica ambivalente, que suportou diversas conspiraes militares, resultou finalmente na queda do governo mediante outro golpe de Estado, dando lugar ao breve governo de Guido, poltico que se prestou ao papel de testa de ferro dos golpistas e cuja equipe de economistas liberais tentou retornar sem xito a medidas econmicas ortodoxas em meio a uma profunda crise do setor externo, enquanto em poltica exterior acatava-se novamente a liderana norte-americana. O governo seguinte, eleito com proscrio do peronismo, foi o do radical Arturo Illia, que adotou, ao contrrio, uma poltica nacionalista moderada cujos objetivos eram limitar a presena do capital estrangeiro (anulou os contratos petrolferos firmados por Frondizi), estimular o mercado interno (houve aumentos salariais, impostos s importaes e reduo das tarifas dos servios pblicos) e redistribuir rendas. Illia contou com boa conjuntura econmica grandes exportaes e balana comercial positiva o que permitiu reduzir a dvida externa e dinamizar a economia. Procurou tambm abrir novos mercados, como o chins. Tudo isso, no entanto, de nada adiantou, porque o governo radical era politicamente dbil e os militares terminaram por derrub-lo em 1966 com novo golpe, liderado pelo General Ongana, que se auto-denominou Revoluo Argentina. A fim de manter certa retrica democrtica da Aliana para o Progresso, o Departamento de Estado no apoiou imediatamente a nova ditadura, embora nas foras golpistas houvesse hegemonia de setores pr-norte-americanos. De todo modo, do ponto de vista poltico os militares se propunham a disciplinar a sociedade argentina aderindo Doutrina de Segurana Nacional, impulsionada pelos Estados Unidos em toda a Amrica Latina e que tinha por principal objetivo combater o inimigo ideolgico interno.Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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No terreno econmico, no entanto, existia forte tenso entre duas alas no interior do governo: uma mais corporativa e desenvolvimentista e outra liberal. Esta ltima acabou por impor-se em dezembro de 1966 por meio da nomeao para Ministro da Economia de Adalbert Krieger Vasena, economista muito vinculado aos grandes bancos e empresas multinacionais, que aprofundou a modernizao industrial mediante novos investimentos de capitais externos. Sem superar alguns de seus principais problemas, a economia argentina cresceu e o setor industrial comeou a exportar seus produtos, mas a instabilidade poltica, engendrada desta vez pela radicalizao de setores populares e revoltas operrias e estudantis, como ocorreu no cordobazo, levaram renncia do Presidente em 1970, substitudo por pouco tempo pelo General Levingston e pouco depois pelo General Lanusse, at que o governo militar chegasse ao fim em 1973, quando o peronismo voltou ao poder. No obstante, nos ltimos anos do regime militar a poltica exterior foi sacudida pelo abandono da idia de fronteiras ideolgicas, que caracterizara a gesto de Ongana, pelo estabelecimento de relaes com a China Popular e Cuba e a assinatura de um convnio comercial com a Unio Sovitica. Entre os fatores que impulsionavam essas mudanas podem-se mencionar os interesses agro-exportadores, afetados pelas restries que encontravam nos mercados mundiais. Durante o terceiro governo peronista, entre maio de 1973 e maro de 1976, com o breve e mais radical governo de Cmpora, e em seguida o regresso de Pern ao poder, pretendeu-se estimular novamente uma poltica econmica de busca do pleno emprego e da redistribuio de rendas, por meio do chamado Pacto Social, sob a conduo do Ministro da Economia, Jos Ber Gelbard. No obstante, aps certo xito inicial sobreveio um situao crtica: a um contexto externo muito negativo crise do petrleo, queda dos termos de troca, protecionismo europeu acrescentou-se um agudo conflito poltico interno. Este se caracterizou pela existncia de movimentos guerrilheiros de esquerda e foras para-militares de direita, sustentadas por outro ministro, Jos Lpez Rega, com uma srie de aes armadas, sequestros e assassinatos, e com desrespeito s condies do acordo por parte dos empresrios e dos prprios sindicatos. Tudo isso levou ao desmoronamento do mencionado Pacto, para o que contribuiu tambm a morte de Pern, em junho de 1974. Um ano mais tarde, com o dbil governo de Isabel Pern, o Ministrio da Economia foi38Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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entregue a Celestino Rodrigo, que desvalorizou fortemente o dlar, provocando um choque hiper-inflacionrio, o chamado Rodrigazo. Mas a resistncia sindical provocou a queda do Ministro e os salrios recuperaram parte de seu valor. Os meses seguintes acarretaram o desgaste do governo e a preparao de um golpe anunciado. Quanto poltica exterior, na primeira etapa deste breve perodo peronista, especialmente com Cmpora e Pern, e mais alm das disputas internas, buscou-se diversificar as relaes econmicas e diplomticas, sobretudo com o bloco de pases do Leste. Realizaram-se importantes vendas a Cuba, outorgando-se generosos crditos e procurando ajudar esse pas diante do bloqueio norte-americano. Tambm se aprofundaram a relaes com a Unio Sovitica, para onde foi enviada uma importante misso encabeada por Gelbard. Mas essas polticas comearam a ser abandonadas aps a morte do lder popular, no governo de sua esposa Isabel, com a crescente influncia de Lpez Rega e da direira peronista e o agravamento das dissenses dentro do partido no poder. Do ponto de vista econmico e com uma viso de longo prazo o balano desse perodo de industrializao que durou mais de 40 anos foi, no entanto, positivo. Entre 1949 e 1974, o PIB argentino cresceu cerca de 127% e seu PIB industrial 223%, enquanto que o PIB per capita aumentou em 42%. Por outro lado, o nvel de endividamento externo era baixo, o desemprego no passava de 6% em mdia e a participao dos assalariados na renda nacional se aproximava de 40%. Com intermitncias, a poltica exterior manteve, por sua vez, em maior ou menor medida, posies relativamente autnomas, salvo nos perodos da Revoluo Libertadora, Guido e Ongana.

IV. A etapa de endividamento externo e auge da atividade de rendimentos financeiros. A ditadura militar e o retorno democracia. O realismo perifrico. A crise econmico-poltica de 2001-2002O golpe militar de maro de 1976 produziu uma transformao substancial na estrutura econmica argentina. O processo de substituio de importaes foi encerrado e iniciou-se um novo modelo baseado na acumulao de rendimentos financeiros e em uma reprimarizao daDiplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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economia. A principal forma pela qual se instalou esse modelo, que afetou e at hoje ainda afeta o desenvolvimento dos pases latino-americanos, foi por meio do endividamento externo, facilitado pela ampla disponibilidade de liqidez internacional e pelo carter transnacional que as instituies bancrias passaram a adotar. A crise econmica mundial deflagrada nos anos 70, primeiro devido queda do dlar, que se desvinculou do ouro, e pelo aumento dos preos do petrleo mais tarde, originou a existncia nos pases centrais de grandes massas disponveis de divisas em busca de maiores rentabilidades e dispostas a colocarse em outras regies a baixas taxas de juros e com finalidades especulativas. O endividamento criado dessa maneira contribuiu para que as ditaduras militares do sul do continente, como as de Pinochet e Videla, pudessem financiar as primeiras experincias de polticas econmicas neoliberais no mundo. Assim, em 1980 o total da dvida externa da Amrica Latina j ascendia a mais de 200 bilhes de dlares, sendo a Argentina o terceiro pas mais endividado, logo depois do Brasil e do Mxico. As polticas do governo militar do perodo 1976-1983 produziram uma srie de mudanas drsticas na sociedade argentina. Esse projeto tinha determinantes socio-polticos e econmicos. Por um lado, propunha-se a inclinar o pndulo poltico em favor das elites agrrias e de grandes grupos econmicos locais e intermedirios de capitais externos, cerceando a indstria nacional e o mercado interno, sede da fora do movimento operrio e dos setores empresariais partidrios do nacionalismo econmico e base principal de sustentao das alianas populistas que tinham contribudo, segundo os mentores ideolgicos do novo esquema, para a radicalizao de vastos setores da populao. Por outro lado, o Ministro Martinez de Hoz procurou readaptar a economia no quadro de um tipo de diviso internacional do trabalho que se apresentou como um retorno s fontes: a Argentina aberta ao mundo da poca agro-exportadora que a gerao de 1880 havia construdo. A liberalizao dos movimentos de fundos e das taxas de juros provocou uma mudana na rentabilidade dos diversos setores da economia, prejudicando as atividades produtivas e alentando a especulao. Alm disso, favoreceu-se o processo de fuga de capitais: entre 1976 e 1983 saram do pas 28 bilhes de dlares. Em suma, o governo militar produziu uma transformao profunda das regras de funcionamento do sistema financeiro, uma abertura irrestrita ao mercado internacional e um acelerado processo de desindutrializao. O endividamento externo tinha vrias causas: a especulao financeira, os40Diplomacia, Estratgia & poltica n 10 outubro/DEzEmbro 2009

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auto-emprstimos, os gastos militares e a corrupo. Grande parte desse endividamento era privado e foi beneficiado, prximo ao final do regime militar, com um seguro de cmbio que o transformou em dvida pblica. Com o retorno democracia houve uma demanda judicial denunciando a ilegitimidade de grande parte do endividamento nesse perodo e a deciso do juiz federal a acolheu, embora os culpados no pudessem ser indiciados. No plano das relaes internacionais, gerou-se durante o regime militar um novo tipo de relaes triangulares: com os Estados Unidos no plano financeiro e tecnolgico e com a Unio Sovitica no plano comercial. Este ltimo aspecto ficou em evidncia quando da invaso sovitica do Afeganisto e a negativa do governo Videla a aderir ao embargo de cereais contra a Rssia, impulsionado por Washington, pois aquele pas era o principal cliente da Argentina, com 30% das exportaes totais. Por esse motivo alguns qualificam de heterodoxa a poltica exterior da ditadura em relao a outros regimes militares latino-americanos, como o chileno. Na realidade, a aparente contradio de um governo que se definia como ocidental e cristo e o aprofundamento das relaes econmicas com a principal potncia inimiga se explica pela dualidade dos interesses econmicos dominantes, ligados financeira e ideolgicamente aos Estados Unidos, mas influenci