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REVISTADEFINANÇASPÚBLICASEDIREITOFISCALAno 4 · Número 1 · primAverA

ARTIGOSCOMENTÁRIOS DE JURISPRUDÊNCIARECENSÕESNA WEBCRÓNICA DA ACTUALIDADE

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ÍNDICE

Editorial – Eduardo Paz Ferreira ......................................................... 9

Convidado de Primavera – José Xavier de Basto ................................. 13

ARTIGOS

Daniel Taborda e António Martins – Os donativos em espécie no âmbitodo mecenato ............................................................................................. 25

Clotilde Celorico Palma – O Livro Verde sobre o Futuro do IVA– Algumas reflexões ............................................................................... 47

Celeste Cardona – Contribuição Extraordinária sobre o sector Bancário 81

Manuela Duro Teixeira – A Tributação da Banca em Tempos de Crise . 113

Joaquim Freitas da Rocha – Finanças públicas e pós ‑modernidade.O Direito Financeiro como desvio à natureza principiológica e juris ‑prudencialista do Direito da União Europeia ......................................... 143

Guilherme W. d’Oliveira Martins e Maria d’Oliveira Martins– A reforma da Lei de Enquadramento Orçamental e as novas regrasfinanceiras .............................................................................................. 153

Rogério M. Fernandes Ferreira e Manuel Teixeira Fernandes– O novo código dos impostos especiais sobre o consumo ................... 175

Bruno Mestre – Reflexões críticas e comparadas sobre o Código Con-tributivo .................................................................................................... 183

João Félix Pinto Nogueira – A Dupla Residência Fiscal de Pessoas Singu‑lares Enquadramento da questão nos planos interno, europeu e internacionalà luz da recente orientação do Supremo Tribunal Administrativo .............. 209

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6Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Nuno de Oliveira Garcia e Rita Carvalho Nunes – Inspecção TributáriaExterna e a Relevância dos Actos Materiais de Inspecção ...................... 249

JURISPRUDÊNCIA

Rui Laires – Localização das aquisições intracomunitárias de bens noEstado membro de registo do adquirente (Comentário ao Acórdão doTJUE de 22 de Abril de 2010, processos C ‑536/08 e C ‑539/08, casos Xe Facet) ..................................................................................................... 271

Isaque Ramos – Comentário ao Acórdão do Tribunal Central Admi -nistrativo Sul, de 25 de Maio de 2010, Processo n.º 03822/10 ................ 287

Nuno Cunha Rodrigues e Guilherme W. d’Oliveira Martins– A propósito visto prévio no endividamento municipal (Comentário aoAcórdão n.º 39/2009 – 1.ª secção do Tribunal de Contas) ....................... 297

Gustavo Courinha – Simulação absoluta de negócio jurídico e Impostodo selo (Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de12 de Janeiro de 2011 – Processo n.º 766/10) .......................................... 309

Nuno Oliveira Garcia e Andreia Gabriel Pereira – Comentário aoAcórdão da 2.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, processon.º 0624/10 – Relator: Isabel Marques da Silva ....................................... 313

Síntese de acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia emmatéria fiscal do trimestre, por Clotilde Celorico Palma e GustavoCourinha ................................................................................................... 319

Síntese de acórdãos do Tribunal Constitucional do trimestre por Gui ‑lherme W. de Oliveira Martins e Ana Rita Chacim ................................. 325

Síntese de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo do trimestrepor Ana Leal e Nuno Oliveira Garcia ...................................................... 329

Síntese de acórdãos do Tribunal de Contas do trimestre por AlexandraPessanha e Nuno Cunha Rodrigues ......................................................... 341

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7Índice

RECENSÕES

Russian Bears and Somali Sharks. Transitions and other Passagese The Charm of Latin America. Economic and Cultural Impressionde Vito Tanzi, por Eduardo Paz Ferreira .................................................. 351

O Nó Górdio da Economia Portuguesa de Vitor Bento, por MiguelMoura e Silva ........................................................................................... 355

Uma tragédia Portuguesa de António Nogueira Leite (com Paulo Ferreira),por Nuno Cunha Rodrigues ..................................................................... 359

Lições de Impostos sobre o Património e do Selo de José Maria Pires,por Guilherme W. d’Oliveira Martins ..................................................... 361

O Ónus da Prova no Direito Fiscal de Elisabete Martins, por NunoOliveira Garcia ........................................................................................ 365

Publicações Recentes Por Marta Caldas ..................................................................................... 367

NA WEB

Visita ao site do IDEFF por Mónica Ferreira .......................................... 371Visita ao Blogue Visto da Economia por Nuno Cunha Rodrigues ......... 375

CRÓNICA DE ACTUALIDADE

Ponto de situação dos trabalhos na União Europeia e na OCDE– Principais iniciativas entre Novembro de 2009 e Janeiro 2010por Brigas Afonso, Clotilde Palma e Manuel Faustino ........................... 379

1. Fiscalidade Directa ............................................................................. 3792. Imposto sobre o Valor Acrescentado .................................................. 3873. Impostos especiais de consumo harmonizados, imposto sobre veículos

e união aduaneira ............................................................................... 390

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8Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Conferência Portugal 2011. Vir o Fundo ou ir ao fundo?, por EduardoPaz Ferreira .............................................................................................. 393

Conclusões da Conferência Internacional sobre a influenciada conta ‑bilidade na fiscalidade portuguesa (IDEFF/OTOC), por AmândioSilva e Avelino Antão ............................................................................... 399

As Parcerias Público ‑Privadas e as Contas Públicas, por AlexandraPessanha .................................................................................................. 407

Jubilação do Juiz Conselheiro Freitas Pereira, por Eduardo PazFerreira .................................................................................................... 409

Jubilação do Juiz Conselheiro Raul Esteves, por Eduardo Paz Ferreira 413

António Brigas Afonso Director ‑geral das Alfândegas e dos ImpostosEspeciais sobre o Consumo, por Clotilde Celorico Palma .................... 415

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1. Mais de vinte anos atrás, a queda do Muro de Berlim abriu um período de profunda esperança e de optimismo generalizado quanto ao Mundo melhor que iria ser construído. Sem esquecer o inestimável valor da instalação de democracias (ainda que, em alguns casos, imperfeitas) em lugar das ditaduras que oprimiram a Europa de Leste, os resultados estive‑ram longe de corresponder às expectativas: os conflitos multiplicaram -se, o mundo tornou -se um sítio mais perigoso para viver, as desigualdades e conflitos internacionais, ou no seio dos próprios países, permaneceram como questões não resolvidas.

A primeira década do século XXI encerrou ‑se sob a pressão da crise económica e financeira que se continua a fazer sentir, particularmente na União Europeia, e sob a progressiva consciência de que um conjunto de Estados emergentes ganha um papel de relevo no sistema económico internacional, sem que se tenha ainda descoberto a melhor forma de lidar com essa realidade que nos desafia.

Agora que a televisão e a Internet esbateram quaisquer barreiras geográficas, a imagem a marcar este início de década é a revolta popular num conjunto de países árabes, bem como a determinação e coragem de populações tão longamente oprimidas.

Entre nós, o persistente problema do desemprego e o modo como ele atinge especialmente os mais jovens começa a criar um ambiente de des‑conforto, magistralmente traduzido pelo grupo Deolinda, um fenómeno impar de capacidade de apreender a nossa realidade e com ela brincar ou contra ela se erguer.

A essas populações que lutam pela liberdade e pela justiça social e a estes jovens que se debatem com barreiras de indiferença e fatalismo, é

EDITORIALEduardo Paz Ferreira

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preciso transmitir uma mensagem clara de que vale a pena lutar pela liber‑dade e que vale a pena estudar e empenhar ‑se civicamente. Não podemos faltar a mais este encontro que a história connosco marcou.

A necessidade de refazer a ordem económica internacional e de por termo à tibieza do G ‑20 é patente, assim como é urgente a necessidade de uma profunda alteração nos padrões éticos, políticos e económicos por‑que nos norteamos.

A experiência da União Económica e Monetária, que alimentou sonhos de uma prosperidade indefinida, de nada serviu para combater a crise económica quando ela eclodiu, antes tendo sido o congelamento temporário de algumas das suas regras mais restritivas que impediu que a crise se agravasse ainda mais.

O regresso às receitas de austeridade começa a provocar as con‑sequências esperadas no plano do desemprego e da desprotecção social. A necessária ousadia que a Europa deveria demonstrar falhou totalmente, cedendo passo a hesitantes jogos de interesses, que apenas agravam a situação com que são confrontados os elos fracos da União. O regresso à velha ortodoxia aparece como algo de incompreensível, justificando, porventura, a posição daqueles que entendiam que mais valia que a crise tivesse atingido uma dimensão bem maior, para originar um processo de destruição criativa nas nossas sociedades.

Impressiona, especialmente, a forma como os responsáveis pela crise saíram intocáveis e se vangloriam até das suas proezas, como se pôde ver no recente encontro de Davos. A sociedade do consumo e da abundância das últimas décadas persiste, talvez com um número menor de beneficiá-rios, mas com a mesma capacidade de sedução.

Num livro escrito ainda bem antes da crise – A Velha Europa e a Nossa -, Jacques le Goff, sintetizava a situação em termos que, paradoxal‑mente, parecem mais actuais do que nunca, ao escrever:“ ... A Europa do século XIII e, mais tarde, a do século XIX lançaram ‑se desvairadamente ao lucro e à riqueza, em especial à riqueza monetária. Uma vez mais, as forças morais souberam limitar o apetite e as devastações do dinheiro. De uma maneira geral, a economia, que não existia como domínio próprio, como força reconhecida no passado da humanidade e, em especial no da Europa, tende actualmente a dominar tudo. Não só os Estados e os indiví‑duos parecem abdicar perante forças económicas obscuras, pretensas leis económicas, mas também a ciência económica e a escuta servil da qual

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esses Estados se colocaram, não soube até hoje analisar e ainda menos fazer recuar as crises e a sua manifestação mais desastrosa, o desemprego. A Europa deve dar ao mundo o exemplo de repor no lugar a economia e os economistas”.

Aqueles que acreditam num sistema capitalista que incorpora preo‑cupações de justiça e sólidas regras morais - impostas se necessário pelos poderes públicos ‑ têm à sua frente uma luta dura, mas decisiva, para mos‑trar aos que lutam pela liberdade que ela é a condição para viabilizar a justiça social. Baixar braços seria a pior atitude.

Na Revista, como no IDEFF não os baixaremos e, agora que entra‑mos no quarto ano de publicação, a todos garantimos que continuaremos a lutar pelo debate intelectual e cívico. As conferências Portugal 2011: Vir o Fundo ou ir ao Fundo e As Novas Vestes da União Europeia são testemunho disso mesmo.

2. Apraz ‑me, especialmente, ter como convidado deste número comemorativo José Xavier de Basto, mestre ímpar da fiscalidade e res‑ponsável pelo despertar de tantas vocações nesta área.

Nunca Xavier de Basto nos faltou com a sua ajuda e colaboração. O texto que agora se publica tem origem no Congresso de Direito Fiscal organizado pelo IDEFF e pela Almedina, para o qual desafiei um naipe invulgar de personalidade para debater o tema Mitos e Paradoxos da Jus‑tiça Tributária, evocando o grande economista italiano Luigi Einaudi.

Neste texto, Xavier de Basto, com a sua profunda erudição, introduz--nos no fascinante mundo das ciências das finanças italianas, relê o grande mestre liberal e actualiza a obra, questionando a realidade actua‑lidade. Que melhor poderíamos querer para um número de aniversário?

Neste número encontrarão, aliás, as habituais secções, plenas de actualidade e análise qualificada e as mais relevantes notícias desta área.

Continuaremos juntos em mais um ano da Revista.

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MITOS E PARADOXOSDA JUSTIÇA TRIBUTÁRIAJosé Xavier de Basto

1. Os organizadores deste Congresso escolheram como tema da última sessão a justiça fiscal e quiseram dar -lhe o título de um livro clássico de Luigi Einaudi, publicado em 1938 – Miti e paradossi della giustizia tributaria.

Frequentei esse livro, e outros do mesmo autor, quando, em 1970, estudei em Roma. Embora então já se começasse a notar a tendência, que depois se haveria de acentuar, para dar prevalência aos aspectos de eficiên‑cia económica sobre os aspectos de equidade no tratamento das questões fiscais, ainda se discutiam, por vezes empenhadamente, ao modo italiano, algumas dos temas, míticos e paradoxais, que tanto haviam ocupado as escolas italianas de finanças públicas e de direito tributário.

À distância de 72 anos, vale a pena reler Einaudi e aos organizado‑res deste Congresso fico a dever a oportunidade que me deram de fazer essa releitura.

Vários ensinamentos válidos se podem ainda retirar da sua obra e hoje, tal como então, continuam a existir mitos e paradoxos sobre o real conteúdo da justiça tributária; porventura diferentes dos que o grande Mestre assinalou no final dos anos 30, mas mitos e paradoxos do mesmo modo.

Que ensinamentos? Que novos mitos e paradoxos?

2. Como bem se sabe, o background teórico de Luigi Einaudi é o de um liberista, contrário ao excessivo intervencionismo estatal, confiante no papel regulador do mercado e da eficácia da concorrência. Ao Estado compete estabelecer as regras dentro das quais os agentes económicos agem livremente. Traçar esses limites e garantir que funcionam constitui

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14Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

o método liberal por que Einaudi sempre se bateu. Nas finanças públi‑cas, Einaudi, na esteira do seu mestre Antonio De Viti De Marco, e sob influência do pensamento anglo -saxónico, defendia a concepção do cha‑mado Stato cooperativo, um conceito certamente hostil ao Estado totalitá‑rio, que foi o Estado fascista de que Einaudi foi opositor e que lhe valeu, nos anos quarenta, um período de exílio na Suíça. Ao Stato cooperativo correspondia uma economia assente na concorrência, enquanto no seu contrapolo estava o Estado baseado na coerção, o dito Estado monopo‑lista (Stato monopolista).

No Estado cooperativo, o Estado é factor de produção e o imposto constitui a remuneração desse factor produtivo. A ideia do Estado como factor de produção, que era também originária de De Viti De Marco, per‑mitia uma consideração simultânea da despesa pública e dos impostos, que sempre foi mais cultivada no mundo anglo -saxónico do que no con‑tinente europeu1. Einaudi criticava assim a análise tradicional dos efeitos dos impostos, quando desconsideram a produtividade da despesa pública e o uso que o Estado faz das receitas fiscais. Queria -se uma visão integrada de ambos os lados dos orçamentos públicos, que, como bem se sabe, era corrente no pensamento anglo -saxónico e aí estava no cerne do mains‑tream das concepções teóricas das finanças públicas.

3. Estou porém afastar ‑me do foco desta sessão, que é a justiça tri‑butária.

Não seria Einaudi porventura um “campeão” da justiça tributária. O próprio título da sua obra, aqui evocada – Mitos e paradoxos… – de algum modo indicia certa distância das grandes concepções sistemáticas.

Desvalorizava as concepções absolutas de justiça tributária e sobre‑tudo a crença que a ciência económica pudesse determinar o ideal de justiça. Recusando a existência de uma função de bem -estar social ou a famosa igualdade de sacrifícios, que procedia do utilitarismo, Einaudi, como bom “liberista”, preferia o primado das funções individuais de preferência dos indivíduos. Em função dessas preferências dos cidadãos, deveria o Estado decidir o volume dos bens públicos a produzir e o mon‑tante dos impostos a cobrar.

1 A concepção do Estado como factor de produção foi vivamente contestada pelo mais eminente discípulo de Einaudi, Mauro Fasiani.

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15Mitos e paradoxos da justiça tributária

Ironizava sobre os “doutrinários” que descreve assim:

“Apenas descobre um instituto que lhe pareça bom, escrito em leis russas ou neo -zelandeses ou peruanas, o doutrinário imediatamente treme: como ousamos nós permanecer atrás na via do progresso fiscal em comparação com povos vindos ao mundo tantos anos depois de nós? O doutrinário lê num livro qualquer ou imagina uma tabela nova de taxas do imposto de rendimento, que lhe parece mais bela e mais racional do que a vigente, melhor ainda se sustentada por uma longa demonstração em símbolos algébricos e logo pretende que o Ministro das Finanças a faça sua!”

Para Einaudi, a justiça tributária não é questão de alta ciência, mas, para exprimir a ideia com as suas próprias palavras, de “cuidadosos modestos raciocínios sobre os efeitos concretos de diversos tipos possí‑veis de impostos sobre a conduta humana.” (accurati modesti ragiona‑menti intorno agli effetti concreti dei diversi tipi di imposta sulla condotta umana). Nada pois de grandes sistemas de ideias de justiça, mas pequenos passos tendo em conta os indivíduos em concreto. Uma concepção que, em suma, parece de algum modo precursora, com 70 anos de distância, das mais recentes ideias de justiça propostas por Amartya Sen.

Isso não impediu Einaudi de defender alguns teoremas clássicos sobre a justa tributação, como é o caso da teoria da dupla tributação da poupança, que havia sido proposta por Stuart Mill e que continuou a ter seguidores até aos nossos dias, sem nunca ter sido realizada na prática. Mais um mito da justiça tributária…

É igualmente de Einaudi a defesa do rendimento normal como base de incidência dos impostos sobre as empresas. Ideia que, nos tem‑pos mais recentes, tornou a merecer alguma atenção, atendendo à difi‑culdade de determinação exacta do rendimento real das actividades produtivas.

Também Einaudi, à maneira de Adam Smith e certamente sob sua inspiração, criou quatro máximas que devem orientar a política fiscal do Estado liberal.

A primeira, muito “smithiana”, é a da certeza e simplicidade do imposto. Certeza que Adam Smith considerava inclusivamente mais importante do que a justiça.

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16Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

A segunda, saborosamente formulada no seu próprio idioma, é a de que os impostos devem incidir “sul godimento e non sulla fatica”2.

A terceira regra ou máxima aponta para a graduação dos impostos de modo a atenuar a desigualdade na distribuição das fortunas, o que con‑tradiz a ideia simplista, que por vezes por aí se espalha, de que o pensa‑mento liberal, não desvirtuado, desconsidera a justiça distributiva. Bem ao invés, a Einaudi preocupava a “desigualdade nos pontos de partida” (disuguaglianza nei punti di partenza), que considerava o principal defeito das sociedades contemporâneas.

Finalmente, a quarta máxima requer que os impostos devam pro‑porcionar ao Estado os meios para produzir os bens públicos gratuitos à disposição de todos, sem desincentivar a poupança e o investimento.

4. Que mitos e que paradoxos se podem apontar à justiça tributária nos dias de hoje, 72 anos passados sobre a publicação do livro de Einaudi?

Serão muitos por certo. Vou tentar pôr em relevo alguns.Um primeiro mito na política tributária é de que a fiscalidade está

ao serviço de múltiplos objectivos e que é, de algum modo, possível conciliá -los. Satisfazer as necessidades financeiras do Estado, ser justo, tratando igualmente os iguais e discriminando de forma a corrigir as desi‑gualdades, ser competitivo com os sistemas fiscais estrangeiros, contribuir para o crescimento económico e para a sustentabilidade ecológica, ser simples…eis um conjunto de missões atribuídas ao sistema fiscal. Embora

2 Uma formulação desta mesma ideia, também muito expressiva, mas agora na nossa língua, em português bem vernáculo, colhi -a numas lições de Economia Política, do lente coimbrão do século XIX Adrião Forjaz de Sampaio. Segundo o Autor, o imposto deve crescer na razão inversa das necessidades e na directa das comodidades e sobejo. E explica: com um imposto proporcional (a décima, por exemplo) alguns contribuintes “cortarão pelo estrito necessário, outros pelos cómodos, outros apenas pelo sobejo”. Veja‑‑se Adrião Pereira Forjaz de Sampaio, Elementos de Economia Política, segunda edição, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1841, p. 159. Este mesmo lente, discorrendo sobre as dificuldades financeiras do Estado português do seu tempo, escreveu o que se segue, que, se descontarmos alguns termos que já se não usam e a ortografia oitocentista, man‑tém notável actualidade: “Os clamores que de ordinário se levantão contra os agiotas, que contractão com os governos, em razão das usuras, que lhes exigem, deverão cessar para quem reflectir sobre as circunstâncias, que determinão o juro dos cabedais e diffi‑culdades de pagamento, que apresenta um governo summamente endividado” (ibidem, p. 170, nota 2).

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17Mitos e paradoxos da justiça tributária

seja reconhecido geralmente que há compromissos a fazer, já que os objec‑tivos são conflituantes, raramente se reconhece que, radicalmente, mais do que compromissos, há frequentemente que sacrificar certos objectivos em detrimento de outros, mais prementes, não sendo sustentável a ideia de que é possível sempre prossegui -los todos. Mais do que pôr em relevo quais os objectivos que se prosseguem, melhor será que, no discurso polí‑tico, se diga quais os objectivos que se vão sacrificar. Porque, mitos à parte, é preciso sempre sacrificar alguns. O discurso político, porém, nunca, que eu me tenha apercebido, põe a claro esta renúncia deliberada aos objectivos inatingíveis. Em períodos de crise, como os actuais, em que a segurança fiscal do Estado aparece como objectivo primeiro, vai ser necessário sacrificar porventura esta ou aquela dimensão da justiça – quiçá a chamada igualdade vertical – não vai ser possível fomentar esta ou aquela actividade…Não há mal nenhum, bem ao contrário, que se torne o público consciente desta deliberada e necessária renúncia. Continua a confiar -se demasiado, ou a fazer de conta que se confia, no sistema fiscal, como panaceia capaz de curar muitos dos males do Mundo. Ele não foi cons‑truído para isso, nem pode suportar uma tal diversidade de escopos con‑flituantes.

Alguns dos objectivos transformaram ‑se eles próprios em mitos. São tantas vezes repetidos como fundamentais e, todavia, a realidade vai ‑se progressivamente afastando deles.

É o caso da simplicidade do sistema fiscal, que vem de há décadas a ser proposta como objectivo explícito no desenho dos sistemas fiscais, os quais, porém, continuam sempre a complicar ‑se. Atribui ‑se a Einstein a afirmação de que o imposto de rendimento acaba por ser mais complexo do que a sua teoria da relatividade. Há razões que explicam isso. A neces‑sidade de lutar contra a fraude e evasão fiscal, que assume dimensões inter‑nacionais, trouxe para o campo do direito fiscal institutos novos, como sejam as cláusulas anti -abuso, com um cortejo de conceitos indetermina‑dos, que tornam mais incerta a interpretação das regras e, em definitivo, fazem com que o sistema se complique e não pouco.

O mesmo se pode dizer, da equidade tributária, especialmente na sua vertente de equidade vertical. Embora a progressividade na distri‑buição dos encargos fiscais seja larga e pacificamente aceite, tratando--se, pelo menos, como escreveu Musgrave, de uma simples questão de boas maneiras (a question of good manners…) numa sociedade demo‑

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18Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

crática, o que é certo é que os sistemas fiscais concretos não são progres‑sivos. Serão quando muito proporcionais e até muitas vezes regressivos. A progressividade é largamente um mito, mesmo onde mais se julga que ela existe. Parece até que sempre terá sido assim. Há quase 50 anos, em 1961, um especialista americano, Louis Eisenstein, qualificava de mito a pretensa progressividade do sistema fiscal estadunidense: “Our vaunted progression is largely a myth. Only people who work for their income are supposed to pay at the graduated rates – and a large number of them are also methodically excused from this unpleasant obligation3”.

E não se pense que isso se deve só, ou se deve sobretudo, à impor‑tância crescente que os impostos indirectos, de consumo, e em especial o IVA, assumiram nos sistemas tributários dos Estados mais avançados, sobretudo a partir dos anos 80 do século passado. Mesmo sem discutir se, no plano da equidade, o IVA é o “monstro” que por vezes se pinta (talvez aí esteja mais um mito ou paradoxo da justiça tributária…4), é claro que o imposto pessoal de rendimento, na estrutura que hoje predominante‑mente tem, não está moldado para proporcionar a tal pretendida distribui‑ção progressiva dos encargos tributários. A razão é bem conhecida, mas muito frequentemente ignorada, talvez porque o mito atrai mais do que a realidade. E a razão está em que o imposto pessoal de rendimento não é, como o pintam, o imposto único de base alargada, em que todos os rendi‑mentos pessoais são englobados e sofrem o impacto de uma ordem única de taxas progressivas. Não é, em suma, o comprehensive income tax dos

3 Cfr. The Ideologies of Taxation, New York, 1961.4 Não quero com isto dizer que o IVA, mesmo com taxas graduadas, não tenha

uma distribuição regressiva relativamente ao rendimento disponível, mas os seus defei‑tos neste domínio são frequentemente exagerados. Veja -se a este propósito um trabalho recente de João Amaral Tomás, (“Uma taxa única para o IVA em Portugal?”, em Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 3, nº 2, 2010, p. 19 -29) onde se dá conta que os efeitos distributivos do IVA são em geral diminutos e que a graduação de taxas pouco modifica a distribuição da carga fiscal pelos diferentes grupos de contribuintes. O Autor noticia aí vários estudos empíricos portugueses que sustentam essa posição e analisa as vantagens, sobretudo no plano da neutralidade, de um IVA com taxa única. Por outro lado, e é este um ponto frequentemente ignorado, a fraude e a evasão fiscal em IVA não se relacionam com o nível de rendimento dos consumidores: não são sistematicamente os mais ricos que compram sem IVA, em circuitos paralelos, ao contrário do que sucede em imposto de rendimento, onde as possibilidades de evasão são maiores para os grupos de rendimentos mais elevados.

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19Mitos e paradoxos da justiça tributária

manuais, ou o imposto único e progressivo a que se refere o artigo 104º, nº 1 da Constituição. Tende a ser, um pouco por todo a parte, no mundo industrializado, um imposto semi -dual, em que as taxas progressivas aca‑bam por se aplicar apenas, ou quase, aos rendimentos do trabalho e das pensões. Na Escandinávia é já assumidamente um imposto dual. Os ren‑dimentos de capitais estão sujeitos a taxas liberatórias e escapam assim à tabela de taxas progressivas, que só se aplica aos rendimentos do trabalho e das pensões. Num relatório recente, preparado no Ministério das Finan‑ças, sugere -se até, como orientação de reforma fiscal, que o IRS passe a assumir, não envergonhadamente como agora, essa natureza dual.

Esta característica do IRS, que não é de modo nenhum, sublinhe -se bem, uma particularidade do imposto português, obriga a olhá -lo de um modo diferente do que seria razoável se ele reproduzisse o modelo puro do comprehensive income tax. O imposto, tal como existe, está bem longe desse modelo e do modelo constitucional de imposto único e progressivo. Único só o é formalmente, assistindo ‑se até nos tempos mais recentes a uma acentuada tendência para a cedularização. Cada vez mais, mais ren‑dimentos são tratados discriminadamente. Dentro dos próprios rendimen‑tos do trabalho e das pensões começa a haver discriminações. Salários de executivos, ultrapassando determinados limites, pensões considera‑das milionárias recebem ou vão receber taxas diferenciadas, mais altas.

Esta evolução está a ser, a meu ver indesejavelmente, comandada e ampliada por uma reacção imediatista a temas mediáticos. A sociedade em crise tem uma mais aguda percepção da desigualdade de rendimen‑tos e o poder político tende a actuar como um justiceiro tributário, que Einaudi também exautorou. Esse justicialismo é certamente movido pelas melhores intenções, mas origina um paradoxo: na ânsia de melhorar a equidade vertical, esquece -se o princípio mais básico da justiça tributá‑ria, que é o da igualdade horizontal. Pessoas em iguais condições devem pagar impostos iguais – é um simples corolário da proibição da discrimi‑nação, do princípio sacrossanto da igualdade dos cidadãos perante a lei. Por que há -de um executivo de uma grande empresa pagar por uma taxa mais elevada do que um outro trabalhador ou um profissional livre que aufere o mesmo rendimento? Por que há -de o tal detentor de uma pen‑são qualificada de milionária de pagar mais IRS que um trabalhador do activo ou um profissional livre com o mesmo rendimento, mais do que um detentor de dividendos ou de mais -valias do mesmo montante? Não

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20Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

é o IRS, ou deve ser, um imposto único? Não é o princípio da igualdade horizontal, a igualdade entre os iguais, a ideia mais básica e primária da justiça tributária? Serão constitucionais estas discriminações? O justi‑cialismo tributário é uma reacção imediatista que conduz muitas vezes a soluções pouco avisadas. Na ânsia de realizar uma justiça inalcançável, acaba por atropelar princípios. Mas não há nada de novo aqui. Já os roma‑nos diziam: summum jus summa injuria…

A desconsideração da real natureza dos impostos pessoais hodiernos – e a consequente ilusão de que constituem uma boa medida da capaci‑dade económica dos cidadãos – conduz a erros de apreciação das políti‑cas públicas. A recusa, que muitas vezes se ouve, entre nós e não só, de considerar a hipótese de fornecimento gratuito de certos bens públicos apenas aos estratos de rendimentos mais baixos é frequentemente jus‑tificada com a ideia de que, ao invés, deve haver fornecimento gratuito universal, deixando ao sistema fiscal, e, mais intensamente, ao imposto de rendimento a tarefa de corrigir a repartição do rendimento, no sentido de uma maior igualdade ou de menor desigualdade. O problema está em que o imposto pessoal de rendimento tal como existe, incidindo funda‑mentalmente sobre os rendimentos do trabalho e das pensões, e mesmo aí com discriminações positivas e negativas, não está apto para realizar essa correcção. Em IRS um Euro nem sempre é um Euro: às vezes é só meio Euro, outras vezes nem sequer um Euro é, outras ainda é mais do que um Euro; tudo dependendo do tipo de rendimento de que se trata e não apenas do respectivo montante.

É um mito confiar no imposto pessoal de rendimento como métrica dos reais rendimentos pessoais.

5. Sem dúvida que faz falta um índice operacional e credível da capacidade económica dos cidadãos e não só para efeitos tributários. Esse índice não é, todavia, o IRS na sua estruturação actual. E não é fácil segu‑ramente reformar o imposto aproximando -o do modelo de comprehensive income tax, com englobamento da totalidade dos rendimentos e sua submissão à mesma ordem de taxas progressivas. A evolução recente aponta até no sentido oposto, da dualização, e tem sido determinada mais por considerações de eficiência económica do que por considerações de equidade. De onde, porém, não se pode concluir que os sistemas assumida‑mente duais, como o escandinavo, fiquem a perder, no plano da equidade,

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21Mitos e paradoxos da justiça tributária

relativamente aos impostos pessoais, do tipo do nosso IRS, que só nomi‑nalmente são únicos e globais, de base alargada.

Os obstáculos a uma reforma do IRS, no sentido apontado do modelo de comprehensive income tax, seriam por certo muito relevantes e não podem ser desenvolvidos aqui. Considerações de concorrência fiscal e necessidades de atracção de investimento estrangeiro não aconselham a tratar fiscalmente os rendimentos de capitais desalinhadamente com as outras jurisdições.

O englobamento de todos os rendimentos só seria possível, a meu ver, num mundo em que se procedesse a um abaixamento significativo das taxas de tributação e a uma compactação das bases de incidência, com redução ao mínimo dos benefícios fiscais, das deduções e dos regi‑mes especiais. Com alíquotas baixas, bases de incidência alargadas, seria porventura possível fazer coincidir as taxas liberatórias dos rendimen‑tos de capitais com a taxa marginal máxima do IRS, que seria então bem mais baixa do que a actualmente vigente, tornando facultativo o engloba‑mento. Teríamos assim, eventualmente, uma boa aproximação ao modelo do imposto único de base alargada.

A progressividade nominal do imposto apareceria diminuída relati‑vamente à situação presente. Mas só a progressividade nominal, já que a progressividade efectiva poderia até aumentar e, ao menos, teríamos mais próxima da realização a dimensão primária da justiça tributária, que é a igualdade horizontal. É de facto um paradoxo que na busca de conseguir a igualdade vertical se comprometa a realização da igualdade horizontal.

Mas se isto é um paradoxo, superá -lo através de uma reforma que restaurasse o imposto pessoal de rendimento como imposto único e pro‑gressivo, como quer a Constituição, é certamente uma utopia, um mito…

Razão tinha, pois, Einaudi: há mitos e paradoxos na justiça tributária.

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ARTIgOS

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Daniel TabordaAntónio Martins

Os donativos em espécie no âmbito do mecenato

Daniel Taborda Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Oliveira do Hospital

– Instituto Politécnico de Coimbra.Doutor em Gestão de Empresas (Finanças).

Revisor Oficial de Contas Estagiário

António Martins Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Doutor em Gestão. Professor de Fiscalidade.Consultor de Empresas

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26Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

RESUMO:

O regime fiscal do mecenato envolve alguma ambiguidade e inconsistência, compro‑metendo a coesão do quadro legal dos donativos. A avaliação dos donativos em espécie, atribuídos ao abrigo deste regime, suscita várias dúvidas em diversos impostos, merecendo, pois, algumas notas analíticas que visam contribuir para um quadro legal mais preciso.

Palavras ‑chave: MecenatoDonativos em espécieAvaliação

ABSTRACT:

The legal framework of tax benefits on charitable giving has some ambiguity and inconsistencies, compromising the cohesion of philanthropic donations’ regime. In ‑kind gifts evaluation arises some complex questions in different types of taxes. Therefore, it deserves some comments, aimed at to improving its legal system.

Keywords: Tax benefits on charitable givingGifs in ‑kindEvaluation

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27Artigos

1. Enquadramento

O regime legal do mecenato, estabelecido nos art. 61º a 66º do Esta‑tuto dos Benefícios Fiscais (EBF) e no Estatuto do Mecenato Científico (EMC)1, contém algumas imperfeições. Um exemplo paradigmático pode encontrar -se na determinação do valor fiscal dos donativos em espécie.

Segundo o art. 61º do EBF, os donativos mecenáticos podem ser con‑cedidos “em dinheiro ou em espécie” a determinadas entidades expres‑samente previstas na Lei que prossigam actividades consideradas rele‑vantes nas áreas social, cultural, ambiental, desportiva, educacional ou científica. Seria desejável que a avaliação dos donativos em espécie fosse dotada de regras claras e de aplicação generalizada aos vários tipos de mecenato. Porém, tal não acontece. A título de exemplo, o quadro legal do mecenato para a sociedade de informação, que apenas admite donati‑vos em espécie, suscita várias dúvidas e pode conduzir a soluções fiscais de grande subjectividade.

A descrição do mecenato para a sociedade de informação, exclusivo dos sujeitos passivos de IRC, servirá de ponto de partida para apresentar as principais incongruências e limitações da relevância fiscal dos donati‑vos em espécie em sede deste imposto. Adicionalmente, apontam ‑se tam‑bém alguns problemas relacionados com o IRS e IVA.

O objectivo deste texto é, assim, o de procurar contribuir para o aper‑feiçoamento do regime fiscal dos donativos mecenáticos, em particular no que à sua avaliação diz respeito.

2. O mecenato para a sociedade de informação

Quase dois anos volvidos desde a aprovação do Estatuto do Mece‑nato (Decreto -Lei n.º 74/99, de 16 de Março), a Lei n.º 30 -G/2000, de 29 de Dezembro, aditou ‑lhe o mecenato para a sociedade de informação. As

1 É de aplaudir a incorporação do Estatuto do Mecenato no EBF, através da Lei do Orçamento do Estado para 2007, contribuindo para a redução da dispersão da legislação fiscal em Portugal. Fora desta concentração legislativa ficou o EMC, aprovado pela Lei n.º 26/2004, de 8 de Julho, possivelmente por que, para além de incentivos fiscais (capí‑tulo II), acomoda também incentivos não fiscais (capítulo III). Todavia, a linha doutriná‑ria dos benefícios fiscais do mecenato científico é análoga ao preceituado no EBF, com a ressalva do objecto dos donativos e da natureza das entidades beneficiárias.

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dimensões tradicionais do mecenato foram ampliadas e o regime estendeu-‑se à causa tecnológica.

As particularidades do mecenato para a sociedade de informação determinaram que fosse tratado separadamente (actualmente consta do art. 65º do EBF). Na vigência do Estatuto do Mecenato, aproveitava tam‑bém aos sujeitos passivos tributados no seio da categoria B do IRS2. Com a condensação do regime do mecenato no EBF, amputou -se a relevância fiscal dos donativos de bens afectos à actividade profissional daqueles sujeitos passivos, pelo que, actualmente, é um benefício passível de apli‑cação apenas aos sujeitos passivos de IRC.

Em traço geral, o mecenato de informação permite a dedução fiscal dos donativos constituídos por equipamento informático, programas de computadores e formação e consultoria na área da informática, conce‑didos a um conjunto de entidades beneficiárias, previstas no art. 62º do EBF. Trata -se de um benefício fiscal, que assume a modalidade de dedu‑ção ao rendimento em IRC, considerando -se “custos ou perdas do exer‑cício, até ao limite de 8/1000 do volume de vendas ou de serviços presta‑dos, em valor correspondente a 130% do respectivo total (…)” (art. 65º, n.º 1 do EBF).

A propósito das entidades excluídas, não parece vislumbrar -se jus‑tificação razoável para esta discriminação. À primeira vista, pareceu -nos que a actividade prosseguida poderia constituir um critério congruente, na medida em que seria lógico que as entidades contempladas tivessem necessidades informáticas mais prementes do que as outras. Contudo, percorrendo o grupo de beneficiários, abandonámos esta suposição. Que razões determinaram a inclusão como beneficiárias das associações pro‑motoras do desporto em detrimento das Organizações Não Governamen‑tais para o Ambiente (ONGA), quando ambas são elegíveis ao abrigo do art. 62º, encontrando -se no mesmo “patamar hierárquico” em termos de dedutibilidade e de majorações fiscais? Ainda conjecturámos que tal esti‑vesse relacionado com o procedimento administrativo de percepção dos

2 Referimo -nos aos sujeitos passivos que determinam o rendimento líquido com base na contabilidade organizada, não abrangendo aqueles que estão enquadrados no regime simplificado, assim como os que são tributados por via do acto isolado e os que optam pela tributação de acordo com as regras estabelecidas para a categoria A. Saliente ‑se que, apesar de este problema se ter resolvido por si só, não se compreendem as razões para a falta de adaptação do mecenato ao regime simplificado do IRC.

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benefícios fiscais na esfera dos mecenas, mas, contrariamente às primei‑ras, os donativos concedidos às ONGA operam automaticamente, não carecendo de reconhecimento prévio (art. 62º, n.º 10 do EBF).

Outra originalidade deste artigo está patente no seu n.º 4, que acolhe uma exigência inovadora, a qual, bem vistas as coisas, quase ascende à categoria de cláusula anti -abuso. Este preceito recusa a relevância fiscal de equipamentos informáticos doados a “entidades em que os doadores sejam associados ou em que participem nos respectivos órgãos sociais”. Sobre este assunto, importa referir duas notas. Primeiro, não faz sentido circunscrever esta exigência aos equipamentos informáticos, afastando do seu campo de aplicação os programas de computadores e os serviços de formação e consultoria. Segundo, esta limitação não é replicada nas outras categorias mecenáticas, onde, potencialmente, podem surgir os mesmos problemas3.

Muito embora se compreendam as razões subjacentes, não faz sen‑tido incluir esta limitação no regime do mecenato, sobretudo quando, tal como nota Campaniço (2002), este acolhe o associativismo. Com efeito, o art. 62º, n.º 8 do EBF estabelece a aceitação fiscal das “importâncias atribuídas pelos associados aos respectivos organismos associativos a que pertençam, com vista à satisfação dos seus fins estatutários”, limitada ao valor de 1/1000 do volume de negócios e negando ‑lhe qualquer majora‑ção4. Acresce que, nos termos do art. 44º do CIRC, as quotizações a favor de associações empresariais são fiscalmente dedutíveis até perfazerem 2‰

3 Note -se, contudo, que no EMC são excluídos da categoria de mecenas as “pessoas, singulares ou colectivas, relativamente às quais a entidade beneficiária seja economica‑mente dependente, considerando ‑se como tal a titularidade de mais de 50% do capital da entidade beneficiária” (art. 4º, n.º 2, alínea b)) e as pessoas que nela ocupem cargos de direcção ou de administração. Esta segunda restrição revela algumas semelhanças com o regime do mecenato para a sociedade de informação, muito embora neste último seja mais limitativa, porquanto é aplicável aos titulares dos órgãos sociais, que não se esgotam nos membros de direcção ou de administração.

4 Como nota Campaniço (2002), a terminologia “importâncias atribuídas” parece afastar os donativos em espécie, tornando -se incompatível com o recorte normativo apli‑cável às pessoas colectivas. Malgrado a expressão, este preceito comporta aquele tipo de donativos. Este autor sublinha ainda que, na prática, os fins estatutários destes organismos não se acomodam nas actividades visadas pelo regime do mecenato, na medida em que dificilmente consistem “na realização de iniciativas nas áreas social, cultural, ambiental, desportiva ou educacional” (art. 61º do EBF), colidindo com a definição fiscal de donativo.

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do volume de negócios, reconhecendo ‑lhes uma majoração de 50%. Estas diferentes soluções são dificilmente compagináveis num quadro legal que se pretende coerente.

A aceitação fiscal dos serviços de formação e consultoria informáti‑cas constitui uma excepção à regra, fundada no conceito de donativo plas‑mado no art. 940º do Código Civil. Para além do fim desinteressado, sem contrapartidas, a Lei civil faz apelo ao empobrecimento do património do doador. Entende ‑se que o trabalho prestado, muito embora comporte, pelo menos, um custo de oportunidade, não se incorpora nos donativos em espécie com relevância fiscal5.

O problema do trabalho gratuito entronca no voluntariado. Segundo o art. 2º, n.º 1 da Lei n.º 71/98, de 3 de Novembro, o voluntariado é o “conjunto de acções de interesse social e comunitário realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de projectos, programas e outras formas de intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comu‑nidade desenvolvidos sem fins lucrativos por entidades públicas ou priva‑das”. Está subordinado aos princípios da solidariedade, da participação, da cooperação, da complementaridade, da gratuitidade, da responsabi‑lidade e da convergência (art. 6º, n.º 1). Um dos direitos que assiste ao voluntário é o reembolso “das importâncias despendidas no exercício de uma actividade programada pela organização promotora, desde que inadiáveis e devidamente justificadas, dentro dos limites eventualmente

5 É, também, muito controverso o problema dos direitos de crédito sobre a socie‑dade, no âmbito do regime das entradas em espécie para a realização ou aumento do capi‑tal social, previsto nos art. 28º e 89º do CSC (Sá, 2007). Atendendo à noção de contrato de sociedade estabelecida no art. 980º do Código Civil (“aquele em que duas ou mais pes‑soas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resul‑tantes dessa actividade”), a obrigação de contribuir comporta os bens (numerário e espé‑cie) e os serviços. À excepção das sociedades em nome colectivo e em comandita (para os sócios comanditados), o CSC não permite as contribuições de indústria, isto é, de força de trabalho. Não é fácil determinar se esta prerrogativa abrange a entrega de direitos de crédito sobre a sociedade, oriundos dos serviços prestados pelos sócios e não liquidados, distinguindo ‑os do trabalho convencional. Regressando aos donativos, a regra é que o tra‑balho não remunerado se afasta do conceito de donativo. Mas não se vislumbram diferen‑ças substanciais entre a percepção da remuneração, seguida, num segundo momento, da sua restituição sob as vestes de um donativo, e a renúncia a um direito de crédito gerado pelos serviços prestados.

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estabelecidos pela mesma entidade” (art. 7º, n.º 1, alínea j)). O Decreto--Lei n.º 389/99, de 30 de Setembro, que regulamenta esta Lei, estabelece, no seu art. 19º, n.º 1, que, no âmbito de um programa de voluntariado, à excepção daquelas importâncias, o voluntário “não pode ser onerado com despesas que resultem exclusivamente do exercício regular do tra‑balho voluntário nos termos acordados no respectivo programa”. Sobre o reembolso das despesas de deslocação em automóvel próprio, a infor‑mação vinculativa relativa ao processo n.º 7588/05, de 3/5/2006, veio esclarecer que as mesmas são excluídas de tributação em IRS, desde que sejam atribuídas de acordo com o estabelecido no programa de volun‑tariado, estejam devidamente comprovadas, nomeadamente através de mapas de itinerários, e não excedam os limites legais mencionados no art. 2º, n.º 3, alínea d) do CIRS.

O mecenato para a sociedade de informação não engloba o traba‑lho voluntário numa categoria de donativos6. Reitere ‑se que este tipo de mecenato está reservado às pessoas colectivas e o voluntariado é empre‑endido pelas pessoas singulares. Mas, atenta a sua excepcionalidade, a regulamentação dos donativos constituídos por serviços de formação e consultoria informáticas deveria ser densificada, acautelando ambigui‑dades interpretativas. Mostrando preocupação com o desvio à norma e com a sua concretização prática, Campaniço (2002) avança com algu‑mas linhas orientadoras. No plano da quantificação, defende que o preço do serviço corresponde ao seu valor de mercado, devendo estar contabi‑lizado enquanto tal. Aventa ainda que o mecenas deve estar colectado na área da formação ou consultoria informáticas. Subscrevemos a criação de mecanismos que suportem a avaliação do serviço prestado, problema que também tem relevância no âmbito do mecenato científico. Só ficcionando

6 O reconhecimento de benefícios fiscais ao trabalho voluntário, valorando -o como um “donativo de tempo”, encontra limites não só no plano conceptual, como também no plano prático, sobretudo ao nível da respectiva avaliação. Para além destes problemas, importa considerar a sua relação com os donativos em dinheiro. Segundo Andreoni (2006), os resultados da literatura sobre os “donativos de tempo”, ou seja, de trabalho gratuito, não são unânimes quanto à relação estabelecida com os donativos em dinheiro. Este aspecto parece -nos central: dado que os “donativos de tempo” são fiscalmente inócuos, se houver substituibilidade, uma política fiscal que aumente a dedução aplicável aos donativos em dinheiro, reduz os primeiros. Contrariamente, se forem complementares, o efeito do bene‑fício fiscal associado aos donativos em dinheiro terá uma eficácia superior.

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que os serviços prestados são de carácter oneroso se consegue uma base de cálculo objectiva, que previna as indesejáveis manipulações de preço para granjear vantagens fiscais.

É de notar que o EMC prevê o mecenato de recursos humanos, que se consubstancia na “cedência de investigadores e ou especialistas de uma entidade a outra, para o desenvolvimento, em exclusividade, de um projecto de investigação ou demonstração” (art. 2º, n.º 2, alínea c)). Tudo leva a crer que, apesar de o EMC aproveitar também aos sujeitos passivos de IRS, apenas os contribuintes com contabilidade organizada são passíveis de enquadramento neste tipo de mecenato, uma vez que o valor deste recurso cedido corresponde “aos encargos despendidos pela entidade patronal com a sua remuneração, incluindo os suportados para regimes obrigatórios de segurança social, durante o período da respec‑tiva cedência” (art. 11º, n.º 3). Afigura -se -nos que, apesar da ausência de qualquer remissão e da autonomia dos diplomas, estas regras deve‑riam ser aplicadas ao cálculo dos donativos de formação e consultoria na área informática, concedidos no âmbito do mecenato para a sociedade de informação.

No que se refere à avaliação dos donativos de programas de com‑putadores e de equipamento informático (este último definido no n.º 6 do art. 65º do EBF), as ambiguidades persistem. Segundo o art. 62º, n.º 11 do EBF, “no caso de donativos em espécie, o valor a considerar, para efei‑tos do cálculo da dedução ao lucro tributável, é o valor fiscal que os bens tiverem no exercício em que forem doados, deduzido, quando for caso disso, das reintegrações ou provisões efectivamente praticadas e aceites como custo fiscal ao abrigo da legislação aplicável”. Será que estas regras abrangem o mecenato para a sociedade de informação? Seria esperável que sim. Mas somos levados a concluir negativamente.

Uma questão prévia a esta análise relaciona -se com a natureza dos bens que podem ser doados. De uma leitura mais apressada resulta que ape‑nas os “imobilizados corpóreos” e as “existências” são elegíveis, atentas as expressões (desactualizadas) “reintegrações” e “provisões”7. De resto, esta parece ser a interpretação da Administração fiscal na informação

7 É de notar que o disposto no EBF ainda não se conformou com o Sistema de Nor‑malização Contabilística (SNC). Neste texto, para facilitar a interpretação, utilizaremos as expressões do anterior referencial contabilístico.

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vinculativa relativa ao processo n.º 499/07, de 7/3/20088. Acresce que as instruções de preenchimento da Declaração modelo n.º 25 (“donativos recebidos”)9, aprovadas pela Portaria n.º 1474/2008, de 18 de Dezembro, apenas versam sobre a avaliação de bens do imobilizado e das existên‑cias e da cedência gratuita de recursos humanos (este último exclusivo do mecenato científico)10.

8 O seu ponto 3 estabelece que se os donativos em espécie, concedidos por pessoas singulares, revestirem a “forma de «prestações de serviços gratuitas», mesmo que efec‑tuadas no âmbito de uma actividade profissional tributada (regime simplificado ou com base na contabilidade), não têm relevância fiscal, quer por falta de previsão legal, quer por não poderem ser quantificadas nos termos do n.º 11 do artigo 62.º do EBF”. Adi‑cionalmente, segundo o ponto 4, “caso se trate de donativos de bens afectos à actividade empresarial ou profissional de um sujeito passivo da categoria B do IRS, com contabi‑lidade organizada (existências ou imobilizado), cujo valor fiscal possa ser apurado nos termos do n.º 11 do artigo 62.º do EBF, o respectivo benefício fiscal reflectir -se -á numa dedução ao lucro tributável da actividade do sujeito passivo” (sublinhado nosso). Mais adiante, apresentam -se outras críticas a esta informação vinculativa, especificamente rela‑cionadas com o regime dos donativos em IRS.

9 As obrigações declarativas das entidades beneficiárias concretizam -se pela entrega à Direcção -Geral dos Impostos deste impresso, até ao final do mês de Fevereiro de cada ano, compreendendo um conjunto de informações relativas aos donativos recebidos no ano anterior (art. 66º, n.º 1, alínea c) do EBF). Esta incumbência produziu efeitos a partir de 2008. Refere -se, portanto, aos donativos recebidos ao abrigo do EBF e do EMC durante o exercício de 2007. Todavia, dado que as obrigações declarativas previstas no art. 66º do EBF, que entrou em vigor no início de 2007, apenas foram plasmadas no EMC pela Lei do Orçamento do Estado para 2008, através do aditamento do art. 11º -A, o Ofício -Circulado n.º 20125/2008, de 8 de Janeiro, veio dispensar os beneficiários do mecenato científico desta formalidade em 2008. Com efeito, é admissível que estas entidades não dispuses‑sem dos elementos informativos necessários ao preenchimento da declaração, uma vez que, no ano em que receberam os donativos (2007), desconheciam que, em 2008, teriam de cumprir essa obrigação. Refira -se, por fim, que este impresso preconiza a separação dos donativos por tipos de mecenato (religioso, social, cultural/ambiental/desportivo/edu‑cacional, associativo, sociedade de informação e científico), seguindo a organização dos artigos do Estatuto do Mecenato. Actualmente, este exercício é mais difícil, porque o art. 62º do EBF condensa vários tipos de mecenato.

10 No contexto das obrigações declarativas, relacionadas com os donativos em espé‑cie, mas que impendem sobre os mecenas, cumpre assinalar uma deficiência da estrutura do Anexo F da Declaração Anual, a que alude o art. 121º do CIRC. Este impresso isola os donativos em espécie, incluindo -os no quadro 05 (“deduções ao lucro tributável”), e separando -os dos outros, que se inscrevem no quadro 04 denominado “deduções ao rendi‑mento (a deduzir ao resultado líquido)”. Esta opção, pouco rigorosa e sem qualquer razão

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O Estatuto do Mecenato, entretanto revogado, acolhia no seu art. 4º -A as regras de valorização dos bens doados. Uma vez que apenas alu‑dia expressamente aos bens do “activo imobilizado” e às “existências”, vedava a oferta de outros activos. Aliás, a redacção do art. 11º do EMC, actualmente em vigor, foi decalcada daquele preceito. No âmbito destas normas, aceita -se o entendimento da Administração fiscal, sufragado na informação vinculativa relativa ao processo n.º 1833/05, de 6/12/2005: “como se trata de um donativo em espécie, o EM [Estatuto do Mecenato] considera (art.º 4.º -A), como valor dos bens, o respectivo valor fiscal que os mesmos tiverem no exercício em que foram doados, consoante sejam bens do activo imobilizado, ou tenham a natureza de existências”.

Os imobilizados doados produzem uma dedução fiscal nula, caso estejam totalmente depreciados sob o ponto de vista fiscal. Contrariamente ao que acontece na esfera do beneficiário, não releva o valor de mercado do bem na esfera do mecenas. Também no caso de não terem sido segui‑das as regras de depreciação previstas no CIRC, ou de se ter procedido a reavaliações, ou a amortizações extraordinárias sem relevância fiscal, o valor contabilístico do bem afasta -se da dedução fiscal que produz11.

No que se reporta às existências, a solução fiscal preconizada é seme‑lhante. Tal como nos imobilizados, o valor de mercado das existências

de ser, originou um pedido de informação vinculativa sobre a natureza do benefício fiscal associado aos donativos em espécie e, consequentemente, sobre a sua correcta inscrição no Modelo 22. Assim, a informação vinculativa relativa ao processo n.º 442/08, de 7/4/2008, esclareceu que “considerando que o montante do donativo já está reflectido no resultado líquido do exercício, Campo 201 do Q.07 da declaração periódica de rendimentos (Mod. 22), há apenas que deduzir no Campo 234 desse Q.07 o valor da respectiva majo‑ração para efeitos da consideração do benefício fiscal na sua totalidade”. Ou seja, conclui que se trata verdadeiramente de uma dedução ao rendimento e não ao lucro tributável, pelo que a modalidade do benefício fiscal associado aos donativos em espécie tem, como não poderia deixar de ser, a mesma natureza que a dos donativos em dinheiro. Destaque--se, por fim, a fraca utilidade das instruções de preenchimento do quadro 05 do referido impresso: “Neste quadro devem constar os valores fiscais dos donativos em espécie, atri‑buídos nos termos do n.º 11 do art. 62º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais. Para efeitos do cálculo da dedução ao lucro tributável, o valor fiscal dos donativos em espécie corres‑ponde ao valor fiscal que os bens tiverem no exercício em que forem doados, deduzido, quando for caso disso, das reintegrações ou provisões efectivamente praticadas e aceites como custo fiscal ao abrigo da legislação aplicável”.

11 Este assunto encontra -se desenvolvido em Martins (2010:52 -85).

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pode ser superior ao valor da dedução fiscal. Porém, diferentemente do que é usual verificar -se com aqueles bens, é esperável que o valor con‑tabilístico, o valor de mercado e a dedução sejam correspondentes. Sim‑plificadamente, as existências devem ser mensuradas ao custo de aquisi‑ção ou de produção, ou ao preço de mercado, seleccionando ‑se o menor dos dois quantitativos. A passagem do primeiro critério para o segundo é feita através do reconhecimento de um ajustamento ao valor do activo, cuja contrapartida é um gasto contabilístico. Nesta sede, as regras fiscais seguem as contabilísticas (art. 28º do CIRC).

Mesmo admitindo que o regime do mecenato previsto no EBF ape‑nas qualifica como donativos em espécie os bens para os quais existem regras de avaliação expressas (o que não é líquido), tal não significa que estes se esgotam nos imobilizados corpóreos e nas existências. É certo que o termo “reintegrações” se refere aos imobilizados corpóreos, afas‑tando os incorpóreos. Mas os direitos de crédito também são “provisio‑náveis”, tal como as existências, pelo que caem no grupo dos donativos em espécie, cujo valor fiscal é determinado segundo o disposto no art. 62º, n.º 11 do EBF12.

Regressando ao mecenato para a sociedade de informação, os pro‑gramas de computadores e os equipamentos informáticos, enquanto imo‑bilizados corpóreos, encontrariam no art. 62º, n.º 11 do EBF regras segu‑ras de avaliação. Mas não existe qualquer remissão e o art. 62º, n.º 11 não contém qualquer referência expressa à consultoria informática, pelo que é razoável admitir que este tipo de mecenato, exclusivamente assente em donativos em espécie, contém regras próprias. Ademais, como veremos de seguida, para esta posição concorrem ainda outras razões.

12 Questionamo -nos, também, se há abertura legal para a oferta de bens que não sejam propriedade da empresa, ou melhor, que não estejam registados no seu activo. Referimo ‑nos à aquisição de um determinado bem, que não tem qualquer utilidade para a empresa, com o propósito de ser doado ao abrigo do mecenato. À partida, o valor da dedu‑ção corresponderia ao preço pago, no caso de o lapso temporal entre a compra e a oferta ser curto. Ainda assim temos dúvidas. Trata -se de um problema sensível, com repercus‑sões nos planos contabilístico e fiscal. Considerando que a lógica dominante no quadro legal do mecenato assenta no reconhecimento de gastos no período de tributação, seria mais prudente conceder um donativo em dinheiro, de modo a que a entidade recipiente adquira directamente o bem em apreço, contornando, também, os problemas relacionados com os direitos de propriedade.

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O n.º 3 do art. 65º do EBF estabelece que “o período de amortização de equipamento informático pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1 é de dois anos, ou pelo valor residual se ocorrer após dois anos, no caso de doação do mesmo às entidades referidas naquele número”. Com algum esforço, até porque a norma confunde amortizações com reintegrações (actualmente, depreciações)13, compreende ‑se que este preceito consa‑gra uma reintegração antecipada do equipamento informático inferior ao período de vida útil mínimo previsto no regime legal, que é de três anos. Se a doação ocorrer após o período de dois anos, o equipamento é depre‑ciado pelo seu valor residual. Caso os sujeitos passivos exerçam a opção pelo regime de depreciação transcrito, recai sobre eles a obrigação de exporem as razões que a suportaram ao Ministério da Ciência, Tecnolo‑gia e Ensino Superior (n.º 5). Para além de não serem referidos quaisquer “sujeitos passivos no n.º 1”, complicando a interpretação da norma, não se decifra por que se restringe aos equipamentos informáticos (hardware), desprezando os programas informáticos (software).

Aventamos que se trata de um duplo benefício. Em simultâneo com a dedução ao rendimento do valor fiscal, majorado, dos equipamentos informáticos, estabelece -se a sua amortização antecipada14. Note ‑se que se o critério de avaliação constasse do art. 62º, n.º 11, esta norma não teria conteúdo prático. Qual o interesse de amortizar aceleradamente um equi‑pamento informático, em vez de o fazer em três anos, quando, assim, o seu valor relevante para efeitos fiscais e sobre o qual recairia a majora‑ção, seria nulo?

Por uma questão de ordem lógica, o critério não pode ser o mesmo do art. 62º, n.º 11 do EBF. Resta, em nossa opinião (porventura diver‑gente do entendimento da Administração fiscal), o justo valor na data da doação, configurando uma excepção substancial no regime do mecenato e que, naturalmente, enfrenta diversas críticas.

13 A diferença entre estes termos está desenvolvida em Taborda (2006:56 -57).14 Neste sentido, o Decreto -Lei n.º 153/2001, de 7 de Maio, que regula o procedi‑

mento de alienação de equipamento informático a título gratuito a observar pela admi‑nistração pública, estabelece que o mecenato para a sociedade de informação “prevê um tratamento fiscal favorável das doações de material informático feitas pelos sujeitos pas‑sivos da relação de imposto a certo tipo de entidades. A mesma disposição contempla igualmente um regime de amortização antecipada do mesmo tipo de equipamento pelos referidos sujeitos passivos quando doado a essas entidades” (sublinhado nosso).

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37Artigos

3. Os donativos em espécie no IRS

A modalidade que concretiza o benefício fiscal reconhecido aos mecenas, sujeitos passivos de IRS, é, em regra, a dedução à colecta.15.

A dedução dos donativos em IRS é limitada a 15% da totalidade da colecta se a sua aceitação para efeitos de IRC também o for, na medida em que o art. 63º do EBF remete para os limites aplicáveis aos sujeitos passivos de IRC. Por exemplo, 25% do montante dos donativos conce‑didos ao Estado, Regiões Autónomas, Autarquias Locais, Associações de Municípios e de Freguesias e a Fundações participadas (no património inicial) por estas entidades, são dedutíveis à colecta de IRS, sem qual‑quer restrição, desde que, naturalmente, as actividades desenvolvidas por aquelas sejam de carácter social, cultural, ambiental, desportivo ou educacional.

Não obstante a definição de donativo fiscal acolher as contribuições em espécie, esta forma não parece ser admissível para efeitos de IRS. Assim, apenas são dedutíveis à colecta do ano a que dizem respeito, os donativos em dinheiro efectuados por pessoas singulares residentes em território nacional (art. 63º, n.º 1 do EBF). Esta interpretação sai refor‑çada, comparando o revogado Estatuto do Mecenato com a actual redac‑ção das normas constantes do EBF. O anterior quadro normativo incluía explicitamente os donativos em espécie atribuídos por pessoas singula‑res, estivessem ou não sujeitas a contabilidade organizada, opção que foi abandonada com a inserção do regime dos donativos no EBF.

A referência expressa aos “donativos em dinheiro” no n.º 1 do art. 63º do EBF não é repetida no n.º 2 deste preceito, que regula especificamente os donativos atribuídos a “igrejas, instituições religiosas, pessoas colecti‑vas de fins não lucrativos pertencentes a confissões religiosas ou por eles instituídas”. O facto de a expressão “donativos em dinheiro” não constar taxativamente do texto suscita a dúvida de os donativos religiosos cons‑tituírem, tal como o EMC (art. 11º), uma excepção ao princípio de que os donativos em espécie não são fiscalmente relevantes em sede de IRS.

15 O emprego desta técnica foi introduzido pelo Estatuto do Mecenato. Até 1999, ano em que foi aprovado, o abatimento era feito à matéria colectável, consubstanciando uma dedução que operava antes da aplicação da taxa de imposto.

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Parece -nos que sim, o que afecta a consistência do sistema mecenático no EBF16.

Existe, a nosso ver, um problema de ausência de orientações claras na avaliação dos bens oferecidos por pessoas singulares enquanto tais. Com efeito, os sujeitos passivos de IRS são divididos em duas categorias, consoante exerçam ou não actividades empresariais e profissionais. Em caso afirmativo, devem ser observados os métodos de avaliação aplicá‑veis às pessoas colectivas, mas, para os que não exercem aquelas activi‑dades, não há regras de avaliação. Para colmatar esta omissão, no âmbito do revogado Estatuto do Mecenato, Campaniço (2002) salienta que a Administração fiscal lançava mão do disposto no art. 24º do CIRS, que se dedica à avaliação de rendimentos em espécie17. Segundo este autor, tal artifício defrontava -se com várias limitações, porque assimilava o valor fiscal de um bem doado ao valor fiscal que teria no caso de ser recebido, desvir tuando o espírito do regime do mecenato. Esta solução de recurso era bastante popular até à reformulação do art. 5º -A do Estatuto do Mece‑nato em 2004, que veio, finalmente, definir que, para efeitos da dedução à colecta dos donativos em espécie, concedidos pelos sujeitos passivos de IRS que não exercem actividades empresariais e profissionais, valia o custo devidamente comprovado dos bens doados.

No actual regime do mecenato o legislador não recuperou esta regra, esquecendo -se dos donativos religiosos dedutíveis à colecta de IRS, quando são constituídos por bens diferentes de dinheiro. A outra alterna‑tiva de avaliação consta do art. 11º, n.º 2 do EMC, segundo o qual “sendo os bens doados por sujeitos passivos de IRS que não exerçam actividades

16 O tratamento especial destas entidades beneficiárias é recorrente. Durante a vigência do Estatuto do Mecenato, contrariamente ao sentido legal, o Ofício -Circulado n.º 20039, de 13/3/2001, autorizou “a dispensa de reconhecimento prévio dos donativos, concedidos por pessoas singulares, a igrejas, instituições religiosas, pessoas colectivas de fins não lucrativos pertencentes a confissões religiosas ou por elas instituídas, referi‑das no n.º 2 do artigo 5º do Estatuto do Mecenato, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 74/99, de 16 de Março”.

17 Nos termos do art. 24º, n.º 1 do CIRS, aplicam -se sucessivamente as seguintes regras de avaliação aos rendimentos em espécie: preço tabelado oficialmente; cotação ofi‑cial de compra; cotação de compra na bolsa de mercadorias de Lisboa (géneros); preços de bens ou serviços homólogos publicados pelo Instituto Nacional de Estatística e valor de mercado em condições de concorrência.

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empresariais ou profissionais, ou que, exercendo -as, os mesmos bens não lhes estejam afectos, o seu valor corresponde ao respectivo custo de aqui‑sição ou de produção, devidamente comprovado”. Inclinamo ‑nos para esta segunda metodologia, por se mostrar menos desajustada.

Nos termos do art. 63º, n.º 1, alínea c), a dedução à colecta apenas opera na hipótese de os donativos não serem contabilizados como gastos. Esta norma visa acautelar a duplicação do benefício em sede de IRS para os sujeitos passivos que, no âmbito da categoria B (rendimentos empre‑sariais e profissionais), determinam o rendimento líquido com base na contabilidade organizada (art. 28º, n.º 1, alínea a) do CIRS). Assim, se o contribuinte que concede o donativo optar por registá -lo no catálogo dos gastos da sua actividade profissional, não pode inscrevê -lo como dedução à colecta, alegando que o atribuiu a título pessoal18.

Por fim, cumpre destacar a deficiente interpretação do direito circu‑latório. Julgávamos que o (não) enquadramento dos donativos em espécie em IRS, apesar de levantar as perplexidades que referimos, era pacífico. Daí alguma estranheza com o teor da informação vinculativa relativa ao processo n.º 499/07, de 7/3/2008 (transcrita na nota n.º 8), que aceita a relevância fiscal dos donativos em espécie concedidos pelos sujeitos pas‑sivos de IRS.

4. Os donativos em espécie no IVA

Contrariamente aos donativos em dinheiro, que estão fora das regras de incidência do IVA, os donativos em espécie produzem efeitos relevan‑tes neste imposto.

18 Os benefícios fiscais são dedutíveis à colecta nos termos do art. 78º, n.º 1, alínea j) e do art. 88º do CIRS. Contudo, dado que as deduções elencadas no art. 78º são efectua‑das pela ordem nele indicada (n.º 3) até à concorrência da colecta, e que a dedução rela‑tiva aos benefícios fiscais está no fim do elenco, pode acontecer que os donativos não surtam qualquer efeito. Ou seja, se as deduções anteriores esgotarem a colecta, não sub‑siste colecta quando operar a dedução dos donativos, pelo que são ineficazes. Tal não se verifica com os contribuintes tributados na categoria B, que, mesmo que registem prejuízo fiscal, podem repercuti -lo nos exercícios seguintes e, assim, tirar proveito do benefício fiscal. Daqui se infere que, na mesma pessoa, o mesmo donativo pode ter efeitos fiscais muito diferentes, o que não é apropriado.

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Encontram ‑se abrangidas pelas normas de incidência objectiva do CIVA as transmissões de bens efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal (art. 1º, n.º 1, alínea a) do CIVA). Nos termos do art. 3º, n.º 1, “considera -se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspon‑dente ao exercício do direito de propriedade”. Cabe, no entanto, neste con‑ceito, a transmissão gratuita de bens da empresa, quando, relativamente a estes, ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto (alínea f) do n.º 3 do art. 3º). Assim, mediante certas condições previstas no CIVA, uma operação gratuita pode ser “requalifi‑cada” em transferência onerosa, trasladando -se para o perímetro de inci‑dência objectiva deste imposto.

A Lei n.º 67 -A/2007, de 31 de Dezembro, veio reformular a alínea f), que, anteriormente, continha uma delimitação negativa da incidência do IVA relativamente às amostras e às ofertas “de pequeno valor em confor‑midade com os usos comerciais”. Mas este diploma veio também aditar o n.º 7 ao art. 3º, que exclui do regime estabelecido na aludida alínea f) do n.º 3, “os bens não destinados a posterior comercialização que, pelas suas características, ou pelo tamanho ou formato diferentes do produto que constitua a unidade de venda, visem, sob a forma de amostra, apresentar ou promover bens produzidos ou comercializados pelo próprio sujeito passivo, assim como as ofertas de valor unitário igual ou inferior a € 50 e cujo valor global anual não exceda cinco por mil do volume de negócios do sujeito passivo no ano civil anterior, em conformidade com os usos comerciais”. Esta norma remete ainda o regime de exclusão da tributação para legisla‑ção específica. Assim, a Portaria n.º 497/2008, de 24 de Junho, procurou eliminar as ambiguidades daquela norma, preenchendo os conceitos inde‑terminados que a compõem. Actualmente, ainda que tenha havido dedução total ou parcial do imposto, as amostras, independentemente do respectivo valor, não estão sujeitas a IVA, assim como as ofertas de valor unitário igual ou inferior a 50 euros (IVA excluído) e cujo montante global não exceda 0,5% do volume de negócios do ano anterior. Estas operações têm de ser discriminadas na contabilidade (art. 44º, n.º 3, alínea d) do CIVA).

Uma leitura menos correcta do regime das amostras e das ofertas poderia estendê -lo às relações mecenáticas. Tal é inviável, uma vez que estão em causa “usos comerciais”. É verdade que na concessão de donati‑vos podem estar implícitos motivos promocionais, mas afigura -se -nos que

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a expressão “usos comerciais” não se coaduna com o regime do mecenato. Cinge -se às relações comuns da empresa, que têm em vista a prossecução da sua actividade operacional e que se firmam entre clientes e fornecedores.

Esta apreciação permite concluir pela inaplicabilidade do regime das amostras e ofertas às relações mecenáticas, que, por definição, não têm o carácter comercial das primeiras. Relativamente às doações ao abrigo do mecenato, até ao ano de 2008, admitindo que os mecenas, na sua qualidade de sujeitos passivos de IVA, exerceram o direito à dedução do imposto que onerou a montante os bens doados, a verificação dos rigorosos requisitos mencionados no n.º 7 do art. 3º, bem como da referida Portaria, não dis‑pensam a obrigação de liquidar IVA. Contudo, neste contexto, é impres‑cindível distinguir duas situações. Se determinados bens forem adquiridos pelo sujeito passivo com o fito de serem doados no âmbito do mecenato, o IVA suportado não é dedutível, uma vez que não se destinam a nenhuma das operações elencadas no art. 20º do CIVA. Logo, também não há lugar à liquidação de imposto. Diferentemente, e mais usual, no âmbito de uma relação mecenática, podem ser oferecidos activos detidos pela empresa, designadamente existências. Regra geral, aquando da sua aquisição ou pro‑dução, deduziu ‑se o IVA suportado e, por não se enquadrarem no conceito de oferta, independentemente do espírito subjacente ao acto e da natureza da entidade beneficiária, originam liquidação de IVA quando são cedidos 19.

Mais empenhado em garantir a universalidade e a neutralidade do IVA, do que em remover os obstáculos à concessão de donativos em espécie, o art. 64º do EBF prescreveu regras próprias para a determina‑ção do valor tributável das regalias associadas ao donativo: “não estão sujeitas a IVA as transmissões de bens e as prestações de serviços efectua-das a título gratuito pelas entidades a quem forem concedidos donativos abrangidos pelo presente diploma20, em benefício directo das pessoas

19 Aparentemente despicienda, esta questão assume contornos importantes se tiver‑mos em conta que a versão original do revogado Estatuto do Mecenato distinguia entre a avaliação dos bens em estado de uso e a dos bens em estado novo, ou seja, entre os bens que faziam parte do activo dos sujeitos passivos e os bens que eram oferecidos directa‑mente às entidades recipientes. Como vimos, o regime do mecenato actualmente em vigor abandonou esta separação.

20 Esta redacção constava do art. 6º do Estatuto do Mecenato, aditado pela Lei n.º 107 -B/2003, de 31 de Dezembro. Daí que se mantenha a expressão “diploma”. Este limite está também plasmado no art. 10º do EMC.

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singulares ou colectivas que os atribuam, quando o correspondente valor não ultrapassar, no seu conjunto, 5% do montante do donativo recebido”. Ou seja, apenas há obrigação de liquidação de imposto pela entidade recipiente do donativo, se o conjunto das regalias a este associadas exce‑der 5% do seu valor e, naturalmente, se tiver havido dedução, parcial ou total, do IVA suportado com aquelas. Estas regalias, por não constituí‑rem o correspectivo do donativo, não fazem perigar o animus donandi que deve imbuir o mecenas.

Merecendo a operação um tratamento diferenciado, procede -se à separação entre o donativo e a regalia (a qual, por regra, tem uma natureza mais institucional do que comercial), escapando à tributação nos termos gerais. Por exemplo, a Circular n.º 2/2004, de 20 de Janeiro, partindo do valor de um donativo manifestamente desproporcionado face à regalia associada, atribui ao beneficiário a obrigação de liquidação de imposto circunscrita ao valor daquela e não sobre o valor do donativo, uma vez que não corresponde verdadeiramente a uma contrapartida. O valor tri‑butável da operação é, independentemente da sua relevância material face ao donativo, “o preço de aquisição dos bens ou de bens similares, ou, na sua falta, o preço de custo, reportados ao momento da realização das operações” (art. 16º, n.º 2, alínea b) do CIVA). No entanto, este caso afasta -se da regra geral da repercussão do IVA (art. 37º, n.º 3 do CIVA). A entidade beneficiária que disponibiliza determinadas regalias aos seus mecenas pode liquidar o IVA internamente, (suporta ‑o e entrega ‑o ao Estado), abstendo ‑se, portanto, de o debitar a estes21.

O regime de tributação das regalias associadas ao donativo não apa‑renta ser penalizador da concessão de donativos. Porém, a sujeição a IVA das transmissões feitas pelos mecenas configurava uma restrição signifi‑cativa à atribuição de donativos em espécie.

21 No que se refere às prestações de serviços, retomam -se as regras definidas para as transmissões de bens, designadamente a excepcional dispensa de repercussão do imposto (art. 37º, n.º 3). Ressalva -se, contudo, que, no plano da incidência objectiva, deve atender--se ao disposto no art. 4º, n.º 2, alíneas a) e b), sendo aplicável o art. 16º, n.º 2, alínea c) do CIVA na determinação do valor tributável (valor normal do serviço). Neste âmbito, refira -se que a divulgação da identidade do mecenas pode corporizar um serviço prestado pela entidade beneficiária. A sua sujeição a IVA deverá ser também aferida considerando o limite dos 5%, abaixo do qual se presume não haver uma verdadeira contraprestação, não ferindo o espírito de liberalidade do mecenas.

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Saliente ‑se que, mesmo no âmbito do regime do mecenato, a obri‑gatoriedade de liquidar IVA não precludia, sendo preferível, sob o estrito ponto de vista deste imposto, proceder à destruição de determinados acti‑vos, em vez de os oferecer (“transmitir gratuitamente”, na linguagem do CIVA). Segundo o art. 86º do CIVA, “salvo prova em contrário, presumem-‑se adquiridos os bens que se encontrem em qualquer dos locais em que o sujeito passivo exerce a sua actividade e presumem -se transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que se não encontrem em qualquer desses locais”. Em caso de destruição, a Administração fiscal recomenda ao sujeito passivo, através do Ofício -Circulado n.º 35264, de 24/10/1986, que comunique previamente à Direcção de Finanças a data e o local da destruição dos bens, convidando os serviços competentes a assistir ao acto. Deve ser documentado através de uma informação interna elaborada pelo sujeito passivo, que contemple uma descrição detalhada das razões subja-centes e as características dos bens abatidos, cuja destruição é testemu‑nhada pelas pessoas encarregadas da operação. Desta forma, afasta ‑se a presunção do art. 86º, não havendo lugar à regularização do IVA deduzido.

Este regime bloqueava seriamente a concessão de donativos em espé‑cie. A Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, veio aplanar esta penalização, com a alteração do n.º 10 do art. 15º do CIVA, que anteriormente se confi‑nava a bens alimentares e que, a partir do exercício de 2009, passou a isentar de IVA “as transmissões de bens a título gratuito, para posterior distribui‑ção a pessoas carenciadas, efectuadas a instituições particulares de solida‑riedade social e a organizações não governamentais sem fins lucrativos”. Esta norma deveria ter sido mais ambiciosa, acolhendo todas as entidades previstas no regime do mecenato22. Porém, não é olvidável que, mormente no caso dos inventários, estas ofertas podem degenerar num mecanismo para contornar problemas de escoamento, conseguindo vantagens fiscais.

22 Alternativamente, poderia interpretar -se a expressão “organizações não gover‑namentais sem fins lucrativos” em sentido (demasiado) amplo, aproximando -se do con‑ceito de terceiro sector. Mas a tipificação das entidades previstas no regime do mecenato sugere que se trata de ONG constituídas enquanto tal. O alargamento deste regime tem vindo a ser feito de forma titubeante e casuística, como mostra a aprovação em Conselho de Ministros, de 27 de Maio de 2010, da isenção da tributação em sede de IVA das trans‑missões de livros a título gratuito, efectuadas ao departamento governamental na área da cultura, a instituições de carácter cultural e educativo, a centros educativos de reinserção social e a estabelecimentos prisionais.

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5. Notas finais

Tendo como pano de fundo o IRC, o objectivo geral da avaliação dos donativos em espécie é confinar a sua dedução à economia fiscal que gerariam se os bens não fossem doados. Porém, no caso do mecenato para a sociedade de informação, parece ‑nos que este critério não é apropriado, sob pena de anular os efeitos práticos deste tipo de mecenato. Com efeito, no âmbito do IRC, existe uma preocupação desproporcionada com a “filan‑tropia inflacionada”, negligenciando alguns problemas de coerência e de clareza do regime, em particular no que toca às regras de avaliação dos donativos em espécie.

O elevado grau de subjectividade na avaliação dos donativos em espécie coloca a determinação do seu valor fiscal muito vulnerável a indesejáveis manipulações. A redacção complexa de algumas normas, associada ao tratamento diferenciado de algumas situações análogas e que deveriam produzir o mesmo efeito fiscal, parece influenciar a própria interpretação da Administração fiscal, prejudicando a segurança jurídica.

Também procurámos salientar que os incentivos à atribuição de donativos em espécie em sede dos impostos sobre o rendimento não são acompanhados por regras de tributação mais favoráveis no âmbito do IVA. Mesmo o tratamento especial, previsto no art. 15º, n.º 10 do CIVA, deveria ser clarificado, sobretudo no que à amplitude das entidades bene‑ficiárias diz respeito.

Em face do exposto, conclui -se que a ausência de especificação dos bens susceptíveis de serem doados, bem como de regras claras de avalia‑ção, constitui uma séria limitação do regime do mecenato. É importante que a (premente) adaptação do EBF ao SNC dote esta matéria de maior rigor e consistência.

6. Bibliografia

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Legislação

Código CivilCódigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC)Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS)Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA)Código das Sociedades Comerciais (CSC)Decreto -Lei n.º 74/99, de 16 de Março.Decreto -Lei n.º 389/99, de 30 de Setembro.Decreto -Lei n.º 153/2001, de 7 de Maio.Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF)Lei n.º 71/98, de 3 de Novembro.Lei n.º 26/2004, de 8 de Julho.Portaria n.º 497/2008, de 24 de Junho.Portaria n.º 1474/2008, de 18 de Dezembro.

Direito Circulatório

Circular n.º 2/2004, de 20 de Janeiro.Informação vinculativa relativa ao processo n.º 1833/05, de 6/12/2005.Informação vinculativa relativa ao processo n.º 7588/05, de 3/5/2006.Informação vinculativa relativa ao processo n.º 499/07, de 7/3/2008.Informação vinculativa relativa ao processo n.º 442/08, de 7/4/2008.Ofício -Circulado n.º 35264, de 24/10/1986.Ofício -Circulado n.º 20039, de 13/3/2001.Ofício -Circulado n.º 20125/2008, de 8 de Janeiro.

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Clotilde Celorico Palma

O Livro Verde sobre o Futuro do IVA– Algumas reflexões

Clotilde Celorico PalmaProfessora Universitária. Docente no IDEFF.

Advogada

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RESUMO:

Neste artigo procura ‑se fazer o ponto de situação sobre o futuro do IVA, nos termos apresentados pela Comissão Europeia no seu Livro Verde de 1 de Dezembro de 2010.

Numa perspectiva crítica, veiculamos o nosso entendimento sobre alguns pontos colocados à discussão pública, nomeadamente sobre o regime transitório e a tributação das entidades públicas.

Palavras‑chave:Livro verde sobre o futuro do IVANeutralidadeHarmonização fiscalTransacções intra -UE Entidades públicas

ABSTRACT:

In the present article, the Author undertakes an analysis of same main aspects of the Green Paper on the future of VAT presented by the Commission on the first December 2010, namely about the current regime of taxation of intra -EU transactions and the rules applying to public bodies.

Keywords:Green Paper on the future of VATNeutralityFiscal harmonisationIntra ‑EU transactionsPublic bodies

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49Artigos

1. Nota Introdutória

Foi apresentado pela Comissão Europeia, no passado dia 1 de Dezem‑bro de 2010, um Livro Verde sobre o futuro do IVA1.

Pretende -se lançar uma discussão pública sobre a possível reforma do imposto2, pedindo -se, até 31 de Maio de 2011, contributos a várias ques‑tões suscitadas de forma a, até finais de 2011, a Comissão poder emitir uma Comunicação sobre a matéria3. O objectivo do Livro Verde é lançar um amplo processo de consulta das partes interessadas sobre o funcio‑namento do sistema de IVA em vigor e o modo como deve ser reestrutu‑rado no futuro.

Como é sabido, o processo de harmonização deste imposto foi efec‑tuado por etapas, a última das quais, de natureza essencialmente formal, decorre da recente Directiva 2006/112/CE, vulgo Directiva IVA4, que

1 Livro Verde sobre o futuro do IVA Rumo a um sistema de IVA mais simples, mais sólido e eficaz” Bruxelas, 1.12.2010, COM (2010) 695 final, {SEC (2010) 1455 final}. Um documento de trabalho dos serviços da Comissão, que inclui um exame mais com‑pleto e tecnicamente pormenorizado de alguns aspectos evocados neste documento, pode consultar -se em: http://ec.europa.eu/taxation_customs/index_en.htm_.

2 Reformar as regras do IVA de «forma compatível com o mercado único» é uma das recomendações do chamado Relatório Monti, que propõe uma estratégia global para relançar o mercado único, apresentado em Maio de 2010 pelo Professor Mário Monti a pedido do Presidente da Comissão, Uma nova estratégia para o mercado único: ao ser‑viço da economia e da sociedade europeias, http://ec.europa.eu/bepa/pdf/monti_report_final_10_05_2010_en.pdf.

3 A Comissão convida todas as partes interessadas a enviar as suas contribuições em resposta às perguntas suscitadas até 31 de Maio de 2011, de preferência em formato Word e por correio electrónico para TAXUD ‑VAT ‑[email protected].

As contribuições serão publicadas na Internet em http://ec.europa.eu/taxation_customs/index_en.htm.

No mesmo sítio Web será igualmente publicado um relatório que resume as con‑clusões tiradas das contribuições.

Com base nas conclusões que podem resultar deste debate e conforme o anunciado no programa de trabalho da Comissão para 2011 (COM (2010) 623 de 27.10.2010, Pro‑grama de trabalho da Comissão para 2011), a Comissão apresentará até finais de 2011 uma comunicação que indicará as áreas prioritárias em que seriam convenientes outras acções ao nível da UE.

4 Directiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro de 2006, publicada no JO n.º L 347, de 11 de Dezembro de 2006. Essencialmente, esta Directiva veio reformular o texto da Sexta Directiva (trata -se de uma reformulação basicamente formal, atendendo ao facto

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50Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

codifica o segundo sistema comum do IVA, revogando a Sexta Directiva5. Devemos, todavia, salientar que este imposto não se encontra totalmente harmonizado. Com efeito, embora se esteja perante um sistema comum harmonizado, existem várias diferenças entre os regimes IVA dos Estados membros, decorrentes, desde logo, de opções permitidas pelas regras do Direito da União Europeia, mas também de derrogações, infracções e dis‑tintas interpretações e, consequentemente, diferentes aplicações (ainda que, note -se, se verifique uma correcta transposição das regras comunitárias). Actualmente, quase centena e meia de países adoptam modelos de tributa‑ção das transacções inspirados naquilo a que poderemos chamar o “modelo comunitário IVA”, sendo que se regista uma tendência para o seu aumento6.

de o seu texto se encontrar excessivamente denso, dadas as sucessivas alterações que lhe foram introduzidas desde a sua aprovação). Com a reformulação passou a ter 414 artigos (a Sexta Directiva tinha 53). Poderemos passar a designar a “nova” Directiva, abreviada‑mente, como Directiva IVA (a directiva base do sistema comum vigente), designação a que aderimos desde já no presente estudo.

5 Sexta Directiva do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negó‑cios – sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (Directiva 77/388/CEE, publicada no JO n.º L 145 de 13 de Junho de 1977, posteriormente rectificada no JO n.º L 149 de 17 de Junho de 1977).

6 Na OCDE todos os países membros têm IVA à excepção dos Estados Unidos da América. Sobre a eventual introdução do IVA nos EUA e a complexidade do IVA na União Europeia, veja -se António Martins e Paulo Gama, “Is VAT a simple tax?”, Fiscalidade n.os 26/27, Abril ‑Junho/Julho ‑Setembro 2006, pp. 5 ‑28.

Mesmo países que invocavam problemas políticos ou administrativos de gestão deste tipo de tributo como impedimento fundamental à sua introdução, como, v.g, o Bra‑sil ou Angola, estão a preparar -se para esse efeito. Sobre a adopção do IVA no Brasil veja-‑se a obra AAVV – IVA para o Brasil, Contributos para a Reforma da Tributação do Con‑sumo, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, Sérgio Vasques e Vasco Branco Guimarães (organizadores), Instituto Fórum de Direito Tributário, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2007, nomeadamente, Ricardo Lobo Torres, “É possível a criação do IVA no Brasil?”, pp. 19 -36, Vasco Branco Guimarães, “A tributação do consumo no Brasil: uma visão euro‑peia”, pp. 37 -68, Heleno Taveira Tôrres, “O IVA na experiência estrangeira e a tributação das exportações no direito brasileiro”, pp. 69 -122, e Sacha Calmon Navarro Coelho, “O IVA brasileiro”, pp. 553 -586. Relativamente à implementação do IVA em Moçambi‑que veja -se Aboobacar Zainadine Dauto Changa, “A implementação do IVA em Moçam‑bique”, in ibidem, pp. 463 ‑526.

Quanto à introdução do IVA em Cabo Verde, veja -se Sérgio Vasques, “Focus in Cape Verde: Introduction of VAT”, VAT Monitor vol. 16, n.º 5, 2005, pp. 349 -355, e

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As razões que actualmente justificam o lançamento de um debate sobre o sistema de IVA são diversas. Como a Comissão salienta, temos um sistema comum que tem as suas raízes no denominado primeiro sis‑tema comum instituído em 1967 com a Segunda Directiva IVA7, substi‑tuído pelo segundo sistema comum da Sexta Directiva de 1977. Ora, é este o sistema que se encontra em vigor, volvidos mais de quarenta anos da implantação deste tributo na então Comunidade Económica Europeia. É evidente que até aos nossos dias foram introduzidas diversas modifica‑ções, contudo, questiona -se se vão no sentido certo e, questão mais perti‑nente, sucede que há aspectos que nunca foram alterados, não obstante as radicais modificações do contexto internacional, como é o caso da delimi‑tação negativa de incidência das entidades públicas e de certas isenções.

A abordagem seguida na última década consistiu em, por etapas sucessivas, simplificar e modernizar o sistema de IVA em vigor8. Como

“A introdução do IVA em Cabo Verde”, in AAVV – IVA para o Brasil, Contributos para a Reforma da Tributação do Consumo, op. cit., pp. 157 ‑172.

Sobre a experiência dos países da CPLP, vejam -se ainda as comunicações apre‑sentadas na I Conferência de Directores Gerais dos Impostos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, organizada pela DGCI em 20 de Maio de 2009, por Elias Mon‑teiro, “A adopção do IVA: Experiência cabo -verdiana”, Aboobacar Changa, “Adopção do IVA -Experiência Moçambicana”, Maria L. Fati, “Implementação do IGV (Imposto Geral sobre Vendas) como modelo de tributação de consumo na Guiné Bissau”, Maria Carva‑lho, “Tributação da Despesa em Angola, Regulamento do Imposto do Consumo”, Alda Daio, “Imposto sobre o Consumo, Experiência de São Tomé e Príncipe”, Maria José C. Amaral, “Tributação em Timor -Leste”, e André Luiz Barreto de Paiva Filho, “Tributação do Consumo no Brasil”.

7 Directiva 67/228/CEE, do Conselho, de 11 de Abril de 1967, publicada no JO n.º L 71, de 14.3.67. A Segunda Directiva veio acolher as regras fundamentais do primeiro sistema comum do IVA, deixando, todavia, grandes margens de manobra aos Estados membros, não prevendo, designadamente, uma lista harmonizada de isenções, a tributação da generalidade das prestações de serviços, a harmonização das modalidades do direito à dedução e a obrigatoriedade da inclusão do imposto no estádio retalhista.

8 Sobre o processo de harmonização do IVA veja ‑se, nomeadamente, Clotilde Celo‑rico Palma, “A harmonização comunitária do Imposto sobre o Valor Acrescentado: Quo Vadis?”, Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 5, Setembro 2005, Separata, e Rita de La Feria, The EU VAT System and the Internal Market, Doctoral Series 16, IBFD-‑Academic Council, 16, 2009, pp. 1 ‑88. Sobre o processo de harmonização deste imposto e os princípios fundamentais que lhe são aplicáveis, veja -se, nomeadamente, Paolo Centore, Manuale dell’IVA europea, V Edizione, IPSOA, Gruppo Wolters Kluwer, 2008, pp. 3 ‑177.

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sublinha a Comissão, esta estratégia produziu resultados positivos, embora já não seja possível ir mais longe.

Na realidade temos actualmente, como denota a Comissão, um sis‑tema complexo.

Importa melhorar o funcionamento do mercado único, maximizar a cobrança das receitas e reduzir a vulnerabilidade do sistema à fraude, tendo em consideração as alterações do contexto tecnológico e económico9.

É nestes termos que a Comissão pretende levar a cabo uma análise crítica do sistema de IVA com vista a reforçar a sua coerência com o mer‑cado único e a sua capacidade como fonte de receitas, o que depende de uma melhor eficácia e solidez económica, bem como a incrementar a sua contribuição para outras políticas, reduzindo simultaneamente os custos relativos à cobrança do imposto.

Neste contexto, o debate sobre o futuro do IVA articula -se em torno de dois eixos fundamentais: os princípios em matéria de tributação das operações intra -UE em que se deverá basear um sistema de IVA plena‑mente adaptado ao mercado único e um conjunto de questões que reque‑rem reflexão, independentemente da opção adoptada no tocante à pri‑meira situação.

Assim, como questões gerais a considerar, apontam -se a de saber qual o grau de harmonização que exige o mercado único, a redução da burocracia, a concretização de um sistema de IVA mais sólido e uma gestão do sistema de IVA eficaz e moderna.

2. Tratamento das operações intra União Europeia

Relativamente à aplicação do IVA às operações transfronteiras no mercado único, volta -se ao velho dilema, ao “Dom Sebastião do IVA” – tributação na origem ou no destino?

9 Sobre as características fundamentais deste tributo, vide Xavier de Basto, A tribu‑tação do consumo e a sua coordenação a nível internacional, Lições sobre a harmoniza‑ção fiscal na Comunidade Económica Europeia, CCTF n.º 164, Lisboa 1991, p. 39 -73, e Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 4.ª edição, Almedina, Outubro de 2009, pp. 17 ‑29.

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Como a Comissão salienta, é evidente que o facto de as operações nacionais e intra ‑UE continuarem a ser tratadas de forma distinta é um obstáculo à melhoria do funcionamento do mercado único. Esta situação é agravada pela existência de inúmeras opções e excepções para os Esta‑dos membros, o que se consubstancia na existência de regras diferentes na UE e custos de cumprimento acrescidos.

Como é sabido, o regime vigente quanto à tributação das transacções entre Estados membros é um “regime transitório” 10, que será (?) substi-tuído por um regime definitivo baseado no princípio da tributação de bens e serviços no Estado membro de origem11.

10 Desde a adopção das primeiras Directivas IVA em 1967 que se assumiu um compromisso de introdução de um sistema de IVA de tributação na origem. A Directiva IVA determina que o regime vigente em matéria de tributação das trocas entre os Estados membros é transitório e que será substituído por um regime definitivo baseado no princí‑pio da tributação de bens e serviços no Estado membro de origem.

Relativamente ao regime transitório e respectivos antecedentes e problemas, veja ‑se, numa perspectiva crítica e com grande desenvolvimento, Pablo Antonio Moreno Valero, La armonizacion del IVA comunitario: un proceso inacabado, Coleción Estúdios, Primera Edición, Madrid, marzo 2001. Sobre os desenvolvimentos mais recentes no domínio do IVA veja -se, nomeadamente, Clotilde Celorico Palma, “A harmonização comunitária do Imposto sobre o Valor Acrescentado: Quo Vadis?”, op. cit., Mário Alexandre, “A evolução do sistema comum do IVA, o mecanismo de ‘balcão único’ ou one ‑stop shop’”, Vinte Anos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado em Portugal: Jornadas Fiscais em Homenagem ao Professor José Guilherme Xavier de Basto, Almedina, Novembro 2008, pp. 155 ‑165, e António Carlos dos Santos, “The European common VAT system: merits, difficulties and perspectives of evolution”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Almedina, n.º 3, Ano I, 2008, pp. 59 -76.

11 A Comissão, ultimamente, tem vindo a “substituir” a ideia de “tributação no país de origem” pela ideia de “local único de tributação”, realidade bem distinta mas que, segundo defende, se enquadra desde o início na ideia de “regime definitivo”.

Sobre as propostas de um regime definitivo de tributação veja -se, nomeadamente, F. Vanistendael, “A Proposal for a Definitive VAT System Taxation in the Country of Origin at the Rate of the Country of Destination, Without Clearing”, EC Tax Review, n.º 1, 1995, pp. 45 -53, M. Keen e S. Smith, “VIVAT -The future of value added tax in the European Union”, Economic Policy, 1996, n.º 2, 1996, pp. 357 -419, R.M. Bird e P. P. Gendron, “Dual VATs and Cross -Border Trade: Two Problems, One Solution?”, International Tax and Public Finance, n.º 5, 1998, pp. 429 -442, e C. E. MacLure, “Implementing Subnational Value Added Taxes on International Trade: The Compensating VAT (CAVT)”, International Tax and Public Finance, n.º 7, 2000, pp. 723 -740. Sobre as diversas alternativas ao actual regime transitório, vide ainda, nomeadamente, Bernd Genser, “Coordinating VATs between

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Como a Comissão aponta, as razões fundamentais invocadas até à data para rejeitar a tributação no Estado membro de origem são as seguintes:

• Implica uma grande harmonização das taxas de IVA para evitar que as diferenças de taxas influenciem as decisões relativas ao local onde se realiza a aquisição, não só no que respeita aos particula‑res, mas igualmente em relação às empresas (dado que, apesar de poderem deduzir o IVA, têm que suportar o peso deste imposto no seu fluxo de tesouraria);

• Necessidade de implementação de um sistema de compensação para garantir a afectação das receitas de IVA ao Estado membro de consumo;

• Os Estados membros têm de depender uns dos outros para a cobrança de uma parte substancial da sua receita de IVA.

O distinto tratamento das operações internas e intra -UE, para além de ser uma fonte de complexidade, é muito vulnerável à fraude, como a experiência tem vindo a demonstrar12.

Member States”, September 2001 (revised), Paper to be presented at the Conference on Tax Policy in the European Union, Ministry of Finance, The Hague, October 17 -19, 2001, e, entre nós, António Carlos dos Santos e Mário Alberto Alexandre, “O IVA comunitário na encruzilhada: Rumo a um novo sistema comum?”, CTF n.º 397, Jan./Mar. 2000. Tal como referem os autores, esta questão foi objecto de debate em Trèves, num seminário que deu origem à publicação do livro Le système TVA dans le Marché Unique, Academia de Droit Europèen de Trèves, vol 17, 1997, ERA, editado por M. Aujean, no qual estão referenciados os aludidos entendimentos sufragados por Arnold, von Wallis, Bouchard e Terra.

12 Como salientou Maurice Lauré a propósito do regime transitório do IVA in “Une TVA européenne: problèmes généraux”, RMC n.º 363, Décembre 1992, pp. 855 – 865, e Science Fiscale, PUF, Paris, 1 ère édition, mai 1993, pp. 244 e ss, um IVA europeu justifica--se devido à existência de fronteiras fiscais. Ora, em seu entendimento, a supressão das fronteiras fiscais numa Europa ainda multinacional iria dar origem a uma fraude de “natu‑reza criminal”. Como nota, subjacente à eliminação das fronteiras fiscais encontramos um móbil político que foi incorrectamente analisado, tendo sido mal avaliadas as respectivas consequências. Sobre a fraude neste imposto veja -se, nomeadamente, Luis Manuel Alonso González, Fraude y delito fiscal en el IVA: fraude carrusel, truchas y otras tramas, Mar‑cial Pons, Madrid, 2008, e Miguel Silva Pinto, “Contributos da jurisprudência comuni-tária para a luta contra a fraude ao IVA”, Estudos em memória de Teresa Lemos, CCTF n.º 202, Lisboa, 2007, pp. 271 -290.

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Caso se opte pela tributação no Estado membro de destino, é importante assegurar o tratamento coerente das operações intra -UE e das operações nacionais. Para que a igualdade de tratamento possa ser alcançada, pode proceder -se à tributação das operações intra -UE ou à supressão da cobrança efectiva do IVA incidente sobre as operações nacionais através de um sistema generalizado de autoliquidação (em que passa a ser responsável pelo pagamento do IVA o sujeito passivo destinatário da entrega ou da prestação). Importa considerar a necessidade de os dois tipos de operações deverem beneficiar de tratamento igual e, caso a resposta seja negativa, até que ponto um tratamento diferente pode ser aceitável, sem que tal constitua um obstáculo ao bom funcionamento do mercado único ou permita fraudes no âmbito das operações transfronteiras.

Neste contexto, a Comissão apresenta como solução alternativa a tributação das entregas de bens e das prestações de serviços intra -UE à taxa e nos termos das regras em vigor no Estado membro de destino, o que implicaria uma revisão e melhoria aprofundadas da sua aplicação em termos de segurança jurídica e de encargos administrativos ao nível das operações intra -UE.

Esta solução permitiria restabelecer o princípio do pagamento frac‑cionado para as operações transfronteiras e fazer face à vulnerabilidade endémica à fraude do sistema vigente. Por outro lado, multiplicaria subs‑tancialmente o número de operações em que os sujeitos passivos se tor‑nam responsáveis pela entrega do IVA num Estado membro em que não estejam estabelecidos.

Para efeitos de tributação das operações intra -UE, o lugar de destino pode ser definido de duas maneiras:

• O lugar de chegada dos bens para as transmissões de bens, o que significa que se manteria o fluxo físico dos bens, e o lugar em que o cliente se encontra estabelecido para as prestações de serviços, o que, actualmente, já constitui a regra geral;

• O lugar em que o cliente está estabelecido, tanto para as transmis‑sões de bens como para as prestações de serviços.

Dado que o IVA incidente sobre as operações intra -UE reverte a favor do Estado membro de destino, seria necessário criar um mecanismo de balcão único eficaz no Estado membro de origem para que o fornecedor

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ou prestador pudesse cumprir as suas obrigações em matéria de IVA em Estados membros diferentes daqueles em que está estabelecido13.

A Comissão apresenta igualmente como solução alternativa uma apli‑cação generalizada do mecanismo de autoliquidação nas operações entre sujeitos passivos do imposto (operações B2B)14. Neste sentido, vem de novo afirmar que gostaria de reflectir sobre um projecto piloto para testar a introdução de um sistema de autoliquidação generalizado obrigatório, estando plenamente ciente que este projecto tem implicações administra‑tivas e económicas.

A alternativa de manutenção do sistema vigente implica obrigações pesadas para os fornecedores ou prestadores (vendas à distância de bens ou de certos serviços) ou para os adquirentes (compras feitas por sujeitos pas‑sivos isentos, nomeadamente pequenas empresas ou entidades jurídicas não tributáveis e compras de novos meios de transporte, por exemplo), mas tem alguns méritos. Como a Comissão refere, para os Estados membros garante um certo grau de liberdade política e de soberania fiscal na gestão do IVA. Para os destinatários das operações transfronteiras B2B, não parece criar problemas significativos em matéria de IVA, podendo mesmo apresentar algumas vantagens, uma vez que o IVA não precisa ser pré -financiado.

Na verdade, no sistema actual o encargo incide principalmente sobre o fornecedor, que, no seu Estado membro, deve justificar a isenção ou a não tributação, estando sujeito a certas obrigações adicionais de comunicação e a formalidades cada vez mais rigorosas e numerosas de luta contra a fraude.

Manter os fundamentos do regime de IVA vigente implicaria uma revisão e melhoria aprofundadas da sua aplicação em termos de segurança jurídica e de encargos administrativos ao nível das operações intra -UE.

Em Junho de 2007, no contexto do debate sobre a luta contra a fraude ao IVA, o Conselho convidou a Comissão a debruçar ‑se novamente sobre um sistema de IVA baseado na tributação dos bens no lugar de origem.

13 Esta alteração teria consequências tanto para as empresas como para as adminis‑trações fiscais. A tributação das operações intra -UE teria repercussões em termos de fluxo de tesouraria para ambas as partes e determinaria a revisão completa das obrigações decla‑rativas. A Comissão refere que ainda não procedeu a uma análise pormenorizada destas opções, mas está disponível para as estudar mais aprofundadamente.

14 Sobre esta questão veja -se o nosso artigo “IVA – Sobre as propostas de aplica‑ção de um mecanismo generalizado de reverse charge”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, da FDL, IDEFF, ano 1, n.º3, Inverno 2008.

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Para superar a questão das diferenças de taxas de IVA, a Comissão analisou um modelo no qual as entregas de bens e as prestações de ser‑viços intra ‑UE destinadas a sujeitos passivos fossem tributadas em 15%, procedendo o Estado membro de destino à cobrança do IVA adicional ao cliente, até ser atingida a taxa aplicável, ou ao reembolso do IVA pago em excesso. Contudo, como nota a Comissão, o Conselho não deu segui‑mento ao seu pedido, que pretendia obter um sinal positivo antes de se lançar numa análise mais detalhada do referido regime.

Entretanto, como nota a Comissão, as novas directivas relativas à localização das prestações de serviços e das transmissões de gás e elec‑tricidade afastaram -se claramente do princípio de tributação no Estado membro de origem ao designar como local de tributação o local de con‑sumo ou o local em que o cliente se encontra estabelecido15.

Note -se que a Comissão está ciente de que outras medidas que não correspondem às expostas supra foram objecto de debate público e que não é sua intenção excluí -las do debate.

3. Assegurar a neutralidade do IVA

3.1. Delimitação negativa de incidência das entidades públicas

A primeira questão apontada nesta sede é a necessidade de rever as regras aplicáveis aos organismos públicos16.

15 Serviços prestados por via electrónica fornecidos por países terceiros a parti-culares da UE (Directiva 2002/38/CE, de 7 de Maio), fornecimento de gás e de electrici‑dade (Directiva 2003/92/CE, de 7 de Outubro) e prestações de serviços (Directiva 2008/8/CE, de 12 de Fevereiro). Sobre as novas regras de localização das prestações de serviços veja -se, da autora, “O Pacote IVA – novas regras de localização das prestações de servi‑ços”, Revista da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas n.º 97, Abril 2008, pp. 49 -53, e Rui Laires, A Incidência e os Critérios de Territorialidade do IVA, Almedina, Coimbra, Outubro de 2008 e IVA – A Localização das Prestações de Serviços após 1 de Janeiro de 2010, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 208, Janeiro 2010.

16 Sobre esta matéria veja ‑se Clotilde Celorico Palma, As Entidades Públicas e o Imposto sobre o Valor Acrescentado: uma ruptura no princípio da neutralidade, dis‑sertação de doutoramento em Ciências Jurídico Económicas, especialidade em Direito Fiscal, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Almedina, Dezembro 2010.

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Embora nos termos das regras do Direito da União Europeia as enti‑dades públicas sejam consideradas sujeitos passivos do imposto, é ‑lhes aplicável uma delimitação negativa de incidência relativamente às acti‑vidades ou operações que pratiquem no exercício do seu ius imperii, mesmo quando, no âmbito dessas actividades ou operações, cobrem direitos, taxas, quotizações ou remunerações. Contudo, esta regra geral de não sujeição tem diversas excepções. Esta norma é bastante proble‑mática, consubstanciando uma derrogação ao princípio geral de acordo com o qual todas as transmissões de bens e prestações de serviços estão sujeitas a este imposto, impedindo, nomeadamente, que estas entidades possam deduzir o imposto suportado. A este tratamento acrescem uma série de isenções que lhes são aplicáveis e as dificuldades de cálculo do imposto a deduzir e de tributação dos subsídios. Por outro lado, a juris‑prudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem sido complexa, não tendo fornecido orientações claras nesta matéria, sendo, por vezes, inconsistente.

O TJUE tem vindo a interpretar esta disposição no sentido literal, entendendo que a actuação da pessoa colectiva de direito público deverá ser directa, excluindo -se casos de gestão indirecta como a concessão de serviços públicos ou a concessão de exploração, ainda que envolvam a delegação de poderes de autoridade, assim como operações efectuadas através de sociedades comerciais que tenham capitais exclusivamente públicos ou mistos. Idêntica interpretação é feita pela Comissão e, regra geral, pela nossa Administração Fiscal.

Ora, sucede que a realidade entretanto se alterou bastante. O movi‑mento ocorrido nos Estados membros rumo a uma crescente privatização e desregulação de actividades tradicionalmente reservadas ao sector público acentuaram estas diferenças. Surgiram novas formas de cooperação entre administrações públicas e sector privado (parcerias público -privadas) para o fornecimento de infra ‑estruturas e serviços públicos estratégicos, como estradas, caminhos -de -ferro, escolas, hospitais, prisões e tratamento de águas e de resíduos.

Quando os organismos públicos estão isentos de IVA ou não são abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, têm interesse em limitar o recurso ao outsourcing, de forma a evitarem o pagamento de IVA que não podem deduzir. Assim, o IVA torna -se num factor que influencia as decisões em matéria de investimento e de despesa.

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A Comissão lançou recentemente um estudo sobre o impacto eco‑nómico e social do IVA nos organismos públicos e as eventuais soluções, pelo que aguardamos com ansiedade os resultados de mais um estudo nesta área que se espera poder ser conclusivo e com resultados práticos17.

3.2. Isenções

Foi com a Sexta Directiva que se procurou uniformizar as isenções nas transacções internas que os Estados membros poderiam conceder, dado que na Segunda Directiva esta matéria foi deixada ao critério exclusivo do legislador nacional.

A principal preocupação subjacente ao regime das isenções previsto na Sexta Directiva foi a de estabelecer uma lista comum de isenções de forma a tornar possível, tal como resulta do seu preâmbulo, que os recursos próprios sejam cobrados de modo uniforme em todos os Estados membros.

A existência de isenções num sistema como o do imposto sobre o valor acrescentado divide a doutrina. No entanto, a maioria condena o recurso a esta técnica.

Com efeito, o recurso às isenções em IVA é bastante criticado, propondo ‑se a utilização de outras técnicas que possam conduzir a uma eliminação real da carga tributária18. Neste contexto, a Segunda Directiva

17 TAXUD/2009/AO ‑03 ‑Study on the VAT rules applied to the public sector and the exemptions in the public interest, 2009/S 72 ‑103636. Conforme a Comissão refere, pretende -se que nesse estudo se proceda a uma identificação, análise e quantificação dos problemas causados pelas actuais regras do IVA, comunitárias e nacionais, aplicáveis às entidades públicas, identificando -se os principais sectores económicos afectados. Solicita--se uma análise macro económica dos efeitos de tais regras, baseada em case studies. Neste contexto, pretende -se que se façam propostas de alteração à situação actual acompanhadas do respectivo impacto económico.

18 Foi desde logo Maurice Lauré que veio criticar severamente o acolhimento de isenções qualificando -as como o “cancro do IVA” (Maurice Lauré, Au secours de la TVA, Paris, Presses Universitaires de France, 1957, p. 48). Como salienta Cnossen, in “Value Added Tax and Excises: Commentary”, Report of a Commission on Reforming the Tax System for the 21st Century, Chaired by Sir James Mirrlees, Institute for Fiscal Studies, London, 2008, a existência de isenções “defy the logic and inherent integrity of the VAT”. No mesmo sentido, o Advogado Geral Ruiz Jarabo Colomer, nas suas conclusões apresen‑tadas no Caso Kingscrest, veio reportar -se às isenções como consubstanciando o pecado

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salientava nos seus considerandos que, embora o imposto possibilitasse a introdução, por motivos de natureza económica e social, de diminuições ou majorações da carga fiscal sobre certos bens e serviços, seria desejável limitar ‑se estritamente os casos de isenção e proceder aos aligeiramentos necessários através da aplicação de taxas reduzidas, de forma a permitir, por regra, o exercício do direito à dedução do imposto suportado.

Na Directiva IVA o tratamento das isenções encontra -se sistemati‑zado em isenções em benefício de certas actividades de interesse geral, isenções em benefício de outras actividades (isenções internas), isenções relacionadas com as operações intracomunitárias e isenções na impor‑tação, isenções na exportação, isenções aplicáveis aos transportes inter‑nacionais, isenções aplicáveis a determinadas operações assimiladas a exportações, isenções aplicáveis a prestações de serviços efectuadas por intermediários e isenções aplicáveis a operações relacionadas com o trá‑fego internacional de bens.

O TJUE desenvolveu, ao longo destes anos, jurisprudência relevante sobre a matéria das isenções em geral, nomeadamente sobre as respectivas características e objectivos, e, em especial, no tocante às situações con‑cretas acolhidas na Directiva IVA19. A jurisprudência do Tribunal sobre as isenções tem -se fundamentado, essencialmente, nos princípios gerais de interpretação que tem desenvolvido, em especial, o princípio da inter‑pretação estrita, o princípio da interpretação sistemática e o princípio da

original do sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (conclusões apresen‑tadas em 22 de Fevereiro de 2005, no Proc. C -498/03, já cit.). Dominique Berlin, Droit fiscal communautaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1988, p. 263, salienta que é evidente que no que toca às isenções pode considerar -se, numa perspectiva dogmática, que a Sexta Directiva falhou a sua missão.

19 Sobre a jurisprudência comunitária relativa às isenções, veja -se Ben Terra e Kajus, Julie, A Guide to the European VAT Directives, Volume 1, IBFD Publications, 2007, pp. 717 - 840, Checa González, IVA: Supuestos de No Sujeción y Exenciones en Opera‑ciones Interiores, Aranzi Editorial, Pamplona 1998, pp. 75 ‑253, Operaciones Interiores en el Impuesto sobre el Valor Añadido, Cuestiones controvertidas a la luz de la jurispru‑dencia interna y comunitaria, Thomson Aranzadi, 2005, pp. 101 ‑273, e, entre nós, Rui Laires, Apontamentos sobre a Jurisprudência Comunitária em Matéria de Isenções de IVA, Almedina, Coimbra, Julho de 2006 e Patrícia Noiret Cunha, Imposto sobre o Valor Acrescentado ‑ Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias, op. cit.

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interpretação uniforme, salientando igualmente, em especial, a necessi‑dade de respeitar o princípio da neutralidade.

Não nos parece, contudo, que o Tribunal de Justiça seja a sede pró‑pria para resolver os problemas do IVA20.

Nas denominadas isenções incompletas, simples, parciais, ou que não conferem o exercício do direito à dedução do IVA suportado, o sujeito passivo beneficiário não liquida imposto nas suas operações activas, mas não tem o direito a deduzir o IVA suportado para a respectiva realização21. Poder -se -á, consequentemente, tratar de um falso benefício, tal como a delimitação negativa de incidência aplicável às entidades públicas.

Ora, é necessário proceder à revisão das isenções contempladas desde 1977 no sistema comum do IVA, nomeadamente à luz das altera‑ções econó micas e tecnológicas.

A proposta de directiva relativa às isenções dos serviços postais22 e a proposta sobre as isenções dos serviços financeiros e dos serviços de segu‑ros estão a ser debatidas23, sendo que o referido estudo sobre organismos

20 Neste sentido e no tocante à tributação directa, veja ‑se Paula Rosado Pereira, Princípios do Direito Fiscal Internacional, Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, Almedina, Novembro 2010.

21 Artigos 132.° a 137.° da Directiva IVA. É o caso, entre nós, de todas as isenções do artigo 9.º e da isenção do artigo 53.º do Código do IVA.

22 COM (2003) 234 final. Esta proposta veio a ser modificada pela proposta COM (2004) 468, de 8 de Julho de 2004, que não veio a ser aprovada.

Sucede que estas disposições foram adoptadas em 1977, não tendo sido actualiza‑das desde então. A isenção do IVA aplicável aos serviços postais ao abrigo da Directiva IVA aplica ‑se unicamente aos operadores dos serviços públicos postais. É evidente que, actual mente, essa diferença de tratamento, de acordo com a qual, em regra, os serviços estão isentos do pagamento do IVA se forem prestados por operadores públicos, mas sujei‑tos ao imposto se forem prestados por operadores privados, provoca distorções da concor‑rência. Como elucida Arlindo Correia, “Comentário à Proposta de Directiva do Conselho que altera a Directiva 71/388/CEE no que diz respeito ao imposto sobre o valor acrescen‑tado aplicável aos serviços postais (COM (2003) 234 final)”, Ciência e Técnica Fiscal n.º 408, 4.º trimestre 2002, p. 153, a situação factual que estava subjacente à redacção da Sexta Directiva alterou -se substancialmente, podendo -se constatar este facto nas Directi‑vas entretanto aprovadas pela União Europeia para regular os serviços postais.

23 COM (2003) 234, de 5.5.2003, e COM (2007) 746, de 28 de Novembro de 2007. Sobre o enquadramento e os problemas de tributação das actividades financeiras em IVA, veja ‑se a recente tese de doutoramento de Oskar Henkow, Financial Activities in Euro‑pean Union: A Theoretical and Legal Research of the European VAT System and the Actual

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públicos se irá igualmente debruçar sobre as isenções de interesse público. Não se trata, todavia, de tarefas simples, como o comprova a negociação das referidas propostas.

4. Maior grau de harmonização

4.1. Deduções

A característica da neutralidade do imposto é alcançada, fundamen‑talmente, através do correcto funcionamento do mecanismo da liquida‑ção e da dedução.

Neste sentido, a Primeira Directiva IVA, no seu preâmbulo, salien‑tava que “Considerando que a substituição dos sistemas de impostos cumulativos em cascata em vigor na maior parte dos Estados ‑membros pelo sistema de imposto sobre o valor acrescentado deve conduzir, ainda que as taxas e isenções não sejam harmonizadas ao mesmo tempo, a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, em cada país, mercado‑rias de um mesmo tipo estejam sujeitas à mesma carga fiscal, indepen‑dentemente da extensão do circuito de produção e de distribuição, e de que, nas trocas comerciais internacionais, seja conhecido o montante da carga fiscal que incide sobre as mercadorias, a fim de se poder efectuar uma exacta compensação dessa carga fiscal.....” 24.

É reconhecido de forma unânime pela jurisprudência do TJUE, que o mecanismo do direito à dedução é um elemento essencial do funciona‑mento do IVA tal como foi desenhado nas Directivas IVA, assumindo um papel fundamental de garantia da neutralidade do imposto e da igualdade de tratamento fiscal.

Foi essencialmente a neutralidade do IVA que veio demonstrar a ine‑quívoca superioridade deste tributo relativamente aos demais modelos de impostos sobre as transacções. Os efeitos de “cascata fiscal” ou de imposto

and Preferred Treatment of Financial Activities, 2008, e, da autora, “As propostas de Directiva e de Regulamento IVA sobre os serviços financeiros”, Revista CTOC n.º 101, 2008, pp. 40 ‑44, e Enquadramento das Operações Financeiras em Imposto sobre o Valor Acrescentado, em fase de publicação na Colecção Cadernos do IDEFF.

24 Directiva 67/227/CEE, do Conselho, de 11 de Abril de 1967, publicada no JO n.º L 71, de 14.3.67.

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sobre imposto e o de “cascata das margens”, que agravam sobremaneira a não neutralidade do imposto, foram precisamente um dos aspectos nega‑tivos que se pretenderam combater a nível comunitário com a introdução deste tributo25.

A neutralidade deste imposto implica que o IVA incidente sobre bens e serviços utilizados em actividades económicas tributadas deva ser intei‑ramente dedutível.

Ora, como a Comissão observa, pode ser difícil alcançar este objectivo e garantir a igualdade das condições de concorrência das empresas da UE sempre que os bens ou serviços sejam utilizados para fins múltiplos (acti‑vidades tributadas, actividades isentas ou utilização para fins não profissio‑nais) e o destino desses bens e serviços evolua durante a sua vida económica.

É necessário prever restrições do direito à dedução para os casos em que os bens ou serviços são utilizados igualmente para fins não profissio‑nais (principalmente consumo privado). As restrições de montante fixo podem constituir uma solução quando haja dificuldade ou seja impossí‑vel determinar a percentagem da utilização privada ou profissional, mas deveriam traduzir a realidade económica, em vez de constituírem um meio para gerar receitas adicionais26.

O direito à dedução nasce no momento em que é efectuada a entrega dos bens ou realizada a prestação de serviços, quer o cliente tenha pago ou não pelos bens ou serviços. Esta regra pode criar uma vantagem de tesouraria, em especial, para os pagadores em atraso, sendo o encargo suportado pelos fornecedores ou prestadores, regra geral, PME. Neste contexto, a Comissão nota que, basear o sistema de IVA nos pagamen‑tos (contabilidade de caixa), passando o IVA a ser exigível e dedutível aquando do pagamento da entrega ou da prestação, permitiria que todas

25 O IVA, como produto da evolução e aperfeiçoamento dos impostos cumulati‑vos, pretende exactamente, através do método do crédito de imposto, evitar tais efeitos, tendo por objectivo que, em cada transacção, se tribute apenas o valor da transmissão IVA excluído. Como salienta António Dúran -Sindreu Buxadé, Iva, Subvenciones y Regla de la Prorrata en Nuestro Derecho Interno: su Adecuación al Derecho Comunitário, Aranzadi Editorial, 2001, p. 49, “En definitiva, la finalidad del impuesto exige su efectiva neutrali‑dad, lo que se consigue mediante la utilización de dos figuras de suma importancia en el seno del impuesto: la de la ‘repercusión’ y la del ‘derecho a la deducción’”.

26 Sobre a limitação do direito à dedução veja -se, da autora, “IVA – Algumas notas sobre as exclusões do direito à dedução”, Fisco n.ºs 115/116, Setembro de 2004.

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as partes beneficiassem da neutralidade em termos de fluxo de tesoura‑ria. Este sistema teria ainda como vantagem limitar as perdas de IVA por insolvência do cliente. Mas importa salientar que está longe de ser um sistema perfeito, diferindo o direito à dedução do imposto suportado tam‑bém para o momento do pagamento pelo adquirente27.

Acresce que as administrações fiscais têm abordagens diferentes quanto aos reembolsos, dados os riscos de fraude.

Além disso, os regimes de reembolso para empresas estabelecidas num Estado membro diferente complicam e atrasam a dedução efectiva do IVA. Neste contexto, a Comissão adianta que um mecanismo de bal‑cão único, em que as empresas pudessem pagar o IVA a montante atra‑vés de compensação com o IVA em dívida nesse Estado membro, poderia constituir uma solução28.

4.2. Serviços internacionais

Quanto aos serviços internacionais a Comissão salienta que importa definir abordagens acordadas internacionalmente para evitar a respectiva dupla tributação ou a não tributação, estando a ser realizado um trabalho importante nesta matéria na OCDE.

Além de garantir a segurança jurídica ao nível da tributação no país de consumo, algumas questões respeitam à verificação da correcta aplica‑ção do IVA, como, nomeadamente, no caso dos serviços prestados elec‑tronicamente entre sujeitos passivos e consumidores finais (operações

27 Sobre esta questão veja -se António Carlos dos Santos, “O regime de exigibili‑dade de caixa no IVA: a excepção e a regra”. Revista TOC n.º 110, Maio de 2009, dis‑ponível em http://www.ctoc.pt/downloads/files/1242911123_33a36_Gabinete_de_estudos_final.pdf

28 Grosso modo, de acordo com a filosofia do mecanismo de balcão único, o sujeito passivo que faz operações localizadas num Estado membro onde não se encontra regis‑tado, pode optar por ter um só Estado membro de identificação, sendo apenas aí identifi‑cado para efeitos de IVA, cumprindo todas as suas demais obrigações para com os outros Estados membros via electrónica. Actualmente só existe um regime de balcão único para prestações de serviços de telecomunicações, radiodifusão e televisão e serviços electróni‑cos efectuadas por sujeitos passivos não estabelecidos na UE. A partir de 1 de Janeiro de 2015, prevê -se a sua aplicação relativamente às mesmas operações efectuadas por sujeitos passivos estabelecidos na UE mas não no Estado membro de consumo.

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B2C), como o software ou a música distribuída em linha (a cobrança do IVA depende, em especial, do cumprimento voluntário dos fornecedores e prestadores estabelecidos fora do território da UE).

Neste contexto, a Comissão apela para o incentivo da cooperação internacional das administrações fiscais em matéria de IVA e para se pro‑curar novas formas de cobrar o IVA junto de particulares, por exemplo, mediante verificação dos pagamentos em linha.

4.3. Processo legislativo

É evidente que a utilização de regulamentos do Conselho em vez de directivas garantiria uma maior harmonização. Ora, a base jurídica para harmonização do IVA requer a unanimidade mas não especifica o instru‑mento jurídico que deve ser utilizado para alcançar esse objectivo29.

As medidas da UE para aplicação da Directiva IVA, nomeadamente as decisões do Comité IVA, têm igualmente de ser acordadas por unani‑midade. Como a Comissão salienta, uma solução passaria por permitir à Comissão a adopção de decisões de execução com o consentimento da maioria dos Estados membros. A Comissão já tinha apresentado uma pro‑posta semelhante no passado, que teria modificado o papel do Comité de IVA, mas que o Conselho não apoiou30.

Este problema poderia igualmente ser ultrapassado, embora de uma forma imperfeita, se esta explicasse, a título informativo, a interpretação que deve ser dada às alterações da legislação em matéria de IVA.

Como a Comissão refere, transpor as novas regras muito antes da sua entrada em vigor poderia prevenir estes problemas. Poderia prever ‑se um procedimento para simplificar e coordenar o processo de aplicação nacional ao nível da UE.

4.4. Regimes de derrogação

Os Estados membros podem solicitar derrogações ao sistema comum do IVA a título individual, a fim de simplificar o procedimento de cobrança

29 Artigo 113.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).30 COM (97) 325 de 25.6.1997.

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do IVA ou impedir certas formas de fraude ou de evasão fiscal através de medidas específicas de natureza temporária e adaptadas a uma situação nacional concreta31.

Ora, a concessão de derrogações conduz a resultados muito hetero‑géneos, o que aumenta a complexidade do sistema de IVA.

Acresce que a experiência recente em matéria de fraude organizada veio demonstrar que o procedimento de concessão de excepções nem sem‑pre é suficientemente flexível para garantir uma reacção imediata e ade‑quada. Neste contexto, como a Comissão indica, uma das possibilidades poderia ser a de permitir que esta dispusesse de mais poderes para conce‑der num lapso de tempo muito curto, a pedido devidamente justificado de um Estado membro, excepções temporárias destinadas a impedir a fraude.

4.5. Taxas

Um sistema de IVA “definitivo” baseado na tributação na origem exigiria um grau de harmonização mais elevado das taxas de IVA.

Tal como a Comissão salienta, um sistema de IVA com uma base de incidência ampla, de preferência com uma taxa única, aproximar -se -ia do ideal de um imposto de consumo que permite minimizar os custos de conformidade. Contudo, na UE, a taxa normal apenas abrange dois terços do consumo total, beneficiando o terço restante de diferentes isenções ou de taxas reduzidas32.

Nos Estados membros que são igualmente membros da OCDE, as receitas efectivas de IVA representam apenas 55% da média das receitas que, teoricamente, seriam cobradas se todo o consumo final fosse tribu‑tado à taxa normal.

Em 2008 as receitas provenientes do IVA representaram 21,4% das receitas fiscais nacionais dos Estados membros da UE (incluindo contri‑buições para a segurança social), um aumento de 12% desde 199533. O IVA

31 A lista das actuais excepções aplicáveis está disponível em http://ec.europa.eu/taxation_customs/taxation/vat/key_documents/table_derogations/index_en.htm

32 Study on reduced VAT applied to goods and services in the Member States of the European Union, relatório final da Copenhagen Economics, 21.6.2007.

33 Taxation trends in the European Union, edição de 2010, anexo A, quadros 7 e 8.

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é uma importante fonte de receitas para os orçamentos nacionais, repre‑sentando em muitos Estados membros, como é o caso do nosso país, a fonte principal. As receitas provenientes do IVA representaram em 2008, em média, 7,8% do PIB de um Estado membro, um número que aumen‑tou quase 13% desde 1995.

Os desvios do IVA na UE (diferença entre as receitas efectivas de IVA e aquelas que os Estados membros deveriam teoricamente receber, tendo em conta as respectivas economias) ascenderiam a 12% das recei‑tas teóricas de IVA em 2006, sendo esta percentagem superior a 20% em alguns Estados membros34.

Argumentou -se que a aplicação de uma taxa de IVA única a todos os bens ou serviços seria uma solução ideal de um ponto de vista de efi‑cácia económica35. Ao mesmo tempo, a utilização das taxas reduzidas como instrumento político é frequentemente defendida, nomeadamente por razões de saúde, culturais e ambientais para proporcionar maior facili‑dade e igualdade no acesso a conteúdos educativos e culturais e incentivar a eco -inovação e um crescimento eficiente baseado no conhecimento36.

A actual variação da taxa normal ao nível da UE e as taxas reduzidas aplicadas por alguns Estados membros não parecem perturbar o mercado único. Esta situação justifica -se principalmente pelo facto de existirem mecanismos de correcção (regimes especiais para as vendas à distância de bens ou serviços e para os meios de transporte novos) no sistema de IVA em vigor, mas que aumentam substancialmente a sua complexidade.

As operações transfronteiras relativas a bens e serviços tributados a uma taxa reduzida criam, contudo, custos de cumprimento e são fonte de incerteza jurídica para as empresas. Este problema coloca -se parti‑cularmente quando uma empresa passa a estar sujeita ao pagamento de IVA num Estado membro em que não está estabelecida. Neste contexto, a Comissão conclui que se poderia obter maior transparência com uma

34 Estudo que visa quantificar e analisar os desvios do IVA nos Estados membros da UE 25, efectuado por Reckon LLP em nome da Comissão.

35 Copenhagen Economics, op. cit.36 Veja -se relatório de síntese das conclusões da consulta pública Review of existing

legislation on VAT reduced rates (Revisão da legislação vigente em matéria de taxas de IVA reduzidas) realizado em 2008 está disponível em http://ec.europa.eu/taxation_customs/resources/documents/common/consultations/tax/summary_report_consultation_vat_rates_en.pdf.

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base de dados em linha obrigatória que incluísse uma lista de bens e ser‑viços sujeitos a uma taxa reduzida.

Além disso, continuam a subsistir incoerências nas taxas de IVA aplicadas a bens ou serviços comparáveis. Como a Comissão indica, designadamente, os Estados membros podem aplicar uma taxa de IVA reduzida a certos produtos culturais mas têm de aplicar a taxa normal a serviços em linha em concorrência com esses bens, como os livros e os jornais electrónicos37.

Toma ‑se ainda nota que diversos Estados membros aumentaram recentemente as taxas de IVA ou pensam vir a fazê -lo para responder às necessidades de consolidação impostas pela crise ou no contexto de uma tendência a longo prazo de passagem da fiscalidade directa para a fisca‑lidade indirecta.

5. Reduzir a burocracia

Na sequência da aprovação pelo Conselho Europeu em 200738 do pro‑grama de acção da Comissão39 para, até 2012, reduzir em 25% os encargos administrativos que decorrem de legislação da UE, a Comissão apresen‑tou, em 2009, um plano relativo, nomeadamente, ao IVA40.

Este plano, que contém 16 medidas, como a abolição da declaração recapitulativa anual de IVA ou das listas de aquisições intra -UE e a redu‑ção da frequência das declarações de IVA41.

A Directiva IVA prevê um conjunto comum de obrigações, sendo permitida uma certa liberdade aos Estados membros para as cumprir. Ora, a Comissão sugere que para reduzir os custos de cumprimento poderia ser concebida uma declaração de IVA normalizada à escala da UE, disponí‑vel em todas as línguas, que as empresas poderiam optar por utilizar, mas

37 Facto que parece à primeira vista colidir com o princípio da não discriminação vigente em matéria de tributação do comércio electrónico.

38 Conclusões da Presidência do Conselho Europeu (8 e 9 de Março de 2007, p. 10).39 Programa de acção de 2007 da Comissão para reduzir os encargos administrati‑

vos e simplificar obrigações em matéria de IVA - COM (2007) 23 de 21.1.2007.40 COM (2009) 544, de 22.10.2009 e Anexo.41 Parecer adoptado em 28.5.2009 http://ec.europa.eu/enterprise/policies/better-

-regulation/administrativeburdens/ high -level -group/index_en.htm.

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que todos os Estados membros teriam de aceitar. Contudo, a alteração das práticas vigentes nos Estados membros teria um custo para as administra‑ções fiscais e para as empresas, incluindo as que apenas têm de cumprir as referidas obrigações num único Estado membro.

Tal como a Comissão indica, se a harmonização total não for ade‑quada, haveria a possibilidade de limitar as diferenças através da defini‑ção, a nível da UE, de uma lista exaustiva de obrigações normalizadas de IVA que podem ser impostas pelos Estados membros. O estabelecimento prévio de um conjunto de obrigações facilitaria o seu tratamento pelos sistemas informáticos.

A complexidade das regras do IVA traduz -se em relevantes sobrecar‑gas administrativas para as empresas. A gestão do IVA representa quase 60% da carga total medida em 13 áreas prioritárias identificadas no âmbito da iniciativa Legislar Melhor42.

5.1. Pequenas empresas

O regime especial para pequenas empresas previsto na Directiva IVA e entre nós contemplado no artigo 53.º do Código do IVA, tem essen‑cialmente como objectivo reduzir os encargos administrativos relativos à aplicação das regras normais de IVA: as empresas com um volume de negócios anual abaixo de um certo limiar podem beneficiar da isenção de IVA.

Contudo, este regime difere nos Estados membros, existindo dis‑tintos limiares e alguma discricionariedade, apresentando alguns proble‑mas. Além disso, o método de cálculo do limiar e âmbito de aplicação do regime não têm em consideração o mercado único: por exemplo, o regime não abrange as entregas de bens nem as prestações de serviços realizadas noutros Estados membros.

Tal como a Comissão salienta, a solução mais óbvia apontaria para um regime aplicável em toda a UE com um limiar comum e com um

42 COM (2009) 544, de 22.10.2009, Programa de acção para a redução dos encar‑gos administrativos na União Europeia ‑ Planos de redução sectoriais e acções para 2009; estudos sobre as medidas: http://ec.europa.eu/ enterprise/policies/better -regulation/ documents/ab_studies_2009_en.htm

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maior leque de possibilidades para reduzir custos de cumprimento no mercado único.

Acresce que, para além dos regimes concebidos para as pequenas empresas, nos anos 70 foi introduzido um regime especial para agricul‑tores com dificuldades em aplicarem as regras normais. Neste contexto, a Comissão nota que as razões para manter este regime devem ser anali‑sadas, uma vez que os esforços para ajudar as pequenas empresas pode‑riam também responder às necessidades de simplificação dos pequenos agricultores.

5.2. Mecanismo do balcão único

Nas operações B2C sujeitas a IVA num Estado membro diferente daquele em que o fornecedor ou o prestador está estabelecido, o cumpri‑mento das regras específicas desse Estado membro nem sempre é fácil. O regime do balcão único proposto pela Comissão em 2004 e ainda a ser analisado pelo Conselho destinava ‑se a reger esses casos43. Como a Comissão faz questão de salientar, o conceito subjacente permanece válido. Enquanto o IVA for baseado na tributação no lugar de destino, o balcão único continuará a ser conveniente por representar uma medida de simplificação e favorecer o cumprimento das regras e o comércio transfronteiras.

5.3. Adaptação do sistema de IVA às grandes empresas e às empresas pan ‑europeias

As empresas queixam -se da falta de regras em matéria de IVA coe‑rentes e claras que se adequem às estruturas empresariais existentes. As administrações fiscais, por seu lado, estão preocupadas com as possibili‑dades de evasão ao IVA em estruturas empresariais complexas.

43 COM (2004) 728 de 29.10.2004. Como é sabido, existe um regime mais rigoroso para a prestação de serviços electrónicos B2C por prestadores não pertencentes à UE e que será alargado em 2015 aos serviços de telecomunicações, serviços de televisão e de radiodifusão e aos prestadores da UE.

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Considerar que as operações entre empresas coligadas ou as entregas de bens entre sucursais são excluídas do âmbito de aplicação do IVA ou alargar do âmbito de aplicação territorial dos agrupamentos para efeitos de IVA são soluções que permitiriam reduzir os custos de conformidade do IVA num grande número de operações dentro da UE. Contudo, have‑ria que garantir que esta evolução não favoreceria injustamente as gran‑des empresas em relação às mais pequenas, ou potenciaria novos meios de fraude ou de evasão fiscal.

5.4. Cobrança do IVA

Em 2009 foi feito um Estudo sobre as formas de melhorar e de sim‑plificar a cobrança do IVA através de tecnologias modernas e/ou de inter‑mediários financeiros44.

Foram considerados quatro modelos, a saber:

• O cliente dá ordem para que os montantes relativos aos bens ou aos serviços sejam pagos pelo seu banco, que fracciona o pagamento em, por um lado, montante tributável pago ao fornecedor ou ao prestador e, por outro, montante de IVA transferido directamente para a administração fiscal. Como a Comissão nota, este modelo permitiria suprimir a fraude do «operador fictício», mas exigiria alterações substanciais na maneira como as administrações fiscais e as empresas gerem o IVA. A questão das operações efectuadas em líquido ou através de cartão de crédito requer um maior apro‑fundamento.

• Existiria uma base de dados central de controlo do IVA para a qual seriam enviados em tempo real todos os dados relativos à factura‑ção. As administrações fiscais seriam informadas mais rapidamente do que no presente e algumas das obrigações em matéria de IVA actualmente impostas poderiam ser abolidas. Como a Comissão salienta, seria mais eficaz e menos pesado se a facturação electró‑nica fosse utilizada para todas as operações B2B.

44 http://ec.europa.eu/taxation_customs/index_en.htm

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• O sujeito passivo descarregaria, em formato acordado, os dados predefinidos da operação para um armazém de dados (data warehouse) IVA protegido, gerido pelo sujeito passivo e acessí‑vel à administração fiscal, directamente ou a pedido num lapso de tempo muito breve. Alguns Estados membros seguiram esta via, não tendo encontrado problemas importantes. Contudo, o modelo não impede a fraude do «operador fictício», uma vez que, se o comerciante desaparecer, o seu armazém de dados de IVA desa‑parece igualmente. No entanto, como a Comissão sublinha, este modelo permite uma detecção mais rápida dos casos de fraude.

• O processo e os controlos internos relativos ao cumprimento das regras em matéria de IVA pelo sujeito passivo seriam objecto de certificação. Alguns Estados membros seguiram esta via. Tal como a Comissão nota, este modelo deveria permitir reforçar a confiança entre administrações fiscais e contribuintes, todavia, o processo de certificação é demorado e exige um relevante investimento das administrações fiscais em recursos humanos.

O estudo em apreço mostra que os quatro modelos têm uma relação de custo -benefício positiva45. Todavia, os custos de investimento inicial exigido diferem segundo os modelos. Neste contexto, a Comissão refere que uma combinação dos diferentes modelos poderia igualmente consti‑tuir uma via mais eficaz.

Outra preocupação demonstrada pela Comissão é a protecção dos comerciantes de boa fé contra uma potencial implicação na fraude ao IVA46. O TJUE confirmou que quando a administração fiscal pode

45 http://ec.europa.eu/taxation_customs/index_en.htm.46 Sobre este assunto veja -se António Carlos dos Santos, “Sobre a “fraude carrossel”

em IVA: nem tudo o que luz é oiro”, Vinte Anos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado em Portugal: Jornadas Fiscais em Homenagem ao Professor José Guilherme Xavier de Basto, Almedina, Novembro 2008, pp. 23 -83, Clotilde Celorico Palma, “Regime Transi‑tório do IVA nas Transacções Intracomunitárias – Casos mais relevantes de fraude e eva‑são fiscais”, Boletim da APECA n.º 93, Junho de 1999, Miguel Silva Pinto, “Contributos da jurisprudência comunitária para a luta contra a fraude ao IVA”, Estudos em memória de Teresa Lemos, op. cit., Alexandra Martins, Admissibilidade de uma Cláusula Geral Anti ‑Abuso em Sede de IVA, Cadernos IDEFF n.º 7, Almedina, Coimbra, 2007, Ben Terra, “The European Court of Justice and the Principle of Prohibiting Abusive Practices

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demonstrar que o cliente sabia ou devia ter sabido que a sua compra fazia parte de uma operação ligada a uma fraude ao IVA, pode recusar ao cliente o direito à dedução.

As administrações fiscais devem provar caso a caso que esta con‑dição foi cumprida, procedimento este que se revela moroso, oneroso e complicado.

Diversos Estados membros introduziram medidas nacionais destina‑das a limitar perdas de IVA decorrentes da fraude do «operador fictício», tentando recuperar o imposto junto de outros sujeitos passivos envolvidos na mesma cadeia de operações.

5.5. Uma gestão do sistema de IVA eficaz e moderna

A Comissão, na sua comunicação de Dezembro de 2008, Uma estra‑tégia coordenada para melhorar o combate à fraude ao IVA na União Europeia47, propôs que fosse adoptada uma nova abordagem baseada no cumprimento voluntário, na avaliação dos riscos e no acompanhamento, com o objectivo de reduzir a participação das administrações fiscais e os encargos administrativos das empresas. Neste contexto sugere, a título exemplificativo, as seguintes medidas:

– reforço do diálogo entre as administrações fiscais e as outras par‑tes interessadas, por exemplo, mediante a criação de um fórum de debate permanente que permita a troca de opiniões entre as admi‑nistrações fiscais e os representantes das empresas a nível da UE;

– combinar as melhores práticas nos Estados membros, por exem‑plo, através da elaboração de orientações para simplificar práticas administrativas e abolir encargos inúteis para as empresas;

– definir uma política da UE no domínio do cumprimento voluntário adaptado ao sistema de IVA da UE através de acordos específicos

in VAT”, in GST in Retrospect and Prospect, Editors, Richard Krever and David White, Thomson, 2007, pp. 495 -514, e Rita de la Feria, “The European Court of Justice’s solu‑tion to agressive VAT planning – Further towards legal uncertainty?”, EC Tax Review, n.º 1, 2006, pp. 27 -35.

47 COM (2008) 807, de 1.12.2008.

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com as partes interessadas, por exemplo, mediante o desenvolvi‑mento da ideia de «parcerias» entre administrações fiscais e con‑tribuintes e de um sistema de decisões antecipadas sobre o trata‑mento fiscal de certas operações;

– ter em consideração os aspectos informáticos na aplicação das novas regras de IVA: definindo um prazo apropriado e acordando um método de trabalho para a adaptação dos sistemas informáti‑cos, tanto ao nível das empresas como das administrações fiscais; facilitando a transferência automatizada de informação entre con‑tribuintes e administrações fiscais através do reforço da interope‑rabilidade, e, eventualmente, desenvolvendo o software específico apoiado ao nível da UE e disponibilizado a todos os Estados mem‑bros.

6. Conclusões

Tendo em vista a prossecução dos objectivos da construção europeia e reflectindo os desenvolvimentos do processo de integração, o modelo comum do IVA apresenta ainda muitas deficiências48. Tais deficiências devem -se, sobretudo, a um grau de harmonização legislativa insuficiente (sendo, nomeadamente, permitidas diversas opções no regime vigente), mas também às distintas interpretações e aplicações práticas das regras comunitárias deste tributo e a algumas derrogações ao sistema comum.

O insatisfatório grau de harmonização do imposto, pondo em causa o princípio da neutralidade, abre portas a relevantes problemas, concreta‑mente a significativas distorções de concorrência em diversos domínios, tais como os da delimitação negativa de incidência das entidades públi‑cas e das isenções.

No Livro Verde ora apresentado a Comissão aborda os problemas essenciais. Importa agora estabelecer linhas de acção e traçar prioridades.

48 O Director da “Tax Policy Division” do FMI, na International Tax Dialogue Con‑ference on VAT, Roma 15 e 16 de Março de 2005, caracterizou o IVA e o GST (Goods and Services Tax em vigor, nomeadamente, na Nova Zelândia e na Austrália) como “shame‑fully under ‑researched” (M. Keen, “The VAT Experience”, Sessão Plenária, slide cinco, disponível em www.itdweb.org/VATConference/pages/PapersPresentation.aspx.).

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Neste contexto, apresentamos algumas considerações relativas a linhas de acção que, em nosso entendimento, deverão ser adoptadas.

O facto de as operações nacionais e intra -UE continuarem a ser tra‑tadas de forma diferente para fins de IVA é, sem dúvida, um obstáculo à melhoria do funcionamento do mercado único.

A questão da abolição das fronteiras fiscais, longe de ser pacífica, é um complexo problema, essencialmente de natureza política, que supõe um equilíbrio entre objectivos manifestamente contraditórios.

Várias têm sido as alternativas apresentadas, mais de um ponto de vista teórico do que prático, tendo em vista alterar o sistema comum do IVA. Entre elas, poderemos indicar, desde logo, a proposta apresentada em 1995 por Vanistendael, de tributação no país de origem às taxas do país de destino, que vem corroborar a tese defendida por Maurice Lauré. Com efeito, de acordo com Lauré o IVA devia ser calculado na origem com as taxas em vigor no país de destino. Os expedidores calculariam os montantes do IVA do país de destino, mencioná -lo -iam à parte nas suas declarações fiscais e as administrações fiscais do país de origem transferi--lo -iam para os países de destino. Temos também a proposta apresentada em 1996 por Keen e Smith, de introdução do sistema VIVAT, de acordo com a qual as transacções entre sujeitos passivos, incluindo as intracomu‑nitárias, seriam submetidas a uma taxa europeia uniforme mantendo os Estados membros a possibilidade de fixarem as taxas aplicáveis aos consu‑midores finais e a tese defendida por John Arnold em 1997, no sentido de conservar por tempo indeterminado o regime transitório, procedendo ‑se, todavia, ao respectivo aperfeiçoamento, ideia corroborada no designado Relatório Badré apresentado junto do Senado francês. Foi apresentada por Lord Cockfield em 1987, a alternativa de passar ao regime de tributação na origem, introduzindo -lhe pequenas alterações, conforme o defendido por George von Wallis, de adoptar o novo sistema comum do IVA pro‑posto pela Comissão em 1996, i.e., um regime baseado na tributação no Estado membro do estabelecimento, tal como o proposto por Jean ‑Claude Bouchard, e de cobrar o IVA a nível da União Europeia, transformando -o num verdadeiro tributo europeu, com fusão dos IVA nacionais, tal como o proposto por Ben Terra.

Tendo em consideração as propostas equacionadas, afigura -se -nos que a de Maurice Lauré seria a mais simples, embora acarretasse um aumento de custos administrativos para os sujeitos passivos.

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A optar pela manutenção do sistema actual, teremos que aperfeiçoá -lo.Não poderemos subestimar as dificuldades políticas de passagem

para um novo sistema de IVA, sobretudo numa União Europeia cada vez mais alargada, em que subsiste a regra da unanimidade na decisão em matéria fiscal, a qual é expressão de um princípio de cooperação inter‑nacional neste domínio mais do que um princípio da União Europeia dado, na prática, ao permitir que funcione o não como um verdadeiro veto reflecte a soberania fiscal dos Estados membros, mas, simultanea‑mente, poderá vir a impedir que um Estado reveja posições que tomou anteriormente.

Uma solução mais viável, dadas as dificuldades de consenso sobre o desenho do regime definitivo, foi a da manutenção do regime transitório, com pequenos aperfeiçoamentos, tornando ‑se com o decurso do tempo um regime cada vez mais definitivo. Mas a manutenção do status quo não significa obviamente que o regime transitório seja considerado perfeito. E menos ainda significa que o seja a sua implantação prática.

E também não significa (ou não parece significar) o abandono defi‑nitivo por parte da Comissão do projecto de construção de um regime do IVA baseado no princípio da origem, recentemente hábil e pragmatica‑mente substituído pela ideia de “um local único de tributação”, no dizer da Comissão, seu objectivo originário desde a instituição deste imposto na Comunidade.

Quanto ao tratamento das entidades públicas, entendemos que o legislador comunitário, quando contemplou a delimitação negativa de incidência em 1967, teve em mente um tratamento especial de deter‑minadas actividades de interesse público e não das entidades públicas. Fê ‑lo, porém, através do recorte do elemento subjectivo, dada a situação de monopólio ou quase monopólio com que tais actividades, à data, eram exercidas. Neste contexto, denotamos a progressiva inadaptação à reali‑dade actual do enquadramento existente, quer a nível conceptual quer a nível prático, questionando -se, em especial, sobre uma correcta aplicação do princípio fundamental da neutralidade. O tratamento em IVA das enti‑dades públicas tornou -se um dos símbolos do anacronismo das regras do Direito da União Europeia, encontrando ‑se manifestamente em ruptura com o princípio da neutralidade, sendo cada vez mais premente proceder à sua revisão. Para o efeito, defendemos um modelo de tributação gene‑ralizada tipo neozelandês, contudo, tratando ‑se de uma revolução, dever‑

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-se -á adoptar uma solução gradual, começando -se por introduzir aperfei‑çoamentos nas regras actuais.

Associada a esta problemática está a questão das isenções e dos sub‑sídios, dado estes normalmente serem atribuídos por entidades públicas.

As isenções são contrárias ao princípio do IVA como um imposto de ampla base de incidência, sendo questionável a razão de ser de mui‑tas das isenções actuais, como é o caso da isenção aplicável aos serviços públicos postais. Como a Comissão salienta, alargar a base de incidên‑cia mediante a redução do número de isenções permitiria reforçar a efi‑cácia e a neutralidade do imposto, constituindo uma alternativa válida ao aumento das taxas de IVA.

Um imposto totalmente neutro parece estar fora de questão sempre se concedendo algumas isenções, existindo, eventualmente, diferenciações na taxa aplicável às diferentes transacções de bens e serviços49.

Uma questão que não é tratada pela Comissão no Livro Verde é a das subvenções. De acordo com as regras do sistema comum do IVA, as subvenções tributáveis em sede deste imposto são as “subvenções direc‑tamente relacionadas com o preço”, tendo o legislador comunitário pre‑tendido incluir na matéria colectável do IVA todas as ajudas que influen‑ciam directamente o montante da contrapartida obtida pelo fornecedor ou pelo prestador.

Desde logo, as subvenções assumem diversas formas e designa‑ções e têm objectivos económicos distintos. Os subsídios ou subvenções como lhes chama a legislação nacional, invariavelmente designados pela jurisprudência do TJUE como subsídios, prémios, ajudas, compensações, incentivos, contribuições e, até mesmo (incorrectamente) indemnizações, podem ter distintos enquadramentos em sede deste imposto.

A questão primordial consiste, antes de mais, em determinar quando é que uma subvenção se consubstancia na contrapartida de uma operação

49 Com efeito, como salienta Pitta e Cunha, “Já há muito a ciência fiscal abando‑nou a antiga concepção de neutralidade do imposto, segundo a qual a tributação neutra seria aquela que não influi na vida económica. Toda a fiscalidade produz hoje inevitáveis modificações na economia; entende ‑se hoje que o imposto é ‘neutro’ quando opera modi‑ficações homotéticas, iguais para todos os elementos do meio económico.” (“A tributação do valor acrescentado”, Vinte Anos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado em Portugal: Jornadas Fiscais em Homenagem ao Professor José Guilherme Xavier de Basto, Alme‑dina, Coimbra, Novembro 2008, p. 113).

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abrangida pelo âmbito de incidência do imposto (“subsídio impróprio” ou “pseudo subsídio”), só depois se suscitando uma outra questão: a de saber se faz ou não parte da base tributável e se é susceptível de influen‑ciar o pro rata de dedução do imposto. Contudo, sabermos quando é que uma subvenção é incluída no valor tributável de uma operação, sendo objecto de tributação em IVA, pode revelar -se uma tarefa extremamente complexa. Na prática, há uma grande dificuldade em distinguir as sub‑venções tributadas directamente relacionadas com o preço das operações e as não tributadas.

As soluções que têm vindo a ser sugeridas pela Comissão no quadro das propostas alternativas de tributação das entidades públicas em IVA, podem resumir -se nas opções de tributar todos os subsídios ou manter o status quo, procedendo a algumas alterações pontuais.

A primeira hipótese tem andado relacionada com a opção de tribu‑tação generalizada das entidades públicas em IVA. Em tais circunstân‑cias haveria um maior grau de harmonização e maior simplicidade do sistema, sendo certo que os problemas relativos ao exercício do direito à dedução do imposto suportado seriam eliminados, dado que os organis‑mos públicos teriam o direito à dedução do imposto nos termos gerais. Contudo, esta alteração consubstanciar ‑se ‑ia numa mudança radical na filosofia vigente.

Em conformidade com a segunda opção e tendo em conta a juris‑prudência do TJUE de acordo com a qual há que proceder a uma análise casuística dos subsídios, poder -se -ia, nomeadamente, contemplar uma lista exaustiva dos subsídios que se consideram tributáveis ou conceber a hipótese de isentar todos os subsídios. Embora o objectivo da harmo‑nização do imposto fosse atingido, o certo é que as isenções implicam sempre distorções. Por outro lado, a criação de uma lista exaustiva iria introduzir uma inflexibilidade indesejável nesta matéria e careceria de uma constante actualização.

Em suma, somos a favor de uma revisão urgente das regras de delimitação negativa de incidência a par das isenções e da tributação dos subsídios, com tendência para adopção de um sistema generalizado de tributação como o existente na Nova Zelândia.

No tocante à simplificação do sistema existente e em especial à diminuição de custos de cumprimento, cremos que seria desejável um alargamento do mecanismo do balcão único a outras situações, como,

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por exemplo, às vendas à distância (no pressuposto da manutenção do regime transitório com introdução de aperfeiçoamentos) e das prestações de serviços B2C.

No domínio do processo legislativo, não se nos afigura curial a passagem à votação por maioria qualificada, ainda que em certos domínios mais restritos, como no Comité IVA, estando em causa interesses de pequenos países como o nosso.

Quanto à questão da protecção dos comerciantes de boa fé contra uma potencial implicação na fraude ao IVA, afigura -se -nos igualmente bastante relevante.

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Maria Celeste Cardona

Contribuição Extraordinária sobre o Sector Bancário

Maria Celeste CardonaAdvogada

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RESUMO:

A Contribuição Extraordinária sobre o sector bancário aprovada na Lei de Orçamento de Estado para 2011 determina a sua regulamentação por Portaria quer da matéria colec‑tável quer da fixação das respectivas taxas, o que conduzirá, a nosso ver, à apreciação da respectiva conformidade com os princípios constitucionais em matéria de sistema fiscal.

Palavras ‑chave:Sistema Fiscal Contribuição Extraordinária sobre o sector bancárioConstitucionalidade

ABSTRACT:

The Special Contribution on Banking Law approved in Budget 2011 to determine its rules by decree or the tax base or the fixing of their rates, leading to the assessment of their compliance with the constitutional principles regarding the tax system.

Keywords:Tax SystemSpecial Contribution on BankingConstitutionality

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Introdução

Como sabemos, foi recentemente aprovada a Lei do Orçamento de Estado para 2011 que, na parte que nos ocupa, veio introduzir no nosso ordenamento jurídico fiscal um novo imposto, denominado de Contribui‑ção Extraordinária sobre o sector bancário.

Este novo imposto tal qual resulta do Relatório Anexo à Lei do Orça‑mento suscitou diversas dúvidas interpretativas quer quanto à sua natu‑reza quer no que se refere ao respectivo âmbito de aplicação subjectivo e objectivo.

Das breves explicações dadas, designadamente no decurso da discus‑são parlamentar do Orçamento, não resultou uma cabal explicação quer das motivações quer da delimitação e definição exacta das entidades a que se aplica bem como da base de incidência sobre que vai ser lançado e liquidado este imposto.

Na verdade, ao que parece resultar dos elementos conhecidos, esta Contribuição foi “importada” das propostas que tem vindo a ser apresen‑tadas pela Comissão Europeia tendentes à criação de uma Contribuição destinada a financiar eventuais crises do sector financeiro.

Com efeito, mesmo na discussão parlamentar, ficou a saber -se que os contornos desta nova Contribuição seriam ainda objecto de um maior apuramento em função dos desenvolvimentos que estão a ser realizados a nível comunitário.

Parece pois, poder dizer -se que a Contribuição Extraordinária sobre o sector bancário, apesar de inscrita e aprovada na Lei do Orçamento de Estado para 2011, ainda carece de ulterior definição conteúdistica em razão da principal elegibilidade que previsivelmente venha a ser acolhida na ordem jurídica portuguesa.

Em qualquer caso e tendo presente a importância deste novo imposto quer em termos do seu âmbito de aplicação e das respectivas consequên‑cias quer da afectação que vai ser conferida ao valor das suas receitas, parece -nos pertinente elaborar um conjunto de Notas susceptível de nos oferecer o enquadramento comunitário e nacional da aludida Contribui‑ção Extraordinária.

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I

A TRIBUTAÇÃO DO SECTOR COMO UM INSTRUMENTOPARA A CRISE GLOBAL

Ao longo da crise, os vários Governos disponibilizaram enormes montantes de fundos públicos para apoio dos seus sectores financeiros.

Este apoio revelou -se necessário para apoiar e garantir a estabilidade financeira a nível global.

Daqui resultou e resulta, naturalmente, a imposição de um pesado encargo para as actuais e as futuras gerações.

De acordo com o FMI, o custo orçamental directo líquido da crise foi, em média, de 2,7% do PIB nos países avançados do G20.

As projecções apontam ainda para um aumento de quase 40% na dívida pública das economias avançadas do G20 entre 2008 e 2015.

O diagnóstico da crise e as propostas tendentes a ultrapassá -la assu‑miram, em todos os casos, duas possíveis formas de intervenção:

a) A introdução de novas regras e o reforço das existentes no que se refere aos mecanismos de regulação e supervisão dos mercados, nomeadamente financeiros;

b) Paralelamente, a criação de um “imposto sobre bancos”.

Uma das primeiras propostas que se conhecem é a do FMI de 16 de Abril de 2010 que se concretizou pela introdução de uma “financial stability contribution” como uma das três opções possíveis para fazer face à crise.

Estas três opções surgiram em resposta a um pedido anterior dos líderes do G20, na Cimeira de Pittsburg de Setembro de 2009.

Desta Cimeira e do Conselho ECOFIN de 18 de Maio de 2010 saí‑ram duas orientações fundamentais, a saber:

a) A de que o dinheiro dos contribuintes não deve voltar a ser utili‑zado para cobrir as perdas do sector bancário, e a de que:

b) Deve ser o sector a “pagar” os encargos que ele próprio gera, através da criação de um “imposto sobre bancos”.

Temos, portanto, que a crise assumiu foros de grande evidência de tal modo que as autoridades internacionais não puderam deixar de reflectir

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e, nessa medida, de formular possíveis soluções para dar resposta aos problemas existentes mediante a criação de mecanismos susceptíveis de prevenir crises futuras.

Deste modo, para além do FMI também as autoridades comunitárias competentes avançaram com algumas propostas tendentes, como acima se refere, a reforçar os mecanismos de regulação e de supervisão do sector e a criar mecanismos de financiamento das “crises sistémicas”.

Em breve síntese é o que iremos ver de seguida:

II

ANÁLISE DAS PROPOSTAS RELATIVAS À CONTRIBUIÇÃODO SECTOR PARA A CRISE GLOBAL

II – 1. As Propostas do FMI

No seu Relatório Intercalar de Abril de 2010, o FMI apresentou, a nível internacional, três soluções, todas elas distintas entre si:

i) Contribuição financeira de estabilidade ou “Bank tax” ou “Bank levy”

Criação de um imposto sobre o balanço das instituições bancárias (passivos ou activos), destinado à criação de um Fundo para socorrer o sector bancário num contexto de crise, inicialmente, através de uma taxa fixa, podendo evoluir, mais tarde, para taxas diferenciadas com o objec‑tivo de diferenciar e “penalizar” as instituições dotadas de carteiras de maior risco.

ii) [FAT] Imposto sobre as actividades financeiras ou “Financial Activities Tax”

Imposto sobre os lucros dos bancos e instituições financeiras devendo as respectivas receitas reverter a favor dos Orçamentos estaduais com objectivos de consolidação das finanças públicas.

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iii) [FST] Imposto sobre as Operações Financeiras ou “Financial Transaction Tax”

Criação de um imposto a nível global que deveria incidir sobre um vasto leque de instrumentos financeiros, incluindo, nomeadamente acções, títulos e derivados.

II – 2. As Propostas da Comissão Europeia

A situação de crise vivida a nível mundial reflecte -se, naturalmente no espaço comunitário.

São, pois, desenvolvidos estudos, trabalhos e reuniões múltiplas em que é abordada a situação actual e as potenciais soluções aptas a dar -lhe resposta.

Surge assim o documento de Trabalho da Comissão SEC (2010) 1166/3, de Abril de 2010, em que foram abordadas fontes inovadoras de financiamento das crises.

Na sequência deste documento de trabalho, a Comissão apresentou em Maio de 2010 uma proposta de criação de Fundos de Resolução de Crises, cujos contornos são os seguintes:

a) Os Fundos de Resolução de Crises visam garantir fundamental‑mente que, no futuro, a “insolvência” de um banco não tenha de ser paga pelo contribuinte, para o que:

b) Foi proposta a criação de uma rede harmonizada de sistemas com financiamento antecipado e com a finalidade de aumentar a capa‑cidade de resistência do sector bancário e de evitar o recurso ao dinheiro dos contribuintes;

c) O objectivo nuclear deste sistema era o de até 2014, a par de um Fundo Europeu de Resolução de Crises, adoptar mecanismos integrados de supervisão, regulação e gestão do sector:

d) De acordo com a Comissão, os fundos devem ser mobilizados ex ante e não ex post sobretudo para evitar o potencial recurso ao financiamento inicial pela via dos contribuintes.

No contexto destas propostas a Comissão considera ainda, no âmbito das regras de governação dos Fundos de Resolução que estes devem ser

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mantidos separados do orçamento nacional e exclusivamente utilizados para pagar os custos dessa resolução.

A gestão e administração dos Fundos devem ser confiadas a orga‑nismos executivos independentes.

Com efeito, considera a Comissão que a independência funcional e orgânica em relação ao Governo permitirá assegurar que os Fundos sejam estritamente reservados ao pagamento das medidas de resolução de crises que vierem a ser adoptadas.

Esta Comunicação da Comissão aborda ainda, em termos sumários, algumas das medidas que, no contexto da “crise” poderiam ser financia‑das através do recurso às receitas do Fundo de Resolução de Crises, e que se podem enunciar como segue:

1) Financiamento atribuído a certa instituição bancária de modo a permitir que a mesma, ainda que susceptível de ser considerada insolvente, possa continuar em operação (ex.: dando -lhe garan‑tias ou financiamento de transição);

2) Financiamento tendente a cobrir uma eventual transferência total ou parcial de activos e/ou passivos de certa entidade em difi‑culdade para uma terceira entidade (por ex.: envolvendo uma garantia sobre activos e/ou financiamento e garantia de transfe‑rência de passivos) por um determinado período a fim de man‑ter a confiança nos mercados e de evitar o risco de uma corrida aos depósitos;

3) Financiamento de uma operação de divisão «bom banco/mau banco” que poderá implicar por ex. A compra de “passivos tóxi‑cos” e a respectiva afectação, conservando, através de, por exem‑plo, garantias, a operação do «banco bom»;

4) Cobertura de custos administrativos, legais e de consultoria bem como a preservação das “funções vitais” do banco, tais como por exemplo, a dos sistemas de pagamento

Finalmente, considera a Comissão que toda esta matéria deverá observar e respeitar as regras da EU em matéria de auxílios estatais, isto é, terá de haver uma proporcionalidade entre a partilha adequada de encar‑gos e o tipo de apoio tendo em vista a prevenção de distorções indevidas da concorrência.

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Mais tarde, e em complemento do anterior documento de trabalho, a Comissão Europeia divulgou na sua Comunicação de Outubro de 2010, as futuras regras de tributação do sector financeiro em duas vertentes:

i) IOF Imposto sobre as Operações Financeiras, à escala global, para financiamento de grandes objectivos políticos como o desenvolvimento ou as mudanças climáticas;

ii) IAF Imposto sobre as Actividades Financeiras, à escala da EU, que incidiria sobre os lucros e as remunerações das sociedades financeiras.

A justificação de um novo imposto sobre o sector financeiro deveria, segundo a Comissão, ser baseada nos seguintes argumentos:

i) O sector financeiro foi um dos principais responsáveis pela crise financeira, tendo recebido substancial apoio estatal nos últimos anos devendo pois contribuir de forma adequada para o custo de reconstrução das economias europeias e o relançamento das finanças públicas;

ii) A introdução de um imposto com tais características poderia complementar as medidas de reforço das regras de regulação e de supervisão, concebidas para reforçar a eficiência dos merca‑dos financeiros e reduzir a sua volatilidade;

iii) Uma vez que o sector financeiro beneficia de isenção de IVA na EU, um imposto desta natureza ajudaria a garantir que o sector financeiro contribuiria de forma mais justa e mais substancial para as finanças publicas proporcionando fontes de receita adicio‑nais e propiciando uma maior estabilidade e eficiência no sector.

Por outro lado, a Comissão Europeia não deixou de sublinhar um conjunto de constrangimentos que a criação deste tipo de taxa coloca e que, por isso mesmo, carecem de ser devida e correctamente reflectidos e ponderados, de que se destacam as seguintes condicionantes:

i) A nível político

A Comissão revela preocupações quanto à inexistência de coorde‑nação nos objectivos propostos na implementação das taxas bancárias a nível interno.

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Com efeito, se alguns países norteiam as respectivas decisões de política pela solução baseada no Fundo, como medida reguladora, exis‑tem outros que se baseiam na diminuição do défice.

Por outro lado, há países que limitam temporalmente a utilização dos recursos provenientes das receitas obtidas através do lançamento de novas Contribuições e outros que não o fazem.

Os projectos legislativos dos diversos países são igualmente distin‑tos quanto à sujeição passiva, incidência e taxas.

As tomadas de decisão individualizada, não permitem conhecer, de forma rigorosa, qual o impacto da taxa na economia, designadamente:

– Evasão fiscal, migração de capitais, impacto nos investidores e PME;– Capacidade de gerar receita comparativamente a outras fontes de

receitas fiscais, despesas de cobrança e distribuição de receitas entre países;

– Avaliação de diferentes opções e quantificação dos aumentos dos custos nos diversos mercados – bolsa, mercado, balcões, empre‑sas e consumidores;

– Impacto nos preços e na estabilidade;– Contributo para a estabilidade dos mercados financeiros.

ii) A nível de arrecadação da receita

A Comissão considera que a arrecadação de receita pode ser subs‑tancial devendo a base tributável permitir que se aplique uma taxa de tri‑butação relativamente baixa sem afectar a liquidez dos bancos.

No entanto, deve atender ‑se a este factor com alguma prudência dada a facilidade dos bancos deslocalizarem a sua actividade para jurisdições em que não se aplicam tais imposições

iii) A nível da eficiência e da estabilidade do mercado

A eficiência e a estabilidade do mercado poderão constituir uma das vantagens na adopção de mecanismos desta natureza, sobretudo a nível comunitário através da criação de um Fundo de Resolução de Crises, na medida que o sector financeiro tende a assumir riscos que podem ser signi-ficativamente prejudiciais para a economia.

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Considera assim a Comissão que a criação individualizada de novos impostos não tem a virtualidade nem a propensão para atingir os objec‑tivos assinalados, designadamente os da manutenção da estabilidade dos mercados.

iv) A nível administrativo

Considera ainda a Comissão que a solução comunitária, ao invés de soluções internas, é significativamente menos onerosa na medida em que exige menores custos administrativos e legais

v) A nível da tributação internacional

A introdução de sistemas específicos, reflectindo diferentes objec‑tivos e diferentes circunstancias especificas nacionais foi objecto do Relatório do Conselho ECOFIN de 14 de Outubro de 2010 onde se conclui que a diferença de parâmetros acolhida nas legislações internas, pode resultar em problemas de dupla tributação e pode criar distorções concorrenciais e deslocalização de actividades no âmbito do sector finan‑ceiro da EU.

Nesse sentido foi proposto ao conjunto dos países da União que:

A curto prazo

Deve ser assegurado um nível mínimo de coordenação entre os dife‑rentes regimes em vigor, incluindo um nível adequado de flexibilidade em medidas nacionais desde o início, para se poderem adaptar às novas circunstâncias.

Tal poderia ser conseguido através de uma “cláusula rendez -vous” sujeita a aprovação dos Estados, que permitiria uma revisão da taxa nacio‑nal em função da solução que vier a ser consagrada a nível europeu

Deve ser mantido um nível de igualdade entre os Estados -Membros evitando a dupla tributação. Os acordos bilaterais podem oferecer uma alternativa a curto prazo, mas não são ideais em termos de transparên‑cia e causam uma carga administrativa adicional para as administrações nacionais e para as empresas.

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A médio prazo

As imposições devem ser inseridas no enquadramento europeu de resolução da crise e com base nas propostas legislativas da Comissão.

Como sabemos, está, neste momento, em curso a discussão pública da Directiva relativa aos mercados de instrumentos financeiros, a cria‑ção da nova Autoridade Bancária Europeia bem como as regras relativas à criação de fundos nacionais com base em contribuições a pagar pelos bancos para financiar a gestão do sistema financeiro

Estes procedimentos comunitários deverão culminar na Primavera de 2011, com a apresentação e aprovação de um pacote legislativo no sentido de criar um enquadramento para a gestão de crises em bancos e sociedades de investimento.

II – 3. As Propostas do Parlamento e do Conselho Europeu

Na sua reunião de Outubro de 2009, o Conselho Europeu concordou com a necessidade de elaborar uma estratégia coordenada de consolidação orçamental, convidando a Comissão a analisar instrumentos de financia‑mento inovadores a nível global.

Em Dezembro de 2009, o Conselho Europeu sublinhou a impor‑tância de renovar o contrato social e económico entre as instituições financeiras e a sociedade e na sua reunião de Março de 2010, aprovou a estratégia Europa 2020, sublinhando que a restauração da estabilidade macroeconómica e a retoma das finanças públicas num caminho susten‑tável são indispensáveis para o crescimento do emprego e para o cres‑cimento económico.

Neste contexto, a criação de um quadro internacional que viesse a integrar um novo imposto sobre transacções financeiras foi objecto da Resolução do Parlamento Europeu, de 10 de Março de 2010, da qual resultaram as seguintes principais conclusões:

i) A União Europeia deveria adoptar uma posição comum no qua‑dro internacional das reuniões do G20 no que se refere às opções que se colocam quanto à forma como o sector financeiro poderá contribuir, de forma justa e substancial, para o pagamento dos

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encargos que gerou para a economia real ou que estão associa‑dos às intervenções governamentais para estabilizar o sistema bancário;

ii) A Comissão é convidada a avaliar o impacto de um imposto glo‑bal nas transacções financeiras, estudando as suas vantagens e desvantagens, designadamente:

a. Evasão fiscal, migração de capitais, impacto nos investidores e PMES:

b. Enquadramento na EU versus enquadramento a nível mundial; c. Capacidade de gerar receita comparativamente a outras fontes

bem como avaliação de despesas e avaliação potencial de uma rede de distribuição de receitas entre os diversos países;

d. Avaliação de diferentes opções e quantificação do aumento dos custos nos diversos mercados, nomeadamente bolsa, mercado, balcões, empresas e consumidores;

e. Impacto nos preços e na estabilidade; f. Contributo para a estabilidade dos mercados financeiros; g. Instrumento possível de solução para a crise, designadamente

incidência sobre operações “indesejáveis”, estas a serem defi‑nidas pela Comissão.

iii) Qualquer solução teria de, imperativamente, evitar reduzir a competitividade da EU ou dificultar o investimento sustentável.

Como resulta do texto que antecede a procura de soluções para a “crise financeira” que alastrou a nível mundial, teve uma multiplicidade de respostas possíveis por parte das diversas instituições internacionais.

Recorde -se, aliás, que estas soluções são sempre apresentadas tendo em vista uma dupla perspectiva:

a) A do reforço das regras de regulação, e a da;b) Procura de novas receitas a afectar à resolução das crises.

Todavia, deve ser salientado que quer a nível do G20 quer no con‑texto das diversas instituições europeias se tem verificado algum “recuo” no que se refere à adopção, em concreto, de algumas das medidas que tem vindo a ser apresentadas.

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Esta circunstância esteve na origem, segundo cremos, do avanço legislativo que ocorreu a nível dos diversos Estados, nomeadamente, Estados Europeus.

Na verdade, como de seguida iremos dar conta, este movimento “interno” teve início na Suécia através da criação, naquele país, de uma “Taxa de Estabilidade” a que se seguiu, nalguns Estados, a criação de outras e diversas imposições e contribuições, com o objectivo, nuns casos de consolidação orçamental e noutros, de dotação de fundos afectos à resolução de crises sistémicas.

III

IMPOSTO SOBE O SECTOR BANCÁRIOO DIREITO COMPARADO

I – Suécia

O início deste importante debate a nível das instituições comunitá‑rias teve a sua origem no caso sueco.

No Conselho ECOFIN de Janeiro de 2010, O Ministro das Finan‑ças Sueco, Anders Borg, propôs a adopção a nível comunitário do modelo sueco de uma “Taxa de Estabilidade” aplicável ao sector financeiro.

Esta taxa foi adoptada na Suécia em 2009 e a respectiva taxa fixada em 0,036% incidente sobre certas partes do passivo das instituições ban‑cárias de acordo com o balanço consolidado.

No ano de 2011 está prevista a introdução de uma taxa de “risco ajustado” ao risco que as instituições representam ou podem representar para a estabilidade financeira.

A base do cálculo da taxa é fixada sobre todos os passivos excluindo i) o capital próprio ii) alguns títulos da dívida que estão incluídos na base de capital iii) operações de dívida intra grupo entre as empresas que pagam a taxa de estabilidade.

Nos próximos quinze anos, as autoridades suecas admitem que o volume das receitas desta Taxa de Estabilidade pode ascender a cerca de 2,5% do PIB.

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A autoridade que administra, gere e arrecada esta receita é o National Debt Office, autoridade administrativa independente, ou seja, trata -se de uma autoridade que é orgânica e funcionalmente independente do Governo.

II – Reino Unido – Bank Levy

Do ponto de vista da sua razão de ser, a criação deste imposto visa alcançar os seguintes dois principais objectivos:

a) Contribuir de forma equitativa em relação aos riscos potenciais que os bancos representam para o sistema financeiro do Reino Unido; e

b) Incentivar os bancos a fazer um maior uso de mais recursos finan‑ceiros estáveis, tal como a dívida a longo prazo e capital próprio.

O imposto, do ponto de vista da respectiva incidência subjectiva é aplicável:

i) Aos grupos bancários e “building societies” (com regime idên‑tico ao das sociedades financeiras);

ii) Às subsidiárias e filiais de grupos de bancos estrangeiros; iii) Aos bancos ingleses não integrados em grupos.

Do ponto de vista da incidência objectiva, o imposto incide sobre o capital e passivo excepto TIER 1; fundo garantia depósitos; acordos de recompra de dívida pública e passivo de empresas seguradoras.

A taxa aplicável será de 0,04% em 2011 e 0,07% em 2012.A receita estimada no contexto deste imposto é de 2,5 biliões de

libras em 2012/2013, prevendo ‑se a revisão do sistema no decurso do ano de 2013.

Este novo regime entrará em vigor em 1 de Janeiro de 2011.

III – Alemanha – German Bank Levy

Dos elementos disponíveis e de que se tem conhecimento o projecto legislativo em menção é o que apresenta maior consistência, e, no essen‑cial, assume os seguintes principais contornos:

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Quanto à incidência subjectiva, o imposto aplica -se a:

a) Instituições bancárias ou de crédito, não se distinguindo para este efeitos as entidades públicas e privadas;

b) Por outro lado, estão excluídas expressamente de tributação as instituições financeiras por exemplo, seguradoras, factoring, lea‑sing banca de investimento;

c) Apenas os bancos domiciliados na Alemanha estão sujeitos a imposto, e, por conseguinte, as filiais de empresas domiciliadas no estrangeiro que operam na Alemanha estão excluídas;

d) A contribuição é calculada e cobrada às entidades bancárias con‑sideradas individualmente e não na base de “grupo”, como sucede no caso inglês;

e) As subsidiárias “não bancárias” mesmo que tenham contas con‑solidadas com o grupo, estão excluídas de tributação

Quanto às regras de incidência objectiva as mesmas são baseada no volume de negócios, na sua dimensão e grau de integração no mercado financeiro, incluindo dívidas entre instituições bancárias

A respectiva base de incidência será constituída por duas partes:

Base 1 – total passivo (–) capital próprio (tier 1) e responsabilidade perante clientes “liabilities customers”

Sobre a Base 1 a taxa é progressiva:

<10 bl = 0,02%<100bl = 0,03 %>100bl = 0,04%

Base 2 – valor dos derivados não reflectidos no balanço

0,00015% sobre o valor nominal

O valor de mercado, positivo ou negativo na carteira, terá de ser registado contabilisticamente a partir de 2010.

Acresce que este regime estabelece um “tecto” ou valor limite para a contribuição que não poderá ultrapassar 15% dos lucros anuais dos bancos (assegurando assim a liquidez dos mesmos).

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Os bancos que não tenham lucro no período da respectiva aplicação, pagam apenas 5% da contribuição que for apurada anualmente.

O valor não é dedutível no Imposto sobre o Rendimento.Em termos de liquidação e cobrança os bancos terão de pagar esta

contribuição até 30 de Setembro.A receita apurada é afecta ao “Fundo de Reestruturação”, um fundo

público gerido pela “Agência Federal para a Estabilidade dos Mercados Financeiros” que é também responsável pela respectiva arrecadação.

O regime sumariamente descrito entra em vigor em 31 de Dezem‑bro de 2010.

IV – Hungria – Bank Levy

Em 30 de Setembro de 2010 o Parlamento Húngaro aprovou o novo regime de tributação incidente sobre o sector bancário, segurador e outras instituições financeiras.

Em traços largos e do ponto de vista da incidência subjectiva, este imposto é aplicável às:

a) Instituições de crédito;b) Seguradoras; ec) Outras instituições financeiras, entre as quais, empresas financei‑

ras, empresa de investimento, fundos de gestão, capital de risco e sociedades gestoras de fundos.

Do ponto de vista da definição da base de incidência, estipula este novo regime que:

a) Para as instituições de crédito, o imposto incide sobre o total do balanço;b) Para as seguradoras, o imposto incide sobre o balanço corrigido

dos prémios;c) Para as empresas financeiras, o imposto incidirá sobre o valor dos

juros e comissões acrescido da taxa de lucro;d) Para as empresas de investimento, capital de risco e sociedades

gestoras de fundos o imposto será corrigido pela receita liquida;e) Para as empresas de gestão de investimentos, o imposto incidirá

sobre o valor dos activos.

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A taxa deste imposto varia ente 0,15 e 0,5% aplicável às instituições de crédito e 6,2% e 6,5% no caso das seguradoras e outras entidades financeiras.

O Governo Húngaro estimou uma arrecadação de cerca de 700 milhões de euros que se destinam a objectivos de consolidação orçamental.

Para além dos casos sumariamente descritos, também a França e Bélgica irão adoptar a partir do início do ano de 2011 novas imposições tributárias sobre o sector bancário.

V – Portugal – Contribuição Extraordinária sobre o Sector Bancário

A – Generalidades

Como sabemos a introdução em Portugal da Contribuição Extraordi‑nária visa objectivos de aproximação da carga fiscal suportada pelo sector bancário da que onera o resto da economia.

É pelo menos assim que é, em parte justificada no Relatório do Orça‑mento de Estado, a criação deste novo imposto.

Parece -nos, pois indispensável alinhar um conjunto de dados esta‑tísticos que constam do site oficial da Direcção Geral dos Impostos e que ilustram, em termos oficiais, as regras bem como o nível de taxas e de imposto arrecadado no sector bancário e segurador.

Por outro lado e a justificar igualmente a apresentação dos dados que se seguem, sabemos que tem vindo a ser frequente nos últimos tempos a publici‑tação de dados relativos às taxas de tributação suportadas pelo sector bancário.

Disso é exemplo a divulgação recente de uma taxa efectiva de 4,3% para a Banca, comparativamente a taxas de 15% para o sector da Educação, 21% para os Transportes e 23% para a Saúde e para a Construção civil.

Assim, e de modo a repor a verdade estatística relativamente às regras de tributação aplicáveis ao sector bancário e segurador, temos que os dados oficiais apresentam os seguintes principais indicadores:

1 – Lucro Tributável Total

Neste sector o n.º de declarações de IRC com “lucro tributável” (cerca de 2.600), representa apenas 1% do total geral, mas explica 18% em termos de valores declarados, quer no exercício de 2007, quer de 2008.

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2 – Colecta de IRC

As “actividades financeiras e de seguros” explicam 1% das declara‑ções com colecta, mas representaram 29% e 33% do montante da colecta total apurada, respectivamente em 2007 e 2008.

3 – IRC Liquidado

Cerca de 1/3 do IRC, isto é, cerca de 1.200 milhões de euros num total que rondou os 3.700 milhões em 2008, foi liquidado neste sector, embora o mesmo apenas represente 1% do número total das declarações com liquidação.

4 – Taxa Média Efectiva (TME)

Sendo a TME calculada pela DGCI como a relação percentual entre o IRC liquidado acrescido das “tributações autónomas”, a dividir pela matéria colectável total acrescida dos benefícios por dedução ao rendi‑mento, verifica -se que no sector bancário e segurador a mesma se situou em 19% em 2007 e subiu para os 21% em 2008.

Tal compara com uma taxa legal de 25% (em média, cerca de – 4 pontos percentuais) sendo que a TME geral para os contribuintes de IRC, de acordo com a fonte oficial (DGCI/Ministério das finanças), foi apenas de 16% (em 2007) e 18% (em 2008), portanto, menor do que a do sector financeiro.

Os dados que se deixaram identificados revelam que o sector ban‑cário, ao contrário do que muitas vezes é afirmado, participa de forma bastante significativa no conjunto da arrecadação dos impostos que, nos termos da lei, lhe são exigidos.

Equivale isto a dizer que, de acordo com os elementos disponíveis, os motivos invocados para a criação desta Contribuição na Lei do Orça‑mento para 2011 não traduzem a real e efectiva situação jurídica tributá‑ria do sector bancário e segurador.

B – Breves Notas em torno do âmbito de aplicação da Contribuição

Como já referimos a Contribuição criada pela Lei do Orçamento de Estado para 2011 aplica -se ao sector bancário.

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Todavia, como igualmente iremos ver, através da respectiva razão de ser expressamente assumida no Relatório do OE, esta é, em parte, a de «aproximar a carga fiscal suportada pelo sector financeiro da que onera o resto da economia e de fazer contribuir de forma mais intensa para o esforço de consolidação das contas públicas e de prevenção de riscos sistémicos (…)” (Ponto III 2.2.3.2. do relatório).

Para além das notas antes enunciadas que, a nosso ver, contradizem esta afirmação, importa salientar que se o que está em causa é da criação de um imposto com o objectivo de contribuir para o esforço de consoli‑dação das contas públicas, não se alcança porque é que outras e diferentes empresas e/ou sectores da actividade económica e financeira não foram incluídas no âmbito de aplicação deste novo “imposto”.

Questão que importa discutir e analisar à luz deste esforço que se pretende geral e igual, é a de saber a razão pela qual apenas o sector ban‑cário vai ficar sujeito a este novo imposto.

Tanto mais que, do ponto de vista da receita proveniente desta Contri‑buição, a mesma não se mostra afecta a qualquer Fundo, tal como sucede no caso da Alemanha e Suécia, susceptível de vir a responder por even‑tuais crises sistémicas eventualmente originadas pelo sector bancário.

Por outro lado, julga ‑se igualmente pertinente salientar que o sector bancário para além da taxa geral de IRC que lhe é aplicada, que, como vimos é, em termos de taxa efectiva em média de 21%, vai passar a ficar sujeita a esta nova Contribuição para além de um outro e diferente imposto que em meados do ano de 2011 se prevê que venha a ser instituído a nível comunitário e que é o denominado imposto sobre as transacções ou acti‑vidades financeiras.

Para além das matérias relativas a eventual dupla tributação interna‑cional que este fenómeno está potencialmente apto a originar, diremos que a nível interno se pode dar por verificada uma outra consequência de não menor importância que é, justamente, a da “tripla” tributação incidente sobre os mesmos sujeitos passivos, desconhecendo ‑se, neste momento e face à indefinição normativa, se se pode verificar a mesma consequência a nível da respectiva base de incidência objectiva.

Recorde -se que o tema em análise “nasceu” e tem por objectivo a necessidade de harmonização de diversos mecanismos de resolução de crises financeiras, quer do ponto de vista da regulamentação e supervisão do sector quer do respectivo financiamento.

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Daí que nos pareça ser importante sumariar um conjunto de obser‑vações que têm como parâmetros fundamentais o enquadramento euro‑peu dos mecanismos de resolução de crises e que são, como já mencio‑namos, os de que:

1) O dinheiro dos contribuintes não deve ser utilizado para cobrir as perdas do sector bancário, e o de que;

2) Estas devem ser prevenidas e, sobretudo suportadas pelo próprio sector.

Assim podemos considerar que:

1) A solução legislativa portuguesa contraria de forma evidente os objectivos propostos a nível europeu

Em primeiro lugar, na medida em que as receitas são canalizadas para o Orçamento de Estado, ou seja, com objectivos de consolidação orçamental, e não para um fundo que serviria exclusivamente para cobrir os custos da resolução de crises;

Em segundo lugar porque se trata de um mecanismo de financia‑mento ex post e não ex ante, podendo originar um financiamento inicial pelos contribuintes e, por conseguinte, aumentar o risco de que uma falên‑cia no sector bancário venha a resultar em impactos económicos negati‑vos mais alargados.

Esta abordagem pode ainda revelar -se pró -cíclica, criando pressões sobre o orçamento público durante a verificação de uma eventual crise financeira.

A nosso ver, só a solução de criação de um Fundo poderia ser enqua‑drada nos objectivos propostos pela Comissão e assumidos pela genera‑lidade das instituições comunitárias.

2) É uma solução “deficiente” do ponto de vista de políticaEm primeiro lugar, é designada de Contribuição, mas é, na verdade

um imposto, que tem como objectivo o de arrecadação de receita desti‑nada ao Cofres do Estado e, por conseguinte, a co -financiar finalidades de consolidação orçamental.

Ao que nos parece, o termo “contribuição” foi “importado” da pro‑posta alemã sendo certo, no entanto, que neste caso, esta assume a natu‑reza de uma verdadeira contribuição para um fundo.

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Por outro lado, não nos parece resultar do quadro normativo apro‑vado que a solução encontrada seja compatível com a afirmação constante na Exposição de Motivos de que esta Contribuição visa a prevenção do risco sistémico.

Na verdade, não se trata de uma medida de financiamento, como propôs a Comissão Europeia, mas apenas de uma medida de cobertura do défice, como aliás decorre formalmente da Exposição de Motivos do Relatório da proposta de lei do OE para 2011

Em segundo lugar não há estimativa de receita, ao contrário do que sucede com os outros países que implementaram ou estão em vias de implementar este tipo de imposição.

Ao que sabemos, em termos públicos foi avançado um valor de cerca de 100 M€, desconhecendo -se, em boa verdade, sobre que matéria colec‑tável teria sido calculado aquele montante e com base em que critérios teriam sido determinados aqueles valores que, saliente ‑se, foram ditos apenas em termos meramente identificativos.

Na Alemanha (solução baseada no FUNDO), por ex. Há indicação de que a taxa poderá permitir a recolha de cerca de 1000 milhões de Euros ano e na Suécia o Governo calculou que em 15 anos, o fundo venha a atingir 2,5% do PIB.

Em terceiro lugar a medida não é limitada temporalmente, desco‑nhecendo-se se a Contribuição é extraordinária tendo em conta o período da respectiva vigência, ou se é extraordinária tendo em conta que é ape‑nas aplicável a um determinado sector da economia.

Desconhece ‑se ainda se foram ou não tidos em conta, no âmbito deste novo imposto, nomeadamente critérios como os do impacto no mercado, evasão fiscal e eventual deslocalização de actividades ou operações?

3) É uma má solução do ponto de vista legislativoEm primeiro lugar na medida em que não se baseia na solução “Fundo.”Se assim fosse, deveria ter sido seguida a proposta da Comissão no

sentido das respectivas regras de gestão serem confiadas a organismos exe‑cutivos independentes, no sentido da sua autonomia funcional e orgânica.

Em segundo lugar, muito embora a incidência objectiva siga as reco‑mendações do FMI e da própria Comissão, deveria ser complementada, com a solução alemã, no sentido da taxa ser progressiva em função do grau de risco e de responsabilidade do sector no funcionamento dos mer‑cados financeiros.

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Em terceiro lugar, cria a possibilidade de distorções de concorrência ao abranger as filiais e sucursais de bancos estrangeiros, ao contrário da solução alemã que a faz recair unicamente sobre as instituições nacionais.

Enquanto não estiverem aprovadas convenções bilaterais sobre a matéria corre ‑se o risco de dupla tributação e desvirtua ‑se o objectivo preventivo de que também parece querer prevalecer ‑se o governo por‑tuguês.

Em quarto lugar, na medida em que se determina a regulamentação por Portaria quer da matéria colectável quer da fixação das taxas, pode, e será com toda a certeza suscitada a questão da inconstitucionalidade da Contribuição Extraordinária.

Na verdade, do princípio da legalidade em matéria fiscal decorrem dois sub -princípios:

b) O «princípio da reserva de lei formal, que implica a reserva à lei ou ao decreto -lei autorizado da matéria fiscal referenciada» (na Consti‑tuição); e

c) O «princípio da reserva material ou conteudística», ou «princípio da tipicidade», o qual impõe que «a lei ou o decreto -lei autorizado con‑tenha a disciplina completa da matéria reservada».

Não nos parece, que no caso vertente, tais princípios constitucionais tenham sido acolhidos.

Em quinto lugar, ao não se concretizar efectivamente de que forma a receita servirá para cobrir os riscos sistémicos, poderá servir como uma forma encapotada de afastamento das regras comunitárias relativas aos “auxílios de estado” que obriga a que exista uma proporcionalidade entre a partilha adequada de encargos e o tipo de apoio e a prevenção de distor‑ções indevidas da concorrência.

E finalmente, a falta de limitação temporal da medida faz ‑nos ainda questionar o que sucederá caso os Estados acolham a proposta de tribu‑tação sobre as transacções financeiras: como compatibilizará o Governo as duas imposições?

É, pois, matéria que deve ser acompanhada, até porque são os pró‑prios responsáveis políticos que publicamente expressam o entendimento que se impõe aguardar os desenvolvimentos que sobre esta matéria vão ser definidos pelas instâncias comunitárias.

Vejamos, de seguida, o regime jurídico que foi aprovado pela Assem‑bleia da República:

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C – O artigo 136º da Proposta de Lei de Orçamento de Estado para 2011

Como sabemos o OE para 2011 introduziu no seu artigo 136º a Con‑tribuição Extraordinária para o Sector Bancário de que destacamos os seguintes principais aspectos:

Incidência subjectiva (art. 2.º)Instituições de crédito com sede principal e efectiva da administra‑

ção situada em território português.Filiais em Portugal de instituições de crédito que não tenham sede

principal e direcção efectiva da administração em território português.Sucursais, em Portugal, de instituições de crédito com sede princi‑

pal e efectiva fora da EU (i.e. países terceiros)Incidência objectiva art. 3.ºPrevê -se que a referida contribuição deva incidir sobre:a) O passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos, deduzido

dos fundos próprios de base (TIER 1*) e complementares (TIER 2**) e dos depósitos abrangidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos;

b) Valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço apurado pelo sujeito passivo.

Devemos sublinhar, neste contexto, que a base de incidência será regulamentada por Portaria, ouvido o Banco de Portugal.

Taxas art. 4.ºPropõe -se aplicar sobre o passivo uma taxa variável entre 0,01% e

0,05% em função do valor apurado e sobre o valor nocional dos instru‑mentos financeiros uma taxa variável entre 0,0001% e 0,0002% conforme o valor apurado.

Do mesmo modo, também a nível das taxas concretamente aplicá‑veis, as mesmas serão objecto de regulamentação por Portaria do Minis‑tro das Finanças, ouvido o Banco de Portugal.

Autoliquidação e pagamento arts. 5.º e 6.ºPrevê -se que a contribuição extraordinária sobre o sector bancário

deverá ser liquidada pelo próprio sujeito passivo, através de declaração de modelo oficial, a ser aprovada por Portaria do Ministro das Finanças, devendo ser enviada anualmente, através de transmissão electrónica de dados, até ao último dia do mês de Junho, o qual corresponde também à data limite para efectuar o respectivo pagamento.

Esta contribuição não é dedutível em IRC.

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VI

A QUESTÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DA CONTRIBUIÇÃO

1. Análise da posição do Tribunal Constitucional: Considerações gerais

Importa no contexto da breve análise a que estamos a proceder intro‑duzir a questão da eventual inconstitucionalidade do regime legal agora aprovado pelo Parlamento.

Com efeito, quer do ponto de vista da determinação da matéria colectável quer da definição das taxas efectivamente a aplicar, diz -nos a lei (artigo 8º) que as mesmas são reenviadas para Portaria, ou seja, para a actividade regulamentar (administrativa) do Governo.

De modo a ser possível ensaiar a discussão em torno da admissibili‑dade deste “reenvio” normativo importa verificar a doutrina que emerge do Tribunal Constitucional quando foi suscitado a pronunciar ‑se sobre matéria de idêntica natureza.

Assim, vamos incidir a nossa análise, por todos, sobre o Acórdão nº 70/2004 do Plenário do Tribunal Constitucional proferido sobre o artigo 32º nºs 1,2,3 e 4 da Lei nº 32 -B/2002, de 30 de Dezembro Orçamento do Estado para 2003).

O que estava em causa neste Acórdão era, justamente o pedido de declaração de inconstitucionalidade dos citados preceitos legais, por neles ser permitida a fixação da taxa unitária de ISP, mediante Portaria dos Ministros das Finanças e da Economia.

O Provedor de Justiça, entidade apresentante, fundamentou o res‑pectivo pedido na violação do princípio da legalidade em matéria fiscal de que decorrem dois sub princípios: (i) o da reserva de lei formal e (ii) o da reserva de lei material ou conteúdística ou da tipicidade.

Os preceitos constitucionais violados, em obediências aos princípios antes formulados, são os artigos 165º nº 1, alínea f) e 103º nº 2 da C.R.P.

Foi ainda alegada a violação do princípio da proibição de “desle‑galização” constante do nº 4 do artigo 115º da C.R.P. no sentido em que o legislador ordinário ao permitir a definição da taxa unitária de ISP, mediante regulamento, estava a legitimar a possibilidade de ser fixada, por fonte normativa de grau inferior – a Portaria – uma regra que só a lei pode, constitucionalmente, determinar.

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Recorde -se que o artigo 103º nº 2 da Constituição dispõe expressa‑mente que: os impostos são criados por lei que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”.

O Tribunal Constitucional, com seis votos de vencido, veio a decla‑rar que o preceito legal sob sindicância se mostrava conforme à Cons‑tituição, pelo que optou por não declarar a respectiva inconstituciona‑lidade.

Em todo o caso e pela sua importância importa avocar no contexto deste trabalho os principais argumentos legitimadores desta posição, de modo a que possamos, mais adiante, reanalisá -los à luz do caso concreto que nos ocupa.

2. Análise da posição do Tribunal Constitucional: Síntese dos argu‑mentos invocados

Para a tomada da respectiva decisão, o Tribunal Constitucional deci‑diu invocar dois fundamentos legitimadores do regime de fixação de taxas do ISP, a saber:

a) O da necessidade de ser garantida uma pronta e permanente arti‑culação entre a incidência do imposto e o preço dos produtos sobre que o mesmo recai; e

b) O da necessária ligação entre o imposto e a política de preços a praticar neste mercado;

Quanto ao primeiro dos argumentos invocados, o Tribunal acaba por considerar que a persistência das soluções legais adoptadas são reali‑dades que não podem deixar de ser acentuadas: elas mostram iniludivel‑mente que se está, aí, perante uma característica que, longe de ser episó‑dica e circunstancial, vem sendo tida como que constituindo um elemento “necessário” do regime da figura tributária em causa, como algo que é reclamado pela própria índole e objecto da sua incidência

No que se refere ao segundo argumento, o Tribunal assevera que a justificação da solução legal deve ser encontrada no princípio da deter‑minação automática do preço dos produtos a que se aplica o imposto.

Atendendo às características específicas do ISP, antes enuncia‑das, o Tribunal, louvando ‑se em anteriores Acórdãos por ele proferidos bem como em alguns autores que se pronunciaram sobre estas matérias,

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assume a qualificação do princípio da legalidade tributária no sentido em que este admite a devolução para a administração do poder de, mediante regulamento, fixar a taxa efectiva dos impostos dentro dos “limites mais ou menos amplos”, preestabelecidos na lei.

Quer isto dizer que o Tribunal Constitucional, neste caso, consi‑dera que “Ao definir o factor de quantificação do imposto traduzido na taxa apenas através da indicação das suas respectivas balizas mínima e máxima, não deixa o legislador parlamentar de actuar, no exercício desse poder tributário, em representação política dos cidadãos contri‑buintes, expressando -o num consentimento de tributação que se traduz na possibilidade de determinação da taxa desde um mínimo até uma taxa máxima”.

Porém a doutrina antes exposta vai um pouco mais longe quando admite e consagra uma outra regra fundamental que deve sempre ser tida em conta e que é, justamente, a do grau de incerteza que deve ter ‑se como aceitável sempre que, como foi este o caso, se aceita uma certa margem de liberdade governamental na fixação em concreto de uma taxa desde que a mesma se integre dentro dos limites fixados na lei.

É, pois exigível, considera o Tribunal, que se verifique um crité‑rio de “razoabilidade, quanto ao intervalo dentro do qual o legislador regulamentar podia fixar a taxa efectiva, cuja razão de ser só poderia corresponder à sua preocupação de que esse intervalo não fosse de tal modo amplo que criasse uma incerteza intolerável quanto ao grau de amputação de riqueza admissível e esvaziasse de real conteúdo o juízo de opção politica expresso num tal modo de tributação exigido ao legis‑lador parlamentar.

Temos, pois que, a doutrina do Tribunal Constitucional quer a que consta do Acórdão em análise quer a que resulta do conjunto das respec‑tivas decisões em matéria da mesma natureza, admite que o princípio da legalidade em matéria tributária pode conviver com uma concepção mais ampla, desde que:

a) Os limites mínimos e máximos da taxa a definir por regulamento estejam fixados na lei habilitante e,

b) O intervalo dentro do qual o legislador regulamentar pode actuar possa ser considerado razoável e adequado.

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3. Continuação: Síntese dos principais argumentos em defesa da inconstitucionalidade dos normativos em julgamento

Como acima se refere, a posição do Tribunal Constitucional em aná‑lise que veio decidir pela conformidade da lei à Constituição não obteve consenso.

Pelo contrário foram proferidos seis votos de vencido que, a nosso ver, e pela sua importância, justificam que aos mesmos se dedique algum espaço.

Com efeito, o intervalo fixado na lei habilitante quanto às taxas uni‑tárias a fixar por Portaria, podia, naquele caso, ir desde 18,00 a 149,64 o que revela que a margem de discricionariedade conferida à Adminis‑tração chega ao limite da própria destributação (Cfr. Voto de vencido de Mário Torres).

É, segundo Fernanda Palma e Rui Moura Ramos, a manifestação de “uma incerteza intolerável” do ponto de vista da segurança jurídica dos contribuintes.

É exigível, pelo valor da segurança democrática em matéria de impostos que seja ex ante determinável o quantum do imposto. É exigí‑vel, de acordo com tal valor constitucional que a lei preveja um qualquer critério orientador para a Administração, não podendo esta concretizar a taxa de imposto livremente, à medida de meras preocupações políticas conjunturais.

Mais adiante afirmam ainda estes Senhores Conselheiros que é a ausência de um qualquer critério legal disciplinador previsível para os destinatários do imposto que desobedece aos comandos constitucionais, tornado de certa forma incontrolável pelos típicos mecanismos democrá‑ticos de fixação da taxa de um imposto.

Também Paulo Mota Pinto votou vencido aquela decisão e afir‑mou de modo muito claro que a razão de ser do principio da legalidade não se esgota na ideia de consentimento ou de garantia dos destinatá‑rios quanto à tributação, que se poderia dizer satisfeita com a previsão de um assentimento apenas para os limites máximos. Está, também no controlo da oportunidade e dos termos do juízo, necessariamente polí‑tico e que compete à Assembleia da República, sobre a carga tributá‑ria, juízo esse, que se reflecte, para cada imposto, desde logo na fixação da respectiva taxa.

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Por outro lado, afirma ainda este Mota Pinto que a não indicação, pelo legislador, de um qualquer critério substantivo para a fixação da taxa em matéria em que o que está em causa são princípios e normas de competências verdadeiramente estruturantes, tem como consequência inevitável que os princípios gerais “da necessidade, da “adequação” e da “proporcionalidade” das leis restritivas dos direitos fundamentais não podem nem devem ser invocadas a favor da conformidade constitucional das normas sob julgamento.

Como se constata as questões relativas à apreciação da constitucio‑nalidade das leis em matéria de impostos não é consensual mesmo a nível do Tribunal Constitucional.

Ou seja, admitindo ‑se, como nós admitimos, que a legislação refe‑rente à Contribuição Extraordinária venha a ser objecto de apreciação da respectiva constitucionalidade pelo Tribunal, devemos admitir que a mesma possa vir a ser declarada não conforme à Constituição.

Nesta conformidade, a nosso ver, importa deixar sublinhados alguns argumentos que, a serem invocados, podem justificar a declaração de inconstitucionalidade da dita Contribuição Extraordinária.

Vejamos, por conseguinte, a:

4. Apreciação do caso concreto

Do que vem dito é possível retirar alguma ou algumas conclusões relati‑vamente à constitucionalidade da Contribuição Extraordinária sobre o sector bancário, sabendo nós que, de acordo com o artigo 8º da Lei do Orçamento:

a) As taxas da Contribuição, ainda que com limite mínimo e máximo, constante na lei de atribuição (artigo 4º) são reenviadas para Portaria que regulamentará a respectiva fixação unitária, e;

b) De igual forma, é reenviada para Portaria a definição da respec‑tiva base de incidência objectiva.

Quer -nos parecer como, aliás, já tivemos ocasião de referir, que o quadro constitucional aplicável, mesmo à luz da doutrina constitucional vertida no citado Acórdão nº 70/2004, de que discordamos, deve ter -se por violado no caso concreto da Contribuição Extraordinária.

Comecemos, pois, por ver a matéria relativa à amplitude/intervalo das taxas definidas pelo legislador no artigo 4º da Lei do Orçamento.

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O artigo 103º nº 2 da Constituição da República consagra o prin‑cipio da legalidade dos impostos no sentido em que os mesmos devem obedecer ao principio da tipicidade fechada, ou seja, os pressupostos do imposto devem constar da respectiva lei.

Entre eles o da definição da taxa.Ora, o citado artigo 4º apenas tipifica o limite mínimo e máximo das

taxas aplicáveis.Mesmo admitindo a doutrina constitucional antes invocada, a mesma

ensina que o intervalo fixado na lei deve ter -se como razoável e adequado.Deixando, por ora em aberto, a questão relativa à base de incidên‑

cia sobre que vai ser aplicada a taxa, esta, a nosso ver, não preenche os requisitos da razoabilidade e da adequabilidade.

Para além da própria amplitude interna (varia entre 0,01% e 0,05%) o legislador não define:

a) Se as aludidas taxas são aplicáveis a diferentes cálculos da base de incidência, e;

b) Não determina se é em função da base de incidência que, através de Portaria, vai ser fixada uma taxa dentro da variação prevista na norma habilitante; e

c) Não determina os critérios legitimadores da fixação da taxa pelo mínimo ou pelo máximo.

Diremos, por conseguinte, que o Ministro das Finanças, passa a dis‑por de uma ampla margem de discricionariedade na fixação da taxa ao arrepio da norma constitucional aplicável nela se incluindo o princípio da razoabilidade.

Ora, consideramos que se subsistem matérias relativamente às quais não pode verificar -se qualquer margem de discricionariedade é, justa‑mente, a matéria relativa ao sistema fiscal.

Por outro lado, importa também acentuar que não é indiferente para o cumprimento de valores como os da certeza e segurança jurídica que sobre um determinado valor venha ser efectivamente aplicada uma taxa de 0,01% ou uma taxa de 0,05%.

Sobretudo se, como é o caso, se desconhece qual o valor (matéria colectável) sobre que irá incidir ou a taxa de 0,01% ou a taxa de 0,05% ou até mesmo uma taxa que situe entre estas duas taxas.

Diremos, então, que tal como formulado na norma habilitante (artigo 4º nos 1 e 2 e artigo 8º do artigo 136º da Lei do Orçamento) o quadro

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jurídico em menção deve considerar -se como inconstitucional, por vio‑lação do princípio da legalidade e dos princípios da certeza e segurança jurídica previstos no texto constitucional.

Outra das áreas que carece, igualmente, de alguma reflexão relaciona--se com a determinação da matéria colectável que, como sabemos, está igualmente subordinada à regra constitucional previsto no artigo 103º nº 2 da C.R.P.

Se atentarmos no teor literal do disposto no artigo 3º nos 1 e 2 devidamente interpretado à luz do artigo 8º ambos do artigo 136º da Lei do Orçamento, a primeira observação que se nos impõe é a que a norma, na sua previsão, se mostra integrada de conceitos vagos e inde‑terminados.

Tanto assim é que o próprio legislador remeteu para Portaria a defi‑nição da base de incidência da Contribuição Extraordinária.

Ou seja, os destinatários desta norma de incidência desconhecem qual é o valor que vai servir de matriz à aplicação de uma taxa, esta a ser igualmente fixada por Portaria, ou seja, também ela, indefinida e incerta.

É nossa convicção de que também a determinação da matéria colectá‑vel não pode ser fixada por via da competência administrativa do Governo, antes está subordinada ao princípio da legalidade na vertente da tipici‑dade fechada.

Consideramos que a entidade competente para definir a politica fiscal, nela se incluindo a definição da matéria colectável sobre que vai incidir o imposto, é a Assembleia da República, não podendo esta, sob pena de violar a Constituição, reenviar para a administração o exercício de um poder que é da sua exclusiva competência.

Ou seja, a nosso ver, não está definitivamente resolvida a questão do âmbito de aplicação da Contribuição Extraordinária, pela circunstân‑cia de a mesma se mostrar formulada em termos vagos e indeterminados e, nessa medida, se revelar insusceptível de poder ser considerada abran‑gida pela norma habilitante.

Aliás, e como já acima referimos, as afirmações públicas que têm sido proferidas pelos responsáveis governamentais a este propósito legi‑timam, igualmente, que se possa considerar que não está, em definitivo decidido o âmbito de aplicação da Contribuição.

Na verdade, tem sido pública a afirmação de que este novo imposto, cuja arrecadação efectiva se prevê para o ano de 2012, está ainda depen‑

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dente dos desenvolvimentos conceituas e outros que a nível europeu venham a ser decididos.

Quer isto dizer que mesmo o legislador admite que o “modelo” que adoptou quanto a esta Contribuição poderá ser “modificado” em razão das decisões europeias que, na Primavera de 2011, venham a ser tomadas.

Assim sendo é evidente que também por esta razão não se mostra observado o princípio da legalidade na vertente de vinculação conteúdis‑tica quanto à determinação da base sobre vai incidir o imposto.

Diremos, em conformidade, atento exclusivamente ao teor literal da previsão normativa em análise, que quer a amplitude das taxas bem como a descrição “genérica” da matéria colectável, no sentido em que se mostra integrada de conceitos vagos e indeterminados é indício sufi‑ciente para que possamos considerar que o quadro normativo (artigo 136º) consagrado na Lei do Orçamento para 2011 deverá ser declarado como inconstitucional.

Com efeito, a previsão do artigo 103º da Constituição, antes trans‑crito, mesmo interpretado à luz da doutrina do Tribunal Constitucional, exige que no domínio da fixação das taxas o respectivo intervalo não possa ser concebido com irrazoável e inadequado.

Ora, o intervalo fixado na lei habilitante pode ser qualificado como significativamente irrazoável e inadequado, para além dos argumentos antes mencionados, pela simples razão de que a fixação da matéria sobre que a mesma vai incidir se revela preenchida com conceitos vagos e inde‑terminados, o que só por si, justifica que o citado artigo 103º nº 2 da CRP não se mostre cumprido no caso concreto.

Resta constatar que lei “criadora” da Contribuição Extraordinária é ela própria vaga e indeterminada, incerta, indefinida e “vazia” no que toca ao cumprimento das prescrições constitucionais previstas nos arti‑gos 165º e 203º da C.R.P.

Finalmente, parece ‑nos importante referir também a violação da Constituição no que toca à manifesta verificação, no caso vertente, de uma regra de descriminação negativa relativamente ao sector bancário.

A questão a colocar é a de saber a razão pela qual esta Contribuição Extraordinária se aplica exclusivamente ao sector bancário.

Com efeito, os motivos legitimadores da criação desta Contribui‑ção são, em parte, como é afirmado no Relatório da Lei do Orçamento para 2011, os de contribuir para finalidades de consolidação orçamental.

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Para além de que, determinando o legislador que as receitas pro‑venientes desta Contribuição não são afectas à dotação de um Fundo de Resolução de Crises, está naturalmente a confirmar o entendimento de que as mesmas se destinam a equilibrar o orçamento, ou seja, se destinam a reduzir o deficit público.

Estes motivos ou razões podem ser considerados como legitimado‑res da instituição de um novo imposto ou contribuição.

Porém é imperioso considerar que, nesse caso, o seu âmbito de apli‑cação subjectivo não poderia ser “reduzido” a um sector específico e pre‑viamente identificado.

É nosso entendimento que a lei poderia ter adoptado um conjunto de critérios delimitadores para efeitos de instituição de um tributo, como por exemplo, o volume de negócios ou outros. Nesse caso, a Contribui‑ção Extraordinária poderia ter um âmbito de aplicação mais lato e abran‑gente, susceptível de incluir, de forma geral e abstracta, qualquer sujeito passivo que preenchesse os requisitos legais como tal definidos na lei.

Não foi assim, definitivamente, que o legislador concebeu e quali‑ficou o “sistema”.

Na verdade, ao pretender fazer incidir a Contribuição Extraordiná‑ria apenas sobre o sector bancário o legislador invocou fundamentos que não são susceptíveis de aplicação “restrita” a este sector, pelo contrário, são extensíveis a qualquer outro ou outros.

A contribuição para o esforço de consolidação orçamental só pode ser concebido em termos gerais e abstractos e, em nenhuma circunstância direccionado a um sector ou sectores específicos e descriminados.

Em jeito de conclusão parece ser possível, neste momento e nesta fase, dizer que a Contribuição Extraordinária para o sector bancário apro‑vada através da Lei do Orçamento para 2011 deve conceber ‑se como inconstitucional por desrespeito ao disposto nos artigos 103º, 115º, e 165º da Constituição da República Portuguesa.

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Manuela Duro Teixeira

A Tributação da Banca em Tempos de Crise

* O presente artigo, concluído em Dezembro de 2010, corresponde à adaptação da apresentação efectuada em 25 de Novembro de 2010 no âmbito do I Congresso de Direito Fiscal: O Direito Fiscal em Tempos de Crise, organizado pelo Instituto de Direito Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pela Almedina em 25 e 26 de Novembro de 2010. As opiniões aqui expressas pela autora são -no a título estritamente pessoal.

Manuela Duro Teixeira*Mestre em Direito

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114Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

RESUMO:

A crise financeira reacendeu a discussão sobre a tributação do sector financeiro, despoletando reacções a nível internacional e nacional. O mito de que a tributação efectiva do sector bancário é inferior à de outros sectores e a necessidade de demonstrar determinação no combate à crise orçamental levaram à proposta e adopção de medidas como a contribuição sobre o sector bancário, questões analisadas no presente artigo.

Palavras ‑chave:Crise financeiraTributação do sector financeiroContribuição sobre o sector bancário

ABSTRACT:

The financial crisis has revived the discussion on the taxation of the financial sector, triggering reactions at international and national level. The myth that the effective tax rate of the banking sector is lower than that of other sectors and the need to show determination in fighting the budget crisis lead to proposals and adoption of measures such as the banking sector levy. These issues are critically analysed in this article.

Key words:Financial crisisFinancial sector taxationBanking sector levy.

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115Artigos

Introdução

Em tempos de crise, a mais grave desde a Grande Depressão, diz‑‑se, discute ‑se, por um lado, o papel desempenhado pela banca no seu despoletar e na sua configuração e, por outro, o papel que a banca deverá desempenhar na sua ultrapassagem.

Não nos vamos deter na história da crise1. Nesta altura, e sem termos tido de fazer grande esforço, todos somos especialistas na bolha imobi‑liária que, na sequência do rebentar da bolha tecnológica de inícios do século XXI, resultou da procura dos investidores por activos mais tangí‑veis e cujo valor parecia poder aumentar indefinidamente, todos somos especialistas na proliferação de activos tóxicos resultantes do crédito subprime e de securitizações, colaterizações e outras operações que, à medida que as relações jurídicas estabelecidas se afastavam cada vez mais dos activos subjacentes, viam as notações de risco melhorar até ao famoso AAA que, de facto, equiparava empréstimos hipotecários de altíssimo risco à dívida pública americana, todos somos especialistas na falta de liquidez e na dificuldade ou quase impossibilidade de os bancos se finan‑ciarem num mercado interbancário cujos intervenientes desconfiam da qualidade dos activos das suas contrapartes, todos somos especialistas nos mercados e acompanhamos atentamente a evolução das taxas de juro da dívida pública portuguesa, comparando -a com a da Grécia, a da Irlanda, a da Espanha.

Vamos antes reflectir acerca de três pontos que poderão ajudar -nos a compreender melhor como chegámos até aqui, onde estamos e o que nos espera em matéria de tributação.

Concentrando ‑nos na banca, que é o tema que agora nos ocupa, come‑çaremos por, a título introdutório, analisar alguns mitos e realidades da tributação da banca em Portugal. Seguidamente, analisaremos o impacto da tributação no surgimento da crise e, por fim, avançaremos alguns dos cenários esperados ou possíveis de evolução.

1 Para um interessante resumo dos acontecimentos que estão na origem da crise, cfr. Transparency report to the shareholders of UBS AG: Financial market crisis, cross‑‑border wealth management business, liability issues and internal reviews, Outubro de 2010, disponível em http://www.ubs.com/1/e/transparencyreport.html, consultado em 15 de Novembro de 2010, pág. 16 e seg.

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A tributação da banca em Portugal: mitos e realidades

Analisamos aqui quatro mitos relacionados com a tributação da banca e da actividade financeira em Portugal. Chamamos -lhes mitos, mas em alguns contextos, como o político, quase se transformaram já em dogmas que ninguém ousa refutar, seja por ignorância, seja pela má fé tantas vezes associada à demagogia do discurso político.

São eles o mito de que há regras fiscais mais vantajosas para o sector bancário, o mito de que a taxa efectiva de tributação do sector bancário é mais baixa do que a dos restantes sectores, o mito de que a lei dificulta (quase impede) o acesso da administração fiscal à informação protegida pelo sigilo bancário e, por fim, o mito de que a administração fiscal não tem acesso à informação necessária para controlar a obtenção (e declara‑ção, quando aplicável) de rendimentos de capitais e mais -valias, que são os rendimentos tipicamente associados à actividade financeira.

Mito n.º 1: Há regras fiscais mais vantajosas para o sector bancário

A convicção de que há regras fiscais mais vantajosas para o sector bancário é tão generalizada e está tão enraizada na opinião pública portu‑guesa que o difícil é acreditar no contrário2. No entanto, e como não podia deixar de ser sob pena de inconstitucionalidade, os bancos e a generalidade das instituições financeiras estão sujeitos a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) em termos equivalentes aos das empresas dos outros sectores. Desde logo, obviamente, em matéria de taxas. E as especificidades que são aplicáveis, por exemplo em matéria de imparida‑des, estão estritamente relacionadas com o enquadramento regulamentar que lhes é imposto, e delas não resulta qualquer vantagem especial, antes e apenas uma forma diferente de tributar3.

2 Por exemplo, na pergunta número 916/XI (2.ª), um grupo de deputados solicita ao Governo informação quanto à estimativa de receita para o ano de 2011 “se as institui‑ções financeiras vissem a sua taxa de IRC equiparada à das restantes empresas”, o que tem implícita a afirmação de que a taxa de IRC das instituições financeiras é diferente, mais baixa.

3 Note ‑se, por outro lado, que, na sequência da aplicação, a partir de 1 de Janeiro de 2010, do Sistema de Normalização Contabilística, a generalidade das empresas está obrigada à adopção das normas internacionais de contabilidade, as mesmas que, desde 1 de

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Da mesma forma, aos bancos e à generalidade das instituições financei‑ras são aplicáveis os benefícios em IRC que são aplicáveis às restantes enti‑dades. A única excepção a este princípio é a do bem conhecido regime das sucursais financeiras exteriores na zona franca da Madeira, que termina em 31 de Dezembro de 2011 e do qual resulta uma isenção de imposto quanto aos rendimentos aí obtidos, que não está de facto disponível para a genera‑lidade das empresas que têm sede ou direcção efectiva em Portugal. Note ‑ -se, no entanto, que há já vários anos esta isenção está limitada, não podendo ser aplicada a mais de 15% do lucro tributável global da insti‑tuição de crédito, o que reduz substancialmente o seu impacto4.

O quadro da página seguinte evidencia os benefícios fiscais em IRC aproveitados pelos sujeitos passivos em 2008 e 2009, as estimativas para 2010 e a previsão para 2011.

O quadro confirma o que antes afirmámos: nenhum dos benefícios em IRC é exclusivo das instituições bancárias ou, sequer, está mais direc‑tamente relacionado com a actividade bancária. Notamos que os dados relativos à zona franca da Madeira, que incorporam o efeito da isenção aplicável aos rendimentos das sucursais financeiras exteriores a que antes fizemos referência, são enganadores. Trata -se aqui do benefício que é apli‑cável a todas as actividades na zona franca, que são, principalmente, acti‑vidades de serviços não financeiros5, e, de facto, na maior parte dos casos

Janeiro de 2005, constituem a base das normas de contabilidade ajustadas aplicáveis a nível individual (o relevante para efeitos de IRC) às instituições sujeitas à supervisão do Banco de Portugal (cfr. Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2005).

4 Cfr. artigo 34.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, nos termos do qual, para efei‑tos da aplicação da isenção de IRC às entidades que não exerçam exclusivamente activi‑dade nas zonas francas, considera-se que pelo menos 85% do lucro tributável da respectiva actividade global resulta de actividades exercidas fora do âmbito institucional das zonas francas, pelo que não beneficia de isenção. Por outro lado, na determinação dos rendimen‑tos isentos há que, por força da Portaria n.º 360/2002, de 5 de Abril, efectuar a imputação de custos específicos e de custos operativos comuns. Por fim, a mesma Portaria limita a dotação de capital da sucursal financeira exterior a “fundos de montante não superior ao necessário para obter um rácio de valor igual ao rácio de solvabilidade estabelecido pelo Banco de Portugal, nos termos da alínea a) do artigo 99.º do Regime Geral das Institui‑ções de Crédito e Sociedades Financeiras, considerando apenas os fundos próprios e os elementos do activo extrapatrimoniais afectos [à] estrutura [da sucursal]”.

5 De acordo com a informação disponibilizada no site da Sociedade de Desenvol‑vimento da Madeira (http://www.sdm.pt/O_CINM.aspx?ID=679, consultado em 21 de

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Novembro de 2010), em 31 de Dezembro de 2008 encontravam ‑se registadas no Centro Internacional de Negócios da Madeira aproximadamente 3400 entidades licenciadas dedi‑cadas a actividades no âmbito dos serviços internacionais e do sector industrial. Apenas 0,9% destas entidades desenvolviam actividades financeiras. As entidades que desenvol‑viam actividades de “serviços internacionais” representavam 84,4% do total, as entidades que desenvolviam a actividade de shipping representavam 7,1% do total, as sociedades gestoras de participações sociais representavam 4,7% do total, as entidades que desenvol‑viam actividades industriais representavam 1,7% do total, as sociedades de management representavam 0,7% do total e as entidades que desenvolviam actividades de “trust” repre‑sentavam 0,4% do total. De acordo com as estatísticas publicadas no Portal das Finanças (cfr. http://www.portaldasfinancas.gov.pt, consultado em 10 de Dezembro de 2010), em 2009 existiam 2981 entidades instaladas na zona franca da Madeira, das quais 2678 entre‑garam declaração modelo n.º 22 de IRC. Destas, 1679 declararam proveitos num total de € 18 081 245 939 e € 3 737 133 598 de resultado líquido positivo. 51 entidades apuraram IRC liquidado, num total de € 5 976 934. Conforme referido no texto, é provável que os mais de 18 mil milhões de euros de proveitos declarados correspondam em grande (pro‑vavelmente muito grande) medida a actividade de prestação de serviços não financeiros “deslocalizada” para a zona franca apenas para efeitos de aproveitamento do regime fiscal aí aplicável. A “despesa fiscal média por empresa com Modelo 22 entregue” aí referida, de € 407 095, não corresponderá assim, efectivamente, a verdadeira despesa fiscal.

DEsPEsA FIsCAl (IRC) – 2008 A 2011(milhões de euros)

Fonte: Ministério das Finanças e da Administração Pública, Orçamento para 2011: Relatório, Outubro de 2010.(e) Estimativa. (P) Previsão.

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respeitam a lucros resultantes de actividades imputadas por não residen‑tes à zona franca, mas que não seriam aí localizadas para efeitos fiscais se não fosse aplicado um regime mais vantajoso.

A mesma conclusão é aplicável, por exemplo, no âmbito do Imposto do Selo: nenhum dos benefícios aproveita em especial à banca6, conforme resulta do quadro seguinte, que indica a estimativa para 2011.

DEsPEsA FIsCAl (IMPOsTO DO sElO) – 2011 (EsTIMATIvA)(milhões de euros)

6 Note -se que não estão aqui contempladas as isenções previstas do Código do Imposto do Selo, nomeadamente a que, nos termos da alínea e) do número 1 do seu artigo 7.º, é aplicável à utilização de crédito, aos juros, às comissões e às garantias entre instituições financeiras. Trata -se, neste caso como noutros casos previstos no mesmo artigo, de isen‑ções que visam reflectir a natureza da actividade desenvolvida pelos sujeitos passivos: a actividade fundamental de intermediação das instituições financeiras, nomeadamente das instituições de crédito, envolve a obtenção de financiamento que, de acordo com as regras gerais, está sujeita a Imposto do Selo, que não onera a aquisição de inputs efectuada pela generalidade dos sujeitos passivos por referência à sua actividade fundamental.

Fonte: Ministério das Finanças e da Administração Pública, Orçamento para 2011: Relatório, Outubro de 2010.

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E há até um exemplo, recente, de tributação declaradamente mais gra‑vosa das instituições de crédito e sociedades financeiras: a tributação autó‑noma de bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, admi‑nistradores ou gerentes que representem uma parcela superior a 25% da remuneração e possuam valor superior a € 27 500, introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2010, que é aplicável à taxa de 35% na genera‑lidade dos sectores7, mas no caso de bónus e outras remunerações variáveis pagas ou apuradas em 2010 por instituições de crédito e sociedades finan‑ceiras a administradores ou gerentes, é aplicável à taxa de 50%8. Esta tribu‑tação especial foi aliás justificada pelo Governo pelo “papel que a banca teve na criação do risco sistémico subjacente à presente crise económica”9, o que a transforma numa espécie de punição e, naturalmente, a torna inconstitucional, porque um imposto não pode ter carácter punitivo10.

Por outro lado, várias medidas de restrição na aplicação de benefícios fiscais foram anunciadas como destinadas principalmente à banca. É o caso do aumento, de 60% para 75%, do limite mínimo do IRC liquidado, após a dedução do crédito de imposto por dupla tributação internacional e da relativa a benefícios fiscais, introduzido pela Lei do Orçamento do Estado para 201011.

7 Cfr. número 13 do artigo 88.º do Código do IRC. A Lei do Orçamento do Estado para 2011 aumenta esta e as restantes taxas de tributação autónoma previstas no Código do IRC em 10 pontos percentuais sempre que os sujeitos passivos apresentem prejuízos fiscais no período de tributação em causa.

8 Cfr. artigo 99.º da Lei n.º 3 -B/2010, de 28 de Abril. Não é possível, neste caso, evitar a tributação, nomeadamente através do diferimento do pagamento de uma parte não inferior a 50% por um período mínimo de três anos e do seu condicionamento ao desem‑penho positivo da sociedade ao longo desse período, possibilidade que é admitida no caso da tributação aplicável em termos gerais.

9 Cfr. ministério dAs FinAnçAs e dA AdministrAção públiCA, Orçamento para 2010: Relatório, Janeiro de 2010, pág. 78.

10 Cfr., quanto ao conceito de imposto, por todos, José CAsAltA nAbAis, Direito Fiscal, 5.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2009, pág. 10 e seg. O autor distingue um elemento objectivo (trata -se de uma prestação pecuniária, unilateral, definitiva e coactiva), um ele‑mento subjectivo (prestação exigida a ou devida por detentores de capacidade contributiva) e um elemento teleológico (prestação exigida pelas entidades que exerçam funções públi‑cas para a realização dessas funções, conquanto que não tenha carácter sancionatório).

11 Cfr. ministério dAs FinAnçAs e dA AdministrAção públiCA, Orçamento para 2010: Relatório, cit., pág. 78. O aumento de 75% para 90%, previsto na Lei do Orçamento do Estado para 2011, não é justificado de forma equivalente – cfr. ministério dAs FinAnçAs e dA AdministrAção públiCA, Orçamento para 2011: Relatório, Outubro de 2010, pág. 72.

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Mito n.º 2: A taxa efectiva de tributação do sector bancário é mais baixa do que a dos restantes sectores

O mito da taxa efectiva de tributação do sector bancário é o mais per‑sistente: diz -se recorrentemente que o sector bancário apura taxas efecti‑vas de tributação mais baixas do que as dos restantes sectores.

A figura seguinte, uma colagem de títulos de jornais, tem mais de 8 anos12, e já a apresentámos várias vezes, porque mantém a sua actualidade, já que, com maior ou menor colorido de linguagem13, a mensagem tem vindo a ser consistentemente a mesma: os bancos pagam menos impostos do que as restantes empresas.

12 Foi apresentada pela primeira vez em Novembro de 2002.13 Num exemplo da forma pouco rigorosa como a questão da taxa efectiva é abordada

pela comunicação social, veja -se o gráfico publicado na pág. 60 da revista Sábado de 11 de Novembro de 2010, em que são comparadas as taxas efectivas de IRC de vários sectores relativas a 2008 divulgadas pela administração fiscal, que seguem uma determinada metodologia, com a taxa de imposto relativa a 2009, ou seja um ano diferente, resultante de dados divulgados pela Associação Portuguesa de Bancos, baseados numa metodologia totalmente diferente e que tomam em consideração, nomeadamente, os impostos diferidos...

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Mas a informação disponível não corrobora estes títulos nem aquela mensagem. É que, de acordo com os dados publicados pela administração fiscal, a taxa efectiva de IRC do sector bancário e dos seguros (a infor‑mação não é desagregada) ascendeu a 19% em 2007 e a 21% em 2008, o último ano cuja informação se encontra disponível. Estas taxas com‑param com as taxas efectivas médias de 16% e 18% nos mesmos anos.

TAXA MÉDIA EFECTIVA DE IRC POR SECTOR DE ACTIVIDADE (2007 E 2008)

Fonte: Estatísticas de IR, disponíveis em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/dgci/divulgacao/estatisticas/estatisticas_ir/, consultado em 22 de Novembro de 2010. Taxa média efectiva = (Σ IRC Liquidado Corrigido + Σ Reposição de Benefícios Fiscais + Σ Tributação Autónoma )/(Σ Matéria Colectável Total + Σ Benefícios por Dedução ao Rendimento ).

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Trata de cálculos efectuados e publicados pela administração fiscal, que é a única entidade que dispõe de todos os dados relevantes e que, como tal, pode efectuar comparações rigorosas. A administração fiscal é também insuspeita de pretender favorecer as instituições financeiras.

Por outro lado, o sector da banca e dos seguros é o que mais contri‑bui para a receita de IRC: ainda de acordo com os dados da administração fiscal, o IRC liquidado pelas empresas do sector da banca e dos seguros correspondeu a 29% e 33% do total do IRC liquidado, respectivamente em 2007 e 2008. E estamos a falar de um sector que em 2007 represen‑tava apenas 1% do total dos contribuintes e em 2008 representava apenas 2% do total de contribuintes14.

IRC LIqUIDADO POR SECTOR DE ACTIVIDADE2007

14 Cfr. Estatísticas de IR, disponíveis em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/dgci/divulgacao/estatisticas/estatisticas_ir/, consultado em 22 de Novembro de 2010. A mesma tendência se verifica ao nível da União Europeia: em 2006 e 2007 a contribuição do sector bancário para a receita fiscal ascendeu em média a 20%, embora tenha baixado para 17% em 2008 em resultado da crise. O peso do sector em termos de valor acrescen‑tado ou de número de trabalhadores é substancialmente mais baixo (5% e 3%, respecti‑vamente) – cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010: Tax policy after the crisis, 2010, pág. 62.

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Adicionalmente, e por vários motivos, entre os quais é de salientar a dificuldade em determinar o valor acrescentado nas actividades de inter‑mediação15, a maior parte dos serviços e operações financeiros encontra-‑se isenta de IVA, isenção esta que impede a dedução do IVA suportado a montante. Quer isto dizer que, contrariamente ao que se verifica na maior parte dos sectores, as instituições financeiras vêem, em maior ou menor grau, e muitas vezes em maior grau, limitado o direito à dedução do IVA suportado que, nesta medida, se transforma num custo efectivo.

Não existem dados publicados que permitam aferir o impacto deste custo efectivo. De acordo com um estudo recentemente divulgado

15 Cfr. ritA de lA FeriA e ben loCkwood, Opting for Opting In? An Evaluation of the European Commission’s Proposals for Reforming VAT on Financial Services, War‑wick Economic Research Papers, No 927, 2010, pág. 5 e seg., e Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010…, cit., pág. 62 e seg.

2008

Fonte: Estatísticas de IR, disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/dgci/divulgacao/estatisticas/estatisticas_ir/, consultado em 22 de Novembro de 2010.

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abrangendo seis países europeus, não incluindo Portugal, a estimativa do total de imposto não dedutível em 2006 variou entre 0,39% e 1,48% do total da receita fiscal dos mesmos países, o que dá uma ideia do seu peso16.

Mito n.º 3: A lei dificulta (quase impede) o acesso da administra‑ção fiscal à informação protegida pelo sigilo bancário

O sigilo bancário está na origem de outro dos grandes mitos asso‑ciados à tributação da banca e das actividades financeiras em Portugal: afirma -se que a administração fiscal não tem acesso à informação prote‑gida pelo sigilo bancário, o que torna Portugal diferente da maioria dos outros países desenvolvidos.

No entanto, a administração fiscal tem acesso às informações ou documentos bancários sem dependência do consentimento do titular dos elementos protegidos em inúmeras situações, bastando, para o efeito, por exemplo, que “se verifiquem indícios da falta de veracidade do declarado ou esteja em falta declaração legalmente exigível”17. Note -se o carácter

16 Cfr. ritA de lA FeriA e ben loCkwood, Opting for Opting In?..., cit., pág. 7 e seg. O imposto não dedutível terá ascendido a 5283,57 milhões de euros em França, 6923,19 milhões de euros na Alemanha, 2465,81 milhões de euros em Itália, 1410,72 milhões de euros na Holanda, 1575,85 milhões de euros em Espanha e 11 084,21 milhões de euros no Reino Unido. A estes valores correspondem as percentagens de, respectiva‑mente, 0,64%, 0,74%, 0,39%, 0,65%, 0,43% e 1,48% de receita fiscal total dos países em causa. De acordo com a informação divulgada pela Associação Portuguesa de Bancos, os “encargos fiscais de exploração” dos bancos a operar em Portugal, que incluem o IVA não dedutível, ascenderam a 254 milhões de euros em 2009, o que corresponde a 0,69% da receita fiscal total (36 569 milhões de euros) – cfr. AssoCiAção portuguesA de bAnCos, Boletim Informativo n.º 45, Julho de 2010, pág. 21, disponível em http://www.apb.pt/Publi‑cacoes/Boletim_Informativo/, consultado em 21 de Novembro de 2010, e ministério dAs FinAnçAs e dA AdministrAção públiCA, Orçamento para 2011: Relatório, cit., pág. 95.

17 Cfr. artigo 63.º -B da Lei Geral Tributária: a administração fiscal tem acesso às informações ou documentos bancários sem dependência do consentimento do titular dos elementos protegidos quando existam indícios da prática de crime em matéria tributá‑ria, quando se verifiquem indícios da falta de veracidade do declarado ou esteja em falta declaração legalmente exigível, quando se verifiquem indícios da existência de acréscimos de património não justificados (de valor superior a € 100 000), quando se trate da veri‑ficação de conformidade de documentos de suporte de registos contabilísticos dos sujei‑tos passivos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e IRC que se encontrem sujeitos a contabilidade organizada, quando exista a necessidade de controlar

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vago das expressões utilizadas pelo legislador: basta que existam “indí‑cios”. E a administração fiscal pode até aceder, embora com condiciona‑lismos mais limitados, a informação relativa a “familiares ou terceiros que se encontrem numa relação especial com o contribuinte”, para usar a expressão vaga da lei18.

Em qualquer hipótese, notamos que a administração fiscal parece nem sequer fazer muito uso da possibilidade que a lei lhe confere. De acordo com os dados publicados, em 2009 apenas em 646 casos a administração fiscal recorreu a esta possibilidade19.

Mito n.º 4: A administração fiscal não tem acesso à informação neces‑sária para controlar a obtenção de rendimentos de capitais e mais ‑valias

É também um mito persistente, que aliás está relacionado com o mito do sigilo bancário, o de que a obtenção de vários tipos de rendimentos

os pressupostos de regimes fiscais privilegiados de que o contribuinte usufrua, quando se verifique a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável e, em geral, quando estejam verificados os pressupostos para o recurso a uma avaliação indirecta d quando se verifique a existência comprovada de dívidas à segurança social. A Lei do Orçamento do Estado para 2011 acrescenta a esta lista a “existência com‑provada de dívidas tributárias”. Da decisão de levantamento do sigilo cabe recurso judi‑cial, mas sem efeito suspensivo.

18 Cfr. artigo 63.º -B da Lei Geral Tributária: a administração fiscal tem o poder de aceder directamente aos documentos bancários, nas situações de recusa da sua exibição ou de autorização para a sua consulta, quando se trate de familiares ou terceiros que se encontrem numa relação especial com o contribuinte. Esta possibilidade depende da audi‑ção prévia do familiar ou terceiro e da decisão cabe recurso judicial com efeito suspen‑sivo. A lei não limita o grau de parentesco nem define o que deve entender -se por “rela‑ção especial com o contribuinte” …

19 Cfr. ministério dAs FinAnçAs e dA AdministrAção públiCA, Combate à Fraude e Evasão Fiscais 2009, Relatório de Actividades Desenvolvidas, Junho 2010, pág. 35 e seg. Dos 646 procedimentos administrativos de derrogação do sigilo bancário instaurados em 2009 resultaram 46 decisões de levantamento de sigilo, e 599 processos por autorização voluntária ou notificação do projecto de levantamento do sigilo bancá‑rio. Foram ainda instaurados 140 procedimentos de levantamento do sigilo bancário no âmbito de processos de inquérito judicial. A redução do número de processos adminis‑trativos de levantamento do sigilo bancário (que ascendeu a 1067 em 2007 e a 1089 em 2008) é justificada pela “realização em menor número, de acções inspectivas, em sede de IMT e de IMI, no âmbito do sector da construção civil, que pela sua natureza desencadea‑vam a instauração de processos de derrogação do sigilo bancário em número elevado”.

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típicos de operações financeiras por pessoas singulares não pode ser efec‑tivamente controlada pela administração fiscal, porque não dispõe de informação para estes efeitos.

Ora, a administração fiscal recebe, numa base regra geral anual, infor‑mação mais do que suficiente para controlar as declarações dos contribuin‑tes quanto a estes tipos de rendimentos. Para estes efeitos contribuem as obrigações declarativas que neste âmbito são impostas às instituições de crédito por exemplo enquanto entidades obrigadas à retenção na fonte, enquanto entidades devedoras de rendimentos, enquanto entidades que intervêm em determinados tipos de operações, enquanto entidades regis‑tadoras ou depositárias de valores mobiliários e enquanto entidades emi‑tentes de cartões de débito.

Poderá contrapor -se que a administração fiscal não recebe a informa-ção necessária para controlar os rendimentos obtidos no estrangeiro e que, no caso de residentes, estão sujeitos a tributação em Portugal. É verdade, mas como é demonstrado pela experiência a nível internacional, esta ques‑tão dificilmente pode ser ultrapassada senão pela via da cooperação inter‑nacional, nomeadamente a nível comunitário. E, pelo menos no papel, têm--se verificado alguns progressos: Portugal celebrou já 14 acordos de troca de informação com “paraísos fiscais”20 e têm sido anunciados o início ou a conclusão de convenções de dupla tributação (que prevêem a troca de informação) a juntar às 53 actualmente em vigor21. Caberá à administração

20 São eles Antígua e Barbuda, Andorra, Belize, Bermudas, Dominica, Gibraltar, Guernsey, Ilha de Man, Ilhas Cayman, Ilhas Virgens Britânicas, Jersey, Santa Lúcia, St. Kitts and Nevis e Turcos e Caicos. Nenhum dos acordos em causa se encontra ainda em vigor.

21 Estão actualmente em vigor convenções de dupla tributação com os seguintes países ou territórios: África do Sul, Alemanha, Argélia, Áustria, Bélgica, Brasil, Bulgá‑ria, Cabo Verde, Canadá, Chile, China, Coreia, Cuba, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estados Unidos da América, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Índia, Indonésia, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Macau, Malta, Marrocos, México, Moçambique, Moldova, Noruega, Países Baixos, Paquistão, Polónia, Reino Unido, República Checa, Roménia, Rússia, Singapura, Suécia, Suíça, Tunísia, Tur‑quia, Ucrânia e Venezuela. Foi entretanto anunciada a assinatura de convenções de dupla tributação com o Uruguai, Colômbia, São Marino, Kuwait e Panamá. Foi igualmente anun‑ciada a conclusão das negociações para convenções com os Barbados, o Malawi e Oman e o lançamento de negociações para uma convenção com Angola. Foi, por fim, noticiado o início de negociações com o Bangladesh. A entrada em vigor da convenção com a Guiné--Bissau continua a aguardar o cumprimento das formalidades aplicáveis.

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fiscal utilizar estes mecanismos de forma adequada, nomeadamente de forma mais activa do que parece ser o caso relativamente à utilização dos mecanismos instituídos a nível comunitário para troca de informação22.

A crise foi influenciada pela tributação?

Tendo percorrido e, esperamos, clarificado, alguns dos mitos que influenciam a percepção generalizada sobre a tributação da banca, e que, como vamos ver, influenciam também as decisões políticas neste âmbito, passamos agora para o segundo ponto sobre o qual nos propusemos reflec‑tir: a influência da tributação na crise que atravessamos.

Não está ainda feita a história das origens da crise. Como aliás se verifica em todas as áreas, este tipo de análise exige um distanciamento que não é possível no momento em que ainda sentimos os efeitos do fenómeno. Por outro lado, e paradoxalmente nesta era de proliferação de informação e de acesso imediato a terabytes de dados sobre todos os pormenores do assunto mais específico que se possa imaginar, não dis‑pomos ainda de todos os dados relevantes para uma análise completa e objectiva.

Não obstante, parece haver um consenso mais ou menos generalizado de que a crise não foi influenciada pelo desenho dos sistemas fiscais, ou por medidas fiscais específicas, e que, inclusivamente, é possível que o factor fiscal tenha contribuído para mitigar alguns dos efeitos da crise23.

22 Cfr. Directiva 77/799/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1977, rela‑tiva à assistência mútua das autoridades competentes dos Estados -Membros no domí‑nio dos impostos directos, transposta para a ordem jurídica interna pelo Decreto -Lei n.º 127/90, de 17 de Abril. São, no entanto, aplicáveis restrições à troca de informa‑ções sempre que estejam em causa, entre outras, a prestação de informações proibidas pela legislação ou prática administrativa dos respectivos Estados, o princípio da reci‑procidade e o dever de sigilo. Entretanto, em 7 de Dezembro de 2010 foi anunciado o acordo, ao nível do Ecofin, para a troca de informação automática e incondicional entre os Estados membros, a partir de 2015, relativamente a oito tipos de rendimentos: ren‑dimentos do trabalho dependente, remunerações de membros de órgãos sociais, divi‑dendos, mais ‑valias, royalties, alguns tipos de seguros de vidas, pensões e titularidade e rendimentos de imóveis.

23 Cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010…, cit. pág. 6.

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No entanto, algumas características de alguns ou da maioria dos sistemas ficais poderão ter contribuído para a crise.

É o caso, por exemplo, do enquadramento fiscal mais vantajoso que a maioria dos sistemas fiscais concede ao financiamento das empresas através de capitais alheios por comparação com o financiamento através de capitais próprios. A dedutibilidade dos juros de financiamento ban‑cário, de empréstimos obrigacionistas ou de empréstimos de sócios24 no apuramento do resultado sujeito a imposto contrasta com a irrelevância, para os mesmos efeitos, da remuneração de capitais próprios, ou seja, da distribuição de lucros.

De acordo com dados da Comissão Europeia25, em todos os países da União Europeia o financiamento por capitais alheios é tratado de forma mais favorável – em alguns casos de forma substancialmente mais favo‑rável – do que o financiamento por capitais próprios. É também o caso de países como os Estados Unidos da América e a Suíça.

24 A dedutibilidade dos custos com o financiamento concedido por sócios está frequentemente limitada. Para efeitos de IRC tal limitação ocorre via regras de subcapi‑talização, regras dos preços de transferência e da limitação da dedutibilidade dos juros e outras formas de remuneração de suprimentos e empréstimos feitos pelos sócios à sociedade, na parte em que excedam o valor correspondente à taxa de referência Euri‑bor a 12 meses do dia da constituição da dívida ou outra taxa definida por portaria do Ministro das Finanças, que, nos termos da Portaria n.º 184/2002, de 4 de Março, cor‑responde à Euribor a 12 meses acrescida de 1,5%. Como “medida excepcional de apoio ao financiamento da economia”, a Lei do Orçamento do Estado para 2011 aumenta o acréscimo para 6%. Por outro lado, a isenção de Imposto do Selo dos empréstimos com características de suprimentos deixa de ser condicionada à estipulação de um prazo inicial não inferior a um ano e ao não reembolso antes de decorrido esse prazo. Por fim, a retenção na fonte de IRS sobre os juros e outras formas de remuneração de suprimentos, abonos ou adiantamentos de capital feitos pelos sócios à sociedade e os juros e outras formas de remuneração devidos pelo facto de os sócios não levantarem os lucros ou remunerações colocados à sua disposição (aumentada para 21,5%) passa a ter natureza liberatória.

25 Cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010…, cit., pág. 45 e seg.

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TAXAS MARGINAIS EFECTIVASFINANCIAMENTO POR CAPITAIS PRÓPRIOS E FINANCIAMENTO

POR CAPITAIS ALHEIOS(União Europeia)

Fonte: Comissão Europeia, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010: Tax policy after the crisis, 2010.

Não pode afirmar -se, sem mais, que esta discriminação tenha deter‑minado o aumento do endividamento das empresas a que se tem vindo a assistir, mas ele é um facto. Por exemplo, na zona euro, a dívida das empresas não financeiras aumentou de 70% para mais de 80% do Pro‑duto Interno Bruto entre 2002 e 2008. O rácio de endividamento aumen‑tou, no mesmo período, de 160% para 320%26. É claro que outros factores terão contribuído para o aumento do financiamento com recurso a capitais alheios: no caso português, certamente que a tal não é alheia uma quase genética falta de espírito empresarial e um pouco mais do que incipiente mercado de capitais. Em qualquer hipótese, a discriminação poderá efec‑tivamente ter contribuído para o fenómeno do aumento do endividamento

26 Cfr. estudos citados em Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010…, cit., pág. 45.

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das empresas27, que, não sendo, por si só, uma causa da crise, potenciou os seus efeitos e dificulta a recuperação, sobretudo num contexto de falta de liquidez.

No mesmo sentido, de eventual influência na crise, são citados os incentivos de natureza fiscal à aquisição (e alienação) de habitação pró‑pria e a estrutura de tributação do imobiliário. A possibilidade de dedução ao rendimento ou à colecta de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares dos juros ou amortizações nos empréstimos à habitação28, que, embora com características diferentes, é um traço comum em muitos siste‑mas fiscais e visa incentivar a aquisição de habitação própria, terá poten‑ciado o endividamento para aqueles efeitos. Num contexto de aumento dos preços no imobiliário, de baixa acentuada das taxas de juro e de rela‑tiva segurança quanto ao emprego, o incentivo pela via fiscal ajudava na decisão de assunção de encargos mediante a contracção de empréstimos de longo prazo. E Portugal não foi excepção, embora os efeitos a este nível tenham sido mitigados por quedas menos acentuadas no imobiliá‑rio, quando comparadas com as que se verificaram noutros países, como, por exemplo, Espanha.

A juntar aos incentivos em matéria de impostos sobre o rendimento junta -se a tributação relativamente baixa da transmissão de imóveis ou da sua detenção29. Por fim, são relativamente raros os sistemas fiscais em que o rendimento implícito da habitação própria é tributado.

Estes factores fiscais, associados a uma irracional crença de que os preços dos imóveis continuariam a subir indefinidamente, poderão ter contribuído para a bolha imobiliária cujo rebentar constituiu o primeiro sinal da crise e a terá despoletado.

Não têm até ao momento sido apontados outros factores fiscais como tendo contribuído para a crise e, convenhamos, os que referimos não pare‑cem nem especialmente graves nem especialmente específicos.

27 A que se juntou um aumento do endividamento dos particulares.28 A Lei do Orçamento do Estado para 2011 limita as deduções à colecta de IRS

no caso de contribuintes incluídos nos dois últimos escalões de rendimentos. Estão aqui abrangidas as deduções relativas a encargos com imóveis, mas a medida não é limitada a estas deduções.

29 Embora em países como Portugal os imóveis sejam dos únicos tipos de activos cuja detenção é tributada.

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Podemos assim concluir que, não obstante as “costas largas” do sis‑tema fiscal, não terá sido ele o culpado da crise. Mais, aponta -se ao sistema fiscal o mérito de ter provavelmente contribuído para mitigar os efeitos da crise: enquanto estabilizador automático30 e, numa primeira fase, acomo‑dando medidas anti -cíclicas como as reduções de impostos instituídas com vista à ultrapassagem da crise31. Claro que rapidamente se percebeu que a crise era mais profunda do que parecia e que tinha características dife‑rentes de outras crises, o que explica que com relativa rapidez se tenha passado de políticas de redução de impostos como forma de incentivar o investimento para políticas de aumentos de impostos como forma de aumentar a receita fiscal e por esta via reduzir o défice32.

O futuro (e tempos de crise) da tributação da banca

Em plena crise, podemos perguntar o que nos espera em matéria de tributação da banca. Porque, ao que parece, a crise se irá ainda prolongar por mais alguns anos, o cenário a ponderar é ainda um cenário de crise. E, quando finalmente a crise for ultrapassada, é de esperar que deixe mar‑cas que influenciarão muitas decisões futuras.

O sector bancário é paradigmático a este respeito. Pelo papel que, diz ‑se, o sector desempenhou na crise, o respectivo enquadramento regu‑lamentar foi imediatamente objecto de medidas destinadas a evitar futuras crises. Trata ‑se de um padrão que se tem vindo a repetir e que pode ser facilmente traduzido no ditado “casa roubada, trancas à porta”. Poderia

30 Cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010…, cit., pág. 52 e seg.

31 As autorizações legislativas concedidas ao Governo pela Lei do Orçamento do Estado para 2010 para a atribuição de benefícios fiscais em IRS relativamente ao inves‑timento em “instrumentos de dívida pública destinados a jovens”, a aplicações na aqui‑sição de unidades de participação em fundos de investimento mobiliário que se consti‑tuam e operem de acordo com a legislação nacional e para apoio à dispersão de capital de pequenas e médias empresas em mercado organizado não chegaram a sair do papel…

32 A Irlanda constitui uma excepção parcial a esta tendência: embora tenha sido anun‑ciado o aumento de vários impostos, a taxa de imposto sobre os rendimentos das empresas manter -se -á nos 12,5% e não é alterada a base tributável – cfr. The National Recovery Plan 2011 -2014, disponível em http://www.budget.gov.ie/The%20National%20Recovery%20Plan%202011 ‑2014.pdf, consultado em 10 de Dezembro de 2010.

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e deveria perguntar ‑se se as trancas são as adequadas para prevenir novo roubo, quer pelos mesmos ladrões, quer por outros ladrões que utilizem outros métodos, mas este exercício seria demasiado racional para acalmar medos predominantemente irracionais.

E neste âmbito também as medidas fiscais serão e, em alguns países, estão já a ser utilizadas como forma de, por um lado, punir o sector bancário e, por outro lado, prevenir crises futuras com a configuração da actual. Mais racionalmente, diversos países introduziram ou ponderam a introdução de medidas destinadas a compensar as ajudas de que o sector bancário foi objecto.

A rapidez com que as medidas foram introduzidas ou anunciadas faz temer que na maior parte dos casos não tenham sido devidamente ponde‑radas, e as diferentes e frágeis justificações teóricas que vão sendo apre‑sentadas demonstram ‑no.

Estamos a falar das contribuições sobre o sector bancário que foram anunciadas ou foram já implementadas em diversos países, incluindo Portugal33. E, aproveitando a “onda” da crise, foram também apresenta‑das propostas de criação de um imposto específico sobre as actividades financeiras, e ressuscitou das cinzas a proposta de criação de um imposto sobre as operações financeiras.

A proposta de criação de contribuições sobre o sector bancário par‑tiu do G ‑20, com o objectivo declarado de recuperação dos custos asso‑ciados ao apoio que foi dado ao sector durante a crise. Por este motivo, as contribuições deveriam ter como característica a proporcionalidade e a sua aplicação deveria ser limitada no tempo, devendo reger ‑se por prin‑cípios de equidade e eficiência.

A proposta apresentada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em resultado do mandato que para o efeito lhe foi conferido pelo G ‑20 alterava, de alguma forma, aqueles objectivos: pretendia -se agora a cria‑ção de uma “contribuição para a estabilidade financeira” com o objectivo de compensar o custo associado a “futuro apoio governamental ao sec‑tor”. A contribuição deveria reflectir o nível de risco assumido por cada

33 Para uma análise resumida das medidas anunciadas ou implementadas em alguns países, cfr. KMPG, Proposed bank levies ‑ comparison of certain jurisdictions, Edition III, Novembro de 2010, disponível em http://www.kpmg.com/Global/en/IssuesAndInsights/ArticlesPublications/Documents/bank ‑levy ‑edition ‑3 ‑nov ‑2010.pdf, consultado em 24 de Novembro de 2010, e internAtionAl monetAry Fund, A Fair and Substantial Contri‑bution by the Financial Sector, Final Report for the G ‑20, Junho de 2010, pág. 28 e seg.

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instituição e, consequentemente, a sua contribuição para o risco sisté‑mico. O FMI recomendou ainda que os traços gerais da contribuição fos‑sem objecto de acordo a nível internacional, assegurando algum tipo de coordenação por forma a evitar, por exemplo, a deslocalização de activos com vista a evitar a tributação34.

Para a Comissão Europeia, que aceitou sem reservas as indicações que lhe foram dadas pelo Conselho Europeu, as contribuições sobre o sector financeiro justificar -se -ão porque se assume que o comportamento do sector criou externalidades negativas para o resto da economia. As contribuições assumiriam assim uma natureza punitiva e correctiva35.

Portugal não ficou imune a esta influência, e embora o apoio ao sector tenha sido limitado36, avançou ‑se para a criação de uma contribuição sobre o sector bancário, inicialmente anunciada como estando “em linha com a iniciativa em curso no seio da União Europeia”37. Como, de facto, não existe qualquer iniciativa em curso na União Europeia, a referência foi posteriormente alterada para a “linha daquelas [contribuições] que foram já introduzidas noutros Estados Membros da União Europeia”38.

34 Cfr. internAtionAl monetAry Fund, A Fair and Substantial Contribution by the Financial Sector…, cit., pág. 25 e seg.

35 Cfr. Comissão europeiA, Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions, Taxation of the Financial Sector, COM(2010) 549 final, 7.10.2010, pág. 3.

36 Considerando apenas o apoio que estará directamente relacionado com a crise, e já não o apoio ao Banco Português de Negócios, S.A. O apoio traduziu -se na presta‑ção de garantias pelo Estado a emissões obrigacionistas e a empréstimos de instituições financeiras, ao abrigo da Lei n.º 60 -A/2008, de 20 de Outubro, num montante total de 4950 milhões de euros. Sobre as garantias em causa são cobradas comissões que variam entre 0,500% e 0,948% – cfr. ministério dAs FinAnçAs e dA AdministrAção públiCA, Orçamento para 2011: Relatório, cit., pág. 155. Não foram até ao momento utilizados os mecanismos previstos na Lei n.º 63 -A/2008, de 24 de Novembro, destinados ao reforço da solidez financeira das instituições de crédito.

37 Cfr. comunicado de imprensa de 29 de Setembro de 2010, disponível em http://www.min -financas.pt/comunicados/2010/100929.pdf, consultado em 29 de Setembro de 2010: “O Governo aprovou hoje em Conselho de Ministros um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental, em que se baseará a proposta de Orçamento do Estado para 2011. (…) Imposição de uma contribuição ao sistema financeiro em linha com a iniciativa em curso no seio da União Europeia”.

38 Cfr. ministério dAs FinAnçAs e dA AdministrAção públiCA, Orçamento para 2011: Relatório, cit., pág. 73. No entanto, a referência à “iniciativa em curso no seio da UE” é mantida no quadro constante da pág. 44.

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De acordo com a Lei do Orçamento do Estado para 201139, esta con‑tribuição incidirá sobre o passivo apurado e aprovado deduzido dos fun‑dos próprios de base (Tier 1) e complementares (Tier 2) e dos depósitos abrangidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos40, a taxas que variarão entre 0,01 % e 0,05%, e sobre o valor nocional dos instrumentos finan‑ceiros derivados fora do balanço, a taxas que variarão entre 0,00010% e 0,00020%. O enfoque é, assim, do lado do passivo, como aliás se verifica no caso da maioria dos países que já implementou ou anunciou a imple‑mentação de contribuições deste tipo41.

Remete -se para portaria do Ministro das Finanças a regulamentação da base de incidência, das taxas aplicáveis e das regras de liquidação, de cobrança e de pagamento da contribuição, ou seja, de praticamente todos os aspectos relevantes (e essenciais). Dir ‑se ‑ia que, na urgência de anun‑ciar medidas que acalmassem a opinião pública e os mercados, foi anun‑ciada e posteriormente proposta a criação de uma contribuição que pode ter taxas que variam entre um determinada percentagem e o seu quíntu‑plo, à vontade do Governo, e cujos contornos essenciais o Governo defi‑nirá igualmente.

O princípio da legalidade, que a doutrina entende ser aplicável tam‑bém às contribuições até que seja criado o respectivo regime geral42, parece ficar um pouco maltratado neste caso, pois que nem a amplitude da variação da taxa foi delimitada pelo legislador parlamentar de forma

39 Cfr. artigo 141.º da Lei n.º 55 -A/2010, de 31 de Dezembro, que aprova “o regime que cria a contribuição sobre o sector bancário”.

40 A falta de precisão do legislador suscita a dúvida: a referência aos “depósitos abrangidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos” reporta ‑se também aos limites estabe‑lecidos neste âmbito em termos de montantes (cfr. artigo 166.º do Regime Geral das Insti‑tuições de Crédito e Sociedades Financeiras), ou apenas em termos de tipos de depósitos ou depositantes (cfr. artigo 165.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras)? Em nossa opinião, serão de excluir da base de incidência todos os depósitos que, em função do titular ou do tipo de depósito e independentemente do respectivo mon‑tante, estão abrangidos pela garantia nos termos da legislação aplicável.

41 Cfr. KMPG, Proposed bank levies ‑ comparison of certain jurisdictions, cit.42 Cfr. sérgio VAsques, O Princípio da Equivalência como Critério de Igualdade

Tributária, Coimbra: Almedina, 2008, pág. 244. Para o autor (cfr. pág. 250), “[a]s contri‑buições ocupam no plano constitucional um lugar intermédio entre as taxas e os impos‑tos, partilhando o princípio da equivalência com as taxas e partilhando com os impostos a reserva de lei parlamentar enquanto não se edite o respectivo regime geral.”

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que permita afastar a discricionariedade do Governo que, por esta via, procederá, de facto, à fixação deste elemento essencial da contribuição sem que tal pareça justificar -se pela necessidade de adaptação da taxa da contribuição a variações na conjuntura43.

Por outro lado, o objectivo declarado é o de “aproximar a carga fis‑cal suportada pelo sector financeiro da que onera o resto da economia e de o fazer contribuir de forma mais intensa para o esforço de consoli‑dação das contas públicas”44, o que, para além de não corresponder aos dados disponíveis45, desvirtua o recurso ao conceito de contribuição46.

43 Cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2004, no qual não foi declarada (por sete votos contra seis votos de vencido) a inconstitucionalidade das normas que per‑mitiam (anualmente) ao Governo fixar por portaria as taxas do imposto sobe os produtos petrolíferos, entre um mínimo e um máximo, “[tomando] em consideração os diferentes impactos ambientais de cada um dos combustíveis, favorecendo gradualmente os menos poluentes”. O Tribunal considerou relevante para a decisão o facto de o legislador par‑lamentar ter a “oportunidade de, ano a ano, reponderar a não só a avaliação política tomada quanto à bondade da solução da devolução para o legislador regulamentar do poder tributário de fixar as taxas unitárias efectivas do imposto como a justeza da leitura feita por este do princípio de liberdade de mercado e das técnicas tributárias próprias deste tipo de tributo, que lhe são apontados como critérios de decisão normativa a ter em conta na fixação efectiva da taxa do imposto”. Pergunta ‑se, no caso da contribuição sobre o sector bancário, quais são os critérios de decisão normativa previstos na lei que permitem concluir que a devolução do poder de fixar a taxa para o legislador regulamen‑tar não traduz a atribuição de poderes totalmente discricionários?

44 Cfr. ministério dAs FinAnçAs e dA AdministrAção públiCA, Orçamento para 2011: Relatório, cit., pág. 73. Refere -se também neste âmbito que se estará “prote‑gendo também, assim, os trabalhadores do sector e os mecanismos de segurança social”. Não é imediatamente perceptível a ligação entre a criação da contribuição em causa e a protecção dos trabalhadores do sector bancário e os mecanismos de segurança social.

45 Cfr. supra a propósito do peso do IRC liquidado pelo sector bancário e dos segu‑ros no total do IRC liquidado.

46 “As contribuições constituem prestações pecuniárias e coactivas exigidas por uma entidade pública em contrapartida de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo (…). O que distingue as contribuições é o visarem a compensação de prestações presumidas, cuja provocação ou aproveitamento se podem dizer seguros quanto a determinado grupo mas apenas prováveis quando referidos ao indivíduo que o entrega.” – Cfr. sérgio VAsques, O Princípio da Equivalência como Critério de Igualdade Tributária, cit., pág. 248. A não invocação daquele objectivo no caso concreto não terá sido, entretanto, inocente: é que “[o] princípio da equivalência exige que taxas e contribuições possuam uma base tributável específica, rejeitando o uso de bases tributáveis ad valorem, pois que só uma base específica é capaz de exprimir

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A contribuição será devida pelas “instituições de crédito com sede principal e efectiva da administração situada em território português, [pelas] filiais em Portugal de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efectiva da administração em território português [e pelas] sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede princi‑pal e efectiva fora da União Europeia”47. O potencial de dupla tributação internacional é evidente: os elementos sujeitos à contribuição que sejam afectos a sucursais de instituições de crédito com sede em Portugal nou‑tros países que prevejam contribuições semelhantes serão tributados em ambos os países, salvo se, unilateralmente, o país da sucursal se abstiver de os tributar. Por outro lado, os elementos sujeitos à contribuição que sejam afectos a sucursais de instituições de crédito com sede principal e efectiva fora da União Europeia, em país que preveja contribuições seme‑lhantes, serão tributados em ambos os países48. O risco de deslocalização,

os custos e os benefícios que lhe são inerentes[, e embora por vezes suceda] termos de tolerar o uso de bases ad valorem, [esta é], no entanto, uma solução que só devemos admitir quando esteja em jogo a compensação de prestações de natureza pecuniárias (sic) de que os respectivos sujeitos passivos sejam os presumíveis beneficiários.” – Cfr. sérgio VAsques, O Princípio da Equivalência como Critério de Igualdade Tributária, cit., pág. 685 e 686. Pergunta -se, no caso da contribuição sobre o sector bancário, quais as prestações (de natureza pecuniária) cuja causa ou aproveitamento se podem dizer seguros quanto aos respectivos sujeitos passivos?

47 Cfr. artigo 2.º do Regime que tem por objecto a introdução de uma contri‑buição sobre o sector bancário e determina as condições da sua aplicação, aprovado pelo artigo 141.º da Lei n.º 55 -A/2010, de 31 de Dezembro. As filiais são, nos termos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, as pessoas colectivas relativamente às quais outra pessoa colectiva se encontre numa relação de controlo ou de domínio, considerando -se que a filial de uma filial é igualmente filial da empresa mãe de que ambas dependem. Desta forma, nos termos da lei serão sujeitos passivos da contri‑buição em causa as sociedades controladas ou dominadas por uma instituição de crédito sem sede principal e efectiva da administração em território português, mas não o serão as sociedades controladas ou dominadas por outros tipos de entidades sem sede principal e efectiva da administração em território português. Pergunta ‑se em que se distinguem, para os efeitos aqui relevantes, as sociedades em causa.

48 A limitação da não incidência às sucursais de instituições de crédito com sede na União Europeia suscita imediatamente a questão da conformidade com o direito comuni‑tário, à luz da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia no sen‑tido da extensão do direito de estabelecimento e da liberdade de prestação de serviços às sociedades residentes também no Espaço Económico Europeu.

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apontado nomeadamente pela Comissão Europeia num contexto de falta de coordenação, é grande.

Pela falta de definição de elementos essenciais como a taxa ou a base de incidência, não é possível avaliar o impacto que esta contribuição poderá ter no sector49. Por outro lado, não é claro se se trata de uma medida de carácter temporário, como se verifica ou está proposto que se verifi‑que noutros países, ou se se trata de uma medida permanente. O futuro é, assim, incerto.

E, claramente, em Portugal como noutros países, o processo parece, em grande medida, ter sido invertido: a decisão de criar este tributo foi tomada sob pressão e antes de uma análise adequada e a justificação foi procurada posteriormente.

De alguma forma aproveitando o impulso proporcionado pela crise, têm vindo a ser discutidas outras propostas de tributos sobre a actividade financeira. É o caso da proposta apresentada pelo FMI, de criação de um imposto sobre as actividades financeiras, incidindo sobre os proveitos das instituições financeiras. No mesmo sentido, a Comissão Europeia propôs recentemente a criação, à escala comunitária, de um imposto sobre as acti‑vidades financeiras, incidindo sobre os proveitos das instituições finan‑ceiras. O objectivo deste imposto é o de “tributar de forma adequada o sector (...) e responder à necessidade de gerar novas receitas na UE”50.

Argumenta -se, como justificação para esta tributação, que é prová‑vel que no sector financeiro existam rendas implícitas, porque, por força dos mecanismos de protecção dos clientes, como os fundos de garantia dos depósitos e a regulamentação apertada de diversos tipos de produtos, e por força da concentração bancária e da relevância das relações esta‑belecidas entre os membros do sector, há garantias implícitas que podem levar os bancos a ignorar ou a não ponderar devidamente o risco asso‑ciado a determinadas actividades ou a determinados activos51. No entanto, e embora seja geralmente aceite que de facto existe moral hazard que

49 A comunicação social deu nota de afirmações do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nas quais afirmou que a estimativa de receita para 2011 ascendia a 100 milhões de euros.

50 Cfr. comunicado de imprensa IP/10/198, de 7 de Outubro de 2010.51 Cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU

Member States 2010…, cit., pág. 60 e seg., e internAtionAl monetAry Fund, A Fair and Substantial Contribution by the Financial Sector, cit., pág. 22 e seg.

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contribui para a criação de bancos que se acredita e que acreditam serem too big to fail, a existência destas rendas implícitas é posta em causa por diversos autores, pelo que a fragilidade da sua utilização como justifica‑ção para a criação do imposto em análise é evidente52.

Argumenta -se também para justificar a criação deste imposto que a contribuição do sector bancário como um todo em termos de receita ao nível dos impostos sobre o rendimento poderá ser inferior à de outros sectores, mas não são apresentados números nem sequer aproximações a números que comprovem esta teoria53. E invoca ‑se a isenção de IVA nas operações financeiras como constituindo uma vantagem do sector quando, conforme anteriormente já referimos, se trata indubitavelmente de uma desvantagem por comparação com os sectores cujas actividades estão sujeitas ao regime geral54.

A Comissão Europeia propôs ainda, recentemente, a criação de um imposto sobre as operações financeiras, incidindo sobre todas as opera‑ções com base no seu valor. O objectivo principal, ou pelo menos o que foi privilegiado no anúncio público da proposta, é o de arrecadar receita para o “financiamento de importantes objectivos políticos” 55, como lidar com as alterações climáticas e o desenvolvimento.

Nesta fase, a Comissão Europeia parece propor a limitação deste imposto a um cenário de adopção generalizada a nível internacional, por forma a evitar a deslocalização das transacções56.

Tradicionalmente, este tipo de imposto visa, segundo alguns, a esta‑bilização dos mercados financeiros, reduzindo as operações especulativas e, dada a sua abrangência, permite obter receita elevada, não obstante a reduzida incidência individual. E, acrescenta ‑se, traduziria uma contri‑buição do sector financeiro para compensar os custos incorridos com o

52 Cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010…, cit., pág. 61.

53 Os números disponíveis, aliás, desmentem esta teoria – cfr. supra.54 Cfr. internAtionAl monetAry Fund, A Fair and Substantial Contribution

by the Financial Sector, cit., pág. 22, e Comissão europeiA, Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions, Taxation of the Financial Sector, cit., pág. 3.

55 Cfr. comunicado de imprensa IP/10/198, de 7 de Outubro de 2010.56 Cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU

Member States 2010…, cit., pág. 61.

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apoio durante a crise57. No entanto, não é consensual o impacto de uma medida deste tipo na prossecução dos objectivos referidos, o que eventu‑almente justifica o facto de as primeiras propostas neste âmbito datarem já dos anos 30 do século passado (com Keynes) e as propostas do autor que “baptizou” o imposto, James Tobin, terem sido apresentadas já em 1974.

Com efeito, há quem defenda que quanto menores forem os custos, melhor os mercados financeiros funcionam e há inclusivamente quem defenda que os investimentos de curto prazo e a própria especulação aumentam a eficiência dos mercados. Há também quem defenda que os efeitos de um imposto deste tipo dependem fundamentalmente da estrutura dos mercados, que não é homogénea nas diversas geografias. Para estes autores, a adopção “cega” de um imposto deste tipo, sem tomar em con‑sideração a estrutura de cada mercado, pode causar impactos negativos. O impacto em investidores institucionais, como os fundos de pensões e os fundos de investimento, poderá igualmente ser relevante58.

Aliás, o FMI levantou várias reservas à criação deste tipo de impos‑tos, recomendando cuidado na análise dos seus efeitos potenciais. Foi salientado, a este respeito, o facto de o imposto incidir sobre as opera‑ções entre os agentes económicos, desta forma aumentado os respectivos custos, com o potencial de repercussão em maior ou menos medida nos preços dos bens e produtos em termos gerais59.

É por fim razoável assumir que a tendência será a de os tributos dos tipos antes referidos, se vierem a ser adoptados, serem repercutidos nos preços dos serviços e produtos bancários60, da mesma forma que qualquer

57 Cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010…, cit., pág. 59 e seg., e internAtionAl monetAry Fund, A Fair and Substantial Contribution by the Financial Sector, cit., pág. 19 e seg.

58 Cfr. Comissão europeiA, Monitoring tax revenues and tax reforms in EU Member States 2010…, cit., pág. 60 e seg., e thomAs hemmelgArn e gAëtAn niCodème, The 2008 Financial Crisis and Taxation Policy, European Commission Taxation Papers, n.º 20 2010, pág. 31.

59 Cfr. internAtionAl monetAry Fund, A Fair and Substantial Contribution by the Financial Sector, cit., pág. 19 e seg. A declaração da Cimeira de Seul é omissa quanto a um entendimento nestas matérias, o que permite concluir que, pelo menos naquela sede, as propostas do FMI não terão sido aceites.

60 Cfr. Comissão europeiA, Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions, Taxation of the Financial Sector, cit., pág. 5.

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aumento de outros custos é repercutida no preço, ou seja, em função do que for admitido num mercado concorrencial, como é o bancário, sujeito embora às restrições regulamentares aplicáveis. Os bancos são sociedades comerciais que visam fundamentalmente o lucro para retorno dos accio‑nistas. O seu papel de intermediários financeiros impõe -lhes obrigações especiais, que são objecto de regulamentação apertada, e cada vez mais apertada. Assegurados pelo legislador os aspectos relevantes, os bancos não são e não têm por que ser diferentes de outras sociedades no desen‑volvimento da sua actividade. E, se atentarmos à rentabilidade do sector nos tempos mais recentes61, é de esperar forte pressão a este nível.

61 O return on equity (ROE) do sector da banca nos países que participam no Bank for International Settlements decresceu de 13,3% no período de 1995 a 2000 para 12,8% no período de 2001 a 2007 e para 3,2% no período de 2008 a 2009. No sector não finan‑ceiro assistiu -se a uma tendência semelhante, mas menos acentuada: 11,7%, 12,8% e 9,8% ‑ cfr. bAnk For internAtionAl settlements, 80th Annual Report, 1 April 2009–31 March 2010, pág. 75, disponível em http://www.bis.org/publ/arpdf/ar2010e.pdf, consul‑tado em 22 de Novembro de 2010. Em Portugal, nos oito dos sectores mais relevantes de que fazem parte as empresas portuguesas cotadas, o ROE do sector financeiro desceu do segundo mais alto em 2005 para apenas o sétimo mais alto no primeiro semestre de 2010, sendo superior apenas ao do sector de bens de consumo.

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Joaquim Freitas da Rocha

Finanças Públicas e pós ‑modernidade.O Direito Financeiro como desvio à natureza

principiológica e jurisprudencialistado Direito da União Europeia*

* O presente texto não tem pretensões científicas nem natureza investigatória, tratando -se apenas da materialização escrita da conferência de abertura do “Ciclo de conferências Jean Monnet: Direito da União Europeia e Transnacionalidade”, que decorreu na UNIVAL, Campus Itajaí, Santa Catarina, Brasil, no dia 03 de Agosto de 2010.

Joaquim Freitas da RochaDoutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Professor na Escola de Direito da Universidade do Minho

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RESUMO:

A ordem jurídica europeia tem sido tradicionalmente concebida como uma ordem autoreferente, baseada na “jurisprudência dinâmica” do seu Tribunal de justiça. Contudo, as matérias relativas às finanças públicas - particularmente, as relacionadas com a disci‑plina financeira e o pacto de estabilidade e crescimento - constituem uma excepção, na medida em a sua disciplina é criada, não por impulso judicial, mas por actividade legis‑lativa e administrativa.

Palavras ‑chave:Direito financeiro europeuPacto de estabilidade e crescimentoFinanças públicas

ABSTRACT:

The European legal order has been traditionally conceived as an auto ‑referent, order, based on the “dynamic jurisprudence” of its Court of Justice. However, public finance matters - particularly, those related with fiscal discipline and the stability and growth pact - symbolize an exception, because its regulation is created, not by judicial propulsion, but by legislative and executive activity.

Key ‑words:European lawStability and growth pactPublic finance

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1. Numa certa perspectiva, pode considerar ‑se o ordenamento nor‑mativo da União Europeia (UE) uma manifestação das tendências de pós ‑modernidade que se desenham nos quadros actuais de pensamento jurídico. Na realidade, se por “pós -modernidade” for entendido o modelo de existência que secundariza a posição do Estado (desestadualização) e simultaneamente desvaloriza o primado da razão (desracionalização), pode afirmar -se que a tarefa de construção europeia nele encaixa sem dificul‑dade. Dois argumentos podem aqui ser apresentados:

i) por um lado, o ordenamento europeu sempre reclamou uma indubitável independência e um estatuto de inquestionável auto‑nomia, não se subsumindo nem aos quadros de pensamento do Direito estadual, nem aos quadros de pensamento do Direito internacional tradicional. Com efeito, desde o acórdão do (então) TJCE de 15 de Julho de 1964, Costa /E.N.E.L., que se vem enten‑dendo que tratados instituem uma ordem jurídica autónoma que é integrada na ordem jurídica dos Estados -membros e que o Direito a partir daí criado procede de uma “fonte jurídica pró‑pria”, com as consequências de que ao nível da harmonização da produção jurídica a regra fundamental é a do primado (primauté, Anwendungsvorrang) do Direito Europeu. Afirma -se assim que as disposições dos tratados e os actos das instituições vinculam todos os poderes do Estado e têm por efeito não só tornar inapli‑cável, desde a sua entrada em vigor, qualquer norma de Direito interno contrária, mas também impedir a formação válida de novos actos incompatíveis.

ii) Por outro lado, o modus operandi dos actores institucionais euro‑peus sempre se pautaram por critérios que se afastam da raciona‑lidade jurídica clássica, ou pelo menos que se submetem a uma racionalidade jurídica muito própria. Basta trazer ao discurso a circunstância de que as medidas normativas adoptadas e as deci‑sões jurisprudenciais tomadas não são modeladas pelos ideais de Estado de Direito Formal (constitucionalidade, legalidade, subor‑dinação escalonada /Stufenbau Theorie) ou material (democracia representativa, igualdade, universalidade) – racionalidades típi‑cas da modernidade –, mas por considerações mais “emotivas” ou “sensíveis” relacionadas com as “liberdades fundamentais”

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e a prossecução da tarefa de construção de um mercado interno. Nesta perspectiva, e por exemplo, não interessará tanto saber se determinada norma confere ou protege adequadamente determi‑nada posição jurídica subjectiva (do cidadão, do eleitor, do admi‑nistrado, do contribuinte, do utente, etc.), mas antes se prossegue de modo conveniente o fim de estabelecimento de um mercado livre e sem restrições.

2. Como consequência dessa vontade desestadualizante e desracio‑nalizante, irrompe um paradigma autoreferencial e autopoiético como modo de justificação jurídico -normativa da construção europeia.

Já não é recente a defesa da ideia de que, a partir de um impulso ini‑cial originário do exterior, os sistemas criam os seus próprios elementos (autopoiése) e autoreproduzem ‑se, num movimento de circularidade que os leva a desenvolverem ‑se sobre si mesmos. No âmbito das ciências sociais1, certos sectores de pensamento defendem que a partir do sistema social geral – enquanto megacomplexo que encerra todas as relações sociais possíveis (laborais, económicas, sociais, afectivas, religiosas, etc.) –, se individualizam subsistemas autónomos e independentes que, sujeitos a códigos comunicativos próprios e específicos, transportam consigo a marca da individualidade e da particularidade, servindo de base ou assentamento a conjuntos distintos de relações particulares, podendo falar -se num subsis-tema económico, num subsistema político, num subsistema ético, valora‑tivo ou axiológico e, naturalmente, num subsistema jurídico. Cada um des‑tes adquire linguagens específicas, princípios e regras singulares, que dão corpo ao código comunicativo que os torna diferentes, podendo mesmo dar ‑se o caso de tais códigos se apresentarem dissonantes entre si2.

1 Convém ter presente que a ideia de autopoiése foi “importada” do domínio das ciências naturais (MATURANA, VARELA), no contexto das quais se pretende designar um processo mediante o qual um sistema biológico se gera a si mesmo por via da interac‑ção com o meio onde está inserido. Deste modo, autopoiése, auto -referência e clausura sistémica revelam ‑se conceitos interdependentes.

2 A dissonância referida no texto apenas será convenientemente captada e com‑preendida se a estrita análise jurídico -normativa se deixar atravessar por componentes de análise típicas de outros segmentos cognoscitivos e empíricos, como a economia, a axio‑logia, a ética ou a sociologia. Basta pensar neste contexto, por exemplo, que a redução do montante de determinada prestação social (v.g., subsídio a desempregados) poderá

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Seguidamente, verifica -se que, no interior deste subsistema jurídico, vários subtipos relacionais irrompem e dão corpo a outros subsistemas que criam as suas próprias lógicas comunicativas e teias de dependências, compreendendo -se desta forma, por exemplo, que o subsistema penal adquira retóricas, regras e métodos distintos do subsistema tributário, e este, por sua vez, distintos do subsistema civil, sem prejuízo das dimensões essenciais transversais a todo o ordenamento (v.g., Estado de Direito, Democracia, Igualdade).

Ora, para quem aceitar este modo de ver as coisas, não se torna difícil reconhecer uma natureza autopoiética ao Direito da União Europeia, na medida em que os Estados dão o seu impulso exterior inicial ao constituir o novo ordenamento por via dos Tratados Constitutivos (Direito europeu originário) e, após esse acto inicial de impulso construtivo, as Instituições europeias formam um novo arsenal normativo (Direito derivado) de acordo com as suas próprias formas e procedimentos, numa cadeia de validade autónoma em relação ao exterior do sistema.

Enfim, em poucas palavras, a UE cria a sua própria lógica de exis‑tência, assente numa principiologia completamente nova e tendo sempre presente as ideias de autonomia e “necessidade existencial”.

3. Assumida a tendencial natureza desestadualizante, desracionali‑zante e autoreferencial do modelo de construção europeia, desenham ‑se duas características tradicionalmente apontadas ao Direito da UE e que constituem como que a sua marca genética (embora não absoluta, como se terá oportunidade de referir): trata -se de um Direito eminentemente (i) principiológico e (ii) de base jurisprudencial.

ser incentivada de acordo com estritos critérios económico -financeiros (subordinado ao código binário rentável/ não rentável), mas possivelmente será altamente desaconselhada do ponto de vista político (onde prevalece o código oportuno/ inoportuno); analogamente, a introdução de uma nova taxa de imposto pode ser extremamente recomendável do ponto de vista económico, como modo de proteger um certo sector da actividade económica em face de outro ou outros, mas poderá ser extremamente desaconselhável do ponto de vista jurídico por atentar contra dimensões essenciais do princípio constitucional da igualdade (e onde ganha prevalência o código válido/ inválido); do mesmo modo, o sistema jurídico pode reclamar a adopção de medidas de igualitarização de relações estabelecidas entre parceiros do mesmo sexo e de sexo diferente, mas o sistema valorativo ou religioso negar violentamente a materialização de tais medidas.

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i) Desde logo, e não obstante a inflação normativa e a suficiente den‑sificação das regras de Direito originário e derivado – podendo, em relação a algumas directivas falar -se mesmo em prolixidade –, verifica -se que se trata de um segmento jurídico fortemente marcado por princípios. Em termos práticos, e apesar da recepção das dimen‑sões essenciais dos ordenamentos dos Estados -membros (princí‑pios jurídicos fundamentais), o Direito da UE reconhece um con‑junto próprio e completamente novo de preceitos valorativos que se justificam grandemente pela ideia de “necessidade existencial”. Apenas a título exemplificativo podem ser trazidos ao discurso os princípios do primado (em determinadas matérias previstas nos Tra‑tados as normas de Direito da UE gozam de preferência aplicativa em relação às normas de Direito interno desconformes, como modo de assegurar a funcionalidade sistémica); da aplicabilidade directa (desnecessidade de transposição, recepção ou incorporação da nor‑mas de Direito europeu nos ordenamentos nacionais); ou do efeito imediato (as norma de Direito europeu criam direitos e vinculações directamente invocáveis perante os Tribunais internos dos Estados-‑membros, seja num sentido vertical – particular frente a uma enti‑dade pública –, seja num sentido horizontal – entre particulares).

ii) Em segundo lugar, o arsenal principiológico acima referido deve muito da sua formação e posterior desenvolvimento aos esfor‑ços e à energia do Tribunal de Justiça da UE, o qual é referido frequentemente como sendo o motor do processo de integração e o verdadeiro defensor dos Tratados (isto é, da autonomia do sistema). Na verdade, procurando distanciar -se da matriz jurídica europeia continental clássica – assente no primado da Consti‑tuição e na valorização do Parlamento e da lei –, o TJUE desde cedo “marcou a cadência” por via de acórdãos paradigmáticos e verdadeiramente históricos (Costa /E.N.E.L., Internationale Handelsgesellschaft, Simmenthal, etc.), por via dos quais afir‑mou a autonomia e o primado do Direito da União, por vezes mesmo de um modo absoluto, acrítico e desmesurado. Um even‑tual excesso neste dinamismo jurisprudencial chegou mesmo a suscitar a crítica de que o Direito da UE se afirmava por vezes como um verdadeiro “Direito dos juízes”, porventura violador de algumas dimensões essenciais do Estado de Direito.

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4. Contudo, nem todos os segmentos jurídicos em que o Direito da UE se materializa apresentam as características apontadas, sendo o par‑ticular domínio da política financeira – entendida como coordenação das políticas financeiras dos Estados -membros 3 –, um dos exemplos paradig‑máticos de desvio genético. Na verdade, nem se reconhece a existência de muita jurisprudência sobre as matérias em causa – constituindo o acórdão de 13 de Julho de 2004 (processo C -27/04), e sobre o qual se voltará a fazer referência, uma excepção –, nem se aponta um grande esforço de elabora‑ção doutrinal na construção de princípios financeiros estruturantes, antes se baseando as soluções jurídicas numa rede densa de regras específicas.

Exemplo significativo da estrutura pouco fundada em princípios e muito sustentada em regras – importando a fraseologia de ALEXY ou CANOTILHO, por exemplo – pode ser encontrado na disciplina jurídica do denominado “Pacto de estabilidade e crescimento”, o qual constitui um conjunto de normas que constituem os sustentáculos sobre as quais assen‑tam a coordenação das políticas financeiras e orçamentais dos Estados--membros e a tarefa de solidificação das respectivas finanças públicas4. Trata -se de uma densa rede de objectivos (por exemplo, os Estados--membros comprometem -se, a médio prazo, a assegurar situações orça‑mentais excedentárias ou próximas do equilíbrio e a levar à prática em tempo útil as necessárias medidas de correcção orçamental), instrumentos (v.g., os programas de estabilidade e convergência ou a cláusula de proi‑bição de défices excessivos), pressupostos e sanções que se materializa

3 A coordenação referida, como se sabe, ganha dimensão no quadro da política eco‑nómica da União, constituindo, ao lado da política monetária /cambial uma das vertentes em que ela se desdobra. Porém, se no domínio monetário se pode afirmar que existe êxito em grau elevado (desde logo pela existência de uma moeda referencial, no quase exclu‑sivo supraestadual de emissão de moeda, e no reconhecimento de competências exclusi-vas e reforçadas ao Banco Central Europeu - BCE), no domínio financeiro, o máximo que se pode aspirar é, até ao momento, a uma simples e por vezes difícil e custosa coor‑denação de políticas díspares.

4 Desde logo, o extenso art.º 126.º do Tratado sobre o funcionamento da UE (TfUE), ao qual acrescem o regulamento (CE) n.º 1466/97 do Conselho de 7 de Julho de 1997, relativo ao reforço da supervisão das situações orçamentais e à supervisão e coordenação das políticas económicas; o regulamento (CE) n.º 1467/97 do Conselho de 7 de Julho de 1997 relativo à aceleração e clarificação da aplicação do procedimento relativo aos défices excessivos; e a Resolução do Conselho Europeu sobre o Pacto de Estabilidade e Cresci‑mento, de 17 de Junho de 1997 (97/C 236/01).

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numa disciplina jurídica compacta, carregada e “pesada” de textura pouco aberta – para utilizar a terminologia de HART – e com um grau de concre‑teza elevadíssimo. Aliás, as referidas regras apresentam um grau de den‑sificação cada vez mais acentuado, em virtude da crescente necessidade de preencher conceitos indeterminados e cláusulas abertas, perspectiva‑dos como potencialmente desaconselháveis em domínios onde o rigor, a correcção e a exactidão deverão ser a pedra de toque.

Porém, a pouca abertura normativa nem sempre significa levado grau de efectividade, sendo mesmo a falta de executoriedade (lack of enforceability) uma das críticas mais recorrentemente apontadas a este segmento jurídico. Entre muitas outras considerações, pode ser chamada à evidência a circunstância de que a proliferação de regras conduz à inope‑rância dos procedimento decisórios, principalmente se forem tidos em vista a natureza política das decisões e o facto de que certos Estados -membros se “protegem” uns aos outros e, desse modo, inviabilizarem uma solução credível. A este respeito, o referido acórdão do TJUE (Tribunal Pleno) de 13 de Julho de 2004 (n.º de processo C -27/04), disponível em http://curia.europa.eu, debruçou ‑se sobre um pedido da Comissão no sentido da anulação de vários actos do Conselho, designadamente a decisão de não adoptar os instrumentos constantes das recomendações da Comissão relativamente à República Francesa e à República Federal da Alemanha.

5. Em todo o caso, deve ter -se presente que défice principiológico referido não se deve tanto a carência de matérias sobre as quais os mesmos se devem debruçar ou à falta de “sensibilidade” do ordenamento europeu nos domínios financeiros, mas antes à (ainda) permanente consideração das matérias de Direito financeiro, tributário e fiscal como redutos de tec‑nicidade, pouco propensos a considerações de natureza mais profunda e reflexões mais penetrantes do ponto de vista da teoria do conhecimento.

Nada mais errado, cremos.Como modo de exemplificar o que acabou de ser dito, ensaia -se de

seguida a tentativa de consideração no âmbito do Direito da UE de dois princípios jurídico -financeiros que se nos afiguram cruciais e decisivos em todos os tempos, mas principalmente no momento presente. Trata ‑se, como se compreenderá, de um conjunto de brevíssimas considerações que não poderão ter a pretensão de esgotar o tema, nem tão pouco o ana‑lisar convenientemente, atenta a natureza redutora do presente discurso.

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i) O primeiro será o princípio da selectividade da despesa pública, o qual faz apelo à ideia de que os recursos públicos devem ser utilizados de modo eficaz, ponderado e cuidadoso. Trata -se de reconhecer uma regra empírica evidente e manifesta – aplicável não apenas no ordenamento europeu, mas igualmente no orde‑namento interno – mas que não recebe incorporação jurídica convincente, e que apela a uma correcta alocação dos dinheiros, por via da selecção cuidada das categorias de despesas. É neste contexto, aliás, que se pode afirmar que o verdadeiro problemas dos sistemas financeiros actuais reside, não tanto nas receitas que os alimentam (que nos parecem, na generalidade, suficien‑tes e equilibradas), mas antes nas despesas em que elas se mate‑rializam. Por exemplo, no momento presente ganha particular premência no contexto dos ordenamentos financeiros europeu e dos Estados membros a questão da sustentabilidade dos siste‑mas de protecção social, na medida em que se constata o risco da sua insustentabilidade, sendo nesse quadro que se advoga a orientação da despesa para os domínios da investigação, desen‑volvimento tecnológico e educação, em detrimento dos gastos correntes e supérfluos, ou dos subsídios que constituem incen‑tivos ao ócio.

ii) O segundo será o princípio da equidade intergeracional, que constitui, segundo pensamos, o Grundprinzip em matéria de Direito financeiro. O ponto essencial aqui em consideração diz respeito à necessidade de, na base de uma ideia de solidariedade, acautelar as gerações vindouras e o peso que sobre as mesmas as decisões presentes poderão fazer incidir, tendo -se presente um duplo ponto de vista: por um lado, de um ponto de vista nega‑tivo, deve procurar ‑se não onerar em demasia ou em despro‑porção as gerações futuras com os custos das despesas públicas feitas no presente, o que implica que estas deverão estar sujeitas a uma planificação racional, rigorosa e equilibrada (transtempo‑ral) – seleccionadas de acordo com critérios de utilidade reais e efectivos –, e sem recurso excessivo ao crédito, principalmente crédito a longo prazo (mais de vinte anos); por outro lado, do ponto de vista positivo, deve ser dada prevalência às despesas públicas de natureza reprodutiva e que projectam a sua utilidade

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em momentos futuros, de modo a que as gerações seguintes pos‑sam usufruir das mesmas em termos de plena utilidade. Por isso, deverão evitar -se os grandes gastos em obras faraónicas, luxu‑riantes ou voluptuárias, propícias ao divertimento ou a esgotar-‑se em eventos localizados, e privilegiar ‑se os gastos em obras duradouras ou (uma vez mais) em investigação, desenvolvimento tecnológico e educação.

6. Enfim, pós -modernidade, autoreferencialidade e défice princi‑piológico constituem alguns dos pontos cardeais que a abordagem do fenómeno financeiro público no momento presente e no contexto euro‑peu reclama. O que aqui se procurou empreender foi tão somente uma abordagem rudimentar que tentou cruzar a análise jus -filosófica e jus--financeira, de modo a estabelecer pontos de contacto e premissas que possibilitem avanços posteriores e desenvolvimentos mais profundos e, não obstante o carácter de sobrevoo que subjaz ao presente texto, pode dizer -se, ainda assim, que tanto no âmbito do Direito financeiro interno como no âmbito da coordenação das politicas financeiras no quadro da UE a palavra chave parece ser uma só: rigor. Com efeito, a disciplina orçamental e, dentro desta, a disciplina da despesa pública parecem ser o único caminho possí vel para conseguir a desejável estabilidade financeira e a salvaguarda da sustentabilidade do sistema globalmente considerado. Note -se que a referência a “sistema” que está aqui a ser efectuada não se refere apenas ao sistema financeiro stricto sensu – embora o tenha direc‑tamente por referência –, mas ao próprio sistema de existência em que a convivência social de natureza europeia ocidental actualmente assenta – um sistema de base ainda pública, de matriz tendencialmente solidária e dependente das contribuições de todos.

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Guilherme Waldemar d’Oliveira MartinsMaria d’Oliveira Martins

A reforma da Lei de Enquadramento Orçamentale as novas regras financeiras

Guilherme Waldemar d’Oliveira MartinsMestre em Direito

Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa

Maria d’Oliveira MartinsMestre em Direito

Assistente da Faculdade de Direito da UCP

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154Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

RESUMO:

O presente artigo visa dar nota das principais alterações que estão a ser discutidas no que toca à Lei de Enquadramento Orçamental, com especial enfoque em relação às regras de despesa e de saldo que aí aparecem plasmadas, as quais parecem ser as grandes novidades da reforma da LEO. Para tanto tomaremos como base de apoio a proposta de lei 47/XI/2.ª agora em debate na Assembleia da República.

As alterações propostas e ora em discussão são múltiplas. Embora uma parte signi-ficativa diga respeito a rearrumações de artigos, esclarecimentos ou precisões terminoló‑gicas*, enumeraremos de seguida as principais reformas preconizadas na proposta de lei analisada: (1) Minimização das disparidades entre contabilidade pública e contabilidade nacional; (2) Reforço do equilíbrio orçamental; (3) Introdução dos novos princípios da estabilidade orçamental, da solidariedade recíproca e transparência orçamental; (4) Criação do Conselho das Finanças Públicas; (5) Reforço da programação orçamental; e (6) Cria‑ção de uma regra de despesa e de uma regra de saldo.

Palavras ‑chave:Lei de Enquadramento OrçamentalNovas regras financeirasPacto de Estabilidade

ABSTRACT:

This article aims to give notice of major changes that are being discussed regarding the Budget Framework Law (Lei de Enquadramento Orçamental - LEO), with special focus on rules for spending and balance that are newly shaped there and that seem to be the big news of the present review.

For this we will analize the bill 47/XI/2.ª now being debated in Parliament. The changes proposed and under discussion are many. Although a significant portion relates on rearranging articles, terminological clarification or further details, we list below the main reforms envisaged in the draft bill analyzed: (1) Minimizing the gap between public accounting and national accounting, (2) Strengthening the fiscal balance, (3) Introduction of new principles of fiscal stability, solidarity and mutual budgetary transparency, (4) Creation of the Public Finance; (5) Strengthening of budget planning, and (6) Creating an expenditure rule and a balance rule.

* Entre as pequenas alterações, as mais significativas parecem -nos ser as que introduzem esclarecimentos ao funcionamento do princípio da não compensação, não consignação (artigos 6.º, n.os 5, 6, 7 e 8; 7.º, n.º 2 als. f) e g) da ppl 47 -XI/2.ª); e as pequenas alterações que se fazem em relação à apresentação da CGE: artigos 73.º, n.º 4 77.º, n.º 2 b) e 79.º da ppl 47 -XI/2.ª).

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Keywords:Budget Framework LawNew fiscal rulesThe Stability and Growth Pact

Sumário: A. A Lei de Enquadramento Orçamental e o Pacto de Estabilidade e Crescimento; B. Análise sucinta das alterações da Lei de Enquadramento Orçamen‑tal; 1. Minimização da disparidade entre contabilidade pública e contabilidade nacional; 2. Reforço do equilíbrio orçamental; 3. Introdução dos novos princípios da estabilidade orçamental, da solidariedade recíproca e transparência orçamental; 4. Criação do Conse‑lho das Finanças Públicas; 5. Reforço da programação financeira; C. A regra de despesa e a regra de saldo: as grandes novidades da reforma da LEO; 1. A regra de despesa; 2. A regra de saldo

A. A Lei de Enquadramento Orçamental e o Pacto de Estabilidade e Crescimento

O Pacto de Estabilidade e Crescimento foi adoptado, no âmbito da aplicação do actual artigo 126º do TUE, para garantir a credibilidade do Euro e consta de dois Regulamentos do Conselho da União Europeia rela‑tivos ao reforço da supervisão das situações orçamentais e à clarificação da aplicação do procedimento sobre os défices excessivos, bem como de uma Resolução do Conselho, adoptada no Conselho Europeu de Amesterdão de 17 de Junho de 1997. Não se tratava de um Pacto intergovernamental, mas de uma Resolução política e de dois instrumentos técnicos (Regula‑mentos CE nos 1466/97 e 1467/97), que podem ser objecto de alteração1.

1 De acordo com os regulamentos, os países do Euro apresentarão programas de estabilidade, enquanto os países não participantes na UEM continuarão a apresentar pro‑gramas de convergência. Em 1997 falou ‑se inicialmente apenas de um Pacto de Estabi‑lidade, tendo, porém, prevalecido o ponto de vista segundo o qual o Crescimento econó‑mico não poderia ficar arredado ou esquecido. Nesse sentido, ainda que timidamente, foi incluída a referência ao crescimento e à criação de emprego.

Em finais de 2002, a Comissão Europeia, perante os sinais de abrandamento e de recessão económicos veio a considerar a necessidade de os regulamentos serem interpreta‑dos com inteligência e flexibilidade, tendo em consideração as necessidades de combate à recessão, de investimento e de criação de emprego, sem prejuízo do prosseguimento

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Este Pacto apresenta um determinado número de meios que visam salvaguardar a solidez das finanças públicas na terceira fase da União Econó mica e Monetária, de forma a reforçar as condições para a estabi‑lidade de preços e a garantir um crescimento sustentável conducente à criação de emprego. O objectivo visado de médio prazo é, assim, o de alcançar posições orçamentais próximas do equilíbrio (“close to balance”) ou excedentárias, que permitirão aos Estados membros enfrentar as flu‑tuações cíclicas normais, mantendo o défice público abaixo do valor de referência de 3% do PIB. No caso de persistência de défice superior a 3% do PIB, não sendo a situação considerada excepcional e temporária, o país fica sujeito a sanções pecuniárias, que podem assumir a forma de uma multa de montante até 0,5% do PIB.

o ordenamento português recebeu o mencionado Pacto de Estabili‑dade e Crescimento através da chamada Lei de Estabilidade Orçamental (Lei n.º 2/2002, de 28 de Agosto), que introduziu na Lei de Enquadra‑mento Orçamental (LEO)2 o Título V, que integra os artigos 82.º a 92.º.

de um esforço de médio prazo para a redução sustentada da despesa corrente. A violação em 2003 do limite de 3 por cento para o défice orçamental pela França e pela Alemanha determinou uma proposta da Comissão de aplicação das sanções previstas, que o Conselho rejeitou. Perante este facto a Comissão suscitou junto do Tribunal de Justiça a apreciação da conformidade da decisão do Conselho relativamente aos Tratados da União Europeia. A nova Comissão europeia, investida no Outono de 2004 apresentou ao Conselho Euro‑peu uma revisão dos regulamentos de 1997.

Assim, em 23 de Março de 2005 foram alterados os regulamentos de 1997 (através dos Regulamentos CE nºs 1055/2005 e 1056/2005, publicados a 27 de Junho de 2005), no sentido de um maior realismo e flexibilidade. Nenhum procedimento será levantado contra um Estado em caso de haver crescimento negativo ou de se estar num período prolongado de muito fraco crescimento, enquanto antes se exigia uma quebra de produto de pelo menos 2%. Por outro lado, um Estado que registe um défice excessivo temporário, próximo do valor de referência de 3% poderá invocar uma série de “factores pertinentes”, que evitam o desencadear do procedimento, ligados ao crescimento potencial, ao ciclo económico, à concretização de reformas económicas (aposentação, segurança social), às políticas de investigação e desenvolvimento e aos esforços orçamentais com efeito a médio prazo.

2 Publicada no Diário da República, n.º 192, Série I -A, de 20 de Agosto de 2001; Republicada no Diário da República, n.º 198, Série I -A, de 28 de Agosto de 2002 (página 6072), com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 2/2002 (Lei da Estabilidade Orçamental), de 28 de Agosto, da Assembleia da República; Publicada a segunda alteração no Diário da República, n.º 150, Série I -A, de 2 de Julho de 2003 - nova redacção dada ao artigo 35.º (prazo de entrega da Proposta de Lei do OE na Assembleia da República);

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Mais especificamente, o artigo 84.º da LEO contém três novos princí‑pios orçamentais: a estabilidade orçamental, a solidariedade recíproca e a transparência orçamental3.

Pela proposta de lei 47/XI/2.ª, agora em debate na Assembleia da República, o Governo propôs alterar, pela quinta vez, a Lei de Enquadra‑mento Orçamental, no sentido do desenvolvimento sobretudo da reforma de 2002. Desenvolvimento este em que se destaca a implementação de um sistema orçamental que seja limitador da despesa (em que se destacam a implementação orçamentação top down, o reforço da programação finan‑ceira e a introdução de regras inéditas de despesa e saldo).

No sentido de facilitar a leitura do presente artigo, desdobraremos um pouco mais os termos da discussão para que se possa ficar com uma ideia das múltiplas alterações propostas, pois esta é, de facto, uma reforma global, que visa tocar em quase todos os domínios da Lei de Enquadra‑mento Orçamental.

B. Análise sucinta das alterações da Lei de Enquadramento Orça‑mental

1. Minimização da disparidade entre contabilidade pública e contabi‑lidade nacional

Na revisão da Lei de Enquadramento Orçamental um dos temas prin‑cipais em discussão diz respeito à necessidade cada vez mais premente de uma maior aproximação às noções de contabilidade nacional, visando corrigir, pelo menos, os efeitos mais perniciosos da disparidade existente entre contabilidade pública e contabilidade nacional.

Nos termos da presente proposta de lei, propõe -se uma aproximação basicamente a dois níveis.

Publicada a terceira alteração no Diário da República, n.º 199, Série I -A, de 24 de Agosto de 2004 - Lei n.º 48/2004 de 24 de Agosto; Publicada a quarta alteração no Diário da Repú‑blica, n.º 203, Série I -A, de 19 de Outubro de 2010 - Lei n.º 48/2010, de 19 de Outubro.

3 Sobre os princípios, consultar AlexAndrA pessAnhA, guilherme wAldemAr d’oliVeirA mArtins e nuno CunhA rodrigues, “As implicações público -financeiras e concorrenciais do novo Código dos Contratos Públicos: análise preliminar”, in Revista de Finanças Públicas e de Direito Fiscal, Ano 1, n.º 3, 2008, págs. 154 -163.

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Por um lado, ao nível das entidades do Sector Público Administrativo a que se refere o Orçamento do Estado, de forma a que o seu universo seja tão aproximado quanto possível do universo das Administrações Públi‑cas tal como definido pelo SEC 95. Para tanto, propõe -se a integração no Orçamento do Estado “das entidades que, independentemente da sua natureza e forma, tenham sido incluídas em cada subsector no âmbito do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais, nas últimas contas sectoriais publicadas pela autoridade estatística nacional, referentes ao ano anterior ao da apresentação do Orçamento” (v. artigo.º 2.º, n.º 5 e acertos feitos no artigo 76.º, n.º 2 b) e c) da ppl 47 -XI/2.ª). Esta alteração, que de resto corresponde a uma necessidade cada vez mais sentida, tem a vantagem de contribuir para uma aproximação de números (embora não redunde ainda na coincidência desejável) entre aquilo que é considerado défice orçamental em termos internos e aquilo que é considerado défice para efeitos de reporte à União Europeia.

Por outro, propõe -se também que esta aproximação seja feita por via de uma maior aproximação da contabilidade pública (ainda muito assente na lógica de caixa) à contabilidade nacional (numa lógica de acréscimo). Também aqui, a reforma proposta não desilude em relação às necessida‑des que se fazem sentir. A proposta faz nova tentativa (prevendo inclu‑sivamente o recurso a sanções – nomeadamente a sujeição – com óbvias excepções – de alguns serviços e fundos autónomos que ainda não apli‑quem o POCP ao regime de autonomia administrativa) de implementação do POCP, procurando reverter a utilização ainda generalizada da óptica de caixa (artigo 11.º, n.ºs 2 e 3 da referida proposta).

2. Reforço do equilíbrio orçamental

Significativas são também as novas propostas relativas ao apura‑mento do equilíbrio orçamental, sobretudo a formulação de um princípio de estabilidade orçamental.

No que toca ao equilíbrio, parece -nos infeliz a alteração proposta ao artigo 9.º. Na proposta em análise, mantém -se o seu actual n.º 1, subs‑tituindo o texto dos números seguintes com a introdução das noções de receitas e despesas efectivas e não efectivas, saldo global e saldo primá‑rio. E parece -nos infeliz, por consubstanciar um exemplo de má técnica

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legislativa. Por um lado, porque introduz na lei conceitos doutrinários, ainda por cima, incontroversos. Por outro, porque esvazia este preceito totalmente de sentido. O artigo 9.º deixa de apontar para um equilíbrio substancial numa óptica de contabilidade nacional para apontar no n.º 1 para uma noção de equilíbrio formal, em que a referência às despesas efectivas e não efectivas, saldo global e primário constitui apenas ruído4.

Pelo contrário, significativo de uma maior exigência de rigor em relação ao equilíbrio interno do Orçamento do Estado parece -nos ser, por um lado, a revogação do n.º 3 do artigo 23.º, passando -se a considerar também para efeitos de apuramento do equilíbrio no que toca aos servi‑ços integrados, não só os activos como também os passivos financeiros e, por outro, o artigo 28.º, n.º 3, em que se esclarece que, no apuramento do equilíbrio do orçamento da segurança social, ficam excluídas as receitas provenientes do saldo da gerência anterior5.

3. Introdução dos novos princípios da estabilidade orçamental, da soli‑dariedade recíproca e transparência orçamental

Ligado com a preocupação de um maior rigor quanto ao equilíbrio, surge o princípio da estabilidade orçamental (artigo 10.º A), o qual impõe a todas as entidades do sector público administrativo a verificação de “situação de equilíbrio ou excedente orçamental, calculada de acordo com a definição constante do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais”.

Notamos, neste ponto, que embora não havendo aqui propriamente uma novidade (até porque já estava prevista no título V do mesmo diploma,

4 Aquilo que se depreendia do artigo 9.º passa, nos termos da proposta apresentada, a constar expressamente do proposto artigo 10.º - A (estabilidade orçamental) e a possi‑bilidade de redução das transferências orçamentais em caso de endividamento excessivo passa a estar prevista no artigos 12.º A (relativo ao endividamento das Regiões Autóno‑mas e Autarquias Locais) e 88.º.

5 Entendemos que as referências que se introduzem aos passivos e activos finan‑ceiros no n.º 3 do artigo 28.º são redundantes em relação ao que já resulta do actual n.º 1 do artigo 28.º (que nos termos da proposta se mantém). De facto, a referência a receitas e despesas efectivas no n.º 1 exclui à partida as receitas e despesas com passivos e activos financeiros (pois estas são não efectivas).

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tendo sido introduzida na alteração à LEO feita pela Lei Orgânica n.º 2/2002), este contribui para tornar cristalino aquilo que já depreendía‑mos do artigo 9.º na redacção ainda em vigor: “para que os orçamentos do sector público administrativo se encontrem no seu conjunto equili‑brados, para efeitos do artigo 9.º da Lei de Enquadramento Orçamental, têm de respeitar os critérios de convergência na óptica da contabilidade nacional, por forma a que o Conselho não declare verificada a existência de um défice excessivo [...]” (Lei de Enquadramento Orçamental, p. 91).

Ademais, este novo preceito, na redacção que resulta da proposta, apresenta, para nós, uma vantagem inegável sobre o actual artigo 9.º: o equilíbrio ou excedente orçamental aí exigido não conta com as excep‑ções dos artigos 23.º, 25.º e 28.º, o que é obviamente de saudar!

Em relação ainda a este ponto, parece ‑nos que a introdução dos novos princípios da solidariedade recíproca (que “obriga todos os subsectores, através dos seus organismos, a contribuírem proporcionalmente para a realização do princípio da estabilidade orçamental, de modo a evitar situa ções de desigualdade”) (10.º B) e transparência orçamental (que gera um dever de informação entre todas as entidades públicas) (10.º C) serve – e bem – o intuito de um reforço da estabilidade orçamental.

Uma palavra nesta matéria para comentar a introdução do já refe‑rido princípio da solidariedade recíproca, que apesar de aparentemente inócuo, vem oferecer às Regiões Autónomas e às Autarquias Locais uma nova base para a discussão do limite de endividamento a que estão sujeitas. Este princípio, que parece resultar de uma extensão do princípio da soli‑dariedade constitucionalmente reconhecido em relação às Regiões Autó‑nomas, poderá vir a limitar o poder do Governo em relação à capacidade de endividamento, nomeadamente das Regiões Autónomas. Com efeito, embora o Tribunal Constitucional tivesse por assente que o limite de endi‑vidamento nunca foi constitucionalmente previsto de forma expressa (e que, portanto, a fixação do limite de endividamento zero seria uma possi‑bilidade que decorria do presente regime legal), este terá, se esta reforma for por diante, que tomar em consideração as exigências que resultam deste novo princípio da Lei de Enquadramento Orçamental para ponde‑rar em concreto o limite de endividamento a impor. Isto, de forma a que o subsec tor em causa não seja excessivamente onerado, em comparação com os demais que devem contribuir para a estabilidade orçamental. Com efeito, por força do princípio da solidariedade recíproca os subsectores

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das Administrações Públicas devem contribuir proporcionalmente para o esforço da estabilidade orçamental (embora aqui tenhamos dúvidas quanto à proposta, pois no 10.º B, n.º 2 ao estatuir – depois da referência a uma contribuição proporcional – que esta deve evitar a desigualdade, nos coloca a dúvida de saber se a contribuição deve ser proporcional ou igual; parece--nos, no entanto, mais razoável que a contribuição seja proporcional).

4. Criação do Conselho das Finanças Públicas

Parece ‑nos também de destacar a criação de uma entidade adminis‑trativa independente (o Conselho das Finanças Públicas) cuja missão é “pronunciar ‑se sobre os objectivos propostos relativamente aos cenários macro ‑económico e orçamental, à sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas e ao cumprimento da regra sobre o saldo orçamental, prevista no artigo 12.º ‑C, da regra da despesa da Administração Cen‑tral prevista no artigo 12.º ‑D, e das regras de endividamento das regi‑ões autónomas e das autarquias locais previstas nas respectivas leis de financiamento”, embora não vislumbremos, como adiante se explicará melhor, a relação que estabelece com os demais controlos orçamentais previstos na LEO.

5. Reforço da programação financeira

A reforma da Lei de Enquadramento Orçamental evidencia uma clara preocupação no sentido da implementação de uma orçamentação em que se parte de grandes agregados e a partir daí se definem os restantes níveis inferiores de gastos do Estado. Um dos instrumentos utilizados para este fim é o da programação orçamental.

Nesta reforma, procura implementar ‑se um orçamento que contém, lado a lado, os mapas orçamentais tradicionais com mapas de programas.

Apontando claramente neste sentido, a proposta de alteração da LEO ora em análise apresenta um acentuado reforço da programação finan‑ceira. Por um lado, torna -a obrigatória deixando de ser uma faculdade. Por outro, prevê -a com uma abrangência universal: todas as despesas – mesmo que não sejam plurianuais – devem ser inscritas em programas,

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os quais servem para a concretização de um ou vários objectivos especí‑ficos (v. artigos 4.º, n.º 3; 5.º, n.º 3; 8.º, n.º 3; 18.º, n.º 1; 19.º; 24.º; 32.º (v. em especial mapas XV e XVI); 35.º n.º 5; 45.º, n.º 2 al. a); 51.º; 64.º, n.º 3; da ppl 47 -XI/2.ª).

A implementação deste tipo de orçamentação por programas conduz a uma alteração do processo orçamental, o qual nos termos do artigo 12.º B, se inicia com a sujeição a apreciação pela Assembleia da República do PEC (incluindo um projecto de actualização do quadro plurianual de programação orçamental) e à formulação das regras, complementares entre si, de despesa e saldo (12.º C). Realmente inovadoras e sem pre‑cedentes, passa remos de seguida a analisar estas últimas alterações com mais detalhe.

C. A regra de despesa e a regra de saldo: as grandes novidades da reforma da LEO

As regras financeiras, nomeadamente, aquelas que limitam a discri‑cionariedade das políticas macroeconómicas estão muito na moda. De facto, no que concerne às políticas monetárias, desde o início dos anos noventa do século passado que um número crescente de países tem adop‑tado políticas que tinham por objecto a inflação, em detrimento das polí‑ticas concentradas na taxas de câmbio. Na área financeira, a tendência é semelhante, na medida em que as medidas criadas para eliminar ou conter os défices e para reduzir a dívida estão a ganhar uma grande popularidade em várias partes do mundo6.

Todas estas regras partilham de um aspecto comum: visam conferir credibilidade à conduta das políticas macroeconómicas pela eliminação das intervenções discricionárias. Existem, contudo, diferenças óbvias: de facto a credibilidade atinge ‑se em velocidades diferentes. Enquanto as regras baseadas nas taxas de câmbio podem fornecer resultados ime‑diatos, já as regras de saldo só se tornam credíveis ao fim de um largo espaço de tempo.

6 Sobre o assunto e sobre todos, consultar george kopits, “Fiscal Rules: Useful Policy Framework or unnecessary ornament?”, IMF Paper, Setembro, 2001.

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No caso português foram identificadas duas inicialmente, ambas incidindo sobre saldos orçamentais: (a) uma relativa às autarquias locais, e (b) outra aos fundos e serviços autónomos (artigo 25.º da LEO).

Contudo, as leis financeiras aplicáveis à Administração Regional e Local vieram modificar a natureza da regra aplicável aos municípios (instituindo uma regra de dívida, e não de saldo) e criar uma nova regra de saldo orçamental incidindo sobre as Regiões Autónomas e sobre as Autarquias Locais7.

7 Mais complexa se apresenta a regra de tipo numérico aplicável ao Sector Público Empresarial. Prevê o n.º 2 do artigo 13.º do Decreto -Lei n.º 558/99, de 17 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto -Lei n.º 300/2007, de 23 de Agosto, que “o endividamento ou assunção de responsabilidades de natureza similar fora do balanço, a médio ‑longo prazo, ou a curto prazo, se excederem em termos acumulados 30 % do capital e não esti‑verem previstos nos respectivos orçamento ou plano de investimentos, estão sujeitos a autorização do Ministro das Finanças e do ministro responsável pelo sector ou da assem‑bleia geral, consoante se trate de entidade pública empresarial ou de sociedade, respec‑tivamente, tendo por base proposta do órgão de gestão da respectiva empresa pública”.

Trata ‑se de uma regra de tipo numérico para o Sector Público Empresarial que obriga a que a dívida (dentro e fora do balanço) não possa exceder, em termos acumula‑dos 30% do capital.

Pretende abranger esta norma, em termos mais amplos, os passivos, como “obriga‑ção presente da entidade proveniente de acontecimentos passados, da liquidação da qual se espera que resulte um exfluxo de recursos da entidade incorporando benefícios económicos”/.

Tendo em conta, contudo, que, no universo dos passivos, os acréscimos e diferi‑mentos não são dívida, temos de restringir o conceito apresentado ao conceito de dívida financeira, que inclui as dívidas a instituições bancárias, empréstimos obrigacionistas e dívidas por contratos de leasing, abrangendo também quer a dívida financeira negociável, quer a não negociável, isto é, tendo em conta que a primeira é livremente transmissível e que a segunda tem uma transmissibilidade reduzida ou até mesmo nula.

Assim, em regra, a referida dívida financeira, cumulativamente:a) Não poderá exceder, em termos acumulados, 30% do capital;b) Deverá estar prevista no respectivo orçamento ou plano de investimento.Excepcionalmente, poderão os referidos limites e/ou previsão orçamental ser ultra‑

passados por autorização expressa do Ministro das Finanças e da tutela do sector, ou da Assembleia ‑geral, consoante se trate de Entidade Pública Empresarial ou sociedade, respectivamente.

Acresce ainda que o legislador não se refere só à dívida financeira, mas também às responsabilidades fora do balanço, implicando aqui um dever especial de informação e registo das referidas operações, em nome da transparência e clareza financeira.

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Assim, em matéria de regras orçamentais de tipo numérico aplicá‑veis a este artigo, temos actualmente a regra de saldo orçamental para as Regiões Autónomas. A Lei das Finanças das Regiões Autónomas8 deter‑mina a fixação anual pela Lei do Orçamento do Estado, com base em con‑ceitos compatíveis com a contabilidade nacional, de limites máximos ao endividamento das Regiões Autónomas, os quais deverão impedir que o serviço da dívida (juros e amortizações) ultrapasse 25% das receitas cor‑rentes do ano anterior (com exclusão das transferências e comparticipa‑ções do Estado).

Quanto à regra de dívida para os municípios, a Lei das Finanças Locais9 estabelece hoje um limite de endividamento aplicável individu‑almente a cada município. Este limite recai sobre o conceito de endivida‑mento líquido municipal (definido em termos compatíveis com o SEC95 e correspondente à diferença entre a soma dos passivos – qualquer que seja a sua forma – e a soma dos activos), que não poderá exceder, no final de cada ano, 125% das receitas municipais relativas ao ano anterior. De forma complementar, são ainda definidos limites, também em percenta‑gem das receitas, para os empréstimos a curto prazo e aberturas de crédito, e para os empréstimos a médio e longo prazo. A nova Lei das Finanças Locais introduziu assim, na terminologia das regras orçamentais de tipo numérico, uma regra de dívida.

Ademais, conjugados os vários conceitos, interessa clarificar que o legislador quando se refere ao capital, implica o capital em dívida, o que quer significar que a mencionada regra numérica vem limitar que as responsabilidades fora do balanço não possam exceder 30% dos passivos registados.

Ora, conjugando o artigo 13.º com o disposto no artigo 7.º, do mesmo diploma, parece evidente que o apuramento dos passivos financeiros/dívida financeira submetidos à referida regra numérica deverá reger -se pelo direito privado, porquanto não há nada dis‑posto em contrário, imperativa ou supletivamente.

O problema levanta ‑se, contudo, porquanto estamos dentro do sector público. E, como tal, há necessidade de ajustar os critérios de contabilização empresarial privada/pública com as contas nacionais, para efeitos de aplicação de regras harmonizadas aplicáveis a todos os Estados membros da UE, tendo em vista a aplicação do concreta do Protocolo sobre o procedimento relativo aos défices excessivos (PDE) anexo ao Tratado que insti‑tui a Comunidade Europeia, aprovado pelo Regulamento (CE) n.º 3605/93, do Conselho, de 22 de Novembro de 1993.

8 Aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro.9 Aprovada pela Lei n.º 2/2007 de 15 de Janeiro.

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A reforma da LEO vem desenvolver o caminho já trilhado e propor a introdução na Lei de Enquadramento Orçamental de duas novas regras: a regra de despesa e a regra de saldo. A elas de seguida.

1. A regra de despesa

Não obstante o esforço empreendido pelo Estado português no que toca à realização de despesa10, a administração orçamental portuguesa está constantemente debaixo do fogo das críticas. Entre as críticas que mais recorrentemente lhe são dirigidas destacamos o facto de não ter um qua‑dro geral de despesas de médio prazo, uma vez que a actual programação abrange um número muito limitado de despesas; o facto de apresentar uma grande disparidade entre o crescimento da despesa pública e o crescimento do PIB11; e sobretudo o facto de ainda não possuir uma regra de despesa.

10 Em Portugal, nos últimos anos têm sido realizadas inúmeras reformas no sentido de redução da despesa pública: nomeadamente o PRACE; a reestruturação do serviço civil tornando -o mais flexível e responsável; a reforma do sistema de pensões; a introdução da programação orçamental; o “simplex” para redução da burocracia e gastos inerentes; e a disponibilização on -line de todos os serviços públicos básicos.

11 A história recente das despesa públicas conta -se em poucos parágrafos.Com algumas variações ao longo dos anos, a despesa pública tem vindo sucessiva‑

mente a aumentar. E o pico deste aumento foi atingido em 2009 (51% do PIB), superando o número já elevado atingido em 2005 (47,6% do PIB). Ao longo dos últimos 35 anos, na origem da ampliação das despesas públicas – sobretudo as correntes – (embora se reco‑nheça que houve um acréscimo em relação a todas as despesas em geral) está sobretudo o aumento das transferências correntes (reflexo do aumento das prestações sociais) e das despesas de pessoal. O pagamento de juros foi também (embora não possa ser comparado com as anteriormente referidas, por ser de menor escala) causa de aumento de despesa pública – dispararam depois de 1974, abrandaram um pouco depois da adesão à moeda única e nos últimos anos têm vindo (embora com oscilações) a aumentar de novo.

O crescimento da despesa pública tem sido acompanhado por um aumento da carga fiscal, a qual não chega porém para cobrir toda a despesa. Deste desfasamento resulta uma situação deficitária crónica do OE português. Desde 1977 até meados dos anos 90 – como se pode ver no quadro abaixo – são mais os anos em que o défice se encontra acima dos 5% do PIB do que aqueles em que se encontra abaixo desse valor. Já mais recentemente, é de assinalar que a partir de meados da década de 90, se assinala um abaixamento da per‑centagem do défice em relação ao PIB. De 1997 a 2004, o valor do défice rondou os 3%, encontrando ‑se apenas em 1998 e 2004 um pouco acima dos 3%.

Em 2005, registou -se um aumento da despesa pública que se associou a um défice de 6,1% em relação ao PIB, o que valeu a Portugal a declaração de situação de défice

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É a esta regra de despesa que nos referiremos de seguida. Sem pre‑cedentes no nosso panorama orçamental, esta merece ser explorada com um pouco mais de detalhe.

A discussão em torno de uma regra de despesa, para efeito de controlo do gasto público, é muito recente em Portugal. Esta foi lançada apenas em 2007 como proposta da Comissão para a Orçamentação por Programas (COP). E em 2008, foi recomendada pela OCDE (com expresso acolhi‑mento das propostas já mencionadas de 2007), como forma de controlar mais eficazmente o crescimento de despesa.

A sugestão de uma regra de despesa, em Portugal, surge da ideia de que o orçamento deve definir grandes agregados de despesa como ponto de partida para a construção dos níveis inferiores da mesma12. Ou seja, trata ‑se aqui de construir o orçamento em torno de grandes objectivos.

excessivo pelo Conselho da União Europeia. Em resposta ao mesmo, Portugal reduziu a sua despesa e, por consequência, também o seu endividamento nos anos seguintes (até 2008). A redução de despesa fica sobretudo a dever -se a um esforço de contenção das despesas de pessoal, subsídios e despesas de capital. Em particular no que toca às despe‑sas de capital, é de notar, aliás, que a tendência tem sido a da sua redução progressiva – se em 1999 estas representavam cerca de 5,8% do PIB (acima da média dos 27 países da União Europeia que era de 3,5% do PIB) em 2009 estas representaram apenas 3,8% do PIB (agora abaixo da média dos países da UE que é de 4,2% do PIB).

Em 2009, não obstante as medidas de contenção já mencionadas, verificou -se mais uma vez uma subida do volume da despesa pública para 51% do PIB, disparando o défice orçamental para 9,4% do PIB. Esta situação de défice excessivo é fruto de um aumento de despesa (sobretudo das prestações sociais, subsídios, outras despesas correntes e despesas de capital), agravado por uma redução da receita fiscal (gerada por um abrandamento econó‑mico), pela necessidade de implementação de medidas para a estabilização do sistema finan‑ceiro e também pela necessidade de aquisição líquida de activos financeiros. A consequên‑cia deste desfasamento de números entre receita e despesa gerou uma dívida que ascende aos 76,8% do PIB. Note -se que Portugal acompanha o movimento de mais 12 Estados Euro‑peus, no que toca a uma situação de dívida pública acima do valor de referência dos 60%.

Mais uma vez por força da declaração de situação de défice excessivo pelo Conse‑lho da União Europeia, foram tomadas medidas no sentido da redução de despesa, acom‑panhadas de ajustamentos no lado das receitas.

12 Por vontade política, a regra de despesa surge nesta reforma intimamente asso‑ciada com a ideia do reforço da programação orçamental (note -se que o artigo 12.º D em que esta é tratada se refere ao quadro plurianual de programação orçamental). Mas não teria de ser necessariamente assim. No Relatório de preparação desta Reforma, é que se entendeu que a não estar a associada a um quadro plurianual, a regra de despesa coarcta‑ria demasiadamente a acção governativa.

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Em concreto, uma regra de despesa visa a limitação quantitativa (podendo esta limitação ser expressa em unidades monetárias ou em per‑centagens em relação à riqueza interna – PIB ou PNB) da despesa pública (no todo ou em parte, dependendo de opção legislativa) num determinado espaço de tempo. A regra de despesa assenta, assim, essencialmente na fixação de objectivos plurianuais e fixa tectos quantitativos para o gasto público.

Tal como foi proposto em 2007, a regra de despesa deveria ser expressa em unidades monetárias (tendo como subjacente uma taxa de variação real estável e uma previsão da taxa de variação dos preços para a despesa, em contabilidade nacional) e teria como objectivo a limitação da despesa primária da Administração Central e da Segurança Social, incluindo a despesa com os investimentos públicos, com exclusão dos juros da dívida pública pela imprevisibilidade de que padecem – fruto da dependência dos mesmos em relação à evolução das taxas de juro –, e com exclusão também das transferências para a Administração Regio‑nal e Local, por serem regidas por leis próprias. Estes tectos preveriam obviamente os casos de despesas imprevisíveis (associadas à dotação pro‑visional). A COP previu também a sujeição a esta mesma regra do subsí‑dio de desemprego (cujas flutuações poderiam ser cobertas pela dotação provisional).

Apontada como um caminho para a limitação do crescimento de despesa, a introdução de uma regra de despesa apresenta como principais vantagens, primeiro, o facto de obrigar a um estabelecimento mais rigo‑roso de prioridades, uma vez que não se parte de um orçamento a preen‑cher livremente, mas de um orçamento constituído à partida por grandes agregados dentro dos quais têm de caber as despesas a realizar; segundo, o facto de contribuir para a não variação da despesa em caso de acréscimo inesperado de receita; e terceiro, o facto de obrigar a uma gestão rigorosa e parcimoniosa dos recursos.

Porém, tal como é reconhecido no Relatório de Revisão da Lei de Enquadramento Orçamental, esta regra de despesa não cumpre de forma isolada os objectivos de limitação de défice e endividamento. Para o fazer, ela deve estar associada a uma regra sobre saldo.

Claro que a regra de despesa será tanto mais eficaz e operacional quanto melhor estiver construída e trabalhada. Estudemos então as pro‑postas que se apresentam em relação a ela:

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(a) No proposto artigo 12.º D, prevê -se que a regra de despesa conste de uma lei com o quadro plurianual de programação orçamental a aprovar em simultâneo com a primeira proposta de lei do Orçamento do Estado após a tomada de posse de novo Governo.

(b) No que toca à definição do universo pessoal, o texto da proposta de lei não nos parece totalmente claro.

Dos n.os 6 e 7 do artigo 12.º D do mesmo preceito esclarece -se que a regra de despesa aí prevista servirá de tecto para as despesas da Admi‑nistração Central financiadas por receitas gerais (note -se que as despesas imprevisíveis e inadiáveis estão também sujeitas a esse tecto por força do n.º 8, referindo -se em concreto à dotação provisional), cumprindo a mesma função para as despesas relativas a transferências resultantes da aplicação das leis de financiamento das regiões autónomas e das autarquias locais, para as transferências para a União Europeia e para os encargos com a dívida pública. Em relação a todas estas transferências e aos juros, refere -se que ficarão sujeitas aos limites da despesa da Administração Central financiada por receitas gerais. Porém, em nenhum ponto se torna claro, em concreto, como é que esses limites se articulam com os limites de transferências constantes das leis de finanças das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais13, das regras dos tratados que regem as nossas relações com a União Europeia e ainda com a variação das taxas a que os juros estão constantemente sujeitos14.

Diríamos até que a redacção do texto do artigo 12.º D desilude um pouco, tendo em conta a (curta) história da regra de despesa. Com efeito, a fórmula da sujeição aos limites da despesa da Administração Central financiada por receitas gerais parece -nos pecar por ambição em demasia em relação às soluções mais prudentes, já preconizadas pela COP.

13 Intuímos aqui por parte do legislador a pressuposição da aplicação do princí‑pio da solidariedade. Princípio este, que obrigaria as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais a participarem no esforço da consolidação orçamental. Porém, mais uma vez aqui esbarramos com a letra do 10.º B, n.º 2, o qual nos deixa na dúvida acerca de saber como deve ser afinal repartido o esforço: igualmente ou proporcionalmente?

14 Em relação aos encargos correntes da dívida pública e às contribuições para a União Europeia nem sequer se pode pretender aplicar o princípio da solidariedade. Será que as alterações que aí se verificarem devem ser financiadas por verbas da dotação provisional?

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Pensamos ser útil a clarificação deste ponto pois só uma definição rigorosa do universo que abrange torna a regra de despesa eficaz no com‑bate ao crescimento desmesurado da despesa. Já em 2007, a COP aler‑tava para a necessidade de “minimizar a ocorrência de situações em que parte da dotação de um programa esteja incluída no agregado de despesa sujeito à regra, e parte não esteja”.

(c) No que toca ao universo temporal, o texto proposto sugere que os limites de despesa constantes de cada programa orçamental vinculem no primeiro ano; os limites de despesa relativos a cada agrupamento de programas sejam vinculativos no segundo ano; e os limites de despesa relativos ao conjunto de todos os programas sejam válidos nos terceiro e quarto anos seguintes.

Nos termos da proposta, como os limites de despesa serão deslizan‑tes – pois o quadro plurianual será revisto anualmente e, para os quatro anos seguintes, na Lei do Orçamento do Estado, em consonância com os objectivos estabelecidos no Programa de Estabilidade e Crescimento – tal‑vez conviesse o legislador impor, por uma razão de transparência, como sugere a Comissão de Reforma, que as dotações do ano anterior sejam dadas para comparação.

(d) O texto da proposta é omisso em relação à forma como se expressa a limitação a impor pela regra de despesa. Pela aprovação simul‑tânea com a Lei do Orçamento do Estado, parece ‑nos – embora a omissão do legislador deixe tudo em aberto – que esta regra de despesa terá uma expressão quantitativa (será expressa em unidades monetárias, em euros).

Talvez aqui pudesse ser útil a ponderação da sugestão de 2007 da COP: “Os plafonds nominais para a despesa terão subjacente uma taxa de variação real estável e uma previsão da taxa de variação dos preços. Estas taxas servirão de âncora em caso de alterações nos critériosestatís‑ticos de apuramento da despesaprimária da Administração Central e da Segurança Social – alterações essas que ocorrem periodicamente, asso‑ciadas à mudança de ano base das contasnacionais (SEC 95)”.

(e) No que toca a saber o que fazer com as verbas que sobram no fim do ano orçamental, para apurar se deve haver perda ou transição de saldos, o legislador optou por remeter para a elaboração de regras a definir

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pelo Governo, entreabrindo a porta para a transição. Está aqui, pois, mais uma vez, tudo em aberto.

Sabemos que esta não é uma solução fácil, pois qualquer uma das opções tem os seus inconvenientes: a perda de saldos gera fenómenos ineficiência no gasto (antes que o ano termine as verbas são gastas pelos serviços a que estão afectas, ainda que isso não seja feito segundo uma ponderação de economia, eficiência e eficácia, apenas para que não haja perdas); a transição de saldos coloca a questão de saber com que critérios é feita e quem a avalia. Por isso mesmo esperávamos aqui mais do legislador.

(f) O legislador é também omisso quanto à hipótese de não aprova‑ção atempada da lei de programação.

Esta omissão coloca ‑nos perante a questão de saber (e a hipótese de não aprovação de um quadro plurianual no início de uma nova legislatura não nos parece meramente académica) se será de aplicar analogicamente o mecanismo de prorrogação do orçamento em caso de não aprovação atempada ou se será, pura e simplesmente, de partir do pressuposto que, nos termos do actual artigo 17.º, alínea c), não poderá haver aprovação de Orçamento sem o quadro plurianual a que se deve conformar.

Em suma, não há dúvida de que a ideia da regra de despesa em si é boa e visa dar resposta a uma das críticas que mais recorrentemente se faz à administração orçamental.

Porém, em face de tantas indefinições e omissões, parece que tal como proposta não vai longe no seu propósito limitador da despesa. É que o rigor que se exige ao executor orçamental na realização de despesa é o mesmo que se exige do legislador quando se trata de estabelecer meca‑nismos para travar o seu crescimento. Sem uma regra de despesa clara‑mente balizada, sem mecanismos de ajustamento automático a flutuações de preços e sem mecanismos de resolução de impasses políticos, ficará tudo na mesma. Ficamos pois à espera dos desenvolvimentos que o debate proporcionado por esta reforma possa trazer.

2. A regra de saldo

O artigo 12.º -C, prevê, nos n.os 1 e 4, que o saldo orçamental das administrações públicas é definido de acordo com o Sistema Europeu de

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Contas Nacionais e Regionais, corrigido dos efeitos cíclicos e das medi‑das temporárias, não podendo, contudo ser inferior ao objectivo de médio prazo, definido de acordo com o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Não sendo possível o cumprimento desta regra, o desvio é corrigido nos anos seguintes. O cumprimento destas regras é objecto de parecer do Conse‑lho das Finanças Públicas previsto no artigo 12.º -I.

Em primeiro lugar, fica perfeitamente claro agora o desaparecimento da disparidade entre contabilidade pública e contabilidade nacional, pelo menos para o apuramento do saldo orçamental.

Em segundo lugar, a lei nacional passa a identificar a obrigatoriedade de confronto entre o saldo orçamental anual de curto prazo e o objectivo de médio prazo, definido de acordo com o Pacto de Estabilidade e Cres‑cimento, a saber: uma trajectória de ajustamento que conduza ao objec‑tivo fixado para o excedente/défice orçamental e a evolução prevista do rácio da dívida pública, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento (CE) n.º 1466/97, do Conselho, de 7 de Julho de 1997.

De facto, e como já refere o Relatório que acompanha o anteprojecto de reforma da Lei de Enquadramento Orçamental15, reconhece -se “que as leis de finanças regionais e locais já estabelecem alguns mecanismos que procuram limitar o défice e o endividamento destes subsectores”, sendo que “no entanto, estes limites não parecem ser suficientes para garantir um contributo destes subsectores para a estabilidade orçamental”.

Esta regra disciplinadora vem identificar que a decisão financeira e a acção orçamental deixou de estar dependente da actuação discricioná‑ria dos entes públicos, própria do saldo de curto prazo) e que a partir de agora passa a existir um necessário confronto entre as várias formas de ajustamento orçamentais e os efeitos na actividade económica (apenas detectáveis no saldo de médio prazo).

A base deste confronto entre o saldo de curto prazo e o saldo de médio prazo evidencia a necessidade de assentar as boas contas públicas em períodos, mais ou menos prolongado, de melhorias do saldo primário ajustado ao ciclo.

A regra de saldo resulta da conjugação de dois elementos: (1) da necessidade de cobertura das despesas pelas receitas, numa óptica de equi‑líbrio orçamental de curto prazo – referindo -nos aqui à mera sustentabilidade

15 Disponível em http://www.min -financas.pt.

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e (2) da manutenção do saldo orçamental no ciclo económico – pela garan‑tia de episódios contínuos de melhoria dos saldos estruturais. Terá assim, esta configuração básica:

Saldo de curto prazo ≥ Saldo estabelecido nos objectivos de médio prazo

No entanto, reconhece ‑se pelo Relatório do anteprojecto da LEO, que “esta regra por si não garante a sustentabilidade, tornando ‑se necessá‑rio garantir que eventuais desvios sejam compensados em anos seguin‑tes. Esta compensação poderia ser acautelada, garantindo, em cada ano, que a soma dos últimos saldos em percentagem do PIB apurados não seja inferior a um valor de referência”.

Pelo que a regra acima só fará sentido, em termos práticos, se coad‑juvada uma regra complementar, com o seguinte conteúdo:

Σi=08 Saldo efectivot ‑1/PIBt ‑1 ≥ – x%

Assim, caso a primeira regra seja cumprida sempre, a segunda regra deixa de ser necessária. Por exemplo, na hipótese de o ciclo durar os 9 anos e ser simétrico, uma vez que a soma dos hiatos do produto tenderá a anular-‑se para o conjunto do ciclo e o objectivo de médio prazo se situa em -0,5% do PIB potencial. Ora, “caso se verifiquem desvios relativamente à primeira regra, o cumprimento da segunda assegura que esses desvios são amortizados”, conforme refere o relatório evidenciado. Estranhamos, contudo, que o legislador não tenha evidenciado expressamente esta segunda regra, o que contraria o rigor associado à disciplina financeira assente na regra de saldo.

Será necessário explicar, desta forma, que a dimensão da regra de saldo é medida pela alteração do saldo primário ajustado ao ciclo em per‑centagem do PIB potencial durante o episódio registado (último ano do episódio menos o ano em causa antes de começar)16, enquanto a intensi‑dade é medida pelo quociente da dimensão sobre a duração do episódio.

16 Sobre o assunto, consultar guiChArd, stéphAnie, kennedy, mike, wurzel, eChkArd e André, Christophe, 2007. “What Promotes Fiscal Consolidation: OECD Country Experiences” OECD Economics Department Working Papers 553, OECD Publishing, 2007, pág. 7.

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Esta melhoria dos saldos permite identificar dois grupos de conse‑quências macroeconómicas:

a) O declínio do défice e do rácio dívida/PIB17 e, lamentavelmente, um abrandamento económico, o que permite identificar uma troca de eficiência entre o crescimento e a estabilização dos saldos;

b) O declínio do défice e do rácio dívida/PIB como gerador de cres‑cimento económico, em função de uma contracção com efeitos expansionistas ou não -keynesianos.

Neste sentido, a regra de saldo está associada a uma metodologia de quantificação do efeito do ciclo nas políticas orçamentais. Trata -se, por outras palavras, de estudar as várias formas de ajustamento orçamentais e confrontá -las com os efeitos na actividade económica.

Depois de materialmente apreendida esta regra, não conseguimos perceber, contudo, como compatibilizar a competência do Conselho Supe‑rior de Finanças, a entidade encarregue da vigilância da regra de saldo enunciada, com as competências atribuídas à Assembleia da República e ao Tribunal de Contas, em sede de controlo político, fundamentalmente.

Por um lado, a fiscalização política cabe à Assembleia da República e traduz ‑se quer na apreciação anual da Conta Geral do Estado, nos ter‑mos do artigo 107.º da Constituição (controlo a posteriori); quer na apre‑ciação, ao longo do ano, do modo como os Governos vão executando os Orçamentos e pondo em prática as suas políticas económico -financeiras (apreciação dos orçamentos provisórios) (controlo concomitante). Estas fiscalizações (concomitante e a posteriori) junta -se à fiscalização que a Assembleia da República exerce ex ante. Com efeito, é preciso não esque‑cer que ao votar o Orçamento do Estado, a Assembleia da República “exerce uma primeira fiscalização”18.

Por outro, no exercício da fiscalização a posteriori e concomitante, a Assembleia da República é assistida tecnicamente pelo Tribunal de

17 O rácio dívida/PIB representa uma medida da dívida pública de um país em rela‑ção ao Produto Interno Bruto. Esta medida dá uma ideia sobre a capacidade de um país fazer futuros amortizações do capital em dívida. Quanto mais alto for o rácio, menor a probabilidade de um país amortizar a dívida.

18 CArlos moreno, Gestão e controlo dos dinheiros públicos, Lisboa: UAL, 1998, pág. 303.

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Contas: “este emite não só parecer, não vinculativo, sobre a Conta Geral do Estado, com destino à AR, como a assiste durante a execução orça‑mental até ao momento da publicação daquela conta”19.

A Assembleia da República poderá recusar a sua aprovação à Conta Geral do Estado apresentada e responsabilizar politicamente o Governo em funções, se for o mesmo que executou o Orçamento do Estado. Refira--se ainda que, segundo o artigo 197º da CRP, a Assembleia pode ainda votar moções de censura ao executivo, que deverão ser propostas ou por um quarto dos Deputados em efectividade de funções ou por qualquer grupo parlamentar. A aprovação de uma moção de censura por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções implica a demissão do Governo (artigo 194º nº1 f) da CRP).

Além disso, a Assembleia da República poderá accionar os mecanis‑mos de responsabilização política, ou solicitar informações sobre o modo como se processa a execução orçamental.

Para além disso, é conveniente explicar que a Assembleia da República pode ainda recorrer à UTAO, para obtenção de documentos de trabalho técnico sobre a gestão orçamental e financeira pública, nos termos da Reso‑lução da Assembleia da República n.º 53/2006, de 7 de Agosto de 2006.

Ora, sendo assim, em relação a esta inovação não se percebe bem o alcance da criação do Conselho das Finanças Públicas, porque não só não identificamos a natureza do controlo que é feito e quais são os seus efeitos, como também não se estabelece uma óbvia ligação em relação aos controlos já existentes: administrativo, político e jurisdicional.

Em suma, a reforma da lEO é ao mesmo tempo muito ambi‑ciosa e pouco concretizadora. Ambiciosa, porque finalmente acolhe um conjunto de regras que têm sido introduzidas pelos vários orde‑namentos um pouco por todo o mundo. Pouco concretizadora, porque deixa uma grande margem de interpretação e de concretização prá‑tica de regras disciplinadoras e não discricionárias. E neste ponto não podemos deixar de notar que a margem de concretização é tão ampla que até permite que tudo permaneça exactamente como está. Fica‑remos à espera de mais desenvolvimentos no decurso desta reforma.

19 CArlos moreno, Gestão..., Op. Cit., pág. 303.

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Rogério M. Fernandes FerreiraManuel Teixeira Fernandes

O novo código dos impostos especiaissobre o consumo

Rogério M. Fernandes FerreiraAdvogado

Manuel Teixeira FernandesAdvogado

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RESUMO:

Neste artigo é feita uma apresentação do (novo) Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo DL n.º 73/2010, de 21 de Junho, ao mesmo tempo que se procede a uma análise crítica das opções do legislador, nomeadamente em torno das novas “figuras estatutárias” que foram criadas para a informatização do Regime de Cir‑culação Intracomunitário em Suspensão do Imposto Especial de Consumo.

A referida informatização, conjugada com a exigência de uma postura mais inter‑ventiva das autoridades aduaneiras nesta matéria constitui, pela positiva, a inovação mais importante do Código, tendo presente a responsabilidade fiscal objectiva que desde os primórdios da harmonização comunitária impende sobre os depositários autorizados na circulação em suspensão do IEC.

Ao invés, a manutenção da situação de incumprimento do direito comunitário em que Portugal se encontra desde Janeiro do corrente ano por ainda não tributar a electricidade e, a outro nível, o desajustamento do Código em relação à LGT e ao CPPT, no que se refere a prazos de pagamento e garantias, parece fazerem apelo à ideia de oportunidade perdida, especialmente tendo em atenção que o legislador optou pela edição de um código novo.

Palavras‑chave:Impostos Especiais de Consumo (IEC)Circulação Intracomunitária em Suspensão dos IECDirectiva HorizontalDirectivas Verticais

ABSTRACT:

This article presents the (new) Excise Duties Code - in Portuguese, Códig of the scheme for intra-community movement under excise duty suspension.

This computerisation, together with the demand for a more inventive approach by customs authorities in this area, amounts, on the positive side, to the Code’s most important innovation as it has the objective fiscal responsibility that has been incumbent upon authorised warehousekeepers in respect of movement under excise duty suspension since the beginnings of EU harmonisation. ms to suggest the idea of a lost opportunity, especially bearing in mind that the legislator chose to publish a new code.

Key Words:Excise Duties Intra-community Movement under Excise Duty SuspensionHorizontal Directive Vertical Directives

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1. Introdução

Em anexo ao Decreto -Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, foi publi‑cado o (novo) Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), que entrou em vigor 30 dias após a sua publicação. Este diploma veio proce‑der à actualização da legislação dos Impostos Especiais sobre o Consumo (IEC), harmonizados comunitariamente, e que incidem sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos, sobre os Tabacos e sobre o Álcool e as Bebi‑das Alcoólicas.

No direito interno, esta matéria tinha sido objecto da primeira codi‑ficação pelo Decreto -Lei n.º 566/99, de 22 de Dezembro, normalmente identificado pelo acrónimo “CIEC”. Assim, para maior facilidade, iden‑tificaremos o diploma agora publicado (Decreto -Lei n.º 73/2010) como “novo CIEC”.

Com a edição do novo CIEC pretende o legislador transpor para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro, a qual revogou e substituiu a anterior Directiva 92/12/CEE, do Conselho, de 25 de Fevereiro, normalmente designada por Directiva Horizontal dos IEC, já que - ao contrário das designadas Directivas Ver‑ticais aplicáveis a cada tipo de produtos - se aplica a todos os produtos sujeitos a IEC.

Não são muito significativas as inovações trazidas pelo diploma em apreciação, pelo que a opção de editar um novo CIEC terá, porventura, por justificação o facto de o anterior CIEC ter sido objecto, ao longo dos dez anos da sua vigência, de múltiplas alterações que tiveram lugar, fun‑damentalmente, nas leis dos orçamentos do Estado publicadas neste período.

Assim, em termos de estrutura, o novo CIEC continua a contemplar uma Parte Geral, onde surgem as disposições comuns aplicáveis a todos os produtos sujeitos a IEC harmonizados, e uma Parte Especial, onde constam as disposições específicas aplicáveis a cada grupo de produtos.

2. Novas figuras estatutárias

No novo CIEC são criadas as figuras estatutárias do “destinatário regis‑tado”, do “destinatário registado temporário” e do “expedidor registado”.

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A figura do “destinatário registado” é decalcada da anterior figura de “operador registado”, tratando -se apenas de mudança de designação. Com efeito, quer a obtenção do estatuto, quer os direitos e obrigações do titular do estatuto não apresentam quaisquer diferenças em relação à situa‑ção actual. De resto, a lei diz, expressamente (cfr. artigo 2.º do diploma preambular), que os actuais detentores do estatuto de operador registado adquirem, sem demais formalidades, o estatuto de “destinatário registado”.

A nova figura do “destinatário registado temporário” tem a sua ori‑gem no “operador não registado”, não apresentando diferenças em rela‑ção a este.

Já o estatuto de “expedidor autorizado” não tem correspondência no código anterior e visa permitir que um qualquer importador de produtos sujeitos a IEC, para além de os poder declarar de imediato para livre prá‑tica e consumo, possa, alternativamente, declará -los para livre prática e expedi -los para um depositário autorizado (em Portugal ou noutro Estado membro) ou para um destinatário autorizado ou para entidades benefici‑árias de certo tipo de isenções1, se, em qualquer deste dois últimos casos, os destinatários se situarem noutro Estado membro.

Até agora, esta matéria era regulada pelo n.º 10 do artigo 44.º do CIEC, no que se refere a garantias, e por via administrativa quanto aos restantes procedimentos. Com o novo CIEC fica preenchida a lacuna que impossibilitava a expedição dos produtos importados para outros Esta‑dos membros, em suspensão do IEC, quando o importador não detém o estatuto de depositário autorizado.

3. Circulação Intracomunitária

Na circulação intracomunitária dos produtos em suspensão do imposto é adoptado o sistema informatizado de âmbito comunitário, que suporta também o controlo dos respectivos movimentos, normalmente conhecido pela sigla inglesa de EMCS – Excise Movement and Control System –, cujos especificações técnicas constam no Regulamento (CE) n.º 684/2009, da Comissão, de 24 de Julho de 2009.

1 Vide n.º 1 do artigo 6.º.

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Este sistema, ao contrário do que até agora acontecia, faz intervir as Administrações aduaneiras dos Estados membros de expedição e de recepção, antes de se iniciarem as operações de circulação em suspen‑são, o que possibilita um maior controlo das operações, embora não dis‑pense a “cobrança de recibo” por parte do transportador no momento da entrega, cautela esta que se pode vir a revelar fulcral para elisão da responsabilidade fiscal do expedidor, nas situações em que o destina‑tário não cumpre a obrigação de elaboração do “relatório de recepção” dos produtos.

Assim, espera -se que o novo enquadramento das operações de cir‑culação em suspensão do imposto, ao fazer apelo a Administrações adua‑neiras mais interventivas, ajude a diminuir o risco fiscal dos depositários autorizados expedidores, que continuam a responder objectivamente pela regularidade das operações de circulação intracomunitária em suspensão do imposto, apesar de ser o transportador o último operador a contactar com a mercadoria antes da sua entrega ao destinatário.

As alfândegas portuguesas foram pioneiras na utilização da infor‑mática neste domínio, quando, em 2004, estatuíram a emissão e o apura‑mento obrigatórios do Documento Administrativo de Acompanhamento (DAA) por via electrónica pelo que se estranha que Portugal figure, agora, no grupo de Estados membros que somente disporão, em pleno, do novo sistema em 2011.

4. Circulação Nacional

O estatuto de “operador registado” até agora vigente só permite rece‑ber produtos em regime de suspensão do IEC quando os mesmos sejam expedidos de outro Estado membro. Com o novo CIEC e com entrada em vigor em 1/01/2011, passa a ser possível a expedição de produtos em suspensão do IEC de um “depositário autorizado” para um “destinatário registado”, ambos situados no território nacional2.

As estruturas dos mercados destes tipos de produtos pareciam desa‑conselhar as expedições nacionais de produtos em suspensão do IEC para operadores (“destinatários registados”) que não são obrigados a ter

2 Cfr. artigo 35.º.

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instalações físicas típicas para os receber. Pelo contrário, por exemplo, no sector dos combustíveis os locais de descarga deverão ser os próprios postos de venda ao público dos combustíveis pelo que as dificuldades de controlo deverão ser acrescidas.

Assim, dada a facilidade com que pode ser obtido o estatuto3, quando as novas regras da circulação nacional entrarem em vigor poderá vir a registar -se um enorme alargamento do universo dos “destinatários regis‑tados”, com consequências muito significativas em termos de aumento da fraude fiscal. Se assim acontecer, também o Regime de tributação em IVA dos revendedores de combustíveis líquidos (cfr. artigo 34.º da Lei n.º 107--B/2003, de 31 de Dezembro), que tão bons resultados tem apresentado, poderá vir a carecer de alterações.

5. Prazos de Reclamação Graciosa e Impugnação Judicial

No artigo 13.º do novo CIEC (que corresponde ao artigo 11.º do anterior CIEC), mantém -se a exigência de que o imposto esteja pago, se se quiser apresentar Reclamação Graciosa ou Impugnação Judicial nos prazos, respectivamente, de 120 ou 90 dias, e que são os previstos no Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Com efeito, mesmo que o imposto esteja garantido, passados 30 dias sobre a data em que terminou o prazo para pagamento voluntário, a garantia é accionada se o imposto, entretanto, não tiver sido pago.

Assim, a Reclamação Graciosa ou a Impugnação Judicial têm de ser apresentadas no prazo de 30 dias, contado da data em que terminou o prazo para pagamento voluntário, se se pretender que o imposto esteja, somente, garantido durante o período em que o processo correr os seus termos, quer na fase administrativa, quer na fase judicial. Uma vez mais, o legislador não aproveitou, afinal, o novo CIEC para uniformizar este diploma com os prazos previstos no CPPT para apresentação de reclama‑ção graciosa e de impugnação judicial.

3 Em Espanha, por exemplo, são exigidas instalações típicas enquanto em Portugal só é necessário cumprir requisitos de tipo administrativo.

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6. Imposto sobre o Álcool e as Bebidas Alcoólicas (IABA)

As pequenas destilarias, cuja produção beneficia de uma redução de 50% das taxas do IABA aplicáveis, passam a estar sujeitas a procedi‑mentos de controlo mais rigoroso, com a obrigatoriedade de procederem ao registo das matérias -primas utilizadas e dos produtos obtidos, ficando, ainda, a unidade produtiva sujeita a selagem, no caso de a produção ser sazonal, o que sucede na generalidade dos casos de produção de aguar‑dente a partir dos bagaços de uva.

7. Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (IsP)

Saúda -se a inclusão no novo CIEC das taxas do imposto (apresen‑tadas, como é tradicional, na forma de intervalos de valores máximos e mínimos). Contudo, não se foi tão longe quanto seria lógico, pois, no qua‑dro onde figuram os intervalos de taxas dos produtos principais (gasoli‑nas, gasóleos, petróleos e fuelóleos), não figuram os intervalos de taxas dos produtos menos nobres (lubrificantes, GPL combustível, etc.), quando não há razões para manter estes últimos individualizados, dado que a fixa‑ção, em concreto, do valor das taxas de uns e outros é feita por portaria dos mesmos membros do Governo.

Pela negativa, o aspecto mais importante do novo CIEC no domínio dos produtos petrolíferos e energéticos é a não previsão da tributação da electricidade. Esta opção do legislador é tão mais incompreensível quando edita um novo código mas, ao mesmo tempo, coloca o país em situação de incumprimento do direito comunitário. Com efeito, terminou em 1 de Janeiro do corrente ano a derrogação prevista na Directiva 2003/96/CE4 que permitia a Portugal isentar do ISP o consumo da electricidade, devendo, portanto, nesta data, o “produto” ser tributado no mínimo com os valores das taxas previstos no artigo 10.º e que figuram no anexo I, quadro C, da Directiva 2003/96/CE e que são de 0,5 € por MW/h ou de 1€ por MW/h, respectivamente, consoante se trate de consumos de empre‑sas ou de outro tipo de consumidores.

4 Vide n.º 7 do artigo 18.º da Directiva.

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8. Imposto sobre os Tabacos (IT)

Manteve -se o regime de “condicionamento da introdução no con‑sumo” de tabacos manufacturados, no período compreendido entre Setem‑bro e Dezembro de cada ano, impedindo ‑se, assim, as empresas tabaqueiras de acumularem stocks de produtos declarados para consumo nas vésperas da data em que são normalmente aumentadas as taxas do imposto.

Compreende ‑se que o legislador procure disciplinar o sector de forma a que as novas taxas do imposto tenham repercussão imediata após a sua entrada em vigor (o que não aconteceria se as empresas tivessem grandes stocks de tabaco que pagou imposto às taxas anteriores), mas a doutrina considera que a via legal seguida, além de muito burocratizada, fere a Constituição e está em desconformidade com o direito comunitário. Não podemos deixar de referir que é este o entendimento que, ainda recente‑mente, na qualidade de académico, expressou, por escrito nesta Revista5, o actual Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

9. Regulamentação do novo CIEC

Finalmente, manifestamos a esperança de que a regulamentação do novo CIEC seja feita de molde a evitar a burocracia que se regista, por exemplo, no domínio do gasóleo colorido e marcado, onde convivem, lado a lado e cumulativamente, a mais moderna tecnologia (cartão elec‑trónico com chip) e o procedimento de emissão de milhões de facturas em suporte papel, com valores pouco significativos, quando parecia mais que justificada a aplicação a este produto do regime de facturação aplicá‑vel às “vendas massificadas”.

5 Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano II, n.º 4, Lisboa, Dezembro de 2009.

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Bruno Mestre

Reflexões Críticas e Comparadas sobre o Código Contributivo

Bruno MestreDoutor em Direito pelo Instituto Universitário Europeu de Florença (2009).

Docente de Direito do Trabalho e da Seg. Social no IPCA– Instituto Politécnico do Cávado e do Ave

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RESUMO:

O objecto do presente trabalho consiste numa análise contextual e comparada das reformas introduzidas pelo Código Contributivo. Consideramos que o Código Contri‑butivo vem reforçar a componente contributiva do sistema e aumentar os custos com o trabalho num contexto Europeu de diversificação das fontes de financiamento, privatiza‑ção e redução dos custos com o pessoal. Consideramos ainda que o (previsto) combate à contratação a termo deve ser censurado por privar os trabalhadores da possibilidade de “estabilização progressiva” das suas relações laborais e encorajar uma fuga ao Direito do Trabalho. Impõe -se uma reflexão mais aprofundada sobre a problemática e uma reconfi‑guração dos pacotes remuneratórios.

Palavras ‑chave: Código ContributivoCódigo do TrabalhoDireito Comparado

ABSTRACT:

This paper consists in a contextual and comparative analysis of the reforms introduced by the recent Portuguese Social Security Code. We conclude that this statute should have been subject to a deeper and more far ‑reaching discussion and that the remuneration packages must be redesigned in order to achieve fiscal efficiency with the new law.

Key words: Social Security Code, Labour CodeComparative Law

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§ 1 Introdução

O último trimestre de 2009 foi agitado por uma discussão pública em torno de um diploma ambicioso e polémico intitulado “Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social” (Lei n.º 110/2009 – Código Contributivo). Este diploma tinha por intenção não apenas codificar e sistematizar um conjunto de normas reguladoras do sistema previdencial de Segurança Social (art.º 50 da Lei n.º 4/2007 (Lei de Bases da Segurança Social - LBSS))1 mas, igualmente, o de introduzir um conjunto de medidas destinadas a reforçar a sustentabilidade do sis‑tema, combater o emprego atípico e aumentar a cobertura da protecção social. Estas últimas medidas suscitaram sérias reservas relativamente à sua estratégia de implementação a ponto de a promulgação do diploma ter sido acompanhado por uma “nota de dúvidas” da Presidência da Repú‑blica, na qual o Presidente informou que a promulgação do diploma não implicava a sua adesão às soluções nele contidas.

A discussão em torno das implicações das soluções substantivas do Código Contributivo na economia e no mercado de trabalho atingiram uma tal dimensão que, na sequência das eleições de legislativas de Outu‑bro de 2009, a oposição aprovou um diploma da iniciativa do CDS ‑PP que adiou a entrada em vigor do Código Contributivo para Janeiro de 2011 (Lei n.º 119/2009). Paralelamente, a Assembleia da República aprovou a Resolução n.º 112/2009 que recomendou ao Governo que facultasse de imediato à Assembleia da República todos os estudos e fundamentos que sustentaram as soluções contidas na lei actual a fim de permitir a discus‑são e aprofundamento da matéria bem como a apresentação de iniciati‑vas legislativas que melhorem o actual diploma, a bem dos contribuintes, das empresas e da economia.

A Lei do Orçamento de Estado para 2011 (Lei 55 ‑A/2010) introdu‑ziu diversas alterações no texto do Código Contributivo e adiou a entrada em vigor de muitas das inovações que tinham sido anunciadas em 2009, de forma a proporcionar uma resposta às preocupações e objecções que foram erigidas pelos parceiros sociais durante o ano de 2010. Nestes ter‑mos, o texto que se encontra actualmente em vigor consiste num diploma

1 O diploma revogou um total de 40 (quarenta) textos legislativos e regulamentares que disciplinavam uma parte significativa do sistema previdencial.

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fragmentado, de complexa aplicação e que, em muitos aspectos, quedou bastante aquém das expectativas inicialmente apresentadas.

O objecto do presente relatório consiste numa reflexão crítica das soluções apresentadas pelo Código Contributivo. Começamos por apre‑sentar o contexto da reforma com uma breve apresentação das principais novidades introduzidas pelo Código Contributivo; prosseguimos com uma comparação com as estratégias seguidas noutros países; desenvolvemos com uma reflexão crítica das novidades introduzidas à luz da experiên‑cia implementada no estrangeiro assim como uma breve análise das ten‑dências actuais em matéria de Segurança Social e terminamos com uma apresentação de algumas breves conclusões.

§ 2 O contexto da reforma

O alcance e intenções da reforma devem ser devidamente contextua‑lizados nos movimentos de reforma de Segurança Social que têm agitado os sistemas de protecção social um pouco por toda a Europa assim como os acordos alcançados a nível de concertação social.

Não constitui novidade para ninguém que os sistemas previdenciais de Segurança Social encontram ‑se actualmente em crise por todo o mundo desenvolvido. Os mais variados estudos que têm vindo a ser publicados sobre o tema indicam que os principais motivos do desequilíbrio que tem vindo a afectar os sistemas nacionais radicam na redução de receitas e no aumento das despesas derivados da quebra da natalidade, no aumento da esperança média de vida, na mudança das estruturas familiares, na escalada do emprego atípico e nos níveis elevados de desemprego que persistem mesmo em períodos de crescimento económico.2 Estas altera‑ções estruturais têm vindo a colocar uma enorme pressão sobre os sis‑temas nacionais de Segurança Social em virtude de esta conjugação de elementos ter erigido diversas dificuldades à sua capacidade de resposta

2 Dupeyroux, J.J, M. Borgetto e R. Lafore (2008), Droit de la Sécurité Sociale, 16ª edição, pp.52 -67; Julienne, K. e M. Lelièvre (2004) “L’évolution du financement de la protection sociale à l’aune des expériences britannique, française et danoise” em Revue Française des Affaires Sociales, n.º 3, pp.89 -111; Slusher, C. (1998), “Pension integration and Social Security Reform” em Social Security Bulletin, v.61, n.º 3, pp.20 -27.

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a nível de protecção social. O simples reforço dos sistemas tradicionais aparenta ser incapaz de proporcionar uma solução eficaz a estes desafios na medida em que a quebra de receitas coloca os Estados perante uma opção politicamente difícil de sustentar: uma solução assente na redu‑ção da despesa passa pelo corte nos benefícios sociais com externalida‑des negativíssimas nos sectores mais desfavorecidos da população; uma solução assente no aumento das receitas reduz os incentivos para a con‑tratação de activos,3 o rendimento disponível dos beneficiários (com as consequências inerentes em termos de consumo e aforro) e torna mais difícil de defender politicamente um sistema assente num esquema de contribuição definida que se mostra progressivamente incapaz de pro‑porcionar uma resposta útil aos desafios sociais. As seguintes palavras de Pierre Plamondon/Dennis Latulippe e Bárbara E. Kritzer ilustram os dados gerais do problema:

“Most industrialized countries have developed social security schemes that provide substantial benefits to retirees and are generally financed on a pay ‑as ‑you ‑go (PAYG) or partial funding basis. Virtually all of these countries will face an ageing of their population that will make necessary an increase of the contribution rate in order to ensure the financial viability of the schemes (assuming no reduction in benefits)”4

“Many (…) countries instituted a number of measures to try to maintain the solvency of their programs. Most raised the retirement age, increased contribution rates, changed the benefit formulas for retirement, tightened qualifying conditions for disability, and cut back

3 A discussão sobre a natureza jurídica das contribuições para a Segurança Social a cargo do empregador é um tema amplamente discutido sendo, actualmente, pacífica a sua qualificação como tributos parafiscais nos termos do art.º 3, n.º 1, al.a) da LGT. Vide Lopes Dias, A. (2005), “Considerações sobre o enquadramento dogmático dos crimes contra a Segurança Social”, trabalho realizado no âmbito do curso de Pós ‑Graduação em Direito Penal Económico Europeu na Universidade de Coimbra, disponível no site “Verbo Jurídico”. Nestes termos, constituem um para -tributo a cargo do empregador que aumenta consideravelmente os seus custos com a contratação de trabalhadores.

4 Plamondon, P. e Dennis Latulippe (2008), “Optimal funding of pension schemes”, International Social Security Association, Technical Report n.º 16, pp.1.

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on the number and types of privileged pensions. Some created supple‑mentary private pension schemes, and others implemented or are dis‑cussing some form of individual accounts.”5

A doutrina tem adiantado que a resposta encontrada pelos diversos Estados aparenta residir numa progressiva privatização, parcial ou com‑pleta, dos sistemas de Segurança Social. Os apologistas de um sistema de privatização parcial advogam a instituição de um sistema híbrido, que combine elementos públicos e privados, mediante o qual o privado seja capaz de complementar o público na resposta às eventualidades sociais; outros defendem uma privatização completa do sistema semelhante ao ocorrido no Chile em 1981 e, mais recentemente, em países como a Hun‑gria ou Cazaquistão.6

As linhas orientadoras da reforma do sistema previdencial intro duzida pelo Código Contributivo em Portugal encontram ‑se em dois documentos que resultaram da concertação social: o “Acordo sobre a Reforma da Segurança Social” aprovado em Outubro de 2006 e o “Acordo Tripartido para um Novo Sistema de Regulação das Relações Laborais, das Políti‑cas de Emprego e da Protecção Social em Portugal” de Junho de 2008.

O primeiro destes documentos estabeleceu linhas muito gerais de reforma da Segurança Social. Uma das principais linhas de reforma con‑sistiu no objectivo expresso de melhorar a sustentabilidade e a trans‑parência do modelo de financiamento da Segurança Social mediante o aprofundamento da adequação selectiva das fontes de financiamento, garantindo que o Orçamento de Estado financie as despesas de natureza não ‑contributiva. A contrario, a componente de autonomia financeira e de auto ‑sustentabilidade do sistema previdencial deverá ser reforçada a fim de garantir que as receitas do Orçamento de Estado sejam afectadas unicamente ao sistema de protecção social de cidadania (art.º 26 LBSS) e se evite uma repetição do cenário de 2005, ano em que parte das recei‑tas do IVA tiveram que ser alocadas ao orçamento da Segurança Social.

5 Kritzer, Barbara E. (2001/2002) “Social Security Reform in Central and Eastern Europe: variations on a Latin American theme” in Social Security Bulletin, v.64, n.º 4, pp.16 ‑32.

6 Becker, U. (coord.) (2005), “The role of private actors in Social Security: a German‑‑Japanese Social Law Symposium”, MPISoc Working Paper 1/2005, pp.111.

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O documento adiantou que as formas de assegurar essa sustentabilidade passariam pelas seguintes medidas:

Em primeiro lugar, por via do alargamento da base de incidência a todas as prestações juridicamente caracterizadas como possuindo natureza retributiva, assim harmonizando a base de incidência fiscal e da Segurança Social; o objectivo não passaria apenas por introduzir mais dinheiro no sistema mas – igualmente – o de aproximar a cobertura à remuneração efectivamente auferida pelo trabalhador.

Em segundo lugar, o documento esclareceu que procederia a uma revisão do regime dos trabalhadores independentes com o intuito de apro‑ximar a base da incidência às remunerações reais, respeitando a mobi‑lidade entre trabalho dependente e independente e adequando o esforço contributivo à protecção social efectivamente proporcionada.

Por último, o documento esclareceu que pretendia criar incenti‑vos para o desenvolvimento de regimes complementares de Segurança Social. A promoção destes regimes complementares passaria pela atribui‑ção de benefícios fiscais à constituição de fundos de pensões por parte das empresas, em particular no caso de ser garantida a individualização e portabilidade dos direitos, por via da dedução como custo fiscal em sede de IRC e, no caso dos particulares, por via do reforço dos mecanis‑mos de poupança individual existentes; estes mecanismos de poupança individual destinar -se -iam a compensar a redução previsível das pensões em virtude da aplicação do factor de sustentabilidade e poderiam assumir uma natureza privada (maxime: incentivos fiscais à constituição de PPR) ou pública (regime público de capitalização).

O segundo daqueles documentos enunciou um conjunto concreto de medidas a serem implementadas numa revisão da Segurança Social. Estas medidas, a serem analisadas adiante, reconduzem ‑se a três pontos funda‑mentais: (1) apoio à contratação por tempo indeterminado, (2) facilitar a transição emprego/desemprego, prevenir e combater o desemprego de longa duração, (3) apoiar a entrada no mercado de trabalho de activos com mais de 55 anos e outros segmentos sociais desfavorecidos. Uma leitura simples destes pontos evidencia que os parceiros sociais enfatiza‑ram a contratação por tempo indeterminado e a integração no mercado de trabalho como a forma preferencial de regulação das relações laborais.

A leitura dos objectivos traçados nestes dois documentos permite‑-nos extrair algumas conclusões acerca das linhas de reforma. O legislador

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português optou por prosseguir uma estratégia mista de reforço do sistema público e de consolidação das suas insuficiências por via da promoção de iniciativas privadas. O reforço do sistema público foi implementado por via do alargamento da base contributiva, a fim de reforçar a compo‑nente contributiva ou auto -financiada do sistema, e na promoção da pro‑porcionalidade entre a contribuição e a protecção garantida a fim de desen‑corajar a evasão ao sistema e melhorar a tutela social. Por outro lado, os parceiros sociais pretenderam ainda utilizar a Segurança Social como um instrumento de política de emprego, de forma a encorajar a contratação por tempo indeterminado e integrar nesse âmbito os trabalhadores com vínculos atípicos e mais desprovidos de protecção social (contratação a termo e trabalhadores desprovidos de subordinação jurídica mas econo‑micamente dependentes) e segmentos sociais penalizados com dificulda‑des de integração no mercado de trabalho (activos com mais de 55 anos e segmentos socialmente desfavorecidos). Os pontos seguintes vão procurar descrever as modificações introduzidas no contexto concreto da reforma.

§ 3 Novidades do Código Contributivo

As novidades implementadas pelo Código Contributivo são já do conhecimento público pelo que as próximas linhas limitar -se -ão a esbo‑çar as principais linhas gerais do diploma.

Uma das modificações mais relevantes consistiu na ampliação da base de incidência das contribuições para a Segurança Social dos traba‑lhadores dependentes por via da harmonização com a base de incidência relevante para o IRS. Este alargamento estendeu -se – a título de exem‑plo – aos seguintes rendimentos: (a) importâncias atribuídas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte e outras equivalentes; (b) abonos para falhas entre outros previstos no art.º 46 do Código Contributivo. É significativo que várias destas parcelas retri‑butivas apenas integrem a base de incidência nas condições previstas no Código IRS uma vez que apenas serão taxados se ultrapassarem um certo limiar: caso se mantenham dentro de certos limites permanecerão isen‑tos de contribuições para a Segurança Social (art.º 36, n.º 3 do Código Contributivo). Por outro lado, a harmonização simplifica a determinação da base da incidência.

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Esta expansão da base de incidência foi combinada com um con‑junto de isenções expressas. A isenção mais importante consiste na exclusão da base de incidência de (a) instrumentos financeiros cons‑tituídos pelo empregador em benefício dos trabalhadores tais como seguros do ramo vida, fundos de pensões e outros complementos de reforma, (b) subsídios familiares, (c) planos de acções, entre outros. Estes instrumentos financeiros foram expressamente isentos da integra‑ção na base de incidência para efeitos de contribuições para a Segu‑rança Social em atenção à sua importância social no complemento das tarefas sociais do Estado tais como a provisão de cuidados de saúde, subsistência na velhice, assistência familiar ou na promoção do “capi‑talismo popular” por via dos planos de acções (art.º 46, n.º3 e 48 do Código Contri butivo).

Note -se, todavia, que a expansão da base da incidência foi planeada de uma forma faseada de forma a minimizar o seu impacto sobre as contas das empresas. De acordo com o art.º 277 do Código Contributivo, a inte‑gração das novas parcelas na base de incidência seria realizada apenas em 33% no ano de 2010, 66% no ano de 2011 e 100% no ano de 2012. Este alargamento escalonado destinava ‑se a facilitar às empresas a transição para os novos custos e esquemas de gestão do pessoal. A Lei 55 ‑A/2010 continuou com este esquema determinando que a integração progressiva seria realizada a partir de 2011.

Uma segunda modificação extremamente polémica consistiu na adaptação da taxa contributiva a cargo do empregador de acordo com o tipo de contrato concluído. O Código Contributivo pretendeu usar estes encargos sobre o trabalho como uma forma de combater a precariedade laboral e criar incentivos para a conversão de contratos precários em con‑tratos sem termo. O art.º 55 do Código Contributivo estipula que a par‑cela da taxa a cargo do empregador sofreria um agravamento de 3% na hipótese de o empregador concluir contratos a termo ou comissões de serviço desprovidas de um contrato sem termo anterior. Em compensa‑ção, o empregador seria beneficiado com uma redução de 1% no caso dos contratos sem termo. Esta inovação – que foi objecto de uma amplíssima contestação – foi adiada para 2014 e deverá ser objecto de uma avaliação prévia da Comissão Permanente de Concertação Social, nos termos do art.º 4 do diploma preambular do Código Contributivo, de acordo com a redacção introduzida pela Lei 55 ‑A/2010.

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A preocupação de combater todas as formas de emprego precário estendeu -se às situações, muito comuns em grupos empresariais, de pres‑tação simultânea de trabalho subordinado e independente para a mesma empresa ou agrupamento empresarial. O Código Contributivo procurou penalizar esta prática ao estipular que a base de incidência contributiva para estes trabalhadores corresponderia à totalidade das remunerações auferidas a título de trabalho dependente e independente (i.e: desconsi‑derando a redução de 30% reconhecia no art.º 162, n.º 1, al.a) do Código Contributivo) e que seriam taxados como se fossem trabalhadores subordi‑nados (arts.º 129 -131 do Código Contributivo). Em síntese: para efeitos de contribuições para a Segurança Social estes trabalhadores são considera‑dos como trabalhadores subordinados independentemente da prestação de trabalho independente. O objectivo destes preceitos consiste precisamente em enquadrar estes trabalhadores na íntegra no regime dos trabalhado‑res subordinados e combater esquemas de “fuga” à relação laboral típica.

O enquadramento dos trabalhadores independentes foi ainda alvo de uma profunda reforma. O Código Contributivo eliminou a possibilidade de escolha do escalão de rendimento relevante para efeito de determina‑ção do montante das contribuições para a Segurança Social assim como a distinção entre o regime normal e alargado de cobertura. De acordo com o regime previsto no Código Contributivo, os trabalhadores independen‑tes serão oficiosamente enquadrados num escalão indexado ao índice de apoios sociais com base na sua declaração de rendimentos sendo que o rendimento relevante para o efeito seria composto por 70% do total das remunerações auferidas no ano anterior. A intenção do Código Contribu‑tivo consiste em aproximar as contribuições e a cobertura social do ren‑dimento efectivamente auferido. Por outro lado, o Código Contributivo eliminou a distinção entre o regime normal e alargado de protecção e sujeitou os trabalhadores a um regime único – coincidente com o regime alargado – assim como a uma taxa única (arts.º 162, 163 e 168 do Código Contributivo).

Por fim, o Código Contributivo criou ainda um imposto sobre as entidades contratantes dos serviços de trabalhadores independentes; na eventualidade de uma empresa optar por contratar serviços a trabalhado‑res independentes, teria que pagar um imposto de 5% sobre 70% do valor de cada serviço (arts.º 140, 167 e 168, n.º 4 do Código Contributivo). Este preceito – violentamente contestado – foi profundamente modificado pela

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Lei n.º 55 -A/2010: nos termos actualmente em vigor, a empresa que con‑tratar serviços de trabalhadores independentes apenas será abrangida pela qualidade de entidade contratante quando beneficiar de, pelo menos, 80% do valor total da actividade do trabalhador independente; a averiguação da qualidade de entidade contratante será realizada oficiosamente pelos servi‑ços da Segurança Social e, sempre que esta verificar que uma entidade se enquadra no âmbito do regime das entidades contratantes, notificará ofi‑ciosamente os serviços da Autoridade para as Condições de Trabalho ou os serviços de inspecção do Instituto de Segurança Social para que estes realizem uma acção inspectiva a fim de avaliar a existência de subordi‑nação jurídica e – concomitantemente – de uma relação de trabalho enca‑potada. Trata ‑se de um preceito manifestamente pensado para combater por via contributiva o fenómeno dos “falsos recibos verdes” e de fuga ao Direito do Trabalho. Nestes termos, na medida em que as empresas não têm a priori acesso ao volume de negócios dos trabalhadores indepen‑dentes, será de esperar um aumento exponencial das acções inspectivas e da litigância dos tribunais.

As linhas anteriores constituem apenas uma pequena síntese das modificações mais relevantes introduzidas pelo Código Contributivo, em conformidade com as alterações introduzidas pelo OE 2011.

Este curto esboço da reforma da Segurança Social em Portugal permite -nos extrair algumas conclusões preliminares: em primeiro lugar, a extensão da reforma não afectou os fundamentos do sistema de Segurança Social em virtude de continuar a ser um sistema assente fundamentalmente num esquema de PAYG (Pay ‑as ‑You ‑Go; i.e: os contribuintes actuais sus‑tentam os beneficiários) e não em capitalização;7 a grande contribuição da reforma consistiu em sintetizar o número extenso de diplomas que regula‑vam o funcionamento do sistema previdencial de Segurança Social (o que já de si constitui um esforço assinalável). Em segundo lugar, os desafios que actualmente ameaçam o sistema português foram amortizados por via de um aumento das contribuições; a expansão dos rendimentos que integram a base de incidência foi configurada para reforçar os recursos financeiros do sistema (prevendo -se um aumento anual de contribuições

7 Excluímos, como é óbvio, a actividade do Instituto de Gestão dos Fundos de Capitalização da Segurança Social em virtude de a sua actividade ser complementar ao financiamento do sistema.

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na ordem dos € 80 milhões) e contribuir para a sustentabilidade do sis‑tema como um todo. Em terceiro lugar, a expansão dos rendimentos inte‑grantes da base de incidência foi combinada com um conjunto de isen‑ções que – aparentemente – pretendem criar incentivos para a inserção de fringe benefits nas relações de trabalho e completar a acção do Estado num conjunto de áreas como a saúde, subsídios familiares e capitalismo popular. Por fim, o Código Contributivo não ignora o seu impacto no mercado de trabalho e visa influenciar activamente o funcionamento do mercado de emprego ao criar – por via parafiscal – incentivos para a con‑clusão de contratos por tempo indeterminado.

§ 4 Estratégias seguidas noutros países

Chegados a este ponto, acreditamos que seria útil referir as conclu‑sões contidas no relatório da Comissão Europeia “Labour Market and Wage Developments in Europe: 2008.” Este documento analisa a evo‑lução da regulação do mercado de trabalho no conjunto dos 27 Esta‑dos Membros. No capítulo que lida especificamente com a questão dos custos com o factor trabalho (cap. 2, pp.29 ‑64), o relatório concluiu que, em face da conjuntura de crise, os Estados Membros têm vindo a reduzir a “carga fiscal” (englobando impostos e contribuições para a Segurança Social) como um todo sobre o factor trabalho como forma de incentivar a criação de postos de trabalho e o consumo assim relançando a activi‑dade económica. Note ‑se que, apesar de a conjuntura de crise ter acele‑rado o ritmo das reformas, diversos países têm vindo a implementar uma estratégia de redução progressiva da carga fiscal sobre o trabalho. Num período de referência entre 2001 e 2008, os seguintes países reduziram a carga fiscal global sobre o trabalho nas seguintes percentagens: Bélgica ( ‑0,8%), Dinamarca ( ‑2,4%), Finlândia ( ‑2,9%), Irlanda ( ‑3,1%), Poló‑nia ( ‑3,1%), Espanha ( ‑1%) e Suécia ( ‑4,3%) (pp.51). Portugal, em con‑trapartida, aumentou em 1% a sua carga fiscal sobre o trabalho durante o mesmo período.8

8 Note -se que esta afirmação terá que ser entendida cum grano salis em virtude de ser necessário realizar uma análise casuística a fim de avaliar se a realidade Portuguesa em matéria de tributação dos rendimentos será comparável à de estes países.

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Relativamente às evoluções aguardadas durante os próximos dois anos, a Comissão Europeia prevê que os países da zona Euro com fracos índices de produtividade careçam de mercados de trabalho flexíveis para melhorar a sua performance (pp.60). Uma das formas de incentivar essa flexibilidade consiste na introdução de medidas fiscais de apoio ao mer‑cado de trabalho, em particular no que diz respeito aos custos de trabalho. Estas medidas padecem de um problema todavia: apesar de certo tipo de medidas de curto prazo, como resposta a crises, poderem ser eficazes na criação de postos de trabalho, a médio e longo prazo essas medidas anu‑lam os postos de trabalho criados (em virtude de os custos com o trabalho regressarem aos níveis anteriores) e, assim, afectarem a reestruturação do mercado de trabalho. A forma mais eficaz de promover uma política de emprego eficiente aparenta passar por uma combinação entre a redução da carga fiscal sobre o emprego e a promoção de formas flexíveis de con‑tratação como forma de encorajar a integração de pessoas no mercado de trabalho (pp.63 ‑64).

A leitura do relatório publicado pela Comissão Europeia permite ‑nos concluir que os Estados Membros têm vindo a seguir uma política estru‑tural de redução da carga fiscal (englobando os impostos e a Segurança Social) sobre o factor trabalho como uma forma de promover as contra‑tações e o uso de formas flexíveis de emprego como um incentivo para encorajar a transição de trabalhadores de sectores saturados para sectores de actividade em crescimento e demanda de mão ‑de ‑obra.

§ 5 Experiência portuguesa – panorama crítico

Uma interpretação das soluções inovadoras introduzidas pelo Código Contributivo à luz da experiência sintetizada no relatório da Comissão Europeia revela que Portugal aparenta seguir uma direcção oposta aos demais países.

Em primeiro lugar, num contexto de redução dos custos com o traba‑lho como uma forma de promoção da criação de emprego, Portugal decide aumentar os custos numa média que estipulamos, após algumas simula‑ções, em 4 valores percentuais.9 Este aumento de custos suscita várias

9 O mérito das simulações pertence inteiramente à dra. Joana Lança do Departamento de Direito Fiscal da PLMJ, Sociedade de Advogados, RL, cujo valor como fiscalista

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reservas se os enquadrarmos na situação económica internacional das empresas portuguesas. Sabemos que o sector exportador português tem a sua principal vantagem competitiva no preço do trabalho e que as margens de lucro são geralmente apertadas. Um aumento dos custos com o factor trabalho implica a redução das margens de lucro (com prejuízos a nível de I&D, formação de trabalhadores e outras medidas de investimento interno), o desencorajamento da contratação de novos trabalhadores e a sobrecarga dos trabalhadores “do quadro”, de forma a rentabilizar ao máximo a sua prestação de trabalho, com possíveis prejuízos a nível familiar e de saúde.

Em segundo lugar, o despedimento por causas objectivas continua a ter um custo elevado em Portugal em comparação com os seus congé‑neres europeus. O despedimento colectivo, por extinção de posto de tra‑balho e por inadaptação conferem ao trabalhador o direito a auferir uma indemniza ção equivalente a de um mês de remuneração base e diuturni‑dades por cada ano de antiguidade ou fracção com um mínimo de três meses (art.º 366 do Código do Trabalho).10 A situação assume contornos radicalmente distintos noutros países da União Europeia: na França, a indemnização por extinção da relação de trabalho por motivos económicos (licenciement pour motif économique) limita ‑se à quinta parte (20%) do salário mensal por cada ano de antiguidade ou fracção, à qual se junta uma indemnização de duas quinzenas de mês (13,33%) do salário por cada ano que ultrapassar 10 anos de antiguidade (arts. l1234 ‑9 e R1234 ‑2 Code du Travail);11 na Alemanha, a indemnização por despedimento por causas imperativas ligadas à empresa (dringender betrieblicher Erfordernisse) equivale a 50% do vencimento bruto mensal por cada ano de antiguidade e tem um limite máximo de 12 salários, salvo situações excepcionais (§§1a

gostariamos de salientar e a quem não podemos deixar de registar os agradecimentos. O mesmo vale para o Mestre Rogério Fernandes Ferreira, líder e dinamizador do depar‑tamento de Fiscal, cujo apoio nas simulações foi imprescindível.

10 Note ‑se que estes preceitos encontram ‑se actualmente em fase de revisão e que foram anunciadas reduções nas indemnizações e no estabelecimento de um tecto máximo de indemnização. Todavia, como as propostas encontram ‑se ainda em fase de discussão e, de acordo com as informações que têm vindo a ser veiculadas, apenas se aplicarão aos novos contratos, prevê ‑se um impacto limitado das mesmas no curto prazo.

11 “A fórmula exacta da lei é “L’indemnité de licenciement ne peut être inférieure à un cinquième de mois de salaire pour année de ancienneté, auquel s’ajoutent deux quin‑zièmes de móis par année au ‑delá de dix ans d’ancienneté – R1234 ‑2 Code du Travail”

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e 10 Kündigungsschutzgesetz); no Reino Unido, a indemnização por cau‑sas objectivas (redundancy payment) é composta por dois elementos: a indemnização base (basic award) e a indemnização complementar (com‑pensatory award): a indemnização base depende da idade do trabalhador mas oscila entre 1,5 semanas de salário no caso de trabalhadores acima de 41 anos de idade, 1 semana no caso de trabalhadores entre 22 e 41 anos e 0,5 semanas no caso de trabalhadores abaixo de 22 anos de idade; note--se que a lei fixa salário semanal relevante num máximo de £380 pelo que esta indemnização terá o limite máximo de £11.400 (s.162(2) Employment Rights Act 1996); além desta indemnização base, o trabalhador terá direito a uma indemnização complementar calculada com base nos danos pura‑mente económicos derivados do despedimento nos quais se incluem os salários futuros, fringe benefits, dificuldades em arranjar outro emprego e prejuízo nas pensões; esta compensação encontra -se, todavia, sujeita a um máximo legal de §65.300 (s.123 Employment Rights Act 1996). Note‑-se que, em qualquer um destes países, é admissível um acordo acima dos limites legais. A Itália constitui um caso particular na medida em que os custos dos despedimentos colectivos são assumidos na íntegra pelo Estado por via do Istituto Nazionale della Previdenza Sociale, em particular pelo fundo de recuperação de salários (Cassa Integrazione Guadagni).

Esta pequena enunciação das indemnizações por despedimento por causas objectivas em alguns países da União Europeia revela que estes países consagram indemnizações consideravelmente mais baixas do que as praticadas em Portugal, o que não desencoraja a contratação de trabalha‑dores subordinados em virtude de ser relativamente mais acessível cortar custos. Todavia, devemos salientar que a generalidade destes países impõe um processo de negociação do despedimento por causas objectivas parti‑cularmente oneroso e detalhado de forma a desencorajar o recurso aos des‑pedimentos e criar incentivos pela busca de alternativas. O caso Português assume contornos singulares nesta matéria em virtude de o procedimento, em termos estritamente formais, ser anormalmente leve. De acordo com a maioria dos autores, a legislação Portuguesa torna mais difícil despedir um trabalhador por justa causa subjectiva (vulgo: mau comportamento) do que 100 trabalhadores por motivos económicos.12 A barreira aos despedimen‑tos reside unicamente no custo da operação, o que desencoraja a busca de

12 Gomes, J. (2007), Direito do Trabalho – relações individuais, Coimbra Editora.

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alternativas por ambas as partes e transforma o procedimento de negocia‑ção numa pura ficção e limita -o à negociação do valor das indemnizações.

Em terceiro lugar, as medidas de redução de custos com o trabalho têm assumido uma natureza sobretudo transitória, como reduções tem‑porárias de contribuições em períodos de crise económica. Estas medi‑das foram severamente reprovadas no Relatório da Comissão Europeia referida acima em virtude de esgotarem os seus efeitos no curto prazo: as medidas caducam nas alturas de retoma da actividade económica e os custos com o trabalho regressam aos níveis anteriores com prejuízos na reestruturação do mercado de trabalho.

Em quarto lugar, temos diversas dificuldades em compreender o combate à contratação a termo erigida no Código Contributivo. Os limi‑tes da contratação a termo encontram -se regulados a nível comunitário na Directiva 99/70 que atribuiu ao Estados um leque de escolhas de forma a evitar abusos nestes contratos. O legislador português implementou no ordenamento nacional todos os limites reconhecidos na Directiva (tempo‑rais, causais e de renovações) pelo que Portugal exibe um regime razoa-velmente contido de contratação a termo. O objectivo da contratação a termo consiste precisamente em servir de mecanismo de entrada no mer‑cado de trabalho e de combate ao falso trabalho independente uma vez que o empregador poderá pôr fim à relação de trabalho a um custo conside‑ravelmente mais baixo na eventualidade de a colaboração do trabalhador deixar de ser necessária, o trabalhador poderá auferir subsídio de desem‑prego se preencher os períodos de contribuição necessários e o contrato converter -se -á em contrato por tempo indeterminado se a permanência do trabalhador ultrapassar os limites legais. Trata ‑se de uma solução de com‑promisso que teve um papel relevante no combate ao falso trabalho inde‑pendente: o Livro Verde para as Relações Laborais revela que o volume da contratação a termo subiu consideravelmente ao passo que o volume de contratos por tempo indeterminado manteve -se constante; podemos con‑cluir que a contratação a termo serviu como forma de regularização do “falso trabalho independente” e assume o papel de um importante instru‑mento de estabilização das relações laborais.13

A guerra declarada à contratação a termo corre o risco de desvirtuar os sucessos da reforma e de regressar com o mercado de trabalho aos

13 Livro Verde sobre as Relações Laborais (2006), Ministério do Trabalho e da Segurança Social.

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níveis anteriores a 2003. A penalização da contratação a termo vai desen‑corajar a celebração destes contratos; as possibilidades de “estabilização progressiva” da relação laboral ficam proibitivamente caras. A resposta reside no “falso trabalho independente” que representa um custo muito menor para o empregador (a manter ‑se a regulação suspensa, reduz ‑se a um imposto de 5% sobre 70% do valor de cada factura e apenas quando ultrapassar 80% do volume de negócios do trabalhador independente, cifra facilmente contornável) e passa o encargo para o trabalhador que ficará numa posição delicada: a taxa contributiva será substancialmente maior, o âmbito de protecção será reduzido e vai dificultar a entrada de segmen‑tos desfavorecidos no mercado de trabalho. A notificação obrigatória dos serviços da Autoridade da Inspecção de Trabalho para averiguação da conformidade da situação com a lei laboral poderá eventualmente amor‑tizar a situação e criar incentivos para a regularização da situação embora tenhamos dúvidas sobre a eficácia destas medidas. A saída mais provável passará pela constituição de sociedades unipessoais pelos trabalhadores independentes e pela prestação de serviços ao abrigo dessas pessoas jurí‑dicas, de forma a escapar ao regime (bastante oneroso) dos trabalhadores independentes assim como ao controlo das entidades com competência inspectiva na área. Cremos que esta solução de penalização da contratação a termo deve ser fortemente censurada em virtude de penalizar os objec‑tivos da Directiva 99/70 e do Código de Trabalho de utilização da con‑tratação a termo como uma forma de estabilização progressiva das rela‑ções laborais; por outro lado, vai contra as recomendações da Comissão do uso de formas flexíveis de contratação como mecanismo de entrada no mercado de trabalho, uma vez que retira aos trabalhadores a possibilidade de obter uma “estabilização progressiva” das suas relações laborais e de aceder a certos benefícios sociais – maxime: subsídio de desemprego.14 Resta aguardar pelas conclusões da Comissão competente na matéria para avaliar a idoneidade da medida em causa.

Em suma, num contexto em que a generalidade dos países europeus tem vindo a reduzir a carga fiscal sobre o trabalho e a promover formas flexíveis de contratação como forma de entrada de trabalhadores no mer‑cado de trabalho, Portugal aumenta os custos com os trabalhadores e tenta

14 Comissão Europeia (2007) Flexicurity Pathways – turning hurdles into step‑ping stones – Report by the European Expert Group on Flexicurity disponível em http://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=117&langId=en.

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promover a todo o custo a contratação por tempo indeterminado num país onde o despedimento por causas objectivas permanece caro – em com‑paração com alguns países da Europa comunitária – e o quadro legal não permite uma grande margem de manobra nem cria incentivos para nego‑ciar alternativas ao despedimento. Por outro lado, as medidas de redução dos custos sobre o trabalho assumem uma natureza fundamentalmente transitória como uma resposta temporária às situações de crise, o que vem anular a reestruturação do mercado de trabalho nas alturas de recuperação económica, em virtude de os custos regressarem aos níveis anteriores. Por fim, o combate cerrado à contratação a termo arrisca redundar em resul‑tados contraproducentes uma vez que vai retirar à contratação a termo a sua dimensão de mecanismo de “estabilização progressiva” das relações laborais e criar incentivos para a esquemas de fuga às leis laborais, com consequências sociais negativíssimas.

§ 6 Tendências actuais e comparação com o Código Contributivo

O sistema de Segurança Social Português não é o único a passar por dificuldades e a carecer de uma reforma. Praticamente todos os países Euro‑peus têm vindo a implementar reestruturações com graus variáveis de pro‑fundidade dos seus sistemas nacionais de Segurança Social. Estas reorga‑nizações poderão ser reconduzidas a duas grandes tendências que passam por: (1) uma diversificação das fontes de financiamento e (2) a privati zação parcial do sistema.15

Diversificação das fontes de financiamento

Num contexto económico caracterizado por um desemprego elevado e uma forte concorrência externa, a tendência tem sido a de evitar o cres‑cimento dos custos com a mão -de -obra. Em diversos Estados Membros, a parte das quotizações patronais no conjunto dos recursos da Segurança

15 Dupeyroux, J.J. et allii (2008), “Droit de la Sécurité Sociale”, 16ª edição, Dalloz, pp.57 ‑59.

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Social reduziu -se significativamente nos últimos anos em benefício de outras formas de receitas: impostos gerais e taxas especiais.

Os Estados Membros cujo sistema de Segurança Social assenta sobre‑tudo no “mutualismo” preferiram diversificar as fontes de financiamento do sistema por via da distinção entre “receitas contributivas” e “receitas de solidariedade”: as primeiras seriam financiadas pelas contribuições dos beneficiários do sistema e encontrar -se -iam ligadas aos rendimen‑tos dos beneficiários; as segundas seriam financiadas pelo dinheiro dos impostos e seriam independentes dos vencimentos dos respectivos reci‑pientes – como prestações familiares. Esta tendência revela -se particular‑mente visível nos países escandinavos: a Segurança Social nestes países foi sempre tradicionalmente financiada pelo dinheiro dos impostos; nos últimos anos, estes países têm vindo a expandir as fontes contributivas do sistema de forma a estabelecer uma ligação mais estreita (quase sina‑lagmática) entre as contribuições e o direito às prestações, o que permite racionalizar os benefícios de acordo com as contribuições e necessidades dos recipientes.

O resultado final destas reformas redunda em dois elementos: em primeiro lugar, o peso do financiamento da Segurança Social tem sido progressivamente transferido dos empregadores para os assalariados; as seguintes palavras de Katia Julienne e Michele Lelièvre ilustram bem a dimensão da evolução:

A evolução mais significativa durante este período consiste numa baixa das contribuições a cargo dos empregadores no âmbito das con‑tribuições para a Segurança Social. Em 1980, os empregadores eram os principais contribuintes do sistema chegando aos 70% no Reino Unido e na França e 81% na Dinamarca. Entre 1980 e 1990, o finan‑ciamento da parte dos empregadores diminuiu nestes três Estados: no Reino Unido passou de 70% para 51%; na Dinamarca passou de 81% para 60% e na França de 70% a 64%.

Esta diminuição explica ‑se pela vontade de baixar o custo do trabalho; isto é significativo na Dinamarca onde as contribuições a cargo da entidade patronal eram substancialmente menores do que no Reino Unido e sobretudo na França. Em contrapartida, a diminuição é muito menos substancial na França (...) ainda que, paradoxalmente,

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a protecção social neste país seja maioritariamente financiada pelas contribuições incidentes sobre os rendimentos profissionais.16

Esta diversificação das fontes de financiamento foi efectuada sobre‑tudo por via da afectação das receitas fiscais ao orçamento da Segurança Social. Esta tendência foi nítida sobretudo na França, um país onde a par‑cela das receitas fiscais no orçamento da Segurança Social passou de 17% a 30% entre 1990 e 2001. A França criou dois novos impostos intitula‑dos contribuição social generalizada (CSG) em 1991, aumentando pro‑gressivamente a sua taxa, e contribuição ao reembolso da dívida social (CRDS) em 1996. Isto permitiu uma “fiscalização progressiva” do finan‑ciamento da Segurança Social com a consequente redução das contribui‑ções de empregadores e trabalhadores. O Reino Unido optou por elevar fortemente a sua taxa de IVA (que passou de 11,8% em 1979 a 18,2% em 2000) e afectar a diferença de taxas ao financiamento da Segurança Social ao mesmo tempo que diminuiu o montante das contribuições dos empregadores. A Dinamarca optou por criar diversas taxas ecológicas destinadas ao financiamento do seu generoso sistema social e uma con‑tribuição sobre a massa salarial de 5% suportada pelos trabalhadores e 0,3% suportada pelos empregadores: estas contribuições de empregadores e trabalhadores são afectadas a um fundo gerido pelo estado integrado no sistema complementar de Segurança Social.

Privatização do sistema

Uma via alternativa ou complementar de reforma dos sistemas tem passado pela progressiva privatização dos mesmos. A expressão “privati‑zação da Segurança Social” pretende designar a progressiva participação de privados no aparelho de protecção social muito embora as modalida‑des de intervenção variem consideravelmente.

A expressão “privatização” geralmente designa a deslocação da cobertura de certos riscos assumidos pelo Estado para o indivíduo ou

16 Julienne, K. e Michèle Lelièvre (2004), “L’évolution du financement de la protection sociale à l’aune des experiences britannique, française et danoise”, in RFAS, n.º3, pp.89 -111. (tradução a cargo do autor).

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empregador; trata -se de uma forma de externalização da responsabilidade por certos riscos sociais do aparelho estadual para os privados. O caso mais flagrante de uma privatização desta natureza ocorreu com os “aci‑dentes de trabalho” que são actualmente cobertos por via de um seguro obrigatório; na Itália muitos autores defendem uma solução idêntica à Portuguesa com a privatização do Istituto Nazionale per l’Assicurazione contro gli Infortuni sul Lavoro e abertura do mercado dos seguros por aci‑dente de trabalho às seguradoras privadas. Esta tendência de privatização fez nascer um mercado para seguradoras privadas que alargaram progres‑sivamente o leque de riscos segurados assumindo parte das funções do Estado. Este mercado foi, aliás, activamente promovido pelo Estado por via da estimulação da concorrência entre as seguradoras e a atribuição de benefícios de diversa ordem aos subscritores destes seguros: esperava -se que a concorrência entre privados melhorasse a cobertura anteriormente assegurada pelo monopólio estatal.

Em alternativa, “privatização” pode designar a intervenção do sec‑tor privado na organização e funcionamento do sistema de Segurança Social que, em alguns países, tem vindo progressivamente a incorporar actores da sociedade civil a fim de identificar os grupos mais carenciados de apoio e aplicar de uma forma socialmente mais eficiente os recursos do sistema. Trata -se de uma forma de “auto ‑responsabilização” dos bene‑ficiários da Segurança Social pela gestão do sistema. Os países nórdicos representam o caso paradigmático de uma “co ‑gestão” dos sistemas de Segurança Social na medida em que os fundos destinados à cobertura dos riscos sociais são geridos conjuntamente entre o Estado e as associações sindicais. Uma modalidade mais radical deste sistema consiste no cha‑mado “sistema de Ghent” mediante o qual os sindicatos têm a responsa‑bilidade da gestão dos fundos da Segurança Social e o governo limita ‑se a uma função reguladora ou de atribuição de subsídios.

Uma aplicação mais extrema do conceito consiste na transferência da cobertura dos riscos sociais para a esfera privada limitando a cobertura pública ao fornecimento de um mínimo para os mais carenciados. Neste sistema, o público limitar -se -ia a proporcionar uma protecção mínima idêntica para todos os cidadãos (tendencialmente financiada pelos impos‑tos) e o sector privado destinar ‑se ‑ia a cobrir o restante por via de fundos de pensões privados. Este movimento é particularmente visível nos paí‑ses em que o sistema de saúde e de pensões é totalmente público pois a

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privatização do sistema destinar ‑se ‑ia a (1) limitar as despesas públicas, (2) criar um regime concorrencial no âmbito das seguradoras de forma a melhorar as coberturas e (3) tornar os indivíduos mais responsáveis pela sua protecção. A França criou a partir de 1997 bastantes incentivos para a criação de “fundos poupança reforma” instituídos por via de convenção colectiva de trabalho: estes fundos consistem numa afectação obrigatória de uma parte dos lucros da empresa a um fundo de investimento constitu‑ído ou contratado pelo empregador e sindicato que terá a responsabilidade de gerir o fundo e distribuir posteriormente a soma (com os lucros) aos trabalhadores; o montante devido a cada trabalhador poderá integrar uma caixa de poupança -reforma à escolha do trabalhador.17 O Reino Unido tem vindo progressivamente a transferir a responsabilidade pelas pensões dos salários médios e altos para as seguradoras por via da obrigatoriedade de constituição de fundos de pensões. O caso do Reino Unido é particu‑larmente interessante com a reforma do sistema de pensões implemen‑tada em 2007 e 2008. De acordo com a reforma, todos os trabalhadores serão obrigatoriamente inscritos num fundo de pensões constituído pelo empregador, noutro fundo à sua escolha ou num fundo gerido pelo Estado (intitulado NEST – National Employee Savings Trust) para o qual terá que contribuir com 7% do salário do trabalhador (3% a cargo do empregador e 4% a cargo do trabalhador). A pensão estadual será financiada por via dos impostos e limitar -se -á a atribuir um mínimo a todos os cidadãos que será complementado pelos fundos privados. Os principais beneficiários do NEST serão os trabalhadores com salários mais baixos ou moderados.18 A Itália tem ainda criado diversos incentivos para o desenvolvimento do seu sistema complementar de Segurança Social nomeadamente por via de fundos instituídos pela empresa.19

17 A experiência francesa revela -se de um enorme interesse nesta matéria em virtude de o próprio legislador ter promovido no Code du Travail estes mecanismos de aforro. Vide os plans d’épargne d’entreprise previstos no L.3332 ‑1 e seguintes do Code du Travail.

18 Para mais informações sobre o tema, vide http://www.padeliveryauthority.org.uk/index.asp.

19 Giubboni, S. (2007), “Individuale e colletivo nella nuova previdenza comple‑mentare” W.P C.S.D.L.E “Massimo D’Antona” n.º 62/2007.

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Comparação com o Código Contributivo

As soluções previstas no Código Contributivo apenas timidamente têm acompanhado os movimentos de reforma da Segurança Social nos outros países.

No que diz respeito às fontes de financiamento, o Código Contri‑butivo manteve -se fiel ao princípio enunciado no art.º 54 da Lei de Bases da Segurança Social de acordo com o qual o sistema deverá ser “tenden‑cialmente auto ‑financiado” e pretendeu reforçar a sua componente de autonomia em detrimento da componente dos impostos. O legislador pre‑tendeu claramente reforçar a componente contributiva no financiamento do sistema por via (1) do aumento das contribuições dos empregadores e trabalhadores subordinados (sobretudo por via do alargamento da base de incidência e modulação da taxa contributiva de acordo com o tipo de contrato celebrado), (2) pela indexação da contribuição dos trabalhadores independentes aos seus rendimentos reais (eliminando o direito de esco‑lha) e (3) por via da criação de um imposto de 5% suportado pela entidade contratante sobre 70% dos vencimentos dos trabalhadores independen‑tes. Neste sentido, serão os próprios beneficiários do sistema a suportar os encargos acrescidos do mesmo com consequências potencialmente nega‑tivas sobre a criação de emprego. Vimos acima que os demais países que têm sistemas assentes em bases mutualistas têm vindo a prosseguir uma via alternativa por via do reforço da componente não contributiva do sis‑tema de forma a aliviar a dependência das contribuições (sobretudo aquelas a cargo da entidade patronal, a fim de não desencorajar a contratação de trabalhadores). Portugal aparenta seguir a direcção oposta: perguntamo--nos se não seria viável aligeirar o esforço contributivo dos beneficiários e reforçar a componente não ‑contributiva do sistema por via da afectação das receitas de alguns impostos (e.g: imposto sobre o tabaco) ou por via da criação de um imposto especial afectado ao financiamento da Segu‑rança Social (como ocorreu na Dinamarca com os impostos ecológicos)?

No que diz respeito à privatização do sistema, o Código Contribu‑tivo deu alguns passos tímidos nesse sentido. O diploma permite que as contribuições do empregador para instrumentos financeiros de protecção complementar do trabalhador (como fundos de pensões, seguros do ramo vida, entre outros) se encontrem isentos da base da incidência desde que o trabalhador não receba os montantes em causa antes da verificação dos

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condicionalismos legalmente previstos (ou seja: desde que o trabalhador não receba o dinheiro da pensão antes da passagem à situação de pensio‑nista e semelhantes – art.º 46, n.º 2, al.x) Código Contributivo). “Priva‑tização”, no contexto português da Segurança Social, significa, assim, a criação de incentivos para a externalização de parte da cobertura social mediante a isenção dessas desses benefícios da base de incidência e imputação como custo fiscal assim complementando a acção do Estado. Este complemento fica, todavia, muito aquém do que foi realizado nou‑tros países: destina -se meramente a conferir incentivos para a constituição de um benefício complementar destinado a cobrir algumas insuficiências do Estado embora não substitua uma grande parcela estadual neste domí‑nio. Por outro lado, cremos que apenas se encontrará acessível a empresas que disponham dos fundos necessários para realizar esse benefício social para os trabalhadores.

Nestes termos, o contexto geral Europeu tem vindo a orientar -se pela redução dos custos das entidades patronais sobre o factor trabalho, pelo reforço da componente fiscal do financiamento da Segurança Social e pela externalização de alguns riscos sociais para o sector privado de forma que a concorrência estimule a melhoria das coberturas; Portugal optou por reforçar a componente contributiva do sistema por via do aumento das contribuições, de um novo imposto sobre o trabalho independente e limita muito o papel do sector privado ao reconhecer a possibilidade de comple‑mentar marginalmente a protecção proporcionada pelo Estado mas nunca assumindo um papel substancial na cobertura dos riscos sociais. O sistema mantém ‑se de base Estadual, globalmente contributivo, mais oneroso para o empregador e com pouca margem de manobra para o sector privado.

§ 8 Conclusões

(1) O Código Contributivo manteve -se fiel ao princípio exposto no art.º 54 LBSS, de acordo com o qual o sistema deve ser fundamental‑mente auto financiado, e lidou com as dificuldades financeiras do siste‑mas por via de um reforço da base contributiva. Esse reforço foi realizado essencialmente por via da ampliação da base de incidência e da criação de um novo imposto sobre o trabalho independente. A estratégia seguida noutros países, cujo sistema assenta numa base mutualista, foi radical‑mente distinta uma vez que têm vindo a reforçar a componente pública

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de financiamento pelas receitas dos impostos – sobretudo pela criação de impostos destinados especificamente ao financiamento da Segurança Social. Em Portugal, a diversificação das fontes de financiamento é estri‑tamente complementar e marginal.

(2) Esta estratégia vem aumentar os custos das empresas com os trabalhadores numa média que ciframos em 4%. Os demais países da UE têm vindo a prosseguir estratégias radicalmente distintas de redução dos custos das empresas com o trabalho como uma forma de encorajar a contratação de trabalhadores e dinamizar os mercados de trabalho numa época em que o crescimento económico coexiste com elevados níveis de desemprego. Em Portugal, esta diminuição dos custos das empresas com o trabalho tem assumido uma dimensão fundamentalmente transitória em alturas de crise económica; os custos regressam aos níveis anteriores em alturas de crescimento, o que vai anular os postos de trabalho criados.

(3) O combate à contratação a termo deve ser reprovada em toda a linha. A contratação a termo cumpre o propósito de combater o falso traba‑lho independente e de integração de segmentos com maiores dificuldades de inserção no mercado de trabalho, oferecendo ‑lhes uma oportunidade de “estabilização progressiva” da sua relação laboral. O agravamento intro‑duzido pelo Código Contributivo representa um retrocesso uma vez que, atendendo aos custos elevados com o despedimento por causas objectivas, os empregadores tenderão a fugir para o falso trabalho independente. A norma introduzida pelo OE2011, que suspendeu esta medida e sujeitou a sua implementação a uma avaliação prévia da Comissão Permanente para a Concertação Social, deverá ser elogiada.

(4) As tendências actuais em matéria de Segurança Social nos demais países têm passado por uma diversificação das fontes de financiamento e a privatização do sistema por via da deslocação da cobertura de alguns riscos sociais para o sector privado. Relativamente à diversificação, vimos que a mesma não ocorreu em Portugal, em virtude de o legislador ter optado pelo reforço da componente retributiva; a respeito da privati‑zação, os incentivos e a margem de manobra para a mesma – por via de instrumentos financeiros, planos de acções, entre outros – são mínimos uma vez que a sua cobertura é meramente complementar e subsidiária em relação à cobertura pública e ter geralmente uma expressão reduzida. A tendência noutros países tem sido precisamente a inversa uma vez que os incentivos para a privatização do sistema – sobretudo por via de fun‑dos de pensões – são cada vez maiores.

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João Feliz Pinto Nogueira

A Dupla Residência Fiscal de Pessoas SingularesEnquadramento da questão nos planos interno,

europeu e internacional à luz da recente orientaçãodo Supremo Tribunal Administrativo

* O autor agradece o envio de comentários ou sugestões para [email protected].

João Félix Pinto Nogueira*

Investigador Pós -Doutoral no Instituto de Direito Fiscal Austríacoe Internacional (“Institut für Österreichisches und Internationales

Steuerrecht”) da Wirtschaftsuniversität Wienem Viena de Áustria

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RESUMO:

Este estudo surge na sequência de uma linha jurisprudencial do STA na qual se con‑sidera ilegal a norma presente no art. 16º, n.º 2 do CIRS por violação do conceito autó‑nomo convencional de residência. Partindo de um enquadramento da questão da dupla residência nos planos interno, europeu e internacional, o autor expõe os vícios e inconve‑nientes que a referida orientação encerra, formulando algumas sugestões que permitiriam obviar os problemas identificados.

Palavras chave:Dupla residência fiscalResidência por dependênciaConvenções em matéria de dupla tributação

ABSTRACT:

This study comes in the aftermath of a stable set of cases of the STA, which considers as illegal the rule present in art. 16º, n.º 2 of the “CIRS” due to the infringement of the autonomous concept of residence enshrined in the DTC’s. Based on a comprehensive analysis of the dual residence of individuals in both internal, european and international dimension, the author illustrates some of the deficits and inconveniences of that line of reasoning, suggesting some solutions that could help to overcome the identified problems.

Keywords:Dual residenceDeemed residence of individualsDouble tax conventions

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1. Introdução

A delimitação dos poderes tributários entre os Estados terá sido, muito provavelmente, a primeira questão tributária com relevância no plano internacional. E não deixa de ser curioso notar que o referido tema conti‑nua a suscitar um forte interesse nos âmbitos jurisprudencial e académico.

No momento actual, a residência apresenta ‑se como o factor deter‑minante para definir o se e a medida em que um determinado sujeito fica submetido à soberania tributária de um Estado1. Assim, os “residentes” são normalmente tributados com base no seu rendimento mundial (“worldwide taxation” – “full tax liabilty”/“unbeschränkte Steuerpflicht”) ao passo que os “não residentes” são apenas tributados pelo rendimento obtido no ter‑ritório do Estado (“source taxation” – “limited tax liability”/“beschränkte Steuerpflicht”)2.

Uma das questões mais debatidas ao nível internacional é a da elimina‑ção das situações de dupla tributação internacional, isto é, dos casos em que dois (ou mais) Estados manifestam a sua pretensão de exercer a sua sobera‑nia tributária sobre a mesma parcela de rendimento, em relação ao mesmo sujeito, ao mesmo exercício fiscal e em relação a um imposto similar3.

Tal problema emerge, por exemplo, quando um sujeito residente num Estado, obtém (cumulativa ou exclusivamente) rendimentos com fonte noutro Estado4. A verificação simultânea e cumulativa, em relação a uma

1 Os Estados Unidos da América, ao tributar o rendimento mundial dos seus nacio‑nais, constituem -se como uma das poucas excepções a este binómio. Sobre o tema vide Thuronyi, V., Comparative Tax Law, Kluwer Law International, 2003, p. 290. Classifi‑cando esta singularidade como um anacronismo que deveria ser abandonado vide Avi‑‑Yonah, R., “The Case Against Taxing Citizens”, Tax Notes International, 12 de Maio de 2010, p. 91 et seq..

2 De acordo com deAn esta forma de exercício da soberania tributária assenta no postulado de Locke, de acordo com o qual os governos adquirem um direito a tributar quando criam os serviços que fornecem as condições para que o rendimento seja gerado – vide Dean, s., “more Cooperation, Less Uniformity: Tax Deharmonization and the Future of the International Tax Regime”, Tulane Law Review, vol. 84, p. 144, n.r. 79.

3 Vide, por todos, Pires, M., Da Dupla Tributação Jurídica Internacional sobre o Rendimento, Lisboa, Centro de Estudos Fiscais, 1984.

4 Porque neste último realizou algum trabalho ou serviço, ou simplesmente porque nele detém uma carteira de investimentos da qual deriva rendimentos. Nos comentários à Convenção Modelo destinada à eliminação da dupla tributação internacional da Organi‑

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mesma parcela do rendimento, dos factores de conexão “fonte” e “residên‑cia” faz com que dois Estados apresentem uma pretensão válida de tributar.

O fenómeno pode ainda emergir quando mais do que um Estado afirma a sua soberania tributária com base no mesmo critério. Isto pode ter origem tanto ao nível factual como ao nível normativo. Simplificando, a um nível meramente factual encontraremos os casos em que dois Esta‑dos coincidem no que tange à fórmula de um dado critério de conexão – como por exemplo a residência (v.g. será residente aquele que se encon‑trar no respectivo território nacional por mais de 183 dias) mas discordam em relação ao território no qual esse facto se terá por verificado. Num plano normativo encontraremos os casos em que se recorre a um mesmo critério de conexão, mas este é definido de modo distinto nos diversos Estados pelo que, mesmo não existindo qualquer dúvida sobre a situação fáctica do sujeito, este preenche de forma cumulativa a fattispecie de que depende a sua qualificação como residente em mais do que um Estado (“dual ‑residence”)5. Esta última situação ocorre com cada vez mais fre‑quência dado que os Estados tendem a recorrer, interna e unilateralmente, um elenco relativamente alargado de “factos e circunstâncias” que atri‑buem o status de residente (como a presença durante um certo número de dias, seguidos ou interpolados, no território do Estado; a disposição de uma residência habitual, etc)6.

zação para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – “OECD Model Tax Conven‑tion on Income and on Capital 2010” - (doravante CM OCDE), cuja última versão data de 22 de Junho de 2010, a dupla tributação internacional é definida como a “imposition of comparable taxes in two (or more) States on the same taxpayer in respect of the same subject matter and for identical periods”.

5 O glossário do International Bureau for Fiscal Documentation (em diante, IBFD) explica que esta dupla residência ocorre quando: “two taxing jurisdictions adopt different, overlapping criteria for determining liability to tax on worldwide income (typically as regards residence status), such as, in the case of companies, the place of incorporation and the place of management. Where in a particular case these criteria overlap, i.e. are both satisfied, such as where the taxpayer is incorporated in the jurisdiction applying the incorporation test and managed in the other jurisdiction, the taxpayer will be regarded as dual resident and taxable on its worldwide income by both jurisdictions”.

6 Com a utilização de critérios amplíssimos – e que facilitam a existência de casos de sobreposição. Neste sentido vide Pires, M., International Juridical Double Taxation of Income, Deventer, Kluwer, 1989 ou Avery Jones, J.F. et all, “Dual Residence of Individuals. The Meaning of the Expresions in the OECD Model Convention”, British Tax Review, 1981, vol. 1, pp. 15 et seq..

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Ao passo que os primeiros conflitos se situam num domínio fáctico, pelo que a sua resolução passará inelutavelmente pelo domínio da prova; os segundos dependem da forma como os Estados decidem definir os limi‑tes normativos da sua soberania tributária7.

A resolução deste último perfil de conflitos tem vindo a ser feita atra‑vés das regras de desempate (“tie ‑break rules”) inseridas em convenções tributárias de índole bilateral ou multilateral. Com as mesmas pretende -se atribuir o poder de tributar a título de Estado de residente ao Estado que apresente laços mais próximos com o sujeito em questão8.

Tais regras são normalmente incorporadas nas convenções bilaterais em matéria de eliminação ou mitigação da dupla tributação internacional (doravante CDT’s). No que respeita aos problemas de dupla residência das pessoas singulares, as regras de desempate das convenções celebradas por Portugal seguem, de perto, o fraseado do art. 4º, nº 2 da Convenção Modelo da OCDE (de seguida CM OCDE) e, quanto às pessoas colecti‑vas, o do n.º 3 do mesmo inciso.

Muito recentemente, e no âmbito da jurisprudência portuguesa, consolidou -se um novo entendimento quanto à resolução deste perfil de conflitos. Esta é conseguida não a partir da aplicação das referidas regras de desempate, mas a partir do n.º 1 do referido artigo, mais exactamente a partir de uma re -leitura do conceito de “residente”.

Apesar de saudarmos a referida linha de jurisprudencial pela forma particularmente clara, sintética e compreensiva como fundamenta as con‑clusões, somos da opinião de que a mesma deve ser revisitada uma vez que o “entendimento jurisprudencial” assenta em pressupostos não consentâneos

7 Note -se que os conflitos de dupla tributação existem e emergem sem que haja, em si, uma violação do direito tributário internacional – nem sequer no que se reporta às suas regras consuetudinárias – Cfr. Kofler, G., Doppelbesteuerungsabkommen und Europäisches Gemeinschaftsrecht (Linz, Habilitationsschrift, 2006), p. 50 e Hofstätter, M. “Who is competent to Issue Measures for the Elimination of Double Taxation within the Community, in: Lang, M., Schuch, J. e Staringer, C. (eds.), Tax Treaty Law and EC Law, Schriftenreihe zum Internationalen Steuerrecht, vol. 46, Viena, Linde, 2007, p. 27.

8 Huemer, E., Die unbeschränkte Steuerpflicht natürlicher Personen. Innerstaatliches Recht und Doppelbesteuerungsabkommen, Viena, Linde, 1996, p. 118 e Makovníková, S., “Permanent Home as a Tie -break criterion”, in: Hofstätter, M. and Plansky, P. (eds.) Dual Residence in Tax Treaty and EC Law, Series on International Tax Law, vol. 60, Viena, Linde, 2009, p. 20.

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com o direito fiscal internacional contemporâneo. Por outro lado a mesma pode levar a vários inconvenientes heurísticos, caso seja seguida em situações que suscitam a aplicação do mesmo “rationale” de actuação.

Através do presente estudo pretendemos fazer uma análise crítica e compreensiva deste posicionamento jurisprudencial, apresentando a nossa visão sobre o modo como o litígio deveria ter sido resolvido e a forma como, tanto ao nível doutrinal como jurisprudencial se devem dirimir os casos de “dual ‑residence”.

No sentido de alcançar o objectivo acima proposto começaremos por uma apresentação clara e sucinta dos acórdãos que levaram à referida consolidação jurisprudencial. Em segundo lugar passaremos em revista o modo como tradicionalmente, na esfera interna, europeia e internacio‑nal, se equacionam as questões da dupla residência de pessoas singula‑res. Posteriormente atentaremos aos pontos centrais da argumentação jurisprudencial, assinalando: i) o modo como, em nosso entender, o lití‑gio poderia ter sido enquadrado; ii) os défices metodológicos da referida orientação; iii) os consequências perniciosas que podem emergir da apli‑cação da referida orientação a situações futuras. Terminaremos com as necessárias conclusões.

2. A orientação jurisprudencial em causa

2.1. Enquadramento geral

A linha de raciocínio jurisprudencial que suscita o presente estudo encontra -se exposta em quatro acórdãos da segunda secção do Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA): i) o acórdão de 25 de Março de 2009, no processo 68/989; ii) o acórdão de 08 de Julho de 2009, no processo 382/0910; iii) o acórdão de 8 de Setembro de 2010, no processo

9 Com o número convencional JSTA00065617 e que teve como juiz ‑relator a Con‑selheira Isabel Marques da Silva. Este primeiro caso foi objecto de tradução, pela própria juiza -conselheira, e de publicação como “A vs Portuguese Treasury”, nos International Tax Law Reports, vol. 11, n.º 6, 2009, pp. 1001 et seq..

10 Com o número convencional JSTA000P10722 e que teve como juiz ‑relator o Conselheiro Jorge de Sousa. Publicado em Diário da República, de 30 de Novembro de 2009, apêndice “Supremo Tribunal Administrativo/Decisões proferidas pela 2ª Secção

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461/201011. Todos os acórdãos se referem a uma mesma constelação fác‑tica (trata ‑se do mesmo casal, com fontes de rendimento idênticas e per‑manências territoriais idênticas) excepto no que se refere ao ano fiscal em questão12. Mais recentemente, foi emitido o acórdão de 27 de Outubro de 201013 que, apesar de não se referir ao mesmo agregado familiar, apre‑senta um circunstancialismo fáctico similar e segue a mesma orientação. Apesar de terem sido decididos por quatro Juízes Conselheiros distintos, a linha de orientação seguida é, nos seus traços gerais, idêntica e segue a primeira das decisões.

Neste segmento centraremos a nossa análise no exame dessa linha jurisprudencial. Nesse sentido, procederemos a um breve enquadramento fáctico, normativo e contextual do litígio, assim como este se apresentou perante o Supremo. Por último atentaremos à decisão, colocando em destaque os argumentos apresentados para a sua fundamentação.

2.2. Enquadramento fáctico

O sujeito em questão (“A”), nacional português, vive em território alemão há mais de três décadas14. Nos exercícios fiscais em apreço viveu nesse território, vindo a Portugal apenas durante as férias de verão. Nesse período obteve rendimentos do trabalho dependente na Alemanha e aí foi sujeito a tributação sobre o rendimento.

O sujeito é casado (com “B”) e tem um filho (“C”), ambos a viver em território português15. A esposa era doméstica, não auferindo qualquer

(Contencioso Tributário)/Decisões em Subsecção em matéria de contencioso tributário geral durante o 3º trimestre de 2009”, pp.1155 et seq..

11 Com o número convencional JSTA000P12072 e que teve por juiz ‑relator o Con‑selheiro Jorge Lino.

12 Respectivamente aos exercícios fiscais de 1997, 1999 e 1998.13 Com o número convencional JSTA000P12282 e que teve como juiz ‑relator a

Conselheira Dulce Neto.14 Dada a semelhança mas não estrita coincidência dos enquadramentos factuais,

faremos aqui referência à constelação fáctica presente no primeiro dos acórdãos citados. O quarto acórdão assenta em circunstâncias fácticas diferentes mas que, face aos objec‑tivos do presente estudo, não relevam

15 Tratam ‑se dos anos de 1997 e 1999. A esposa acaba por transferir a sua residência para a Alemanha no ano de 2000.

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rendimento. O filho, apesar de residir com a mãe, era economicamente independente16.

2.3. Enquadramento normativo

À data dos factos, o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pes‑soas Singulares (CIRS) consagrava, entre os critérios de residência, o da “residência por dependência”. Nos termos do art.º 16º, n.º 2 CIRS “são sempre havidas como residentes em território português as pessoas que constituem o agregado familiar, desde que naquele resida qualquer das pessoas a quem incumbe a direcção do mesmo”17. Não existia nenhum dispositivo que permitisse ilidir a presunção.

Entre Portugal e a Alemanha foi assinada e encontrava ‑se em vigor uma convenção em matéria de dupla tributação (doravante CDT PT ‑DE)18. A matéria da residência era regulada no artigo 4º, em linha com o frase‑ado presente na Convenção Modelo da OCDE.

O n.º 1 daquele artigo dispunha: “para efeitos desta Convenção, a expressão ‘residente de um Estado Contratante’ significa qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto devido ao seu domicílio, à sua residência, ao local de direcção ou a qualquer outro critério de natureza similar. Todavia, esta expressão não inclui qualquer pessoa que está sujeita a imposto nesse Estado apenas relativamente ao rendimento de fontes localizadas nesse Estado ou a capital aí situado”.

16 Desde, pelo menos, 1994, de acordo com o § 13 da matéria de facto assente dos acórdãos.

17 A regra geral constava do n.º 1 deste artigo o qual dispunha que “são residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos: a) hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, b) tenham permanecido por menos tempo, aí disponham, em 31 de Dezembro desse ano, de habitação em condições que façam supor a intenção de manter e ocupar a residência habitual; c) Em 31 de Dezem‑bro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direcção efectiva nesse território; d) desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português”.

18 Assinada a 15 de Julho de 1980, aprovada para ratificação pela Lei 12/82 de 3 de Junho, e em vigor desde 8 de Dezembro de 1982, conforme aviso publicado em Diário da República, I Série, 14/10/1982.

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Em relação a pessoas singulares, o n.º 2 estabelece um conjunto de critérios de desempate (“tie break rules”). De acordo com o mesmo “quando, por virtude do disposto no n.º 1, uma pessoa singular for resi‑dente de ambos os Estados Contratantes, a situação será resolvida como segue: a) será considerada residente do Estado em que tenha uma habi‑tação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados, será considerada residente do Estado com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e económicas (centro de interesses vitais); b) se o Estado em que tem o centro de inte‑resses vitais não puder ser determinado ou se não tiver uma habitação permanente à sua disposição em nenhum dos Estados, será considerada residente do Estado em que permanece habitualmente; c) se permanecer habitualmente em ambos os Estados ou se não permanecer em nenhum deles, será considerada residente do Estado de que for nacional; d) se for nacional de ambos os Estados ou não for nacional de nenhum deles, as autoridades competentes dos Estados Contratantes resolverão o caso de comum acordo”.

2.4. Enquadramento contextual

Antes da decisão do Supremo, estes casos já tinham sido previamente apreciados por um conjunto de entes administrativos e judiciais, recebendo soluções díspares. Tal facto não deixa de ser ilustrativo da pouca impor‑tância que o estudo da fiscalidade internacional continua a merecer entre nós. Vejamos, de seguida, quais as soluções propostas para a resolução deste litígio e quais os argumentos avançados para as suportar19.

Relativamente ao exercício fiscal de 2007, a administração fiscal pro‑cedeu a uma liquidação adicional de IRS com base numa acção de inspec‑ção incidente sobre os rendimentos obtidos por “A” e “B”.

Em traços gerais, tal liquidação baseou ‑se na conclusão de que ambos os sujeitos passivos deviam ser tidos como residentes em Portugal. A linha de raciocínio seguida foi a seguinte: i) a Sr.ª B viveu em Portugal durante todo ano, pelo que será necessariamente tida como residente, para efei‑tos fiscais; ii) à Sr.ª B também incumbe a direcção do agregado familiar,

19 De novo, as referências referem ‑se ao primeiro dos acórdãos mencionados.

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o qual é constituído por ela e por “A”; iii) nesses termos, e por força do art. 16º, n.º 2 CIRS, “A” deve ser considerado como residente; iv) sendo conhecido que dois Estados arrogam o poder de tributar o sujeito “A” a título de Estado da residência (in casu Portugal e Alemanha), deveria ter lugar a aplicação das regras de desempate previstas no art. 4º, n.º 2 da CDT PT ‑DE20; v) [na impossibilidade de se determinar o Estado onde o sujeito tem a sua residência permanente, ou por se ter considerado que este tinha habitações permanentes à disposição em ambos Estados21] deve‑ria aplicar -se o critério do centro de interesses vitais; vi) de acordo com este critério, o sujeito deveria considerar ‑se residente em Portugal. Como consequência, o casal foi notificado para pagar o imposto em dívida (com base no rendimento auferido por “A” Alemanha) e ainda para pagar um montante adicional a titulo de juros compensatórios.

Deduzida impugnação para o (já extinto) Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, este entendeu revogar parcialmente a liquidação, reconhecendo o direito ao crédito de imposto (nos termos do art. 24º da CDT PT ‑DE)22, pelo montante já pago na Alemanha. Desta decisão foi deduzido recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual decidiu nos termos que a seguir se exporão.

2.5. Principais linhas de fundamentação desta orientação jurispru‑dencial

Apesar de conciso, o texto do acórdão é suficientemente claro e permite perceber com clareza os postulados em que assentou a decisão.

O tribunal começou por centrar ‑se na determinação do que seria, in casu, o conceito operativo de residência. E, rapidamente, considerou que “o conceito de residência (fiscal) para efeitos de direito interno será plenamente aplicável nas situações que apenas apresentam conexão com a ordem jurídica nacional ou nas situações em que, havendo embora conexão

20 Referimo ‑nos, aqui, à CDT PT ‑DE). Neste sentido vide os pontos 5 da matéria de facto assente.

21 Esta passagem do raciocínio não aparece reproduzida no texto do acórdão mas trata -se de um pressuposto lógico já que a regra do “centro de interesses” surge apenas como a segunda das regras de desempate postuladas pelo art. 4º, n.º 2 da CDT PT -DE.

22 Art. 23º das CM, tanto da OCDE como da ONU.

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com outra ordem jurídica, não há vinculação por via convencional do Estado Português com o qual essa conexão se verifica”.

Ou seja, e a contrario, tratando ‑se de uma situação pluri ‑localizada, apresentando elementos de conexão com dois Estados que celebraram entre si uma CDT, tal conceito não seria “plenamente” aplicável. Aqui, “é o conceito convencional que deve prevalecer, por via da supremacia do direito internacional sobre o direito interno”.

Assente tal conceito operatório base, passou ‑se à interpretação do mesmo. A base de apoio literal foi a fórmula presente no art. 4º, n.º 1 da CDT23, chegando -se a quatro conclusões: i) que o mesmo procedia a uma remissão para o direito interno; ii) que essa remissão não se podia ter como uma “remissão incondicional, já que se exigiria sempre uma apre‑ciação casuística da questão (“que a análise da questão da residência seja feita individualmente, pessoa a pessoa, abstraindo da situação familiar do sujeito em causa”)24; iii) que “os critérios atendíveis para efeitos da CDT Portugal ‑Alemanha (...) para determinar a qualidade de residente conven‑cional (...) têm de ser similares aos elencados no n.º 1 do art.º 4 da CDT Portugal -Alemanha (domicílio, residência, local de direcção); iv) pelo que apenas relevam “critérios que exprimam uma ligação efectiva ao territó‑rio do Estado” não sendo aceitáveis aqueles que não “exprim[am] por si mesmo qualquer conexão efectiva e real da maior parte das suas activi‑dades económicas ao território português”.

Seguidamente o tribunal passou à apreciação casuística. Nesse âmbito regista que: i) o sujeito vive efectivamente na Alemanha desde 1973; ii) que a mulher vive em Portugal mas ele apenas a visita em férias; iii) que para a leitura casuística, o status da mulher teria de ser considerado irre‑levante; iv) que o sujeito não apresenta uma conexão efectiva e real com o território português, que o permita qualificar como “residente” nos ter‑mos da noção convencional.

Chega -se assim à conclusão de que, “para efeitos da aplicação da CDT” o sujeito “deve considerar -se como residente apenas na Alemanha, sendo ilegal, por violação do art. 4º, n.º 1 da CDT Portugal ‑Alemanha

23 Dispositivo que já tivemos a oportunidade de transcrever.24 Note -se que não se faz uma qualquer tentativa de extrair esta necessidade de apre‑

ciação casuística do texto do artigo, citando -se meramente certas passagens doutrinais.

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a sua qualificação como residente (fiscal) em Portugal que a administra‑ção fiscal portuguesa lhe atribui”25.

Esta conclusão leva a que não se mostre necessário o recurso às regras de desempate previstas no art. 4º, n.º 2 da CDT, uma vez que apenas subsiste um Estado – o Alemão – que apresenta uma válida pretensão sobe‑rana de tributar o indivíduo pela totalidade do seu rendimento mundial.

3. A questão da dupla residência

3.1. Introdução

Expostos os traços centrais da decisão, cumpre proceder a uma aná‑lise da mesma. Começaremos por uma dimensão abstracta, examinando o enquadramento normativo normalmente conferido às questões de dupla resi‑dência de pessoas singulares, nos planos interno, europeu e internacional.

3.2. A dupla pretensão de soberania num plano puramente interno

Em qualquer ramo do direito, um problema emergente de uma múl‑tipla, simultânea e díspar aplicação de critérios de conexão pode, desde logo, receber suficiente resposta no plano interno. No âmbito da questão da dupla residência (fiscal), poderia sempre colocar -se a possibilidade de um Estado, interna e unilateralmente, definir regras que permitissem a superação das consequências negativas que tal provoca.

Não obstante, a capacidade de intervenção desse Estado ficará sem‑pre limitada à possibilidade de fazer decair a sua pretensão de soberania, o que pode ter lugar através de diferentes estruturas normativas26. Mas,

25 Parte final do ponto 6.1 do acórdão. O sublinhado é nosso.26 Uma delas, fixando internamente uma hierarquia de critérios e dispondo que a

pretensão estatal de soberania decai sempre que a pretensão concorrente e simultânea do outro Estado se baseie num critério supra -ordenado. Note -se que isto nunca excluiria a possibilidade de dificuldades resultantes de conflitos de qualificação e nada impediria o Estado de valorar mais certos critérios em detrimento de outros, colocando p.e. a nacio‑nalidade num plano superior ao do da presença efectiva, ou a existência de uma residên‑cia habitual acima do critério do centro de interesses vitais.

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note ‑se bem, seria sempre o Estado que estaria disposto a abdicar da sua soberania a fixar as circunstâncias em que o faria e nada o impediria de limitar a resolução dos conflitos a um conjunto limitado de situações.

Numa perspectiva de direito comparado, e tendo em conta uma amostra alargada de países, não temos conhecimento de ordenamentos que adoptem tais regras. Adicionalmente cremos que a introdução das mesmas, pelo menos no actual contexto de desenvolvimento do direito fiscal internacional, em pouco ou nada beneficiariam a regulação tribu‑tária transnacional.

3.3. A dupla residência no plano europeu

A existência de casos de dupla pretensão de exercício da sobera‑nia tributária dentro do espaço europeu aparenta ser, pelo menos prima facie, uma violação substancial das obrigações assumidas pelos Estados--Membros.

De facto, um dos objectivos cimeiros da União é o do estabelecimento de um verdadeiro mercado interno27 o qual é descrito como “um espaço interior sem fronteiras internas, no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada (...)”28. Ora, e sem grandes lucubrações, a possibilidade de um sujeito ver o seu rendimento duplamente tributado (por dois Estados que o qualificam como residente) parece colocar em causa esse objectivo. Em termos efectivos, a dupla tri‑butação funciona como uma verdadeira “fronteira”. Ou, por outras pala‑vras, a possibilidade de um sujeito ser tributado em relação à mesma par‑cela de rendimento em dois Estados -Membros parece constituir um claro obstáculo ao exercício das liberdades fundamentais.

Não obstante, e no actual estádio de desenvolvimento do direito fiscal europeu, a dupla tributação emergente da dupla residência não encontra, ainda, tutela judicial adequada.

27 Cfr. art.º 3, n.º 3 do Tratado da União Europeia (doravante TUE) e art. 4º, n.º 2 c) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Na ausência de indi‑cação em contrário, as próximas referências terão em conta a numeração introduzida nos, Tratados Europeus, pelo Tratado de Lisboa, assinado em 13 de Dezembro de 2007 e que entrou em vigor a 1 de Dezembro de 2009.

28 Cfr. art 26º, n.º 2 TFUE.

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De facto, e apesar do objectivos acima descrito, o direito originário não contém qualquer dispositivo específico sobre o tema. Até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa ainda se contava com o segundo travessão do então art. 293º do TCE29 o qual dispunha, muito simplesmente, que “os Estados -Membros entabularão entre si, sempre que necessário, negocia‑ções destinadas a garantir, em benefício dos seus nacionais: (...) – a elimi‑nação da dupla tributação na Comunidade”. Mas já então se considerava que o inciso encerrava uma simples obrigação de meios, sendo desprovido de efeito directo30. Com a eliminação do mesmo – e não obstante as dife‑rentes interpretações que se pretendem associar a tal eliminação31 – o certo é que deixa de existir, no direito primário, uma qualquer referência expressa à eliminação da dupla tributação internacional.

A mesma conclusão se pode chegar ao nível do direito secundá‑rio. Com excepção da convenção de arbitragem32, da directiva “mães--afiliadas”33 e da directiva “da poupança”34 – que estabelecem medidas muito particularizadas e sectoriais – não existem ainda mecanismos de alcance geral que resolvam os problemas de dupla tributação internacio‑nal (e, em particular, da dupla residência).

Tal vazio, ao nível protecção normativa positivada, é mimetizado no plano jurisprudencial. O Tribunal de Justiça da União Europeia (dora‑vante Tribunal de Justiça ou TJUE) tem entendido, de forma reiterada, que as situações de dupla tributação não podem ser consideradas, de per se, incompatíveis com o direito europeu. Não tendo as mesmas génese numa

29 Referimo ‑nos aqui à numeração e à formula presente no Tratado da Comunidade Europeia, antes das modificações introduzidas pelo Tratado de Lisboa.

30 Cfr. TJUE, 11 de Julho de 1985, Mutsch, C -137/84, para. 11 e TJUE, 12 de Maio de 1996, C ‑336/96, para. 15 ‑16.

31 Neste sentido vide Hinneckens, L., “The Uneasy Case and Fate of Article 293 Second Indent EC”, Intertax, vol. 37, n.º 11, 2009, p. 602 et seq..

32 Convenção de 23 de Julho de 1990, relativa à eliminação da dupla tributação em caso de correcção de lucros entre empresas associadas, publicada no Jornal Oficial L 225, p. 10 et seq..

33 Directiva 90/435/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades -mãe e sociedades afiliadas de Estados -Membros diferentes, publicada em Jornal Oficial L 225, p. 6 et seq..

34 Directiva 2003/48/CE do Conselho, de 3 de Junho de 2003, relativa à tribu tação dos rendimentos da poupança sobre a forma de juros, publicada em Jornal Oficial L 157, p. 38 et seq..

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norma estatal discriminatória ou restritiva, mas puramente no exercício em paralelo da soberania tributária, por parte de dois Estados -Membros, nada há a fazer35. Isto porque o direito europeu “não prescreve critérios gerais para a repartição das competências entre os Estados -Membros no respeitante à eliminação da dupla tributação no interior da Comunidade”36.

O entendimento subjacente é o de que sobre os Estados não pende a obrigação de modificar ou adaptar o próprio sistema fiscal aos sistemas de tributação vigentes noutros ordenamentos de modo a assegurar que nãos surjam casos de dupla tributação internacional. A este propósito, salienta ‑se que “o Tratado não garante a um cidadão da União que a transferência da sua residência para um Estado -Membro diferente daquele em que residia até então seja neutra em termos de impostos. Tendo em conta as disparida‑des entre as legislações dos Estados -Membros na matéria, essa transferên‑cia pode, conforme o caso, ser mais ou menos vantajosa para o cidadão”37.

Assim, “os inconvenientes que podem resultar do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes Estados-Membros, desde que esse exercício não seja discriminatório, não constituem restrições proibidas pelo Tratado”38.

O tribunal não desconhece totalmente estes problemas. Mas sente--se forçado a reconhecer que “na falta de medidas de unificação ou de harmonização comunitária, os Estados -Membros continuam a ser compe‑tentes para determinar, por via convencional ou unilateral, os critérios de repartição do seu poder tributário de modo a, nomeadamente, eliminarem a dupla tributação”39. Pelo que lhes cabe “tomar as medidas necessárias

35 Cfr. v.g. TJUE, 14 de Novembro de 2006, C ‑513/04, Kerckaert ‑Morres. No mesmo sentido veja ‑se TJUE, 6 de Dezembro de 2007, C ‑298/05, Columbus Container Services, para. 43, TJUE, 20 de Maio de 2008, C -194/06, Orange, para. 37 e 42 e C ‑67/08, Block, para. 28.

36 A citação foi retirada de C ‑513/04, Kerckaert ‑Morres, para. 22. Mais recente‑mente vide C ‑128/08, Damseaux, para. 33.

37 Cfr. C ‑67/08, Block, para. 31 e, anteriormente, TJUE, 12 de Julho de 2005, C ‑403/03, Schempp, para. 45. Ao nível das pessoas colectivas vide C ‑298/05, Columbus Container Services, para 51.

38 Cfr. C ‑128/08, Damseaux, para. 27.39 Esta citação foi retirada de C ‑128/08, Damseaux, para. 30. Já anteriormente e

no mesmo sentido vide C ‑336/96, Gilly, para. 30, TJUE, 21 de Setembro de 1999, Saint Gobain, C ‑307/97, para. 57, TJUE 8 de Novembro de 2007, C ‑379/05, Amurta, para. 17, C ‑194/06, Orange, para. 32.

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para evitar situações de dupla tributação”, sendo livres na definição dos critérios de conexão e de alocação de rendimentos40, podendo seguir, a esse respeito “os critérios de repartição seguidos na prática internacional”41. Adicionalmente nota que o mecanismo do reenvio prejudicial não pode ser utilizado para aferir de uma eventual violação do ordenamento comu‑nitário por parte dos dispositivos de uma CDT42.

Em conclusão, no actual quadro da fiscalidade directa europeia não se encontram (ainda) formas de tutela dos duplos e coincidentes exer‑cícios de soberania tributária, quando estes assentem em pretensões não discriminatórias. Não há dúvidas que o mercado interno beneficiaria com uma alocação concreta dos poderes tributários entre os diversos Estados -Membros, de acordo com o que lehner denomina de “o melhor direito a tributar”43. Mas, no contexto actual, tais regras estão ainda longe de receber um consenso generalizado pelo que a solução, a exis‑tir, não pode deixar de ser buscada nos quadros do direito tributário internacional.

3.4. A dupla residência no plano internacional

Já tivemos a ocasião de salientar que, no plano internacional, os Estados continuam a ser livres para a circunscrição dos limites subjec‑

40 Cfr. C ‑336/96, Gilly, para. 24 e 30, TJUE, 21 de Setembro de 1999, C ‑307/97, Saint Gobain, para. 56 ‑57, TJUE, 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C ‑265/04, para 49, TJUE, 3 de Outubro de 2006, C ‑290/04, Scorpio, para. 54, TJUE 11 de Setembro de 2008, C ‑43/07, Arens ‑Sikken, para. 62, TJUE, 23 de Outubro de 2008, C ‑157/07, Krankenheim Ruhesitz, para. 48.

41 Igualmente C ‑128/08, Damseaux, para. 30. Já anteriormente vide C ‑513/04, Kerckaert ‑Morres, para. 23. Vide ainda TJUE, 12 de Maio de 1998, Gilly, para. 24, 30 e 31, TJUE, 21 de Setembro de 1999, Saint ‑Gobain, C ‑307/97, para. 57, TJUE, 12 de Dezembro de 2002, De Groot, C ‑385/00, para. 93 e mais recentemente TJUE, 14 de Novembro de 2006, Kerckaert & Morres, C ‑513/04, para. 22 ‑23, TJUE, 16 de Outubro de 2008, Renneberg, C ‑527/06, para. 49, TJUE, Krankenheim Ruhesitz, C ‑157/07, para. 48.

42 Cfr. TJUE, 14 de Dezembro de 2000, AMID, C ‑141/99, para. 18.43 Cfr. Lehner, M., “Das Territorialitätsprinzip im Licht des Europarechts”, in:

Gocke, R., Gosch, D., e Lang, M., (eds.), Körperschaftsteuer, internationales Steuerrecht, Doppelbeteuerung – Festschrift für Franz Wassermeyer zum 65. Geburtstag, Munique, Beck, 2005, pp. 241 et seq..

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tivos da sua soberania tributária. Mesmo reconhecendo a existência de práticas ou tendências generalizadas, bem como de um conjunto de teorias explicativas44 não existem constrangimentos normativos inter‑nacionalmente vinculantes45. Os problemas causados pelo fenómeno da dupla residência46 têm vindo a ser resolvidos no quadro de convenções internacionais.

Por regra, tais convenções seguem de perto a estrutura e conteúdo das CM da OCDE ou das Nações Unidas47, adoptando um dispositivo (art. 4º, n.º 2 dos modelos) que fixa, para tais casos, um conjunto de regras de desempate que incluem os crivos do domicílio permanente, do centro de interesses vitais, do domicílio habitual e da nacionalidade. Caso tais crivos não permitam chegar a uma conclusão, permite ‑se normalmente o recurso ao acordo mútuo.

Note ‑se que a resolução desta questão não implica, imediatamente, a eliminação do problema da dupla tributação. Apenas permite a aplica‑ção prática das regras de reconhecimento de competências (“allocation rule”) as quais, por seu turno, podem conduzir – de novo – a duplas pre‑tensões de soberania tributária. De facto, ainda que apenas um Estado

44 Como a teoria realística ou empírica, a teoria étnica ou retributiva, a teoria contratualista e a teoria da soberania. Sobre estas teorias e correspondente significação vide Martha, R. The Jurisdiction to Tax in International Law – Theory and Practice of Legislative Fiscal Jurisdiction, Deventer, Kluwer, 1989, pp. 18 et seq.. Mais recentemente, vide AVi ‑yonAh, R., ring, d. e brAuner, Yariv, U.S. International Taxation: Cases and Materials, 2ª ed., Foundation Press, 2005, pp. 18 -20.

45 Cfr. Lang, M., Introduction to the Law of Double Taxation Conventions, Vienna, Linde, 2010, p. 23 quando refere: “In international law practice, there are no significant limits on the tax sovereignty of states. In designing the domestic personal tax law, the national legislator can even tax situations when, for example, only a “genuine link” exists. It is only when neither the person nor the transaction has any connection with the taxing state that tax cannot be levied”.

46 Isto é por demais reconhecido pela OCDE quando, no § 1 dos Comentários à CM da OCDE, se refere que tais efeitos “on the exchange of goods and services and movements of capital, technology and persons are so well know that it is scarcely necessary to stress the importance of removing the obstacles that double taxation presents to the development of economic relations between countries”.

47 Para uma aferição deste impacto entre nós vide Nogueira, J.F.P, “The Impact of OECD and UN Model Conventions in Portuguese Tax Treaties” in: Lang, M., Pistone, P., Schuch, J., Staringer, C., The Impact of OECD and UN Model Conventions in Bilateral Tax Treaties”, em curso de publicação.

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possa arrogar ‑se da qualidade de Estado de residência, quando a regra de reconhecimento de competências determine uma competência cumulativa do Estado da residência e da fonte, dois Estados estarão sempre autori‑zados a tributar uma mesma parcela do rendimento48: i) um (o Estado da residência) tributará o rendimento mundial; ii) outro (o Estado da fonte) tributará de forma limitada, apenas o rendimento obtido no território. Tal dupla tributação será eliminada ou mitigada no quadro dos métodos (arts. 23º das CM). Mas o tema, contudo, sai já claramente fora do âmbito cognoscitivo que interessa ao presente estudo.

A principal conclusão a extrair é a de que, ao passo que nos planos internos e europeus a dupla residência não parece receber qualquer nor‑mativização, a mesma encontra -se desde há muito reconhecida e tratada no puro plano internacional ‑convencional.

4. Alguns défices metodológicos da linha jurisprudencial referida

Feito este enquadramento preliminar, convém agora atentar nas deci‑sões em concreto. Existem vários aspectos normativos e metodológicos que suscitam a nossa apreensão. Para o presente estudo seleccionamos aqueles que nos parecem mais interessantes de uma perspectiva interna‑cional49.

As questões são as seguintes: i) não consideração do plano norma‑tivo interno; ii) a autonomização do conceito convencional de residência; iii) atribuição, ao mesmo, de uma textura normativa ou de elementos de substantividade que lhe permitem, inclusivamente, servir de padrão de critério de parametricidade de dispositivos internos.

48 Estão autorizados o que não significa que, necessariamente, tenham de exercer os seus poderes em matéria tributária.

49 Sem prejuízo de existirem várias outras que mereceriam a nossa atenção como a consideração de um dispositivo interno como “ilegal” pelo facto de violar uma conven‑ção internacional. Muito resumidamente cremos que o vício, a existir, seria sempre o da não compatibilidade do dispositivo com a convenção e não o da “legalidade” uma vez que a convenção é directamente aplicável na ordem jurídica portuguesa, nos termos do preceituado no art. 8º da Constituição.

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4.1. A não consideração do plano interno

Durante todo o acórdão, a tónica centrou ‑se no plano internacional. Não obstante, e em nosso entender, a questão poderia ter sido melhor resolvida se propriamente equacionada no plano interno.

Começaremos por fazer uma breve ressalva. No presente estudo não nos ocuparemos do enquadramento fáctico: partiremos daquele que é con‑siderado pelo Supremo50. Fora da nossa análise estará, pois, a eventual subsunção da situação fáctica a uma outra alínea do art. 16º, n.º 1 CIRS (como, p.e., na alínea b que atribui esse status a todos os que disponham de uma “de habitação em condições que façam supor a intenção de a man‑ter e ocupar como residência habitual”)51.

Atentando já à validade da norma, devemos começar por salientar que os acórdãos partem de um “pressuposto de adesão” que, pelo menos explicitamente, nunca é questionado: o da validade no plano interno do art. 16º, n.º 2 CIRS. Apesar de anteriores acórdãos se terem pronunciado especificamente sobre a estrutura da norma (classificando -a como uma “presunção juris et de jure”52) na presente linha doutrinal essa questão é apenas abordada, e en passant , numa citação de xAVier53.

Analisando a estrutura do art. 16º, n.º 2 CIRS, na versão à época vigente, verificamos que ele contém uma verdadeira presunção inilidível54. De forma cega, automática e mecânica – e sem possibilidade de prova em contrário – um determinado sujeito é considerado residente55 sempre que

50 Dada a pouca relevância dos mesmos para efeitos do presente estudo, optaremos sempre por fazer referência aos factos do primeiro acórdão.

51 A qual se teve como assente nos autos, já que a administração tributária ao aplicar o art.º 4º, n.º 2, recorreu ao critério do “centro de interesses vitais”. Tal pressupõe que terá concluído que o sujeito dispunha de residência permanente em ambos os Estados (já que parece não existir dúvidas quanto à existência de uma residência permanente na Alemanha). Vide o “enquadramento contextual” a que se procedeu, supra.

52 Vide acórdão do STA de 15 de Março de 2006 no processo 1211/05, cujo relator foi o Juiz Conselheiro Brandão de Pinho.

53 Novamente no ponto 6.1 do acórdão. Nesta citação o referido autor classifica a norma como uma “ficção”.

54 Por todos vide mArtinez, e., Presunciones Legales y Derecho Tributario, Madrid, Instituto de Estudios Fiscales – Marcial Pons, 1995.

55 E, consequentemente, tributado com base no seu rendimento mundial.

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“resida em Portugal qualquer das pessoas a quem incumbe a direcção do mesmo [agregado familiar]”.

Além da questão estrutural, devemos analisar a norma do ponto de vista funcional/finalístico. O que se pretende com a mesma, não é o alar‑gamento do quadro factual que qualifica alguém como residente56, mas a protecção de quadros fácticos independente e anteriormente definidos contra eventuais manipulações ou possibilitando a sua aplicação quando parte ou a totalidade dos elementos requeridos não são conhecidos). Não estamos perante uma opção político -axiológica no que tange à residência fiscal, mas apenas perante uma estratégia de protecção de um sistema de residência prévia e anteriormente fixado.

O próprio elemento sistemático é decisivo neste aspecto. Enquanto a definição de residente, de acordo com as opções político -tributárias vigentes se encontra vertida no art. 16º, n.º 1 CIRS, a norma em questão apenas se encontra no número seguinte. Se, de facto, condensasse uma definição de residência, não faria sentido que fosse incluída como uma alínea mais n.º 1? O elemento literal também nos fornece um poderoso subsídio: ao utilizar -se a expressão “serão sempre havidas como” o legis‑lador faz notar claramente que não lhe importa conhecer a efectividade da residência, mas apenas atribuir a consequência normativa associada à residência às pessoas que preencham tais condições.

Em linguagem corrente, ele pode ser ou não ser [residente] mas é, de qualquer forma, tratado como se fosse. Estamos aqui perante a questão da “mulher de César”, ainda que perspectivada de modo inverso e aplicada ao fenómeno tributário.

É na sua veste de norma anti ‑abuso que a norma devia ser perspectivada, o que não aconteceu. Feito este enquadramento, podemos melhor aferir da admissibilidade da norma no contexto do ordenamento jurídico português.

Antes de mais convém referir que a possibilidade de recurso a pre‑sunções tem sido debatida por vários autores, tanto em geral57 como, espe‑cificamente, em relação ao fenómeno tributário58.

56 Relembramos, cuja principal consequência é a submissão do rendimento mundial a tributação em Portugal (“full tax liability”).

57 Vide os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 63/85, 447/87, 135/92 e 922/86, 252/92, 45/2008 e 135/2009.

58 Por todos vide nAbAis que funda o recurso às presunções, em certos casos, nas “legítimas preocupações de simplificação de praticabilidade das leis fiscais” – Cfr. Nabais, J.,

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O recurso a estas estruturas no âmbito da residência fiscal, não é só tolerado, como mesmo recomendado pela mais ilustre doutrina internacio‑nal. Referindo ‑se à regra dos 183 dias59 sustenta Arnold que na maioria dos países tal regra não funcionaria se o ónus da prova não fosse colo‑cado sobre o indivíduo. Ou, por outras palavras, os indicadores fácticos da residência baseados em “factos e circunstâncias” tornam -se excessi‑vamente difíceis de aplicar se não forem suportados por algumas “pre‑sunções simples”60. Mas, obviamente, tais presunções devem assentar em factos da experiência.

A norma em crise assenta num pressuposto sociológico e estatístico bastante válido, em especial no território português. Corresponde ao nor‑mal curso dos acontecimentos que duas pessoas, quando casadas61, par‑tilhem a habitação62. E, mais, que os seus filhos enquanto formem parte deste agregado familiar, também vivam com eles63. Nada mais costu‑meiro… nada mais banal…

A finalidade da norma – que também é o pressuposto base que dá legitimidade à presunção – é a de estabelecer um facto desconhecido a par‑tir de um facto conhecido64. Conhecendo a residência de uma das pessoas

O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 497 et seq.. Ao nível jurisprudencial vide os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 26/92. Em especí‑fico, no que diz respeito ao uso da estrutura na fixação da matéria colectável vide os acór‑dãos n.º 620/99 e 621/99.

59 Critério acolhido entre nós, no art. 16º, n.º 1, a) CIRS.60 A passagem a que nos referimos, é a seguinte: “in most countries, the test [183-

-days] cannot operate effectively unless the burden of proof is put on the individual to prove that he or she is not present for the 183 -day period” (…) Unless buttressed by some simple presumptions, a facts and circumstances test is unsatisfactory because it is often excessively difficult to apply. A facts -and -circumstances test that uses certain objective tests to establish presumptions may provide a good balance between certainty and firness” – Cfr. Arnold, B. e McIntyre, M., International Tax Primer, 2ª ed., The Hague, Kluwer Law International, 2002, pp. 17 ‑18.

61 Ou, mais latamente, quando constituam um agregado familiar, o que inclui outras situações.

62 A noção de casamento, presente no nosso ordenamento civil (nomeadamente nos art. 1577º e 1587º et seq. do Código Civil) pressupõe esta comunhão de habitação, mesa e leito.

63 Obviamente, não sendo economicamente independentes.64 Como já o referimos, estamos aqui perante uma presunção e não perante uma

ficção. Em geral, e no ordenamento jurídico português vide Lima, P. e Varela, A., Código

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a quem compete a direcção do agregado familiar podemos, na ausência de outros factos, razoavelmente supor que o cônjuge (e os filhos) vivam no mesmo lugar.

O problema reside no excesso da conformação normativa: enquanto a finalidade da norma é a da fixação de um facto desconhecido, o modo como esta foi configurada faz com que a mesma se aplique ainda nos casos em que o facto seja conhecido. A actuação da norma neste segundo grupo de situações excede o necessário para a efectivação do seu fim e, por consequência, viola a ideia de proporcionalidade, em concreto no que diz respeito ao crivo da necessidade. Tal violação mostra ‑se como um vício constitucionalmente relevante, por via do art. 2º CRP e con‑sequentes corolários (ou, ex abundanti por via do art. 18º, ou mesmo, apesar da remota conexão, do art. 266º, nº 2, todos da CRP)65. A des‑proporcionalidade manifesta destas estruturas normativas é, de resto, reconhecida de forma estável pelo Tribunal de Justiça no contexto da União Europeia66.

Atentando ao elemento finalístico, a irracionalidade é gritante. Recorrendo à estrutura da “presunção inilidível”, a norma torna -se iló‑gica, irrazoável e atentatória de vários corolários da ideia de Estado de Direito democrático (art.º 2º da CRP), fixando uma consequência inultra‑passável para uma situação que sabe não ser conforme com a realidade, e sem que exista qualquer outro motivo para tal67. Até a mais acérrima

Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 1987, pp. 312 -313 e Ascensão, J., O Direito. Intro‑dução e Teoria Geral, 6ª ed., Coimbra, 1991, p. 526. No que se refere a monografias sobre o tema, mas já na esfera do tributário, vide, em língua portuguesa as distinções presen‑tes em pAolA, L., Presunções e Ficções no Direito Tributário, Belo Horizonte, Del Rey, 1997, FerrAgut, m., Presunções no Direito Tributário, São Paulo, Dialéctica, 2001 e sCherkerkewitz, i., Presunções e Ficções no Direito Tributário e no Direito Penal Tri‑butário, Rio de Janeiro, Renovar, 2002.

65 Na medida em que a norma, ao não estabelecer qualquer possibilidade de ilisão, reclama da administração fiscal uma actuação claramente desproporcional.

66 Para uma exposição sobre os critérios vigentes ao nível da jurisprudência euro‑peia vide Nogueira, J.F.P., Direito Fiscal Europeu – O Paradigma da Proporcionalidade: A Proporcionalidade como Critério Central da Compatibilidade de Normas Tributárias Internas com as Liberdades Fundamentais, Coimbra, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, pp. 424 et seq..

67 O mesmo não se diga no que tange às presunções relativas a paraísos fiscais, casos em que as mesmas se sustentam na luta contra a fraude e contra a dupla não tributação.

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dedução escolástica medieva exigia sempre a disputatio do argumento de autoridade, chegando ‑se a um quodlibet que podia, em parte, distanciar‑‑se dessa regra.

A inadmissibilidade também pode ser feita derivar do facto de a pre‑sunção impedir – como aliás é reconhecido no acórdão – uma apreciação casuística68. De facto ao fixar a residência de forma automática e cega, sem ter em conta a situação concreta do sujeito e, mais grave, impedindo que se tenha em conta a situação concreta quando esta é conhecida, atenta‑‑se contra a ideia de tutela jurisprudencial efectiva, previsto, em geral, no art.º 20º CRP mas, no que ao caso importa, com a especifica veste que recebe no no art. 268º, n.º 4 da CRP69.

A inadmissibilidade destas presunções inilidíveis já se encontra, entre nós, extensamente trabalhada, no contexto da fixação da matéria colec-tável. A rejeição in globo das mesmas parece, hoje, ocorrer de modo está‑vel como o demonstram os escritos de CAsAltA nAbAis70 CArdoso dA

68 Concordamos assim com o acórdão, mas não com o critério de parametricidade exposto, a saber, a norma do art. 4º, n.º 1 da CDT PT -DE.

69 Poder ‑se ‑ia aqui seguir a orientação de CArdoso dA CostA que, ao pronunciar‑-se sobre questão similar, referia que o dispositivo: “pode e deve ser interpretado como estabelecendo uma garantia completa de recurso, quer dizer, uma garantia que assegura aos particulares a possibilidade de impugnarem judicialmente todos os actos singulares e concretos da Administração Pública que produzam efeitos jurídicos externos e sejam susceptíveis, portanto, de lesar os seus direitos”. Assim “quaisquer normas legais que excluam esta possibilidade de impugnação relativamente a certos actos ou a certas catego‑rias de actos administrativos ou que restrinjam os possíveis fundamentos de tal impugna-ção apenas a alguns dos vícios susceptíveis de gerar a antijuricidade desses actos, têm de ser havidas como inconstitucionais, e, por via de consequência, como inteiramente irre‑levantes” – Cfr. Costa, J., “A Tutela dos Direitos Fundamentais”, Boletim do Ministério da Justiça, 1981, n.º 5, p. 209.

70 Cfr. Nabais, J., O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 497 et seq., em particular quando sustenta que o princípio da capacidade con‑tributiva implica a “ilegitimidade das presunções absolutas, na medida em que obstam à prova da inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei”. Do mesmo autor, e sobre o tema vide Nabais, J., “O Quadro Constitucional da Tributação das Empre‑sas”, in: AAVV, Nos 25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, Coimbra, AAFDL/Almedina, 2001; “Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, Coimbra Edi‑tora, 1993, vol. LXIX, p. 417; “Presunções Inilidíveis e Princípio da Capacidade Con‑tributiva: Acórdão n.º 348/97, processo n.º 63/96”, Fisco, n. 84/85, 1998, pp. 85 et seq..

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CostA71, Clotilde CeloriCo pAlmA72 ou rodrigues pArdAl73. Igual posição sustenta a nossa jurisprudência constitucional, a qual funda a inadmissibilidade na violação do princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva, resultado da concatena‑ção normativa dos art. 13º, n.º 1 e art. 104º, n.º 1 da CRP74.

Apesar de a presunção sub judice não se subsumir naquele âmbito, vemos como a argumentação aí expendida se mostra perfeitamente aplicá‑vel ao caso presente. Isto porque o aspecto essencial para aferir a admissi‑bilidade de uma presunção inilidível não é o temático (o sector ou domínio regulado pela norma) mas o teleológico (o contraste entre o fim da norma e o seu funcionamento concreto). Quando se demonstre que existe uma ilogicidade inconciliável entre estes dois parâmetros, a presunção deve ter -se por inadmissível75.

De resto, e em conclusão, a percepção deste desvalor normativo (constitucionalmente relevante) esteve por trás das alterações sofridas pelo artigo em 2005, quando se introduziu um número adicional com a finalidade única de destruir a automaticidade da presunção.

Nestes termos, e em guisa de conclusão: i) considerando -se (inter‑namente) inválido, o dispositivo em crise deveria ter sido desaplicado, não sendo o sujeito, em consequência, “havido como residente”; ii) nestes termos, Portugal deixaria de ter qualquer pretensão de tributar o sujeito, não ocorrendo qualquer fenómeno de dupla residência.

71 Cfr. Costa, J., “O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional” in: Miranda, J. (ed.) AAVV, Perspectivas Constitucionais. Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 425, n. 19.

72 Cfr. Palma, C., “Da Evolução do Conceito de Capacidade Contributiva”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 402, p. 134.

73 Cfr. Pardal, F., “O uso de Presunções no Direito Tributário”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 325/327, 1986, p. 20.

74 Neste sentido vide o acórdão 211/03 do TC no processo 308/02, 3ª secção, que teve como relator o Juiz -Conselheiro Tavares da Costa que confirma a inadmissibilidade de certas presunções inilidíveis em matéria tributária. No mesmo sentido vide os acórdãos 348/97, 84/03 e 452/03 (ainda que, neste último, concluindo que não se estava perante uma presunção inilidível).

75 Claro que se podem chegar a regras de prevalência, clusters argumentacionais em relação a certos sectores. Mas, na sua pureza, o critério não pode deixar de ser o finalístico.

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4.2. A proposta descoincidência entre a noção interna e a noção con‑vencional

Neste momento, transferimo -nos do plano interno para o do tributário internacional. Um dos postulados centrais da linha jurisprudencial em ques‑tão é o da existência de um conceito convencional autónomo de residência, o qual exigiria a verificação de alguns elementos substantivos próprios.

Nos segmentos seguintes procederemos a uma desconstrução analí‑tica deste axioma, o que será feito através de uma multiplicidade de enfo‑ques analíticos. Começaremos por destacar o sentido e função do con‑ceito de residência presente no art. 4º, n. 1 das CM (e que é repetido pela CDT PT -DE) verificando que o mesmo não consente uma substantividade própria. De seguida, trilharemos o caminho inverso, e tentaremos negar a autonomia acima avançada, através tanto dos comentários às CM como das posições de vários comentadores.

4.2.1. A relevância da noção de residente no quadro convencional

O conceito de residente mostra ‑se essencial para o funcionamento do mecanismo convencional. Para quem uma CDT se aplique é necessá‑rio que se reúnam os pressupostos da sua “incidência objectiva” (“objec‑tive treaty entitlement”), assim como os da sua “incidência subjectiva” (“subjective treaty entitlement”). A residência é fundamental para esta última operação.

No que respeita à parte subjectiva, dispõe o art. 1º da CDT PT -DE76 que esta se aplica “às pessoas residentes de um ou de ambos os Estados Contratantes”. O art. 4º surge com o intuito de clarificar este requisito.

O art. 4º, nº 1, antecipando dificuldades heurísticas, acaba por pro‑ceder a um elenco alargado e meramente exemplificativo77 daquilo que se deve entender como “residente”. Tal inciso, aplicável tanto a pessoas singulares como colectivas estabelece simplesmente que “para efeitos

76 As referências seguintes serão retiradas directamente do texto da CDT PT -DE. O dispositivo segue, de resto, o fraseado da CM OCDE, tal como é corrente nas CDT’s portuguesas – vide Silva, B., “Portugal”, in: Lang, M. (ed.), Recent Tax Treaty Develop‑ments Around the Globe, Series on International Taxation, Viena: Linde, 2009, p. 351.

77 Como se depreende claramente da parte final do art.º 4º, n.º 1 da CM OCDE.

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desta Convenção, a expressão ‘residente de um Estado Contratante’ signi-fica qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto devido ao seu domicílio, à sua residência, ao local de direcção ou a qualquer outro critério de natureza similar”.

Tal regra não pode deixar de ser lida em conjunção com a guideline presente no art.º 3º, n.º 2 CDT PT -DE, a qual determina “para aplicação da Convenção por um Estado Contratante, qualquer expressão não definida de outro modo terá, a não ser que o contexto exija interpretação diferente, o significado que lhe for atribuído pela legislação desse Estado Contra‑tante relativa aos impostos a que a Convenção se aplica”78.

Destarte, tanto a leitura isolada como a leitura contextualizada do inciso nos conduz inexoravelmente à conclusão de que a densificação do con‑ceito [residência] deve ser feita por referência aos ordenamentos internos.

A principal função do conceito é a de permitir o “subjective treaty entitlement” pelo que faz todo o sentido que este se produza em relação àqueles que, em cada ordenamento, são tratados como residentes. Isto porque, muito linearmente, estes ver ‑se ‑ão submetidos, no quadro desses sistemas, à tributação do seu rendimento mundial. Sendo um dos objec‑tivos da convenção o da eliminação ou da atenuação da dupla tributação internacional, e sendo a full tax liability (claro está, conjugada com a tri‑butação na fonte) um dos motivos que conduz a essa dupla tributação, é compreensível que se remeta para o direito nacional a tarefa da defi‑nição das pessoas que poderão aceder à condição. A quadratura do cír‑culo produz ‑se quando se faz coincidir o âmbito dos que são submetidos à tributação mundial do rendimento com o daqueles que poderão aceder à convenção. O conceito de residência não é mais do que um pivot para aquela quadratura.

Em conclusão, e para que o sistema idealizado funcione verdadei‑ramente, é necessário que o conceito de residência mencionado na con‑venção seja meramente acoplado às noções internas, permitindo assim o acesso aos mecanismos convencionais de todos os que são tributados pelo seu rendimento mundial.

78 Sobre esta questão vide Avery Jones, J., “The Interpretation of Tax Treaties with Particular Reference to Article 3(2) of the OECD Model I”, British Tax Review, 1984, vol. 1, p. 14 -54 e Avery Jones, J. “The Interpretation of Tax Treaties with Particular Reference to Article 3(2) of the OECD Model 2”, British Tax Review, 1984, vol. 2, p. 90 ‑105.

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Até ao momento tentamos proceder a uma desconstrução analítica pela positiva, evidenciando o sentido ou função do artigo. No segmento seguinte incidiremos ainda sobre o mesmo tema, mas fá -lo -emos pela negativa, demonstrando a inadmissibilidade da tese aventada: a da auto‑nomia do conceito convencional.

4.2.2. A negação da autonomia das noções pela via interpretativa

A negação deve partir, de novo, da consideração do elemento literal. Se lermos com atenção o art.º 4º, n.º 1, este refere -se claramente a uma pessoa que “por virtude da legislação de um Estado seja considerada como residente”. A expressão tem inequivocamente um sentido: o de proceder a uma clara remissão (acoplamento, como anteriormente mencionamos) para o conceito interno, sem qualquer reserva.

Em segundo lugar, a autonomia é negada pela consideração sistémica. Como vimos o art. 4º, n.º 1 deve ser entendido como corolário do art.º 3º, n.º 2 que manda densificar os conceitos não expressamente definidos (o que é o caso) com base no “significado que lhe for atribuído pela legis‑lação desse Estado Contratante”. E nada em contrário resulta do contexto.

Em terceiro lugar, a autonomia é negada por uma consideração his‑tórica, da ocasio do dispositivo. Para o demonstrarmos, dedicamo ‑nos a investigar a origem do dispositivo. Descobrimos que já em 1958 este aparece num documento da Comissão Fiscal da então Organização para a Cooperação Económica Europeia79. O fraseado, muito similar ao actual, dis‑punha: “para efeitos desta convenção, a expressão ‘residente’ de um Estado Contratante significa qualquer pessoa que por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a tributação devido ao seu domicílio, à sua residên‑cia, ao local de direcção ou a qualquer outro critério de natureza similar”80.

79 Para uma acesso ao texto integral dos textos dos trabalhos de preparação da CM OCDE, vide http://www.taxtreatieshistory.org. Este site contém um repositório completo dos mesmos, fruto de um trabalho conjunto do Instituto de Direito Fiscal Austríaco e Internacional da WU Vienna (Viena de Áustria), do IBFD, da Universidade Sacro Cuore (Milão, Itália), da Associação Fiscal Internacional (“IFA”) e da Fundação Fiscal Canadiana.

80 Cfr. “The elimination of Double Taxation”, Report of the Fiscal Committee of the OEEC, Paris, OEEC, 1958, p. 35. O itálico é nosso e assinala a única alteração em relação ao fraseado actual. Na versão em inglês a correlativa alteração é a do conceito de “taxation” pelo de “tax”.

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As notas explicativas que acompanharam esta proposta esclarecem que: “the Conventions for the avoidance of double taxation do not concern themselves with testing national rules of law of the Contracting States laying down the cases in which a person is to be treated fiscally as ‘domiciled’ and, consequently, is ‘fully liable to taxation in that State. The Conventions do not lay down standards which the national rules of law on ‘domicile’ have to fulfill in order that claims for full tax liability can be accepted between the Contracting States. In this respect the States take their stand entirely on the national legislation”81.

Assim, e tendo em consideração a ocasio, vemos como o que real‑mente importa não é uma exegética mais ou menos cuidada do termo residente mas a circunscrição daqueles sujeitos que se vêm submetidos a uma pretensão soberana de tributação da totalidade do seu rendimento.

4.2.3 A negação da autonomia da noção a partir de comentários e de comentadores

Não é aqui o momento próprio para nos referirmos ao valor norma‑tivo dos actuais comentários à CM OCDE82. Bastará, para a este título mencionar que existe um consenso internacional no sentido de que estes devem ser tidos em consideração sempre que exista um diferendo relativo à interpretação ou aplicação das convenções que se inspirem no modelo83.

81 Idem, ibidem, pp. 55 ‑56. Transcrevemos em inglês dado tratar ‑se de uma passa‑gem essencial de modo a não criar dar lugar a quaisquer problemas adicionais de inter‑pretação.

82 Um estudo compreensivo sobre o tópico pode ser encontrado em Engelen, F., Interpretation of Tax Treaties under International Law, IBFD Doctoral Series, n.º 7, Amsterdam, IBFD, 2004, (em particular no Capítulo X, parte IX). Mais recentemente vide Ward, D., et all., The Interpretation of Tax Treaties with Particular Reference to the Commentaries on the OECD Model, IFA Canadian Branch and Amsterdam, IBFD, 2005, pp. 241 et seq., Erasmus -Koen, M., Douma, S., “Legal Status of the OECD Commentaries – In Search of the Holy Grail of International Tax Law”, Bulletin for International Taxation, vol. 61, n.º 8, 2007, pp. 339 et seq. e Arnold, B., “The Interpretation of Tax Treaties: Myth and Reality”, Bulletin for International Taxation, vol. 64, n.º 1, 2010 (artigo baseado na “Klaus Vogel Lecture” apresentada no dia 15 de Outubro de 2009 no Instituto de Direito Fiscal Austríaco e Internacional da Universidade de Viena).

83 Em particular quando o fraseado destas segue a CM OCDE, como é o caso. Neste sentido escreve Engelen: “Recommendations adopted by the OECD Council pursuant to

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O presente segmento atentará aos comentários da CM OCDE assim como à posição de diversos comentadores. Dado o facto de a CDT PT ‑DE reproduzir integralmente o texto dos comentários, tais observações pode‑rão ser integralmente importadas para a questão que ora nos ocupa.

Em primeiro lugar, os comentários são concludentes ao afirmar que o verdadeiro objectivo do dispositivo é o de abranger todos os casos de tributação mundial do rendimento84 (“full tax liability”). A ênfase deve ser colocada no efeito da qualificação, e não nos elementos factuais que deter‑minam a qualificação85. Neste mesmo sentido se pronuncia Vogel, o qual entende que se encontram abrangidos todos os critérios (“localy ‑related criteria”) que atraiam a tributação do sujeito como residente, com base no seu rendimento munidal86. Além disso, e como referem vários auto‑res, as CDT’s não falam só de “residência, mas ainda de outros factores (com uma nítida intenção de expansividade)87, o que é manifestamente

article 5(b) of the OECD Convention are not, as such, legally binding on the Member countries. This is not to say, however, that such recommendations are without significance on the international plane. On the contrary, they can be regarded as a form of international ‘soft’ law directed at the Member countries and adopted with a view to achieve the aims of the Organization, and, as such, have great authority in the Member countries and are often complied with. This is also true for the recommendations made by the Council concerning the use by Member countries of the OECD Model Tax Convention and the Commentaries thereon” – Cfr. Engelen, Interpretation of Tax Treaties under International Law, cit., nota 83, p. 453.

84 Utilizamos a expressão no sentido em a mesma é empregue no art.º 15º, n.º 1 do CIRS.

85 Neste sentido vide § 3 e 8 do Comentário à CM OCDE ao art.º 4. (doravante Comentário). Na frase 4 do § 8 assinala -se: “as far as individuals are concerned, the definition aims at covering the various forms of personal attachment to a State which, in the domestic taxation laws, form the basis of a comprehensive taxation (full liability to tax)” (e, a contrario, § 8.1). À mesma conclusão se chega por um exame atento do ponto 26.1 do comentário da OCDE ao art.º 1. Neste sentido também vide Svovoda, J., “Treaty entitlement of Dual Residents” in: Hofstätter, M. e Plansky, P. (eds.), Dual Residence in Tax Treaty and EC Law, Viena, Linde, 2009, p. 102.

86 Cfr. Vogel, K., Klaus Vogel on Double Tax Conventions, The Hague, Kluwer Law International, 1991, mrg. 24 do Comentário ao art. 4º (doravante, na ausência de indicação em contrário, a numeração das mrgs. será a referente às anotações ao art. 4º).

87 Neste sentido escreve Silva que “the criteria provided for by art 4(1) are relatively wide and comprise not only domicile, residence, place of management but also any criteria of similar nature. The exact scope of this last expression is far from unambiguous but at least demonstrates that the criteria stated in this provision are merely exemplary” – vide

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visível na utilização da parte final: “ou a qualquer outro critério de natu‑reza similar”88. Esta orientação é bem clara em VegA borrego o qual faz depender todo o “subjective tax entitlement” ao facto de o sujeito se ver submetido a tributação com base no seu rendimento mundial89.

Em segundo lugar, a negação da autonomia é perceptível pela remis‑são para os indicadores factuais internos, sejam estes quais forem90. Como se refere nos comentários, as CDT’s “não estabelecem critérios que os dispositivos domésticos sobre ‘residência’ devam cumprir de modo a que as pretensões de tributação do rendimento mundial do sujeito possam ser aceites. A este respeito, os Estados assentam inteiramente na legislação interna”91. Vogel clama mesmo por uma “exclusividade” estatal, nessa definição e refere que os indicadores do art.º 4º, n.º 1 têm de ser inter‑pretados por referência à lei interna)92. No mesmo sentido se pronuncia xAVier ao afirmar que “a qualificação como residente, pertence ao direito interno dos Estados, o qual tem apenas por limite a natureza da conexão adoptada, que deve ser o domicílio, a residência, o local de direcção ou qualquer critério de natureza análoga”93.

Silva, B., “The Tie -Breaker Rule (art. 4 of the OECD MC): Relevance of Domestic Law or Autonomous Interpretation”, in: Shilcher, M., Weniger, P. (eds), Fundamental Issues and Practical Problems in Tax Treaty Interpretation, Series on International Taxation, Viena, Linde, 2008, p. 337.

88 De acordo com Vogel, K., op. cit., nota 87, mrg. 29, al. c) do comentário ao art. 4º: “the term ‘other criterion of a similar nature’ makes clear that the enumeration and criteria of domestic law which attract tax liability are no more than examples for the rule. The term should be understood to mean any locally ‑related attachment that attracts residence -type taxation”.

89 A citação é a seguinte: “to be considered a resident it is necessary to be liable to tax in a state on worldwide income” – Cfr. Vega Borrego, F., Limitation on Benefits Clauses in Double Taxation Conventions, Eucotax Series on European Taxation, vol. 12, The Hague, Kluwer Law International, 2006, p. 76.

90 Obviamente, sem falar na fonte pois se todos os Estados utilizassem o critério da fonte (rectius: se este recebesse a mesma definição em todos eles) não surgiriam pro‑blemas de dupla tributação.

91 Cfr. 2ª e 3ª frases do § 4 do Comentário. No original pode ler -se “they [CDT’s] do not lay down standards in which the provisions of the tax liability can be accepted between the Contracting States. In this respect the States take their stand entirely on the domestic laws”.

92 Neste sentido vide Vogel, K., op. cit., nota 87, mrg 8 e mrg. 24 alínea b) (frase inicial) do comentário ao art. 4.

93 Xavier, A., op. cit., p. 291.

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Em terceiro lugar, as situações de “deemed residence”, como a “resi‑dência por dependência”, são expressamente previstas. De acordo com o comentário, o artigo “também abarca os casos em que uma pessoa é tida [deemed], de acordo com as leis tributárias de um Estado, como residente desse Estado e, por esse facto, tributada com base na totalidade dos seus rendimentos”94. xAVier enquadra aqui a norma portuguesa a qual, na sua apreciação, exige apenas “a residência em Portugal de um dos chefes do agregado familiar, aferida face aos critérios do artigo 16º do CIRS, para que esta arraste, por um principio de atracção da unidade familiar, a residência dos demais (residência por dependência). Assim, por exemplo, o emigrante português que reside efectivamente na Alemanha, será por dependência, considerado residente em Portugal e aqui sujeito a uma tributação numa base universal, incluindo portanto os rendimentos obtidos na Alemanha”95.

Partindo do conceito de deemed residence, aludido nos comentários, podemos concluir que a remissão para a legislação estatal, a que se refe‑rem tanto os comentários como os comentadores, abrange não só os indí‑cios factuais que atribuem o status de residência mas ainda as normas de protecção daquelas/anti ‑abuso.

Se a rigidez da presunção pode ser questionada ao nível interno, tal já não parece possível ao nível internacional. De facto, as exigências de racionalidade são, neste contexto, bem mais reduzidas na medida, inter alia, que se têm de operar com diferentes ordenamentos jurídicos, com critérios de revisibilidade normativa distintos96.

Neste quadro, a única possibilidade de revisão das normas interna‑cionais é ‑nos dada não pela autonomia do conceito convencional, mas pelo disposto na parte final do art. 4º, n.º 1, adicionado em 1997, que estabelece que “a expressão não inclui qualquer pessoa que está sujeita a imposto nesse Estado apenas relativamente ao rendimento de fontes loca‑lizadas nesse Estado ou a capital aí situado”97. weeghel explica que esta

94 Cfr. frase 5º do § 8 do Comentário ao art. 4º.95 Cfr. Xavier, A., op. cit., p. 287.96 Essa revisibilidade parece -nos apenas admissível em casos de extrema ilogici dade

ou irracionalidade (p.e. todos os habitantes do mundo com olhos azuis são residentes no pais X). Cremos que o “Wednesbury test” do sistema britânico é um bom padrão para um sistema de revisibilidade passível de ser aplicado no contexto internacional.

97 De acordo com VegA borrego “any other criterion under a state’s legislation which does not give rise to this degree of liability (full liability) is insufficient as a basis

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expressão vem apenas esclarecer que “é conceptualmente correcto basear a residência para efeitos dos tratados, na sujeição ilimitada a imposto num Estado”98. Ou seja, não acederá aos benefícios do Tratado aquele que, ainda que recebendo um status similar ao de residente, seja apenas tribu‑tado pelos rendimentos obtidos no território.

Em conclusão, tanto comentários como comentadores se mostram unânimes em negar a autonomia ao conceito convencional. Nada melhor para concluir esta secção do que as palavras de herrerA molinA quando afirma, a este propósito que “es bien conocido que los convenios de doble imposición no incorporan un concepto autónomo de residência (com independência de la previsión de los tiebreakers), sino que remiten a las normativas nacionales, y los Estados miembros no utilizan reglas homo‑géneas en esta matéria”99.

5. A aplicação da ratio decidendi a casos futuros

5.1. Introdução

Um dos motivos que nos levou a elaborar o presente estudo foi o de colocar em destaque as possíveis consequências (negativas) que podem derivar da aplicação da presente linha jurisprudencial a casos futuros.

É verdade que a norma em causa sofreu alterações e o que anterior‑mente era uma presunção iuris et de iure é agora uma presunção iuris

on which to deem a taxpayer to be a resident in accordance with Article 4 of the OECD Model, even though such consideration is nominally given under a state’s legislation” – Cfr. Vega Borrego, F., op. cit., p. 76. Sobre casos de aplicação prática deste dispositivo vide Frkal, T., “Personal Scope of a Tax Treaty – the 2nd sentence of art. 4(1) OECD MC”, in: Aigner, H. (ed.), Source versus Residence in International Tax Law, Schriftenreihe zum Internationalen Steuerrecht, vol. 38, Viena, Linde, 2005, pp. 63 et seq..

98 A passagem completa, em inglês, é a seguinte: “it is conceptually correct to base residence for treaty purposes on the unlimited tax liability in a state. If residence were to be established based on the residence rules of the source state, relief could be given in situations where the other state does not tax the income or relief could be denied in situations where the income would be taxed by the other state” – see Weeghel, S., The Improper Use of Tax Treaties – with Particular Reference to the Netherlands and the United States, Series on International Taxation, vol. 19, London, Kluwer Law International, 1998, pp. 40 -41.

99 Cfr. Herrera Molina, Pedro, Convenios de Doble Imposición y Derecho Comuni‑tario, Madrid, Instituto de Estudios Fiscales, 2008, p. 198. O negrito é nosso.

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tantum. É ainda verdade que tal alteração mostra ‑se como absolutamente relevante dado que ultrapassa todas as reservas que anteriormente descre‑vemos, quando abordamos a questão da inadmissibilidade da presunção no seio do ordenamento português.

Mas as modificações introduzidas em 2005 limitaram -se à possibi-lidade de ilisão da presunção (com a introdução de um novo n.º 3 e 4 ao art. 16º)100. A letra do art. 16º manteve -se inalterada pelo que as modi‑ficações em nada atingem a orientação jurisprudencial em comentário.

Este conjunto de acórdãos trilhou caminhos distintos, que iremos sintetizar nos seguintes axiomas: i) existe um conceito convencional (nas CDT’s) autónomo de residência; ii) o art.º 16, n.º 2 CIRS é ilegal por violação desse conceito autónomo; iii) a definição interna de residência, para ser convencionalmente (CDT’s) válida, tem de passar por critérios “que exprimam uma ligação efectiva ao território do Estado, não sendo atendíveis, para efeitos convencionais, um mero critério de “residência por dependência” como o constante do artigo 16º, n.º 2, por não exprimir por si qualquer conexão efectiva e real da maior parte das sua actividades económicas ao território português”101.

Tais postulados expostos nos acórdãos suscitam -nos sérias reservas, que a seguir se exporão.

5.2. Perigo de utilização, por parte do poder judiciário, do conceito convencional de residência para a sindicância de normas internas, de ambos os Estados contratantes

Se aceitamos que o “conceito convencional” legitima juízos de sin‑dicância interna, então somos necessariamente conduzidos a aceitar que

100 Os quais fixam, respectivamente, que “a condição de residente resultante da apli‑cação do disposto no número anterior pode ser afastada pelo cônjuge que não preencha o critério previsto na alínea a) do n.º 1, desde que efectue prova da inexistência de uma ligação entre a maior parte das suas actividades económicas e o território português, caso em que é sujeito a tributação como não residente (…); o n.º 4, por seu turno, estabelece a forma como os diversos sujeitos devem apresentar as declarações periódicas anuais. Este regime foi introduzido pela Lei n.º 60 -A/2005, de 31 de Dezembro.

101 Vide o ponto 6.1 do primeiro dos acórdãos citados.

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essa sindicância se possa fazer em relação às normas de ambos os Esta‑dos Contratantes.

Na prática, isto autorizaria os juízes internos a procederem a sindi‑câncias autónomas dos conceitos internos de residência (ou, nas palavras dos acórdãos, os juízes nacionais a pronunciarem -se sobre a “legalidade” dos mesmos) o que colocaria em causa a estabilidade normativa que, ao fim de longos anos, se atingiu no que respeita às questões da residência e do “subjective treaty entitlement”.

5.3. Uma certa inconsistência interna da solução proposta

A defesa de um conceito convencional de residência, que requer “um ligação efectiva ao território do Estado” ou uma “conexão efectiva e real da maior parte das suas actividades económicas ao território português” entra, de certa forma em conflito, com o conteúdo das regras de desem‑pate previstas no próprio quadro convencional – no art. 4º, n.º 2 CM OCDE.

De facto, seria muito difícil conceber que alguém seja qualificado como residente nos termos dos supra ‑citados critérios e, posteriormente, se pudesse recorrer ao acordo mútuo (o último dos critérios de desempate) porque o sujeito não dispunha102, no Estado, de uma habitação perma‑nente, do seu centro de interesses vitais ou do seu lugar de permanência habitual. Parece extremamente difícil divisar um critério que simultanea‑mente não reúna estas três condições mas que passe o estrito crivo fixado pela jurisprudência nacional.

A ser certa a orientação do nosso Supremo, o art. 4º, n.º 2 da CM perderia a sua lógica e careceria de efeito útil… o que parece uma forma de circunvenção da convenção – uma “manipulação” que nos parece tanto mais inquietante quando a mesma é protagonizada por juízes.

102 Ou não era possível provar que dispunha o que, in casu, resulta no mesmo.

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5.4. A erosão da soberania tributária portuguesa

Face a um conceito convencional tão estritamente delineado, não só as presunções mas muitos dos indicadores fácticos de residência teriam de ser considerados “ilegais”103.

Sem ter a pretensão de fazer um estudo compreensivo sobre os critérios que decairiam, não podemos deixar de manifestar as nossas dúvidas sobre a validade de indicadores como os do art. 16º, n.º 1 c) quando se atribui a qualidade de residente àqueles que, a 31 de Dezembro, sejam tripulantes de navio ou aeronave ao serviço de entidades com residência, sede ou direcção efectiva em Portugal; ou aqueloutros que, nos termos da alínea d) desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público ao serviço do Estado Português (art. 16º, n.º 1 d); ou ainda em relação aos nacionais que deslocalizem a sua residência para país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável (art. 16º, n.º 5)104.

Em todos os casos anteriormente referidos, o juiz teria de fazer decair automaticamente a pretensão portuguesa (sempre que existisse uma CDT). Estaríamos perante uma espécie de regra unilateral de conflitos de forma‑ção jurisprudencial a qual, além de ter um sentido único ‑ o da erosão da soberania tributária nacional – operaria ainda um forte desvio à ideia de separação de poderes na medida em que se procederia a uma recomposição dos limites da incidência tributária definidos de forma clara, pelo poder legislativo – em consonância com as práticas internacionais.

De facto, numa visão de direito comparado, analisando os sistemas de várias jurisdições, chegamos à conclusão de que existe uma forte diver‑sidade no que tange aos critérios de atribuição do status de residência a uma pessoa singular. A título de exemplo, nos Estados Unidos procede -se à aplicação do green card test e do substancial presence test105 (além do que

103 Pelo menos sempre que estivéssemos perante uma situação transnacional que apresentasse elementos de conexão com uma ordem jurídica com a qual o Estado Por‑tuguês tivesse celebrado uma CDT – o que, e em termos práticos, convertiria a norma em “ilegal” nas relações com mais de 50 Estados, incluindo a maioria avassaladora dos países com os quais os “residentes” portugueses estabelecem transacções internacionais.

104 Sendo que nesse caso o status de residência se mantém por quatro anos.105 Vide, a este propósito, Miller, A. e Oats, L., Pinciples of International Taxation,

2ª ed., West Sussex, Tottel Publishing, 2009, pp. 34 et seq..

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se tributa pelo rendimento mundial também os nacionais)106. O estudo de Ault107 mostra -nos critérios, provenientes de várias jurisdições, os quais dificilmente passariam os referidos critérios definidos pelo nosso STA.

5.5. A intensificação dos conflitos positivos de residência

Coloquemos agora a nossa reflexão num plano mais geral. Sabemos que um dos objectivos das CDT’s é a da eliminação da dupla tributação. Ora a presente leitura jurisprudencial, em vez de maximizar esse objec‑tivo, acaba por o dificultar.

Num caso de “dual ‑residence”, se Portugal se negar a reconhecer o estatuto de residente atribuído por um outro Estado -Contratante, o resultado será o de, não obstante a existência de uma convenção, excluir o sujeito dos benefícios da mesma. Este poderá apenas tentar o recurso aos tribunais do outro Estado os quais, com grande probabilidade, se negarão a reconhe‑cer valia à orientação jurisprudencial perfilhada pelo Supremo português.

Em conclusão, a orientação jurisprudencial leva a que situações de efectiva dupla residência – inequivocamente acolhidas na letra e no espí‑rito da convenção – deixem de o estar, colocando o “treaty entitlement” na dependência do entendimento autónomo do juiz interno.

5.6. A intensificação de casos de conflito negativo de residência

Um outro objectivo das convenções é o da luta contra a fraude e eva‑são fiscal, o que pode ocorrer pela manipulação de elementos de conexão, originando casos de dupla não tributação. A orientação jurisprudencial em causa também pode favorecer a emergência destas situações.

Partamos da hipótese fáctica descrita no acórdão, mas assumamos que os critérios de desempate (art.º 4º, n.º 2 CDT) apontavam inequivocamente para Portugal como o Estado de residência para efeitos da convenção108.

106 Para uma discussão recente vide Zelinski, E, “Citizenship and Worldwide taxation: Citizenship as an Administrable proxy for Domicile”, Iowa Law Review, 2011 (mimeo).

107 Por todos, e para uma visão comparada, vide Ault, H., Comparative Income Taxation – A Structural Analysis, The Hague, Kluwer Law International, 1997, pp. 368 ‑371.

108 Por exemplo, por aqui se situar o centro de interesses vitais do sujeito, nos ter‑mos do art. 4º, n.º 2 a) in fine tanto das CM como da CDT PT -DE.

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No caso, a administração fiscal portuguesa consideraria o sujeito como residente, procedendo à respectiva liquidação. O sujeito poderia arguir na Alemanha a existência de um caso de dupla residência o qual seria resolvido reconhecendo ‑se a primazia da pretensão portuguesa (por exemplo, como vimos, por aqui se situar o centro de interesses vitais). Mas, e ao mesmo tempo, se o sujeito for conhecedor desta linha de orien‑tação jurisprudencial poderá, posteriormente, disputar judicialmente em Portugal a sua qualificação como residente, dado o critério da residên‑cia por dependência (mesmo na sua estrutura de presunção ilidível) ser incompatível com o autónomo conceito convencional.

Nesse caso chegaríamos à solução absurda de nenhum dos Estados com os quais a situação pluri -localizada apresenta elementos de conexão se mostrar competente para tributar, pelo menos como Estado de residência. De igual forma, nenhum terá em consideração as circunstâncias pessoais e familiares do sujeito ou outros factores atinentes à capacidade contri‑butiva do sujeito109. Por outro lado, pode dar ‑se ainda o caso de o sujeito conseguir demonstrar que o outro Estado o considera (ainda que apenas numa fase preliminar) como residente, o que lhe permitirá eventualmente beneficiar das taxas mais reduzidas previstas na convenção, sem que a contraparte possa exercer qualquer poder tributário sobre o montante do rendimento que beneficiou dessa redução.

6. O vício formal do raciocínio

Vimos já como os objectivos das convenções acabam por ser, de certa forma, frustrados. Mas, mais surpreendente ainda, é o vício interno do raciocínio que a argumentação jurisprudencial acaba por acolher.

Lida com atenção, a decisão parece cometer uma espécie de circulus in demonstrando110: o dispositivo que se utiliza para sustentar a inaplica‑bilidade (“ilegalidade”) da norma interna é o dispositivo convencional,

109 Isto apesar da conhecida oposição de Vogel o qual considera que a ideia de capacidade contributiva pode ser efectivada no quadro de sistemas baseados na tributação da fonte – Cfr. Vogel, K., “‘Besteuerungsrechte’ und über das Leistungsfähigkeitsprinzip im internationalen Steuerrech”, in Kirchhof, P. (ed.) Steuerrecht Verfassungsrecht Finanzpolitik – Festschrift für Franz Klein, Colónia, Schmidt, 1994, pp. 361 et seq..

110 Em português corrente, uma espécie de “pescadinha de rabo na boca”.

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sendo que a convenção, face à desaplicação desse mesmo artigo não se mostra aplicável. Ou seja: por um lado usa -se um dispositivo convencio‑nal para excluir a aplicabilidade do dispositivo interno; mas, por outro lado, ignora -se que esse dispositivo interno constitui exactamente a base de legitimidade do acesso ao sistema convencional.

A ilegalidade do art. 16º, n.º 2 resulta da violação do art.º 4º, n.º 1 da CDT PT -DE. Mas, para que o art. 4º, n.º 1 seja aplicável é necessário que a CDT PT -DE seja aplicável, o que por sua vez depende da verificação de certos requisitos, como o “subjective treaty entitlement”. Ora este último nunca se pode verificar se o art.º 16º, n.º 2 CIRS é inaplicável nos casos em que Portugal tenha celebrado uma convenção. Assim, não existindo residência em Portugal (nem tão pouco fonte), a convenção que foi parâ‑metro de aferição do art. 16º, n.º 2 CIRS nunca poderia ter sido aplicada.

Das duas uma (... e sendo o terceiro excluído): i) ou o art.º 16º, n.º 2 CIRS padece de um vício anterior (interno) e não possibilita o “treaty entitlement” e a convenção não é aplicável; ii) ou o art.º 16º, n.º 2 CIRS não padece de qualquer vício, e contem em si as condições que permitem a aplicabilidade da convenção. Sustentar esse terceiro excluído (ou seja, que a convenção é operante e determina a exclusão do art.º 16º, n.º 2 CIRS – mas ao mesmo tempo reconhecer que é o art.º 16º, n.º 2 que dá opera‑tividade à convenção) faz com que a argumentação se torne irrazoável.

7. Algumas conclusões

Finda a nossa investigação, e efectuada a presente exposição, não deixa de ser surpreendente constatar que a linha jurisprudencial em apreço – caso não seja revisitada e continue a ser aplicada – pode ter um forte impacto sobre o equilíbrio do sistema normativo tributário -internacional português tal como pode conduzir a uma considerável perda de receitas. Estamos certos de que não era esse o objectivo pretendido, e que, consta‑tados os eventuais vícios, se procederá a uma célere revisão.

Todo este imbróglio emerge de uma intuição empírica básica: a de que um sujeito que apenas passa férias em Portugal não se pode considerar aqui como residente. Mas, ao invés de se fazer o enquadramento correcto da situação e: i) verificar que os critérios de residência portugueses não apresentam nenhuma especialidade digna de registo, ii) que a norma do

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art. 16º, n.º 2 CIRS não expressa uma qualquer opção relativa ao conceito de residência, sendo apenas uma norma anti ‑abuso com a estrutura de uma presunção inilidível; iii) que o verdadeiro problema da mesma reside nessa impossibilidade de ilisão; o tribunal acabou por proceder à desaplicação da norma com base na ilegalidade da norma (anti ‑abuso) por violação de um autónomo conceito convencional de residência – postulado que não obtém qualquer acolhimento no quadro tributário internacional.

Ao fazê -lo, acabou por dar resposta àquela intuição empírica… mas, e simultaneamente, dá origem a uma orientação que pode originar proble‑mas heurísticos graves… Isto porque a possibilidade de ilisão da presun‑ção, introduzida em 2005, não abala o rationale da orientação jurispru‑dencial, a saber: i) a existência de um conceito autónomo de residência; ii) que exige critérios que “exprimam uma ligação efectiva ao território do Estado”; iii) e que pode servir de critério de parametricidade para ana‑lisar a validade de normas internas.

No presente estudo, além de se evidenciarem as inconsistências inter‑nas, tentamos expor alguns dos problemas que podem emergir da aplica‑ção da ratio decidendi em casos futuros tais como a erosão de algumas pretensões de soberania tributária baseadas na residência e o agravamento das situações de conflito positivo e negativo de residência.

Esperamos, com o presente, ter contribuído para o debate e espera‑mos que a referida orientação seja brevemente revista. Desse modo seria possível alinhar a nossa jurisprudência com a dos nossos restantes par‑ceiros económicos e promover a consolidação de um ambiente tributário favorável ao desenvolvimento das operações económicas internacionais estimulando, ao mesmo tempo, o desenvolvimento económico nacional.

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Nuno de Oliveira Garcia Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

e membro do IDEFF.Docente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

Advogado

Rita Carvalho Nunes Advogada estagiária

Nuno de Oliveira GarciaRita Carvalho Nunes

Inspecção Tributária Externae a Relevância dos Actos Materiais de Inspecção

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RESUMO:

O presente texto sublinha alguns aspectos relevantes da distinção entre procedimen‑tos de inspecção tributária interna e externa, incidindo em especial sobre a necessidade de assegurar o cumprimento do princípio da substância sobre a forma, na sua vertente de relevância material dos actos inspectivos.

Palavras‑chave: Inspecção externaInspecção internaActos materiais de inspecção

ABSTRACT:

This article aims to highlight some of the main legal aspects of the distinction between internal and external tax audit, and particularly focuses on the need to ensure the observance of the ‘substance over form’ principle, in its dimension that concerns to the relevance of the tax audit’s material acts.

Key words:Internal Tax AuditExternal Tax AuditTax audit’s material acts

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1. Introdução e enquadramento legal do procedimento de inspecção ‘externa’

No âmbito das acções de fiscalização tributária, a distinção entre procedimentos de inspecção interna e externa assume particular relevo. O presente texto pretende identificar aspectos essenciais dessa distinção, incidindo em especial sobre a necessidade de assegurar o cumprimento dos princípios da proporcionalidade e da imparcialidade na actuação da Administração fiscal bem como do princípio da substância sobre a forma, naquilo que entendemos ser a sua vertente de relevância material dos actos inspectivos.

Nos termos do n.º 1 do artigo 2.º do Regime Complementar do Pro‑cedimento de Inspecção Tributária (adiante apenas RCPIT), «o proce‑dimento de inspecção visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infracções tributárias» (cit.), sendo o procedimento classificável como interno sempre que os actos de inspecção tenham lugar exclusi‑vamente nos serviços da Administração fiscal «através da análise formal e de coerência dos documentos» – cf. alínea a) do artigo 13.º (cit.). Ao invés, tal procedimento inspectivo será classificado como externo quando «os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instala‑ções ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tribu‑tários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso» – cf. alínea b) do artigo 13.º (cit.).

Como veremos, a classificação dos procedimentos de inspecção como interno ou externo não se resume a uma mera distinção de ordem espacial ou de localização dos actos inspectivos, acarretando, na verdade, impor‑tantes consequências, na medida em que o procedimento de inspecção externa pode restringir os direitos e liberdades fundamentais dos sujeitos passivos, desde logo (como veremos adiante) na matéria relativa à cadu‑cidade do direito à liquidação de tributos.

O procedimento de inspecção externa – procedimento absolutamente essencial para que a Administração fiscal divise a verdade material subja-cente aos factos tributários sobre os quais pode incidir uma inspecção – pode iniciar ‑se até ao termo do prazo de caducidade do direito à liquida‑ção do tributo (n.º 1 do artigo 36.º do RCPIT) e é notificado ao sujeito

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passivo – por norma, de forma pessoal – com uma antecedência de, pelo menos, cinco dias em relação à prática de actos inspectivos (n.º 2 do artigo 38.º e n.º 1 do artigo 49.º, ambos do RCPIT). A notificação consubstancia -se numa carta-aviso, que deve conter a identificação do sujeito passivo bem como do âmbito e da extensão da mesma, sendo ainda obrigatório que contenha um documento anexo que inclua os direi‑tos, deveres e garantias do sujeito passivo inspeccionado (n.os 2 e 3 do artigo 49.º do RCPIT).

A inspecção externa considera ‑se iniciada na data da assinatura, pelo sujeito passivo, da ordem de serviço ou despacho que determinou a necessidade da inspecção, documento esse que lhe deverá ser notificado no início físico do procedimento, conforme dispõe o artigo 51.º do RCPIT,1 e terminará com a notificação do encerramento dos procedimentos e com a posterior emissão de um relatório final de inspecção contendo as conclu‑sões a que chegaram os Serviços de Inspecção Tributária (cf. artigos 61.º e 62.º do RCPIT). Sempre que tais conclusões conduzam a Administração fiscal à pratica de actos tributários (ou em matéria tributária) susceptíveis de serem desfavoráveis ao sujeito passivo inspeccionado, deverão ser pre‑cedidas de um «projecto de conclusões do relatório» (cit.), que deverá ser notificado ao contribuinte para efeitos de exercício do respectivo direito de audição (cf. artigo 60.º do RCPIT).

O procedimento de inspecção externo é, como se acabou de exami‑nar, objecto de regras legalmente previstas, que o limitam, conferindo ao sujeito passivo visado pelos actos de inspecção um catálogo de direitos substantivos, ou de garantias mínimas.

Pretendemos, no entanto, demonstrar que tais direitos e garantias não podem confinar -se ao catálogo que se encontra expressamente plasmado no RCPIT, impondo -se tal alargamento pelo conjunto da legislação fis‑cal e pela aplicação dos princípios gerais a que está sujeita a actividade administrativa, tal como, aliás, tem vindo a ser salientado pela jurispru‑dência dos tribunais superiores.

1 Afigura -se -nos que a entrega da ordem de serviço ou do despacho que determina o início da inspecção pode ser dispensada nos casos de inspecção dirigida a contribuintes não identificados, conforme se depreende do disposto na parte final do n.º 1 do referido artigo 51.º do RCPIT.

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2. De relevância dos actos materiais inspectivos no procedimento de inspecção ‘externa’

2.1. A suspensão do prazo de caducidade e o conceito material de ‘actos de inspecção’

De entre as diversas diferenças que poderiam ser apontadas entre os dois tipos de procedimentos de inspecção tributária, afigura -se que uma das mais determinantes, no que diz respeito aos direitos dos sujeitos passivos inspeccionados, é a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação durante o desenrolar dos actos de inspecção externa, bastando para tal que o sujeito passivo seja notificado do início do procedimento (cf. n.º 1 do artigo 46.º da Lei Geral Tributária), suspensão, essa, que não se verifica nos casos de inspecção interna.

Esta regra comporta, todavia, uma importante excepção que se tra‑duz num primeiro grau de protecção dos sujeitos passivos inspeccionados, qual seja a de assegurar que o prazo de caducidade deverá contar -se como se não tivesse existido qualquer suspensão, caso o procedimento externo de inspecção tenha durado mais de seis meses a contar da notificação do seu início, sendo certo que é esse o prazo que deve ser observado pelos Serviços de Inspecção Tributária para a conclusão do procedimento, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 36.º do RCPIT.2 Nos casos em que o procedimento inspectivo tenha durado menos de seis meses, é hoje jurisprudência consistente, ao abrigo do disposto nos artigos 60.º a 62.º do RCPIT, que o prazo de caducidade do direito à liquidação reinicia a sua contagem aquando da notificação do Relatório Final de Inspecção – neste sentido, v., por exemplo, os acórdãos do STA de 16/09/2009 (pro‑

2 Os limites e efeitos das acções inspectivas, nomeadamente em sede de suspensão do prazo de caducidade, também têm vindo a ser construídos pela jurisprudência em desen‑volvimento do regime legal. Neste âmbito, o STA já decidiu, em acórdão de 7 de Maio de 2008, proferido no âmbito do processo n.º 0102/08, que «o procedimento de inspecção parcial ou univalente não pode ser prorrogado». Embora, a nosso ver, tal interpretação não resulte claramente do conteúdo das normas constantes das disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, e 36.º do RCPIT (sendo, aliás, parca a fundamentação aduzida pelo Tribunal), trata ‑se, sem dúvida, de uma decisão bem reveladora da tendência actual para o reconhecimento crescente de limites à actuação dos Serviços de Inspecção Tributária não expressamente vertidos na legislação fiscal.

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cesso n.º 0473/09) e do TCA Sul de 13/10/2009 (processo n.º 03415/09). Ao invés, quando a notificação do relatório Final de Inspecção ocorra após seis meses do início do procedimento, entendemos dever aplicar -se a regra constante do n.º 1 do artigo 46.º da LGT, e contar -se o prazo de caduci‑dade do direito à liquidação como se não se tivesse verificado qualquer suspensão.

Quanto a esta garantia dos sujeitos passivos inspeccionados, e já como segundo grau de protecção, a doutrina e a jurisprudência têm con‑siderado que, para efeitos desta cessação do efeito suspensivo da cadu‑cidade do direito à liquidação, é indiferente se o prazo de seis meses foi ultrapassado em razão de uma prorrogação legalmente permitida ou de uma extensão temporal ilegal dos actos inspectivos.3

Note -se que, como se deixou já enunciado, apenas o procedimento externo de inspecção, por oposição ao interno, dá origem à referida sus‑pensão do prazo de caducidade, pelo que importa procurar traçar correc‑tamente a fronteira entre os dois tipos – não só na Lei Fiscal, mas sobre‑tudo na prática – posto que, como veremos, podem existir situações em que um determinado procedimento de inspecção, formalmente classificado como externo, se vem a revelar, em substância, como interno (também podendo suceder o inverso, ainda que na prática seja menos plausível).

Desconsiderando por ora as evidentes razões conexas com a comple‑xidade das matérias e factos a inspeccionar, cada tipo de procedimento de inspecção – interno e externo – terá as suas inerentes vantagens adminis‑trativas; a saber: (i) quanto ao procedimento interno, a sua maior celeri‑dade – fruto essencialmente das menores exigências formais –, e a exis‑tência de menores exigências em sede de garantias dos sujeitos passivos inspeccionados; e, (ii) quanto ao procedimento externo, a susceptibilidade de se avaliar as realidades tributárias in loco (e, portanto, contextualiza‑das) e o facto de suspender o prazo de caducidade do direito à liquidação.

Para efeitos de suspensão do prazo de caducidade do direito à liqui‑dação, a acção inspectiva externa considera ‑se iniciada, actualmente, com a assinatura, pelo inspeccionado, da ordem de serviço ou despacho que

3 Neste sentido, v. Joaquim Gonçalves, A Caducidade face ao Direito Tributário in AAVV., Problemas Fundamentais do Direito Tributário (Viseu, 1999) pp. 246 ‑248, e, a título jurisprudencial, por todos, v. o acórdão do TCA Sul de 12 de Maio de 2009, pro‑ferido no âmbito do processo n.º 02961/09.

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determina a inspecção, em face da expressiva redacção do n.º 1 do artigo 46.º da LGT, e já não, como sucedia anteriormente, com a notificação por mera carta -aviso, alteração em muito influenciada pela jurisprudência, de que é bom exemplo o acórdão do TCA Sul de 9/06/2009, proferido no processo n.º 02729/09 (Rel. Desembargador Eugénio Sequeira).

Mas quid juris se os Serviços de Inspecção Tributária se limitarem a deslocar -se à sede da empresa inspeccionada (ou ao domicílio da pessoa singular) para obter a assinatura na notificação da carta -aviso, não consul‑tando quaisquer documentos ou suportes informáticos e não contactando mais com o sujeito passivo inspeccionado no sentido de obter informações ou de visitar as instalações? Por outras palavras, poder -se -á ainda falar de inspecção externa quando não tiverem sido praticados quaisquer actos de execução da inspecção, ou seja, verdadeiros actos materiais inspecti‑vos (e.g., o exame de documentos como previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RCPIT, a consulta de sistemas informáticos como previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RCPIT, a recolha de documentos prevista nos artigos 55.º e 56.º do RCPIT, etc.), mas apenas o cumprimento das formalidades inerentes à notificação deste tipo de procedimentos?

Será admissível o cenário patológico de utilização formal da inspec‑ção externa apenas como meio de prolongar o prazo de caducidade do direito à liquidação? Entendemos que não.

Em primeiro lugar, e com relevância para o tema em análise, o procedimento de inspecção está sujeito a princípios jurídicos que tomam contornos específicos neste âmbito e que devem enformar a actuação inspectiva da Administração em todos os momentos.

Em particular, os princípios da proporcionalidade e da adequação, previstos no artigo 7.º do RCPIT, que dispõe que «[a]s acções integradas no procedimento de inspecção tributária devem ser adequadas e propor‑cionais aos objectivos de inspecção tributária» (cit.), exigem a não utili‑zação de meios excessivamente intrusivos em face da concreta situação do sujeito passivo, balizando a actuação dos Serviços de Inspecção Tri‑butária no que respeita à correspondência adequada entre os fins prosse‑guidos e os meios utilizados.

Por outro lado, ao fazer incidir expressamente sobre as inspecções tri‑butárias o princípio da cooperação – v. artigo 9.º, n.º 1, do RCPIT, segundo o qual «[a] inspecção tributária e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributários estão sujeitos a um dever mútuo de cooperação» (cit.) –, a Lei

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Fiscal pretendeu dar ‑lhe especial enfoque em sede de actos de inspecção, devendo a Administração e os sujeitos passivos abster ‑se de quaisquer comportamentos que prejudiquem ou distorçam a avaliação da verdade material dos factos sujeitos a inspecção.4

Ora, a vigência destes princípios, bem como dos próprios princípios da verdade material (previsto no artigo 6.º do RCPIT) e da imparcialidade (constante do n.º 2 do artigo 266.º da CRP),5 impõe que o procedimento de inspecção seja utilizado tão só como meio de apurar a realidade tri‑butária (subjacente, por exemplo, aos actos de autoliquidação) – sendo por isso um instrumento fundamental da actuação Administrativa – e não como modo de prolongar, temporal e artificialmente, o direito à liquida‑ção e cobrança de imposto, o que constitui uma das razões pelas quais, como já se mencionou, a própria Lei Fiscal, nos n.os 2 e 3 do artigo 36.º do RCPIT, estabelece como limite temporal à duração da inspecção o prazo

4 Acresce que, no ordenamento constitucional vigente, avulta, como princípio estruturante de toda a actividade administrativa, o princípio da segurança jurídica, que se mostra inscrito na ideia de Estado de Direito e que implica necessariamente a protec‑ção da confiança dos particulares, impondo que a Administração Pública actue segundo as regras da boa fé – cf. Casalta Nabais (Coimbra, 1998) O dever fundamental de pagar impostos, pp. 408 e ss., e J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Cons‑tituição5 (Coimbra, 2002) pp. 257 e ss. De resto, também o princípio da boa fé, enquanto princípio conformador da actividade de toda a Administração Pública, recebe, actualmente, expressa consagração constitucional (cf. artigo 266.º, n.º 2 da CRP), encontrando também perfeita tradução, no plano da legislação ordinária, no art. 6.º -A do Código de Procedimento Administrativo – aplicável ao procedimento tributário ex vi art. 2.º da LGT (cf., também, artigo 59.º, n.º 2, da LGT). Ora, foi precisamente com vista a prevenir comportamentos omissivos ou contraditórios que o art. 6.º -A do CPA veio estabelecer que, «no exercício da actividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar -se segundo as regras da boa fé», devendo ponderar--se, para esse efeito, «a confiança suscitada na contraparte pela actuação» que estiver em causa (cit.). De cunho marcadamente ético, o princípio da boa fé impõe aos intervenien‑tes no procedimento tributário que actuem com lealdade recíproca, abstendo -se de com‑portamentos que possam enganar o outro interveniente, ou ocultando ‑lhe elementos que possam ter proveito para a defesa das suas posições – assim, v. Leite de Campos/Silva Rodrigues/Lopes de Sousa (Lisboa, 2000) Lei Geral Tributária – Comentada e anotada2, p. 248, nota 6 ao comentário ao artigo 59.º.

5 Vejam -se as consagrações do princípio da imparcialidade administrativa no RCPIT, maxime no artigo 2.º, n.º 2, alínea d), e artigo 20.º. Sobre o conteúdo do princípio da impar‑cialidade na actuação da Administração, na sua vertente positiva, v. Diogo Freitas do Ama‑ral (Coimbra, 2004) Curso de Direito Administrativo, Vol. II (4.ª Reimp.), pp. 144 -145.

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de seis meses,6 sujeitando ainda a suspensão do prazo de caducidade esta‑belecido no artigo 46.º da LGT ao mesmo prazo, independentemente de qualquer prorrogação legalmente decretada.7

Sucede que, a nosso ver, a referida suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação dos tributos não pode ter -se como efeito automá‑tico da mera abertura do procedimento inspectivo externo, nomeadamente quando, a posteriori, não sejam praticados quaisquer actos materiais de inspecção. 8

De facto, o procedimento inspectivo poderá compor -se de diver‑sos actos, referidos no n.º 2 do artigo 2.º do RCPIT e descritos sob outra perspectiva nas alíneas a) a g) do n.º 1 do artigo 29.º, que se consubstan‑ciam, designadamente, (i) na análise e exame de documentos e quaisquer outros elementos, (ii) na inventariação de bens, na consulta de sistemas informáticos, (iii) na tomada de declarações aos sujeitos passivos ou aos membros dos órgãos sociais e trabalhadores das empresas,9 os quais, no quadro do procedimento de inspecção externa têm de ser praticados nas instalações do visado, não podendo, a nosso ver, gozar da denominação «acto material de inspecção» a mera assinatura da ordem de serviço que determina o início do procedimento, porquanto não se subsume à efecti‑vação de qualquer daquelas prerrogativas.

Serão, deste modo, actos materiais de inspecção aqueles que se tra‑duzam em verdadeiras e efectivas condutas de recolha de informação e

6 Sendo possível a respectiva prorrogação por mais dois períodos de três meses, verificando -se uma das situações tipificadas no n.º 3 do artigo 36.º do RCPIT e a adequada fundamentação da prorrogação.

7 Dada a relevância e a complexidade de que pode revestir -se o procedimento inspectivo em determinados casos, somos da opinião de que, de iure condendo, por um lado, a adequada fundamentação que suporte uma prorrogação do procedimento inspec‑tivo deveria ver os seus efeitos estendidos à prorrogação da própria suspensão do prazo de caducidade e, por outro, em diversas situações se justificaria que o prazo de execução da inspecção pudesse ser alargado, mediante decisão fundamentada do Director de Finan‑ças ou mesmo do Director -Geral dos Impostos, para além do período de um ano que hoje vigora, sobretudo em razão das realidades transnacionais inerentes à actividade de muitas empresas a operar em Portugal.

8 Neste sentido, v. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa (Lisboa, 2003) Lei Geral Tributária Comentada e Anotada3, pp. 212 ‑213.

9 Tema em que acompanhamos José Casalta Nabais (Coimbra, 2009) Direito Fiscal5, pp. 351 ‑352.

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análise, verificação e comprovação de elementos, só podendo designar-‑se uma inspecção como externa quando tais condutas sejam praticadas fora das instalações da Administração fiscal.

Fora deste circunstancialismo, e sob pena de os formalismos prevale‑cerem indevidamente sobre a substância dos actos, não se afigura correcto considerar que se esteja perante uma verdadeira inspecção tributária, mormente de uma inspecção externa, quando inexistem actos materiais de inspecção, ainda que tenha sido assinada, pelo sujeito passivo ou seu representante, uma ordem de serviço que formalmente tenha dado início ao procedimento inspectivo. Nestes casos, não se poderão produzir os ine‑rentes efeitos tipificados na Lei Fiscal para as inspecções externas, de que é exemplo a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação.10

A materialização de actos de inspecção externa e, portanto, a res‑pectiva susceptibilidade de desencadear os efeitos suspensivos previstos na lei, afigura -se, assim, judicialmente sindicável, posto que não deverá equacionar ‑se como sujeita à margem de livre apreciação ou à discricio‑nariedade técnica da Administração fiscal a questão de saber se, de facto, existiu ou não uma inspecção tributária.11

Concluir -se -á pela existência de uma inspecção tributária, suspen‑dendo os prazos de caducidade em curso, caso tenham sido praticados actos materiais de inspecção, o que implica a verificação de que foram conduzidos quaisquer dos actos previstos no n.º 2 do artigo 2.º, no n.º 1

10 No ordenamento jurídico espanhol, no sentido que temos vindo a sustentar, v. Jose Arias Velasco (Madrid, 1990) Procedimientos Tributários2, p. 147 e Francisco Guio Montero (Valladolid, 1987), El Contribuyente ante la Inspección de Hacienda2, pp. 194‑-195. De acordo com o último Autor, para que se verifique a suspensão do prazo (de pres‑crição, em Espanha), «debe tratarse de una actuación efectiva, no de un mero anuncio de actuación» (cit.).

11 A própria Administração fiscal tem já utilizado em juízo o conceito de «actos materiais de inspecção», por exemplo, em casos em que o sujeito passivo (ou contribuinte) alegava a nulidade de liquidações de imposto por não ter sido notificado de qualquer pro‑cedimento inspectivo. De acordo com a Administração, nesses casos, os procedimentos de controlo executados não estariam sujeitos ao regime do RCPIT, não constituindo actos materiais de inspecção e antes sendo abrangidos por normas de legislação avulsa que per‑mitiriam controlar a validade de determinados meios de prova para efeitos de gozo de certos benefícios fiscais sem recurso à típica tramitação ao abrigo do RCPIT. Neste sen‑tido, v. acórdãos do TCA Norte de 22/09/2005 (processo n.º 00085/03) e de 25/05/2006 (processo n.º 00080/03).

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do artigo 29.º e nos artigos 55.º, 56.º e 57.º do RCPIT. Ao invés, impõe--se pugnar -se pela respectiva ineficácia sempre que, não obstante o início formal do procedimento, a Administração fiscal não logre provar ter pra‑ticado quaisquer actos que, em substância, sejam aptos à fiscalização das obrigações tributárias ou dos deveres legais de informação. Na verdade, pelo menos sempre que seja a Administração a invocar a suspensão do prazo de caducidade – i.e., a pretender beneficiar do mais relevante efeito legal atribuído à inspecção externa –, não vemos como seja possível con‑cluir noutro sentido que não o de que o ónus de prova da efectividade da inspecção cabe à Administração.

2.2. Da proibição de novas inspecções com o mesmo objecto, salvo ocor‑rência de ‘factos novos’, e da necessidade de assegurar a propor‑cionalidade e a imparcialidade da actuação administrativa

2.2.1. Introdução ao n.º 3 do artigo 63.º da lGT – posição adoptada

Os princípios da proporcionalidade e imparcialidade, aliados ao prin‑cípio da legalidade da actuação administrativa previsto no artigo 266.º da Constituição, impõem que a actuação da Administração fiscal seja espe‑cialmente cautelosa no domínio inspectivo. Não aprofundando todas as razões que justificam tais cautelas, parece -nos evidente, todavia, a per‑turbação que a própria execução prática de actos de inspecção é suscep‑tível de criar na actividade diária da empresa, derivada, por exemplo, da necessidade de um constante acompanhamento dos inspectores por fun‑cionários/dirigentes da empresa ou da indisponibilidade de determinados documentos enquanto decorre a respectiva análise.

Por isso, encontramos ainda no artigo 63.º da LGT importantes limita-ções à actuação administrativa no âmbito da inspecção tributária, mormente no seu n.º 3, posto que a norma ali contida estabelece que «[o] procedi‑mento da inspecção e os deveres de cooperação são os adequados e pro‑porcionais aos objectivos a prosseguir, só podendo haver mais de um proce‑dimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de

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direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas» (cit., itálico nossos).

Em concreto, impõe -se, portanto, a prévia delimitação, com conhe‑cimento do sujeito passivo visado, do escopo material e do âmbito tem‑poral do procedimento inspectivo,12 não sendo legalmente permitida a adopção de diligências ou a análise de documentação que extravase os limites assim pré ‑determinados posto que, de facto, o procedimento de inspecção representa uma intromissão na vida privada dos particulares e na actividade comercial das empresas, consubstanciando verdadeiros momentos interruptivos nessa actividade.13

Por essa mesma razão, consagrou a Lei Fiscal o já mencionado limite à acção inspectiva constante do n.º 3 do artigo 63.º da LGT, subordinando a realização de novas inspecções externas com o mesmo âmbito material e temporal à fundamentação com base em factos novos.

A questão que se coloca é, então, a de saber que factos deverão ser considerados novos para efeitos de aplicação deste limite, maxime se deve‑rão apenas qualificar -se como novos os factos objectivamente superve‑nientes ou também os factos subjectivamente supervenientes, i.e., aqueles que não chegaram ao conhecimento dos Serviços de Inspecção Tributária, não obstante já se terem verificado. Dentro desta última categoria, haverá ainda que distinguir entre aqueles factos de que os Serviços de Inspec‑ção Tributária poderiam ter tomado conhecimento aquando da inspec‑ção e aqueles que, por se terem produzido, por exemplo, num exercício

12 Nomeadamente, o sujeito passivo deverá ser informado (i) sobre se o proce-dimento de inspecção terá carácter parcial/univalente ou geral, i.e., por exemplo, se abrangerá apenas a fiscalização do cumprimento de obrigações quanto a certos tributos (e.g. IVA ou IRC) ou à generalidade das obrigações fiscais do sujeito passivo, e, (ii) sobre a extensão do procedimento, i.e., quais os exercícios sobre os quais recairá a inspecção, tudo conforme se depreende do disposto no artigo 14.º do RCPIT.

13 Neste sentido, v. Vicente O. Díaz (Buenos Aires, 1997) Limites al Accionar de la Inspección Tributária y Derechos del Administrado, pp. 55 -63. A nosso ver, dado o carácter já de si excepcional da realização de qualquer inspecção, o extravasar dos limites previa‑mente determinados pelos Serviços de Inspecção Tributária deverá ter como consequência o reconhecimento, na esfera do sujeito passivo visado, de um direito de resistência aos actos inspectivos, consubstanciado, designadamente, na recusa de entrega de quaisquer elementos ou informações que não se integrem no perímetro de fiscalização previamente notificado.

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posterior ao fiscalizado (mas anterior à própria inspecção), não poderiam ter chegado ao conhecimento dos inspectores.

A nosso ver, não deverão considerar ‑se factos novos os factos subjec‑tivamente supervenientes sempre que os Serviços de Inspecção Tributá‑ria pudessem deles ter tomado conhecimento se cumpridos os deveres de diligência que são exigidos na actuação da Administração pública,14 o que implica que a mera alegação de que os Serviços não viram, ou não rele‑varam, determinado documento constante da escrita analisada não deve servir de suporte à autorização de uma nova inspecção que incida sobre o mesmo sujeito passivo, tributo e exercício.

A este mesmo desiderato chegou o TCA Norte, em acórdão de 20/12/2005, proferido no âmbito do processo n.º 00079/02, cujo sumário transcrevemos: «Numa segunda acção inspectiva externa, a Adm. Fiscal não pode, por não lhe ser consentido pelo n.º 3 do artigo 63.º da LGT, em relação ao mesmo sujeito passivo, conhecer de factos que, à luz dos deveres normais de diligência da inspecção tributária, devia conhecer, posto que não tivesse efectivamente conhecido, aquando da realização da primeira acção» (cit.).

No aresto que se acaba de citar, cada uma das inspecções havia sido dirigida, em razão do IVA devido pela importação dos mesmos veículos automóveis no espaço comunitário, respectivamente, a cada um dos mem‑bros de um casal e às correspondentes relações económicas com uma determinada empresa, tendo o TCA decidido que o âmbito das inspec‑ções era, assim, o mesmo.

Parece -nos, todavia, novamente à luz dos princípios da proporciona‑lidade e imparcialidade, que a extensão da proibição de repetição da acção inspectiva externa não se deve cingir à noção do que se deve entender por factos novos para este efeito de impedir segunda inspecção externa sobre o mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação.

Na verdade, tem-se assistido, na prática recente, a um crescente aumento de acções inspectivas externas em relação a acções inspectivas internas. Do mesmo modo, enquanto aumenta o número de acções inspec-tivas de âmbito univalente, tem vindo a diminuir o número de inspecções externas de âmbito geral. Pelo menos em tese, é assim possível que os

14 Neste sentido, muito embora de forma não totalmente concludente, v. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa (Lisboa, 2003), p. 309.

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Serviços de Inspecção Tributária possam optar por iniciar sucessivos pro‑cedimentos de inspecção, aproveitando sucessivamente os respectivos pra‑zos máximos de seis meses, podendo deste modo, em tese, manter -se fisi‑camente nas instalações do sujeito passivo por tempo indefinido, com as inerentes perturbações que essa presença pode causar e suspendendo, con‑sequentemente, por diversos momentos, o prazo de caducidade do direito à liquidação. Ora, o princípio da proporcionalidade e da imparcialidade já mencionados parecem opor ‑se a esta lógica intrusiva e dilatória da Adminis‑tração fiscal, impondo, ao que cremos uma interpretação conforme à Cons‑tituição dos conceitos de factos novos e de actos materiais de inspecção.

Assim, muito embora a Administração fiscal não se encontre obri‑gada a realizar inspecções por exercícios agrupados (e.g., 2007 a 2010), podendo, ao invés, dar livremente início a procedimentos relativos a cada ano (ou seja, individualmente considerado), parece ‑nos, contudo, que, nos casos em que as informações e elementos obtidos em relação a determi‑nado exercício tenham efeitos automáticos e inelutáveis nos exercícios seguintes (numa lógica dinâmica de efeito dominó), aos Serviços de Ins‑pecção Tributária não deverá ser permitida a promoção de nova acção de fiscalização, com os mesmos fundamentos, relativa a esses outros exer‑cícios posteriores ao visado, devendo utilizar, em sede de fundamentação de eventuais liquidações adicionais, o relatório de inspecção produzido quanto ao exercício anterior, objecto de inspecção. É que, em substância, nesses casos, a acção fiscalizadora há -de incidir sobre os mesmos factos sobre os quais incidiu a acção entretanto realizada ou, pelo menos, sobre factos que a Administração já deveria conhecer, o que, a nosso ver, é con‑trário às exigências constitucionais de actuação proporcional e adequada dos Serviços de Inspecção Tributária.

2.2.2. Exemplos de aplicação prática dos conceitos de ‘factos novos’ e de ‘actos materiais de inspecção’

a) As inspecções para fiscalização de reporte de prejuízos fiscais e de reinvestimento de valores de realização em sede de mais ‑valias

Veja ‑se, em primeiro lugar e como ilustração do que se vem defen‑dendo, os casos do reporte de prejuízos fiscais e de reinvestimento de valo‑res de realização na venda de activos tangíveis ou intangíveis.

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1. Imagine -se que uma determinada sociedade apurou, no exercí‑cio ‘n’, prejuízos fiscais no valor de dois milhões de euros, podendo, de acordo com o disposto no artigo 52.º do Código do IRC, realizar o res‑pectivo reporte até ao quarto exercício seguinte (i.e., ‘n’ + 4). Imagine‑-se também que a Administração fiscal, em sede de inspecção externa ao IRC do exercício ‘n’, vem a apurar que, a título de prejuízos só deve ser dedutível o valor de um milhão de euros. Ora, se a Administração fiscal é capaz de conhecer, sem recurso a qualquer procedimento inspectivo (e.g., pela mera conferência de declarações de IRC entregues), que a refe‑rida sociedade havia utilizado os prejuízos inicialmente declarados ape‑nas nos dois exercícios seguintes (i.e., ‘n’+1 e ‘n’+2), conhecendo, por‑tanto, o exacto montante que, em cada ano, foi efectivamente deduzido, afigura -se desnecessário e inadequado dar início a novo procedimento de inspecção externa com o mesmo fundamento (por exemplo, «fiscalização de reporte de prejuízos»), relativo ao IRC de ‘n’+1 e ‘n’+2, quando bas‑taria operar oficiosamente correcções às liquidações de imposto relativas a esses exercícios com base nas conclusões da inspecção do exercício ‘n’.

É que, substancialmente, não obstante a hipotética nova inspecção se dirigir, formalmente, a exercícios diferentes, os elementos e factos a analisar neste exemplo são exactamente os mesmos quanto a ‘n’, ‘n+1’ e ‘n+2’, sendo também os mesmos os actos de inspecção a praticar. Nessa medida, poderíamos ver nesta situação, materialmente, uma nova ins‑pecção externa – incidente sobre um mesmo tributo, exercício e sujeito passivo – sem que tivessem ocorrido quaisquer novos factos que fizessem subsumir o procedimento à norma constante do n.º 3 do artigo 63.º da LGT, que prevê a possibilidade de realização de nova inspecção externa quando se verifique a existência de factos novos objectivamente super‑venientes ou que a Administração fiscal não tivesse a obrigação de já conhecer.

Em causa está, pois, saber se a Administração fiscal não deveria, em casos análogos ao acima descrito, proceder ao aproveitamento das con‑clusões inspectivas relativas a exercício(s) anterior(es), ainda que cum‑prindo com o prazo de caducidade de liquidação de tributos no qual lhe é permitido realizar actos inspectivos, em vez de iniciar ex novo inspec‑ções externas.

A conduta administrativa de iniciar novas inspecções externas pode‑ria assim ser violadora, em nossa opinião, dos princípios da proporcio‑

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nalidade e imparcialidade, posto que, no referido caso -exemplo, impo‑ria a sua presença nas instalações do sujeito passivo, interrompendo o normal curso das suas actividades, sem razão objectiva para o fazer, na medida em que dispunha de outros meios menos intrusivos – como seja o procedimento interno de inspecção – para atingir exactamente o mesmo resultado prático.

2. Caso semelhante dar -se -á nas situações em que se proceda à ins‑pecção de um determinado exercício fiscal com o fito de apurar a lega‑lidade do reinvestimento de valores de realização. Nos termos do artigo 48.º do Código do IRC, permite -se a desconsideração de 50% da diferença positiva entre as mais e menos -valias geradas no exercício, para efeitos de determinação do lucro tributável, se efectuado no próprio período de tributação, no período imediatamente anterior ao da realização ou até ao final do segundo exercício seguinte a essa realização.

Nestes casos, se em sede de inspecção externa relativa ao último exer‑cício em que o reinvestimento deveria ter ocorrido se apura que o sujeito passivo não o efectuou, apesar de este ter inicialmente declarado a sua intenção de reinvestir, poderá igualmente sustentar -se não ser necessário proceder a qualquer inspecção externa relativa ao exercício da realiza‑ção, tanto mais que, actualmente, o valor não reinvestido é considerado, de acordo com o disposto no n.º 6 do artigo 48.º do Código do IRC, ren‑dimento do ano em que deveria ter ocorrido, não se procedendo por isso, a qualquer correcção em relação ao exercício da realização.

Assim, uma vez mais, em casos como o acima descrito, parece ine‑xistir, a nosso ver, razões válidas que justifiquem, de forma adequada, o recurso ao procedimento de inspecção externa, motivo pelo qual somos da opinião de que os juízos de necessidade e de proporcionalidade na adopção deste procedimento devem ser avaliados numa base casuística. E, nessa medida, deve ‑se ter uma inspecção por ilegal – não sendo de apli‑car o regime da suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação dos tributos – nos casos em que seja demonstrável que a Administração fiscal, maxime os Serviços de Inspecção Tributária, dispõe já de todos os elementos relevantes – ou pode obtê ‑los por qualquer meio não intrusivo – para o apuramento da verdade material.

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b) Os casos de inspecções relativos à validade de aplicação do Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (RETGS)

O RETGS, actualmente previsto nos artigos 69.º a 71.º do Código do IRC, afigura -se ser também um campo potencialmente atreito a eventuais duplicações desnecessárias – e, assim, potencialmente desproporcionais – de acções inspectivas externas.

Sendo um grupo de sociedades constituído por um sociedade domi‑nante e diversas dominadas, aquela primeira é responsável por entregar à Administração fiscal, em cada período de tributação, a respectiva decla‑ração de IRC referente ao consolidado fiscal, a qual contém, em anexo, as declarações de imposto das diversas sociedades dominadas, através das quais é possível apurar as relações de participação e as contribuições de ganhos e perdas de cada uma delas para o lucro tributável consolidado (cf. artigo 70.º do Código do IRC).

Por essa razão, em muitos casos, poder -se -á argumentar que, detec‑tado um problema fiscal na esfera da sociedade dominante (e.g., quanto à composição do grupo, quanto aos pagamentos por conta das socieda‑des dominadas, etc.) que dê azo ao início de um procedimento externo de inspecção relativo a essa sociedade, os Serviços de Inspecção Tribu‑tária poderão aí (i.e., na sociedade dominante) consultar, analisar e obter parte significativa dos documentos e informações fiscais relevantes, os quais permitem proceder a eventuais correcções na esfera das sociedades dominadas sem necessidade de recurso a inspecções externas a todas as sociedades do grupo.

Naturalmente, neste tipo de caso, nada obsta a que se iniciem pro‑cedimentos de inspecção interna que tenham por objecto as sociedades dominadas, com o fito de assegurar a coerência das informações obtidas aquando da inspecção externa à sociedade dominante. Somos de opinião, aliás, que a inspecção interna, na medida em que tem um carácter mais exaustivo do que outros meios de controlo interno conferidos à Adminis‑tração fiscal, se vem tornando fundamental em razão da crescente comple‑xificação das relações empresariais, quer estas se estabeleçam através de verdadeiros grupos, quer através de outras figuras, como as joint ventures.

Já não se afigura de admitir, ao abrigo dos referidos princípios da proporcionalidade e da imparcialidade da actuação administrativa, que, encontrando -se os Serviços de Inspecção Tributária na posse de todos os

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elementos relevantes, se venha a proceder ao início de procedimentos de inspecção externa, agora quanto às sociedades dominadas. Na verdade, tendo por adquirido que não encontrarão factos diversos daqueles de que já têm conhecimento por força das incursões na documentação da socie‑dade dominante, afigura -se possível que tais procedimentos inspectivos sejam apenas um expediente artificial com o fim de provocar a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de imposto na esfera das sociedades dominadas.15

3. Conclusão

A crescente complexificação das relações económicas entre os sujei‑tos passivos conduz a um incremento da necessidade de acompanha‑mento do cumprimento das respectivas obrigações tributárias por parte da Administração fiscal, razão pela qual os procedimentos inspectivos vêm ganhando maior importância e acuidade. Em particular, o procedimento de inspecção externa configura -se como um meio eficiente e vantajoso para proceder a esse controlo.

Sucede que, embora necessário em muitos casos, o procedimento de inspecção externa tem um inerente carácter intrusivo na vida e na

15 Situação semelhante poderá configurar -se ainda noutro tipo de casos, quais sejam os relativos a determinados donativos e isenções. Nos termos dos artigos 60.º e seguin‑tes do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), as sociedades têm direito a majorações de custos incorridos com donativos que efectuaram a diversas instituições, nomeadamente de carácter cultural, conquanto tais instituições possuam uma declaração do ministério da tutela que comprove o respectivo enquadramento na secção X do EBF (cf. n.º 10 do artigo 62.º do EBF). Ora, também nestes casos, se a instituição não for titular desse com‑provativo em relação a um determinado exercício (‘n’), não fazendo menção a esse des‑pacho de reconhecimento nos recibos emitidos contra a entrega dos donativos, não será também titular dele, com toda a probabilidade, quanto a um exercício anterior (‘n -1’). Por esta razão, também se nos afigura desproporcionado promover o início de inspecções externas à própria instituição e, bem assim, à(s) sociedade(s) mecenas, relativas a exer‑cícios anteriores em que se tenham registado donativos, bastando, para efeitos de con‑trolo e correcções à matéria colectável, a mera análise, através de inspecção interna, dos recibos de donativos referentes a tais exercícios, sendo que a ausência de tais recibos no processo de documentação fiscal é de si um indício de que o donativo não pode ser con‑siderado para efeitos fiscais.

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actividade comercial dos sujeitos passivos inspeccionados – consubstan‑ciando verdadeiros momentos interruptivos dessa actividade, designada‑mente dada a indispensabilidade de acompanhamento dos Serviços de Inspecção Tributária pelo próprio visado, por funcionários ou membros de órgãos sociais das sociedades.

Assim, e essa é premissa central do presente texto, afigura -se que na opção pelo início de uma inspecção externa deverá relevar o facto de existir, ou não, outro meio de controlo, designadamente o procedimento interno de inspecção, que se revele apto a conduzir ao apuramento da verdade material subjacente aos factos declarados e ao cumprimento das obrigações tributárias do sujeito passivo. Da mesma forma, deverá rele‑var também a existência de conclusões relativas ao mesmo sujeito passivo inspeccionado e a exercícios anteriores/posteriores que possam ser apro‑veitados, em vez de se iniciar novos procedimentos inspectivos externos.

De facto, a nosso ver, esta mesma ilação, segundo a qual a inspecção externa deve ter carácter excepcional face à inspecção interna, retira ‑se da interpretação de normas do RCPIT e da LGT aplicáveis conforme o texto e o espírito constitucional que enformam os princípios da proporciona‑lidade, da adequação e da imparcialidade na actuação da Administração Pública. Tal, a nosso ver, implica considerar, pelo menos, que a decisão de iniciar um procedimento externo de inspecção deverá ser sujeita pela própria Administração fiscal (sem prejuízo de eventual controlo judicial quanto aos elementos que não se insiram na discricionariedade técnica da Administração) a um juízo de necessidade, proporcionalidade e ade‑quação dos meios utilizados em face dos fins pretendidos, devendo esta abster ‑se de actuar através deste procedimento quando por via de outro meio de controlo, menos intrusivo, possa chegar a resultados equivalentes.

Verifica -se ainda que os limites à actuação inspectiva hoje expres‑sos no RCPIT se mostram insuficientes para abarcar toda a realidade ine‑rente à prática dos Serviços de Inspecção Tributária, na medida em que se reconduzem, sobretudo, a limites formais e não substanciais, sendo por isso necessário, em cada momento, avaliar cada procedimento em con‑creto, visando aferir da respectiva compatibilidade com os princípios supra referidos – cujo cumprimento não consubstancia, aliás, apenas um direito dos sujeitos passivos, mas um verdadeiro dever da Administração fiscal.

Do mesmo modo, a utilização do procedimento externo de inspecção deve tender exclusivamente para a prossecução dos fins plasmados na Lei

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Fiscal, quais sejam, nomeadamente, os de verificação e controlo do cum‑primento das obrigações tributárias, não devendo dirigir -se a uma tentativa de extensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de tributos.

Por esta razão, afigura -se premente apurar da materialidade dos actos inspectivos, posto que a abertura de uma inspecção externa de carácter meramente formal não pode ser apta a produzir, automaticamente, os típi‑cos efeitos associados ao início deste tipo de procedimento. Somos, por isso, da opinião de que um efectivo controlo judicial pode e deve ocorrer quanto à questão de saber se determinada inspecção formalmente externa é ou não susceptível de produzir o referido efeito de suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de tributos, consoante o apuramento de facto da prática efectiva de actos materiais de inspecção.

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COmENTáRIOSDE juRISPRuDêNCIA

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LOCALIZAÇÃO DAS AQUISIÇÕES INTRACOMUNITÁRIASDE BENS DO MEMBRO DE REGISTO DO ADQUIRENTE

(COMENTÁRIO AO ACóRDÃO DO TJUE DE 22 DE ABRIL DE 2010,PROCESSOS C ‑536/08 E C ‑539/08, CASOS X E FACET)

Rui Laires

1. Introdução

O Hoge Raad der Nederlanden, do Reino dos Países Baixos (a seguir indicado como “Tribunal neerlandês”) – em relação a dois recursos juris‑dicionais em que intervinha o Staatssecretaris van Financiën (doravante referido como “Administração Fiscal neerlandesa”), bem como, no pri‑meiro deles (processo C ‑536/08), a sociedade X e, no segundo deles (pro‑cesso C -539/08), o sujeito passivo único para efeitos fiscais constituído pelas sociedades Fiscale Eenheid Facet B.V. e Facet Trading B.V. (a seguir identificado por “FACET”) – decidiu suspender a instância e apresentar ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) um pedido de decisão, a título prejudicial, relativo à interpretação da Directiva 77/388/CEE, do Conselho, de 17 de Maio de 1977 (“Sexta Directiva”).1

A questão prejudicial suscitada era a mesma em ambos os proces‑sos e do seguinte teor:

«Os artigos 17.º, n.os 2 e 3, e 28.º -B, A, n.º 2, da Sexta Directiva devem ser interpretados no sentido de que, caso se considere, por força do

1 A Sexta Directiva foi objecto de uma reformulação, entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2007, tendo em vista, no essencial, proceder a uma diferente sistematização das matérias e a uma nova numeração dos seus artigos. Tal desiderato foi concretizado através da Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (“Directiva do IVA”). No entanto, quer os factos tributários descritos nos processos principais, quer a questão pre‑judicial formulada pelo Tribunal neerlandês, reportavam -se ainda ao período de vigên‑cia da Sexta Directiva.

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primeiro parágrafo da segunda disposição mencionada, que o lugar de uma aquisição intracomunitária de bens se situa no território do Estado -Membro que atribuiu o número de identificação para efeitos do IVA sob o qual o adquirente efectuou essa aquisição, o referido adquirente tem o direito de deduzir imediatamente o imposto devido nesse Estado -Membro?»

Uma vez que os dois processos tinham idêntico objecto, por despa‑cho do Presidente do TJUE, datado de 9 de Fevereiro de 2009, foi orde‑nada a respectiva apensação, nos termos do artigo 43.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

2. Matéria de facto e pontos de vista nos processos principais

2.1. Em causa nos processos principais, que corriam termos no Tribunal neerlandês, estavam as aquisições intracomunitárias de bens efectuadas pelas empresas X e FACET, registadas para efeitos do IVA nos Países Baixos. Essas empresas adquiriram bens em certos Estados membros da União Europeia (UE) que teriam sido expedidos com destino a outros Estados membros, que não os Países Baixos, directamente para os clientes das referidas empresas, a quem estas, subsequentemente, transmitiram os bens.

Uma vez que a sociedade X e a FACET, para efectuar as aquisições, utilizaram os números de identificação fiscal (NIF) que detêm nos Países Baixos e não provaram que as aquisições intracomunitárias de bens haviam sido sujeitas a IVA nos Estados membros de chegada da expedição ou transporte, fora aplicável a tais aquisições intracomunitárias a regra de localização prevista no n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, determinando a respectiva tributação nos Países Baixos.

Concretamente, no processo C‑536/08, a sociedade X, que se dedicava à comercialização de computadores e respectivas peças, havia adquirido os bens, nos anos de 1998 e 1999, a empresas estabelecidas em outros Estados membros, revendendo ‑os seguidamente a adquirentes estabelecidos em Espanha. Neste caso, porém, não havia a certeza se os bens em causa tinham sido efectivamente expedidos ou transportados para Espanha, a partir dos Estados membros de proveniência. Por seu turno, no processo C‑539/08, a FACET, que de dedicava à comercialização de peças de computador, havia adquirido os bens, nos anos de 2000 e

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2001, a empresas estabelecidas na Alemanha e em Itália, revendendo -os seguidamente a adquirentes estabelecidos em Chipre (dispondo estes de representante fiscal na Grécia), tendo os bens sido expedidos directamente da Alemanha e da Itália para Espanha.

Não havendo prova da tributação das aquisições nos Estados mem‑bros de destino dos bens ou de que foram cumpridas as formalidades previstas no terceiro parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, as aquisições intracomunitárias de bens efectuadas pela empresa X e pela FACET foram consideradas localizadas nos Países Bai‑xos, atento o disposto no primeiro parágrafo do n.º 2 da parte A daquele mesmo artigo. Neste contexto, a matéria controvertida residia na possibi‑lidade de as referidas empresas procederem à dedução do IVA liquidado nos termos desta última disposição.

2.2. Segundo decorria da decisão de “reenvio”, a legislação interna neerlandesa, ao proceder à transposição do disposto no segundo parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, previa que pudesse ser posteriormente solicitado o reembolso do IVA devido pela aquisição intracomunitária ao abrigo do primeiro parágrafo daquele n.º 2, desde que o sujeito passivo provasse que foi cobrado o imposto pela mesma aquisi‑ção no Estado membro da efectiva chegada da expedição ou transporte dos bens.

Na opinião da Administração Fiscal neerlandesa, tal disposição da legislação interna daquele Estado membro, ao remeter para a possibili‑dade de posterior reembolso, visava impedir, em qualquer circunstância, a dedução imediata do IVA por parte de um sujeito passivo que realizasse uma aquisição intracomunitária de bens considerada efectuada no Estado membro que lhe atribuiu o NIF, ao abrigo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva.

No entanto, de harmonia com o tribunal que fora chamado a decidir os litígios em primeira instância, a referida disposição interna neerlan‑desa não deveria ser interpretada no sentido de que inviabilizava a dedu‑ção imediata do imposto liquidado, tendo em consideração os princípios gerais do IVA em matéria de direito à dedução. Segundo aquele órgão jurisdicional, a razão de ser do procedimento de reembolso visava apenas a recuperação dos montantes do imposto que os sujeitos passivos em caso algum tivessem podido deduzir, o que sucederia, por exemplo, quando não

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praticassem exclusivamente actividades que lhes conferissem um direito à dedução pleno. Nestes casos é que, na opinião do órgão jurisdicional que se pronunciara em primeira instância, teria de operar a recuperação do IVA por via de pedidos de reembolso.

Inconformada com tal decisão, a Administração Fiscal neerlandesa interpôs recurso perante o Tribunal neerlandês, o qual considerou con‑veniente, a título prévio, submeter ao TJUE a questão prejudicial acima reproduzida.

3. Enquadramento da questão prejudicial

3.1. Através da questão prejudicial suscitada em ambos os proces‑sos, o Tribunal neerlandês pretendia saber, em caso de aplicação da regra de localização das aquisições intracomunitárias de bens prevista no n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, se o IVA devido pela aqui‑sição intracomunitária poderia ser objecto de dedução imediata pelo sujeito passivo que efectuou a aquisição.

3.2. De harmonia com o n.º 1 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, relativo à regra geral de localização das aquisições intracomu‑nitárias de bens sujeitas a IVA, as mesmas consideram -se efectuadas no Estado membro em que ocorrer a chegada da expedição ou do transporte dos bens com destino ao adquirente. No entanto, o n.º 2 da parte A do mesmo artigo 28.º -B, no sentido de melhor garantir a efectiva tributação das aquisições intracomunitárias quando o Estado membro de chegada da expedição ou transporte não coincida com o Estado membro em que o adquirente se encontra registado para efeitos do IVA, estabelecia o seguinte:

«2. Sem prejuízo do disposto no n.º 1, considera -se, todavia, que o lugar de uma aquisição intracomunitária de bens referida no n.º 1, alínea a), do artigo 28.ºA, se situa no território do Estado -membro que atribuiu o número de identificação para efeitos do imposto sobre o valor acrescen‑tado sob o qual o adquirente efectuou essa aquisição, na medida em que o adquirente não prove que essa aquisição foi sujeita ao imposto nos ter‑mos do n.º 1.

«Se, apesar disso, a aquisição tiver sido sujeita a imposto, em aplica‑ção do n.º 1, no Estado -membro de chegada da expedição ou do transporte

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dos bens depois de ter sido sujeita a imposto em aplicação do parágrafo anterior, o valor tributável será reduzido do montante devido, no Estado--membro que atribuiu o número de identificação para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado sob o qual o adquirente efectuou essa aquisição.

«Para efeitos da aplicação do primeiro parágrafo, considera -se que a aquisição intracomunitária de bens foi sujeita a imposto, nos termos do n.º 1, se se reunirem as condições seguintes:

«– o adquirente prove ter efectuado essa aquisição intracomunitá‑ria, com vista a uma posterior entrega, efectuada no território do Estado‑-membro referido no n.º 1, relativamente à qual o destinatário tenha sido designado como devedor do imposto, nos termos do ponto E, n.º 3, do artigo 28.ºC,

«– o adquirente tenha cumprido as obrigações da declaração previs‑tas no n.º 6, último parágrafo da alínea b), do artigo 22.º.»

3.3. Inicialmente, quando das alterações à Sexta Directiva promo‑vidas pela Directiva 91/680/CEE, do Conselho, de 16 de Dezembro de 1991, com vista à abolição das fronteiras fiscais no interior da UE, a redac‑ção do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva comportava apenas os dois parágrafos iniciais. O terceiro parágrafo foi aditado pela Directiva 92/111/CEE, do Conselho, de 14 de Dezembro de 1992, tendo em vista introduzir simplificações na aplicação das disposições decorren‑tes da Directiva 91/680/CEE, de forma a complementar o sistema comum do IVA vigente a partir de 1 de Janeiro de 1993. A criação do terceiro parágrafo permitiu simplificar a prova a que se refere a parte final do pri‑meiro parágrafo daquele mesmo n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B. Simul‑taneamente, a Directiva 92/111/CEE introduziu, por via do aditamento de um n.º 3 à parte E do artigo 28.º -C da Sexta Directiva, a possibilidade de isenção das aquisições intracomunitárias de bens ocorridas no Estado membro de destino dos bens efectuadas por sujeitos passivos registados para efeitos do IVA noutro Estado membro, quando a razão de ser dessa aquisição intracomunitária seja a transmissão dos bens para outro sujeito passivo e se mostrem cumpridas determinadas formalidades.

Aqueles dois aditamentos dirigiram -se às chamadas “operações triangu lares”, por via das quais um sujeito passivo registado num Estado membro B adquire bens a um sujeito passivo registado num Estado mem‑bro A e procede à sua transmissão subsequente para um sujeito passivo

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registado num Estado membro C, sendo os bens expedidos ou trans-portados directamente do Estado membro A para o Estado membro C. A simplificação trazida pela Directiva 92/111/CEE permitiu que o sujeito passivo registado no Estado membro B, comprador e subsequente trans‑mitente dos bens, não tivesse de se registar também no Estado membro A ou no Estado membro C para realizar as operações. Até aí, ou se con‑siderava que o sujeito passivo do Estado membro B efectuara uma aqui‑sição interna no Estado membro A e que a partir dele procedera a uma transmissão intracomunitária para o Estado membro C (caso em que se deveria registar em A), ou se considerava que efectuara uma aquisição intracomunitária de bens no Estado membro C e uma subsequente trans‑missão interna neste mesmo Estado membro (caso em que se deveria registar em C). Com a criação do terceiro parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B e do n.º 3 da parte E do artigo 28.º -C da Sexta Directiva tais obrigações de registo deixaram de se verificar, permitindo -se que a aquisição intracomunitária efectuada no Estado membro C pelo sujeito passivo registado no Estado membro B pudesse ser isenta, ao mesmo tempo que a subsequente transmissão interna por si efectuada no Estado membro C pudesse ser objecto de inversão do sujeito passivo, de tal modo que o devedor do IVA por essa transmissão interna passasse a ser o pró‑prio adquirente dos bens, ou seja, o sujeito passivo registado no Estado membro C.

3.4. O primeiro parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva constitui uma cláusula de salvaguarda, aplicável comple‑mentarmente à regra geral de localização das aquisições intracomunitá‑rias de bens estabelecida no n.º 1 dessa parte A do artigo 28.º -B. Como se disse, de harmonia com a respectiva regra geral de localização, as aquisi‑ções intracomunitárias de bens consideram -se efectuadas no Estado mem‑bro de destino dos bens. Todavia, por força do n.º 2 da parte A do mesmo artigo, quando o Estado membro de destino dos bens não coincide com o Estado membro em que o adquirente esteja registado para efeitos do IVA, a aquisição intracomunitária é também considerada efectuada no Estado membro de registo, salvo se o adquirente demonstrar que ocorreu a sujei‑ção a imposto no Estado membro de destino dos bens.

Nestas situações, caso a aquisição intracomunitária venha a ser con‑siderada localizada em dois Estados membros, por via do n.º 1 e do pri‑

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meiro parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, o segundo parágrafo desse n.º 2 prevê que a base tributável apurada no Estado membro de registo do sujeito passivo seja corrigida em confor‑midade.

3.5. A interpretação veiculada pela Administração Fiscal neerlan‑desa, no sentido de inviabilizar o direito à dedução imediata do IVA nas situações em que uma aquisição intracomunitária de bens se encontra abrangida pela regra prevista no n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, não era completamente insusceptível de dúvidas.

Com efeito, poderia alegar ‑se que a sujeição decorrente do primeiro parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva não sig‑nificaria que se derrogassem as regras gerais relativas ao direito à dedução do imposto suportado a montante. Como o TJUE já afirmou em inúmeras ocasiões, o direito à dedução do IVA suportado nas aquisições de bens e serviços, com vista à realização das respectivas operações tributáveis, tem por fim libertar os sujeitos passivos do ónus do IVA devido ou pago no âmbito das suas actividades empresariais, uma vez que o sistema comum do imposto tem por objectivo garantir uma completa neutralidade quanto à carga fiscal incidente sobre todas as actividades económicas, na condição de as mesmas estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA.2 Daí decorre que o direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado, sendo imediatamente exercido em relação à totalidade do IVA incidente sobre as operações efectuadas a montante.3

Podendo fazer pender no sentido da imediata dedutibilidade do imposto em questão, não deixava de ser ponderoso o argumento segundo o qual a cláusula de salvaguarda constante do referido n.º 2, ao constituir-

2 Cf., entre outros, os seguintes acórdãos: de 14 de Fevereiro de 1985 (processo 268/83, caso Rompelman, Recueil p. 655, n.° 19); de 15 de Janeiro de 1998 (processo C ‑37/95, caso Ghent Coal Terminal, Colect. p. I -1, n.º 15); de 21 de Março de 2000 (pro‑cessos C ‑110/98 a C ‑147/98, caso Gabalfrisa e o., Colect. p. I -1577, n.° 44); de 8 de Junho de 2000 (processo C ‑98/98, caso Midlank Bank, Colect. p. I -4177, n.° 19); e de 22 de Fevereiro de 2001 (processo C ‑408/98, caso Abbey National, Colect. p. I-1361, n.º 24).

3 Cf., entre outros, os seguintes acórdãos: de 6 de Julho de 1995 (processo C-62/93, caso BP Soupergaz, Colect. p. I-1883, n.º 18); de 21 de Março de 2000 (processos C-110/98 a C‑147/98, caso Gabalfrisa e o., Colect. p. I-1577, n.º 43); e de 18 de Dezembro de 2007 (processo C‑368/08, caso Cedilac, Colect. p. I -12327, n.º 31).

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-se como uma regra de localização das operações tributáveis, e não como uma regra especial atinente ao direito à dedução, apenas pretenderia assegurar mais eficazmente que as aquisições intracomunitárias de bens fossem abrangidas pela incidência do IVA em um Estado membro. Sendo mais facilmente aplicáveis os mecanismos de controlo por parte do Estado membro que atribuiu o NIF ao adquirente, nomeadamente, em virtude dos elementos declarados pelo fornecedor através do formulário recapitula‑tivo das transacções intracomunitárias, melhor se assegura que a aquisi‑ção intracomunitária de bens, pelo menos nesse Estado membro, é abran‑gida pela incidência do imposto. Tal não põe em causa, como é óbvio, que as autoridades fiscais dos Estados membros de chegada da expedição ou transporte dos bens devam sempre proceder à liquidação do imposto pelas aquisições intracomunitárias ocorridas no seu território, salvo nos casos em que estejam verificados os pressuposto de isenção dessas ope‑rações definidos no n.º 3 da parte E do artigo 28.º -C da Sexta Directiva. Do mesmo modo, tal não põe em causa que as autoridades fiscais desses Estados membros exijam a liquidação do IVA devido pela subsequente transmissão interna neles ocorrida e, em caso de essa liquidação não se ter verificado, que procedam à liquidação oficiosa do imposto devido.

3.6. De certo modo, uma interpretação do disposto no n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva no sentido da dedução imediata do IVA poderia ter também sustentação no elemento literal do segundo parágrafo dessa disposição. Note -se, neste domínio, que o legislador da UE, ao prefigurar a hipótese de, após a aplicação da regra de localização contida no primeiro parágrafo daquele n.º 2, vir a demonstrar -se que a situação fora submetida à regra geral de localização estabelecida no n.º 1, determinava que “o valor tributável será reduzido”, e não que “o imposto será reduzido”.

Assim, um argumento complementar contrário à posição tomada pela Administração Fiscal neerlandesa poderia ser o de que a mera alusão à correcção do valor tributável feita na mencionada disposição da Sexta Directiva, sem se referir também ao imposto liquidado ou a deduzir, pre‑tenderia apenas abarcar o posterior ajustamento do valor das aquisições intracomunitárias declaradas em cada Estado membro e a sua correspon‑dência com o valor das transmissões intracomunitárias declaradas no Estado membro de origem dos bens, sem que isso representasse, portanto,

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a intenção de estabelecer qualquer derrogação relativamente às regras gerais de liquidação e dedução do imposto.

3.7. Acresce que uma tomada de posição no sentido da dedução imediata do imposto devido pela aquisição intracomunitária de bens não significaria, necessariamente, no cômputo final, uma efectiva perda de receita fiscal.

Note -se, a este respeito, que se afigura perfeitamente curial a acepção de que a regra de localização contida no primeiro período do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, ao operar quando o sujeito passivo não demonstra qual o Estado membro para onde os bens foram objecto de expedição ou transporte, constitui uma presunção – embora susceptível de ser ilidida – de que a expedição ou transporte dos bens teve como lugar de destino o território do Estado membro onde o sujeito passivo se encontra registado. Ora, nas denominadas “operações triangulares”, o que se pre‑tende essencialmente garantir é a efectiva tributação da operação subse‑quente à aquisição intracomunitária de bens, ou seja, da posterior trans‑missão efectuada no Estado membro que, de facto ou presumivelmente, foi o lugar de destino dos bens. Demonstrativo deste objectivo é a circuns‑tância de a aquisição intracomunitária efectuada no Estado membro onde subse quentemente ocorre a transmissão interna dos bens poder, desde logo, em certas condições, estar isenta do imposto, tornando desnecessário até que o sujeito passivo que efectuou a aquisição intracomunitária proceda à liquidação e à correspondente dedução do IVA devido por esta operação.

Seria as posteriores transmissões, portanto, que se afiguraria legítimo que as autoridades fiscais do Estado membro onde a aquisição intracomu‑nitária tinha sido considerada efectuada submetessem a efectiva tributação. Com efeito, ao admitir -se, por falta de prova em contrário prestada pela sociedade X e pela FACET, que o lugar das aquisições intracomunitárias ocorrera no Estado membro em que estes sujeitos passivos se encontravam registados, tal abria a possibilidade de ser inferido que os bens tivessem sido objecto de posteriores transmissões internas nesse mesmo Estado membro, caso não fossem encontrados, no respectivo território, na posse dos referidos sujeitos passivos.

Assim, com base no ponto de vista acabado de descrever, parece‑ria ter sustentáculo considerar que a Administração Fiscal neerlandesa deveria, por um lado, admitir a dedução imediata do IVA devido pelas

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aquisições intracomunitárias de bens presumivelmente ocorridas no seu território, mas, por outro lado, estaria em condições de proceder à liqui‑dação oficiosa do IVA devido pelas posteriores transmissões internas nele realizadas, dado que os bens presumivelmente haviam tido como destino os Países Baixos e os sujeitos passivos não demonstraram qual o seu paradeiro.

3.8. Para além dos referidos, outros aspectos poderiam ser relevan‑tes para a ponderação da decisão a tomar.

No caso da sociedade X, havia dúvidas sobre o Estado membro de destino dos bens, pois não era certo que os bens tivessem sido expedidos ou transportados para Espanha. As autoridades fiscais espanholas, perante a incerteza quanto aos factos, dificilmente estariam em condições de funda‑mentar uma liquidação oficiosa do IVA naquele país, relativamente à aqui‑sição intracomunitária dos bens, tendo por base a regra geral de localização prevista no n.º 1 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva. Por outro lado, perante a incerteza quanto ao efectivo destino dos bens, não deixaria de ser equacionável se estes teriam realmente saído dos Estados membros de origem, o que poderia justificar uma liquidação do IVA pela transmis‑são inicial ocorrida nos Estados membros de origem, por falta de compro‑vação de um dos requisitos de isenção previstos na alínea a) da parte A do artigo 28.º -C da Sexta Directiva, isto é, a saída física dos bens com destino a outro Estado membro.

No caso da FACET, ao invés, estava demonstrado que o lugar de destino dos bens havia sido Espanha. Ora, podendo as autoridades fiscais espanholas liquidar e fundamentar devidamente a tributação das aquisi‑ções intracomunitárias de bens efectuadas pela FACET nesse Estado mem‑bro (sem direito à isenção prevista no n.º 3 da parte E do artigo 28.º -C, por não ter sido adoptado o procedimento conducente ao reconhecimento da isenção que vem previsto nessa disposição)4, estariam verificadas as condições para a tributação em Espanha ao abrigo da regra geral contida

4 Note -se que os factos tributários respeitam aos anos de 2000 e de 2001, sendo que Chipre apenas aderiu à UE a 1 de Maio de 2004. No entanto, as empresas cipriotas, adquirentes dos bens à FACET, eram titulares de registo para efeitos do IVA na Grécia (onde dispunham de um representante fiscal) mas não em Espanha, tendo indicado o cor‑respondente NIF grego para efectuar as aquisições.

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no n.º 1 da parte A do artigo 28.º -B. Particularmente neste contexto, tal‑vez se justificasse equacionar se seria totalmente lógico que a FACET não pudesse ter deduzido o IVA que “autoliquidara” nos Países Baixos, tanto mais que aquela entidade só teria possibilidade de provar a sujeição a IVA em Espanha por um meio diverso do consignado no terceiro parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva. Com efeito, não dis‑pondo as empresas cipriotas de NIF atribuído em Espanha, nunca se pode‑ria mostrar satisfeita a condição prevista na parte final do primeiro traves‑são daquele terceiro parágrafo, no sentido de que tais empresas fossem indicadas nas facturas como devedoras em Espanha do IVA devido pelas transmissões de bens operadas entre a FACET e essas empresas cipriotas. É certo que o facto de as autoridades fiscais espanholas estarem em con‑dições de liquidar oficiosamente o IVA devido nesse Estado membro não significava necessariamente que a FACET viesse a proceder, pelo menos de modo voluntário, ao respectivo pagamento. No entanto, o requisito constante do segundo parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B, pelo menos quanto ao seu elemento literal, remete apenas para que a aquisição intracomunitária de bens tenha sido sujeita a imposto no Estado membro de destino dos bens, não parecendo exigir que o mesmo já se encontre efectivamente pago nesse Estado membro. Aliás, nos casos em que possa ser aplicável a isenção da aquisição intracomunitária no Estado membro de destino dos bens, prevista no n.º 3 da parte E do artigo 28.º -C da Sexta Directiva, o IVA por essa aquisição intracomunitária não chega sequer a ser devido, pelo que nesses casos também não há lugar a um efectivo pagamento do IVA no Estado membro de destino, sem prejuízo da liqui‑dação do imposto que se mostre devido pela subsequente transmissão interna nesse Estado membro.

4. Decisão do TJUE

4.1. Na sua decisão, em que dispensou a apresentação de conclusões por parte do advogado -geral, o TJUE não deixou de começar por reiterar, nos n.os 28 e 29 do acórdão, que o direito à dedução constitui um princípio fundamental inerente ao sistema comum do IVA, devendo operar imedia‑tamente e não sendo, em princípio, susceptível de limitação. No entanto, entendeu que tal não se passa em caso de aplicação da regra de localização

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das aquisições intracomunitárias de bens prevista no n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva. De acordo com a interpretação veiculada pelo TJUE, o recurso ao mecanismo de posterior rectificação previsto no segundo parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva é a única forma idónea de um sujeito passivo vir a desonerar ‑se dos mon‑tantes de imposto liquidados em aplicação da regra de localização contida no primeiro parágrafo desse mesmo n.º 2.

Para tanto, a decisão do TJUE, nos seus n.ºs 30 a 44, apresenta, em suma, a seguinte fundamentação:

a) O objectivo prosseguido pelo regime transitório de tributação das aquisições intracomunitárias de bens, vigente desde 1 de Janeiro de 1993, é atribuir a receita do IVA ao Estado membro onde tiver lugar o consumo final dos bens;

b) Nessa conformidade, o n.º 1 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, que estabelece a regra geral de localização das aquisições intra‑comunitárias de bens, determina que a tributação dessas operações tenha lugar no Estado membro onde ocorre a chegada da expedição ou do trans‑porte dos bens com destino ao adquirente;

c) Caso não se prove que a aquisição intracomunitária de bens foi sujeita a IVA no Estado membro de chegada da expedição ou transporte dos bens, tal operação deve ser também considerada realizada no Estado membro que atribuiu o NIF através do qual o sujeito passivo efectuou a aquisição;

d) Para efeitos daquela comprovação, as administrações fiscais dos Estados membros não estão obrigadas a recorrer entre si aos mecanismos de troca de informações previstos no Regulamento (CE) n.º 1798/2003, do Conselho, de 7 de Outubro de 2003, já que compete aos sujeitos pas‑sivos fornecerem, eles próprios, as provas necessárias;5

e) O segundo parágrafo do mencionado n.º 2 constitui um “meca‑nismo corrector” que é aplicado quando se verifiquem as condições enun‑ciadas no terceiro parágrafo desse número, ou seja, quando o adquirente prove que efectuou a aquisição intracomunitária de bens tendo em vista a sua posterior transmissão no Estado membro de chegada da expedição ou

5 À semelhança do entendido pelo TJUE no acórdão de 27 de Setembro de 2007 (processo C ‑184/05, caso Twoh International, Colect. p. I-7897, n.º 34).

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transporte dos bens e mencionar essa subsequente transmissão na decla‑ração recapitulativa das transmissões intracomunitárias de bens;6

f) Assim, o n.º 2 da parte A do artigo 28.º-B da Sexta Directiva, no seu conjunto, visa, por um lado, assegurar a sujeição a imposto da aquisi‑ção intracomunitária em um dos Estados membros cujos operadores estão envolvidos nas transacções, procurando também, por outro lado, evitar uma dupla tributação em relação à mesma aquisição;

g) Daí que, embora o direito à dedução imediata do IVA suportado a montante opere na generalidade dos casos, nas situações em apreço a atribuição desse direito comportaria o risco de pôr em causa os objecti‑vos da norma, uma vez que os sujeitos passivos deixariam de ter qual‑quer motivação para demonstrar qual o Estado membro da efectiva chegada da expedição ou transporte dos bens objecto de transacções intracomunitárias;

h) Além disso, a dedução prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 17.º da Sexta Directiva (cuja redacção consta do n.º 1 do seu artigo 28.º -F) tem como pressuposto que os bens ou serviços adquiridos tenham como fito serem utilizados nas operações tributáveis efectuadas pelos sujeitos passivos7, o que não sucede nas situações sob análise, pois os bens não

6 Da afirmação constante do n.º 36 do acórdão, parece inferir -se que o TJUE considera que a verificação cumulativa das condições previstas no terceiro parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva é a única forma de provar que a aquisição intracomunitária foi sujeita a imposto no Estado membro de destino dos bens. Tal acepção afigura -se, no entanto, bastante duvidosa. Desde logo, a verificação cumulativa das mencionadas condições desencadeia, em princípio, a possibilidade de isenção da aquisição intracomunitária no Estado membro de destino dos bens ao abrigo do n.º 3 da parte E do artigo 28.º -C, e não a efectiva tributação nesse Estado membro da operação qualificada como aquisição intracomunitária de bens. Além disso, parece ser admissível que um sujeito passivo cumpra no Estado membro de destino dos bens as obrigações decorrentes da tributação das aquisições intracomunitárias por ele efec‑tuadas nesse país, incluindo o pagamento do imposto, caso em que se afigura dever ser aceite qualquer meio de prova que permita confirmar a sujeição a IVA no Estado mem‑bro de destino dos bens.

7 Note -se, porém, de harmonia com a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º da Sexta Directiva (com a redacção dada pelo n.º 1 do seu artigo 28.º -F), que o direito a dedução também é extensível ao IVA relativo a bens e serviços utilizados para os fins de operações tributáveis relacionadas com actividades económicas prosseguidas fora do país da sede, estabelecimento estável ou domicílio dos sujeitos passivos.

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foram realmente introduzidos nos Países Baixos, ou seja, no Estado mem‑bro que atribuiu o NIF à sociedade X e à FACET.8

4.2. Com base na fundamentação sucintamente enunciada supra, o TJUE, na parte do dispositivo do acórdão, declarou o seguinte:

«Os artigos 17.º, n.os 2 e 3, e 28.º-B, A, n.º 2, da Sexta Directiva […], na sua versão resultante da Directiva 92/111/CEE do Conselho, de 14 de Dezembro de 1992, devem ser interpretados no sentido de que o sujeito passivo na situação visada no primeiro parágrafo desta última disposição não tem o direito de deduzir imediatamente o imposto sobre o valor acres‑centado que incidiu a montante sobre uma aquisição intracomunitária.»

5. Legislação interna portuguesa

O disposto no primeiro e no segundo parágrafos do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva encontra -se, actualmente, com ligei‑ras adaptações, vertido no artigo 41.º da Directiva do IVA. Por seu turno, o previsto no terceiro parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva encontra -se, com as devidas adaptações, no artigo 42.º da Directiva do IVA.

Na legislação interna portuguesa, a regra geral de localização das aquisições intracomunitárias de bens consta do n.º 1 do artigo 8.º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias (RITI). Em relação ao primeiro e ao terceiro parágrafos do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, os mesmos foram transpostos, respectivamente, através dos n.os 2 e 3 do artigo 8.º do RITI.

Quanto à transposição do disposto no segundo parágrafo do n.º 2 da parte A do artigo 28.º -B da Sexta Directiva, tal ocorreu por via do n.º 3 do artigo 19.º do RITI, remetendo para a possibilidade de posterior recupe-ração do imposto ao abrigo dos mecanismos de anulação da operação e de ajustamento das deduções consignados no artigo 78.º do Código do IVA.

8 No caso da sociedade X, tal pode não estar cabalmente demonstrado, uma vez que, como se afirma no n.º 17 do aresto, não ficou provado que os bens tivessem ido para Espanha, pelo que seria de admitir que pudessem ter tido qualquer outro destino ou, inclu‑sivamente, permanecido nos Estados membros de origem.

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A referida disposição da legislação interna comporta plenamente uma interpretação de harmonia com a qual não é concedida a dedução imediata do IVA liquidado em aplicação da regra de localização das aquisições intracomunitárias de bens contida no n.º 2 do artigo 8.º do RITI.

A interpretação veiculada pelo TJUE no acórdão aqui sob análise afigura -se ter, portanto, plena adequação no elemento literal do n.º 3 do artigo 19.º do RITI, devendo, aliás, ser obrigatoriamente adoptada pela administração tributária portuguesa. Ainda assim, a redacção daquele n.º 3 poderia, de igual modo, acomodar a perspectiva de que o mecanismo aí previsto não inviabilizaria uma dedução imediata do IVA liquidado ao abrigo do n.º 2 do artigo 8.º do RITI. Nesse caso, entender -se -ia que o n.º 3 do artigo 19.º do RITI se destinaria apenas a ser aplicado quando o sujeito passivo, em função da natureza da sua actividade ou da natureza do bem adquirido, não pudesse ter exercido um direito à dedução integral do IVA que inicialmente liquidara. A decisão do TJUE, porém, não enve‑redou por esse caminho, pese embora alguns aspectos da respectiva fun‑damentação não se afigurarem totalmente convincentes.

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COMENTÁRIO AO ACóRDÃO DO TRIBUNAL CENTRALADMINISTRATIVO SUL, DE 25 DE MAIO DE 2010PROCESSO N.º 03822/10

Isaque Ramos

SUMáRIO:

1. Nos termos do art.º 2.º, do CPPT, quando ocorra caso omisso, o decisor deve lançar mão, prevalentemente, do CPTA, em detrimento do CPC, quando a mesma e rele‑vante questão jurídica se encontre regulamentada, de forma distinta, em qualquer destes dois últimos diplomas legais;

2. No que concerne à modificação da instância, através da apresentação de arti‑culado superveniente, o CPTA aproxima a respectiva tramitação processual daquela que encontra assento no CPC;

3. A circunstância do CPPT não regulamentar a apresentação de articulado superve‑niente, destinado à ampliação da causa de pedir e/ou do pedido, não consubstancia qualquer caso omisso, a requerer aplicação de legislação subsidiária, antes constitui uma regula‑mentação fechada nesta matéria no sentido de não admissível tal modificação da instância.

ANOTAçãO

1. Dos factos relevantes e a decisão do Tribunal

Os factos objecto do Acórdão que agora se comenta são, resumida‑mente, os seguintes:

i) No âmbito de uma acção inspectiva, um determinado contri‑buinte foi sujeito a uma liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas;

ii) Inconformado com essa liquidação, e dentro do prazo legal, o sujeito passivo apresentou Reclamação Graciosa daquela liqui‑dação;

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iii) A Reclamação Graciosa foi indeferida e, não se conformando com esse despacho de indeferimento, o contribuinte interpôs Impugnação Judicial da mesma;

iv) Entretanto, e num momento em que o processo de Impugnação Judicial já se encontrava a decorrer os seus trâmites normais, o contribuinte foi notificado de uma “Demonstração de Acerto de Contas”, na qual se solicitava um pagamento adicional de imposto relativamente ao que havia sido inicialmente liquidado;

v) Segundo a fundamentação avançada pelos Serviços de Inspec‑ção Tributária, tal imposto adicional teria resultado do despa‑cho de indeferimento da Reclamação Graciosa1;

vi) Uma vez que esta nova liquidação não tinha sido notificada ao contribuinte antes da interposição da Impugnação Judicial, foi solicitada a ampliação do pedido e da causa de pedir no âmbito daquele processo judicial para passar a incluir, também, esta nova liquidação;

vii) O Tribunal Administrativo e Fiscal onde o referido processo cor‑ria os seus termos, indeferiu o pedido de modificação objectiva da instância apresentado pelo contribuinte decidindo, e cita ‑se, nos termos seguintes:“(…) Apreciando, constata -se que a ampliação em questão não obtém acordo das partes e é formulado em articulado super‑veniente que não é admissível em processo de impugnação e nem sequer configura uma réplica, que de todo o modo não se poderia admitir. Assim, resulta como impedida legalmente a ampliação do pedido formulada à luz do art. 273º, nº 1 do CPC.”

viii) Inconformado com esse despacho, o contribuinte recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul, que proferiu a decisão objecto do presente comentário.

A questão decidida pelo Aresto que se analisa é, pois, de simples enunciação e consiste em saber se em processo de Impugnação Judicial

1 Ao que parece, os serviços da Administração Fiscal, além de indeferirem a Reclama‑ção Graciosa apresentada pelo contribuinte, levaram, ainda, a efeito, correcções adicionais, numa espécie de “reformatio in pejus”cuja legalidade não cabe, contudo, apreciar nesta sede

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é, ou não, admissível a ampliação do pedido e da causa de pedir e, conse‑quentemente, se lhe são aplicáveis, subsidiariamente, as regras de modi‑ficação da instância.

O Tribunal Central Administrativo Sul sufragou, ainda que com fun‑damentação jurídica diferente2, a posição adoptada pelo Tribunal recor‑rido afirmando, em suma, que a circunstância de no Código de Procedi‑mento e de Processo Tributário (“CPPT”) não se prever a possibilidade de ampliação do pedido e da causa de pedir, foi uma solução legislativa pensada e querida pelo legislador, pelo que não haverá que proceder à aplicação das normas subsidiárias referentes à modificação objectiva da instância.

Tendo em vista reforçar a sua posição invoca, ainda, o Tribunal em abono da sua posição, a Jurisprudência (alegadamente) vertida no Acór‑dão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 25 de Novembro de 2009, e proferido no âmbito do processo n.º 0761/09 (Dulce Neto).

2. Da alegada inexistência de lacuna

O Aresto em apreço, diga -se desde já, merece -nos sérias reservas, desde logo porque, quanto a nós, parte de um pressuposto equívoco e que assenta no não reconhecimento de uma lacuna legislativa.

Salvo melhor opinião, a lacuna existe e parece -nos evidente.Como ensina Oliveira Ascensão, na determinação da existência de

uma lacuna deverá o intérprete, antes de mais, começar por efectuar um juízo prévio que passa por apurar se o caso deve, ou não, ser juridicamente regulado devendo, para o efeito, analisar o sistema jurídico na sua glo‑balidade. E, nesta matéria, poderão considerar -se diversos indícios inter‑pretativos, sendo a existência de casos análogos, juridicamente regulados, um elemento importante no sentido da conclusão de que o caso deve ser juridicamente tutelado.

Um segundo elemento a considerar na detecção de lacunas passa pela avaliação do sistema jurídico. Se após essa avaliação se concluir que a

2 O Tribunal discutiu, previamente, qual a norma que, em teoria, seria habilitante para a pretensão do contribuinte, mas sem consequências práticas, na medida em não considerou existir lacuna que exigisse apelo às normas subsidiárias.

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matéria em causa não está regulada, mas deveria estar, então, com elevada probabilidade, estar -se -á perante uma lacuna susceptível de integração3.

No caso em análise, todos os elementos interpretativos apontam no sentido da existência de uma lacuna4. Refira -se, desde logo, o facto da matéria da modificação da instância se encontrar regulada nos diversos direitos adjectivos5, não se encontrando no processo judicial tributário quaisquer especificidades que justifiquem regulamentação diversa. E bem se compreende que assim seja, na medida em que, também no processo judicial tributário, poderão ocorrer factos supervenientes (seja objectiva ou subjectivamente), com relevância para a composição do litígio e que só chegaram ao conhecimento dos sujeitos em momento posterior.

Acresce que a conclusão do TCA Sul no aresto em análise é contra‑riada pelo próprio legislador que, no preâmbulo do Decreto -Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro aprovou o Código de Procedimento e de Processo Tri‑butário, depois de referir a necessidade de harmonizar este compêndio legal com as regras do Código de Processo Civil afirma, “ipsis verbis”: “O processo tributário é processo especial, mas a evolução do processo civil não podia deixar de reflectir ‑se na evolução do processo tributário, que não é qualquer realidade estática nem enclave autónomo do direito processual comum”.

Mas ainda que se entendesse que a analogia com outros ramos de Direito não seria suficiente para concluir pela existência de uma lacuna na situação em apreço, verifica -se que o sistema jurídico, considerado na sua completude, impõe uma regulamentação da matéria da modificação da instância no âmbito do Processo Tributário.

De facto, e permitindo a Lei Geral Tributária (“LGT”), como per‑mite, que o acto tributário objecto do procedimento ou do processo judicial sofra vicissitudes quanto ao seu conteúdo, não se compreenderia como é que, tais vicissitudes, não pudessem, de modo expedito e célere, ser con‑

3 Na análise desta matéria, e por não ser o lugar próprio para maiores desenvolvi‑mentos, seguimos de perto a lição de J. OLIVEIRA ASCENSÃO, Interpretação das leis. Integração das lacunas. Aplicação do princípio da analogia, in Revista da Ordem dos Advogados, III, 1997, págs. 913 e segs., em especial, págs. 918 e 919.

4 Que, na Doutrina de Oliveira Ascensão, será uma “lacuna de previsão”.5 Vide, por exemplo, os artigos 273.º e 506.º do Código de Processo Civil, o artigo 63.º

do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o artigo 51.º da revogada Lei de Pro‑cesso dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o 28.º do Código de Processo do Trabalho.

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sideradas num processo no qual se discute a legalidade do acto tributário originário. São exemplos de vicissitudes processuais que podem ocorrer: a revisão, revogação, ratificação, reforma, conversão ou a rectificação dos actos tributários nos termos previstos nos artigos 78.º e 79.º da LGT. O mesmo sucede nas situações em que se verifica a emissão de um des‑pacho de indeferimento expresso no decurso de um processo judicial que se iniciou com a presunção de indeferimento tácito – cfr. artigo 57.º n.º 5 da LGT, ou na situação que subjaz ao processo em causa no Acórdão em apreço – seguramente menos frequente – em que se utiliza um despacho de indeferimento de uma Reclamação Graciosa para fundamentar uma liquidação correctiva que vem a ser emitida posteriormente.

Todas as referidas vicissitudes, em nossa opinião, não só justificam, como exigem a possibilidade de se proceder à modificação objectiva da instância, pelo que a inexistência de regulação de tal matéria, no âmbito do CPPT, constitui uma verdadeira lacuna carente de integração e não uma vontade legislativa, como defendeu o TCA Sul.

3. Do regime jurídico supletivo aplicável

Detectada a lacuna no CPPT relativamente a esta matéria, cabe, agora, determinar o direito subsidiário aplicável.

Para tanto, haverá que atender à alínea e) do artigo 2.º do CPPT que, a título subsidiário, manda aplicar as normas de processo “nos tribunais administrativos (…) e, na falta delas, as normas do processo civil”.

Significa isto que, do ponto de vista da precedência de regimes jurí‑dicos aplicáveis, deverá o intérprete procurar solução para a lacuna detec‑tada no direito processual administrativo e, na falta de uma solução neste, nas normas do processo civil6.

Com interesse para o caso em apreço, verifica -se que a matéria da modificação objectiva da instância encontra -se regulada no Código de Pro‑cesso nos Tribunais Administrativos (“CPTA”) e, em especial, no artigo 63.º.

6 Veja -se, por exemplo, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Adminis-trativo datado de 05/07/2007 e proferido no âmbito do processo n.º 0358/07 (Baeta de Queiroz) onde se concluiu “(…) encontrada uma norma capaz de suprir a omissão no CPTA, não há que continuar a procurá ‑la no CPC”.

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No caso em apreço, assume especial relevo a segunda parte do n.º 2 do artigo 63.º, que prevê a possibilidade de modificação objectiva da ins‑tância nas situações em que, “sobrevenham actos administrativos cuja validade dependa da existência ou validade do acto impugnado, ou cujos efeitos se oponham à utilidade pretendida no processo”.

O referido preceito abrange, assim, as situações de “Impugnação de actos consequentes, isto é, actos que tenham sido praticados pela Admi‑nistração na sequência do acto impugnado, tendo como pressuposto a definição jurídica resultante daquele primeiro acto”7.

Subsumindo a referida norma legal ao Acórdão em apreço, resulta que a Demonstração de Acerto de Contas notificada ao contribuinte em momento posterior à interposição de Impugnação Judicial, traduzindo‑‑se, unicamente, num acerto (para mais) do montante de imposto inicial‑mente liquidado, assume a natureza de acto consequente da liquidação impugnada, não podendo, por isso, deixar de poder ser levada aos autos pelo contribuinte ao abrigo das regras que delimitam a modificação objec‑tiva da instância.

Diferente questão é o meio processual através do qual a referida modificação deve ser requerida, e aí parece -nos que não oferecerá dúvi‑das que o contribuinte deverá apresentar um articulado superveniente nos termos previstos nos artigos 86.º do CPTA8.

4. Breve excurso pela Jurisprudência

No Aresto em apreço, e em abono da posição assumida nos autos, invoca o Tribunal Central Administrativo Sul a Jurisprudência do Supremo

7 Neste sentido, por exemplo, Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, págs. 317 a 320, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos Vol. I e Estatuto dos Tribunais Administrati‑vos e Fiscais, Anotados, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 404.

8 Em rigor, impendia sobre a Fazenda Pública a obrigação de levar o referido acto tributário aos autos por força do disposto no n.º 3 do artigo 63.º do CPTA.

8 Possibilidade que resultava, também, do 506.º n.º 1 do Código do Processo Civil mas que, no caso em apreço e por forma das regras de precedência previstas na alínea e) do artigo 2.º do CPPT não seria aplicável.

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Tribunal Administrativo e, em particular, o Acórdão datado de 25 de Novem‑bro de 2009 e proferido no âmbito do processo n.º 0761/09 (Dulce Neto).

Porém, uma análise aprofundada do referido Aresto, permite con‑cluir, não só, que aquela decisão não acompanha as conclusões do Acór‑dão em comentário como, pelo contrário, é mesmo contraditória com ela.

De facto, e como bem refere o Tribunal Central Administrativo Sul, decidiu ‑se, naquele Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que “tendo em conta que a causa de pedir no contencioso de anulação de actos tributários consiste no comportamento concreto da Administração Tributária violador das normas jurídicas, isto é, nos factos integradores dos vícios imputados ao acto impugnado, tem de concluir ‑se que quem deduz impugnação judicial deve invocar na petição inicial todos os factos integradores do vício ou vícios que imputa ao acto impugnado, salvo se superveniente ou de conhecimento oficioso” (negrito nosso).

Ora, se a referência à possibilidade de superveniência dos factos era já, na passagem daquele Acórdão citada pelo TCA Sul, indiciadora da posi‑ção do STA sobre esta matéria, a posição do Tribunal torna ‑se absoluta‑mente clara se lido o Acórdão na sua totalidade onde se refere: “Apesar de o art.º 506º, n.os 1 e 2, do C.P.C abranger um núcleo de factos super‑venientes capazes de legitimarem o oferecimento de novo arti culado – factos ocorridos posteriormente (superveniência objectiva) e factos veri‑ficados antes mas cuja ocorrência só mais tarde veio ao conhecimento da parte (superveniência subjectiva) não pode aceitar ‑se, no caso vertente, a afirmação do Impugnante, tecida na citada resposta, de que só com a contestação tomou conhecimento que o acto impugnado diz respeito a uma liquidação de IRS do ano de 1998 (…)”– (negrito nosso).

Entendemos que, do citado Acórdão, resulta que o STA assume uma posição exactamente oposta à vertida no Acórdão recorrido: enquanto aqui se decidiu – e citamos – que no processo tributário não são “admis‑síveis as referidas modificações da instância”, na medida em que esta‑mos, alegadamente perante uma “regulamentação fechada do procedi‑mento adjectivo tributário querida pelo legislador” – no citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, admitiu -se, por princípio (embora, no entendimento daquele Supremo Tribunal, os pressupostos de aplica‑ção do instituto não se verificassem no caso ali analisado) a possibilidade de modificação objectiva da instância sempre que se verifiquem factos objectiva ou subjectivamente supervenientes.

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294Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Diga -se, aliás, que ao nível Jurisprudencial as referências à possibi‑lidade de ampliação do pedido e da causa de pedir no âmbito do processo de Impugnação Judicial são, também, abundantes.

Neste sentido, e a título meramente exemplificativo, admitindo, em geral, a possibilidade de ampliação do pedido, vejam ‑se os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, datados de 10/07/2002 e 29/11/2000, proferidos, respectivamente, no âmbito dos Recursos n.os 0724/02 (Men‑des Pimentel) e 25.215 (Jorge Lopes de Sousa).

Escreveu -se no último dos invocados preceitos: “como decorre do preceituado na parte final n.º 1 do art. 127º do C.P.T., é na petição que os impugnantes têm de indicar as razões de facto e de direito em que fundamentam o pedido, envolvendo alteração da causa de pedir a invocação ulterior de novos factos susceptíveis de integrarem vícios do acto impugnado, que só pode ser aceite dentro do condicionalismo previsto nos arts. 212º, 273º e 506º do C.P.C., aplicáveis por força do preceituado na alínea f) do art. 2º do C.P.T.”.

Mas mesmo no Tribunal Central Administrativo Sul são muitos os arestos9 admitindo a modificação objectiva da instância.

Veja ‑se a este propósito o Acórdão daquele Tribunal datado de 08/04/2008, proferido no âmbito do processo n.º 02254/08 (José Correia) onde se refere, expressamente, que “(…) quando for proferido acto expresso na pendência da impugnação de indeferimento tácito, pode o impugnante pedir a ampliação ou a substituição do respectivo objecto, com a faculdade de invocação de novos fundamentos, desde que a requeira no prazo de um mês, a contar da notificação ou publicação do acto expresso (art. 51°, nº 1, da LPTA, subsidiariamente aplicável ao tempo); (…)”.

5. Nota conclusiva

Face à (breve) análise efectuada e considerando os elementos dispo‑níveis na presente data, entendemos que a decisão do TCA Sul em apreço deverá ser entendida, não como uma mudança de rumo da Jurisprudên‑

9 Embora, diga -se, proferidos em data anterior ao Acórdão sob comentário.

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cia que vinha sendo seguida, quer pelo Supremo Tribunal Administrativo, quer por ambos os Tribunais Centrais Administrativos, mas como uma simples decisão assente numa interpretação equívoca das normas jurídi‑cas aplicáveis.

De todo o modo, considerando a importância da matéria e, sobretudo, por razões de segurança jurídica, entendemos que se impõe uma interven‑ção uniformizadora de Jurisprudência por parte do STA – seja por via do Recurso de Oposição de Acórdãos, previsto no artigo 284.º do CPPT10, seja por via do Recurso de Revista previsto no artigo 150.º do CPTA, com o objectivo de clarificar as dúvidas que ainda possam subsistir.

Outra alternativa de que os contribuintes podem fazer uso é do Recurso ao Tribunal Constitucional com vista a avaliar a compatibilidade da Jurisprudência vertida no Acórdão em apreço com os princípios cons‑titucionais que enformam o contencioso tributário e, em particular, com o princípio da economia processual que deriva da imposição de uma tutela jurisdicional plena e eficaz.

10 Embora, sublinhe ‑se, o STA assente a admissibilidade deste Recurso em requi‑sitos muito restritos.

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A PROPóSITO VISTO PRÉVIO NO ENDIVIDAMENTO MUNICIPAL

COMENTÁRIO AO ACóRDÃO N.º 39/2009 – 1.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS

Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins e Nuno Cunha Rodrigues

SUMáRIO:

1. A contracção pelos Municípios de empréstimos a médio e longo prazo para aplicação em investimentos pressupõe a demonstração de que os mesmos têm capacidade de endividamento para o efeito, como resulta do disposto no n.º 6 do artigo 38.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 14/2007, publicada no D.R. de 15 de Fevereiro de 2007, e alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de Junho, e 67‑A/2007, de 31 de Dezembro.

2. A referida capacidade de endividamento é calculada com base nos critérios esta‑belecidos nos artigos 36.º, 37.º, n.º 1, e 39.º, n.º 2, da mesma Lei, com referência à data da contracção dos empréstimos.

3. A falta de demonstração dessa capacidade de endividamento constitui funda‑mento de recusa de visto aos contratos, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, e 35/2007, de 13 de Agosto.

4. Contudo, no caso de violação dos limites de endividamento, se houver despa‑cho de excepcionamento proferido ao abrigo dos nºs 5 e 6 do artigo 39º da Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro, na interpretação dada pelos nºs 3 e 4 do artigo 51º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, o contrato de empréstimo pode ser visado pelo Tribunal de Contas.

1. Enquadramento geral

A aplicabilidade da lei de estabilidade aos vários orçamentos do Sector Público Administrativo realça aquilo que a prática administrativa chama de regras orçamentais de tipo numérico. Refira-se, a este propósito, que no

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298Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

relatório Public Finances in EMU de 2009, a Comissão Europeia levou a cabo, em articulação com os Estados membros, um levantamento exaustivo das regras orçamentais de tipo numérico existentes nos diversos países.

As novas leis financeiras aplicáveis à Administração Regional e Local, recentemente aprovadas pela Assembleia da República, vieram modificar a natureza da regra aplicável aos municípios (instituindo uma regra de dívida, e não de saldo) e criar uma nova regra de saldo orçamen‑tal incidindo sobre as Regiões Autónomas.

No que concerne aos municípios, a Lei das Finanças Locais (LFL)1 estabelece um limite de endividamento aplicável individualmente a cada município. Este limite recai sobre o conceito de endividamento líquido municipal (definido em termos compatíveis com o SEC95 e correspon‑dente à diferença entre a soma dos passivos – qualquer que seja a sua forma – e a soma dos activos), que não poderá exceder, no final de cada ano, 125% das receitas municipais relativas ao ano anterior (artigo 37.º). De forma complementar, são ainda definidos limites, também em percen‑tagem das receitas, para os empréstimos a curto prazo e aberturas de cré‑dito, e para os empréstimos a médio e longo prazo (artigo 38.º).

Desde 2003, que os sucessivos Orçamentos do Estado vinham insti‑tuindo um princípio anual de não aumento do endividamento líquido do conjunto dos municípios, classificável como uma regra de saldo orçamen‑tal, e que foi substituído em 2007 por uma regra de dívida aplicada muni‑cípio a município. As razões desta mudança prendem-se com os objectivos de maior responsabilização individualizada das autarquias e de incentivo à programação plurianual de actividades e investimentos. Por exemplo, torna-se mais compensador para um dado município constituir poupanças ao longo de vários anos (i.e., registar saldos positivos), na medida em que as poderá depois utilizar na realização de projectos vultuosos (registando, então, um saldo negativo) sem se sujeitar, como até agora, a um rateio da capacidade de endividamento. Apesar de não ser possível prever de forma exacta, com base na nova regra, o comportamento do saldo orçamental do conjunto das autarquias, é expectável, já no curto prazo, um reforço da disciplina orçamental, uma vez que cerca de um terço dos municípios apresenta actualmente um endividamento superior ao permitido, estando

1 Aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro.

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299Comentários de Jurisprudência

por isso sujeito a objectivos quantificados de redução da dívida (adiante explicitados), ou seja, a registar excedentes orçamentais.

O Equilíbrio orçamental nas autarquias locais deve traduzir uma regra válida tanto para a elaboração e aprovação do orçamento, como para a respectiva execução: as receitas efectivas devem ser, pelo menos, iguais às despesas efectivas do mesmo orçamento. Ora, para estarmos perante uma situação de desequilíbrio financeiro2, e de acordo com o critério do activo de tesouraria, basta a simples inclusão e utilização das receitas pro‑venientes de empréstimos.

Ora, decorre desta regra numérica que os municípios apenas podem contrair empréstimos:

a) De curto prazo são contraídos apenas para ocorrer a dificuldades de tesouraria, devendo ser amortizados no prazo máximo de um ano após a sua contracção (artigo 38.º, n.º 3 da LFL);

b) De médio e longo prazos têm um prazo de vencimento adequado à natureza das operações que visam financiar não podendo exceder a vida útil do respectivo projecto, a saber: aplicação em investi‑mentos ou saneamento ou ao reequilíbrio financeiro dos municí‑pios (artigo 38.º, n.º 4 da LFL).

Nos termos do Decreto-Lei n.º 38/2008, de 7 de Março, o incumpri‑mento desta regra obriga os municípios à devolução dos montantes em excesso, pela redução de transferências do Estado. Para além disso obriga os municípios a uma redução do montante do endividamento líquido, bem como do montante que excede o limite geral dos empréstimos, pelo menos em 10% por cada ano (37.º e 39.º).

Se a redução do montante do endividamento líquido for, porém, acelerada (entre 1 a 3 anos), as retenções das transferências entretanto efectuadas são devolvidas:

a) Em 50 % quando o município no ano seguinte ao que determinou a redução reduza em mais de 20% o excesso de endividamento líquido;

2 O desequilíbrio financeiro local pode ser de dois tipos:a) Conjuntural – quando existam dívidas a fornecedores superior a 40% das receitas

totais do ano anterior (necessidade de saneamento financeiro);b) Estrutural (ruptura financeira) – quando existam dívidas a fornecedores superior

a 50% das receitas totais do ano anterior (necessidade de reequilíbrio financeiro).

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b) Na totalidade, caso o município elimine o excesso de endividamento líquido nos três anos subsequentes ao que determinou a redução.

2. O endividamento municipal e o visto prévio

A contracção de empréstimos está dependente da verificação prévia dos fins a que se destinam. A lei, porém, confere tutela acrescida à dívida pública fundada e faz depender a sua emissão da verificação dos fins3 pelo Tribunal de Contas aquando da concessão do visto prévio, de acordo com o previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 46.º da Lei de Organização e Pro‑cesso do Tribunal de Contas (LOPTC)4.

O visto do Tribunal de Contas, materialmente, é um acto de verifi‑cação da legalidade. É sabido que a legalidade, ou conformidade legal à ordem jurídica, pode desenvolver-se em duas vertentes:

a) A legalidade estrita, que representa, rectius, “a conformidade aos critérios definidos pela lei, ou pela ordem jurídica em sentido amplo”, abrangendo, no campo de intervenção do Tribunal de Con‑tas “a legalidade financeira, com conformidade às leis e normas do Direito Financeiro, o cabimento, ou conformidade ao preceito orça‑mental permissivo em cada ano, no caso específico da despesa, e ainda a regularidade, nomeadamente, no domínio da contabilidade”;

b) A apreciação segundo critérios não jurídicos, como a economi‑cidade, a eficácia e a eficiência.

Em matéria de endividamento municipal, o Tribunal apura a confor‑midade de todos os actos do qual resulte o aumento da dívida fundada em face dos limites de endividamento constantes da Lei das Finanças Locais e do Decreto-Lei n.º 38/2008, de 7 de Março, a saber:

3 De acordo com o disposto no artigo 35º, da Lei nº 2/2007 de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), o endividamento autárquico, sem prejuízo dos princípios da estabilidade orçamental, da solidariedade recíproca e da equidade intergeracional, deve orientar-se por princípios de rigor e eficiência, prosseguindo os seguintes objectivos:

a) Minimização dos custos directos e indirectos, numa perspectiva de longo prazo; b) Garantia de uma distribuição equilibrada de custos pelos vários orçamentos anuais; c) Prevenção de excessiva concentração temporal de amortização; d) Não exposição a riscos excessivos.4 Aprovada pela Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto.

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301Comentários de Jurisprudência

a) A duração do empréstimo, com base no prazo de amortização (dívida flutuante ou fundada);

b) O montante do empréstimo, que não pode exceder 125% das receitas correntes do município, nos termos do n.º 1 do artigo 37.º da LFL;

c) Os fins dos empréstimos, que só podem ser três: para acorrer a dificuldades de tesouraria (dívida flutuante – artigo 38.º, n.º 3 da LFL), aplicação em investimentos ou saneamento ou ao reequi‑líbrio financeiro dos municípios (dívida fundada – artigo 38.º, n.º 4 da LFL);

d) O tipo de redução do montante do endividamento líquido prevista: se normal ou acelerada, nos termos do Decreto-Lei n.º 38/2008;

e) A verificação das excepções constantes dos n.º 5 a 7 do artigo 39.º da LFL, a saber:

1. Empréstimos e amortizações destinados ao financiamento de programas de reabilitação urbana, os quais devem ser autori‑zados por despacho do Ministro das Finanças;

2. Empréstimos e amortizações destinados exclusivamente ao financiamento de projectos com comparticipação de fundos comunitários, desde que o montante máximo do crédito não exceda 75% do montante da participação pública nacional necessária para a execução dos projectos co-financiados pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) ou pelo Fundo de Coesão, os quais devem ser autorizados por despacho do Ministro das Finanças, devendo ser tido em con‑sideração o nível existente de endividamento global das autar‑quias locais;

3. Empréstimos e amortizações destinados ao financiamento de investimentos na recuperação de infraestruturas municipais afectadas por situações de calamidade pública.

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302Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

A natureza do visto deve ser apreciada, igualmente, à luz de dois critérios: o do carácter do órgão que o produz e do conteúdo próprio da decisão em que se consubstancia5.

Assim, quanto ao conteúdo próprio da decisão em que o visto se consubstancia, estamos perante a apreciação da legalidade de um acto administrativo. Não estamos, por isso, perante qualquer um dos passos do processo administrativo de liquidação e pagamento mas sim face a um acto enxertado nesse processo. Assim, o visto de legalidade ou a sua recusa constitui caso julgado material. Encontramo‑nos, deste modo, face à apreciação de um acto complexo, com uma tripla vertente no caso da apreciação dos limites de endividamento, sobre o qual o Tribunal tem de se pronunciar obrigatoriamente, em princípio antes que ele produza efeitos.

A decisão de apreciação de legalidade é susceptível de recurso (artigo 79.º n.º1 alínea a) da LOPTC), não havendo dúvidas, portanto, de que estamos perante uma autêntica decisão de natureza jurisdicional. Aliás, é mesmo possível que o acto sobre o qual incide o visto produza efeitos independentemente da emissão deste (artigo 45.º n.º1 da LOPTC). Aí o visto não poderá ser encarado como mera condição de eficácia, uma vez que recusa deste faz cessar a produção de efeitos, uma vez que procede à anulação do acto sobre que recai (artigo 45.º nº 2 da LOPTC).

Já a recusa do visto determina a cessação da generalidade dos efei‑tos do acto sobre que recai, por via da anulação deste. E a cessação dos efeitos verifica-se em regra ex tunc. Assim, só a consideração do visto de legalidade como acto jurisdicional, produzindo a anulação do acto a que respeita, no caso de recusa, permite de um modo coerente compreender a natureza da decisão do Tribunal de Contas quer nas situações regra, quer nas excepções6.

5 Em razão do carácter do órgão que o produz, a Constituição da República conce‑deu ao Tribunal de Contas a natureza de um verdadeiro tribunal especializado em maté‑ria financeira. Não é, por isso, um órgão da Administração, ainda que exerça poderes de carácter administrativo, o que também acontece com os tribunais judiciais. Insista-se que entre os poderes jurisdicionais, temos o julgamento das contas, a aplicação de sanções e a efectivação da responsabilidade financeira por meio de decisões de carácter jurisdicional.

6 Apesar da importância formal do visto, verifica-se nos últimos anos uma perda da sua relevância prática, designadamente em razão do estipulado no artigo 45.º da LOPTC quanto à produção de efeitos não financeiros de actos submetidos a fiscalização prévia. A referência a efeitos não financeiros gerou a tendência para a execução de factos con‑

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303Comentários de Jurisprudência

Uma das demonstrações desta eficácia meramente constitutiva, e não declarativa, está no facto de os actos sujeitos a visto poderem produzir todos os seus efeitos antes da respectiva emissão excepto no que respeita aos pagamentos a que derem causa (artigo 45º nº1 da Lei 98/97). A recusa do visto só implica, porém, a respectiva ineficácia desses actos após a sua notificação aos interessados (artigo 45º nº 2 da Lei 98/97). Ainda assim, os pagamentos decorrentes de um acto a que foi recusado o visto podem ser efectuados desde que esses mesmos pagamentos se reportem a períodos anteriores à notificação da recusa do visto (artigo 45.º n.º3 da LOPTC).

Por seu lado, a não submissão do acto a visto produz efeitos distin‑tos da recusa de visto, a saber:

a) Gera responsabilidade financeira sancionatória, por aplicação da alínea h) do n.º 1 do artigo 65.º da LOPTC7;

b) Como também pode gerar responsabilidade financeira reintegra‑tória, uma vez verificados os pressupostos constantes dos arti‑gos 59.º a 64.º da LOPTC, responsabilidade esta que só poderá ser apurada no acompanhamento concomitante e sucessivo do contrato que compete à 2.ª Secção do Tribunal de Contas.

3. A responsabilidade financeira e a desconformidade com o visto do Tribunal de Contas

Trata-se agora relacionar a responsabilidade financeira e a descon‑formidade do contrato com o visto do Tribunal de Contas, no caso de não estar verificada a quádrupla condição exigida em matéria de endivida‑mento municipal.

sumados perante os quais se vê confrontada a 1ª Secção do Tribunal de Contas, já que a recusa do visto não impede a realização de pagamentos, já não a título de preço, mas a título de indemnização por força da responsabilidade civil dos entes públicos No entanto, os compromissos do Estado português em matéria de défices excessivos no âmbito da União Europeia continua a aconselhar uma fiscalização prévia eficaz, ainda que apenas limitada aos actos e contratos de maior dimensão e de mais relevantes consequências orçamentais e financeiras.

7 Alínea aditada pela Lei n.º 48/2006, de 29 de Agosto.

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Num momento em que a disciplina orçamental e o rigor nas finanças públicas estão na ordem do dia, até em razão da existência da União Eco‑nómica e Monetária, fácil é de compreender que a instituição suprema de Contabilidade dos dinheiros públicos esteja no centro do esforço nacio‑nal de equilíbrio das contas públicas. Nesse sentido, o Tribunal de Con‑tas não pode deixar de ter uma actuação quotidiana que visa contrariar a imprevisibilidade, instabilidade, complexidade e incerteza, factores que apenas favorecem a evasão fiscal e a corrupção.

No que respeita à responsabilidade financeira em particular, o artigo 71.º da Lei de Enquadramento Orçamental consagra, em disposi‑ção legal autónoma, os termos em que esta forma de responsabilidade é efectivada pelo Tribunal de Contas, nos termos da respectiva legislação.

Consagra‑se, assim, o princípio da responsabilidade pelos actos de execução orçamental. Deste modo, quando um titular de cargo político ou um funcionário e agente do Estado ou das demais entidades públicas pratique um acto de execução financeira pública, violando a lei, prevê-se que fique sujeito a sanções ou, pelo menos, obrigado a proceder a uma reparação em consequência do acto praticado.

A responsabilidade pela prática de actos financeiros é uma das conse‑quências da produção de actos financeiros ilegais ou irregulares. Enquanto no tocante ao valor jurídico do acto pode cominar-se a sua inexistên‑cia, invalidade, ineficácia ou mera irregularidade, já no que se refere ao agente que o praticou há que prever as sanções ou outras consequências que decorram da violação da lei.

É neste quadro que surge a responsabilidade financeira stricto sensu. Em certos casos, a lei obriga à reintegração dos fundos públicos objecto de prática ilegal ou irregular por parte das entidades responsáveis.

Estamos perante uma responsabilidade distinta das anteriores8, desig‑nadamente pelo carácter misto (punitivo e reintegratório) e pelo facto de

8 Ao lado dos outros tipos de responsabilidade, a saber:a) Responsabilidade política – accionada essencialmente pelo Parlamento, dando

origem a um eventual juízo político de censura, que pode ir até à demissão do Governo, pelo funcionamento dos mecanismos constitucionais ou à realização de inquérito parla‑mentar (artigos 117º, nº 1, 190º e 191º da CRP).

b) Responsabilidade criminal – neste caso há a distinguir os crimes de responsabi‑lidade (em que incorrem os titulares de cargos políticos, por atentarem contra o disposto

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305Comentários de Jurisprudência

se referir ao valor dos fundos que foram colocados em risco pelo acto pra‑ticado ou que deste foram objecto. Atenhamo‑nos ao caso da responsabi‑lidade financeira stricto sensu. Esta tem como fundamento a reintegração da Fazenda Nacional pelo valor em que foi lesada, envolvendo os valores objecto da lesão, não o prejuízo causado, e abrangendo, eventualmente, a reintegração (reposição) e a punição (multa). Estamos perante o julga‑mento de contas ou a prestação de contas, pelo que a prova sobre o modo como foram utilizados os dinheiros públicos cabe a quem tem a seu cargo a respectiva utilização (como no caso do fiel depositário).

A responsabilidade financeira constitui a «pedra de toque» para a caracterização das competências específicas do Tribunal de Contas, como órgão jurisdicional que dirime e julga questões ligadas a litígios entre o Estado e os particulares suscitados ex oficio por imposição da lei ou por actuação do Ministério Público.

Concentremo‑nos agora na relação do visto prévio com a responsa‑bilidade financeira.

Normalmente o visto é concedido por aposição no contrato, quer seja o original, quer sejam os subsequentes. Trata-se de um acto complexo, e não de um projecto de acto, sobre o qual o Tribunal tem de se pronunciar obrigatoriamente, em princípio antes que ele produza efeitos. A decisão produzida é de apreciação de legalidade.

O n.º 1 do artigo 44.º da LOPTC prevê que a fiscalização prévia tem por fim verificar se os actos, contrato ou outros instrumentos geradores de despesa ou representativos de responsabilidades financeiras directas ou indirectas estão conforme às leis em vigor, no caso vertente os artigos 37.º e 38.º da LFL e o Decreto-Lei n.º 38/2008.

na legislação da contabilidade pública, contra a propriedade da Administração e a guarda e correcta utilização dos dinheiros públicos) – artigos 117º e 130º da CRP e Lei nº 34/87, de 6 de Julho –, bem como os crimes financeiros consagrados na lei penal (corrupção – arti-gos 424.º e seguintes do Código Penal; abuso de confiança – artigos 300º do Código Penal).

c) Responsabilidade civil – aqui está em causa a reparação indemnizatória dos prejuízos causados ao Estado e outras entidades públicas pela prática culposa de actos financeiros ilegais.

d) Responsabilidade disciplinar – aplica‑se aos agentes administrativos ou a outros entes sujeitos a poder disciplinar, qualificando nalguns casos a lei financeira determinados comportamentos como passíveis de procedimento disciplinar, além dos que constam nas leis gerais – designadamente no Estatuto Disciplinar dos Agentes do Estado.

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306Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

4. Análise do Acórdão

O presente acórdão tem por objecto a fiscalização prévia, pelo Tribu‑nal de Contas, de um contrato de empréstimo celebrado em 21 de Novem‑bro de 2008, pela Câmara Municipal de Portalegre, com a finalidade de suportar financeiramente a aquisição pelo Município de 33 fogos devolu‑tos, nos termos do Decreto-Lei n.º 135/2004, de 3 de Junho.

Verifica-se, pelo aresto em causa, que o Município de Portalegre tinha ultrapassado os limites de endividamento líquido pelo que se procurava dar resposta à questão de saber se, na situação de violação dos limites de endividamento líquido, podia ter sido celebrado o contrato de emprés‑timo em causa.

Estava em causa um recurso do Ministério Público considerando considerou que, por força dos artigos 37.º, n.º 1 e 38.º, n.º 6 da Lei de Finanças Locais, o contrato não podia ter sido celebrado e, sendo‑o, não poderia colher visto, não podendo produzir quaisquer efeitos.

Recorde-se que, nos termos do artigo 37.º, n.º 1 da LFL, o endivi‑damento líquido municipal – cuja noção consta do artigo 36.º da LFL na redacção dada pelo artigo 29.º da Lei do Orçamento do Estado para 2008 (Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro) - em 31 de Dezembro de cada ano não pode exceder 125% do montante das receitas municipais previs‑tas naquele artigo.

Ainda a este propósito registe-se que, na esteira do afirmado pelo Tribunal de Contas no acórdão n.º 1/2009, “deve considerar-se que um Município tem capacidade de endividamento para contrair um emprés‑timo quando demonstre que o nível do seu endividamento, à data da con‑tracção desse empréstimo, respeita os respectivos limites legais” sendo a demonstração da capacidade de endividamento determinada em resultado do disposto no artigo 38.º, n.º 6 da LFL, com base nos critérios estabele‑cidos nos artigos 36.º, 37.º, n.º 1 e 39.º, n.º 2 da LFL.

Porém, neste caso, e de harmonia com o previsto no artigo 39.º, n.º 5 da Lei de Finanças Locais, tinha sido proferido despacho, por parte do Ministro das Finanças, a excepcionar o contrato de empréstimo dos limi‑tes de endividamento.9

9 O artigo 39.º, n.º 5 da Lei de Finanças Locais determina o seguinte: “Podem excepcionar-se do limite previsto no n.º 2 os empréstimos e as amortizações destinados

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307Comentários de Jurisprudência

Ora, como bem entendeu o Tribunal, inicialmente a excepção pre‑vista no artigo 39.º, n.º 5 da LFL aplicava-se nas situações de violação dos limites de endividamento de médio e longo prazo previstas no n.º 2 do artigo 39.º e não nos casos previstos no artigo 37.º.10

Acontece que o artigo 51.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2009) veio ampliar a excepção pre‑vista no artigo 39.º, n.º 5 ao limite de endividamento líquido municipal previsto no artigo 37.º da mesma Lei11 o que motivou a manutenção da decisão recorrida de concessão do visto ao contrato.

Em síntese, o acórdão que analisamos procedeu à correcta apli‑cação de uma excepção legalmente prevista, direccionada para a rea‑bilitação urbana, sabendo‑se que, fora do quadro desta excepção, o aumento do endividamento líquido não seria, in casu, admitido uma vez que se mostrava excessivo e consequentemente ilegal.

ao financiamento de programas de reabilitação urbana, os quais devem ser autorizados por despacho do Ministro das Finanças. “

10 A LFL prevê ainda outras excepções. Assim, encontram-se previstas excepções para o financiamento de projectos com comparticipação de fundos comunitários (cfr. artigo 39.º, n.º 6 da LFL); para o financiamento de investimentos na recuperação de infra-estruturas muni‑cipais afectadas por situações de calamidade pública (cfr. artigo 39.º, n.º 7 da LFL) e empréstimos de médio e longo prazos destinados ao pagamento de dívidas a fornecedores no contexto de um contrato a celebrar com o Estado no âmbito de um programa de regu‑larização de dívidas, desde que da operação não resulte um aumento do respectivo endi‑vidamento líquido (cfr. artigo 173.º, n.º 3 da LOE para 2009).

11 O n.º 4 do mesmo artigo determina que o disposto no n.º 3 “tem natureza inter‑pretativa, aplicando‑se a todos os pedidos autorizados que tenham sido solicitados pos‑teriormente à data de entrada em vigor da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, englobando os montantes que hajam sido avançados para a execução dos investimentos subjacentes ao empréstimo.”

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SIMULAÇÃO ABSOLUTA DE NEGóCIO JURÍDICOE IMPOSTO DO SELO

COMENTÁRIO AO ACóRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA,DE 12 DE JANEIRO DE 2011 PROCESSO N.º 766/101

Gustavo Courinha

SUMáRIO:

I – O indeferimento liminar da petição deve ser cautelosamente decretado justifi‑cando‑se, nomeadamente, em casos em que a continuação do processo constitua mani‑festo desperdício de actividade judicial.

II – Ora, impondo‑se nos autos a averiguação factual relevante para a decisão, a continuação destes é essencial para se chegar a uma decisão de mérito, pelo que a petição não podia ser liminarmente indeferida.

ANOTAçãO

I. O presente aresto tem por objecto uma curiosa questão de inter‑secção entre o Direito Civil e o Direito Fiscal. Trata‑se de saber em que termos pode ser arguida e valer, em sede fiscal, uma simulação absoluta de negócio jurídico e, simultaneamente, indagar a posição do Estado nos casos em que os próprios simuladores venham arguir a simulação.

Acessoriamente, levantam-se questões processuais de que não nos ocuparemos, relacionadas com a opção pelo indeferimento liminar seguida pelo juiz de primeira instância e que, em última análise, determinaram o sentido do acórdão neste Recurso.

II. O impugnante alega ter procedido à celebração de uma escritura pública de compra e venda (16/03/2006) de um imóvel com vista a furtar o mesmo à responsabilidade por dívidas que sobre si impendiam.

1 Disponível em www.dgsi.pt

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310Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Ainda segundo os elementos constantes desta decisão, ficou demons‑trado que, logo um ano depois (04/04/2007), o impugnante celebrou escri‑tura de sentido inverso, de acordo com contrato‑promessa com data de 16/03/2006 (o dia da escritura alegadamente simulada).

Não discutindo sobre os possíveis contornos criminais do caso, regista‑se apenas que o impugnante pretende reaver, por meio da anula‑ção da respectiva liquidação, o montante de Imposto do Selo suportado na escritura simulada.

Na primeira instância, foi entendimento do juiz a quo que o Estado configura terceiro de Boa-Fé que não pode ser prejudicado pela arguição, por parte dos simuladores, da nulidade decorrente da divergência intencio‑nal entre a vontade e a declaração dos contratantes na escritura de com‑pra e venda. Mais defendeu aquele juiz que o exercício do direito a invo‑car a nulidade do negócio sempre redundaria num exercício legítimo do mesmo, em violação de Boa-fé e em prejuízo do Estado.

III. A primeira questão que terá de ser resolvida diz respeito à possi-bilidade de os Tribunais Fiscais poderem conhecer da simulação.

Com efeito, nada parece impedir estas instâncias de conhecerem dos vícios do negócio, ao menos numa leitura literal do artigo 39.º/n.º 2 da Lei Geral Tributária, que, reconheça-se, não se refere às particularidades do foro. Mas o assunto não parece dever ficar por aqui.

Com efeito, há argumentos que demandam uma ponderação dessa leitura. Por um lado, será paradoxal que, para os casos em que a Administra‑

ção Fiscal se pretenda valer da nulidade (civil) de um negócio para tributar o negócio dissimulado deva obter, nas instâncias civis competentes, deci‑são judicial prévia, enquanto que o impugnante pode suscitar a nulidade decorrente da simulação directamente no tribunal fiscal, desigualdade de armas que é dificilmente aceitável.

Por outro lado, importa indagar em que medida estarão os interes‑ses dos credores prejudicados pela delapidação patrimonial devidamente acautelados na instância fiscal; de facto, há o risco sério de, nos mais dos casos, aqueles não chegarem sequer a conhecer da existência de um processo de impugnação. O bem voltaria à titularidade do vendedor em resultado da procedência desta, enquanto, paralelamente e noutra instân‑cia, se apresentava como seu ex-proprietário; tudo isto, sem que os cre‑dores sequer se apercebam.

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Em alternativa, e respondendo-se pela afirmativa àquela questão, poderia sustentar-se a não uniformidade do ordenamento jurídico; i.e. será de admitir que apenas resultem efeitos fiscais da declaração de nulidade civil pelos Tribunais Tributários, em termos não oponíveis aos outros cre‑dores (além do Estado)? Mas, a optar-se por esta via, criar-se-ia um pro‑blema para resolver outro.

Em resumo, julga-se preferível a interpretação segundo a qual a nuli‑dade deve ser trazida ao conhecimento dos tribunais fiscais após prévia e devidamente atestada pelo foro civil.

IV. E que dizer do artigo 39.º/n.º 2 da LGT, além da sua menos feliz redacção ?

Primeiro, que o artigo parece dever ser interpretado como exigindo a fortiori para a simulação absoluta o mesmo requisito da decisão judicial prévia (para a consideração da nulidade civil) que exige para a simulação relativa – sobre o qual está construído. Mal se compreenderia que a Admi‑nistração pudesse assentar uma nota de liquidação na arguição imediata de simulação absoluta de um negócio sem qualquer intervenção judicial, ao passo que estaria impedida de o pode fazer se estivesse diante um caso de simulação relativa.

Segundo, que se julga o mesmo regime válido quer para a Adminis‑tração, quer para os particulares, desde logo pela sua redacção; assim, se estes se pretenderem valer da simulação que criaram, então a interpreta‑ção mais avisada demanda que obtenham em sede civil a correspondente declaração de nulidade por simulação que permita ulteriormente susten‑tar, em sede fiscal, a impugnação deduzida.

V. Última nota para referir que a boa‑fé não é um preciosismo do Direito Civil.

Se não deixamos de concordar que o artigo 243.º do Código Civil (proibindo a invocação da simulação contra terceiros de boa‑fé) não é apli‑cável ao Estado – o n.º 2 daquela norma é revelador do seu sentido, relacio‑nado com a aquisição de direitos incompatíveis –, nem por isso julgamos a posição daquele como inteiramente desmerecedora de tutela jurídica.

Com efeito, não só a Lei Geral Tributária e o Código de Procedi‑mento e Processo Tributário encontram consagrações deste princípio para contribuinte e Administração – e.g., artigo 59.º da LGT – como julgamos

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que também os interesses financeiros do Estado merecerão a correspon‑dente tutela.

Ao vir invocar contra o Estado uma situação jurídica por si mesmo intencionalmente criada – invocação da simulação pelo próprio simulador – o contribuinte joga, a seu bel-prazer, com os direitos constituídos pelo sujeito activo da relação tributária, ora pagando, ora pedindo o reembolso por anulação da liquidação; e tudo isto a partir de uma aparência por si mesmo criada e que gerou no Estado a fundada convicção do direito ao tributo. O exercício deste direito parece-nos, nestes termos, ilegítimo por contrário à boa-fé, ao abrigo da qual o sujeito activo da relação tributária também se encontra protegido.

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COMENTÁRIO AO ACóRDÃO DA 2.ª SECÇÃODO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOPROCESSO N.º 0624/10RELATOR: ISABEL MARQUES DA SILVA

Nuno Oliveira Garcia e Andreia Gabriel Pereira

SUMáRIO:

Nos termos do n.º 1 do artigo 134.º do CPPT – aplicável por remissão do n.º 1 do artigo 77.º do Código do IMI, atenta a natureza de acto de fixação de valor patrimonial do acto de segunda avaliação do imóvel impugnado –, a legitimidade para a impugnação do resultado da segunda avaliação cabe ao contribuinte, a quem o acto é notificado, e não também ao chefe de finanças e/ou à câmara municipal, que dispõem igualmente de legi‑timidade procedimental para desencadear a segunda avaliação do imóvel.

Atenta a natureza subjectiva do contencioso tributário em geral e a estrutura do pro‑cesso de impugnação judicial em particular – no qual se não encontra espaço para a defesa de contra-interesses particulares na manutenção do acto impugnado –, há-de concluir-se não dispor a câmara municipal de legitimidade activa para a impugnação judicial do resul‑tado da segunda avaliação do prédio, não obstante se lhe reconheça legitimidade procedi‑mental para desencadear essa segunda avaliação (cfr. o n.º 1 do artigo 76.º do Código do IMI, na redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).

ANOTAçãO

O acórdão do STA que ora se anota trata da (i)legitimidade de um Município para impugnar o acto de fixação do valor patrimonial de certo imóvel, após a segunda avaliação do mesmo. Neste âmbito, o acórdão salienta alguns dos traços mais relevantes que enformam o processo judi‑cial tributário, em particular o seu carácter subjectivista. Vejamos então.

Encontramos a previsão e a regulação da segunda avaliação de prédios nos artigos 73.º a 76.º do Código do IMI. Com este mecanismo

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pretende‑se a promoção de uma reclamação da primeira avaliação, com vista à fixação definitiva do valor patrimonial tributário.

Por sua vez, a impugnação do acto de segunda avaliação de um pré‑dio encontra-se prevista no artigo 77.º do Código do IMI. Determina este artigo, mais precisamente no seu n.º 1, que tal impugnação se fará nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, incorpo‑rando, assim, uma remissão, ainda que não expressa, para o disposto no artigo 134.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Com efeito, é este artigo, e nenhum outro no Código de Procedimento e de Pro‑cesso Tributário, que versa sobre os termos da impugnação dos actos de fixação de valores patrimoniais.

Ora, o aludido artigo 134.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário prevê a impugnação dos actos que procedem à fixação de valo‑res patrimoniais, mas fá-lo referindo-se sempre ao contribuinte – por exemplo, quando estabelece como termo inicial do prazo de impugnação, a notificação ao contribuinte dos relevantes actos de fixação de valores patrimoniais.

É nesta linha de pensamento que encontramos o entendimento plas‑mado no aresto do STA em apreço, no sentido de que a legitimidade para a impugnação do resultado da segunda avaliação cabe apenas ao contri‑buinte. Entendimento reforçado na tese de que o artigo 134.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário deve ser integrado na estrutura do processo judicial tributário e, especificamente, no processo de impugna-ção judicial (no qual, como melhor analisaremos infra, o contribuinte surge no lado activo).

A tal nada obsta o facto de o artigo 134.º do Código de Procedi‑mento e de Processo Tributário encontrar-se incluído na secção relativa à «impugna ção dos actos de autoliquidação, substituição tributária e pagamentos por conta», posto que, como defende a doutrina, esta inclu‑são resulta de mero lapso,1 que pode ser explicado considerando que a impugnação da fixação de valores patrimoniais, como os restantes meios previstos na referida secção, implica a existência prévia e necessária de impugnação administrativa.

Na realidade, o elemento sistemático de interpretação envolve que o intérprete não tenha apenas em conta, numa perspectiva muito redutora,

1 Assim, v. José Casalta Nabais (Coimbra, 2010) Direito Fiscal,6 p. 390.

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o capítulo, ou a secção em que certa norma se integra, mas sim a inser‑ção do respectivo texto num conjunto jurídico dado, uma vez que a regra jurídica é o modo de expressão de uma ordem jurídica global.2

Nesta medida, ao relacionarmos o preceito em crise com os prin cípios que regem o processo judicial tributário, a única interpretação possível é a de que os Municípios não têm legitimidade para impugnar os actos já supra aludidos.3 Senão vejamos.

Efectivamente, como é sabido, a proclamação de um Estado de Direito implica a existência de condições que possibilitem a todos o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legal‑mente protegidos, independentemente das respectivas condições econó‑micas. É a esta luz que se manifesta em sede constitucional o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado, em geral, no artigo 20.º da Cons‑tituição da República Portuguesa e, em particular no âmbito da actividade administrativa, no artigo 268.º, n.º 4, do mesmo compêndio constitucional.

Nesta senda, e no que concerne a actividade Administrativa em sede fiscal, os princípios acima referidos determinam a previsão de certos mecanismos que permitam o controlo e a fiscalização da constituciona‑lidade e da legalidade do exercício da função administrativa. Tais meca‑nismos assumem proeminente importância perante a constatação de que a Administração actua munida de poderes desiguais em relação aos os contribuintes.

Assim sendo, a Lei prevê no artigo 96.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário que o processo judicial tributário tem por função a tutela plena, efectiva e em tempo útil dos direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária. Neste sentido têm igualmente os Tribu‑nais desenvolvido a sua jurisprudência, visando garantir aos particulares a melhor e mais completa tutela dos seus direitos e interesses.

A esta luz, não surpreende que o processo judicial tributário tenha sido, em geral, estruturado numa perspectiva em que o particular surge no lado activo, ou seja, em que é o mesmo particular, enquanto potencial

2 José de Oliveira Ascensão (Coimbra, 2003) O Direito – Introdução e Teoria Geral, p. 394.

3 Esta conclusão em nada contende com o facto de os Municípios disporem do impulso para desencadear a segunda avaliação, à semelhança dos Chefes de Finanças, sendo que, em ambos os casos, não está prevista qualquer legitimidade para impugnar o resultado da mesma.

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lesado com a actuação administrativa, que reage contra essa mesma actu‑ação, na defesa dos seus direitos e interesses.

Neste âmbito, vejamos que, tal como aflorado supra, o meio proces‑sual central do contencioso tributário, o qual permite aos particulares a impugnação judicial dos actos tributários que sobre eles impendam, encon‑tra‑se organizado com base na suposição de que quem tem o impulso pro‑cessual é o particular e quem contesta a sua pretensão é a Fazenda Pública. Isto é, do lado activo encontra‑se o contribuinte – ou seja, a parte com interesse directo em impugnar – e do lado passivo encontra‑se a Admi‑nistração fiscal representada pela Fazenda Pública.4

Ainda no mesmo sentido, veja-se, por exemplo, que o recente regime da denominada Arbitragem Tributária prevê que seja o sujeito passivo (conceito mais lato do que o de contribuinte, tal como previsto no artigo 18.º n.º 3 da Lei Geral Tributária) a efectuar o pedido de constituição de tri-bunal arbitral solicitando a apreciação de pretensões que o afectem – cfr. artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.5

Nesta conformidade, como refere o aresto do STA que ora anotamos, o modelo de impugnação consagrado no contencioso fiscal é um modelo essencialmente subjectivista. Modelo esse que visa a tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses dos administrados e não da Administra‑ção, o que explica que a legitimidade para prover pela impugnação seja atribuída aos particulares lesados e não aos sujeitos activos da relação tri‑butária ou aos destinatários da receita fiscal.

É precisamente este o raciocínio que subjaz não só ao artigo 134.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e ao douto aresto do STA, como também a uma série de outros mecanismos de reacção dos contribuintes aos quais estes podem recorrer, nomeadamente e com rele‑vância in casu, face aos actos que determinam a inscrição de certo prédio na matriz e a fixação do correspondente valor patrimonial.

4 Cfr. artigos 99.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário.5 Efectivamente, todo o regime da arbitragem em matéria tributária encontra-se

centrado no impulso do sujeito passivo, apesar de, pelo menos em tese, poder equacio‑nar-se casos em que a Administração fiscal tenha interesse em solicitar a constituição de um tribunal arbitral, nomeadamente nos casos das pretensões previstas no artigo 2, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

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Simplesmente, não podemos deixar de considerar que, perante qual‑quer destes actos, é o particular que vê a sua esfera jurídica alterada de forma potencialmente lesiva.

Ora, se no que concerne o acto de fixação do valor patrimonial, a Lei Fiscal prevê expressamente um mecanismo judicial para a respectiva contradita, estruturado na perspectiva dos particulares – cfr. artigo 77.º do Código do IMI e artigo 134.º do Código de Procedimento e de Pro‑cesso Tributário – o que dizer, por exemplo, quanto ao acto de inscrição na matriz?

Não olvidemos que da inscrição matricial de determinado prédio resulta, para efeitos fiscais, uma presunção de propriedade do mesmo (artigo 8.º, n.º 4 do Código do IMI) e, em consequência, a incidência de variados impostos, como seja o IMI na detenção, e o IMT e o Imposto do Selo na transmissão.6

Em sede administrativa, o Código do IMI prevê que os sujeitos passi vos, ou qualquer titular de um interesse directo, pessoal e legítimo, possam apresentar uma reclamação da matriz, que lhes permite, designa‑damente, contestar a indevida inscrição – cfr. artigo 130.º do Código do IMI. Obviamente, que o faz na perspectiva da tutela dos particulares, mais uma vez com o carácter marcadamente subjectivista.

Todavia, nada indica a obrigatoriedade deste mecanismo e, como tal, pode o particular preferir recorrer directamente à tutela judicial. Veja‑-se que o artigo 129.º do Código do IMI que os sujeitos passivos podem socorrer-se dos meios de garantia previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Concretizando, na ausência de meio específico, a sindicância judi‑cial do acto de inscrição na matriz pode concretizar‑se através de uma acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos em matéria tributária – cfr. artigo 97.º, n.º 2 do Código de Procedimento

6 Referimo-nos a situações nas quais se discute a própria existência de um prédio para efeitos fiscais, não esquecendo que à Administração fiscal é dado o poder de criar prédios mediante a mera inscrição oficiosa na matriz, ainda que não estejam sempre reu‑nidos, de facto e de direito, os requisitos para a respectiva qualificação como prédios. Actualmente, são vários os casos de infra-estruturas a propósito das quais se discute a sua qualificação como prédio, sendo disso bom exemplo os parques eólicos compostos por aerogeradores e as infra-estruturas de suporte de estações de radiocomunicações (vulgar‑mente denominadas de antenas de radiocomunicações).

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e de Processo Tributário, e artigos 50.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Mecanismo que, de igual forma, foi con‑formado para que os particulares, como lesados pela Administração nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, dele pudessem fazer uso.

Por outro lado, nada impede que no âmbito de uma tal acção o con‑tribuinte solicite, desde logo, a anulação do próprio acto de fixação do valor patrimonial, posto que em caso da ilegalidade de inscrição na matriz, ou mesmo, na total ausência de um real prédio, o acto de avaliação não pode subsistir.

E mais, tendo em conta que o particular se vê munido de nova qua‑lidade – a de proprietário de um prédio – correndo o risco sério de se ver confrontado com liquidações de imposto indevidas, não lhe pode ser negado recurso a medidas cautelares.

Como é sabido, a possibilidade de recorrer a este tipo de providências visa dar satisfação à exigência constitucional de que a tutela judicial efec‑tiva abrange a adopção das medidas cautelares adequadas (cfr. artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa), sendo inequívoco que, também em matéria fiscal, não basta a reparação dos prejuízos causados por certa actuação ilegal, é necessário, sempre que possível, evitar a sua ocorrência – cfr. artigo 147.º, n.º 6 do Código de Procedimento e de Pro‑cesso Tributário e artigos 112.º e seguintes do Código do Processo nos Tribunais Administrativos.

Tudo visto, resulta evidente que em sede da contestação dos actos praticados com vista à liquidação de IMI, apesar de administrativamente se poder reconhecer alguma relevância à iniciativa da Administração fiscal e dos Municípios, no âmbito judicial não pode deixar de reger um princí‑pio subjectivista, centrado nos particulares. Princípio este que carece de ser continuamente aprofundado, quer pela Lei, quer pela jurisprudência, como nos demonstra o acórdão que ora anotamos, visando afinal a tutela jurisdicional plena e efectiva dos particulares.

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SÍNTESE DOS PRINCIPAIS ACóRDÃOS DO TRIBUNALDE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA EM MATÉRIA FISCALDO SEMESTRE

IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTANDO

Acórdão de 27 de Janeiro de 2011, Proc. C‑489/09, Caso vandoorne

«Sexta Directiva IVA – Artigos 11.°, C, n.° 1, e 27.°, n.os 1 e 5 – Matéria colectável – Medidas de simplificação – Tabacos manufacturados – Selos fiscais – Cobrança única do IVA na fonte – Fornecedor intermé‑dio – Não pagamento total ou parcial do preço – Não restituição do IVA»

Os artigos 11.°, C, n.° 1, e 27.°, n.os 1 e 5, da Sexta Directiva, con‑forme alterada pela Directiva 2004/7/CE do Conselho, de 20 de Janeiro de 2004, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal, que, ao prever, a fim de simplificar a cobrança do imposto sobre o valor acrescentado e de lutar contra a fraude ou a evasão fiscal no que se refere aos tabacos manufacturados, a cobrança deste imposto, mediante selos fiscais, de uma só vez e na fonte, ao fabricante ou ao importador desses produtos, exclui o direito de os fornecedores intermédios que intervêm posteriormente na cadeia de entregas sucessivas obterem a restituição do imposto sobre o valor acrescentado no caso de não pagamento do preço dos referidos produtos pelo adquirente.

Acórdão de 22 de Dezembro de 2010,Processo C‑277/09, Caso RBs Deutschland Holdings GmbH

«Sexta Directiva IVA – Direito a dedução – Compra de automóveis e utilização para operações de locação financeira – Divergências entre os regimes fiscais de dois Estados membros – Proibição de práticas abusivas»

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320Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Em circunstâncias como as do processo no caso principal, o artigo 17.°, n.° 3, alínea a), da Sexta Directiva, deve ser interpretado no sentido de que um Estado membro não pode recusar a um sujeito passivo a dedução do imposto sobre o valor acrescentado pago a montante sobre a aquisição de bens efectuada nesse Estado membro, quando esses bens foram utilizados para o efeito de operações de locação financeira realizadas noutro Estado membro só porque as operações realizadas a jusante não darem lugar ao paga‑mento do imposto sobre o valor acrescentado no segundo Estado membro.

O princípio da proibição de práticas abusivas, em circunstâncias como as do processo no caso principal, em que uma empresa estabelecida num Estado membro, opta por realizar, através da sua filial estabelecida noutro Estado membro, operações de locação financeira de bens a uma terceira sociedade estabelecida no primeiro Estado membro, com vista a evitar seja devido imposto sobre o valor acrescentado sobre pagamen‑tos que remuneram estas operações, que são tratadas, no primeiro Estado membro, como prestações de serviços locativos realizadas no segundo Estado membro e, neste, como entregas de bens realizadas no primeiro Estado membro, não se opõe ao direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado previsto no artigo 17.°, n.° 3, alínea a), da Sexta Directiva.

Acórdão de 22 de Dezembro de 2010,Processo C‑103/09, caso Weald leasing

«Sexta Directiva IVA – Conceito de prática abusiva – Operações de locação financeira executadas por um grupo de empresas tendo em vista o escalonamento do pagamento do IVA não dedutível».

A vantagem fiscal que resulta do recurso, por uma empresa, a ope‑rações de locação financeira relativas a activos como os que estão em causa no processo principal, em vez da compra directa desses activos, não constitui uma vantagem fiscal cuja concessão seja contrária ao objectivo prosseguido pelas disposições pertinentes da Sexta Directiva, conforme modificada pela Directiva 95/7/CE do Conselho, de 10 de Abril de 1995, e da legislação nacional que a transpõe, desde que as condições contratuais respeitantes a essas operações, nomeadamente as que respeitam à fixação do montante das rendas, correspondam a condições normais de mercado e que a implicação de uma sociedade terceira intermediária nas referidas

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321Comentários de Jurisprudência

operações não seja de natureza a impedir a aplicação dessas disposições, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. A circunstância de essa empresa não efectuar, no quadro das suas transacções comerciais normais, operações de locação financeira é irrelevante a este respeito.

Se certas condições contratuais relativas às operações de locação financeira em causa no processo principal e/ou a intervenção de uma sociedade terceira intermediária nessas operações forem constitutivas de uma prática abusiva as referidas operações devem ser redefinidas de modo a restabelecer a situação que existiria na ausência dos elementos das referidas condições contratuais que apresentam carácter abusivo e/ou da intervenção dessa sociedade.

Acórdão de 22 de Dezembro de 2010,Processo C‑433/09, caso Comissão/Áustria

«Incumprimento do Estado – Fiscalidade – Directiva 2006/112/CE – IVA – Valor tributável – Imposto sobre a transmissão de veículos ainda não matriculados no Estado membro, em função do seu consumo médio – ‘Normverbrauchsabgabe’»

Ao incluir o imposto sobre o consumo («Normverbrauchsabgabe») no valor tributável do IVA colectado na Áustria nas transmissões de veí‑culos automóveis, a Áustria não cumpriu as obrigações que decorrem do artigo 78.º da Directiva IVA.

Acórdão de 22 de Dezembro de 2010,Processo C‑438/09, caso Dankowski

«Sexta Directiva IVA – Direito a dedução do IVA pago a montante – Serviços prestados – Sujeito passivo não inscrito no registo IVA – Men‑ções obrigatórias na factura para efeitos do IVA – Regulamentação fiscal nacional – Exclusão do direito a dedução nos termos do artigo 17.°, n.° 6, da Sexta Directiva IVA»

Os artigos 18.°, n.° 1, alínea a), e 22.°, n.° 3, alínea b), da Sexta Directiva, conforme alterada pela Directiva 2006/18/CE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 2006, devem ser interpretados no sentido de que

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322Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

um sujeito passivo beneficia do direito a dedução no que diz respeito ao imposto sobre o valor acrescentado pago por prestações de serviços for‑necidas por outro sujeito passivo que não está registado para efeitos desse imposto, quando as facturas correspondentes contenham todas as infor‑mações exigidas pelo referido artigo 22.°, n.° 3, alínea b), em particular, as necessárias para a identificação da pessoa que emitiu as ditas facturas e a natureza dos serviços fornecidos.

O artigo 17.°, n.° 6, da Sexta Directiva, conforme alterada pela Direc‑tiva 2006/18, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regula‑mentação nacional que exclua o direito a dedução do imposto sobre o valor acrescentado pago por um sujeito passivo a outro sujeito passivo, prestador de serviços, quando este não esteja registado para efeitos desse imposto.

Acórdão de 18 de Novembro de 2010,Proc. C‑156/09, caso verigen

«Sexta Directiva IVA – Artigo 13.°, A, n.° 1, alínea c) – Isenções em benefício de actividades de interesse geral – Prestações de serviços de assistência – Remoção e multiplicação de células de cartilagem para reimplante no paciente»

O artigo 13.°, A, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva, conforme alterada pela Directiva 95/7/CE do Conselho, de 10 de Abril de 1995, deve ser inter‑pretado no sentido de que a extracção de células de cartilagem articular do material cartilaginoso colhido num ser humano e a multiplicação posterior das mesmas tendo em vista o seu reimplante para fins terapêuticos constituem uma «prestação de serviços de assistência» na acepção desta disposição.

Processo c‑487/09 (oitava secção) de 6 de Outubro de 2010,caso inmogolf sa

O tribunal considerou, por despacho fundamentado, que a directiva sobre reunião de capitais não impede a legislação espanhola que sujeita a tributação em imposto sobre as transmissões patrimoniais a transmissão de partes de capital – e não a sua emissão – quando o activo das socieda‑des envolvidas seja maioritariamente composto de bens imóveis.

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323Comentários de Jurisprudência

O TJCE mais considerou que um imposto como aquele se incluía, em abstracto, no conceito de impostos para efeitos da mencionada direc‑tiva, embora por não respeitar à reunião de capitais, não ser proibido em concreto pela mesma.

Processo c‑287/10 (terceira secção) de 22 de Dezembro de 2010,caso tankreederei i

A empresa tankreederei possui barcos que abastecem de combustível de porão barcos de mar que utilizam portos belgas e holandeses. Tendo rea‑lizado investimentos, pediu a aplicação de um regime de benefícios fiscais, o qual lhe foi recusado pelo facto de a utilização dos navios que possui se realizar fora do território luxemburguês, como estipula a lei deste país.

O tribunal começou por declarar que a actividade desenvolvida con‑substanciava a prestação de serviços para efeitos do artigo 57.º do tfue, e que o regime fiscal em causa torna mais gravosa a prestação de serviços fora do território luxemburguês do que no seu interior.

Em sede de justificações, o tribunal começou por constatar que o estado luxemburguês não invocara nenhuma, mas adiantou que nem a alegação de uma repartição equilibrada dos poderes tributários entre os estados-membros – porque o poder de tributação cabe exclusivamente ao estado luxemburguês –, nem a alegação da necessidade de assegurar a coerência fiscal – por não existir qualquer relação entre a vantagem conce-dida e a compensação dessa vantagem com um imposição co‑relativa –, nem a perda de receitas fiscais – por configurar jurisprudência consoli‑dada –, nem, por fim, a necessidade de enfrentar práticas abusivas – por o caso não apresentar quaisquer características de pura artificialidade – poderiam justificar a restrição.

CLOTILDE CELORICO PALMA E GUSTAVO LOPES COURINHA

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SÍNTESE DE ACóRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONALDO TRIMESTRE

ACÓRDÃO N.º 427/2010

Não julga organicamente inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, que determina a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações nele previsto. Consequentemente, concede provimento ao recurso, determinando a reforma da sentença recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.

ACÓRDÃO N.º 451/2010

Não julga inconstitucional a norma do artigo 5.º da Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, no que respeita à tributação autónoma incidente sobre as despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passagei‑ros, na medida em que essa disposição determinou que o agravamento da taxa de 5% para 10% sobre essas despesas e encargos, resultante da nova redacção dada ao artigo 8l.°, n.º 3, alínea a), do CIRC, produzisse efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008.

ACÓRDÃO N.º 481/2010

Julga inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA, apro‑vado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro) na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e

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gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal. Consequentemente, nega provimento ao recurso.

ACÓRDÃO N.º 4/2011

O Tribunal Constitucional decide esclarecer, nos termos que pre‑cedem, as dúvidas suscitadas pelo requerente A. quanto à aplicação do regime jurídico de controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos, aprovado pela Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com as modificações introduzidas pela Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto, e pela Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro.

ACÓRDÃO N.º 18/2011

Não julga inconstitucional a norma do artigo 5.º da Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.°, n.º 3, da Constituição da República e ainda por violação do princípio da protecção da confiança, na medida em que essa disposição determinou que o agravamento da taxa de 5% para 10% sobre essas despesas e encargos, resultante da nova redacção dada ao artigo 8l.°, n.º 3, alínea a), do CIRC, produzisse efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008.

ACÓRDÃO N.º 24/2011

Julga inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 8.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, interpretado com o sentido de que aí se consagra uma responsabilização subsidiária pelas coimas que se efectiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra os gerentes e admi‑nistradores da sociedade devedora. Consequentemente, nega provi‑mento ao recurso.

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327Comentários de Jurisprudência

ACÓRDÃO N.º 26/2011

Julga inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, com as alterações posteriores), na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montan‑tes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal, efectivada através do mecanismo da rever‑são da execução fiscal. Consequentemente, nega provimento ao recurso.

ANA RITA CHACIM E GUILHERME WALDEMAR D’OLIVEIRA MARTINS

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SÍNTESE DE ACóRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DO TRIMESTRE

IMPOsTO/FIGURAs AFINs

Acórdão do sTA (2.ª) de 07‑12‑2010. Processo n.º 0582/10

Taxa de regulação e supervisãoA “taxa de regulação e supervisão” prevista nos artigos 4.º a 7.º do

Regime das Taxas da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho, tem natu‑reza de “verdadeira contribuição”, figura a meio caminho entre a taxa e o imposto (cfr. Sérgio Vasques, O Princípio da Equivalência como Critério de Igualdade Tributária e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 365/2008, de 2 de Julho, processo n.º 22/2008), para cuja criação a Constituição ape‑nas exige lei parlamentar no que respeita à definição do seu regime geral [cfr. a parte final da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa], exigência esta que, no caso, se mostrou cumprida, em conformidade com a jurisprudência constitucional, através da apro‑vação parlamentar da Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, de valor refor‑çado, por via do seu artigo 51.º (taxas). Os critérios que presidem à fixação do montante da “taxa de supervisão e regulação”, constantes do artigo 7.º do Regime das Taxas da ERC e do anexo II do Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho, cumprem os objectivos que lhes são assinalados pelo n.º 2 e 4 do artigo 51.º da Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro (fixação do mon‑tante do tributo de forma objectiva, transparente e proporcionada, enten‑dendo-se esta como na proporção dos custos necessários à regulação das suas actividades), não sendo, como tal, violadores dos princípios consti‑tucionais da proporcionalidade e da igualdade, pois que as distinções que operam para efeitos de fixação do valor do tributo se não revelam arbitrá‑rias e desprovidas de fundamento material bastante.

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IMPOSTOS SOBRE O RENDIMENTO

IRS

Acórdão do sTA (2.ª) de 16‑12‑2010. Processo n.º 0578/10

Resultado da execução – apuramento de mais‑valiasO produto da venda de um imóvel em processo executivo – que,

em parte, serviu para satisfação dos fins da execução e, noutra parte, foi embolsado pelo executado – constitui mais valia integrante da previsão/tipificação dos artigos 9.º, n.º 1, alínea a); e 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, em sintonia com os princípios do rendimento real efectivo e da capacidade contributiva dos contribuintes.

IRC

Acórdão do sTA (2.ª) de 07‑12‑2010. Processo n.º 0808/10

Regime Simplificado de TributaçãoO regime simplificado de determinação do lucro tributável, previsto

no artigo 53.º do Código do IRC, tem carácter facultativo e não obrigatório – sob pena de violação da disposição constitucional de que «a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real» (n.º 2 do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa). A opção pela aplicação do regime geral de determinação do lucro tributável deve ser formalizada pelos sujeitos passivos nomeadamente na declaração de início de actividade [alínea a) do n.º 7 do artigo 53.º do Código do IRC]. A opção pela aplicação do regime geral de determinação do lucro tributável tem vali‑dade por um período de três exercícios, nos termos do n.º 8 do artigo 53.º do Código do IRC (aditado pela Lei n.º 30-G/2000, de 30 de Dezembro).

Acórdão do sTA (2.ª) de 07‑12‑2010. Processo n.º 01075/09

Da aplicação da Directiva 90/435/CEE, de 23 de JulhoA nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos

de facto e de direito que justifiquem a decisão ocorre quando falte em

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331Comentários de Jurisprudência

absoluto a indicação desses fundamentos, e não quando ocorre deficiên‑cia ou incongruência da fundamentação, erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta. A Directiva 90/435/CEE, de 23 de Julho, impôs ao Estado Português a isenção de tributação na fonte dos lucros distribuídos pela sociedade afiliada residente em Portu‑gal à sociedade mãe residente noutro Estado‑membro quando esta dete‑nha, pelo menos, 25% do capital social daquela (n.º 1 do artigo 5.º), mas estabeleceu um regime transitório, permitindo‑lhe continuar a efectuar a retenção na fonte de imposto até uma data que não poderia ser posterior ao fim do oitavo ano seguinte à data de entrada em aplicação da Directiva (n.º 4 do artigo 5.º), isto é, até ao fim do oitavo ano seguinte a 1 de Janeiro de 1992 (artigo 8.°). Tendo esse regime derrogatório terminado em 31 de Dezembro de 1999, a norma contida no n.º 1 do artigo 5.° da Directiva, sobre a isenção de tributação, entrou em pleno vigor no dia 1 de Janeiro de 2000, pelo que as taxas reduzidas de IRC previstas nos artigos 69.º e 75.º do Código do IRC (na redacção dada pelo Decreto Lei n.º 123/92, de 2 de Julho) deixaram de poder ser aplicadas a partir de então. Tendo essa Directiva efeito directo na ordem jurídica interna e gozando as normas comunitárias de primazia sobre o direito interno (artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa), a Impugnante podia invocar directamente, como invocou, o estatuído no artigo 5.° n.° 1 da Directiva a partir de 1 de Janeiro de 2000. Embora essa Directiva não estabeleça normas procedimentais para a comprovação dos requisitos materiais de que depende a aplicação da isenção, estes requisitos têm de ser comprovados pelos Estados con‑tratantes, pois que lhes incumbe verificar se o contribuinte está ou não em condições de beneficiar da exclusão de incidência de imposto, definindo os adequados instrumentos de verificação ou meios de prova sem violar o espírito da convenção. Só com a norma introduzida no n.º 4 do artigo 14.º do Código do IRC pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, se passou a exigir na legislação portuguesa a apresentação, para efeitos de aplica‑ção daquela isenção, de certificado de residência composto por «decla‑ração confirmada e autenticada pelas autoridades fiscais competentes do Estado membro da União Europeia de que é residente a entidade benefi‑ciária dos rendimentos» para efeitos de obtenção da isenção», pelo que embora a Administração devesse exigir, durante o ano de 2000, prova da residência da entidade beneficiária dos rendimentos para efeitos de com‑provação da isenção, não podia fazer depender essa prova de um único e

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332Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

específico meio de prova, maxime do documento referido nesse n.º 4 do artigo 14.º do Código do IRC, dado que esse preceito só entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2001, não estando, assim, em vigor durante o ano de 2000. Nos anos de 2001 e 2002 a Impugnante já estava obrigada a apre‑sentar a prova aludida no n.º 4 do artigo 14.º do Código do IRC, mas o facto de não dispor dessa prova antes da colocação dos rendimentos à dis‑posição do respectivo titular ou da data para pagamento do imposto não a impede de ficar desobrigada da entrega do imposto se entretanto com‑provou a verificação dos pressupostos para a dispensa total ou parcial de retenção, conforme resulta do regime fixado no n.º 4 do artigo 48.º da Lei n.º 67-A/2007, de aplicação retroactiva. Tendo a Administração efectuado as liquidações adicionais num momento em que já sabia, perante a prova apresentada, que não se verificava o facto tributário subjacente, está-se perante um acto ilegal, que configura uma situação de erro imputável aos serviços para efeitos no disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, pelo que são devidos juros indemnizatórios.

PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTáRIO

Acórdão do sTA (2.ª) de 07‑12‑2010. Processo n.º 0428/10

Prescrição/IVATendo a citação em processo executivo ocorrido já na vigência da

Lei 100/99, de 26 de Julho, a mesma interrompe a prescrição, por força do que dispõe o n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, sendo, por isso, a lei nova a única competente para determinar os efeitos sobre o prazo de prescrição que têm os factos que ocorrerem na sua vigência. Porém, nos termos do n.º 2 do artigo 49.º da LGT, a paragem do processo por perí‑odo superior a um ano por facto não imputável ao sujeito passivo faz cessar o efeito interruptivo da citação operada, somando‑se, neste caso, o tempo que decorrer após esse período ao que já decorreu até à data da citação. A interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se veri‑ficar em primeiro lugar (artigo 49.º, n.º 3 da LGT, na redacção dada pela Lei 53‑A/2006, de 29/12).

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333Comentários de Jurisprudência

Acórdão do sTA (2.ª) de 07‑12‑2010. Processo n.º 0569/10

Conhecimento dos vícios assacados ao acto administrativoÀ luz do disposto nos artigos 57.º da LPTA e 97.º do CPPT a ordem

do conhecimento dos vícios assacados ao acto administrativo, subordinada embora ao prudente critério do julgador, há-de perseguir e assegurar ao interessado a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos. Assim e de harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, a sin dicada sen‑tença que deu procedência à impugnação judicial apenas e só com funda‑mento no invocado e apurado vício de forma do acto impugnado – pre‑terição do direito de audição – não pode manter‑se pois desconsiderou os demais vícios de substância igualmente invocados, designadamente a alegada violação de lei por erro nos pressupostos de facto.

Acórdão do sTA (2.ª) de 07‑12‑2010. Processo n.º 0910/10

Dispensa de prestação de garantia A competência para a decisão sobre a apreciação da garantia prestada

ou do pedido de dispensa de prestação de garantia formulado no âmbito de oposição à execução fiscal, visando a suspensão desta, cabe ao órgão da execução fiscal e não ao tribunal.

Acórdão do sTA (2.ª) de 07‑12‑2010. Processo n.º 0490/10

Da suspensão/interrupção da prescriçãoA impugnação judicial interrompe a prescrição, mas a paragem do

processo por período superior a um ano por facto não imputável ao sujeito passivo, faz cessar tal efeito, somando‑se, neste caso, o tempo que decor‑rer após esse período ao que tiver decorrido até à data da autuação (n.os 1 e 2 do artigo 49.º da LGT). Porém, se a execução se encontrar suspensa em virtude de prestação de garantia ou de penhora de bens que garantam a totalidade da dívida e do acrescido, ao abrigo do artigo 169.º do CPPT, a paragem do processo não releva para efeitos de prescrição, uma vez que, em face do disposto no n.º 3 do artigo 49.º da LGT, a prescrição se suspende também com a paragem da execução.

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334Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Acórdão do sTA (2.ª) de 07‑12‑2010. Processo n.º 0834/10

Nulidade da acusaçãoEm processo de contra-ordenação, a dedução da acusação pelo Minis‑

tério Público não impede que este Magistrado promova e o juiz decida a declaração da nulidade da decisão administrativa. Tratando‑se de nuli‑dades insupríveis, sendo estas de conhecimento oficioso e podendo ser arguidas até a decisão se tornar definitiva (cfr. artigo 63.º, n.ºs 1 e 5 do RGCO), sempre se lhe impunha arguir tal nulidade, na defesa do prin‑cípio da legalidade. O facto do Ministério Público pugnar pela nulidade da decisão administrativa e, portanto, da sua própria acusação, isso não significa que, a defesa da nulidade dos termos subsequentes do processo à decisão administrativa, leva à nulidade de falta de promoção por não ter sustentado a acusação até ao julgamento. Com efeito, falta de promo‑ção do processo significará inexistência de acusação ou falta de impulso do processo, mas, aqui, ela existe e impulso do processo também existe, uma vez que o Ministério Público está a promover o seu andamento nos termos legais. A ser nula a acusação por esse facto, a decisão administra‑tiva continuaria a figurar na ordem jurídica, com a consequente conde‑nação do arguido, sem que tivesse sido exercida a acção penal, o que é, manifestamente, ilegal.

Acórdão do sTA (Pleno da secção do CT) de 16‑12‑2010.Processo n.º 0173/10

Oposição de julgadosVerificando-se entre os acórdãos em confronto efectiva divergência

de soluções quanto à mesma questão de direito, ocorre efectiva oposição de julgados. O § 7 da Portaria n.º 234/97, de 4/4, atribuindo aos proprie‑tários ou aos responsáveis legais pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público do gasóleo colorido e marcado, a responsabilidade pelo pagamento de ISP e IVA resultantes da diferença entre o imposto apli‑cável ao gasóleo rodoviário e o imposto aplicável ao gasóleo colorido e marcado em relação às quantidades que venderem e que não fiquem docu‑mentadas no movimento contabilístico do posto, é uma norma que altera a taxa ou a incidência do ISP e, reflexamente, a incidência do IVA, nestas

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335Comentários de Jurisprudência

situações. E a tipificação dos elementos objectivos e subjectivos exigidos para aquela responsabilização também não pode ser retirada da conjuga‑ção da dita Portaria com a al. e) do n.º 2 do artigo 3.º e com o artigo 74.º, ambos do CIEC (na redacção anterior à Lei n.º 53-A/2006), uma vez que aí apenas se estabelecia a obrigação de utilização de cartões de microcir‑cuito em todos os abastecimentos efectuados (como forma de evitar situ‑ações de abastecimento de gasóleo colorido e marcado por pessoas que legalmente não podiam efectuar esses abastecimentos, ou seja, que não podiam beneficiar da taxa reduzida a estes aplicada), bem como a apli‑cação de “sanções” em caso de venda sem cumprimento destas regras. Dado que tal norma (o § 7 da Portaria n.º 234/97) tem natureza meramente regulamentar e, de acordo com o princípio da legalidade fiscal, os impos‑tos e a definição dos seus elementos essenciais só podem ser criados por lei ou por decreto‑lei emitido ao abrigo de autorização legislativa (cfr. a al. i) do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 165.º da Constituição da República Por‑tuguesa), ela sofre de inconstitucionalidade orgânica.

Acórdão do sTA (2.ª) de 16‑12‑2010. Processo n.º 0782/10

Graduação de créditosA preferência que a penhora confere ao exequente de ser pago com

preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real ante‑rior, apenas existe nos casos em que norma especial não estabeleça outra regra de preferência (artigo 882. °, n. ° 1, do Código Civil). Os créditos da segurança social gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do n.° 1 do artigo 747.° do Código Civil, sendo que prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, como dispõem os n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio (lei especial).

Acórdão do sTA (2.ª) de 16‑12‑2010. Processo n.º 0587/10

Juros compensatóriosA responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma

reparação civil e, por isso, depende do nexo de causalidade adequada

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336Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte, bem como da possibilidade de formular um juízo de censura à sua actuação (a título de dolo ou negligência). Nesse contexto, e em face do preceituado nos arti‑gos 35.° da LGT e 89.° do Código do IVA, constituem requisitos essen‑ciais para a liquidação de juros compensatórios a existência de uma dívida de IVA, de um atraso na efectivação de uma liquidação desse imposto e da imputabilidade do atraso à actuação culposa do contribuinte. Consis‑tindo a culpa na omissão reprovável de um dever de diligência, que tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência, aptidão e conhe‑cimento de um bónus pater famílias, não se pode formular um juízo de censura à actuação do impugnante/empreiteiro, de continuar a liquidar o IVA à taxa reduzida de 5% após a transformação dos serviços munici‑palizados de água numa empresa municipal, face a uma compreensível falta de imediata percepção, por todas as entidades envolvidas, inclusive pela própria administração fiscal, do exacto alcance jurídico e fiscal da transformação de um órgão municipal numa empresa pública e das res‑pectivas implicações na taxa do IVA a liquidar no contrato de empreitada outorgado com essa entidade.

Acórdão do sTA (2.ª) de 16‑12‑2010. Processo n.º 0623/10

Preterição de formalidade no âmbito do procedimento – anulabilidadeA preterição de uma fase do procedimento tributário (que obstou a

que o contribuinte tivesse oportunidade de participar no procedimento de revisão da matéria tributável) inquina de ilegalidade o procedimento tri‑butário subsequente. Porém, não estamos, aqui, perante caso de ofensa de um direito fundamental, gerador de ilegalidade que implique a respectiva nulidade desse procedimento e da liquidação consequente, para efeitos de poder ser impugnado a todo o tempo, nos termos do no n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, mas, antes, perante preterição de formalidade no âmbito do procedimento (como sucede, por exemplo com a preterição do direito de audiência), geradora de mera anulabilidade, e devendo tal ilegalidade ser invocada na impugnação da liquidação, no prazo previsto no artigo 102.º, n.º 1 do CPPT.

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337Comentários de Jurisprudência

Acórdão do sTA (2.ª) de 16‑12‑2010. Processo n.º 0830/10

A fundamentação dos actos de liquidação de juros Os actos administrativos carecem de fundamentação expressa e

acessível quando afectem direito ou interesses legalmente protegidos (artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa). A fun‑damentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo (artigo 77.º da LGT). Assim, é de concluir que a mínima fundamentação exigível em matéria de actos de liquidação de juros terá de ser constituída pela indicação da quantia sobre que inci‑dem os juros, o período de tempo considerado para a liquidação e a taxa aplicada, além da indicação das normas legais em que assenta a liquida‑ção desses juros, devendo esses elementos ser indicados na liquidação, directamente ou por remissão para algum documento anexo. A insufi-ciência da fundamentação equivale à sua falta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 125.º do CPA.

Acórdão do sTA (2.ª) de 19‑01‑2011. Processo n.º 0622/10

Sub‑rogação nos Direitos da Administração Tributária Com a sub‑rogação transmite‑se para o sub‑rogado a titularidade do

crédito que a administração tributária detinha sobre o obrigado tributá‑rio, mantendo‑se as garantias, privilégios e a possibilidade de utilização do processo de execução fiscal para a sua cobrança coerciva, requerendo a sua instauração, se o pagamento ocorreu antes dela, ou o seu prosse‑guimento. O sub-rogado nos direitos da entidade exequenda em conse‑quência do pagamento dos créditos que esta detinha sobre o executado, não tem legitimidade activa, por falta de interesse em demandar expresso na utilidade derivada da procedência da acção, para deduzir impugnação judicial contra o acto de liquidação de juros de mora, uma vez que é de considerar não ser titular de um interesse susceptível de justificar a inter‑venção no processo judicial tributário, na medida em que não é directa‑mente afectado na sua esfera jurídica pelo que nele possa vir a ser decidido, já que o eventual prejuízo decorrente do pagamento dos juros de mora

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338Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

indevidos pode ser integralmente ressarcido por via do prosseguimento da execução fiscal, na qual poderá recuperar a quantia exequenda, acres‑cida, também, dos referidos juros de mora calculados com a taxa que aqui pretende questionar.

Acórdão do sTA (2.ª) de 19‑01‑2011. Processo n.º 0775/10

Responsabilidade Subsidiária – Inconstitucionalidade do disposto no Art. 8.º RGIT

É materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência, consagrados nos artigos 30º, nº 3 e 32º, nº 2 da CRP, o disposto no artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias relativo à responsabilidade subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas, em relação ao pagamento de coimas aplicadas à sociedade. O processo de execução fiscal não é o meio processual adequado para a cobrança de dívidas emergentes de res‑ponsabilidade civil extracontratual nem é possível a reversão da execução para cobrança de dívidas não tributárias com esse fundamento. A respon‑sabilidade subsidiária por dívidas de coimas, prevista no artigo 8º, nº 1, al. a) do RGIT, depende da prova da culpa do responsável na génese da insuficiência do património social para pagamento da dívida, pelo que está afastada a possibilidade de tal responsabilização quando no despa‑cho de reversão não se invoca a existência dessa culpa. Neste tipo de processos instaurados na sequência de reversão de coimas, que são for‑malmente de oposição a execução fiscal, está em causa uma responsabi‑lidade prevista no RGIT, a entender-se que é a oposição à execução o único meio que o revertido pode utilizar para a defesa dos seus interes‑ses, têm de ser asseguradas neste meio processual condições de defesa idênticas às que são proporcionadas ao arguido no processo contra‑orde‑nacional, designa damente a possibilidade de conhecer oficiosamente de todas as questões relevantes, em que se inclui a de “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida”, que é própria dos recursos jurisdicionais em proces‑sos de contra-ordenações.

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339Comentários de Jurisprudência

Acórdão do sTA (2.ª) de 26‑01‑2011. Processo n.º 0484/10

Pluralidade de Penhoras sobre o mesmo BemO disposto no n.º 3 do artigo 218.º do Código de Procedimento e de

Processo Tributário, nos termos do “podem ser penhorados pelo órgão da execução fiscal os bens apreendidos por qualquer tribunal, não sendo a exe‑cução, por esse motivo, sustada nem apensada”, afasta a aplicabilidade às execuções fiscais do disposto no artigo 871.º do Código de Processo Civil. Havendo identidade de credores reclamantes em dois processos diferentes (um deles comum, o outro fiscal), mas coexistindo os créditos reclamados, no processo fiscal, com os créditos exequendos, não ocorre litispendência, pois que tal excepção pressupõe, além do mais, a “identidade dos sujei‑tos”, “sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” (cfr. os n.os 1 e 2 do artigo 498.º do CPC), que se não verifica, pois que na execução fiscal, a par dos reclamantes, o órgão da execução pretende também que os crédi‑tos exequendos sejam graduados. Tal não obsta, contudo, a que a decisão tomada no processo comum quanto à existência ou não de privilégios cre‑ditórios dos créditos reclamados e à graduação dos créditos que dele foram objecto não se deva impor, porque anterior, no processo fiscal, se neste dela for dado conhecimento, pois que a tal obriga o caso julgado material formado em relação aos créditos que apreciou e às pessoas que abrangeu, na medida em que tem força obrigatória dentro do processo e fora dele (cfr. o Acórdão deste Tribunal de 11 de Dezembro de 2007, rec. n.º 466/07).

Acórdão do sTA (2.ª) de 02‑02‑2011. Processo n.º 008/11

Natureza do Despacho de Suspensão da Execução FiscalO despacho que suspende execução fiscal define-se como um acto admi‑

nistrativo em matéria tributária e não como mero acto de trâmite, uma vez que não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual, antes projecta externamente efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. Em face dessa definição como acto administrativo, o despacho que poste‑riormente o revogue tem necessariamente de respeitar o prazo de 10 dias que resulta dos artigos 141º do CPA e 277.º do CPPT, sendo ainda exigível a audi‑ção prévia do executado no termos dos artigos 100.º do CPA e 60.º da LGT.

ANA LEAL E NUNO OLIVEIRA GARCIA

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SÍNTESE DOS PRINCIPAIS ACóRDÃOS DO TRIBUNALDE CONTAS DO TRIMESTRE

1.ª sECçÃO (FIsCAlIzAçÃO PRÉvIA)

Acórdão n.º 42/10 – 16. NOv.2010 ‑1.ª s/ss ‑ Processo n.º 1307/10

Empreitada de obras públicas. Concurso público urgente. Prazo mínimo para apresentação de propostas. Recusa de visto

1. O risco de se perder um financiamento comunitário torna o proce‑dimento de formação do contrato um caso de urgência, tal como previsto no artigo 155.º do CCP (alargado aos contratos de empreitada durante a vigência do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, desde que se verifiquem os pres‑supostos previstos nas als. a) a c) do n.º 2 do artigo 52.º).

2. A contradição constante do anúncio em matéria de fixação do prazo, neste concreto contexto de concurso urgente, com um prazo cur‑tíssimo para apresentação de propostas (24 horas), pode ter contribuído para a redução do universo de potenciais concorrentes, confundidos com indicações diferentes em matéria de contagem do prazo. E por via desse facto, dificultou-se o acesso aos documentos concursais.

3. As violações de lei acima identificadas ofendem os princípios da concorrência e da igualdade de oportunidades dos operadores econó‑micos. Princípios cuja observância permitem também obter as melhores propostas para melhor prossecução dos interesses públicos.

4. Tais violações, podendo ter restringido o universo de poten‑ciais interessados e concorrentes, são igualmente susceptíveis de terem alterado o resultado financeiro do procedimento e consequentemente do contrato.

5. Pelos fundamentos indicados, por força do disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44.º da LOPTC, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.

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Acórdão n.º 30/10 – 23.NOv.2010 ‑1.ª s/Pl ‑ Processo n.º 455/10

Empreitada de obras públicas. Habilitações dos concorrentes. Mar‑cas comerciais. Princípio da concorrência. Recusa de visto.

1. A inclusão, no mapa de quantidades, de referências a marcas comerciais específicas viola o disposto no artigo 49.º, n.os 12 e 13, do CPP.

2. A proibição da introdução de especificações técnicas discrimi‑natórias nos documentos concursais não visa apenas a protecção directa dos interessados em concorrer ao concurso em causa mas visa também garantir o funcionamento da concorrência relativamente aos itens afec‑tados, salvaguardando os interesses dos fornecedores dos bens e propi‑ciando a diversificação e optimização das propostas, em defesa dos inte‑resses financeiros da entidade pública.

3. Num concurso para a realização de uma empreitada, e mesmo quando o número de concorrentes seja elevado, a exigência do forneci‑mento de equipamentos ou materiais de uma determinada marca conduz a uma total falta de concorrência relativamente aos bens em causa e uma total falta de alternativas, quanto aos bens e aos respectivos custos.

4. O facto de o adjudicatário ser autorizado a, no decurso da exe‑cução da obra, proceder à substituição dos materiais, é totalmente irrele‑vante, já que essa substituição não repõe a concorrência que deveria ter ocorrido na escolha das propostas e na formação do preço contratual, antes se fazendo no âmbito de um preço já formado e, portanto, integralmente a favor do adjudicatário.

5. A exigência aos concorrentes da classificação de empreiteiro geral de obras ou construtor geral de edifícios de construção tradicional da classe 7 viola o disposto no n.º 1 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, que prescreve a obrigação de, nos concursos de obras públicas, ser exigida uma única subcategoria em classe que cubra o valor global da obra.

6. Este Tribunal tem entendido que quando são feitas exigências de habilitação técnica superiores às estabelecidas na lei isso conduz à redução do universo de potenciais candidatos, violando-se o princípio da concorrência e verificando-se susceptibilidade de alteração do resultado financeiro, uma vez que se impediu o surgimento de propostas eventual‑mente mais vantajosas.

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343Comentários de Jurisprudência

7. O valor global da obra só é determinado em rigor quando se toma a decisão de adjudicação. Assim, a exigência de uma classe determinada não deve ser feita nos documentos do concurso. Deve exigir-se tão só classe que cubra o valor global da obra, a qual é reportada ao valor da proposta de cada concorrente e, no momento da adjudicação e celebração do contrato, ao valor adjudicado.

8. O facto de ter agora sido proferido um despacho para garantir o cumprimento futuro de anteriores recomendações dirigidas à entidade não afasta a circunstância de, tendo a mesma sido atempadamente aler‑tada por este Tribunal para as ilegalidades, poder e dever ter prevenido a sua ocorrência no presente procedimento.

9. A avaliação e decisão da 1.ª instância no sentido de não se usar novamente da faculdade prevista no artigo 44.º, n.º 4, da LOPTC não merece censura e não deve ser alterada.

Acórdão n.º 43/10 – 17.DEz.2010 ‑1.ª s/ss ‑ Processo n.º 1373/10

Empreitada de obras públicas. Concurso público urgente. Prazo mínimo para apresentação de propostas. Recusa de visto

1. A adopção de um procedimento de concurso público urgente, ao abrigo do disposto no artigo 155º e seguintes do CCP, tem, desde logo, um pressuposto prévio, que é determinante da sua admissibilidade, ou não, no caso em apreço: a circunstância de se estar perante um caso de urgência na celebração do contrato a que se destina.

2. A urgência, como fundamento de um desvio à tramitação normal dos procedimentos administrativos constitui, como salienta AndrAde dA silVA, uma excepção à regra da concorrência nos termos gerais.

3. Uma vez que a caracterização e o preenchimento do conceito de urgência, carece apreciação casuística, pode afirmar-se que, para que uma situação possa ser considerada de urgência, terá que se estar perante um caso em que a utilização de um procedimento normal resultaria ine‑ficaz ou revelar-se-ia inidóneo para dar, em tempo oportuno, a resposta necessária.

4. A simples invocação da utilização de fundos comunitários, não serve como fundamento justificativo de urgência.

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5. Tendo em conta o valor do contrato, necessária seria a realização de um concurso público, ou de um concurso limitado por prévia qualifi‑cação, levado a cabo com a observância de todas as formalidades previs‑tas no CCP e, designadamente, com a observância do prazo para a apre‑sentação de propostas definido no artigo 135º, nº1, do mesmo compêndio normativo, o que não sucedeu.

6. A violação de lei verificada, sendo susceptível de restringir o uni‑verso de potenciais concorrentes, é do mesmo modo susceptível de alterar o resultado financeiro do contrato.

7. Pelos fundamentos indicados, por força do disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44.º da LOPTC, acordam os Juízes do Tribunal de Con‑tas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.

Acórdão n.º 36/10 – 21.DEz.2010 ‑1.ª s/ss ‑ Processo n.º 995/10

Prestação de serviços. Contrato de execução contínua. Emolu‑mentos

1. O contrato destinado a disponibilizar o sistema de cobrança de portagens e o serviço de cobrança de taxas de portagem aos utilizadores de uma auto-estrada, entre 1 de Julho de 2010 e 19 de Maio de 2030, de forma contínua e ininterrupta, cujo pagamento da contraprestação remu‑neratória se efectua de forma periódica ou reiterada, ao fim de períodos consecutivos, é, tal como o contrato de locação, um contrato de execução contínua com prestações remuneratórias periódicas.

2. Para efeitos emolumentares, esse contrato deve considerar‑se um contrato de execução periódica, ao qual se aplica o disposto no n.º 2 do artigo 5.º do Regime Jurídico dos Emolumentos do Tribunal de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de Maio.

3. Não sendo as prestações remuneratórias constantes, deve dividir‑‑se o valor global estimado do contrato pelo prazo de duração do mesmo, para encontrar o valor anual que serve de base de incidência ao cálculo dos emolumentos.

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Acórdão n.º 2/11 – 21.JAN.2011 ‑1.ª s/Pl ‑ Processo n.º 1022/10

Locação financeira. Contrato atípico. Cessão de posição contra‑tual. Nulidade. Recusa de visto

1. Os contratos devem ser analisados e qualificados, não apenas com base na sua configuração formal, mas também em função das circunstân‑cias em que se enquadram e dos objectivos que visam realizar.

2. A locação financeira envolve uma relação jurídica trilateral, entre o fornecedor da coisa locada, o financiador, que a adquire e a dá em loca‑ção, e o locatário, que a goza em contrapartida de uma remuneração. Na locação operacional a relação é meramente bilateral, entre o locador (simultaneamente fornecedor e proprietário de uma coisa) e o locatário.

3. Na locação financeira a remuneração a pagar pelo locatário visa o reembolso do valor aplicado pelo locador, enquanto na locação operacio‑nal a remuneração se destina tão só a pagar o gozo do bem e a prestação de serviços acessórios de manutenção, reparação ou assistência técnica.

4. A função creditícia, presente na locação financeira, justifica que o locador não seja responsável pela entrega de uma coisa conforme e esteja isento de responsabilidade pela perda ou deterioração do bem. Sujeita ao regime geral da locação, a locação operacional implica que o locador, porque proprietário jurídico e económico da coisa locada, suporta o risco da sua perda ou deterioração, competindo-lhe as reparações necessárias à conservação do bem.

5. Em termos legais, a opção de compra é um elemento típico e indis‑sociável da locação financeira. Noutras modalidades de locação, pode ou não ser consagrada.

6. O contrato em apreciação não é um contrato de locação financeira nem um contrato de locação operacional. Embora não inclua a opção de compra do bem, encerra uma estrutura jurídica trilateral, com a intervenção de uma entidade financiadora, definida desde o início e regulada no texto contratual, tem um prazo ajustado ao pagamento integral do bem e estabe‑lece que os riscos pela deterioração e perda do bem correm pelo locatário. É, pois, um contrato atípico, com elementos relevantes de locação financeira.

7. A este contrato aplicam‑se as normas gerais sobre contratos, sobre contratos públicos e sobre locação e, ainda, as normas aplicáveis a casos análogos quanto aos elementos específicos não regulados no regime geral.

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8. À intervenção da instituição financeira, que desde o início se previa vir a adquirir o bem para o dar de locação à entidade adjudicante, deve aplicar-se o disposto no artigo 8.º, n.º 2, do Regime Geral das Insti‑tuições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

9. Embora essa instituição não outorgue formalmente o contrato submetido a fiscalização prévia, é mencionada nesse contrato e nele estão regulados os seus direitos e obrigações assim que assuma a posição de locadora, o que veio a suceder de imediato. Essa instituição deve, assim, ter‑se por parte do negócio celebrado, sendo ela que assegura a compo‑nente do financiamento. Estando legalmente habilitada para o efeito, con‑sidera‑se respeitado o disposto naquela norma legal.

10. Nada obsta a que a fornecedora do bem seja parte do contrato, tanto mais que assume obrigações duradouras relativamente à assistência e manutenção técnica do equipamento.

11. A intervenção da instituição de crédito é uma componente essen‑cial do negócio e formalizou‑se com a pronta cessão da posição contra‑tual. No entanto, essa instituição foi designada livremente pela adjudica‑tária e a sua escolha como co-contratante da entidade adjudicante não foi objecto do procedimento pré‑contratual.

12. A falta do concurso para a escolha da referida co‑contratante, exigível nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do CPP, origina a nuli‑dade do acto de adjudicação e do correspondente contrato.

13. A nulidade constitui fundamento de recusa de visto, nos termos do artigo 44.º, n.º 3, alínea a), da LOPTC.

3.ª sECçÃO (REsPONsABIlIDADE FINANCEIRA)

Acórdão n.º 10/2010 – ROM n.º 1 ROM‑1s/2010 – 3ª secção‑Pl

Contrato adicional. Remessa ao Tribunal de Contas. Responsabi‑lidade sancionatória

1. Não obstante se alegar que a demora para a celebração do con‑trato adicional foi motivada pelo desentendimento entre o empreiteiro e a Divisão de Obras relativamente aos trabalhos resultantes dos “erros e

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347Comentários de Jurisprudência

omissões” reclamados, importa mencionar que o n.º 2 do artigo 47º da LOPTC, impõe o envio ao Tribunal de Contas, dos contratos adicionais a contratos visados, no “prazo de 15 dias a contar do início da sua exe‑cução” e que tem sido entendimento deste Tribunal que a execução aqui mencionada é a execução material do contrato, começando o prazo a contar‑se desde a realização dos trabalhos adicionais que constituem o objecto do contrato adicional.

2. No caso concreto, verifica-se que não foi respeitado aquela dis‑posição legal, ultrapassando‑se aquele prazo em 119 dias, sendo tal atraso susceptível de consubstanciar uma infracção, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 66º da citada Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto.

3. Temos, assim, que a sentença escalpeliza de forma muito clara por que razão não considera justificada a conduta do Recorrente, não merecendo qualquer censura, quer a título de omissão de pronúncia, quer sobre o seu mérito, aderindo‑se inteiramente aos seus fundamentos, não enfermando, pois, do vício apontado, pelo que vai desatendida a preten‑são do Recorrente.

4. Pelos fundamentos expostos, os Juízes da 3ª Secção, em Plená‑rio acordam em negar provimento ao recurso e, consequentemente man‑ter a decisão recorrida.

Acórdão n.º 11/2010 – RO n.º 4 RO‑JC/2010

Contratação de aposentados. Pagamento indevido. Responsabili‑dade financeira reintegratória

1. Foi violado o art.º 79.º do Estatuto da Aposentação, uma que o pagamento devido aos contratados é de 1/3 da remuneração que competir às funções por estes desempenhadas, já que não havia qualquer despacho do Senhor Primeiro-Ministro a autorizar montante superior;

2. Os montantes pagos pela Câmara para além da terça parte da remuneração correspondente às funções desempenhadas integram um dano no património público por inexistir qualquer contraprestação efec‑tiva por esse excesso remuneratório.

3. Daí que os montantes a mais pagos pela Câmara sejam pagamen‑tos indevidos.

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4. O Recorrente não agiu com o cuidado a que, segundo as circuns‑tâncias concretas, estava obrigado, por não se ter informado, como podia e devia, sobre o regime legal aplicável às contratações para funções públicas de ex-funcionários públicos aposentados, sendo certo que se o fizesse tal poderia obstar a que, com forte probabilidade, viesse a incorrer no vício de violação de lei do primeiro segmento do disposto no art.º 79.º do E.A. e nas infracções financeiras reintegratórias por que foi condenado, proba‑bilidade essa que seria tanto maior quanto a informação fosse solicitada a entidades oficiais.

5. O que é de todo inaceitável é que um gestor público decida contratar para funções públicas ex-funcionários públicos aposentados sem procurar conhecer e/ou informar‑se sobre a totalidade do regime jurídico aplicável, de que o aspecto remuneratório é elemento essencial e não acessório.

6. Termos em que, em Sessão Plenária do Tribunal de Contas, se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a condenação decidida em sede de 1.ª instância.

ALEXANDRA PESSANHA E NUNO CUNHA RODRIGUES

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RECENSõES

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O grande economista, Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que nos honra com a sua participa‑ção no Conselho Científico desta Revista, tem continuado a publicar um conjunto de textos da maior relevância nas áreas das finanças públicas e da fiscalidade, consolidando um vastíssimo currículo que inclui dezenas de livros e muitas centenas de artigos.

Nas suas obras é sempre de assinalar o grande rigor dos conhecimen‑tos e a criatividade, expressa exemplarmente no Efeito Tanzi, divulgado no mundo da economia.

Russian Bears and Somali Sharks.Transitions and other Passages

VITO TANZI

Jorge Pinto Books Inc, 2010

The charm of Latin America.Economic and Cultural Impression.

VITO TANZI

Iuniverse, 2010

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Vito Tanzi teve uma carreira académica brilhante, que viria sacrificar a favor de outros interesses seus. É de assinalar uma breve passagem pelo Governo Italiano, que pôde aproveitar da sua infindável rede de contactos e influência junto das instituições internacionais.

Especialmente marcante foi a sua passagem pelo Fundo Monetá‑rio Internacional, em que exerceu desde 1981 as funções de Director do Departamento de assuntos Fiscais, tendo trabalhado em colaboração com as autoridades nacionais de inúmeros países em matérias fiscais, bem como combate à corrupção e ao branqueamento de dinheiro.

Entre 1990 e 1994 presidiu ao International Institute of Public Finance, de que é, actualmente, Presidente Honorário.

Quem teve a felicidade de se cruzar com Vito Tanzi, conserva a recordação da sua enorme afabilidade, do seu saber enciclopédico e da sua curiosidade pelo Mundo, que vai muito para além das meras ques‑tões de fiscalidade.

Russian Bears and Somali Sharks. Transitions ans Other Passages e The Charm of Latin America. Economic and Cultural Impression são os dois últimos títulos por ele publicados e que nos dão uma visão impressionista, mista de informação económica e cultural, sobre um conjunto de países, num estilo que se aproxima do das memórias.

Russian Bears and Somali Sharks lida, especialmente, com os pro‑cessos de transição na Europa Central e de Leste, ainda que inclua capítu‑los sobre Estados Africanos, bem como sobre Portugal, o que é um factor adicional de interesse do livro.

Tanzi recorda o seu encontro com Portugal em dois diferentes momen‑tos: no período posterior ao 25 de Abril e depois da adesão à União Europeia.

Do primeiro fica, sobretudo, a descrição do contraste que sentiu entre as notícias sobre nós veiculadas pela imprensa estrangeira e aquilo que era o ambiente tranquilo e até festivo de Lisboa. Não deixa, no entanto, de dar conta de vários problemas da época e das deficiências do sistema fiscal. Especialmente curiosa e paradigmática do estilo dos livros é a pequena “blague” sobre Miguel Beleza, que investira parte das poupanças num Rollex, pensando que seria uma solução segura num país em revolução e que não parecia prezar excessivamente a propriedade privada, para acabar por ver o relógio roubado na Universidade de Cambridge.

Quanto ao segundo, Vito Tanzi conclui que “Portugal se tornara apenas mais uma destas pacíficas democracias europeias, com um sector

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publico inflacionado e permanentes problemas fiscais”, mas tudo isso sem perder o seu encanto, ou até aumentando‑o.

Ao longo dos dois capítulos, o leitor encontrará um conjunto de observações plenas de interesse sobre a cultura, a culinária ou a música portuguesa e recordações de alguns dos mais relevantes economistas por‑tugueses.

The Charm of Latin America desenvolve o mesmo estilo de aborda‑gem, ainda que prestando ainda maior importância aos aspectos culturais e políticos de um Continente cuja evolução o autor segue há cinquenta anos.

Um pensamento de Santo Agostinho, evocado no início do livro, “O Mundo é um livro e os que não viajaram só leram uma página” ilus‑tra bem o espírito cosmopolita que anima Vito Tanzi que dedica o livro à sua mulher, Maria, que com ele partilhou muitas das experiências rela‑tadas e fê-las ser muito mais agradáveis. Todos quantos a conhecem não terão a mínima dúvida que esta não é uma declaração de circunstância.

EDUARDO PAZ FERREIRA

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O Dr. Vítor Bento tem um impressionante percurso profissional, dedi‑cado ao serviço público, seja na vertente da administração pública, seja na administração das mais importantes utilities financeiras do país. É por isso que a sua denúncia, reiterada nesta pequena obra, escrita de um modo que evoca o discurso directo e algo informal – mas não menos informado – de uma conferência, assume maior importância. E o que denúncia o autor? Nada mais, nada menos do que, para não seguir, com menos mérito, o estilo de Vítor Bento, a existência de uma canga que onera o sector exportador da economia portuguesa: o crescente e lucrativo sector não transaccioná‑vel que, assume o papel de vilão ao longo das mais de cem páginas deste pequeno manifesto. Sector este que, nas palavras do autor, “é o conjunto de actividades produtivas que estão protegidas da concorrência interna‑cional, seja pelos elevados custos de transporte, seja por qualquer outra restrição, física, funcional ou administrativa, que força a confinar a pro‑dução a uma proximidade geográfica do consumo”, sendo disso exemplo “as utilities (...) e a maior parte dos serviços” (p. 66).

Ora, o nó da economia portuguesa, na imagem de Vítor Bento, reside justamente neste sector que, apenas ele, não sentido tão intensamente os efeitos da crise económica e do abrandamento do crescimento económico nacional. “Funcionando num mercado protegido e com margens assegu‑radas – seja pelos preços administrados, seja pela garantia das vendas –

O Nó Cego da Economia

VÍTOR BENTO

Bnomics, 2010

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o sector não transaccionável terá tido, ao longo da última dúzia de anos, o seu período de maior prosperidade. Enquanto isso, a economia, como um todo, foi continuamente definhando e ficando cada vez mais endividada e o sector transaccionável foi-se atrofiando” (p. 62). Para Vítor Bento, a protecção de que goza tornou-o no sector mais rentável, o que consegue pela extracção de rendas do sector transaccionável, levando à “instalação, e cristalização, à volta deste sector, de uma poderosa aliança de interesses que resistirá a qualquer mudança”, isto, apesar da facilidade que tem de “socializar os seus custos, seja através dos preços, transferindo-os para os consumidores, seja através dos impostos, transferindo‑os para os con‑tribuintes” através do “poder de mercado das empresas e da “facilidade de acesso aos cofres públicos”, conseguindo “com o glamour proporcio‑nado pelo poder económico e social que movimenta”, “ ‘capturar’ a pró‑pria governação” (pp. 62‑63).

Nem a lógica dos campeões nacionais, mobilizando o apoio polí‑tico a algumas das empresas mais emblemáticas do sector dos serviços em geral e das utilities em especial, escapa à crítica de Vítor Bento, que sublinha que “os excedentes criados pela rentabilidade protegida do Sec‑tor Não Transaccionável estão a ser canalizados para investimentos no exterior” (p. 65).

A solução para este problema não parece, contudo, dever passar ape‑nas pelo enfoque a que Vítor Bento atribui prioridade, aquilo a que chama a visão macroeconómica da economia portuguesa. Se, com efeito, “a pro‑tecção natural de mercado de que o Sector Não Transaccionável dispõe, permite-lhe reflectir todos os custos no seu preço, protegendo a sua mar‑gem”, bem como “aumentar os preços mais do que o aumento dos custos, gerando uma rentabilidade acrescida, sustentada através de rendas econó‑micas, cobradas ao resto da economia”, tal fica a dever-se igualmente aos mercados em que tais empresas operam, e que, como o autor afirma, sem dúvida com saber de experiência feito, “permitem, pela sua natureza, a formação de consideráveis economias de escala, o que favorece a sua con‑centração em monopólios ou em duopólios” (p. 69). Mas, assim sendo, talvez devesse igualmente ser tido em conta o papel de certos instrumentos mais certeiros do que as referências globais à necessidade de flexibilização do mercado de trabalho, talvez a mensagem mais associada pela opinião pública a este pequeno livro, e que pode levar à crítica fácil e injusta de que esta é mais uma caixa de ressonância de diagnósticos simplistas de

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organizações internacionais, que repetem a sua ladainha, indiferentes às circunstâncias que as rodeiam.

Embora a resposta não surja de forma imediata, sobretudo para quem tem actuado em sectores alheios ou mesmo abertamente hostis, por vezes até por parte dos mais altos poderes públicos, ao estímulo da tormenta do mercado concorrencial: mas ainda assim ela está presente neste livro, embora gostássemos de a ver mais desassombradamente assumida – a política de concorrência, aplicada de forma eficaz e rigorosa, orientada por uma missão clara e inequívoca de combater tal apropriação indevida de rendas, sem as peias que tradicionalmente a têm afastado de alguns sec‑tores, como, sem dúvida, os que Vítor Bento identifica como integrando o nó górdio da economia portuguesa.

Ora, dependendo o aumento da produtividade do sector transaccio‑nável de medidas de médio e longo prazo, é de saudar a conclusão de Vítor Bento, para quem tal nos deixa “os preços (e os custos do Sector Não Transaccionável como a única variável sobre a qual a solução poderá incidir no curso prazo. E isso só poderá ser conseguido por via adminis‑trativa ou regulatória. Quer directamente ao nível dos preços, quer indi‑rectamente ao nível das condições concorrenciais relevantes para a for‑mação dos preços” (p. 103).

Oxalá os gestores públicos e privados que são visados pela denúncia de Vítor Bento interiorizem estas lições e não cedam à tentação de procurar colocar-se à margem da crítica, eventualmente inventando ameaças con‑correnciais externas que os coloquem no verdadeiro sector transaccionável.

MIGUEL MOURA E SILVA

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Tem surgido, nos últimos tempos, um conjunto assinalável de livros que, de forma mais ou menos elaborada, procuram fazer o diagnóstico da crise financeira e, em alguns casos, apontar soluções.

O volume que agora recenseamos poderia, em abstracto, ser apon‑tado como mais uma publicação.

Mas, em rigor, não é.Trata-se, por diferentes motivos, de um texto diferente.Em primeiro lugar, porque não é um apontamento de oportunidade

mas a reprodução de um diálogo construído e metódico que António Nogueira Leite manteve, ao longo de dois meses, com Paulo Ferreira.

O discurso combina uma análise económica rigorosa – (Nogueira Leite é Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa) - que procura diagnosticar causas e soluções para a crise com avaliações extraídas da experiência política do autor.

O Autor descreve o problema doe endividamento nacional (cfr. parte I) e explica como chegámos a este ponto. O percurso expositivo inclui aspectos diversos, desde a crise de 1983, ao desenvolvimento do “mons‑tro” ou aos erros nas privatizações (cfr. parte 2).

Num outro ponto ‑ a miragem do euro e o governante preguiçoso (cfr. parte 2) – Nogueira Leite evoca a sua passagem pelo governo de António Guterres, num registo de alguém que viu (e vê) a política de dentro, mas

Uma Tragédia Portuguesa

ANTóNIO NOGUEIRA LEITE(COM PAULO FERREIRA)

Lua de Papel, 2010

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de forma objectiva, (o que é raro nos nossos dias), elaborando e denun‑ciando os erros políticos, independentemente de quem os produz.

Ao longo do texto, António Nogueira Leite denota uma aguda visão sobre a situação económico-financeira de Portugal, reflectindo sobre maté‑rias interessantes, como o modelo de Estado ou a política fiscal. Fá-lo com rigor e sem embarcar em demagogias fáceis (repare-se, por exemplo, no cuidado que revela ao evitar pronunciar‑se sobre a aquisição de submari‑nos ou o sistema de saúde).

Na parte 3 (acto final: ressurreição ou morte), o volume inclui solu‑ções para a “tragédia portuguesa”, em que Nogueira Leite põe em ênfase no emagrecimento do Estado, na reforma do Estado social e nas empresas.

Nesta parte, poderia objectar‑se que falta profundidade a algumas das soluções.

Mas esse não era o desiderato da obra.Trata-se da reposição de comunicações orais que, desde logo pela

forma, se destinam a “abanar consciências” – atente-se no título – a lançar pistas de reflexão e a rasgar caminhos que deverão, no futuro, ser desen‑volvidos.

O livro utiliza uma linguagem simples e acessível, sendo acompa‑nhado, aqui e ali, por explicações sucintas, em notas de rodapé, nomea‑damente sobre alguns conceitos técnicos.

Trata-se, por tudo isso, de um livro de leitura acessível a qualquer pessoa.

O que é simultaneamente uma virtude e um defeito.Por um lado, a leitura no formato de entrevista permite que todos

compreendam o diagnóstico e a razão da crise financeira, bem como aos desafios que se nos colocam.

Mas, por outro lado, não descobre o exaustivo trabalho científico que está por detrás de um discurso fluido e aparentemente fácil.

Em qualquer caso, o livro abre a possibilidade de que o público em geral se possa interessar pelos temas e, em particular, pelos trabalhos de Nogueira Leite.

NUNO CUNHA RODRIGUES

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O Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro representa um marco histórico na reforma da tributação do património, pois é por inter‑médio do mesmo que se instaura um sistema efectivo de avaliação dos prédios urbanos e rústicos, permitindo assim o restabelecimento do valor patrimonial próximo do valor de mercado, algo que não acontecia com a anterior Contribuição Autárquica, o que causava sérios problemas de igualdade horizontal e vertical. Faltava, contudo, até à data uma obra de fundo sobre as implicações desta reforma.

O autor desta obra, o Mestre José Maria Fernandes Pires, que partici‑pou na concepção e implementação da dita reforma junto da DGCI, enten‑deu que era o momento de fazer um balanço teórico de fundo, tendo em conta fundamentalmente a sua experiência de leccionação na Faculdade de Economia do Porto, na Escola de Gestão do Porto e no ISCTE‑INDEG.

O texto encontra-se organizado em quatro partes. A primeira parte dedica‑se à determinação do Valor Patrimonial dos Prédios Urbanos. A segunda parte estuda detalhadamente o IMT, a terceira o Imposto do Selo, sendo a última parte dedicada aos benefícios fiscais nos impostos sobre o património. Conforme é referido na introdução, esta obra analisa de forma desenvolvida o sistema de tributação do património em Portugal.

Este manual dedica uma parte importante às regras de apuramento do valor patrimonial tributário. Na verdade, a criação de um sistema efectivo

Lições de Impostos sobre o Patrimónioe do Selo

JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES

Almedina, 2010

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de avaliação dos prédios permitiu assim criar um verdadeiro imposto sobre o património e não sobre o rendimento, abrindo, igualmente, a possibili‑dade de o legislador descer as taxas, em resultado do aumento dos valores patrimoniais, que serviriam de base tributável. De facto, a Contribuição Autárquica, criada pelo Decreto-Lei n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, incidia sobre o património e não sobre o rendimento, que, por seu lado, passava a ser tributado simultaneamente nos dois impostos sobre o ren‑dimento entretanto criados – IRS e IRC. Sendo assim, a cada prédio era atribuído um valor tributável, determinado no termo de um Código de Ava‑liações. Este Código das Avaliações nunca chegou a ser publicado, pelo que até á criação do IMI, o valor patrimonial era definido pelo Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola anterior e noutros casos pelo Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações.

E é também curioso ser ainda relevante a discussão sobre a verda‑deira utilidade do IMT, dado o acréscimo económico evidenciado dada a integração sistemática do IVA como imposto geral sobre o consumo. Ora, a dinâmica dos custos de transacção admite que possam ser criados meca‑nismos contratuais para que as partes cumpram os seus termos, ou que, caso isso não suceda, a outra parte possa tomar uma acção apropriada. Compreende‑se, desta forma, a opção tomada pelo legislador, como regu‑lador de um mercado imobiliário e garante da certeza no estabelecimento das relações jurídicas. Esta análise não quer evidenciar, contudo, e numa lógica de simplificação, que a tributação imobiliária não faça mais sen‑tido quando integrada na sistemática do IVA, ponderadas as taxas (se 6% ou 23%) que seriam mais adequadas à referida manutenção das expecta‑tivas das partes envolvidas no negócio jurídico.

Quanto aos benefícios fiscais, a reforma do património empreen‑dida em 2003 fez uma arrumação dos desagravamentos e dos benefícios em vigor nos tributos em análise. É de denotar que os desagravamentos detectados, quer em IMT, quer em IMI, são muito similares, e seguem de perto as orientações decorrentes do Relatório elaborado pela Comissão de Reforma da Tributação do Património (cfr. Comissão de Reforma da Tributação do Património, Projecto de Reforma da Tributação do Patri‑mónio, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, nº 182, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1999, pp. 162 – 163), como seja a manutenção da isen‑ção dos prédios destinados a habitação (artigo 42.º do EBF), agora com

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363Recensões

um número de anos menor, dada a redução de taxas de IMI e de IMT ou a criação da figura da suspensão de pagamento para os sujeitos passivos de baixos rendimentos (artigo 45.º do EBF).

Estamos perante um manual importante e oportuno, em jeito de pri‑meiro balanço de uma reforma que em breve fará dez anos.

GUILHERME WALDEMAR D’OLIVEIRA MARTINS

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No direito fiscal contemporâneo os temas de índole processual não têm merecido a atenção devida. Na verdade, para além da recuperação de tópicos como os princípios do contencioso ou o ónus da prova – maté‑rias que se afiguram clássicas por remeterem para os trabalhos de Alberto Xavier e Saldanha Sanches na década de oitenta do século passado – pouco maior tem sido a investigação. Na actualidade, a excepção mais marcante é a 5.ª edição, agora em dois volumes, das anotações ao Código de Pro‑cedimento e de Processo Tributário pelo Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (2006/2007), bem como a recente incursão do mesmo autor na matéria da prescrição da obrigação tributária, já objecto de segunda edi‑ção (2010).

A par dos temas tradicionais, é necessário que o estudo do conten‑cioso – expressão anterior ao século vinte e que sugere a lógica dinâ‑mica dos atritos entre os dois polos subjectivos da relação tributária – se expanda para territórios de conflitualidade mais evidente e de maior debate jurisprudencial, como sejam, entre outros, o da audição dos parti‑culares, o da relevância do vício de forma, o dos vícios da notificação, o da contagem de prazos e o da articulação entre as vias graciosa e judicial. As (diversas) armadilhas patentes na legislação fiscal, potenciadas pela (inevitável) ausência de uma jurisprudência totalmente uniforme, não são questões menores; são antes aspectos vitais para o sucesso ou insucesso

O Ónus da Prova no Direito Fiscal

ELISABETE LOURO MARTINS

Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010

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da querela fiscal. Quanto maior é a margem de avaliação e de pondera‑ção criada pelo legislador fiscal maior é a necessidade de um pensamento orientado para o processo e mais falta nos faz a existência de manuais práticos como o eram o Guía Fiscal e de Contencioso de Graça Ferreira (1915) e o Processo do Contencioso das Contribuições e Impostos e das Execuções Fiscais de Armindo Ribeiro (1948).

O livro de Elisabete Louro Martins ora editado, que reproduz a sua dissertação do curso de mestrado orientada por Saldanha Sanches e com arguição de Ana Paula Dourado, procura inscrever‑se na tradição clássica acima citada. Com o título O Ónus da Prova no Direito Fiscal, a autora inicia o itinerário pela noção de relação jurídica tributária (capítulo I) e os princípios fundamentais do procedimento tributário (capítulo II), aos quais se segue uma investigação centrada na aplicação de métodos indirectos (capítulo III), na aplicação das normas relativas aos preços de transferên‑cia e subcapitalização (capítulo IV) e nos meios de reacção à disposição do sujeito passivo (capítulo V), num total de 260 páginas acrescidas de uma introdução e de conclusões.

Do livro destacam-se os capítulos III e IV, por serem os mais profí‑quos e originais, conseguindo a autora expressar um discurso actual, coe‑rente e sistemático, sobre os aspectos processuais e a relevância do ónus da prova em matérias de significativa especialização. Acresce que, atra‑vés da compilação de um expressivo acervo de jurisprudência nacional, os referidos capítulos são de grande utilidade para a prática contenciosa. Trata-se, pois, de um livro que tem na análise do ónus da prova na apli‑cação de métodos indirectos e de algumas normas anti‑abuso (como as relativas aos preços de transferência e a subcapitalização) a sua mais‑valia, consubstanciando um prático e muito relevante instrumento de trabalho para todos os que se dedicam à prática da advocacia.

NUNO DE OLIVEIRA GARCIA

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PUBLICAçÕES RECENTES

• José Renato Gonçalves, O Euro e o futuro de Portugal e da União Euro‑peia, Coimbra Editora, Wolters Kluwer Portugal, 2010

• Centro de Arbitragem Administrativa, Nuno Villa-Lobos; Mónica Brito Vieira (org.) Mais Justiça Administrativa e Fiscal, Coimbra Editora, Wolters Kluwer Portugal, 2010

• AAVV, Conferência PEC: Programa de Estabilidade ou Crescimento? n.º 4 da Colecção Colóquios IDEFF, Almedina,2011

• Clotilde Celorico Palma, As Entidades Públicas e o Imposto sobre o Valor Acrescentado – Uma Ruptura no Princípio da Neutralidade, Almedina, 2011

• Paula Rosado Pereira, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, Almedina, 2011

• Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra Editora, 2011

• Michel Bouvier, Finances publiques, LGDJ; 10e édition, 2010• Laurent Femenias, L’Euro Et La Bce: à la lumière des théories monétai‑

res holistes contemporaines, Editions universitaires européennes, 2010• Martin Collet, Procédures fiscales, Presses Universitaires de France –

PUF 2011• Taoufik Bouraoui, Les Spams Boursiers: Une escroquerie financière

qui altère le fonctionnement des marchés financiers, Editions universi‑taires européennes, 2011

• Margie-Lys Jaime, Arbitrage Et Protection Des Investissements Inter‑nationaux - Volume II: L’apport des traités régionaux et multilatéraux à l’évolution du Droit de L’Arbitrage et du Droit international des inves‑tissements, Editions universitaires europeennes, 2011

• Walid Abdmoulah, Microstructure Des Marches Financiers: Motifs d’échange et comportement à court terme des prix et des volumes, Editions universitaires européennes, 2011

• François-Xavi Borsi, Integration Economique Et Juridique Et Attrac‑tivite Des Juridictions: Une approche en termes de concurrence insti‑tutionnelle, Editions universitaires européennes, 2011

• Viral V. Acharya, Thomas F. Cooley, Matthew P. Richardson, Ingo Walter, New York University Stern School of Business, Regulating

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368Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Wall Street: The Dodd‑Frank Act and the New Architecture of Global Finance, Wiley 2010

• Ana Maria Juan Lozano e Consuelo Fuster Asencio, Estudio empírico sobre la tributación de los seguros de vida, Fundación Mapfre (I.C.S.) (Instituto de Ciencias del Seguro) Madrid 2010

• Juan Hdez. Vigueras, Al Rescate de los Paraisos Fiscales: La Cortina de Humo del G‑20, Icaria Editorial S.A., 2011

• Bethany McLean e Joe Nocera, All the Devils Are Here: The Hidden History of the Financial Crisis, Portfolio, 2010

• Jeffrey Friedman (Editor), What Caused the Financial Crisis, Univer‑sity of Pennsylvania Press, 2010

• Viral V. Acharya, Thomas F. Cooley, Matthew P. Richardson, Ingo Walter, New York University Stern School of Business, Regulating Wall Street: The Dodd‑Frank Act and the New Architecture of Global Finance, Wiley, 2010

• David Skeel, The New Financial Deal: Understanding the Dodd‑Frank Act and Its (Unintended) Consequences, Wiley, 2010

• Financial Crisis Inquiry Commission, The Financial Crisis Inquiry Report: Final Report of the National Commission on the Causes of the Financial and Economic Crisis in the United States, PublicAffairs 1 edition, 2011

• Damon Vickers, The Day After the Dollar Crashes: A Survival Guide for the Rise of the New World Order, Wiley, 2011

• Sebastian Dullien, Hansjörg Herr, Christian Kellermann, Decent Capi‑talism: A Blueprint for Reforming our Economies, Pluto Press, 2011

• Willem Molle, Economic Governance in the EU: Implementing Poli‑cies with the Financial and Coordination Modes, Routledge Studies in the European Economy, 2011

• Philip Booth, Fiscal Responsibility and Sound Economics, Institute of Economic Affairs, 2011

• Brian Hodgkinson, A New Model of the Economy, Shepheard‑Walwyn (Publishers) Ltd, 2011

• Robert A. Isaak, Wilhelm Hankel, The Brave New World Economics: Taming Capitalism for the Real World Economy, John Wiley & Sons, 2011

MARTA CALDAS

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NA wEB

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Por Mónica Velosa Ferreira

SITE DO INSTITUTO DE DIREITO ECONóMICO, FINANCEIRO E FISCALDA FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA (IDEFF)http://www.ideff.pt/

Volvidos dois anos desde que iniciamos esta secção da Revista, é tempo de dar a conhecer o site do IDEFF, Instituto que acolhe a Revista Finanças Públicas e Direito Fiscal.

Se é verdade que a Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal – que inicia agora o quarto ano de publicação – constitui umas das mais importantes realizações do IDEFF não é menos certo, que a Revista constitui apenas um dos exemplos da intensa e diversificada actividade do IDEFF.

Criado em 2003, o IDEFF constitui hoje uma referência incontorná‑vel nas áreas das finanças públicas e do direito fiscal, um espaço de debate e intervenção privilegiado. Como se refere logo na página de entrada do site «Em tempos de mudança na Universidade e na sociedade portuguesa, o IDEFF pretende‑se assumir como um agente activo dessa mudança, pro‑porcionando formação pós‑graduada de elevada qualidade (...) e orga‑nizando seminários, conferencias e Workshops».

Assumindo‑se como um agente activo, o IDEFF destaca‑se de outros institutos congéneres, avocando um papel pioneiro não só na formação especializada na área das ciências jurídico-económicas mas também na promoção de uma reflexão continuada e atenta sobre os problemas com que se confrontam a económica e as finanças públicas portuguesas.

O sucesso do Instituto fica a dever-se à elevada qualidade dos uni‑versitários e profissionais que reúne e ao trabalho intenso dos membros da direcção mas, principalmente, ao dinamismo e dedicação do seu Pre‑sidente, Professor Eduardo Paz Ferreira, que fez do IDEFF um Instituto de referência a nível nacional, que prima pelo rigor, pela experiência e capacidade de inovação.

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372Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

Especialmente impressiva é a valorização do cruzamento de ideias das comunidades académica e profissional tão importante nos dias que correm, bem como o diálogo permanente entre o direito e a economia bem patente em muitas das conferências promovidas pelo IDEFF.

Dar a conhecer o IDEFF e as suas múltiplas actividades e valências não é tarefa fácil, sucedem-se as conferências, os colóquios, os seminá‑rios, as publicações, os cursos de pós-graduação, entre outras iniciativas.

Iniciemos, então, uma visita guiada pelo site do IDEFF para perce‑ber a dimensão e diversidade da actividade deste Instituto.

Em termos gráficos, o site do IDEFF é de consulta fácil e intuitiva, constituindo uma fonte importante de informação, sobretudo, para quem quer estar a par das últimas actividades do IDEFF.

O site está dividido em oito secções principais, a saber: o IDEFF, Pós‑graduações, Revistas, Colecções, Prémios, Notícias, e Iniciativas.

Logo na página de entrada, em destaque, encontramos um vídeo da última conferência promovida pelo IDEFF Portugal 2011: Vir o Fundo ou ir ao fundo? O visionamento deste vídeo permite ao cibernauta visitante acompanhar na íntegra todas as intervenções efectuadas naquele que foi um dos últimos grandes eventos do IDEFF, sendo, ainda, possível aceder aos textos distribuídos pelos diversos oradores.

Também em destaque, na página de entrada, encontramos a pós‑-gradução avançada em direito fiscal, dedicada este semestre ao IVA na União Europeia, e o curso de pós‑graduação em o Direito Europeu em Acção – A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a mais recente pós‑graduação do IDEFF, desenvolvida em parceria com o Instituto Europeu. Concebida em moldes totalmente inéditos, esta pós‑‑graduação, que inclui uma semana de trabalhos no Tribunal de Justiça da União Europeia, tem tido grande aceitação. Destaca‑se, ainda, o curso de Finanças Empresarias para Juristas leccionado pelo Mestre António Ger‑vásio Lérias, que terá início no dia 12 de Março de 2011.

Nas Iniciativas encontramos, em destaque, o seminário dedicado ao tema Enquadramento da Regulação Fiscal na União Europeia, apresen‑tado por Tom O`Shea (Universidade de Londres), que teve lugar no dia 24 de Fevereiro e o seminário Residência das Sociedade nas Convenções de Dupla Tributação, apresentado pelo Prof. Dr. Richard Vann (Universidade de Sidney) e Prof. Dr. Clifton Fleming (Brigham Young University), a ter lugar no próximo dia 6 de Maio. Estas iniciativas inserem-se num

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programa de estudos e investigação na área do direito fiscal internacio‑nal e europeu coordenado pela Professora Doutora Ana Paula Dourado, Vice‑presidente do IDEFF, e especial impulsionadora das iniciativas do Instituto em matéria de direito fiscal internacional e europeu.

Nesta área merece, ainda, destaque a conferência O novo regime de arbitragem fiscal que teve lugar no dia 4 de Fevereiro de 2011.

Actualmente o IDEFF promove seis cursos de pós‑graduação princi‑pais, a saber, pós‑graduação em Direito Fiscal (normal e avançada), pós‑-graduação em Regulação e Concorrência, pós-graduação em Mercados Financeiros e pós‑graduação em Finanças e Gestão do Sector Público. A apresentação, programa e calendário podem ser consultados no site na secção pós-graduações.

A estas pós-graduações, junta-se, ainda, The GREIT Lisbon Summer Course on EuropeanTax Law, este ano na terceira edição. Refira-se, a este propósito, que o site do IDEFF disponibiliza na íntegra as intervenções dos oradores da segunda edição através de vídeos de acesso rápido e fácil.

A aposta nos estudos pós‑graduados é complementada por uma panó‑plia bastante diversificada de outras iniciativas, das quais, destacamos, o curso de formação para juízes em Direito Europeu da Concorrência, o Seminário Internacional Private Enforcement do Direito da Concor‑rência, o Workshop Gestão de dinheiros públicos e prevenção de riscos de corrupção e, ainda, o curso intensivo sobre o Código Contributivo da Segurança Social. Os respectivos programas – que podem ser consulta‑dos no site – atestam bem a qualidade destas iniciativas.

Na secção notícias podemos encontrar a referência aos dois últimos protocolos celebrados pelo IDEFF: protocolo IDEFF/Instituto de Gestão do Crédito Público, e protocolo IDEFF/Procuradoria‑Geral da República. A parceira IDEFF/OTOC assume especial importância para o Instituto tra‑duzindo-se, nomeadamente, na organização conjunta de várias actividades.

A tudo isto, juntam‑se as grandes conferências organizadas pelo IDEFF, que muito têm contribuído para os grandes debates que se colocam à sociedade, ao direito e à economia pública. Aqui ficam alguns exem‑plos das últimas conferências promovidas: Conferência Conselho Euro‑peu de 24 e 25 de Março: Novas Vestes da União Europeia? Conferência As relações Portugal/EU/EUA num mundo em mudança, Confe rência o Direito e a Economia um ano depois da crise: que perspectivas para o futuro?, PEC: Programa de Estabilidade ou Crescimento?, e Conferência

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Internacional o Relatório Stiglitz: um novo paradigma para a economia, entre muitas outras, cujo sucesso demonstra bem o dinamismo e força deste Instituto.

Mas esta breve visita ao site do IDEFF não ficaria completa sem a mencionar as publicações do IDEFF. Actualmente, o IDEFF disponibiliza duas colecções, Cadernos IDEFF, cujo propósito é divulgar o trabalho de investigação realizado pelos seus docentes, proporcionado elementos de estudos e trabalho àqueles que frequentam as suas pós-graduações e Coló‑quios IDEFF, colecção mais recente, destinada a dar a público as inter‑venções proferidas em diversas conferências organizadas pelo Instituto.

Paralelamente, e no que respeita às Revistas, além da Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, que se tornou um ponto de referência na área das finanças públicas e do direito fiscal, o IDEFF acolhe, ainda, a Revista de Concorrência e Regulação. Ao iniciar o segundo ano de publi‑cação, esta iniciativa conjunta IDEFF/Autoridade da Concorrência, com periodicidade trimestral, combina de forma impar a investigação cientí‑fica rigorosa nos domínios da concorrência e regulação. A direcção desta Revista encontra-se a cargo do Professor Doutor Luís Silva Morais e do Mestre João Espírito Santo Noronha.

A este propósito é, ainda, de referir o colóquio comemorativo do 1.º Aniversário da Revista de Concorrência e Regulação, que decorreu no passado dia 14 de Abril, na Fundação Calouste Gulbenkian.

A visita ao site permite perceber de forma clara que o IDEFF é hoje muito mais do que um Instituto que proporciona formação é um espaço de reflexão e discussão sobre os acontecimentos mais marcantes para o direito, as finanças públicas, a economia, e a fiscalidade. Não deixem, por isso, de fazer uma visita ao site e agendar o próximo evento do IDEFF.

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Por Nuno Cunha Rodrigues

BLOGUE – VISTO DA ECONOMIAhttp://vistodaeconomia.blogspot.com/

Propomos, neste número da Revista, uma visita ao blogue de Helena Garrido – Visto da Economia.

Helena Garrido é uma das mais reputadas jornalistas de economia em Portugal, sendo actualmente directora‑adjunta do Jornal de Negócios e Professora universitária de jornalismo económico e de jornalismo e ins‑tituições europeias que nos habituou, desde sempre, ao rigor e qualidade do jornalismo produzido.

Entre a diversa e intensa actividade profissional, Helena Garrido surpreende ao editar um blogue onde fornece elementos para uma reflexão séria sobre a actualidade económica.

No blogue Visto da Economia, regularmente editado desde 2007, Helena Garrido concilia a divulgação do jornalismo com o rigor cientí‑fico da economia de uma forma simples e descomplexada.

A maioria dos posts reflectem preocupações actuais, sendo objecti‑vos e claros quer na descrição dos factos quer nos links que são adiciona‑dos e nos permitem ser redireccionados para as mais relevantes notícias, comentários ou relatórios publicados sobre os assuntos em causa.

Posts como “os juros que preocupam”; “Wikileaks chega a Portugal” ou “O euro ameaçado, ortodoxias e heterodoxias”, com links imediatos para as notícias ou reflexões mais relevantes sobre as matérias em causa permitem ao leitor apreender, em pouco tempo, a complexidade de um assunto actual sem necessidade de se perder na navegação cibernautica ou numa análise científica frequentemente pouco compreensível.

O blogue é regularmente actualizado sem prejuízo de, num período ou outro, se verificar alguma irregularidade temporal nos posts publicados.

O blogue contém igualmente links para alguns dos blogues nacionais e internacionais actualmente mais estimulantes, bem como para os meios

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376Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

de comunicação internacionais mais relevantes (verbi gratia televisões, jornais, primeiras páginas no mundo, etc.).

Trata-se de um blogue de leitura acessível, estimulante e actual que nos permite reforçar a ideia de que nem sempre a blogosfera constitui um circo de má-língua, representando antes uma manifestação significativa de pujança da sociedade civil.

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CRóNICADE ACTuALIDADE

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PONTO DE SITUAÇÃO DOS TRABALHOS NA UNIÃO EURO‑PEIA E NA OCDE – PRINCIPAIS INICIATIVAS ENTRE NOVEM‑BRO DE 2010 E FEVEREIRO DE 2011

Manuel Faustino, Clotilde Celorico Palma e A. Brigas Afonso

1. FISCALIDADE DIRECTA

I – UNIãO EUROPEIA

1. A Comissão instaurou um processo no Tribunal de Justiça con‑tra a Bélgica por tratamento discriminatório das aplicações de poupança ‑reforma (IP/10/1559)

A Comissão decidiu instaurar um processo no Tribunal de Justiça contra a Bélgica, em virtude de os benefícios fiscais às aplicações em produtos e poupança ‑reforma apenas serem concedidos quando efec‑tuadas em estabelecimentos belgas ou, em caso de contas ‑poupança colectivas, em fundos belgas. Para a Comissão, estas disposições são contrárias à livre prestação de serviços e à livre circulação de capi‑tais, consagradas, respectivamente, nos artigos 56.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

2. A Comissão pediu à Bélgica para acabar com o tratamento fiscal discriminatório de alguns rendimentos mobiliários (IP/10/1563)

A Comissão pediu formalmente à Bélgica para rever o seu sistema fiscal que tributa adicionalmente rendimentos mobiliários (dividen‑dos e juros) pagos por intermediários estrangeiros a residentes belgas que investem no estrangeiro. O pedido revestiu a forma de parecer fundamentado.

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3. A Comissão instaurou processos no Tribunal de Justiça contra a Dinamarca, Espanha e Holanda por causa das disposições legais sobre os ‘impostos de saída’(IP/10/1565)

A Comissão decidiu instaurar processos no Tribunal de Justiça contra a Dinamarca, Espanha e Holanda por causa das disposições dos res‑pectivos sistemas fiscais que consagram uma tributação de saída às empresas que deixem de ter o seu domicílio nestes Países. A Comissão considera que tais disposições são incompatíveis com a liberdade de estabelecimento contemplada no artigo 49.º do Tratado sobre o Fun‑cionamento da União Europeia.

4. A Comissão instaurou um processo no Tribunal de Justiça contra Espanha relativamente às normas discriminatórias que aplica aos representantes fiscais (IP/10/1569)

A Comissão instaurou um processo no Tribunal de Justiça contra Espa‑nha, em virtude das disposições fiscais relativas à nomeação de repre‑sentantes fiscais. As normas fiscais espanholas obrigam à designação de representante fiscal distintas categorias de contribuintes: fundos de pensões cuja sede se encontre noutro Estado -membro e que ofereçam regimes de pensões em Espanha; as empresas de seguros de outros Estados -membros que operem em Espanha; as empresas de não resi‑dentes que operem em Espanha através de estabelecimento perma‑nente; e os não residentes sujeitos a imposto sobre as sucessões e doa‑ções em Espanha. A Comissão considera que as normas que dispõem que determinados contribuintes não residentes são obrigados a nomear um representante fiscal em Espanha dão lugar a um tratamento discri‑minatório e são contrárias à livre prestação de serviços estabelecida no artigo 56.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

5. Eliminar os obstáculos fiscais transfronteiras em benefício dos cidadãos da UE (IP/10/1569)

A Comissão publicou uma comunicação que destaca os problemas fiscais mais graves que os cidadãos europeus enfrentam em situações transfronteiras e anuncia planos para eventuais soluções. Quando os

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381Crónica de Actualidade

indivíduos se deslocam, trabalham ou investem no estrangeiro, podem ter de enfrentar situações de dupla tributação, bem como outras difi‑culdades, como no caso dos pedidos de reembolso de impostos ou na obtenção de informações sobre disposições fiscais estrangeiras. A comunicação anuncia planos em domínios como, por exemplo, os rendimentos transfronteiras, os impostos sobre as sucessões, a tribu‑tação de dividendos, o imposto de registo dos veículos automóveis e o comércio electrónico. A comunicação pretende igualmente a apurar domínios que possam também ser objecto de outras novas medidas, tanto ao nível da UE como ao nível nacional, para tornar os sistemas fiscais dos Estados -Membros mais compatíveis, para que os cidadãos não sejam dissuadidos de encetar actividades transfronteiras.

6. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões sobre a tributação do sector Financeiro COM(2010) 545/9

A Comissão dirigiu uma Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões visando contribuir para a discussão em torno de dois instrumentos: um Imposto sobre as Transacções Financeiras (Financial Transactions Tax – FTT) e um Imposto sobre as Actividades Financeiras (Financial Activities Tax – FAT). O FTT é um imposto que tributa as transacções individuais. A FAT, na sua modalidade extensiva (addition -method FAT), incide sobre o lucro e os salários. Ele também pode ser conce‑bido para indicidir especificamente sobre rendimentos económicos e ou de risco. Em contraposição com o FTT, em que cada participante no mercado financeiro é tributado segundo as operações que nele rea‑liza, o TFA tributa as empresas do sector financeiro.

7. Ajudas de Estado: a Comissão exige que Espanha revogue o regime fiscal que favorece as aquisições em países de fora da UE (IP/11/26)

A Comissão pediu a Espanha, baseada nas normas sobre ajudas de Estado da UE, que revogue uma disposição de 2002 que permite às empresas espanholas amortizar o denominado «fundo de comércio

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382Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal

financeiro» (financial goodwill) derivado de aquisições de participa‑ções em países terceiros. E a Comissão pede ainda que seja reembol‑sada qualquer ajuda atribuída desde 21 de Dezembro de 2007 com recurso à aplicação desta norma, nos casos em que não se tiver podido demonstrar que existam obstáculos jurídicos concretos. Assim se con‑clui uma investigação que já tinha resultado numa decisão em 2009, tendo -se concluído que o regime era constitutivo de ajudas de ilegais relativamente à aquisição de participações noutros países da EU. A versão não confidencial da Decisão será publicada com a referên‑cia C 45/2007 no Registo de Ajudas de Estado, no sítio da internet da Direcção -Geral da Concorrência, logo que se resolvam as questões de confidencialidade.

8. A Comissão pediu à Irlanda para modificar as suas disposições restritivas em matéria de tributação à saída para as sociedades (IP/11/78)

A Comissão pediu formalmente à Irlanda para modificar as dispo‑sições da sua legislação fiscal que obrigam as sociedades a pagar um imposto de saída quando cessam de ser fiscalmente residentes na Irlanda. A Comissão considera que estas disposições são incom‑patíveis com a liberdade de estabelecimento prevista pelo Tratado, bem como pelo Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE). O pedido foi feito sob a forma de parecer fundamentado.

9. Fórum Fiscal de Bruxelas 2011

Realizou -se em 28 e 29 de Março de 2011 o 5.º Fórum Fiscal de Bruxelas, organizado sob a presidência do Comissário Europeu res‑ponsável pela fiscalidade, alfândegas, luta antifraude e da audito‑ria. Esta conferência anual que reúne personalidades do mundo da política, peritos, representantes dos sectores económicos visados e público do mundo inteiro, abordou o tema «A Fiscalidade do Sector Financeiro». Em causa esteve a questão de saber se uma tributação acrescida ou uma tributação nova do sector financeiro poderia aju‑dar a corrigir alguns comportamentos ligados ao risco e a participar nos esforços significativos de consolidação orçamental requeridos

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em numerosos Estados Membros. No próximo número da Revista contamos poder dar conta das principais conclusões do Fórum Fiscal de Bruxelas 2011.

10. Consulta pública sobre os problemas fiscais decorrentes da distri‑buição transfronteiras de dividendos aos investidores em carteira e aos investidores particulares e soluções desejáveis

Entre 28 de Fevereiro e 30 de Abril de 2011, por iniciativa da Comis‑são, decorre uma Consulta pública sobre os problemas fiscais decor‑rentes da distribuição transfronteiras de dividendos aos investidores em carteira e aos investidores particulares e soluções desejáveis. O pagamento e o reembolso das retenções na fonte que oneram o pagamento de dividendos a investidores em carteira e a investido‑res particulares não residentes aplicáveis na União Europeia podem por vezes ser efectuados de modo discriminatório. Por outro lado, as retenções na fonte podem implicar a dupla tributação, o que perturba o bom funcionamento do mercado interno. Sendo certo que tanto a discriminação como a dupla tributação são de evitar no mercado interno, a Comissão entende que é necessário estudar mais em detalhe os problemas transfronteiras ligados às retenções na fonte nas situa‑ções descritas e, bem assim, as soluções para esses problemas. Nesse sentido lançou a presente Consulta pública, aberta a todas as partes interessadas – particulares, empresas, Estados ‑membros, administra‑ções fiscais, organizações intergovernamentais, não governamentais e profissionais, fiscalistas e universitárias. Apraz registar o interesse que, finalmente, a Comissão demonstra pela situação das pessoas singula‑res neste aspecto particular das retenções na fonte sobre dividendos, porquanto, como se sabe, nenhuma directiva, nem as convenções de dupla tributação, até agora manifestaram qualquer preocupação sobre o tema. Seguiremos com atenção os resultados desta iniciativa e deles iremos dando conta em futuras sínteses da Actualidade Europeia.

11. Fórum sobre os preços de transferência

A Comissão decidiu, em 25 de Janeiro de 2011, prolongar o mandato do Fórum Conjunto sobre os Preços de Transferência até Março de

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2015 (Decisão C/2011/175 e comunicação COM/2011/16). O «Novo» Fórum integrará mais um perito do sector privado.

12. Colecção Taxation Papers

A Colecção Taxations Papers foi neste período enriquecida com duas novas publicações. Uma ainda sobre o tema de momento – a crise financeira; outra relevando dos problemas inerentes ao financiamento da mobilidade dos estudantes de Bolonha

– N.º 25 – Financial Sector Taxation, Comissão da União Europeia– N.º 24 - Financing Bologna Student’s Moblity, Marcel Gérard

13. Estudos efectuados pela Comissão em 2010

Durante 2010, a Comissão efectuou os seguintes estudos com inci‑dência sobre a fiscalidade:

− Segurança do Comércio e scan a 100% dos contentores – SEC/2010/131 e os estudos encomendados pelas Direcções -Gerais das Alfânde‑gas e da Fiscalidade, dos Transportes, da Energia e do Comércio (17/02/2010);

− Taxas efectivas do imposto sobre as sociedades (actualização) (5/03/2010);

− Relatório sobre a supressão dos obstáculos fiscais aos investimen‑tos transfronteiras em capital de risco – IP/10/481 (30/04/2010);

− Estudo destinado a analisar a taxa mínima e a estrutura das accises sobre bebidas alcoólicas (28 -06/2010);

− Documento de referência relativo à consulta sobre as abordagens possíveis para atenuar os obstáculos em matéria de direitos suces‑sórios no seio da União Europeia (27/08/2010);

− Tratamento fiscal dos direitos de emissão no quadro do Sistema de Trocas de Direitos de Emissão. Opções para melhorar a trans‑parência e a eficácia (29/11/2010.

Todos estes estudos estão disponíveis no site da União Europeia – Fiscalidade e União Aduaneira.

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385Crónica de Actualidade

II. OCDE

1. Offshore Voluntary Disclosure

Datado de Setembro de 2010, a OCDE publicou o Relatório Offshore Voluntary Disclosure – Comparartive Analysis, Guidance and Policy Advice. Este Relatório subdivide ‑se em três partes. A primeira parte contém um “Quadro para o sucesso de programas de cumprimento voluntário pelos offshore”, estabelecendo um número de princípios essenciais desenvolvidas pela OCDE e com base na experiência de países membros, que deveriam ajudar os países na ela‑boração de programas que identificam o linha ténue entre o incentivo aos contribuintes incumpridores para melhorarem permanentemente o seu cumprimento e a manutenção do apoio e do respeito pela grande maioria dos contribuintes que já são cumpridores.A segunda parte reproduz uma parte do capítulo 5 do relatório da OCDE de 2009 “Integrar as Pessoas Singulares com elevado patri‑mónio em situação de cumprimento fiscal “. Este capítulo baseia -se em consultas com os consultores para clientes particulares e contém orientações para a administração fiscal sobre os aspectos das inicia‑tivas práticas do projecto de cumprimento voluntário com particular incidência em determinadas áreas -chave.A terceira parte compara as principais características de programas de divulgação voluntária offshore no âmbito da OCDE e 39 países não membros da OCDE que participam nos trabalhos do Comité da OCDE dos Assuntos Fiscais, incluindo tanto as regras gerais como os programas específicos. Compara as consequências para um con‑tribuinte que tenha praticado evasão fiscal e é detectado pelas autori‑dades fiscais, sem ter tido a possibilidade de efectuar uma oportuna e e compreensiva regularização voluntária global, com a situação de um contribuinte que tenha praticado evasão fiscal, mas fez uma regularização voluntária atempada e completa antes de ser detectado.

2. Reformas fiscais para melhorar a performance económica

Vivemos em plena crise económica e financeira e muitos Governos têm de fazer frente a défices e níveis de endividamento sem preceden‑

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tes. Segundo o Documento da OCDE «Tax Policy Reform and Fiscal Consolidation», para que os sistemas fiscais possam ajudar a manter um crescimento sustentável, é necessário que os Governos tomem as decisões adequadas quanto aos meios de cobrança de receitas fiscais suplementares.Os impostos podem dissuadir de trabalhar, de investir e de inovar, e de exercer, por consequência, efeitos favoráveis sobre o crescimento económico e a melhoria das condições de vida. No então, é possível reduzir as distorções:

− Modificando -se a estrutura fiscal de conjunto, a fim de aumentar os impostos sobre o consumo e sobre os bens imóveis residenciais, diminuído -se, por outro lado, o imposto sobre o rendimento pessoal e sobre os lucros das sociedades;

− Alargando -se as bases de tributação, permitindo assim manter as taxas a um nível tão baixo quanto possível;

− Instaurando um sistema fiscal «verde», que desempenharia um papel essencial no quadro de uma estratégia de crescimento verde, permitindo prosseguir objectivos ambientais enquanto as receitas suplementares geradas por esta via poderia facilitar as reformas fiscais mais amplas, orientadas para o crescimento;

− Combate à fraude e à evasão fiscal.

Estes argumentos são agora examinados com maior profundidade em dois estudos de política fiscal da OCDE:

− O Estudo de Política Fiscal n.º 19 examina em detalhe as razões dos benefícios fiscais, procurando saber se são sempre justificados, e menciona estudo de casos, debruçando ‑se, por eemplo, sobre as taxas reduzidas de IVA e os benefícios fiscais aos adquirentes de habitação.

− O Estudo de Política Fiscal n.º 20 recomenda medidas que devem ser adoptadas para que os impostos provoquem menos distorções e sejam mais favoráveis ao crescimento.

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3. Eleição de um novo presidente para o Comité de Assuntos Fiscais da OCDE

A OCDE anunciou o a nomeação do novo Presidente do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, o Senhor Masatasugu Asakawa. De nacio‑nalidade japonesa, o novo Presidente iniciará funções em Junho de 2011, substituindo o Senhor Paolo Ciocca, de Itália.

4. Em alguns países, as legislações não respeitam as normas inter‑nacionais

O Fórum Mundial sobre a transparência e a troca de informações para fins fiscais, reunido na OCDE, publicou dez Relatórios que têm por objecto avaliar a conformidade de diversas jurisdições face à trans‑parência em matéria fiscal e examinar se as informações são disponi‑bilizadas e de fácil acesso para as administrações fiscais estrangeiras que as solicitam. Foram, divulgados os seguintes relatórios:Exames no quadro da 1.ª fase: Quadro jurídico e regulamentar – Bar‑bados; Guernesey; Saint Marin; Seichelles; Trindad Y Tobago.Exames combinados: Quadro jurídico e regulamentar e execução no quadro prático – Austrália; Dinamarca; Irlanda; Maurícia; e Noruega.

2. IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO

1. Comissão leva a República Checa, a Finlândia, a França, a Gré‑cia, a Itália, a Polónia, Portugal e a Espanha a Tribunal, devido às regras do IvA para as agências de viagem (comunicado de imprensa IP/11/76 de 27 de Janeiro de 2011)

A Comissão Europeia decidiu remeter a República Checa, a Finlândia, a França, a Grécia, a Itália, a Polónia, Portugal e a Espanha para o Tri‑bunal de Justiça da União Europeia por não aplicarem correctamente as regras da UE relativas ao IVA nas agências de viagem. A Direc‑tiva IVA contém disposições especiais (o chamado «regime especial da margem de lucro») para as agências de viagem quando vendem pacotes de férias a viajantes. Não obstante, a Comissão entende que

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os referidos Estados membros aplicaram incorrectamente estas dis‑posições especiais, induzindo distorções de concorrência entre agên‑cias de viagem. Já em Fevereiro de 2008, a Comissão enviara pareceres fundamenta‑dos a estes Estados membros.

2. Conselho chega a acordo quanto a um projecto de Regulamento da Directiva IVA

O Conselho, a 18 de Janeiro, obteve acordo político quanto à apre‑sentação de uma proposta de Regulamento de interpretação da Directiva IVA, relativamente às novas regras de localização das prestações de serviços, à adaptação do Regulamento 1777/2005, do Conselho, de 17 de Outubro de 2005, que estabelece medidas de aplicação da Sexta Directiva e à implementação de outras medidas (16805/10 COR 1)

3. Publicação das taxas de IVA nos Estados membros da UE

Foi publicado pela Comissão Europeia o documento das taxas de IVA aplicáveis em 1 de Janeiro de 2011 nos Estados membros da União Europeia (taxud.c.1 (2011) 39295).

4. Comissão apresenta um Livro verde sobre o futuro do IVA

A Comissão Europeia apresentou, no passado dia 1 de Dezembro de 2010, um Livro Verde sobre o futuro do IVA (Livro Verde sobre o futuro do IVA Rumo a um sistema de IVA mais simples, mais sólido e eficaz” Bruxelas, 1.12.2010, COM (2010) 695 final, {SEC (2010) 1455 final}). Um documento de trabalho dos serviços da Comissão, que inclui um exame mais completo e tecnicamente pormenorizado de alguns aspectos evocados neste documento, pode consultar -se em: http://ec.europa.eu/taxation_customs/index_en.htm_.Pretende -se lançar uma discussão pública sobre a possível reforma do imposto, pedindo -se, até 31 de Maio de 2011, contributos a várias questões suscitadas de forma a, até finais de 2011, a Comissão poder emitir uma Comunicação sobre a matéria. O objectivo do Livro Verde

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é lançar um amplo processo de consulta das partes interessadas sobre o funcionamento do sistema de IVA em vigor e o modo como deve ser reestruturado no futuro. Os contributos deverão ser remetidos de preferência em formato Word e por correio electrónico para TAXUD‑‑VAT ‑[email protected].

5. Comissão solicita a Espanha que corrija as taxas reduzidas a equi‑pamento médico (comunicado de imprensa IP/10/1572, de 24 de Novembro de 2010)

A Comissão veio solicitar que Espanha que corrigisse as regras rela‑tivas à aplicação de taxas reduzidas a equipamento médico, provo‑cando, em seu entendimento, distorções de concorrência.

6. Comissão leva Irlanda ao TJUE devido à aplicação da taxa reduzida do IvA a cavalos e corridas de galgos (comunicado de imprensa IP/10/1576, de 24 de Novembro de 2010)

Comissão leva Irlanda ao TJUE devido à aplicação da taxa reduzida do IVA a cavalos e corridas de galgos, provocando, em seu entendi‑mento, distorções de concorrência.

7. Ecofin permite a quatro Estados membros a aplicação de um sis‑tema de reverse charge nos telemóveis e respectivas componentes electrónicas

O Conselho Ecofin, a 22 de Novembro, permitiu à Alemanha, Itá‑lia, Áustria que, até 31 de Dezembro de 2013, apliquem um sistema de reverse charge nos telemóveis e suas componentes electrónicas e permitir ao Reino Unido prolongar o regime existente neste domínio.O objectivo é o de combater a fraude carrossel.

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3. IMPOsTOs EsPECIAIs DE CONsUMO HARMONIzADOs, IMPOSTO SOBRE VEÍCULOS E UNIãO ADUANEIRA

1. Impostos especiais de consumo (IEC) – Imposto sobre veículos

A Comissão Europeia enviou, em 27.01.2011, um parecer fundamen‑tado ao Chipre solicitando ‑lhe a alteração da legislação que aplica taxas de impostos especiais de consumo mais favoráveis aos cidadãos cipriotas e descendentes do que as aplicadas aos restantes cidadãos comunitários, no caso de veículos novos adquiridos noutro Estado--Membro ou importados (IP/11/77).

2. União Aduaneira – Dia Mundial das Alfândegas

Celebrou -se no dia 26 de Janeiro o Dia Mundial das Alfândegas, que é celebrado em todo o mundo neste dia pelas 177 Administrações Adua-neiras membros da Organização Mundial das Alfândegas (OMA). A escolha desta data deve ‑se ao facto de ter sido no dia 26 de Janeiro de 1953 que teve lugar a sessão inaugural do então denominado Con‑selho de Cooperação Aduaneira que, mais tarde, em 1994, passou a designar -se Organização Mundial das Alfândegas, para reflectir o cariz internacional da organização. O tema escolhido pela OMA para este ano foi “ Conhecimento, um Catalisador para a Excelência Adu‑aneira”. Em Portugal, a celebração do Dia Mundial das Alfândegas decorreu no Salão Nobre do Ministério das Finanças e contou com a presença do Sr. SEAF, Prof. Doutor Sérgio Vasques.

3. União Aduaneira – utilização obrigatória do número EORI

A partir de 1 de Janeiro de 2011, todos os operadores económicos que tenham que apresentar uma “declaração sumária”, têm que possuir um número EORI (Número de Identificação dos Operadores Econó‑micos). Em Portugal, este número é solicitado à Direcção de Serviços de Planeamento e Organização da DGAIEC, Rua terreiro do Trigo, Edifício da Alfândega, 1149 -060 Lisboa.

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4. Impostos especiais de consumo (IEC) – Tributação da electri‑cidade

A Comissão Europeia decidiu, em 24/11/2010, submeter ao TJUE uma acção por incumprimento contra a França, por considerar que este Estado -Membro violou a Directiva 2003/96/CE, relativa à tri‑butação dos produtos petrolíferos e energéticos, que obriga os EM a sujeitar a electricidade a ISP. De referir que Portugal está obrigado a tributar a electricidade desde 1/1/2010 (IP/10/1575).

5. Estudo OCDE – Consumption Tax Trends

De acordo com o estudo da OCDE Consumption Tax Trends, os impostos indirectos representavam, em 1965, 3,8% do PIB dos países da OCDE, enquanto que, em 2006, essa percentagem quase duplicou, passando a representar 6,8% do PIB dos referidos países.

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CONFERÊNCIA PORTUGAL 2011: VIR O FUNDO OU IR AO FUNDO?

Eduardo Paz Ferreira

O IDEFF promoveu, em colaboração com o Instituto Europeu da Faculdade de Direito, uma importante conferência, intitulada Portugal 2011: Vir o Fundo ou Ir ao Fundo, na qual participaram dezenas dos mais prestigiados economistas, gestores e juristas do nosso país.

Aqui se publica o texto da intervenção inicial do Professor Eduardo Paz Ferreira

Anatole Kaletsky, um dos mais prestigiados comentadores económi‑cos da imprensa britânica e administrador do Institute for New Economic Thinking, instituído graças a uma doação de Georges Soros, escreveu recentemente que na caça aos culpados lançada após a quase destruição da economia mundial foram esquecidos eventuais suspeitos: os univer‑sitários. Enquanto as atenções do mundo se concentravam nos erros dos banqueiros, dos reguladores financeiros e dos meios políticos, os autores das teorias económicas que estiveram por detrás da situação escaparam às críticas que mereciam.

É um repto que merece sem dúvida ser ouvido. Em Portugal, na blo‑gosfera e, na sequência de uma interrogação colocada por José Medeiros Ferreira, ainda se iniciou um debate sobre o que se ensinava nas univer‑sidades depois da crise, mas a questão caiu.

Pela nossa parte, seguimos com atenção os desenvolvimentos da situa ção económica. A Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal publicou inúmeros artigos sobre o tema e várias foram as conferências que organizamos, entre as quais uma dedicada ao PEC – posta hoje à venda – e outra ainda inédita sobre o direito e a economia depois da crise.

Como a jornada que agora iniciamos atesta amplamente, pensamos que direito e economia têm de dialogar em permanência. O Direito não é, não pode ser uma mera técnica. Na sua tarefa de ordenação da sociedade ele não pode deixar de reflectir um determinado projecto e não pode man‑ter‑se à margem dos grandes debates da comunidade.

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Vimos com profunda tristeza e inquietação que a esperança que se chegou a gerar, designadamente nos meios católicos, de que se pudesse ter iniciado um processo de ruptura criativa de raiz schumpeteriana, que levasse à construção de um novo modelo de sociedade, em que as crises daquele tipo fossem menos prováveis e as suas causas erradicadas, se não confirmou até ao presente.

Foi, igualmente, com tristeza e inquietação que vimos o pessimismo, a acomodação crescerem, bem como instalar‑se a tendência para evocar míticos passados, devidamente reciclados.

Impressiona‑nos, por outro lado, que não tenha havido qualquer res‑ponsabilização dos culpados, como nos recorda de forma especialmente impressiva um filme que muitos terão já visto – inside job – Podemos, de facto, concluir que nos Estados Unidos Madoff foi o único culpado e, para quantos, entre nós, não cessam de elogiar o sistema judiciário americano na sua capacidade para combater o crime de colarinho branco, bem como a sua velocidade, temos de reconhecer que não saímos mal de todo. Pelo menos empatamos. Mas, claro foi um empate num jogo que pagávamos para não ver.

Passada a fase pior da crise, tende a instalar‑se um sentimento de que ela foi qualquer coisa de inevitável, apenas um preço a pagar no caminho do crescimento e aumento de bem-estar. Mas, ainda há dias, a comissão de inquérito à crise financeira anunciava em Washington que a crise era evitável e que resultou de falhas dramáticas na governação de empre‑sas e gestão do risco em muitas instituições financeiras sistemicamente relevantes, não hesitando em apontar o dedo às autoridades reguladoras.

Mais de dois anos passados sobre o auge da crise, é certo que as coisas não se apresentam tão más como em certo momento se pôde pen‑sar, se as encararmos numa perspectiva mundial, mas o cortejo de dor e desemprego permaneceu.

É certo que nalgumas zonas a actividade económica ganhou uma extraordinária pujança e os níveis de crescimento são iguais ou até supe‑riores ao que eram antes da crise, mostrando bem que a globalização económica resistiu ao seu primeiro grande embate.

Infelizmente, o mesmo não pode ser dito quanto a Portugal e ao con‑junto da União Europeia e, em especial da zona euro, em que a inexistência de políticas adequadas e ideias inovadoras é acompanhada de proclama‑ções como a do Senhor Van Rompuy (que, recordo, é o Presidente do Con‑selho Europeu) de que a União Europeia se vai afirmar na cena mundial.

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Enquanto a China cumpre a profecia da Alain Payrefitte, quarenta anos atrás, num livro na altura polémico – quando a China despertar, o mundo tremerá – e se torna quase consensual afirmar que os BRICS vão refazer o mundo nas próximas décadas, a União Europeia lembra cada vez mais a blague do treinador de futebol que entusiasticamente declarava: a equipa estava à beira do precipício, comigo deu o passo decisivo.

Num livro recentíssimo, Laurent Cohen-Tanugi assinala que, desde há vinte anos, a Europa falhou os grandes encontros e que agora está contra o muro. Esta é uma ironia suprema, tanto mais quanto se verifica quando caiu o muro que a dividia.

Aquilo que é verdade para a União Europeia é‑o por maioria de razão para Portugal. Por isso pensamos que era chegado o momento de a Univer‑sidade de Lisboa e a sua Faculdade de Direito, filhas do ímpeto moderni‑zador republicano (e passam hoje 120 anos sobre o primeiro movimento revolucionário republicano), se colocarem ao dispor da restante comuni‑dade científica, da comunidade profissional e da sociedade portuguesa no seu conjunto, para criar um espaço de debate apaixonado (e não desapai‑xonado, como tantas vezes se ouve desejar), militante e empenhado na busca de novos caminhos.

Compreender-se-á que, falando do ímpeto republicano, evoque a Portuguesa e proclame: às armas! às armas. Naturalmente que as nossas armas não são os canhões. Serão a nossa inteligência, o nosso saber, a nossa capacidade de nos interessarmos pelos problemas da colectividade, em vez de considerarmos que essa tarefa é apenas de políticos, que isola‑mos como se fossem marcianos desembarcados em Portugal e não aque‑les que nós legitimámos e escolhemos livremente.

O vasto grupo de oradores destes dias está longe de ter um pensa‑mento comum sobre o largo espectro de questões que iremos debater. Em muitos casos, irão mesmo confrontar‑se ideias totalmente opostas, mas a todos eles há que reconhecer a competência, o empenho, a noção de dever público, a preocupação com a comunidade e com o seu futuro.

Este foi o único critério de escolha. Formações e vivências muito diversas e gerações também elas dife‑

rentes vão aqui dar o seu testemunho.A enorme adesão ao projecto destas jornadas e a capacidade de tantas

pessoas para sacrificarem dois dias de trabalho à discussão destes temas

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são seguramente um factor de gratificação para quantos trabalharam empe‑nhadamente nesta organização.

Creio que, como nós, todos sentiram, na bela expressão de Sophia Melo Breyner Andresen, que vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.

É especialmente reconfortante saber que oradores e participantes aceitaram o título provocatório da conferência – Vir o Fundo ou ir ao Fundo? – e perceberam que ele estava longe de representar qualquer ideia de acomodação ou fatalismo, mas antes um apelo à luta pelo nosso futuro e ao debate sério dos caminhos que nos permitirão segui‑lo.

O título é, de facto, deliberadamente provocatório. Na sua ambigui‑dade procura não esquecer os problemas com que nos confrontamos, mas desafiar também as cassandras da desgraça, que parecem congratular-se com as nossas dificuldades, aparentemente confirmadoras das suas profecias.

Nesta onda de pessimismo situacionista esquecemos, por vezes, quanto o país mudou, quanto a democracia contribui para uma vida melhor das populações, para uma melhor saúde, para uma velhice mais digna, quão modernas são as infra‑estruturas de que dispomos e, sobretudo, o modo como os nossos cientistas, investigadores, poetas, romancistas, actores, dramaturgos, realizadores, pintores e músicos nos enchem de orgulho na sua criatividade e preparação.

Lisboa é hoje uma cidade com uma actividade cultural ao nível do melhor que há na Europa, mas é, sobretudo, a música portuguesa que nos inspira e estimula. Numa semana, a cidade de Lisboa pode ver e ouvir Deolinda, Rodrigo Leão, Camané. Que outra cidade não gostaria de se poder gabar de ter como nós tão brilhantes talentos

E vem, de resto, deles o desafio que nos interpela. Para quem assis‑tiu ao belo concerto dos Deolinda:

sou da geração sem remuneraçãoe não me incomoda esta condição.Que parva que eu sou!Porque isto está mal e vai continuar, já é uma sorte eu poder estagiar.Que parva que eu sou!E fico a pensar, que mundo tão parvo onde para ser escravo é preciso estudar.

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A sociedade tem de criar espaço para que quem sai da universidade possa ter o lugar a que tem direito pelo seu conhecimento e o seu esforço, mas seguramente a universidade tem de auxiliar a sociedade a construir esse espaço.

Estamos, aqui, hoje para dizer que não fechamos a porta e que, seguindo o conselho do personagem de um romance de John Irving, esta‑mos atentos quando passamos ao pé das janelas. E, como não anatemiza‑mos, apesar de tudo, as modernas tendências da gestão, não deixamos de olhar a ver se aquela é a janela de oportunidade.

Preocupam‑nos, sobretudo, as oportunidades que Portugal pode uti‑lizar. Nesta conferência iremos olhar para essas oportunidades, no quadro da união económica e monetária e do apoio das instituições financeiras tradicionais, mas também no dos novos países que se afirmam.

Temos um pano de fundo de tormenta no país e na Europa. Sabe‑mos que a Europa da cultura de que nos fala Georges Steiner não soube transformar-se num parceiro económico e político relevante e, se voltar‑mos à inspiração de Alain Payerfitte, podemos dizer que a China já acor‑dou e todos tremem ou temem, mas que, quando e se, a Europa acordar, provavelmente já ninguém reparará.

O que é pena não por nós, mas pelo Mundo que perderá um polo civilizacional e um modelo social que mereciam pelo menos uma segunda hipótese, que a Europa fortaleza ainda mais comprometeu. É, por isso, que temos de trabalhar.

É nesta conjugação da memória do passado e da energia para encarar o futuro que temos de encontrar forças. Como escreveu Wordsworth num poema que tanto comove muitos de nós e, sobretudo, aqueles que viram o belo filme de Elia Kazan, com a frágil Nathalie Wood.

“...A luz que brilhava tão intensamente foi agora arrancada dos meus olhos, e embora nada possa devolver os momentos de esplendor na relva e glória na flor, não sofreremos, melhor ..., encontraremos força no que ficou para trás.”

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CONCLUSÕES DA CONFERÊNCIA INTERNACIONALSOBRE A INFLUÊNCIA DA CONTABILIDADENA FISCALIDADE PORTUGUESA

Amândio Silva e Avelino Antão

A Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, através do seu Gabinete de Estudos, o IDEFF (Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito de Lisboa) e a DGCI – Direcção Geral dos Impos‑tos realizaram, nos dias 8 (em Lisboa) e 9 (no Porto) de Outubro de 2010, uma conferência subordinada ao tema “Influência da Contabilidade na Fiscalidade Portuguesa”.

Como realçou o Prof. Eduardo Paz Ferreira, Presidente do IDEFF, esta é a quinta conferência realizada em parceira entre o IDEFF e a OTOC, o que confirma os bons resultados das sinergias entre as duas instituições e, especialmente, a capacidade de realização e mobilização da OTOC e seus membros.

Na sessão de abertura, o Prof. Eduardo Paz Ferreira, e o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da OTOC, Dr. Manuel dos Santos, realça‑ram a importância e actualidade do tema face às profundas alterações ao sistema contabilístico nacional introduzidas pela entrada em vigor do Sis‑tema de Normalização Contabilístico. Neste contexto, o Vice-Presidente do Conselho Directivo, Sr. Armando Marques sublinhou a instabilidade jurídica provocada pela aprovação pela Assembleia da República, quase no final do ano, de um novo regime contabilístico para as microentidades.

Dos temas apresentados e objecto de debate na conferência retirá‑mos as seguintes conclusões.

Tema 1 – Harmonização Contabilística na Perspectiva Europeia

No primeiro painel, dedicado ao tema “Harmonização Contabilís‑tica na Perspectiva Europeia”, os representantes do IAC – Instituto de Contabilidade e Auditoria de Contas de Espanha, Juan Pérez Iglesias e

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Maria Dolores Sandoval, partilharam connosco a experiência espanhola de harmonização contabilística e adaptação às normas internacionais de contabilidade (IFRS) e o actual debate europeu sobre revisão da Directi‑vas Comunitárias relativas à prestação de contas.

O subdirector do IACC, Juan Pérez Iglesias, referiu, em primeiro lugar, que existem 4 entidades responsáveis pela regulação e supervisão das matérias relativas à contabilidade e auditoria, sob a tutela do Minis‑tério de Economia Y Hacienda: Instituto de Contabilidad Y Auditoria de Cuentas, Comisíon Nacional del Mercado de Valores, Banco de Espana e Direc. G. de Seguros Y Fondos de Pensiones.

Após a publicação do Regulamento 1606/2002, do Parlamento Euro‑peu e do Conselho, de 19 de Julho de 2002, relativo à aplicação das nor‑mas internacionais de contabilidade às contas consolidadas das socieda‑des cujos valores mobiliários, à data do balanço, sejam negociados em mercado regulamentado, o governo espanhol decidiu adaptar as suas nor‑mas internas às IFRS-EU. Com esta decisão, pretendeu-se aproximar as regras nacionais às melhores práticas internacionais sem, contudo, aban‑donar o modelo vigente.

Em consequência, a Ley 16/2007, de 4 de Julio, aprovou a reforma e adaptação das leis comerciais às normas europeias. Foram também apro‑vados um novo plano oficial de contas (PGC) e um plano oficial de contas específico para as pequenas e médias empresas (PGC para las PYMES).

Deste normativo resulta uma aproximação clara às normas comuni‑tárias mas com várias excepções e adaptações introduzidas pelas entida‑des reguladoras, desde logo, para as pequenas e médias empresas: regras de mensuração e registo específicas para as permutas, entradas de capital em numerário, activos e passivos financeiros detidos para negociação e uma forte simplificação das regras relativas aos instrumentos financeiros.

Além das regras específicas para as pequenas e médias empresas, a lei espanhola prevê um regime especial para as micro‑empresas – sendo como tal consideradas as empresas que não superem dois dos seguintes limi‑tes: (i) total de activos de 1 milhão de euros; (ii) total de volume de negó‑cios de dois milhões de euros; e (iii) número médio de trabalhadores não superior a 10. Estas entidades têm regras contabilísticas específicas para a locação financeira e imposto sobre o rendimento (impostos diferidos).

Para concluir, o orador refere a previsível instabilidade e consequente alteração das normas contabilísticas em vigor por força da aproximação

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das IFRS as normas contabilísticas americanas (FASB) e das alterações à IV Directiva.

A Prof.ª Maria Dolores falou-nos do futuro e dos projectos em discus‑são no seio da União Europeia: a adopção ou não da Norma das Pequenas Entidades elaborada pelo IASB (IFRS-PME) e a revisão da IV Directiva.

Quanto à norma das pequenas entidades, está em curso o estudo da sua compatibilização com as Directivas Comunitárias, sendo previsível que a Comissão Europeia adopte uma posição definitiva antes do final de 2011. Não é ainda visível qual a posição definitiva dos Estados-membros que oscilam entre os benefícios da maior harmonização e comparabili‑dade que a adopção desta norma traria e a defesa das tradições e especi‑ficidades de cada país.

O processo de revisão da IV Directiva foi iniciado formalmente sem que a Comissão Europeia tenha definido os seus objectivos concretos. Das propostas conhecidas apenas se sabe que se pretende o aumento da trans‑parência e simplificação da Directiva com o objectivo de reduzir a carga administrativa das empresas. Para tal, propõe-se a adopção de demons‑trações financeiras simplificadas, a diminuição das opções da Directiva e a exclusão das microempresas do âmbito da directiva. Esta polémica pro‑posta é, no entanto, rejeitada por uma minoria de bloqueio formada por Portugal, Itália, Áustria, Luxemburgo, França, Bélgica, Espanha e Hungria.

Tema II – Relações entre Contabilidade e Fiscalidade – Teoria e Prática

Neste segundo painel, os oradores Carlos Lobo e Clotilde Palma apresentaram-nos os modelos de relação entre a contabilidade e a fisca‑lidade e descreveram as principais características do sistema nacional.

A relação entre o lucro comercial e o lucro tributário pode ser visto de acordo com dois tipos de modelos: desconexão formal e conexão formal. O modelo de desconexão, típico dos sistemas anglo-sáxónicos, caracte‑riza-se pela total autonomia do Direito Fiscal para definir os princípios e regras de determinação do lucro tributável, sem que exista qualquer cone‑xão com o lucro comercial. Deste modelo, resulta a necessidade de organi‑zar duas contabilidades distintas e, consequentemente, dois balanços dis‑tintos. No modelo de conexão ou dependência, a lei prevê uma conexão formal entre a forma de apuramento da base da base tributável e o lucro

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apurado para efeitos comerciais, sendo obrigatoriamente com base neste resultado que se deve determinar o lucro tributável.

Numa concepção intermédia ou de dependência parcial, o resul‑tado contabilístico é a base geral e o ponto de partida do lucro tributável, posteriormente submetido a ajustamentos extra-contabilísticos positivos e negativos tendo em vista o apuramento definitivo do resultado fiscal.

Na generalidade dos países membros da União Europeia, a regra base é a da dependência: o balanço é o ponto de partida da determinação dos impostos sobre o rendimento.

No nosso país, o princípio de tributação pelo lucro real tem natureza constitucional: “A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real” (artigo 104.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

A principal dificuldade desta disposição constitucional é definir o verdadeiro alcance do advérbio “fundamentalmente”. Atendendo à dou‑trina, esta expressão admite, em sentido positivo, a existência de correc‑ções extra-contabilísticas e, em sentido negativo, limita estas correcções ao cumprimento dos objectivos do Direito Fiscal, sem que haja uma dis‑torção do lucro contabilístico.

Em conformidade, o n.º 1 do artigo 17.º do CIRC estipula que o lucro tributável (…) é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verifica‑das no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determina‑dos com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

A construção de um modelo de dependência parcial é expressamente assumida no preâmbulo do CIRC: “Afastada uma separação absoluta ou uma identificação total, continua a privilegiar‑se uma solução marcada pelo realismo e que, no essencial, consiste em fazer reportar, na origem, o lucro tributável ao resultado contabilístico ao qual se introduzem extra‑contabilisticamente, as correcções – positivas ou negativas – enuncia‑das na lei para tomar em consideração os objectivos e condicionalismos próprios da fiscalidade.”

Com a aprovação do SNC, a aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade intensificou-se. O Código do IRC foi alterado com o objectivo de adaptar as normas e conceitos fiscais às regras contabilísticas. Neste sentido, “sempre que não estejam estabelecidas regras fiscais próprias,

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verifica‑se o acolhimento do tratamento contabilístico decorrente das novas normas” (preâmbulo do Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de Julho).

Para exemplificar este enquadramento normativo, os oradores apre‑sentaram algumas questões em que o modelo de dependência parcial entre o direito contabilístico e a contabilidade: enquadramento fiscal de uma permuta de bens semelhantes; perdas com a alienação de prestações suplementares; e a regulamentação da lei n.º 35/2010, de 2 de Setembro.

Os oradores concluíram, assim, que tem havido cada vez maior inter‑disciplinaridade entre a contabilidade e a fiscalidade e um acolhimento pelo Direito Fiscal dos conceitos e regras contabilísticas.

Tema III – Adaptação das Regras do IRC às NIC

Neste painel “Adaptação das Regras do IRC às NIC”, Vieira dos Reis apresentou-nos as principais alterações introduzidas ao Código do IRC pelo Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de Julho.

No início da sua intervenção, lembrando a sua qualidade de presi‑dente do grupo de trabalho nomeado pelo Ministério das Finanças para estudar as alterações a introduzir ao CIRC, o orador partilhou o espírito e objectivos do grupo de trabalho.

Em primeiro lugar, referiu que o impulso da mudança foi motivado pela contabilidade, nomeadamente pelo Regulamento 1606/2002, do Par‑lamento Europeu e do Conselho, de 19 de Julho, relativo à aplicação das normas internacionais de contabilidade.

Neste contexto, o grupo de trabalho confirmou que a estrutura do Código do IRC acolhia adequadamente a evolução contabilística verifi‑cada. Por outro lado, pretendia-se que as alterações fossem neutras em termos de receita.

Em síntese, os princípios orientadores da comissão foram: (i) uma adaptação minimalista; (ii) manutenção dos traços essenciais do modelo de dependência parcial; (iii) preservação da estrutura do Código do IRC; (iv) harmonização da terminologia e conceitos; e (v) aproximação da fis‑calidade à contabilidade para evitar divergências.

Como excepção às alterações minimalistas que não decorre da intro‑dução do SNC, o orador indicou a criação de uma provisão para garantias a clientes e o regime fiscal das stock options e cálculo das mais valias.

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Após esta introdução, o orador debruçou-se sobre as alterações ao Código do IRC, apresentando uma breve e elucidativa explicação sobre as principais mudanças.

Tema IV – Relações entre a contabilidade e a fiscalidade – Problemas contabilísticos

Neste painel, José Rodrigues de Jesus salientou as dificuldades de articulação entre as regras contabilísticas e as regras fiscais e a necessi‑dade de as interpretações que vierem a ser adoptadas pela administração fiscal não distorcerem as normas contabilísticas. Para tal, a solução ideal deveria passar por uma forte articulação entre a administração fiscal, a Comissão de Normalização Contabilística e as entidades reguladoras das profissões (OTOC e OROC).

No comentário final, Carlos Grenha sublinhou que a adopção do SNC e das normas internacionais de contabilidade consagram a emanci‑pação da contabilidade face à fiscalidade e que, apesar das dificuldades iniciais, estamos perante uma evolução significativa da ciência conta-bilística. Acrescentou ainda que é fundamental que os profissionais da contabilidade defendam convictamente estas alterações e o novo regime. A alternativa é a irrelevância profissional perante a inexistência de con‑tabilidade organizada obrigatória.

Tema v – Relações entre a contabilidade e a fiscalidade – Problemas contabilísticos

Neste painel, os oradores Fernando Araújo e Tomás Tavares analisa‑ram as relações entre a contabilidade e a fiscalidade numa perspectiva fiscal.

Na sua intervenção, Fernando Araújo sublinhou que as recentes alte‑rações às regras contabilísticas constituem uma clara afirmação de inde‑pendência da contabilidade face à fiscalidade. De seguida, levantou um conjunto de dúvidas quanto a disposições do Código do IRC cuja interpre‑tação gera dúvidas e acarreta forte incongruências. Num primeiro grupo, referiu três exemplos de custos e proveitos contabilísticos que não são fiscalmente relevantes: menos valias, diferenças de câmbio e subsídios.

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De seguida, referiu um conjunto de deduções extra-contabilísticas – benefícios fiscais, coeficientes de desvalorização da moeda, dupla tributa‑ção económica e o regime de reporte de prejuízos – que, por força das per‑manentes alterações, criam fortes injustiças ou distorções ao sistema fiscal.

No Porto, Tomás Tavares apresentou-nos uma descrição da evolução do modelo de dependência parcial previsto na versão original do Código do IRC de 1989: a contabilidade tem uma forte base fiscal e com poucas excepções; as excepções previstas exigem uma lei fiscal expressa.

De 1999 até à data, o número de ajustamentos aumentou exponen‑cialmente com fundamento no combate à fraude e evasão fiscal e a pres‑são do aumento da receita. Como exemplos de derrogações fiscais, temos as (i) menos valias em partes de capital; (ii) preço padrão (VPT); (iii) não aceitação dos custos em operações off-shores; (iv) imputação de lucros, sem distribuição; (v) preços de transferência; (vi) crescimento tributações autónomas; (vii) subcapitalização; (viii) regime simplificado em IRC; (xix) aplicação de métodos indirectos. Ttodas as alterações introduzidas tornaram o sistema fiscal mais complexo e incoerente.

O orador sublinhou ainda que a entrada em vigor do SNC, tornará mais difícil a dependência fiscal face ao SNC. As normas contabilísticas não têm preocupações fiscais o que poderá indiciar que, no futuro, pode‑remos caminhar para uma cada vez maior autonomia da fiscalidade face à contabilidade seja pela criação de um regime de desconexão seja pelo aumento das correcções fiscais.

No encerramento da conferência, Domingos Cravo, Presidente da Comissão de Normalização Contabilística, apresentou uma descrição cro‑nológica dos trabalhos da CNC nos últimos meses face à necessidade de, por imperativo legal, estar em preparação uma norma contabilística para as pequenas entidades.

Para encerrar os trabalhos, no Porto, Daniel Bessa, Presidente do Gabinete de Estudos da OTOC, louvou os profissionais da contabilidade e considerou que as recentes alterações contabilísticas reforçarão o papel e valor do TOC.

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AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS E AS CONTAS PÚBLICAS

Alexandra Pessanha

Na sequência da aprovação da Lei do Orçamento do Estado para 2011, o Governo e o Partido Social Democrata acordaram na criação de dois Grupos de Trabalho: o Grupo para a Reavaliação das Parcerias Público-Privadas e Concessões e um outro sobre a Monitorização das Contas Públicas e da Política Orçamental.

Segundo o acordo firmado, o primeiro dos grupos de trabalho referi‑dos, presidido por Guilherme d’Oliveira Martins (Presidente do Tribunal de Contas e do Conselho para a Prevenção da Corrupção), tem por missão contribuir para reavaliar e reponderar, em termos de custo-benefício, as PPP e concessões, em especial as que estão em fase de lançamento ou iní‑cio de execução, tendo por referência o quadro actual da economia portu‑guesa, com vista à formulação de propostas e à apresentação de uma visão consolidada. Para o efeito, deverá o grupo centrar a sua acção na análise dos estudos existentes subjacentes aos diversos projectos de investimentos, na perspectiva económico-financeira, com prioridade para os projectos no sector saúde (Hospital Todos os Santos e Hospital do Algarve) e da rede ferroviária de alta velocidade. Deverá, ainda, proceder à análise do risco económico-financeiro que cada um e o conjunto dos projectos de inves‑timento representam, considerando, em especial, a taxa de rendibilidade esperada, o custo médio ponderado do capital, as taxas de juro relevantes para o Estado (incluindo o custo da dívida pública), o impacto financeiro no sector público e no sector empresarial do Estado e a e comportabilidade orçamental dos encargos previstos, considerando as restrições orçamentais decorrentes do Programa de Estabilidade e Crescimento. O Grupo dispõe do prazo de seis meses para realizar a sua missão. Deve sublinhar‑se que este Grupo não vai realizar quaisquer tarefas conflituantes com a compe‑tência constitucional e legal do Tribunal de Contas.

O Grupo de Trabalho sobre a Monitorização das Contas Públicas e da Política Orçamental, a que preside António Pinto Barbosa (Professor

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da Universidade Nova de Lisboa), tem por missão estudar um modelo de estrutura que permita a emissão de pareceres regulares sobre os cenários macroeconómico e orçamental, a evolução das finanças públicas e sua sus‑tentabilidade de longo prazo e a observância das regras orçamentais plu‑rianuais. Com base na ponderação das diversas soluções de direito com‑parado, trata‑se de conceber um Conselho de Finanças que contribua para a concepção e proceda ao acompanhamento das políticas orçamentais e de finanças públicas, de modo a que haja um controlo efectivo e uma limi‑tação das despesas públicas nas esferas da aprovação e execução. Trata‑‑se, pois, de reforçar os mecanismos nas esferas dos poderes legislativo e executivo que permitam uma efectiva sustentabilidade das contas públi‑cas, com respeito e salvaguarda do regime jurídico-constitucional e das exigências das políticas macro-económicas. Este Grupo dispõe do prazo de três meses para realizar a sua missão.

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JUBILAÇÃO DO CONSELHEIRO FREITAS PEREIRA

Eduardo Paz Ferreira

Num período em que se tem assistido a uma intensa alteração do qua‑dro dos magistrados do Tribunal de Contas, merece um especial destaque a jubilação do Conselheiro Freitas Pereira, que concluiu a sua riquíssima carreira profissional naquele alto Tribunal.

Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Univer‑sidade do Porto; Mestre em Gestão pelo Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa. Freitas Pereira concluiu, ainda, o Curso de Finanças Públicas, do Fundo Monetário Internacional.

Freitas Pereira ingressou nos quadros do Ministério das Finanças (Direcção-Geral dos Impostos) em Maio de 1974, integrando o Centro de Estudos Fiscais desde 1978, onde fez toda a carreira técnica até à categoria mais elevada ‑ a de Investigador Economista, que detém desde 1993. Foi Subinspector‑Geral da Inspecção‑Geral de Finanças (1984‑1988), onde reorganizou e dirigiu a Inspecção de Serviços Tributários,

Como director do Centro de Estudos Fiscais, desde Agosto de 1993 até Janeiro de 1998, Freitas Pereira teve uma actividade do maior relevo, contribuindo em muito para o prestígio do Centro. Coordenou a elabora‑ção de numerosas propostas legislativas, emitiu pareceres sobre a aplica‑ção da lei a casos concretos, muitos dos quais foram transformados em doutrina administrativa e representou o País em numerosas reuniões e eventos internacionais, em especial no quadro da OCDE e da União Euro‑peia, tendo presidido à negociação ou renegociação técnica de numerosos acordos para evitar a dupla tributação, designadamente com os seguintes países: Brasil, Cabo Verde, China, Dinamarca, Índia, Maurícias, Noruega, Países Baixos, Paquistão, Singapura e Venezuela.

No Tribunal de Contas, exerceu funções, na sequência de concurso público de admissão, desde Janeiro de 1998, estando colocado na 2ª Secção. Tem sido desde então o juiz responsável pela área da segurança social, qua‑lidade na qual, além de numerosos relatórios de auditoria, foi o relator dos Pareceres do Tribunal sobre as Contas da Segurança Social referentes aos

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exercícios de 1997 e seguintes. No triénio 2005-2007 foi também Coorde‑nador do Parecer sobre a Conta Geral do Estado. Coordenou a elaboração do “Manual de Auditoria e Procedimentos do Tribunal de Contas (Vol. I)”, aprovado pelo Tribunal em 1999 e coordena actualmente a preparação do seu Vol. II, relativo a auditoria financeira. Foi ainda, por eleição do Plená‑rio Geral, Presidente da Comissão de Informática do Tribunal de Contas de 1999 a 2002. Integrou a delegação do Tribunal de Contas de Portugal a várias reuniões internacionais, tendo igualmente assegurado a sua repre‑sentação no Comité de Normas de Auditoria da INTOSAI.

Outra importante vertente de Freitas Pereira é a da docência universitária. É Professor Catedrático Convidado do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), da Universidade Técnica de Lisboa, onde lecciona desde 1979, tendo tido a seu cargo as disciplinas de “Auditoria”, “Fiscalidade” e “Gestão Fiscal”, da Licenciatura em Gestão e a de “Gestão Fiscal”, no MBA/Mestrado em Gestão. Tem igualmente assegurado a direcção científica ou leccionação em Cursos de Pós-Graduação na sua Universidade e em outras instituições de ensino superior e integrado júris de provas de doutoramento e de mestrado. Assegura actualmente a direcção científica e pedagógica do Curso de Pós-Graduação em Gestão Fiscal do ISEG. Tem ainda proferido conferências a convite das mais variadas instituições técnicas e científicas, quer no País quer no estrangeiro.

Exerceu, igualmente, outras funções de estudo e investigação, mem‑bro da Comissão de Normalização Contabilística (1983-1984), vogal da Comissão de Reforma Fiscal (1984‑1988), em cujo âmbito foi relator do projecto de Código do IRC, Vice‑Presidente da Comissão para o Desen‑volvimento da Reforma Fiscal (1994‑1996) e Presidente da Comissão de Reavaliação dos Benefícios Fiscais (1997-1998 ). É membro da Associa‑ção Fiscal Portuguesa (de cujo Conselho Científico faz parte), da “Interna‑tional Fiscal Association” e do “International Institute of Public Finance”.

Autor de dezenas de trabalhos publicados, no País e no estrangeiro, em especial nas áreas da fiscalidade e das finanças públicas, a ele se ficam a dever magnificas reflexões, um livro de excepcional qualidade Fiscali‑dade 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2007.

O Conselheiro Freitas Pereira tem dado ao IDEFF, e a mim pesso‑almente, a honra de participar em diversas iniciativas, nas quais a sua intervenção foi sempre caracterizada pelo rigor, profundeza e actualiza‑ção do conhecimento.

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Ao saudar o Conselheiro Freitas Pereira, no momento em que cessa funções no Tribunal de Contas, estou seguro que a Universidade e o debate cívico muito ainda têm a esperar da sua contribuição incontornável na área da fiscalidade e das finanças públicas.

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JUBILAÇÃO DO CONSELHEIRO RAUL ESTEVES

Eduardo Paz Ferreira

Jubilou-se o Conselheiro Raul Esteves que exercia funções no Tri‑bunal de Contas, estando colocado na segunda secção. Ainda que a sua passagem pelo Tribunal de Contas tenha sido rápida, Raul Esteves con‑firmou naquele Tribunal Superior as características que marcaram a sua rica carreira professional, particularmente nas áreas da Fiscalidade e das Finanças Públicas.

Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Ciências Econó‑micas e Financeiras da Universidade Técnica de Lisboa; concluiu o Mes‑trado em Política Fiscal pela Harvard Law School - Harvard University (LLM / International Tax Program) em 1979; foi Visiting Scholar na Har‑vard Law School da Universidade de Harvard e no Lincoln Institue for Land Policy. Frequentou o “Seminario di Diritto Comparato” – Centro Studi Giuridici Europei – Universidade “ Carlo Bo” (Urbino- Itália), para além de várias outras acções de formação.

Iniciou a actividade profissional em 1969 no Ministério da Indústria e ingressou nos quadros do Ministério das Finanças em Julho de 1975, integrando o Gabinete de Estudos e Planeamento, onde fez toda a carreira técnica até à categoria mais elevada, de Assessor Principal , que detém desde 1994.

Foi assessor do Ministro das Finanças em diversos Governos, com responsabilidades na análise de conjuntura e na concepção e controle da política orçamental e da política fiscal. Foi Membro de diversas Comis‑sões ou Grupos de Trabalho, nomeadamente, do Grupo de Fomento da Substituição de Importações, da Comissão Coordenadora das Acções de Combate à Evasão e Fraude Fiscal, da Comissão do Imposto sobre o Valor Acrescentado, da Comissão para a Negociação da Adesão de Portugal à CEE, do Grupo para a Análise do Direito Derivado e de diversas Comis‑sões de Reforma Fiscal.

No seu currículo avulta, especialmente, a actividade desenvolvida como Conselheiro Técnico Principal do quadro da Representação Perma‑

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nente de Portugal junto da União Europeia, qualidade, representou o País em diversas Comissões e Grupos de Trabalho tendo exercido a presidên‑cia do Grupo das Questões Financeiras e do Grupo das Questões Econó‑micas na primeira presidência Portuguesa da União Europeia. Represen‑tou o País em numerosas reuniões e eventos internacionais, em especial no quadro da União Europeia e da OCDE (nomeadamente no Comité dos Assuntos Fiscais) e em diversas iniciativas da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre Política Financeira.

Foi Vogal do Conselho Directivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social do Ministério do Trabalho e Solidariedade e Contro‑lador Financeiro do Ministério da Educação. Exerceu actividade indepen‑dente de Avaliador Imobiliário e de Administrador da Insolvência. Exerce funções no Tribunal de Contas, desde Outubro de 2007 na sequência de concurso público, estando colocado na 2.ª Secção.

Saúdo, respeitosamente, o Conselheiro Raul Esteves, no momento da sua jubilação e expresso a minha convicção de que muito continua a ser de esperar da sua inteligência e devoção ao serviço público.

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ANTóNIO BRIGAS AFONSODIRECTOR‑GERAL DAS ALFÂNDEGASE DOS IMPOSTOS ESPECIAIS SOBRE O CONSUMO

Clotilde Celorico Palma

Tomou posse no cargo de Director‑Geral das Alfândegas e dos Impos‑tos Especiais sobre o Consumo, no passado dia 1 de Dezembro de 2010, o Dr. António Brigas Afonso.

O Dr. Brigas Afonso exerceu durante a sua carreira na DGAIEC diversas funções, tendo um vasto curriculum que evidencia a sua muito rica experiência nesta casa ao longo de diversos anos: foi Subdirector-Geral, Director de Serviços dos Impostos sobre o Álcool, as Bebidas Alcoólicas, os Tabacos e o Imposto sobre o Valor Acrescentado, Relator do Relatório da Comissão para a Reorganização dos Serviços Aduaneiros na parte rela‑tiva ao Sistema dos IEC na DGAIEC, membro da Comissão que elaborou o Projecto de Código dos Impostos Especiais de Consumo, Presidente do Grupo de Trabalho para a Reforma do Imposto Automóvel e do Grupo do Conselho de Questões Fiscais durante as duas últimas presidências Portuguesas da União Europeia e vogal do Conselho Técnico Aduaneiro.

Tem igualmente desempenhado funções docentes, destacando-se o facto de ter sido monitor de Direito Financeiro na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e de leccionar em vários cursos de pós graduação, sendo autor de diversas publicações em matéria fiscal, nomeadamente, o Código dos Impostos Especiais de Consumo Anotado e Actualizado.

De salientar, em especial, o facto de se tratar de um activo colabo‑rador da Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal desde o primeiro número.

À sua reconhecida competência e dedicação profissional, o Dr. Bri‑gas Afonso alia uma simpatia invulgar que o tornam uma pessoa muito querida de quem o rodeia.

Desejamos as maiores felicidades ao Dr. Brigas Afonso no exercí‑cio do seu novo cargo.

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