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CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO PROCURADORIA-GERAL Revista de Direito Rev. Direito Rio de Janeiro v. 10 n. 14 p. 1 - 288 jan. / dez. 2005 ISSN 1516-1374

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CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO

PROCURADORIA-GERAL

Revista de Direito

Rev. Direito Rio de Janeiro v. 10 n. 14 p. 1 - 288 jan. / dez. 2005

ISSN 1516-1374

Revista de Direito / Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Procu-radoria-Geral – Vol. 1, n. 1 (ago. 1997) - .– Rio de Janeiro : A Câmara, 1997-

v. ; 22 cm.

ISSN 1516-1374 1. Direito – Periódico. 2. Parecer – Periódico. 3. Jurisprudência – Periódico. I. Rio de Janeiro (RJ). Câmara Municipal. Procuradoria- Geral.

CDD 340.05

FUNDADORES Vereador Sami Jorge Haddad Abdulmacih Presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro Dr. Paulo Aquino de Oliveira Lima Procurador-Geral

DIRETOR RESPONSÁVEL Procuradora-Geral: Drª Jania Maria de Souza

CONSELHO EDITORIAL Procuradores Drª. Jania Maria de Souza Dr. Flávio Andrade de Carvalho Britto Drª. Claudia Rivolli Thomas de Sá Dr. Sérgio Antônio Ferrari Filho

COORDENAÇÃO Luzinete Neves Ruas

PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO Tânia Berriel Cardoso

REVISÃO Adriana Aparecida de Brito Saldanha Cristiana do Amaral Crivano Machado CATALOGAÇÃO NA FONTE e ÍNDICE Lucineide Costa Santos Luzinete Neves Ruas

IMPRESSÃO: Empresa Municipal de Artes Gráficas - Imprensa da Cidade

DISTRIBUIÇÃO: Joel Honório da Silva José Carlos Oliveira Santos ENDEREÇO

Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de JaneiroGrupo de Documentação e EventosPraça Floriano, 51 - 28º andar - Centro - 20031-050 - RJTel.Fax: (21)3814-1425 - 2283-1138 E-mail: [email protected]

A REVISTA DE DIREITO é uma publicação da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Os trabalhos assinados são de exclusiva responsabilidade de seus autores. As opini-ões neles manifestadas não correspondem necessariamente às opiniões da Procuradoria-Geral.

MESA DIRETORA

PresidenteVereador Ivan Moreira

1º Vice-PresidenteVereadora Leila do Flamengo

2º Vice-PresidenteVereador Edson Santos

1º SecretárioVereador Luiz Carlos Ramos

2º SecretárioVereador Sebastião Ferraz

1º SuplenteVereador Dr. Jairinho

2º SuplenteVereador Brizola Neto

Adelino SimõesAdilson SoaresAloísio FreitasAndrea Gouvêa Argemiro PimentelAspásia CamargoCarlo CaiadoCarlos BolsonaroCarlos EduardoChiquinho BrazãoClaudio CavalcanteCristiane BrasilDionísio LinsEliomar CoelhoFernando GusmãoJerôminhoJoão CabralJorge BabuJorge FelippeJorge MauroJorge Pereira

Jorginho da SOSLilian SáLucinhaLuiz HumbertoLuiz GuaranáMarcelino D'AlmeidaMarcio PachecoNadinho de Rio das PedrasNereide PedregalPastora Marcia TeixeiraPatrícia AmorimPaulo CerriRenato MouraRosa FernandesRubens AndradeSami JorgeStepan NercessianSuelyTeresa BergherThéo SilvaVerônica CostaWanderley Mariz

COLABORADORES

Derly Barreto e Silva Filho

Procurador do Estado de São Paulo, Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor do Curso de Especialização em Direito Constitucional da PUC-SP, Diretor do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

Marcos Juruena Villela Souto

Mestre em Direito das Relações Econômicas, Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas, Professor de Direito Administrativo da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

Fernando Lemme Weiss

Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Direito Público pela UERJ, Prof. da FGV-Management e da Universidade Cândido Mendes.

Gustavo Tepedino

Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Presidente do Instituto

SUMÁRIO

ARTIGOS E ESTUDOS JURÍDICOSJurisdição de controle do processo de emenda constitucionalDerly Barreto e Silva Filho ............................................................................... p. 13

Parceria público-pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambientalMarcos Juruena Villela Souto ............................................................................ p. 45

O Direito Constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicosFernando Lemme Weiss ..................................................................................... p. 65

A noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio na pespectiva civil-constitucionalGustavo Tepedino ............................................................................................... p. 87

PARECERES DA PROCURADORIA GERAL DA CMRJDIREITO ADMINISTRATIVO Competência para o tombamentoParecer nº 02/05 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ........................................... p. 103

Processo de apuração de responsabilidade no descumprimento dos contratos administrativosParecer nº 02/05 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ................................... p. 109

A compensação no convênio administrativo: possibilidades e cautelasParecer nº 03/05 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................. p. 113

DIREITO CONSTITUCIONAL E FINANCEIRO

Considerações sobre requerimento do Ministério Público de cópias de declarações de rendimentos de vereadores e ex-vereadoresParecer nº 04/05 - Flávio Andrade de Carvalho Brito .................................... p. 121

Subsídios dos vereadores nas convocações extraordináriasParecer nº 01/05 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................. p. 137

A cobrança judicial de débitos e créditos do Poder Público, diante do Princípio da

Separação dos PoderesParecer nº 02/05 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................. p. 147A CIDE - Combustíveis e o limite de despesas da Câmara MunicipalParecer nº 04/05 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................. p. 161

Poderes de fiscalização das comissões permanentes do Poder LegislativoParecer nº 06/05 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................. p. 169

Vinculação previdenciária dos vereadores ao regime geral de previdência (INSS), por força da Lei 9506/97, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 2003Parecer nº 07/05 - Sérgio Antônio Ferrari Filho ............................................. p. 181

DIREITO PARLAMENTAR E PROCESSO LEGISLATIVO

Limites das recomendações expedidas pelo Ministério PúblicoParecer nº 01/05 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ................................... p. 197

Possibilidades do Poder Legislativo em matéria de tombamentoParecer nº 05/05 - Flávio Andrade de Carvalho Britto ................................... p. 203

DIREITO DE PESSOAL E PREVIDENCIÁRIOLicença para o trato de interesses particulares: requisitos e efeitosParecer nº 05/05 - Claudia Rivolli Thomas de Sá ........................................... p. 215

Considerações sobre indenização espontânea por dano moral pago pela administração públicaParecer nº 03/05 - Flávio Andrade de Carvalho Britto .................................. p. 219

Nomeação com eficácia retroativa não subtrai da Administração o dever de indenizar o substituto eventual Parecer nº 03/05 - Jania Maria de Souza ........................................................ p. 225

DECISÃO JUDICIALExigência de prévia apresentação de seguro-garantia de conclusão da obra para licenciamento de construção de edifícios multifamiliares. Ineficácia da Lei Complementar nº 35/98 do Município do Rio de Janeiro, a partir da edição da Medida Provisória n° 2.221/01, que revogou a alínea e, do art. 20, do Decreto-lei nº 73/66.Recurso extraordinário 390.458-2 - Rio de Janeiro...................................................p. 229

ARTIGOS E ESTUDOS JURÍDICOS

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 13

Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional

Derly Barreto e Silva Filho Procurador do Estado de São Paulo, Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

Professor do Curso de Especialização em Direito Constitucio-nal da PUC-SP, Diretor do Instituto Brasileiro de Advocacia

Pública

Sumário: 1 - O Controle de Constitucionalidade como Decorrência da Supremacia Constitucional. 2 - A Inconstitucionalidade e seus Tipos. 3 - A Reforma Constitucional como Instrumento de Conservação da Constituição. 4 - Importância dos Regimentos Parlamentares para o Processo de Formação das Emendas Constitucionais. 4.1 - Noção de Regimento Parlamentar. 4.2 - Valor Jurídico dos Regimentos Parlamentares. 5 - Processualidade das Emendas Constitucionais. 6 - Jurisdição de Controle do Processo de Emenda Constitucional. 7 - Conclusão. 8 - Bibliografia.

1. O controle de constitucionalidade como decorrência da supremacia constitucional

Muito embora o vocábulo constituição seja polissêmico, pode-se entendê-lo como sendo a ordem jurídica fundamental da sociedade;

1 estuário das

decisões políticas conformadoras da comunidade; repositório das normas que estruturam e organizam o Estado, estabelecem a competência de seus órgãos e seus agentes, prescrevem o modo de aquisição e exercício do poder político, definem os direitos e as garantias fundamentais dos indivíduos e fixam as 1

HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992. p. 16.

14 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

diretrizes, os fins e os limites da ação estatal.

Exatamente por ser a ordem jurídica fundamental da sociedade, a constituição, posta pelo poder constituinte originário, goza de um status hierárquico superior ao dos demais atos jurídicos públicos emanados dos poderes constituídos.

2

Neste prisma, ao projetar-se sobre todo o sistema normativo, determinando a sua subsistência, a constituição traduz-se como a lei básica, a lei maior, a lei das leis, o fundamento de validade dos atos praticados pelos órgãos estatais.

Daí a seguinte implicação observada por Agustín Gordillo: “As leis devem respeitar a Constituição, e por sua vez os atos administrativos devem respeitar as leis: os “atos de governo” devem respeitar a Constituição: logo, dentro do Estado, a Constituição é a máxima e última expressão de juridicidade”.

3

Essa supremacia revela-se como um predicado exclusivamente constitucional, um apanágio das constituições rígidas,

4 tendo como explicação

o imperativo de se resguardar os valores fundantes da sociedade, colocando-os a salvo do alcance e das investidas dos poderes constituídos. “A constituição é suprema – preleciona Nelson Saldanha – porque nela (isto é, em seu texto normativo) se põem os fundamentos do Estado, com poderes e limites, e os do Direito, com procedimentos e competências”.

5 Por isso, não soa exagerada

a assertiva de Pinto Ferreira, assim vazada: “O princípio da supremacia

2 Isso, é claro, numa perspectiva formal, ou seja, uma vez compreendida a constituição como

documento escrito, posto por um poder constituinte através de um processo solene, distinto do de promulgação das leis, da alçada da autoridade legislativa ordinária constituída.3 Princípios gerais de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 94.

4 As constituições rígidas se distinguem pelo processo extraordinário nelas estabelecido para sua alteração.

Este processo confere-lhes estabilidade maior do que aquela de que desfrutam as leis e os atos ordinários. Resulta desse aspecto a superioridade das normas constitucionais em relação aos atos infraconstitucionais. Nos países de constituição flexível, como a Inglaterra, não há, formalmente, supralegalidade constitucional, porque a lei fundamental não é hierarquicamente superior às leis ordinárias, podendo ser modificada a qualquer tempo pelo legislador comum, detentor de poderes constituintes. Há, ainda, um terceiro tipo de constituição, chamado de semi-rígida, em que nem todas as normas gozam de superioridade. Exemplo de constituição semi-rígida é a Carta Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, em cujo art. 178 se dizia: “É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas pelas Legislaturas ordinárias”.5 Formação da teoria constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 128.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 15

constitucional é reputado como uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”.

6

Conseqüência lógica da supremacia da constituição é a relação de subordinação entre as normas constitucionais e os atos infraconstitucionais, de modo que estes devem adequar-se às prescrições daquelas. Da inadequação dos atos infraconstitucionais às normas constitucionais, surge o conflito denominado inconstitucionalidade, o qual se resolve em favor das últimas, pela sua proeminência dentro do ordenamento jurídico. Em suma: da posição destacada da constituição, tira-se a máxima segundo a qual norma constitucional prevalece; ato ou norma infraconstitucional se conforma.

A noção de inconstitucionalidade, como se nota, é paralela à de rigidez constitucional. Realmente, se a constituição ocupa o ápice do sistema normativo, e se essa supralegalidade decorre de razões políticas e jurídicas sobremodo significativas para a sociedade, não se pode prescindir da necessidade de ela própria organizar um sistema ou processo adequado para sua defesa em face das agressões que possa sofrer, quer do Parlamento, por meio de atos legislativos, quer dos órgãos e agentes executivos, mediante atos normativos, como regulamentos, instruções, portarias, ou atos administrativos.

7

O controle de constitucionalidade é, assim, o mecanismo idealizado para a garantia da supremacia constitucional. Com a instituição de processos e órgãos destinados a obstar que as normas constitucionais sejam reformadas por um modo diverso do estabelecido, torna-se possível assegurar a regularidade material e formal da atividade dos poderes do Estado. O controle de constitucionalidade impede que se proceda em desacordo com a constituição, e, na hipótese de serem cometidos atentados ao texto constitucional, determina que estes atos atentatórios sejam expungidos do ordenamento jurídico, não mais merecendo aplicação, porque destituídos de validade.

No Brasil, foi adotado o controle jurisdicional de constitucionalidade. Outorgou-se ao Poder Judiciário o mister de verificar a conformidade dos atos jurídicos públicos com a Constituição.

6 Princípios gerais do direito constitucional moderno. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. v. 1,

p. 90.7 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional. Texto revisto e atualizado por

Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 372.

16 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

2. A inconstitucionalidade e seus tipos

Constitucionalidade e inconstitucionalidade são conceitos que se alojam na problemática da relação intra-sistemática entre normas constitucionais e comportamentos infraconstitucionais.

8 Designam “a relação que se estabelece

entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou não conforme, que cabe ou não cabe no seu sentido, que tem nela ou não a sua base”.

9

Daí dizer-se que um ato jurídico público é inconstitucional quando se formou em desacordo com o texto constitucional ou quando o seu conteúdo entra em testilha com ele. Na primeira hipótese, tem-se a inconstitucionalidade extrínseca; na segunda, a intrínseca ou material.

10

A inconstitucionalidade extrínseca pode ocorrer por incompetência do órgão que emitiu o ato jurídico público (inconstitucionalidade orgânica), por ter sido este ato realizado em tempo proibido (inconstitucionalidade temporal), ou por violação das formas previstas para a elaboração desse mesmo ato (inconstitucionalidade formal).

11

Exemplificando: haveria inconstitucionalidade orgânica se, num sistema parlamentar bicameral, uma lei fosse produzida apenas pelo Senado Federal, sem a participação da Câmara dos Deputados; apresentaria uma inconstitucionalidade temporal emenda constitucional promulgada na vigência de intervenção federal, circunstância impeditiva da manifestação do poder de reforma constitucional; padeceria de inconstitucionalidade formal lei complementar aprovada por maioria simples e não por maioria absoluta.

12

Além da inconstitucionalidade extrínseca, mencionou-se a intrínseca ou material, aquela ocorrente na hipótese de o conteúdo do ato jurídico público violar princípios ou preceitos constitucionais. Essa infringência patenteia-se tanto pela contradição de comandos, quer dizer, pela “contradição 8

NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 72.9 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. totalmente rev. e actual. Coimbra:

Coimbra, 1991. t. 2, p. 310-311.10

SAMPAIO, Nelson de Souza. O processo legislativo. 2. ed. rev. e atual. por Uadi Lamêgo Bulos. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 179.11

Ibid.12

Vide arts. 65, caput, 60, § 1º, e 69 da Constituição Federal brasileira de 1988.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 17

entre o objecto e o sentido do acto e a norma constitucional”,13

quanto pela desconformidade do fim do ato com o fim constitucionalmente estabelecido, isto é, pelo desvio ou excesso de poder.

14

A tipologia da inconstitucionalidade não se esgota na diferenciação entre inconstitucionalidade orgânica, temporal, formal e material. Cogita-se, também, de outras espécies.

15 Sem embargo, considerado o corte temático da

presente investigação, basta, por ora, firmar, como conceito operacional, que a inconstitucionalidade denota “a desconformidade da lei ou ato governamental com algum preceito da constituição”.

16

3. A reforma constitucional como instrumento de conservação da Constituição

Se na lei fundamental estão depositadas as decisões políticas conformadoras da sociedade, é de rigor, sob pena de quebrantamento das instituições forjadas a partir de tais postulados, a previsão de processos destinados a adequar a ordem jurídica constitucional à realidade.

O constituinte, através de sua obra, não se faz um déspota, ao perpetuar o que foi posto, ao eternizar o imperdurável: as relações humanas. Nenhuma constituição pode ser considerada perfeita e acabada, permanecer imutável, pretender-se perene, contrapor-se às incessantes transformações sociais. A conservação de um dado regime, ensina a sabedoria política, depende da capacidade de adaptação da constituição às condições políticas, econômicas, 13

MIRANDA, op. cit., p. 344.14

Muito embora a inconstitucionalidade por desvio ou excesso de poder esteja situada para além dos propósitos deste estudo, cabe consignar que a aferição do vício (de desvio ou de excesso de poder) há de ser feita, sem exceção, com base em critérios eminentemente jurí-dicos, de extração constitucional. Se, por exemplo, tal vício abrigar-se em uma lei, não será lícito, à luz da constituição, perquirir judicialmente da sua conveniência e oportunidade, mas, tão-somente, verificar “a congruência entre os fins constitucionalmente estabelecidos e o ato legislativo destinado à prossecução dessa finalidade” (MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 42). Quem valora a conveniência e a oportunidade da lei é o legislador, nunca o julgador.15

Inconstitucionalidade por ação e por omissão, inconstitucionalidade total e parcial, inconsti-tucionalidade direta e indireta, inconstitucionalidade originária e superveniente, inconstitucio-nalidade presente e pretérita, inconstitucionalidade antecedente (ou imediata) e conseqüente (ou derivada).16

TEIXEIRA, op. cit., p. 378.

18 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

sociais e culturais da época.

“Como conservar intacta alguma disposição, que por essa força irresistível das circunstâncias, se tiver tornado evidente e formalmente contrária aos interesses públicos?”, perguntava José Antônio Pimenta Bueno, ao analisar a Constituição Política do Império do Brasil, de 1824. E respondia, com propriedade: “Seria sacrificar a sociedade e olvidar que as leis humanas foram feitas para os homens e não os homens para as leis”.

17

Preocupado com a necessidade de preservação da autoridade da constituição, o poder constituinte brasileiro de 1987-1988 previu dois processos extraordinários, plenos de formalidades, para a alteração da ordem jurídica fundamental, visando, de um lado, a atualizá-la e, de outro, a impedir a sua ruptura. A previsão desses processos formais, enfatize-se, confere à Constituição estabilidade maior do que as leis e os atos ordinários. Desse aspecto resulta a já apontada superioridade das normas constitucionais em relação aos atos infraconstitucionais.

Emenda e revisão, espécies do gênero reforma constitucional, são as manifestações do órgão político, denominado poder reformador, que se situa entre o poder constituinte e o poder legislativo ordinário.

18 A primeira

está disposta nos arts. 59, I, e 60; a segunda, no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispositivo cuja eficácia se exauriu com a promulgação das Emendas Constitucionais de Revisão nºs 1 a 6, de 1994.

Interessa, aqui, tão-somente o instituto da emenda constitucional.

Nos incisos I, II e III, e nos §§ 2º, 3º e 5º do art. 60 da Constituição, estão dispostos os limites formais ao poder reformador, isto é, as normas destinadas a regular o processamento da emenda, da iniciativa da proposta até a promulgação. Podem propor emenda constitucional: 1) um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; 2) o Presidente da República; e 3) mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (incisos I, II e III). Apresentada, a proposta será discutida e votada em

17 Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Brasília: Senado Federal,

1978. p. 477.18

SAMPAIO, op. cit., p. 66.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 19

cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros (§ 2º). Uma vez aprovada, a emenda será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem (§ 3º). Se a matéria constante de proposta de emenda for rejeitada ou havida por prejudicada, não poderá ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (§ 5º).

19

Tratando dos limites circunstanciais, o § 1º do art. 60 proíbe emendas na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

Por fim, o § 4º, também do art. 60, versa sobre os limites materiais ao poder reformador, preceituando que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: 1) a forma federativa de Estado; 2) o voto direto, secreto, universal e periódico; 3) a separação dos Poderes; e 4) os direitos e garantias individuais (incisos I, II, III e IV).

A questão que se põe nesta investigação é saber se, durante o processamento de emenda à Constituição, e em que momento dele, pode ser ativada a jurisdição constitucional de controle do Supremo Tribunal Federal, com o fito de assegurar a supremacia da regra contida no § 4º do art. 60. Não se trata de teorizar sobre as limitações materiais implícitas e explícitas à reforma da Constituição, mas, sim, de perscrutar os aspectos processuais da elaboração das emendas constitucionais, com o objetivo de precisar o significado da expressão “objeto de deliberação”, contida no mencionado § 4º do art. 60.

4. Importância dos regimentos parlamentares para o processo de formação das emendas constitucionais

A solução do problema proposto está umbilicalmente ligada ao papel definido pelo ordenamento fundamental aos regimentos das Casas Legislativas. Isto porque a Constituição não disciplinou, com a minudência que a matéria requeria, todas as questões atinentes à apreciação, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, das propostas de emenda constitucional; não cuidou, como devia, de todo o processamento destas proposições. Logo, torna-se imprescindível a análise dos diplomas que se incumbem de complementar a

19 Sessão legislativa ordinária é o período anual durante o qual o Congresso Nacional e suas

Casas estão em funcionamento.

20 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Constituição na seara da formação e da expressão da vontade normativa do Estado, particularmente quando materializada em emendas constitucionais. Tais diplomas são os regimentos parlamentares.

4.1 Noção de regimento parlamentar

Tanto pela sua natureza quanto pela sua dimensão, os órgãos colegiais, como os parlamentos,

20 requerem, para exercer adequadamente as suas funções,

corpos de normas jurídicas atinentes à sua organização e ao seu funcionamento específico, ou, segundo preleciona Jorge Miranda, “mecanismos complexos de estruturação, de garantia dos direitos dos seus titulares ou membros e de formação e eficácia jurídica da sua vontade”.

21

Esses corpos de normas se consubstanciam nos chamados regimentos e se desincumbem da ordenação dos assuntos (ditos internos) afetos à competência das Casas Legislativas. Por eles, ensina Francisco Campos, “as casas do Parlamento desenvolvem, interpretam e constroem as regras constitucionais relativas ao seu funcionamento, assim como exercem a função, sobre todas soberana, de criar o direito próprio ao campo especial da sua atividade, como é o caso, por exemplo, do Direito Penal disciplinar, complexo de relações, de sanções e de restrições que a Câmara, por sua própria autoridade, institui como legislador e aplica como juiz”.

22

Os regimentos são clara expressão da autonomia e independência institucional do órgão legislativo. Por isso, as suas normas são de elaboração e revisão da própria Casa a que se refere, constituindo-se, assim, nesta acepção, em atos internos e exclusivos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Congresso Nacional.

23

Advirta-se, no entanto, que o fato de a autonomia do órgão legiferante 20

E também os órgãos colegiais judiciários, isto é, os tribunais.21

Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 1997. t. 5, p. 76.22

Direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956. v. 2, p. 106.23

A autonomia do parlamento no estabelecimento das normas de sua organização e funcio-namento transparece pela leitura dos citados arts. 51, III, e 52, XII, da Constituição Federal, que dispõem ser os regimentos internos da competência privativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, independendo, pois, da sanção presidencial (art. 48, caput) para o seu aperfeiçoamento. Da mesma forma, o regimento comum, elaborado com exclusividade pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em sessão conjunta (art. 57, § 3º, II).

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 21

envolver para as suas câmaras o poder de se organizar, de regular o seu funcionamento, de determinar a ordem e o método de seus trabalhos, não implica, de modo algum, o exercício de competência acima ou ao largo da Constituição. “Os corpos legislativos – leciona Pontes de Miranda – são órgãos do Estado (= das entidades estatais), sujeitos a regras jurídicas de competência e de ordenamento da atividade deliberante. Por sobre eles estão as regras jurídicas constitucionais (...)”.

24

O Congresso e suas Casas situam-se, então, sob a égide da Constituição, devendo-lhe observância, acatamento e cumprimento irrestritos.

A rigor, o estatuto fundamental confere ao Legislativo competência para disciplinar a sua vida interna, a sua organização e o seu funcionamento. Competência – é providente rememorar a clássica definição de Ruy Cirne Lima – “se denomina, em direito público, a medida do poder que a ordem jurídica assina a uma pessoa determinada”.

25 Logo, o exercício da competência

parlamentar prevista nos arts. 51, III e IV, 52, XII e XIII, e 57, § 3º, II, da Carta Política, será legítimo se se comportar na moldura desenhada pelo texto constitucional para a atividade legislativa.

Bastante extenso é o quadro traçado pela Constituição para o auto-regramento legislativo. Foram arroladas diversas matérias cujo tratamento deve ser dado por via de regimento, com exclusão de outras espécies normativas, como as leis. Isto autoriza afirmar que a Carta Política estabeleceu verdadeira reserva constitucional de regimento.

Dentre os assuntos reservados aos diplomas regimentais, compreendem-se: 1) a organização, o funcionamento, a polícia e os serviços parlamentares das Casas Legislativas (arts. 51, III e IV, e 52, XII e XIII); 2) a definição das condutas dos deputados e senadores consideradas incompatíveis com o decoro parlamentar (art. 55, § 1º); 3) a disciplina dos casos em que as comissões parlamentares, em razão das matérias de sua alçada, podem discutir e votar projetos de lei independentemente da deliberação do plenário do Congresso Nacional e de suas câmaras (art. 58, § 2º, I); 4) a previsão dos poderes das comissões parlamentares de inquérito (art. 58, § 3º); 5) o estabelecimento das

24 Comentários à Constituição de 1967: com a Emenda n. 1 de 1969. 3. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1987. t. 2, p. 590.25

Princípios de direito administrativo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 139.

22 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

atribuições da comissão representativa do Congresso Nacional, que funciona durante o recesso parlamentar (art. 58, § 4º); 6) a regulação da forma pela qual os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais serão apreciados conjuntamente pela Câmara e pelo Senado (art. 166, caput); 7) o rito de apreciação, pelo Plenário das duas Casas do Congresso, das emendas apresentadas aos projetos de lei (referidos no item 6) na comissão mista permanente (formada por deputados e senadores), que sobre elas deverá emitir parecer (art. 166, § 2º).

Essas expressas referências constitucionais, vale notar, não exaurem o âmbito substancial dos regimentos, pois há outros assuntos, além daqueles previstos nos arts. 51, III e IV, 52, XII e XIII, 55, § 1º, 58, caput, e §§ 2º, I, 3º e 4º; e 166, caput, e § 2º, que se encartam nos textos regimentais, por serem imprescindíveis ao exercício pleno das atividades a cargo do Poder Legislativo.

Por exemplo: da leitura das normas que tratam do processo legislativo,26

verifica-se que a Carta Política entregou à ordem normativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a disciplina do iter formativo das espécies normativas enunciadas pelo art. 59, I, II, III, IV, VI e VII, dentre as quais as emendas constitucionais.

Para corroborar essa asserção, basta constatar a inexistência de disciplina constitucional a respeito da apreciação das proposições legislativas.

27 Questões

como tramitação por comissões e pelos plenários das Casas, interstício entre turnos, prazo para oferecimento de emendas, regime de discussão e votação das matérias sujeitas à deliberação parlamentar reformadora, só para citar algumas, quedaram-se sem normatização constitucional específica.

A importância dos regimentos para o processo de reforma constitucional é transcendente, devendo ser ressaltada. Como se patenteia, eles têm por objeto complementar seara fundamental da Constituição, qual seja, a da formação e expressão da vontade normativa estatal. Um bom trabalho parlamentar de reforma

26 Vide Seção VIII do Capítulo I Título IV da Constituição Federal (arts. 59 a 69).

27 Proposição, segundo o art. 100, caput, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, é toda

matéria sujeita à deliberação. Consiste, de acordo com o § 1º, do mesmo preceito regimental, em proposta de emenda à Constituição, projeto, emenda, indicação, requerimento, recurso, parecer e proposta de fiscalização e controle.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 23

depende, pois, em larga medida, da virtude dos textos regimentais.28

4.2 Valor jurídico dos regimentos parlamentares

Nesta quadra, impõe-se examinar o valor dos regimentos, com o fito de demonstrar a sua juridicidade.

Para Pontes de Miranda, os regimentos das Casas Legislativas contêm, em seu âmago, regras jurídicas. Comentando a Constituição de 1967, dizia:

“Os regimentos internos são indispensáveis aos corpos legislativos.No sistema jurídico brasileiro, os regimentos internos não são convites, invitações, aos membros do corpo legislativo, para que os respeitem. São resoluções do Poder Legislativo, semelhantes às que ele toma para criar cargos na sua secretaria e fixar ou aumentar vencimentos dos seus funcionários. Não seria possível, no Brasil, pretender-se que o juiz não pode apreciar a elaboração legislativa, quer no que ela se não ateve ou se ateve à Constituição de 1967 (...). No sistema jurídico brasileiro, o juiz aprecia as próprias deliberações das assembléias-gerais, dos sindicatos de trabalho e das fundações, atendendo às regras que constem dos estatutos.O Regimento Interno não é conjunto de recomendações, ou conselhos; é lei, em sentido lato, que há de ser obedecida pelo corpo legislativo, sempre que a regra jurídica, de que se trata, é cogente, ou se tem como observada, se ius dispositivum”.

29

Com razão. Os regimentos das Casas Legislativas concretizam parte da Constituição, estabelecendo regras de observância obrigatória. Se assim é, possuem juridicidade. Seus comandos obrigam. Não são peças alegóricas ou ornamentais, nem aparatos vistosos que têm existência para contentar os olhos, sobretudo por sua formosa e ataviada aparência literária. Os textos regimentais vinculam o legislador, que não pode modificá-los – senão pelo processo regimentalmente fixado – nem afastá-los ou derrogá-los em suas manifestações.

30 Daí ser possível infirmar atos parlamentares produzidos em

desacordo com os regimentos.28

Nas palavras de J. Barthélemy, citado por Pinto Ferreira: “Com um mau regulamento, um mau trabalho. Com um bom regulamento, têm-se as chances de um bom trabalho” (Comentários à Constituição brasileira: São Paulo: Saraiva, 1990. v. 2, p. 588).29

Comentários à Constituição de 1967. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. t. 2, p. 592.30

Neste sentido, em Portugal, MIRANDA, op. cit., t. 5, p. 83.

24 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Além dessa característica, é de se acentuar que, pela sua singular posição normativa no direito constitucional brasileiro contemporâneo, os diplomas regimentais não se adstringem a regular a denominada economia intestina das Casas Legislativas.

A sociedade, como um todo, é parte interessada na rigorosa observância dos regimentos. E sobejam evidências disso.

A primeira delas está no fato – dantes apontado – de os regimentos encerrarem em seu corpo disposições regulamentadoras do processo legislativo previsto na Constituição. Assim, se as emendas à Constituição, as leis ordinárias, as leis complementares, as leis delegadas, os decretos legislativos e as resoluções têm a sua forma de elaboração regrada segundo as normas constitucionais e, especificamente, segundo as normas regimentais,

31

a sociedade, sua principal destinatária, titulariza, por óbvio, e em contrapartida, o direito de ver cumpridos à risca os comandos contidos nos regimentos. Todo ato legislativo – inclusive a emenda à Constituição – deve ser elaborado de conformidade com o processo legislativo constitucional e regimentalmente estabelecido.

De outro lado, na medida em que o art. 61, § 2º, da Constituição, coloca a sociedade na posição de virtual partícipe do processo de criação legislativa, inaugurando os trabalhos da Câmara dos Deputados mediante a apresentação de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles, opera-se um alargamento espacial das normas da referida Casa, que passam a regular, tornando-a viável, a participação popular no processo de elaboração normativa. Por essa razão, tendo no regimento da Câmara a codificação para o exercício da prerrogativa em análise, a sociedade situa-se, inegavelmente, como parte interessada na fiel observância das suas normas. Afinal, elas é que darão processamento às proposições apresentadas.

32 Da mesma forma se for admitida a possibilidade

de apresentação popular de proposta de emenda constitucional.33

31 No caso dos decretos legislativos e das resoluções, são os regimentos que regulam o seu

iter formativo.32

A iniciativa popular das leis encontra-se regrada pelo art. 252 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.33

Apoiado nos arts. 1º, parágrafo único, 14, II e III, e 49, XV, da Constituição, José Afonso da Silva admite a iniciativa popular em matéria de emenda constitucional. Esclarece o autor:

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 25

Também se evidencia o interesse da sociedade na observância dos regimentos como decorrência da aplicação do disposto no art. 58, § 2º, IV, da Constituição. Nele está dito caber às comissões parlamentares o recebimento de petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas. Destarte, qualquer pessoa, física ou jurídica, tem o direito de ver processada a sua manifestação conforme as normas regimentais, sob pena ficar reduzida à retórica tal garantia.

Os regimentos igualmente se dirigem – e, nessa medida, obrigam – a outros órgãos, enquanto estes estejam em relação direta com o Poder Legislativo.

34

O Presidente e o Vice-Presidente da República, por exemplo, ao tomarem posse, prestam o compromisso determinado pelo art. 78, caput, da Constituição,

35 perante o Congresso Nacional. Nesse momento, ficam

submetidos ao ritual estabelecido pelos arts. 60 a 67 do Regimento Comum (do Congresso Nacional).

O Chefe do Poder Executivo é obrigado a observar as normas regimentais – agora do Senado Federal – quando procede à escolha de Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União, Governador de Território, presidente e diretores do Banco Central, Procurador-Geral da República, titulares de outros cargos que a lei determinar

não introduziu inovação de realce no sistema de sua modificação. Até a votação no Plenário, an-teprojetos e projetos admitiam, expressa e especificamente, a iniciativa e o referendo populares em matéria de emenda constitucional. No Plenário, contudo, os conservadores derrubaram essa possi-bilidade clara que constava do § 2º do art. 74 do Projeto aprovado na Comissão de Sistematização. Não está, porém, excluída a aplicação desses institutos de participação popular nessa matéria. Está expressamente estabelecido que o poder que emana do povo será exercido por meio de representantes ou diretamente (art. 1º, parágrafo único), que a soberania popular será exercida também por referendo e iniciativa populares (art. 14, II e III) e que cabe ao Congresso Nacional autorizar referendo sem especificação (art. 49, XV), o que permite o referendo facultativo constitucional. Vale dizer, pois, que o uso desses institutos, em matéria de emenda constitucional, vai depender do desenvolvimento e da prática da democracia participativa que a Constituição alberga como um de seus princípios fundamentais” (Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 66).34

Neste sentido, MIRANDA, op. cit., t. 5, p. 82-83.35

O art. 78, caput, da Constituição Federal, dispõe: “O Presidente e o Vice-Presidente da Re-pública tomarão posse em sessão do Congresso Nacional, prestando o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.

26 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

e chefes de missão diplomática de caráter permanente (art. 52, III e IV, da Constituição Federal).

A mensagem presidencial ao Senado Federal, contendo a indicação das aludidas autoridades públicas, “deverá ser acompanhada de amplos esclarecimentos sobre o candidato e de seu curriculum vitae”, determina o art. 383, a, do Regimento senatorial.

36

Observa-se, então, que, sob o primado da Constituição de 1988, os regimentos não são apenas instrumentos de ordenação de relações internas das Casas Legislativas com seus componentes, deputados, senadores e servidores públicos. As normas regimentais transpõem a área doméstica da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Congresso Nacional, para se projetar, também, pela sociedade e por outros órgãos constitucionais.

A expressão regimento interno é atécnica, por traduzir a idéia de “auto-regramento para si”. Na verdade, trata-se de ato interno, emitido por órgão estatal que, por ser dotado de autonomia institucional, dispõe, por si mesmo, sem interferência de qualquer outro poder, sobre sua organização e funcionamento.

37

Portanto, regimento interno não é “lei da casa”; consiste em um conjunto de normas jurídicas cujo cumprimento, por parte da Casa que o elabora, é obrigatório.

5. Processualidade das emendas constitucionais36

O fundamento dessa obrigatoriedade – cumpre aclarar – está no juízo político, constitucional-mente previsto em regra de competência governamental, do Poder Legislativo sobre a escolha do Presidente da República (art. 52, III e IV). Para que o Senado Federal efetivamente aprove ou desaprove (e não simplesmente chancele ou deixe de chancelar, como títere) a indicação presidencial, é necessário que tenha uma opinião formada acerca do candidato. Os “amplos esclarecimentos” sobre ele e o seu curriculum vitae servem a tal propósito.37

Renzo Dickmann observa, com precisão, que essa autonomia é uma particular manifestação da posição, no ordenamento jurídico, de determinados órgãos do Estado, os órgãos constitucio-nais, entre os quais se insere o Legislativo. Ela serve ao exercício das competências orgânicas e se exprime por meio da auto-suficiência normativa (Autonomia e capacità negoziale degli organi costituzionali: l’esperienza delle assemblee parlamentari. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, n. 2, p. 399, 1997.38

A processualidade das licenças ambientais como garantia dos administrados. Revista de Direito Ambiental, a. 2, n. 5, p. 81-91, jan./mar. 1997; e Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 44, p. 71-90, dez. 1995.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 27

Alhures se disse que poderia ser demasiado afirmar que a processualidade é uma qualidade inerente à formação dos atos estatais.

38

Não, contudo, nos Estados Democráticos de Direito, como o brasileiro, em que os agentes públicos (legisladores, administradores e juízes) não são livres para agir, porque exercem atividade estatal, encontrando-se, pois, coarctados aos fins estabelecidos pela Constituição. Conseqüentemente, como não manifestam o seu querer pessoal, nada mais consentâneo que o direito prescreva um iter formativo da vontade que exprimem, que há por nome processo.

39

A processualidade, assim, se resume no modo normal de atuar do Estado Democrático de Direito.

40

Isso implica que o conceito tradicional e restrito de processo – entendido como conjunto de atos cujo objetivo fundamental é a solução de um conflito de interesses juridicamente qualificado – está superado. O termo processo, denotando o complexo, a série ou o encadeamento de atos que se desenvolvem progressivamente com vistas à produção de um determinado ato estatal,

41 não

é monopólio da função jurisdicional. Aplica-se a todas as funções estatais, a todos os setores do ordenamento jurídico público. Portanto, como afirma Alberto Xavier, “a cada uma das funções do Estado corresponde um tipo de processo através do qual ela se desenvolve”.

42

Fala-se, então, não só de processo judicial, mas, também, de processo administrativo – como sucessão ordenada de atos e formalidades tendentes à formação da vontade funcional da Administração, manifestada por meio de atos administrativos – e de processo legislativo – como “conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção, veto) realizados pelos órgãos legislativos 39

É como ensina Carlos Ari Sundfeld, in verbis: “A formação do querer do Estado não pode ser disciplinada de modo idêntico ao dos particulares. Uma vontade submetida a fins (a do Estado) e outra livre (a dos particulares) são instrumentadas diversamente. A livre tem seu canal de expressão: o indivíduo. A vontade funcional é canalizada no processo, do qual o agente é apenas um elemento. Não houvesse processo para a formação da vontade funcional, ela seria idêntica à da vontade livre: centrada no agente” (Fundamentos de direito público. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 92)40

SUNDFELD, Carlos Ari. A importância do procedimento administrativo. Revista de Direito Público, n. 84, p. 67, out./dez. 1987.41

GORDILLO, Agustin A. Tratado de derecho administrativo: parte general. Buenos Aires: Ediciones Macchi, 1991. t. 2, p. XVII-1.42

Do procedimento administrativo. São Paulo: Bushastsky: 1976. p.643

SILVA, op. cit., p. 496. Cf. Seção VIII do Capítulo I do Título IV da Constituição de 1988.

28 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

visando a formação das leis constitucionais, complementares e ordinárias, resoluções e decretos legislativos”.

43

Com efeito, da mesma forma que não se cogita de sentença sem propositura da ação, citação do réu, apresentação de contestação, produção de provas, oferecimento de alegações finais, não se concebe emenda constitucional senão quando tenha sido apresentada, discutida e votada uma proposta.

No âmbito do Poder Legislativo, a processualidade sobreleva em importância porque é ela que empresta legitimidade democrática à vontade normativa do Estado, emanada, necessariamente, de um corpo de representantes dos mais diversos segmentos da sociedade.

44 Um ato legislativo forjado

sem discussão, sem participação da minoria, sem deliberação da maioria, sem publicidade é um ato ilegítimo, autoritário, ofensor dos princípios da democracia, da igualdade e do devido processo legal.

45

44 Referindo-se à diferença entre lei (ato do Legislativo) e regulamento (ato do Executivo) sob o

ponto de vista da representatividade do pensamento das diversas facções sociais, Celso Antônio Bandeira de Mello observa: o Parlamento “se constitui em verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes. Daí que o resultado de sua produção jurídica termina por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum contemperamento entre as variadas tendências. Até para a articulação da maioria requerida para a aprovação de uma lei, são necessárias transigências e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o produto de uma interação, ao invés de mera imposição rígida das conveniências de uma única linha de pensamento” (A democracia e suas dificuldades contemporâneas. Revista Trimestral de Direito Público, n. 15, p. 107, 1996).45

Celso Antônio Bandeira de Mello bem anota que a circunstância de a elaboração das leis submeter-se a um processo confere a elas acentuado “grau de controlabilidade, confiabilidade e imparcialidade”. São suas palavras: “É que as leis se submetem a um trâmite graças ao qual é possível o conhecimento público das disposições que estejam em caminho de serem implantadas. Com isto, evidentemente, há uma fiscalização social, seja por meio da imprensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dúvida, dificulta ou embarga eventuais direcionamentos incompatíveis com o interesse público em geral, ensejando a irrupção de tem-pestivas alterações e emendas para obstar, corrigir ou minimizar tanto decisões precipitadas, quanto propósitos de favorecimento ou, reversamente, tratamento discriminatório, gravoso ou apenas desatento ao justo interesse de grupos ou segmentos sociais, econômicos ou políticos. Demais disto, proporciona, ante o necessário trâmite pelas Comissões e o reexame pela Casa Legislativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a normatização projetada, embargando, em grau maior, a possibilidade de erros ou inconveniências provindos de açodamento. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estável, a bem da segurança e certeza jurídicas, benéfico ao planejamento razoável da atividade econômica das pessoas e empresas e até dos projetos individuais de cada qual” (Ibid., p. 107-108).

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Sendo ponto pacífico que, no Estado Democrático de Direito, a vontade do legislador não é pessoal, tem-se, como um dos principais mecanismos garantidores do caráter representativo de seus atos, o processo legislativo, plexo de normas que regula a formação e expressão da sua vontade.

Esse corpo normativo está estabelecido tanto na Constituição (arts. 59 a 69) quanto nos regimentos, estes em complementação necessária daquela.

Além de ser requisito democrático, a processualidade legislativa constitui pressuposto de validade formal dos atos normativos. Tanto assim que a inconstitucionalidade extrínseca ocorre por violação das formas previstas para a elaboração das espécies normativas (inconstitucionalidade formal). Nesta perspectiva, José Celso de Mello Filho se pronuncia: “A observância das normas constitucionais e do regimento interno das casas legislativas condiciona a própria validade formal dos atos normativos editados pelo Poder Legislativo. (...). Os regimentos internos constituem a lei maior que disciplina a vida político-administrativa das câmaras legislativas, ressalvada, evidentemente, a superioridade jurídico-formal das regras inscritas nos textos constitucionais. (...). Eis porque o processo de elaboração normativa deve cingir-se e adaptar-se, rigorosa e fielmente, às exigências regimentais, sendo lícito afirmar-se que o desrespeito às normas consubstanciadas no regimento interno pode gerar e acarretar a invalidade formal dos atos normativos”.

46

Aprovados os regimentos das Casas Legislativas, indaga-se: têm aqueles que se encontram colhidos pelas suas prescrições direito à sua observância e cumprimento?

A resposta foi tracejada ao se demonstrar a juridicidade dos textos regimentais no ordenamento jurídico brasileiro. Oportuno, agora, agregar algumas considerações sobre o devido processo legislativo.

Os regimentos parlamentares concretizam a Constituição, estabelecendo regras de observância obrigatória. Sendo assim, possuem juridicidade. Seus comandos obrigam. Vinculam o legislador.

Bastante expressivo, nesse ponto, é o art. 412 do Regimento Interno do Senado Federal. Ele preceitua que a legitimidade na elaboração normativa é assegurada pela observância rigorosa das disposições regimentais, e arrola

46 Aspectos da elaboração legislativa. Justitia. São Paulo, n. 108, p. 58, jan./mar., 1980.

30 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

treze “princípios gerais do processo legislativo”, quais sejam: I - a participação plena e igualitária dos senadores em todas as atividades legislativas, respeitados os limites regimentais; II - modificação da norma regimental apenas por norma legislativa competente, cumpridos rigorosamente os procedimentos regimentais; III - impossibilidade de prevalência sobre norma regimental de acordo de lideranças ou decisão do Plenário, ainda que unânime, tomados ou não mediante voto; IV - nulidade de qualquer decisão que contrarie norma regimental; V - prevalência de norma especial sobre a geral; VI - decisão dos casos omissos de acordo com a analogia e os princípios gerais de Direito; VII - preservação dos direitos das minorias; VIII - definição normativa, a ser observada pela Mesa em questão de ordem decidida pela Presidência; IX - decisão colegiada, ressalvadas as competências específicas estabelecidas no Regimento; X - impossibilidade de tomada de decisões sem a observância do quorum regimental estabelecido; XI - pauta de decisões feita com antecedência tal que possibilite a todos os senadores seu devido conhecimento; XII - publicidade das decisões tomadas, exceção feita aos casos específicos regimentalmente previstos; XIII - possibilidade de ampla negociação política somente por meio de procedimentos regimentais previstos.

A transgressão de qualquer desses princípios, prescreve o art. 413 do mesmo diploma, poderá dar ensejo à denúncia, mediante formulação de questão de ordem.

47 Levantada esta, caberá ao Presidente do Senado Federal

apurá-la imediatamente, verificando os fatos pertinentes, podendo consultar os registros da Casa, notas taquigráficas, fitas magnéticas ou outros meios cabíveis.

Vê-se, da crua leitura desses ilustrativos regramentos, que o próprio legislador (no caso, o Senado Federal) reconhece a necessidade impostergável de se observar e de se cumprir fielmente as normas regimentais. Ele mesmo reputa como nula decisão sua que as transgrida (art. 412, IV).

E não poderia ser diferente, mesmo na hipótese de inexistência de norma jurídica interna que expressamente prescreva a nulidade de ato praticado em desconformidade com o regimento. Porque é insuperável a regra segundo a qual a Constituição não deu às Casas Legislativas qualquer liberdade de

47 Segundo o caput do art. 403 do Regimento Interno do Senado Federal, constituirá questão de

ordem, suscitável em qualquer fase da sessão, pelo prazo de cinco minutos, qualquer dúvida sobre interpretação ou aplicação regimental.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 31

decisão sobre o cumprimento ou não dos seus estatutos.

Uma vez definido o caminho a prosseguir para a constituição e enunciação da vontade parlamentar, inclusive a reformadora, devem os legisladores – sejam membros de Mesa, presidentes de comissão, líderes da maioria, da minoria, de bancada, de partido, do governo – pautar o seu comportamento segundo os ditames constantes dos regimentos. Daí se falar, correlatamente, do direito ao devido processo legislativo, para traduzir a esfera jurídica parlamentar protegida por regras de atuação certas quanto à sua existência e seguras quanto à sua observância e aplicação.

Destarte, se houver violação das normas regimentais relativas à tramitação de proposta de emenda constitucional, será cabível, com fulcro no art. 102, I, d, da Constituição Federal,

48 a impetração de mandado de segurança, para, sendo

a hipótese, assegurar o direito líquido e certo ao devido processo legislativo e, ao mesmo tempo, preservar a higidez do processamento democrático de proposição normativa modificadora da ordem jurídica fundamental.

6. Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional

Destinando-se a salvaguardar o direito líquido e certo ao devido processo legislativo e a manter a incolumidade do processamento democrático de proposição normativa, a jurisdição constitucional de controle do Supremo Tribunal Federal poderá ser ativada a qualquer momento?

O art. 60, § 4º, da Constituição, prescreve: “Não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais” (grifou-se).

Ao dizer isso, é certo que a Carta Política não veda a mera apresentação de proposta de emenda tendente a abolir as chamadas cláusulas pétreas. Mas ela estaria a obstar o ato, da alçada dos Presidentes das Casas Legislativas, de encaminhamento da indigitada proposta às competentes comissões parlamentares, para elaboração de pareceres? Ou o óbice seria endereçado aos 48

O art. 102, I, d, prescreve que é da competência do Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, mandado de segurança contra atos das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

32 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

deputados e senadores, que, em sessões ordinárias previamente marcadas, não poderiam sequer discutir a matéria? Talvez o obstáculo refira-se à votação, mas em qual dos dois turnos ela seria defesa?

Essas e outras dúvidas podem ser suscitadas em torno da literalidade do citado art. 60, § 4º. Entretanto, sejam quais forem as questões, as respostas jamais serão indiferentes para o ordenamento político. A «saída constitucional» possível terá de compatibilizar a necessidade de preservação da autoridade da Constituição com a garantia de independência do poder reformador.

O controle jurisdicional dos atos parlamentares praticados ao longo do processo de reforma há de ser exercitado dentro de certos lindes constitucionais. Urge identificá-los, examinando-se dois casos submetidos à apreciação do Supremo Tribunal Federal, um sob a vigência da Constituição de 1967, outro sob a égide da atual.

Insurgindo-se contra ato da Mesa do Congresso Nacional, que admitiu a regular tramitação de propostas de emenda constitucional alcunhadas de “prorrogacionistas”,

49 os então senadores Itamar Augusto Cautiero Franco e

Antonio Mendes Canale impetraram mandado de segurança, autuado sob o nº 20.257-DF.

50

Para os impetrantes, o ato coator violava o art. 47, § 1º, da Constituição de 1967, que proibia deliberação sobre proposta de emenda constitucional tendente a abolir, no caso, a República.

Por maioria, o Tribunal Pleno admitiu a impetração da ação no curso do processo de elaboração de emenda constitucional, visando a assegurar a supremacia do mencionado dispositivo.

O Ministro Moreira Alves (relator para o acórdão) asseverou:

“Não admito Mandado de Segurança para impedir a tramitação de projeto de lei ou proposta de emenda constitucional com base na alegação de que

49 Tais propostas visavam a estender os mandatos de prefeitos, vice-prefeitos e vereadores.

50 No regime constitucional anterior, a proposta de emenda era discutida e votada em sessão

conjunta do Congresso Nacional (art. 48). A Constituição vigente prevê que Câmara dos Deputados e Senado Federal atuem separadamente (art. 60, § 2º). Por isso, o mandado de segurança em comento, julgado em 8 de outubro de 1980, foi impetrado contra a Mesa do Congresso Nacional.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 33

seu conteúdo entra em choque com algum princípio constitucional. E não admito porque, nesse caso, a violação à Constituição só ocorrerá depois de o projeto se transformar em lei ou de a proposta de emenda vir a ser aprovada. Antes disso, nem o Presidente da Casa do Congresso, ou deste, nem a Mesa, nem o Poder Legislativo estão praticando qualquer inconstitucionalidade, mas estão, sim, exercitando seus poderes constitucionais referentes ao processamento da lei em geral. A inconstitucionalidade, nesse caso, não será quanto ao processo da lei ou da emenda, mas, ao contrário, será da própria lei ou da própria emenda, razão por que só poderá ser atacada depois da existência de uma ou de outra.Diversas, porém, são as hipóteses como a presente, em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação (...) ou a sua deliberação (...). Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer – em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformarem em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a constituição.E cabe ao Poder Judiciário – nos sistemas em que o controle da constitucionalidade lhe é outorgado – impedir que se desrespeite a Constituição. Na guarda da observância desta, está ele acima dos demais Poderes, não havendo, pois, que falar-se, a esse respeito, em independência de Poderes. Não fora assim e não poderia ele exercer a função que a própria Constituição, para a preservação dela, lhe outorga”.

51

Esse veredicto, embora proferido em 8 de outubro de 1980, ajusta-se inteiramente ao regime constitucional vigente.

Em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro, governado por uma constituição rígida, é inadmissível o exercício do poder político sobranceiro aos seus comandos. Todos os órgãos estatais estão colhidos pelas suas prescrições, e assim se encontram porque são, por natureza, poderes limitados. Não há que se falar, pois, de soberania do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, mas de supremacia da Constituição.

O poder reformador, exercitado por ambas as Casas do Congresso Nacional, não é exceção à regra. Também se encontra abaixo da Constituição, 51

Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 99, p. 1040, mar. 1982.

34 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

devendo-lhe, como poder subordinado e condicionado que é, total obediência. Logo, se a ordem jurídica fundamental impõe a ele que paute sua atuação conforme determinadas normas, estabelece regramento específico para formação da vontade reformadora, regramento este que há de ser respeitado sob pena de vulneração e desfalecimento da força normativa constitucional.

No caso, havendo expressa proibição de deliberar sobre dada proposta, cabe ao Supremo Tribunal Federal intervir no iter formativo da emenda constitucional, para assegurar a supremacia da regra.

Mas em que momento será possível a fiscalização judicial?

No Mandado de Segurança nº 20.257-DF, o Tribunal não se posicionou especificamente a respeito, não obstante o Ministro Moreira Alves ter dito que, “se a direção dos trabalhos do Congresso cabe ao Presidente do Senado; se este, pelo próprio Regimento Comum do Congresso Nacional (artigo 73), pode, liminarmente, rejeitar a proposta de emenda que não atenda ao disposto no art. 47, § 1º, da Constituição (e quem tem poder de rejeição liminar o tem, igualmente, no curso do processo); e se a Constituição alude a objeto de deliberação (o que implica dizer que seu termo é o momento imediatamente anterior à votação); não há dúvida, a meu ver, de que, a qualquer tempo, antes da votação, pode a Presidência do Congresso, convencendo-se de que a proposta de emenda tende a abolir a Federação ou a República, rejeitá-la, ainda que não o tenha feito inicialmente”.

52 Por isso, viável o mandado de segurança, “uma vez que

visava ele a impedir que a Presidência do Congresso colocasse em votação a proposta de emenda”.

53

Mesmo diante dessas ponderações, dúvidas remanescem. Qual o momento “imediatamente anterior à votação”? Votação em primeiro ou em segundo turno? Quando a Presidência da Casa Legislativa “coloca em votação a proposta de emenda”?

As respostas dependem da ordenação regimental da matéria, haja vista a inexistência de normatização específica (tanto na Constituição anterior como na atual) a respeito da apreciação das propostas de emenda constitucional.

52 Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 99, p. 1039-1040, mar. 1982.

53 Ibid., p. 1040.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 35

Atualmente, no Senado Federal, câmara de representação dos Estados-membros,

54 disciplinam o processamento das propostas de emenda

à Constituição os arts. 354 a 373.55

As especificidades da tramitação dessas proposições são as seguintes:

Supondo que tanto o Presidente quanto a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da mencionada Casa Legislativa entendam que a proposta de emenda não contraria a Carta Política,

56 ela será lida na hora do expediente,

publicada no Diário do Congresso Nacional e em avulsos, para distribuição aos senadores (art. 355). Depois, será despachada à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), que terá prazo de até trinta dias, contado da data do despacho da Presidência, para emitir parecer (art. 356, caput). O parecer que concluir pela apresentação de emenda deverá conter assinaturas de senadores que, complementando as dos membros da comissão, compreendam, no mínimo, um terço dos membros do Senado (art. 356, parágrafo único). Cinco dias após a publicação do parecer e sua distribuição em avulsos, a matéria poderá ser incluída na ordem do dia (art. 357). Decorrido o prazo de que trata o art. 356, sem que a CCJ haja proferido parecer, a proposta de emenda será incluída em ordem do dia, para discussão, em primeiro turno, durante cinco sessões ordinárias consecutivas (art. 358, caput). O parecer será proferido oralmente, em plenário, por relator designado pelo Presidente (art. 358, § 1º). Durante a discussão, poderão ser oferecidas emendas assinadas, por, no 54

Art. 46, caput, da Constituição Federal.55

Esses dispositivos regimentais, entretanto, não esgotam a matéria, haja vista o art. 372 pres-crever: “Aplicam-se à tramitação da proposta, no que couber, as normas estabelecidas neste Regimento para as demais proposições”. Na Câmara dos Deputados, o processamento das propostas de emenda constitucional encontra-se regrado pelos arts. 201 a 203 do seu Regimento Interno. O art. 202, § 8º, à semelhança do disposto no art. 372 do regimento senatorial, dispõe que se aplicam às proposições modificadoras da Constituição, “no que não colidir com o esta-tuído neste artigo, as disposições regimentais relativas ao trâmite dos projetos de lei”.56

O fato de as comissões parlamentares, denominadas Comissões de Constituição e Justiça, responderem pela admissibilidade das proposições legislativas não significa que se está diante de um controle preventivo de constitucionalidade em sentido técnico-jurídico, mas meramente político. Afinal, o Parlamento é um órgão de natureza política. “Somente muito precariamente – observa Anderson Cavalcante Lobato – o controle preventivo político consegue impedir a entrada em vigor de uma norma inconstitucional. Não raro o Poder Executivo e o Poder Legislativo fecham os olhos às questões de ordem jurídica para fazer prevalecer a vontade política” (Para uma nova concepção do sistema misto de controle de constitucionalidade: a aceitação do controle preventivo. Revista de Informação Legislativa, a. 31, n. 124, p. 176, out./dez. 1994).

36 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

mínimo, um terço dos membros do Senado, desde que guardem relação direta e imediata com a matéria tratada na proposta (art. 358, § 2º). Para exame e parecer das emendas, é assegurado à CCJ o mesmo prazo estabelecido pelo art. 356 (art. 359). Lido o parecer na hora do expediente, publicado no Diário do Congresso Nacional e distribuído em avulsos com a proposta e as emendas, a matéria poderá ser incluída na ordem do dia (art. 360). Esgotado o prazo, proceder-se-á na forma do disposto no caput do art. 358 e seu § 1º (art. 361, caput). Na sessão ordinária que se seguir à emissão do parecer, a proposta será incluída em ordem do dia, para votação em primeiro turno (art. 361, § 1º). Somente serão admitidos requerimentos que objetivem a votação em separado de partes da proposta ou de emendas (art. 361, § 2º). A deliberação sobre a proposta, as emendas e as disposições destacadas para votação em separado será feita pelo processo nominal (art. 361, § 3º). O interstício entre o primeiro e o segundo turno será de, no mínimo, cinco sessões ordinárias (art. 362). Incluída a proposta em ordem do dia, para o segundo turno, será aberto o prazo de três sessões ordinárias para discussão, quando poderão ser oferecidas emendas que não envolvam o mérito (art. 363). Encerrada a discussão, em segundo turno, com apresentação de emendas, a matéria voltará à comissão, para parecer em cinco dias improrrogáveis, após o que será incluída em ordem do dia, em fase de votação (art. 364). Aprovada sem emendas, a proposta será remetida à Câmara dos Deputados. Emendada, será encaminhada à CCJ, que terá o prazo de três dias, para oferecer a redação final (art. 365). A redação final, apresentada à Mesa, será votada, com qualquer número, independentemente de publicação (art. 366).

Verifica-se, dessa minudente sistemática regimental, que, antes da emissão do parecer, seja da CCJ, seja de relator designado pelo Presidente do Senado Federal, há mera ideação legislativa, externada com a apresentação da proposta, e não, propriamente, objeto de deliberação. Tanto assim que, na fase de discussão, emendas (isto é, proposições acessórias de outras) podem ser apresentadas, visando à modificação daquilo que foi inicialmente alvitrado.

Essa observação é de suma importância para a tarefa de identificação do momento em que a jurisdição de controle do Supremo Tribunal Federal pode ser acionada.

Somente depois de emitido e conhecido o parecer sobre as emendas ofertadas à proposta inaugural é que se torna possível impugnar judicialmente ato parlamentar tendente a abolir as cláusulas pétreas. A partir desse átimo,

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 37

opera-se a res interna corporis,57

ou seja, preclusão dentro do processo de emenda constitucional. Isto se confirma pelo fato de que, incluída a proposta na ordem do dia, para o segundo turno, não poderão ser oferecidas emendas que envolvam o mérito (art. 363 do Regimento Interno do Senado Federal).

Enquanto a proposta de emenda estiver sendo discutida em primeiro turno, é defeso ao Poder Judiciário imiscuir-se no processo parlamentar. Simplesmente porque inexiste objeto de deliberação.

Em tema de reforma constitucional, a Constituição não estabeleceu qualquer vedação ao debate parlamentar. Somente proibiu a tomada de deliberação sobre determinada matéria.

58 E assim o fez a fim de assegurar o

livre fluxo de idéias, requisito necessário ao prudente e refletido trabalho de reforma constitucional, manifestação culminante das Casas Legislativas.

Admita-se uma proposta de emenda que, a pretexto de aperfeiçoar o art. 62 da Constituição, dispusesse: “O Presidente da República poderá reeditar medida provisória não apreciada pelo Congresso Nacional no prazo de trinta dias, contado da sua publicação”.

Proposta desse jaez, pelos seus próprios termos, seria manifestamente inconstitucional, por atentatória do princípio da separação dos poderes (art. 2º).

Não obstante o Presidente da República ter o poder-dever de, nos termos do caput do art. 62 da Lei Maior, adotar, em caso de urgência e relevância, medidas provisórias, com força de lei, é-lhe constitucionalmente defeso lançar

57 Sobre a res interna corporis, Pontes de Miranda discorre: “Os corpos legislativos estão

adstritos a regras jurídicas, constitucionais, legais e regimentais, de competência, de quórum, de mínimo de votos e de prazos preclusivos para a alegabilidade das irregularidades e a aten-dibilidade de suas correções. Assim como há res iudicata, há também a res interna corporis, com todas as suas conseqüências” (Comentários à Constituição de 1967: com a Emenda n. 1 de 1969. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. t. 3, p. 130).58

Deliberar é decidir, resolver algo depois de exame e discussão (FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da Língua Portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. p. 368). “Una deliberación – define Maurice Hauriou – es una resolución colectiva sobre un asunto de gobierno o de administración, resolución que se adopta a pluralidad de votos y después de discusión pública, por una Asamblea formando Cuerpo y constituída en autoridad pública” (Principios de derecho público y constitucional. 2. ed. Madrid: Instituto Editorial Reus, Centro de Enseñanza y Publicaciones, s. d. p. 470).

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mão desses provimentos – mesmo sob a justificativa de estar no exercício regular de uma função presidencial atípica – para tratar de assuntos ordinários, da rotina do Congresso Nacional, e que, por isso mesmo, não apresentam a nota de excepcionalidade, própria de um contexto anômalo, adverso, incomum, que suscitaria uma normatização de emergência, sob risco de perecer o interesse público. A razão de tal proibição aloja-se no arquétipo constitucional da separação dos poderes (art. 2º): a Constituição confia a função legiferante ordinária ao Legislativo; não admite, de forma alguma, a existência de um órgão monolítico, absoluto, como seria o Presidente da República, se nele se concentrassem todos os poderes legislativos.

Dessume-se, então, que proposta de emenda constitucional que contivesse a possibilidade de reedição ilimitada de medidas provisórias, isto é, o trespasse da atividade legislativa ordinária ao Chefe do Poder Executivo, derruiria o postulado da separação dos poderes.

Acionado logo após a apresentação da proposta (antes, portanto, da inauguração da fase de discussão), o Poder Judiciário inexoravelmente teria de reconhecer que a proposição fere o art. 60, § 4º, III, da Constituição. Mas o faria ao arrepio da competência reformadora de que está investido o Poder Legislativo. Afinal, os parlamentares têm a faculdade de apresentar emendas à proposição original, objetivando, por exemplo, expungir eventuais falhas nela contidas.

O exercício da prerrogativa parlamentar de emenda não pode ser suprimido com a transferência da arena política em torno de certo bosquejo de alteração constitucional do Parlamento para o Judiciário.

No caso vertente, os membros do Senado Federal poderiam sugerir que a medida provisória pudesse ser reeditada uma única vez, desde que lastreada em motivos novos, extraordinários, de urgência e relevância, aos quais o Presidente da República teria de se referir expressamente na motivação, parte integrante do ato legislativo atípico. Tal emenda, uma vez admitida na fase própria, poderia lograr êxito quando da votação da matéria.

Em suma, inaugura-se a jurisdição do Supremo Tribunal Federal a partir do momento em que, esgotada a oportunidade para oferecimento de emendas que envolvam o mérito da proposição original, é proferido parecer pela CCJ. Havendo inconstitucionalidades materiais na proposta habilitada a ser incluída na ordem do dia para votação em primeiro turno, será legítima a intervenção judicial, a fim de abortar deliberação parlamentar sobre assuntos

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constitucionalmente vedados, quais sejam, aqueles previstos no art. 60, § 4º, I a IV, da Constituição.

O outro caso submetido à apreciação do Supremo Tribunal Federal originou-se do ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 466.

O autor da ação, Partido Socialista Brasileiro (PSB), impugnava a proposta de emenda constitucional nº 1-B, de 1988, em tramitação pela Câmara dos Deputados, sob a alegação de ela, ao ampliar os casos de cominação da pena de morte, ser incompatível com o disposto no art. 60, § 4º, IV, da Carta Política.

O Plenário do Tribunal, por maioria, não conheceu da ação,59

em razão de não existir, no sistema constitucional do País, controle jurisdicional preventivo da constitucionalidade, incidente sobre projetos de lei e propostas de emenda à Constituição, isto é, atos normativos em formação.

Colhe-se, do voto do Ministro Celso de Mello (relator), o seguinte excerto:

“Atos normativos in fieri, ainda em fase de formação, com tramitação procedimental não-concluída, não ensejam e nem dão margem ao controle concentrado ou em tese de constitucionalidade, que supõe (...) a existência de espécies normativas definitivas, perfeitas e acabadas. Ao contrário do ato normativo – que existe e que pode dispor de eficácia jurídica imediata, constituindo, por isso mesmo, uma realidade inovadora da ordem positiva –, a mera proposição legislativa nada mais encerra do que simples proposta de direito novo, a ser submetida à apreciação do órgão competente, para que, de sua eventual aprovação, possa derivar, então, a sua introdução formal no universo jurídico”.

60

A referência a esse julgado é oportuna porque, nele, o Supremo Tribunal Federal, amparado em precedente específico (Mandado de Segurança nº 20.257-DF), deixou claro que, também à luz da Constituição vigente, é juridicamente possível, em sede de controle incidental, a fiscalização jurisdicional da constitucionalidade de propostas de emenda constitucional que veiculem matéria excluída do âmbito do poder reformador.

61

59 Restou vencido em parte o Ministro Marco Aurélio, que, vislumbrando a impossibilidade

jurídica do pedido, julgou o autor carecedor da ação.60

Revista de Direito Administrativo, v. 183, p. 164, jan./mar. 1991.61

Ibid., p. 165.

40 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

7. Conclusão

Do exposto, conclui-se:

1) Em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro, governado por uma constituição rígida, é inadmissível o exercício do poder político sobranceiro aos seus comandos. Todos os órgãos estatais estão colhidos pelas suas prescrições, e assim se encontram porque são, por natureza, poderes limitados. Não há que se falar, pois, de soberania do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, mas de supremacia da Constituição. O poder reformador, exercitado por ambas as Casas do Congresso Nacional, não é exceção à regra. Também se encontra abaixo da Constituição;

2) Se a ordem jurídica fundamental impõe ao poder reformador que paute sua atuação conforme determinadas normas, estabelece regramento específico para formação da sua vontade, regramento este que há de ser respeitado sob pena de perpetração de inconstitucionalidade;

3) A elaboração das emendas constitucionais submete-se a um processo extraordinário, previsto não só no art. 60 da Constituição, mas também nos regimentos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que contêm normas complementares dos preceitos relativos ao Poder Legislativo e estabelecem regras de observância obrigatória a respeito da formação de todas as espécies normativas;

4) Dentro do quadro orgânico-funcional do Estado, ao Poder Judiciário, e só a ele, compete, de forma definitiva e irrecorrível, garantir a supremacia constitucional e defender os direitos fundamentais. Se é da incumbência de qualquer órgão jurisdicional a apreciação de lesão ou ameaça a direito, e do Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (arts. 5º, XXXV, e 102, caput, da Carta Política), havendo expressa proibição de o poder reformador deliberar sobre dada proposta, é lícita a intervenção jurisdicional no iter formativo da emenda constitucional, para assegurar a supremacia do art. 60, § 4º, da Constituição;

5) O controle jurisdicional dos atos parlamentares praticados ao longo do processo de reforma constitucional tem de compatibilizar a necessidade de preservação da autoridade da Constituição com a garantia de independência do poder reformador;

6) A vedação de deliberar sobre proposta de emenda constitucional

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 41

tendente a abolir as limitações materiais ao poder reformador não se estende à discussão parlamentar, haja vista a possibilidade de, nessa fase, operar-se a modificação da proposição original por meio de emenda, visando a eliminar o vício de inconstitucionalidade. A intervenção do Poder Judiciário no iter formativo das emendas constitucionais tem cabimento após a ultimação da fase de discussão, regulada especificamente pelos regimentos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal;

7) Admitir a hipótese do exercício da competência jurisdicional controladora antes da fase de debate parlamentar implica transferir, ao arrepio da ordem constitucional estabelecida, do Poder Legislativo para o Poder Judiciário, a luta política em torno de mera ideação legislativa, insuscetível de pôr em risco os limites materiais ao poder reformador. Se a Constituição quisesse obstar a discussão sobre proposta de emenda constitucional, por originariamente inconstitucional, não teria proibido o poder reformador de deliberar sobre ela;

8) O controle jurisdicional dos atos parlamentares é confirmado pela previsão constitucional do cabimento, perante o Supremo Tribunal Federal, de mandado de segurança contra atos das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art. 102, I, d).

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Parceria público-pública: ensaio sobre os consórcios públicos e

saneamento ambiental*

Marcos Juruena Villela SoutoMestre em Direito das Relações Econômicas,

Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio

Vargas, Professor de Direito Administrativo da Escola de Ma-gistratura do Estado do Rio de Janeiro

Apresentação

O Projeto de Lei nº 3.884/04, que resultou na Lei nº 11.107, de 06.04.2005, que trata de consórcios públicos, foi objeto de discussão no IBAM – Instituto Brasileiro de Administração Municipal. O tema foi apresentado pelo Dr. Wladimir Ribeiro (da Subsecretaria de Assuntos Federativos da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais); na oportunidade, o expositor esclareceu que não se buscava disciplinar o art. 241 para tratar dos consórcios públicos. A intenção apresentada seria criar mais um tipo de contrato disponível a quem desejasse se consorciar, de modo a dar algum grau de harmonização ao instituto.

Afirmou-se que a maior parte dos consórcios em vigor não tem personalidade jurídica, enquanto outros teriam personalidade jurídica de direito privado (saúde, 1969 consórcios, uso compartilhado de equipamentos, 669 consórcios, destinação final de resíduos sólidos, 216 consórcios), outros tantos teriam personalidade jurídica de autarquia interfederativa (valendo-se do precedente surgido com o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul, ressaltando que o Eg. STF não teria se oposto à entidade interfederativa, mas no caso de Bancos, deveria recolher os tributos inerentes à atividade

* Notas para o Encontro de Trabalho promovido pelo IBAM - Instituto Brasileiro de Admi-nistração Municipal, em 30.08.2004.

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concorrente com o setor privado).

Registrou-se, também, que o tema já teria precedentes no Congresso Nacional (PEC 175/1995 – Mensagem 886, tratando de um art. 247, sobre a instituição de órgãos e entidades intergovernamentais, que não teria sido mantido no texto por desnecessário, já que o STF já havia admitido tal formatação; o PL n° 5.755/01, dos parlamentares Ronaldo Cunha Lima e Geraldo Althoff – tratando de autarquia ou sociedade sem fins lucrativos; o PL n° 1.071/91, do Dep. Rafael Guerra, definindo o consórcio como autarquia), que teriam inspirado o PL nº 3.884/04.

Ademais, após o reconhecimento pelo Eg. STF (RE nº 119.256-SP; 14.04.1992, Min. Moreira Alves) do fato de ser o convênio um ato de natureza precária, buscou-se ampliar a segurança jurídica de tais relações, tratando dos problemas relacionados à falta de personalidade jurídica decorrentes da soma de personalidades públicas, gerando uma pessoa de direito privado, e do fato de não haver lei dispondo sobre o contrato de constituição de consórcio público.

A proposta seria, pois, de dispor, em sede de normas gerais, de um contrato de constituição de consórcios públicos, com fundamento no art. 22, XXVII, CF, que seria respaldada na existência de doutrina diferenciando o ato constitutivo do consórcio – contrato – do conjunto de dispositivos que devem reger a convivência entre os seus partícipes – estatutos –, criando, assim, mais uma forma jurídica, sem impedir o uso das formas atuais.

Outro problema que a inovação pretende solucionar é o da transferência de recursos para o consórcio, prevendo-se um contrato de rateio, que se submete à LRF, ao dever de prestar contas e a uma finalidade específica. A lei prevê, ainda, que consórcio não pode se endividar ou prestar garantia, mas o ente pode fazê-lo e repassar os recursos, sendo o rateio um contrato de direito privado, pressupondo igualdade entre as partes.

Destacou-se que o art. 241 prevê outra forma de gestão associada que não apenas o consórcio, além do fato de o art. 175 só tratar das concessões e permissões, o que não excluiria a utilização da autorização, contemplada no art. 21, XXII, CF. Tais institutos não seriam adequados porque a gestão associada não é nem direta e nem se contrata o capital privado; é uma espécie de “parceria-público–pública” influenciada por relações políticas. Daí ter o 241, CF, criado outros caminhos, pela cooperação federativa, por via do consórcio público e do convênio de cooperação, que estabeleceriam um programa de

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trabalho, por meio de um contrato ou programa.

O problema básico a ser resolvido era a precariedade do consórcio, cuja implementação, nos termos da proposta, deveria ganhar estabilidade.

Na mesma oportunidade, Diogo de Figueiredo Moreira Neto criticou a proposta, afirmando que se trata de mais um instrumento de fragilização da Federação e das liberdades públicas, tal qual já ocorreu com o aumento da carga tributária, pelo uso de contribuições não partilhadas pela União com os Estados e Municípios, bem como com a tentativa de regulação da imprensa, do cinema e do audiovisual.

Entendeu que o tema faz parte de um contexto de centralização retrógrada de competências para a União, inclusive envolvendo a estatização de setores que devem ser livres (como no cinema e no jornalismo). A seu juízo, a questão federativa tratada no plano federal só se justifica quando for desenvolvido um papel de coordenação com vistas à promoção do desenvolvimento, já que o federalismo é um processo.

O IBAM, por sua Assessora Jurídica – a ilustre Procuradora do Estado do Rio de Janeiro Rachel Fahri –, sustentou que a proposta vem viciada de inconstitucionalidade material, por desrespeitar o princípio federativo, na medida em que invade a competência legislativa dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, eis que a Constituição Federal trata da cooperação entre os diversos entes da Federação em dois dispositivos. No art. 23, que em seu parágrafo único exige lei complementar, e no art. 241, que prevê a expedição de leis disciplinando os consórcios entre entes públicos e os convênios de cooperação, ou seja, cada unidade da Federação editaria sua lei, da qual constariam os requisitos a serem observados na hipótese de o Município, ou o Estado, para exemplificar, se juntar a outros em um consórcio ou decidir firmar convênios para os fins ali explicitados. Sustentou, então, que, nesse caso, a União legislaria apenas para ela, como, da mesma forma, o Estado e o Município teriam leis específicas para dispor sobre a participação de cada um em consórcios ou convênios, não tendo o constituinte previsto uma lei comum às três esferas, ou seja, subscrita pela União, pelos Estados e pelos Municípios, haja vista a autonomia legislativa que cada um possui, mesmo que sujeita aos princípios da Constituição, conforme informa o seu art. 18.

Cabe, pois, examinar brevemente alguns aspectos do tema, numa abordagem meramente preliminar sobre que novidades vêm estampadas no

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novo diploma legal, sem a pretensão, nesse momento, de fazer considerações doutrinárias e, menos ainda, definitivas (especialmente antes de conhecer o impacto que a nova norma vai causar nos instrumentos em vigor).

1. Conceito e objetivos da proposta

O objetivo é traçar normas gerais de contratos para a constituição de consórcios públicos, bem como de contratos de programa para a prestação de serviços públicos por meio de gestão associada, sendo que, nos termos do art. 1

o, § 1º, consórcio público é a associação pública ou pessoa jurídica de

direito privado, para a realização de objetivos de interesse comum. É previsto um protocolo de intenções, que é um contrato preliminar; este, ratificado mediante lei pelos entes da Federação interessados, converte-se em contrato de consórcio público (ato constitutivo do consórcio público, conferindo-lhe personalidade jurídica de direito público).

2. Os conceitos já praticados na doutrina

Os consórcios, a exemplo dos convênios, sempre foram tratados como atos multilaterais ou complexos e não como atos bilaterais

1; já o protocolo

administrativo sempre foi tratado como ato administrativo unilateral negocial

2.

3. A possibilidade de novo tratamento legal do conceito

Em se tratando de normas gerais de contratos, a competência federal é vislumbrada no artigo 22, XXVII, CF. A questão é saber sobre a utilidade da mudança do conceito, tendo em vista que o artigo 2º, páragrafo único, da Lei nº 8.666/93 já define todo e qualquer ajuste do qual resulte acordo de vontades e obrigações recíprocas como contrato. Não se tem notícia de qualquer ação direta de inconstitucionalidade inviabilizando o exercício dessa competência federal, ainda que seja farta a doutrina que faz a distinção entre convênios e contratos

3.

4. A utilidade na mudança do tratamento doutrinário1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 13. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1987. p. 336-337.2 Ibid., p. 150.

3 Ver DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella e MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.

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Poder-se-ia imaginar que a atribuição de personalidade jurídica teria por objetivo dar maior estabilidade à relação, tendo em vista que os convênios e consórcios são tradicionalmente tratados como atos de livre denúncia.

Todavia, não há maior segurança ou estabilidade na forma contratual, tendo em vista serem estabelecidos os institutos da reserva (ato pelo qual ente da Federação não ratifica, ou condiciona a ratificação, de determinados objetivos ou cláusulas de protocolo de intenções para constituição de consórcio público) e da retirada (saída da entidade da Federação do consórcio público, por ato de sua vontade).

5. A sede normativa adequada

A cooperação entre entidades federadas, segundo o artigo 23, parágrafo único, CF, deve ser disciplinada por lei complementar; já a norma do art. 241, CF, trata da autorização legislativa específica para a gestão associada.

Ao que parece, no art. 23, parágrafo único, se disciplina a partilha de competência comum, de modo a prevenir conflitos, ao passo que no art. 241 se cuida de viabilizar que os entes disciplinem sua competência privativa, por força do princípio federativo, associando-se a outra entidade, que também está obrigada a desenvolver sua competência própria

4 – não necessariamente

de transferência da competência de uma entidade para a outra, o que também está abrigado no dispositivo.

A personalidade jurídica de associação, submetida ao Código Civil, enseja grande polêmica em face do artigo 37, XIX, CF, que não contemplou tal figura ao lado das autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações; tal formato é sugerido nos arts. 1º, IV, e 16 em decorrência do art. 41, IV, do Código Civil; no entanto, para submeter-se ao direito privado, a matéria, mais uma vez, exigiria lei complementar, na forma da parte final do dispositivo

5 que autorizaria o uso da personalidade de direito privado. A

linha sustentada é no sentido de que a lei cria a autarquia, mas apenas autoriza a criação de empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações. Para este caso – de autorização de criação dessas entidades – é que se exige 4

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo das concessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p 442-443.5 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo em debate. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2004. p. 176.

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a lei complementar, autorizando que o Estado renuncie às suas prerrogativas de autoridade para atuar nos mesmos espaços e sob o mesmo regime do setor privado, excepcionando as regras da livre iniciativa e da subsidiariedade.

Aqui, apenas o consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração indireta de cada um dos entes da Federação consorciados (art. 6º, § 1º), sendo composto por uma assembléia geral, como a instância máxima do consórcio público, integrada exclusivamente pelos Chefes do Poder Executivo dos entes consorciados, que, para determinados atos, poderão indicar substitutos. Este formato não foi rejeitado pelo Eg. STF, como relatado

6.

No entanto, embora admissível a figura da autarquia interfederativa, a associação de direito civil, não contemplada no art. 37, XIX, CF, mereceria ser objeto de discussão em Ação Direta de Constitucionalidade para afastar as dúvidas que frustrariam o objetivo de estabilidade nas relações consorciais.

6. O princípio da realidade e a complexidade da contratação

A novidade não parece compatível com a realidade técnica encontrada na grande maioria dos municípios, que deveriam dispor de um quadro funcional aparelhado a promover os vários ajustes idealizados. A seqüência de atos envolve: (1) um protocolo de intenções; (2) uma ratificação por autorização legislativa; (3) um contrato de consórcio; (4) elaboração do estatuto do consórcio; (5) o contrato de rateio, por meio do qual os entes da Federação consorciados comprometem-se a fornecer recursos para a realização de despesas do consórcio público (que depende, pois, da previsão de recursos orçamentários que suportem o pagamento das obrigações contratadas, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e criminal dos gestores do consórcio público e da entidade da Federação contratante); (6) o contrato de programa (instrumento pelo qual são constituídas e reguladas obrigações que um ente da Federação, inclusive sua administração indireta, tenha para com outro, ou para 6

Vide: ACO 503 / RS -.Relator(A): Min. Moreira Alves. Julgamento: 25/10/2001. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 5 set. 2003 p. 00030 Ement v. 02122-01 p. 00032; RE 120932/RS – Recurso Extraordinário. Relator(A): Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento: 24/03/1992. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 30 abr. 1992 p. 05725 Ement v. 01659-02 p. 00255 RTJ v. 00141-01 p. 00273; AI 148917 AgR / PR – Ag.Reg no Agravo de Instrumento. Relator(a): Min. Ilmar Galvão. Julgamento: 24/05/1994. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 9 dez. 1994 p. 34087 Ement v. 01770-03 p. 00612.

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com consórcio público, em razão da prestação de serviços públicos por meio de gestão associada ou da transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos).

Em se admitindo a associação de direito privado, ainda devem ser percorridos os requisitos para a atribuição de sua personalidade, criando-se a associação, que é meramente autorizada em lei e promovendo-se o seu registro.

Tudo isso sem falar em obrigações que já existem e não são cumpridas, como o prévio planejamento (mediante identificação, qualificação, quantificação, organização e orientação de todas as ações, públicas e privadas, por meio das quais um serviço público deve ser prestado ou colocado à disposição de forma adequada), que, previsto no art. 174 da Constituição de 1988, desde a sua promulgação, não recebe o adequado tratamento político e legislativo.

Cite-se, ainda, a criação de uma estrutura de regulação, função também prevista no artigo 174, CF, para disciplina e organização de um determinado serviço público, incluindo suas características, padrões de qualidade, impacto socioambiental, direitos e obrigações dos usuários e dos responsáveis por sua oferta ou prestação e fixação, reajuste e revisão do valor de tarifas e outros preços públicos.

Igualmente, o sistema deve prever a fiscalização, que consiste no acompanhamento, monitoramento, controle ou avaliação, exercida pelo titular do serviço público, por entidades de sua administração indireta e pelos usuários, no sentido de garantir a utilização, efetiva ou potencial, do serviço público.

Essas propostas e definições vêm na esteira de um projeto de saneamento (adiante apresentado), pelo qual a União dará consultoria, centralizará as informações e condicionará o fornecimento dos recursos ao cumprimento de suas determinações, criando uma verdadeira assimetria de forças jurídicas e econômicas na Federação, esvaziando o papel dos Estados, especialmente nas regiões metropolitanas.

A prestação de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais aos serviços transferidos, dependerá da celebração de contrato de programa entre o consórcio público e cada titular dos serviços. O problema, que se destacará adiante, é a dispensa

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de licitação, em detrimento do interesse do setor privado.

7. Subscrição e reserva

A implementação é complexa. O contrato de consórcio público será tido como celebrado quando o protocolo de intenções for ratificado, mediante lei, por todos os entes da Federação que o subscreveram.

Os entes subscritores do protocolo de intenções não são obrigados a ratificá-lo; a ratificação pode ser realizada com reservas, que, aceitas, implicarão consorciamento parcial ou condicional. Mediante previsão expressa, o contrato de consórcio público poderá ser celebrado apenas por parcela dos signatários do protocolo de intenções, sem prejuízo de que os demais signatários venham a integrá-lo.

Só serão aceitas reservas que digam respeito ao ente da Federação que as apresentar à vigência de cláusula, parágrafo, inciso ou alínea do protocolo de intenções, ou que imponham condições para a vigência de qualquer desses dispositivos.

Se os demais subscritores ratificarem o protocolo de intenções após decorrido mais de dois anos de sua publicação, o ingresso no consórcio público dependerá da aquiescência unânime da assembléia geral, inclusive no que se refere a eventuais reservas, devendo o mesmo procedimento ser utilizado nos pedidos de reingresso.

Na hipótese de, antes da celebração do protocolo de intenções, o ente da Federação disciplinar por lei a sua participação no consórcio público, o contrato de consórcio público será considerado celebrado independentemente da ratificação.

Com a vigência do suficiente número de leis de ratificação do protocolo de intenções, o consórcio público adquirirá a personalidade jurídica, que, se de direito público, passará a constituir a administração indireta de cada um dos entes da Federação consorciados. Este é o ponto sobre o qual o STF poderia ter definido uma orientação, mas, no precedente do Banco Interregional centrou-se na impossibilidade de uso da forma autárquica, como mecanismo para não pagamento de tributos incidentes sobre a atividade bancária.

Tal complexo de rotinas foge, por demais, à prática e à realidade

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dos municípios brasileiros. Parece que se busca criar uma dependência da consultoria e de recursos federais, o que, frise-se, enfraquecerá o papel do Estado como organizador das políticas regionais.

O consórcio público será organizado por estatutos, cujas disposições, sob pena de nulidade, deverão atender a todas as cláusulas do contrato de consórcio público. Com isso, já não vale mais a unanimidade, mas a vontade da maioria. Isso traz vantagens, posto que a vontade de um dos entes não assume o poder de veto, mas, de outro lado, cria obrigações, inclusive de natureza financeira, contra a vontade da entidade da federação, cuja Administração Indireta integra, dando caráter permanente a uma cooperação, que, tradicionalmente, depende de harmonia entre linhas políticas. Claro que, aqui, o mote é proteger as relações de longo prazo, que, no entanto, serão firmadas sem licitação, no contrato de programa.

A autorização legislativa é importante, dado que o consórcio público poderá firmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, transferências voluntárias, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de entidades públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, celebrar contratos com os entes da Federação consorciados ou entidades de sua administração indireta, sendo, neste caso, dispensada a licitação e, tendo personalidade de direito público, poderá promover desapropriações ou instituir servidões que sejam necessárias ao desempenho de suas finalidades, nos termos de anterior declaração de utilidade ou necessidade pública ou de interesse social .

Nenhum ente da Federação poderá ser obrigado a se consorciar ou a permanecer consorciado, mas a retirada dependerá de ato formal de seu representante na assembléia geral, na forma previamente disciplinada por lei, e os bens destinados ao consórcio público pelo consorciado que se retira somente serão revertidos ou retrocedidos no caso de expressa previsão do contrato de consórcio público ou do instrumento de transferência ou de alienação.

A retirada não prejudicará as obrigações já constituídas entre o consorciado que se retira e o consórcio público, inclusive as pendentes de termo ou condição, salvo no caso de retirada do consórcio constituído por apenas dois entes, que implicará sua extinção.

8. Previsão de um quadro próprio de servidores do consórcio

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O protocolo deve estabelecer o número, as formas de provimento e remuneração dos empregados públicos e os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público. Confirma-se a idéia de que são cooperações não permanentes.

Isso se contrapõe à possibilidade de os integrantes do consórcio público cederem servidores, na forma e condições da legislação de cada um, permanecendo no seu regime jurídico originário, e os pagamentos serão contabilizados como créditos hábeis para operar compensação com obrigações previstas no contrato de rateio. Esta pareceria ser uma opção que mais preservaria a autonomia das entidades federadas.

O IBAM, sem contestar um quadro próprio do consórcio, entende que a única disciplina viável é o regime celetista, que acabou sendo acolhida, embora o regime funcional devesse depender da necessidade, ou não, do uso de autoridade (já que esta impõe o regime estatutário).

9. Obrigações financeiras

É nula a cláusula do protocolo de intenções que estabeleça determinadas contribuições financeiras ou econômicas de ente da Federação ao consórcio público, salvo a doação, destinação ou cessão do uso de bens móveis ou imóveis e as transferências ou cessões de direitos operadas por força de gestão associada de serviços públicos. Isso acaba por criar a necessidade de um contrato de rateio, perfeitamente dispensável se o convênio ou consórcio tivesse uma cláusula de empenho das verbas vinculadas ao projeto comum.

É passível de exclusão, após prévia suspensão, a entidade consorciada que não consignar, em suas respectivas leis orçamentárias anuais e créditos adicionais, as dotações suficientes para suportar as despesas a serem assumidas com o contrato de rateio.

É, no entanto, vedado ao consórcio contratar operações de crédito e conceder garantias.

Havendo restrição na realização de despesas, de empenhos ou de movimentação financeira, ou qualquer outra derivada das normas de direito financeiro, poderá o ente da Federação consorciado diminuir o valor dos pagamentos previstos no contrato de rateio, desde que comunique ao consórcio público por notificação escrita.

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O contrato de rateio não poderá custear projeto ou atividade não específicos ou de natureza meramente financeira, especialmente transferências e operações de crédito.

10. Contrato de programa

A lei prevê que devem ser disciplinadas por contrato de programa, sob pena de nulidade, as obrigações que ente da Federação, inclusive sua administração indireta, constituir para com outro, ou para com consórcio público, em virtude de prestação de serviços públicos por meio de gestão associada, ou de transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

Também foi estabelecido que o contrato de programa será celebrado por dispensa de licitação e deverá atender a todas as exigências de planejamento, regulação e fiscalização fixadas ou que venham a ser fixadas pelo titular dos serviços ou pelo consórcio público.

Só aqui temos duas polêmicas que a Lei de PPP, em sua versão final, procurou evitar. A primeira, ao chamar as PPPs de “concessões” (administrativas e patrocinadas), fugindo da discussão que poderia ocorrer em relação à delegação de serviço fora das hipóteses previstas no art. 175, CF.

Parece claro, no entanto, que o dispositivo se aplica a parcerias com o setor privado e não entre entidades públicas, sendo da essência do Federalismo a cooperação entre as entidades federadas.

A segunda, a dispensa de licitação, também pode ensejar discussão, em face do art. 175, CF, que prevê que a delegação será “SEMPRE” precedida de licitação.

Com isso, as empresas estatais podem receber delegação sem licitação, por meio de um contrato, que deve atender à legislação de concessões e permissões de serviços públicos.

Ora, tal regra não viola o art. 175, CF, porque se trata, frise-se, de parcerias entre entidades da Administração Pública (e não com pessoas de direito privado). Poderia haver violação do art. 241, CF, que só trata dos consórcios e dos convênios de cooperação. Claro que isso é uma interpretação literal, não cabendo, numa primeira leitura – que é o que aqui se propõe a fazer – traçar

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conclusões definitivas sobre a invalidade de uma norma de cooperação.

Por outro lado, pode afrontar os princípios da livre iniciativa e da economicidade. O Estado deve se concentrar nos setores em que não obtém recursos privados, fazendo uso da PPP onde estes não foram suficientes. Valeria a idéia de subsidiariedade.

No entanto, aqui entra mais uma parte da manobra estatizante, que é o limite elevado para uso dos contratos de PPP, estabelecido no art. 2º, § 4º, I, da Lei nº 11.079, de 30.12.2004.

Por um lado, a norma goza de presunção de constitucionalidade, porque o objetivo da PPP é concentrar recursos em grandes projetos, definidos como prioritários, evitando-se a pulverização. No entanto, de outro lado, a maioria esmagadora dos municípios (e, quiçá, Estados) brasileiros não vai poder fazer uso de tais contratos, sendo forçados a fazer uso do sistema de consórcios como proposto. Aí, depois de percorridas todas as etapas, será difícil optar pela licitação para a escolha do concessionário, forçando o consórcio a cair na tentação da contratação direta com estatais. Reduz-se, com a estratégia, o campo de competição.

Em nítida aplicação do princípio da subsidiariedade, a União somente participará de consórcios públicos em que também façam parte todos os Estados em cujos territórios estejam situados os Municípios consorciados, podendo celebrar convênios com os consórcios públicos, com o objetivo de viabilizar a descentralização e a prestação de políticas públicas em escalas adequadas.

11. Os consórcios públicos e os serviços públicos de saneamento básico

Como dito, a disciplina dos consórcios veio à tona no bojo da discussão de propostas para o problema do saneamento, já que para outros setores de infra-estrutura a solução estaria nas concessões comuns e nos novos formatos criados pela Lei nº 11.079/2004, que trata das PPPs.

O Projeto de Lei de Saneamento Ambiental cuida de instituir as diretrizes para os serviços públicos de saneamento básico e a Política Nacional de Saneamento Ambiental, sob a sigla PNSA, e foi resultado de consulta pública (que se desenvolveu em paralelo à consulta do PL sobre os Consórcios

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Públicos).

A iniciativa do Poder Executivo foi preservada no que concerne à definição de políticas e criação de estruturas e funções no âmbito da Administração, assim como, ressalvados alguns aspectos, foi igualmente observada a competência federal para dispor sobre normas gerais de preservação ambiental (CF, art. 24, VI, VII e VIII), bem como para instituir sistema de gerenciamento de recursos hídricos (art. 21, XIX), ainda que, eventualmente, alguns dos temas tratados exijam lei complementar, por se tratar de matéria de competência comum da União, Estados e Municípios (CF, art. 23, parágrafo único).

A grande polêmica já começa ao se estabelecer como serviços públicos de saneamento básico de interesse local aqueles destinados a atender exclusivamente um Município, incluindo a captação, a adução, o tratamento, a reservação para abastecimento público, o transporte e o tratamento de água, bem como a destinação de esgotos sanitários, o transbordo e transporte, o tratamento e a disposição final de resíduos sólidos urbanos.

Ora, o tema está há alguns anos no Eg. Supremo Tribunal Federal (ADI 1842/RJ) e já recebeu o primeiro voto, em 12.04.2004, do então Relator Ministro Maurício Corrêa, no sentido da competência estadual para dispor sobre a criação de região metropolitana (ação direta ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT contra dispositivos da LC nº 87/97, do Estado do Rio de Janeiro – que “dispõe sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sua composição, organização e gestão, e sobre a Microrregião dos Lagos, define as funções públicas e serviços de interesse comum e dá outras providências” –, e os artigos 8º a 21 da Lei nº 2.869/1997, do mesmo Estado, que dispõe sobre o regime de prestação do serviço público de transporte ferroviário e metroviário de passageiros, e sobre o serviço público de saneamento básico no mencionado Estado, e dá outras providências).

O voto não acolheu as alegações de que as citadas normas teriam usurpado, em favor do Estado e em detrimento dos municípios que integram a chamada Região Metropolitana do Rio de Janeiro, funções e serviços públicos de competência municipal. Com base em precedente do próprio STF, decidiu-se que a instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões depende apenas de lei complementar estadual (ADI 1841/RJ, DJU de 20.9.2002). Concluiu, portanto, pela legitimidade da atuação legislativa do Estado do Rio de Janeiro, bem como pela mitigação

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da autonomia municipal nas matérias que a lei complementar transferiu para o Estado. Proferiu, então, voto no sentido de julgar improcedente o pedido formulado, por considerar legítima a reunião de municípios territorialmente próximos pelo Estado-membro, cujo objetivo é o de facilitar a busca de soluções que atendam à coletividade da região, e não apenas a cada um dos municípios isoladamente considerados, por meio de ações conjuntas e unificadas, prestigiando-se a concretização do pacto federativo e os princípios da eficiência e da economicidade. O Ministro Maurício Corrêa ressaltou, ainda, o fato de que as decisões de interesse dessas áreas devem ser compartilhadas entre os municípios que as compõem e o Estado, assumindo, este último, responsabilidade pela adequada prestação dos serviços metropolitanos.

Ao arrepio desse reconhecimento judicial das regiões metropolitanas é que surge a disciplina dos consórcios, valorizando competências federais em detrimento dos Estados.

Ainda que o dispositivo proposto traga o sofisma de que só se aplica quando o serviço interessar a um só município, é sabido que o sistema constitucional de competências não prevê águas municipais – salvo as de sua captação no subsolo –, o que deveria ser explicitado para evitar qualquer distorção na aplicação da legislação ambiental.

Igualmente polêmica a discussão sobre a função de regulador ser ou não atribuída ao poder concedente, o que é outro tema polêmico em discussão no Congresso Nacional, no Projeto de Lei que trata do Regime Jurídico das Agências Reguladoras.

Como já dito, pela proposta de Lei de Saneamento Ambiental, o contrato de programa é “instrumento pelo qual são constituídas e reguladas obrigações que um ente da Federação, inclusive sua administração indireta, tenha para com outro, ou para com consórcio público”. O dispositivo contratualiza o que deveria ser matéria de convênio – soma de esforços – não merecendo apoio, posto que o tema já é adequadamente tratado no art. 116 da Lei nº 8.666/93, dispensando o surgimento de nova figura que foge à tradição de mecanismos de cooperação entre as entidades federadas (o art. 241, CF, só fala dos consórcios e dos convênios de cooperação).

As diretrizes para os serviços públicos de abastecimento de água devem cuidar do grave problema das leis locais que estabelecem gratuidades e fundos de universalização sem assegurarem compensações para a preservação do

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equilíbrio dos contratos. A matéria é de política tarifária, mas envolve, também, uma norma geral de concessão, já que ou o concedente ou os demais usuários serão onerados.

Ao tratar da destinação da água fornecida pelos serviços (prioritariamente para o consumo humano, a higiene doméstica, dos locais de trabalho e de convivência social e, secundariamente, como insumo ou matéria prima para atividades econômicas e para o desenvolvimento de atividades recreativas ou de lazer), deve se cuidar da irrigação e dos animais, tema já contemplado na Lei de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Trata-se de questão que deve ser harmonizada, pois é típico problema regulatório definir a destinação de um bem escasso. As diretrizes devem contemplar, ainda, o incentivo ao reuso da água, à reciclagem dos demais constituintes dos esgotos e à eficiência energética, condicionado ao atendimento dos requisitos de saúde pública e de proteção ambiental pertinentes. Trata-se de negócio altamente rentável, que mereceria uma definição se se trata de mera atividade interna das empresas de saneamento ou se essa reciclagem compreende um outro serviço público, a depender de licitação para a escolha do prestador.

Ao se dispor sobre as diretrizes para os serviços públicos de manejo dos resíduos sólidos, (estabelecendo o incentivo e a promoção da inserção social dos catadores de materiais recicláveis, mediante iniciativas de apoio à sua organização para a formação de associações ou de cooperativas de trabalho), deve se atentar para o fato de que se estabelece um novo sistema de delegação para a realização da coleta, processamento e destinação comercial de materiais recicláveis. O tratamento do tema atualmente se dá como uma mera terceirização da atividade, nos termos da Lei nº 8.666/93, mantendo o Poder Público a responsabilidade pela gestão do serviço.

Deve haver um papel fomentador da reciclagem por meio das contratações governamentais, privilegiando a opção pelo material reciclado, sempre que compatível com as necessidades do serviço.

O projeto, em vários dispositivos semelhantes, traz para o plano federal uma responsabilidade local ou regional de estabelecer modelos de contratos de fornecimento de serviços públicos, cujas cláusulas disciplinarão as relações de complementaridade no que não dispuser em contrário o contrato de fornecimento de serviço público celebrado pelos interessados.

Na mesma linha, dispõe que os regulamentos da Lei poderão instituir

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instrumentos de regulação de referência, diferenciados em razão da natureza, da escala e complexidade dos serviços, que serão observados no que não contrariarem instrumento de regulação instituído pelo titular dos serviços – o que inverte a ordem do artigo 24 e seus parágrafos, da Constituição Federal.

Tais medidas são parte do grande plano do projeto, de centralizar na União, especificamente, no Ministério das Cidades, o tratamento de um bem essencial à vida. Nenhuma concentração de poder é compatível com o Estado Democrático de Direito e com o Princípio Federativo. Nada impede que surjam tais modelos, que não precisam estar contemplados na norma, que, como se verá adiante, prevê mecanismos de coerção para a sua adoção.

Dentre os direitos do usuário, o de não ser onerado pelos investimentos caso demonstre que não tenham sido previamente planejados, salvo quando decorrentes de fato imprevisível, exige a disciplina das gratuidades. Entre as garantias aos usuários quanto ao exercício de seu direito de fiscalização dos serviços públicos, deve se reconhecer o direito de entidades representativas, além de não se pretender que os serviços prestados sejam visíveis aos usuários – o transporte e tratamento de resíduos sólidos, por exemplo, é uma etapa do serviço de saneamento que nem sempre é visível aos usuários e já houve tentativa de obstaculizar judicialmente a concessão de tal serviço sob o argumento de que inviabilizava a fiscalização (Município de Nova Iguaçu).

A sistemática de reajustes e de revisões das tarifas e suas periodicidades é tema de direito monetário e em tempos de inflação deve ser assegurada a preservação do equilíbrio dos contratos de modo a não comprometer a qualidade de prestações essenciais. Ademais, a revisão independe de previsão contratual e pode se dar sempre que fato imprevisível causar onerosidade excessível. Apenas as revisões programadas, para assegurar a partilha de ganhos de eficiência, devem prever uma periodicidade mínima. O ideal, para tanto, seria prever um sistema de planilhas e não de índices, de modo a colaborar com uma tarefa não encerrada de desindexar a economia, fazendo com que só a variação dos custos dos insumos efetivamente usados fosse contemplada nos reajustes e revisões, prevendo-se conseqüências para a não apreciação das planilhas nos prazos.

Ao se prever que os serviços públicos de saneamento básico, tanto quanto possível, deverão ter a sustentabilidade econômico-financeira assegurada, deve se atentar para o fato de que não se pode dar às taxas a mesma disciplina

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das tarifas, servindo também o tributo para garantir a recuperação dos custos e gastos incorridos na prestação do serviço e para assegurar remuneração adequada do capital investido pelos prestadores dos serviços, em níveis compatíveis com os custos de oportunidade de sua alocação em setores de riscos similares, ou a taxa de juros de longo prazo aplicável ao financiamento de investimentos em áreas afins e adicionadas do risco médio do setor. Tal raciocínio ainda não é compatível com as tradições do direito tributário e por isso deveria ser o divisor da decisão política de custear o serviço por taxa – sem tais preocupações (talvez operassem como limites à fixação da base de cálculo, o que deveria vir por lei complementar) – ou por tarifa.

As taxas e tarifas de serviços públicos de saneamento básico não poderão incorporar custos ou despesas relativas aos pagamentos pela outorga de concessão, permissão, parceria público-privada ou de qualquer outra forma de delegação ou de prestação dos serviços por terceiros. Na prática, isso impede Estados e Municípios de cobrarem pelo uso do bem escasso, o que retira grande parte da racionalidade na sua gestão – embora torne a tarifa menos onerosa (e, com isso, eventualmente, desestimule a economia no uso de tal bem).

Em nova invasão de competência, a proposta estabelece que seu regulamento fornecerá diretrizes e parâmetros técnicos a serem obrigatoriamente observados na definição das taxas e das tarifas, ou de outros preços públicos, pela prestação dos serviços de saneamento básico. Ora, o art. 175, CF, exige “lei” para tal disciplina.

Mais uma vez, na linha da centralização (já criticada), se prevê que o regulamento instituirá, em função de cada serviço, da escala de sua prestação e de outros critérios, modelos de sistemas de composição e estruturação tarifária que serão observados no que não contrariarem a legislação do titular dos serviços.

Ao dispor sobre a Política Nacional de Saneamento Ambiental – PNSA, enumera o conjunto de ações e normas a serem executadas e observadas por todos os órgãos e entidades que integram o Sistema Nacional de Saneamento Ambiental – SISNASA, com os objetivos de assegurar o cumprimento das diretrizes que define, incluindo o estabelecimento de mecanismos de regulação e fiscalização dos prestadores dos serviços. A matéria é típica de lei complementar, conforme previsto no art. 23, parágrafo único, CF.

A coerção pela centralização é clara ao se estabelecer que integram o

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SISNASA os órgãos e entidades da União e as entidades que estejam direta ou indiretamente sob o seu controle, bem como os órgãos e as entidades integrantes da administração direta ou indireta dos entes da Federação e as entidades privadas que voluntariamente venham a aderir à PNSA.

A adesão poderá ser expressa ou tácita, mediante o recebimento, pelo titular ou pelo prestador de serviço público de saneamento ambiental, de transferências voluntárias da União ou a celebração de contrato, convênio ou outro instrumento congênere com a Administração Direta ou Indireta da União, entidades ou fundos direta ou indiretamente sob o seu controle, gestão ou operação ou com entidades de crédito que se utilizem de recursos da União ou de fundos geridos ou operados por órgão ou entidade da União. Ora, o FGTS é o grande financiador de recursos, que não são facilmente obtidos por outras fontes. Fica, assim, consolidada, de maneira sutil, a centralização nas mãos do Ministério das Cidades, que, como se verá, é o todo poderoso, fechando portas para as autonomias das entidades federadas nessa matéria (já que define que todos os órgãos e entidades que integram o SISNASA estão sujeitos às normas expedidas no âmbito da PNSA, sendo sua observância condição de validade para os atos os e negócios jurídicos de interesse para o saneamento ambiental).

O Conselho Nacional de Integração de Políticas de Saneamento Ambiental – CONISA, como os demais conselhos que formulam políticas, não deve ter composição apenas pública, pois não valoriza o direito de participação de entidades representativas, de modo a legitimar a formulação das políticas públicas não só pelas audiências públicas, que não têm caráter decisório.

É verdade que o Conselho tem menor expressão, tendo em vista que, na criticada centralização, se estabelece que o Ministério das Cidades é o órgão central do SISNASA, competindo-lhe estabelecer indicadores de desempenho da prestação dos serviços e índices de referência para investimentos e, especialmente, desenvolver Indicador de Salubridade Ambiental – ISA aplicável à avaliação da situação nos territórios de cada ente da Federação, nas regiões e no país.

Ainda na linha da centralização, são elencados os órgãos colegiados do SISNASA, esvaziando os Estados, colocando as cidades diretamente ligadas à estrutura federal, que estabelece que as normas técnicas de funcionamento e as responsabilidades, no âmbito da PNSA/SISNASA, do Conselho da Cidade, ou de órgão colegiado municipal equivalente, serão definidas pelo Conselho

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das Cidades.

O planejamento indicativo para o setor público (para sugerir uma autonomia das entidades federadas), contrariando o art. 174, CF, é facilmente afastado pela linha da centralização da proposta, que define que o plano de saneamento ambiental em vigor é condição essencial para as contratações da prestação de serviços ou de parceria público-privada de interesse do saneamento ambiental, ou para as outorgas de concessão, de permissão ou de outras formas de delegação de serviços públicos de saneamento básico. Os planos estaduais de saneamento ambiental devem ser compatíveis com os objetivos, as diretrizes e as metas do PNS e prever avaliação periódica de sua execução pelo Conselho Estadual das Cidades, ou órgão colegiado equivalente. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem organizar sistemas de informação em saneamento ambiental com estruturas e bases equivalentes ao SNISA, ao qual deverão ser gradualmente integrados.

Em síntese, a proposta preenche importante espaço no direito positivo pátrio, pretendendo criar um marco regulatório para o setor, mas o que exige severa reflexão é a excessiva centralização, já que hoje os recursos para o saneamento se concentram em bancos oficiais federais – CEF e BNDES.

Uma verdadeira federação repudiaria tal concentração, mas, por outro lado, a excessiva criação de municípios e mesmo de Estados que vivem de transferências governamentais – voluntárias ou constitucionais – cria um arremedo de federação, com entidades que, por não conseguirem sobreviver com seus próprios recursos, dependem da União, que, por sua vez, tem lançado mão, cada vez mais, do uso do aumento de carga tributária não compartilhada com as demais entidades federadas (ex.: as contribuições), retirando poupança que poderia ser carreada para os investimentos, para fazer tal distribuição.

Outra reflexão importante é que, no plano político, a centralização proposta não é apenas para a União, mas, dentro desta, para o Ministério das Cidades, que fica armado com todas as informações relevantes sobre todos os municípios e com a “chave do cofre” (os recursos do FGTS) para dominá-los.

Primeiras conclusões na leitura inicial da Lei de Consórcios

A norma em exame é altamente centralizadora, o que fragiliza a Federação, ainda que, do ponto de vista dos interesses de entidades de atuação

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em âmbito nacional, seja mais simples lidar com uma disciplina jurídica única, de mais fácil assimilação, do que com vários formatos pelos quais pode ser formalizado um consórcio público.

Sem dúvida, o consórcio pode ter personalidade jurídica, que, ao lado da normatização nacional, simplifica o tema da segurança jurídica.

No entanto, a matéria de cooperação entre as entidades federadas deveria ser disciplinada em lei complementar (princípio federativo).

A opção pela gestão pública de serviços públicos deveria ser centralizada em setores nos quais o Estado não possa obter o aporte de capitais privados; tal decisão política, de custo de oportunidade econômica, tem sua tradução jurídica no princípio da economicidade, sem falar na livre iniciativa, que é fundamento da República, frustrada com o afastamento da licitação.

Esta, pois, uma breve apresentação dos aspectos que mais se destacam de uma primeira leitura panorâmica da disciplina dos temas apreciados, que, para alcançar a estabilidade desejada, deveria ser o objeto de ação direta de constitucionalidade, em especial, para discutir o cabimento da lei ordinária e

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O Direito Consttucional de ampla de-fesa e a denunciação da lide aos agen-

tes públicos

Fernando Lemme WeissProcurador do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Direito

Público pela UERJ, Prof. da FGV-Management e da Universi-dade Cândido Mendes

Sumário: I – O Princípio da Ampla Defesa e a Responsabilização Patrimonial ObjetivaII – A Denunciação da Lide e sua Função SocialIII – O Posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio de JaneiroConclusões

I. O princípio da ampla defesa e a responsabilização patrimonial objetiva

A função basilar do Estado é garantir a vida e o patrimônio dos indivíduos que o compõem, tanto em face de agressões externas quanto em relação às advindas dos demais membros da mesma sociedade. Esta justificação original de existência e manutenção efetiva-se através de estruturas preventivas voltadas a evitar as lesões. São sempre insuficientes, contudo, em razão da impossibilidade de onipresença física dos agentes protetivos estatais. Os problemas decorrentes desta atuação incompleta devem ser resolvidos pelo Judiciário, que tem como uma de suas funções precípuas estabelecer compensações e punições pelo desrespeito ao patrimônio alheio.

A responsabilização, seja civil ou penal, está voltada tanto ao restabelecimento da situação anterior à lesão, quanto a evitar, pedagogicamente, que o autor do dano e outras pessoas continuem a invadir a esfera de direitos das demais. O dever de respeito aos direitos alheios é o elemento agregador de uma sociedade, cujo desenvolvimento depende do somatório dos esforços

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individuais de seus membros. Para alcançá-lo, é necessário que a apropriação e manutenção dos frutos do esforço sejam protegidas pelo Estado. Por isso, é essencial que todas as pessoas sejam plenamente responsáveis pelos seus atos, pois a proliferação de agentes impunes gera insegurança. A impunidade também possui o pernicioso efeito de sobrecarregar o Estado e os indivíduos, obrigados a arcar com os custos decorrentes das múltiplas impunidades ou liberdades abusivas, sejam tributárias, processuais ou penais.

O princípio constitucional da ampla defesa é decorrência direta desta ampla responsabilização e serve para evitar que pretensões indevidas tenham o efeito de lesar direitos a pretexto de compensar, prevenir e evitar outras lesões. Representa um direito subjetivo fundamental, uma vez que inserido no capítulo constitucional próprio. Não é apenas individual, mas também coletivo, público e difuso, desde que voltado à proteção do que é de todos. Assim como todos os demais direitos fundamentais, deve ter sua plena efetividade garantida pelas leis, cujo objeto é, exatamente, a implantação dos princípios constitucionais.

Algumas condutas são tidas como totalmente inaceitáveis, pois mesmo uma pequena incidência já gera ofensa a toda a sociedade, sendo, por isso, rejeitadas através da legislação penal. Ela busca evitar o desrespeito aos princípios basilares do contrato social

1 que regula o condomínio indissolúvel

formado pela sociedade politicamente organizada. Exatamente por isso todos são diretamente interessados em evitá-las, o que justifica a iniciativa e intervenção dos representantes da sociedade na persecução penal. Outras condutas também lesivas, como o desrespeito a contratos ou ao patrimônio, são mais toleráveis não por serem lícitas, mas porque concernentes a um número limitado de indivíduos, o que justifica uma atuação judicial menos abrangente e repressiva, apenas civil. No entanto, é fundamental que tanto umas como outras possam ser eficazmente evitadas ou desfeitas, pois a proliferação da impunidade desvirtua os padrões de comportamento e a referência acerca do que é certo ou errado.

A justiça da conduta individual é aferida com base em ponderações entre a intenção geradora e os efeitos produzidos. O primeiro fator é vinculado à qualidade da conduta em relação ao socialmente esperado, e o segundo, à integridade patrimonial razoavelmente pretendida e exigível por parte de qualquer cidadão. A preponderância da análise do resultado sobre a qualidade 1 A expressão é aqui utilizada não como documento histórico ou original, mas no sentido de

regramento central de uma sociedade, representado pela Constituição e leis que complementam o seu sentido.

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da conduta, no que concerne à responsabilização patrimonial, é uma tendência moderna e especialmente acentuada no Brasil, através de institutos como a responsabilidade objetiva

2, seja do Estado, do fornecedor de mercadorias

e serviços em relação aos seus consumidores e, por fim, de todos os que exponham os demais a riscos, nos termos do parágrafo único, do art. 927, do Código Civil, in verbis:

“Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem.”

Esse dispositivo representa uma significativa mudança de rumo em relação à responsabilização patrimonial decorrente de culpa, prevista como regra geral no art. 159, do Código Civil de 1916. E é justo que assim seja, pois a associação entre culpa e castigo é uma forma religiosa de julgar a conduta (que inclui o mero pensamento), adequada quando o agente e a (pretensa) vítima do desvio estão concentrados na mesma pessoa. Contudo, fazer com que as vítimas em geral conformem-se com as vicissitudes dos que causam a lesão só é justo na medida em que tais características pessoais sejam realmente impeditivas de um comportamento adequado.

A justiça, como meta de qualidade aplicável tanto à produção normativa quanto à intervenção estatal incidente sobre os conflitos interindividuais, tem um caráter restaurador, pois a validade das transferências de direitos tem como causa a validade da vontade de transferir. A vedação ao enriquecimento sem causa, independentemente de culpa, justifica-se no direito à efetiva proteção à propriedade. Foi expressa no CC de 2002, que dispõe:

“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”

O mesmo embasamento justifica a responsabilização do Estado por seus

2 Embora represente uma evolução, paradoxalmente a responsabilização objetiva se assemelha

à forma de punição vigente na idade média, como leciona Foucault: “Na concepção da Alta Idade Média o essencial era o dano, o que tinha passado entre dois indivíduos; não havia falta ou infração. A falta, o pecado, a culpabilidade moral absolutamente não intervinham. O pro-blema era o de saber se houve ofensa, quem a praticou, e se aquele que pretende ter sofrido a ofensa é capaz de suportar a prova que ele propõe a seu adversário.” A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 2002. p. 73.

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atos, embora demandando prova mais simples. Dispõe o § 6°, do art. 37, da CF:

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

3

A previsão da responsabilidade objetiva do Estado não está diretamente disposta na norma, como no supratranscrito parágrafo único, do art. 927, mas se conclui através de um raciocínio a contrario sensu em face do direito de regresso apenas em casos de culpa dos agentes, o que evidencia ser a responsabilidade original mais ampla do que a regressiva.

A responsabilização objetiva do Estado fundamenta-se não apenas no dever de restaurar o direito de propriedade lesado, mas também no princípio da repartição de encargos. Se toda a sociedade é presumivelmente beneficiada pela atuação administrativa, cuja finalidade é prover o bem comum, justo é que o custo decorrente dos desvios de conduta seja igualmente dividido por todos, e não arcado somente pelos que sofrem com injustas restrições ou reduções de direitos, o que geraria enriquecimento sem causa (em razão da desoneração) dos demais em face destes.

4

Mas a qualificação objetiva desta responsabilidade tem também uma justificativa preponderantemente processual, que interessa mais de perto ao presente trabalho, pois a natural complexidade do Estado, decorrente de sua multiplicidade de funções, dificulta em muito a identificação dos agentes e a produção de prova da culpa. Por isso a vítima de lesões causadas por condutas do Poder Público, sejam comissivas ou omissivas, somente precisa comprovar o prejuízo sofrido e a relação entre esta perda e a referida conduta pública.

Esta facilitação processual não significa, porém, uma restrição ao direito constitucional de ampla defesa por parte da sociedade organizada, que não é obrigada a arcar integralmente com indenizações decorrentes de prejuízos para os quais a vítima contribuiu. Também nada tem a ver com o procedimento a ser adotado e não pode acarretar cerceamento do direito de defesa a ser exercido 3 A responsabilização objetiva do Estado foi introduzida pela Constituição de 1946, tendo sido

confirmada através dos arts. 105 e 107, da CF de 1967 e de sua EC n° 01/69.4 A repartição de encargos tem um desdobramento tributário que é o princípio da capacidade

contributiva, também decorrente da responsabilização coletiva pela manutenção do Poder Público.

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pelo agente público. Muito ao contrário, o mesmo § 6° trata expressamente de dois direitos subjetivos distintos e do mesmo nível: a obtenção da reparação por parte do lesado e o ressarcimento dela decorrente em face do agente público. Não existe hierarquia nem prioridade de um em relação ao outro, sendo o vínculo entre eles apenas de eventualidade.

Está implícito, também, um terceiro direito subjetivo, que tem como titular o agente público cuja conduta acarretou a ação judicial. Ele possui legítimo interesse em evitar decisões judiciais que produzam verdades processuais em desfavor de sua conduta, com graves conseqüências administrativas, civis, penais, eleitorais e morais. Não lhe pode ser subtraída a oportunidade processual de defender a validade de sua atuação contra as alegações de ilegalidade, pois só a proximidade entre a ocorrência dos fatos e a discussão judicial acerca deles permite a produção da prova adequada. O passar dos anos esvaece a memória das testemunhas, dificulta a busca de documentos e, por vezes, inviabiliza as perícias.

A garantia da responsabilização objetiva importa, apenas, na extinção do ônus de comprovação inicial da culpa, mas não tem o efeito de reduzir o espectro de discussão processual no que concerne à qualidade da conduta do autor associada à lesão ocorrida. A responsabilização objetiva não sumariza o processo nem induz à existência de privilégios processuais, ao contrário de ações com perfil constitucional de celeridade exacerbada, como o mandado de segurança e o habeas corpus. Mesmo no mandamus, é essencial a ciência do agente público para prestar informações, pois a opção pela celeridade não afasta a necessidade de apuração da verdade real.

Não há razão para concluir que o constituinte tenha pretendido reduzir o direito de defesa do Estado somente porque simplificou a exposição da pretensão dos que alegam ter sofrido lesões oriundas de condutas públicas. Por mais concisa e objetiva que seja a descrição do pedido, o Estado sempre poderá alegar culpa concorrente ou exclusiva da vítima, fato usual em questões como mortes ou lesões decorrentes de operações policiais, motins em presídios, inércia administrativa relativa a pessoas que estão sob a guarda do Estado, erros médicos e outros eventos que envolvem conduta humana inadequada. Nestas ações a responsabilidade do Estado decorre da culpa (in eligendo, in vigilando), embora tal prova não seja necessária. A distribuição da culpa entre as partes é objeto importante da lide, até por ser essencial à caracterização da eventual responsabilidade do agente, que pode sofrer conseqüências

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administrativas, se servidor de carreira; eleitorais, se for um agente político com mandato; financeiras em razão da Lei n° 8.429/92; criminais e morais, em qualquer hipótese.

A introdução do elemento subjetivo na resposta do Estado não constitui novidade processual, mas normal exercício do direito constitucional de ampla defesa. A discussão subjetiva pode ser trazida ao processo independentemente de intervenções de terceiro, pois, quando a lesão cuja reparação motivou a lide ocorreu por meio de relação direta entre pessoas, torna-se não apenas útil, mas essencial que todas tenham oportunidade de descrever sua versão, sob pena de ser o Judiciário utilizado para produzir desnecessárias ficções. Não é correto, portanto, afirmar que não pode ser introduzida discussão acerca da culpa em ações pautadas na responsabilidade objetiva.

A eventual irregularidade da conduta do agente público não é motivo para afastar a apreciação judicial. Antes constitui uma justificação para seu ingresso na lide. A legalidade é o princípio basilar da atuação estatal e apenas se coaduna com a verdade real, sendo inaceitável que tão importante princípio seja contornado através da ausência do completo contraditório acerca da atuação do Poder Público.

II. A Denunciação da lide e sua função social

O direito subjetivo constitucional do Estado a repassar, regressivamente, ao agente público o ônus das indenizações decorrentes de sua conduta deve ser implementado através de institutos processuais que garantam a efetivação desta redistribuição. Do contrário a sociedade terá que arcar com um ônus que não lhe cabe. O Código de Processo Civil de 1973 instituiu uma espécie de intervenção de terceiros provocada pelas partes denominada denunciação da lide, aplicável a todas as situações em que exista um direito de regresso decorrente de condenação, previsto em lei ou contrato. Não há dúvida de que a Constituição Federal enquadra-se no conceito de lei, referido no inciso III, do art. 70, adiante transcrito.

A CF convenientemente não mencionou ação regressiva, como o CPC, tendo optado pela expressão direito de regresso. Esta redação afasta indevidas interpretações restritivas no sentido de apenas caber ação autônoma, movida após o trânsito em julgado, para obtenção do ressarcimento regressivo. As intervenções de terceiro constituem uma segunda ação, de caráter secundário,

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no mesmo processo.

No que concerne ao ônus de promover a intimação e ao direito a ter ciência do processo, assim regulou a matéria o CPC:

“Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:I – ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta;II – ao proprietário ou ao possuidor indireto quando, por força de obrigação ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício, do locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direta da coisa demandada;III – àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva o prejuízo do que perder a demanda.”

Já em relação aos desdobramentos da intervenção do litisdenunciado, dispõe:

“Art. 75. Feita a denunciação pelo réu:I – se o denunciado contestar o pedido, o processo prosseguirá entre o autor, de um lado, e de outro, como litisconsortes, o denunciante e o denunciado;II – se o denunciado for revel, ou comparecer apenas para negar a qualidade que lhe foi atribuída, cumprirá ao denunciante prosseguir na defesa até o final;III – se o denunciado confessar os fatos alegados pelo autor, poderá o denunciante prosseguir na defesa.”“Art. 76. A sentença que julgar procedente a ação, declarará, conforme o caso, o direito do evicto, ou a responsabilidade por perdas e danos, valendo como título executivo.” (Grifos nossos)

Em relação às hipóteses previstas nos dois primeiros incisos do art. 70, decorrentes de disputa sobre direitos reais, a denunciação da lide apenas 5 Excelente estudo histórico sobre a denunciação da lide é trazido por Milton Flaks. No Direito

Pátrio a intervenção de terceiros, que se manteve estável ao longo das ordenações, começou com o chamamento à autoria, através do Regulamento n° 737, de 1850, que a conceituava como: “ato pelo qual o réu, sendo demandado, chama a juízo aquele de quem houve a coisa que se pede”. Em 1876 foram consolidadas as leis do Império, através de resolução editada em 18 de dezembro. O instituto pouco mudou, tendo sido introduzida a possibilidade de chamamento em caso de posse em nome próprio ou alheio. Proclamada a República, o Dec. n° 763/1890 determinou o retorno ao Reg. n° 737. Em 1889 foi editada a chamada Consolidação Higino, aprovada pelo Decreto n° 3.084, que reproduziu e aperfeiçoou o Reg. 737. Os códigos esta-duais também não tratavam da denunciação da lide com a configuração de direito de garantia genérico, omissão que foi mantida com o CPC de 1939. Denunciação da lide. Forense: Rio de Janeiro, 1984. p. 31-52.

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reproduziu ou aperfeiçoou institutos como o chamamento à autoria ou nomeação à autoria, já previstos nos arts. 95 e seguintes do CPC de 1939 e tradicionais em diversas escolas jurídicas

5, notadamente a italiana que trata o

assunto através da chiamata in garantia. Giuseppe Chiovenda 6, comentando

os arts. 193 e seguintes do CPC italiano, assim aduz acerca da chamada em garantia, instituto semelhante à nossa denunciação da lide:

“Quais os casos em que se responde pela derrota de outrem, é questão de direito substancial. Seria, contudo, arbitrário restringir o campo da chamada em garantia a alguns desses casos de responsabilidade, como a transmissão de direitos e a coobrigação especialmente solidária: qualquer que, por fato seu, expõe outros a uma ação e responde por sua derrota na lide, pode ser chamado a responder na lide mesma; a razão do instituto autoriza-o por igual em todos os casos.” (Grifo do original)

A novidade da lei de 1973 está no inciso III, que através de uma intervenção na ação deu efetividade ao direito de regresso em situações como a prevista no § 6°, do art. 37, da CF e buscou a pronta e célere efetivação deste direito com economia de tempo e dinheiro para as partes e Judiciário. A denunciação da lide representa uma verdadeira demanda incidental de garantia

7 voltada a

apurar a verdade desde já e prontamente estabelecer, de forma cogente para todos os interessados, as conseqüências de seus atos. Ovídio Baptista da Silva

8

esclarece que a denunciação da lide tem duplo propósito: provocar o ingresso do denunciado para que preste assistência ao denunciante e fazer o denunciado responder pela indenização porventura devida ao adquirente.

A leitura do inciso III, do art. 75, deixa claro que a confissão dos fatos pelo denunciado não é um vício do instituto, a ser evitada a todo custo através da proibição à denunciação. Trata-se de um desdobramento processual natural e saudável, que garante a justiça da prestação jurisdicional e o respeito aos direitos do cidadão, fim maior do Estado Democrático de Direito.

6 Instituições de direito processual civil. Tradução J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva,

1969. v. 2, p. 249-251. Enrico Tullio Liebman, em comentário de rodapé, esclarece que este instituto importa no julgamento, na mesma sentença, da ação original e da ação de regresso. Esta possibilidade afasta a solução italiana contemporânea das raízes restritivas romanas, quando a solução era a ação regressiva posterior era necessária.7 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2001. v. 1, p. 173.8 Curso de processo civil. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 1, p. 297.

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Não é correto, portanto, produzir interpretações contra legem para afastar o direito de todas as partes à denunciação da lide, em razão da possibilidade de confissão, que poderia vir a prejudicar a defesa do Estado. Não se trata de prejuízo, pois não está ocorrendo lesão a patrimônio previamente existente, mas sim de evitar o enriquecimento sem causa. A possibilidade de deslealdade processual sempre existe, em qualquer processo, o que não justifica a exclusão das partes. Este mesmo raciocínio também é aplicável aos testemunhos, perícias, documentos e provas em geral. É melhor correr o risco de não alcançar a justiça do que previamente afastar esta possibilidade.

Também é ofensivo, tanto à lei processual quanto à garantia constitucional do direito de regresso, impedir a denunciação da lide sob a alegação de que ela introduzirá um novo aspecto valorativo na mesma lide, pois a discussão da culpa inerente ao direito de regresso por parte do Estado seria muito mais ampla do que a limitada discussão acerca do dano e nexo causal, trazida pelo autor da ação.

Como já aduzido, em quase todas as ações de indenização movidas contra o Estado estão presentes questionamentos sobre a culpa concorrente ou exclusiva do autor, que demandam a análise dos fatos e produção de provas. As exceções ficam por conta de demandas decorrentes de condutas impessoais, entre eles pedidos de distribuição gratuita de medicamentos ou a proibição do exercício de atividades anteriormente consideradas lícitas, como, por exemplo, a fabricação de produtos químicos, armamentos e outros produtos potencialmente perigosos. O mesmo se aplica às ações oriundas de decisões discricionárias incidentes sobre a gestão do patrimônio público, como a realização de longas obras em vias, que prejudicam atividades econômicas, ou a mudança de destinação de bens públicos de uso comum do povo.

A discussão sobre a presença da culpa autoral, que nada tem a ver com a responsabilização objetiva ou subjetiva de quem causa a lesão, mas afeta o dever de indenizar, é freqüente e está intimamente ligada à demonstração de culpa do agente público. É comum que a mesma prova sirva às duas análises, principalmente em relação às agressões desmedidas por parte de autoridades policiais, colisões de trânsito e outras lesões violentas. Mesmo as indenizações pautadas em falhas de serviço, como hospitalares, educacionais e recreativos, dependem de, ao menos, uma sucinta descrição de conduta por parte dos agentes públicos, demonstrável através de documentos e testemunhos, por vezes dos próprios agentes, que interviriam no processo com mais seriedade e responsabilidade se fossem partes e não apenas sujeitos processuais

74 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

transitórios.

Parte da jurisprudência pátria vem se postando favoravelmente à denunciação da lide pela Fazenda Pública aos seus agentes, principalmente no Superior Tribunal de Justiça.

9 Neste mesmo tribunal, no entanto, são

proferidos acórdãos afirmando ser “incabível a denunciação à lide, uma vez que, sendo a responsabilidade do recorrente objetiva, independe de aferição de existência de culpa ou não, por parte de seus agentes.”

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Com o claro objetivo de evitar o desperdício de energia processual decorrente de anulação do processo, em razão do reconhecimento por tribunais superiores da ocorrência de cerceamento de defesa, recente acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná ratifica a principal justificativa da denunciação da lide, retirada de decisão do STJ :

“Em nome da celeridade e da economia processual, admite-se e se recomenda que servidor público, causador do acidente, integre, desde logo, a relação processual e se resolva, desde logo, numa única ação a responsabilidade do Estado e de seu agente.”

11

9 Considerando recomendável a denunciação da lide – STJ, 1ª T., Rel. Min. Garcia Vieira, RESP

n° 594/RS, 07/11/1996, RT n° 667/172. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 37. ed. Rio de Janeiro: Forense, Rio de Janeiro, 2001; Apenas admitindo quando requerida - STJ, Res n° 392.240-DF, 2ª T., Rel. Minª. Eliana Calmon, pub. 19/08/2002, Distrito Federal x Simonia Francisca Pereira da Silva; STJ, 1ª T., AR. no AI N° 471.590-PR, Rel. Min. Francisco Falcão, julg. 17/06/2003, União Federal x Celina Feliciana Coelho; STJ, 1ª T., AR. no REs n° 313.886-RN, Rel. Min. Francisco Falcão, julg. 18/02/2003, Estado do Rio Grande do Norte x Maria Ciumar Costa de Oliveira; STJ, 1ª T., Rel. Milton Luiz Pereira, REs n° 167.132-RJ, pub. 05/08/2002, Estado do Rio de Janeiro x Paulo Roberto de Seabra. Decisões de Tribunais de Justiça Estaduais, considerando a denunciação da lide mera faculdade processual da Fazenda Pública, mas vinculativa para o juiz quando exercida: TJ-SP, AP. Cível n° 086.948-5/3, Rel. Des. Luiz Tâmbara, julg. 05/02/2001; TJ-PR, 1ª CC, AI n° 078812300.10

RESP n° 584.701/RJ, pub. 08/03/2004, 1ª T., Rel. Min. José Delgado.11

TJ-PR, 6ª CC, Rel. Des. Leonardo Lustosa, AI n° 134658300, julg. 30/04/2003. O acórdão menciona os acórdãos: STJ, RESP n° 149.999/PR, Rel. Min. Garcia Vieira, julg. 31/03/1998, e o RE n° 90.071-3, RTJ n° 96/237.12

Vicente Greco Filho entende não ser admissível o chamamento do agente causador do dano na ação de indenização que o particular intentar contra a administração para haver os prejuízos sofridos, uma vez que o fundamento desta causa é diverso do da ação regressiva. Direito processual civil brasileiro. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. v. 1, p. 146. No mesmo sentido José dos Santos Carvalho Filho, em seu Manual de direito administrativo. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. p.453.13

Direito administrativo brasileiro. 14. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 416.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 75

Parcela respeitável da doutrina, no entanto, entende que o inciso III, do art.70, não deve ser aplicado em relação às ações movidas contra a Fazenda Pública, pois a denunciação da lide introduz discussão subjetiva em demanda objetiva, argumento que já foi atacado.

12 Hely Lopes Meirelles

13

chega a afirmar ser incabível a denunciação por mencionar a Constituição ação regressiva, o que não é correto, pois a menção é apenas ao direito de regresso, sem especificar a forma como será implementado. A comparação entre a redação dos parágrafos 5° e 6°, do mesmo art. 37, demonstra que o constituinte foi técnico ao utilizar distintamente os conceitos de direito de regresso e ação de ressarcimento.

Hely também funda sua posição na eventual dificuldade do servidor em ressarcir os prejuízos decorrentes de uma eventual confissão. Com a devida vênia, mesmo que isso realmente ocorra, não será motivo para criar uma categoria de cidadãos irresponsáveis, constituída exatamente pelos que têm a função de atender aos interesses de todos. É temerário estimular a irresponsabilidade de quem tem poder, acenando com a impunidade decorrente da imensurável postergação da ação de regresso.

Tais doutrinadores não explicam porque é cabível a denunciação nas outras ações em que tal ampliação da discussão também ocorre, mas não está presente a Fazenda Pública em juízo. É incoerente que justamente o Estado, que representa toda a sociedade, sofra uma significativa redução de seu exercício constitucional de ampla defesa sem qualquer respaldo legal, nem motivo que justifique a discriminação em relação a outros responsáveis de forma objetiva. Tais teses restritivas colidem com o princípio da plena efetividade dos princípios constitucionais, pois impedem a eficácia social do direito de regresso.

14 O processo é meio de realizar a justiça e não um fim em

si mesmo. As soluções, como intervenção de terceiros, estão direcionadas à economia processual, que não é apenas a agilização de um processo, mas a otimização de recursos em todo o Judiciário, sistema de produção e restauração de paz social.

Bem fundamentada corrente doutrinária, capitaneada por Humberto

14 Como ensina Luís Roberto Barroso, eficácia social é a concretização do comando normativo,

sua força operativa no mundo dos fatos (processuais, no que concerne ao direito de regresso). O Direito constitucional e a efetividade de suas normas. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 84.15

THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 112-113.

76 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Theodoro Junior, entende que a denunciação ao servidor é uma opção processual, não obrigatória, mas irrecusável pelo juiz se exercida.

15 Este autor

elabora inteligente crítica à tese da inadmissão de denunciação, aduzindo que sempre há diversidade de natureza jurídica entre o objeto da lide principal e aquele pelo qual litigam denunciante e o denunciado. Exemplifica com a reivindicação, na qual o objeto original da lide é a qualidade do título dominial. Já entre denunciante e denunciado, a discussão será sobre a existência ou não da obrigação de responder pela evicção. Idem no que concerne à denunciação feita à seguradora, em caso de acidente. O pedido principal está atrelado à culpa do réu e o secundário, à abrangência da apólice, à regularidade da notificação e a outros requisitos para a cobertura.

Milton Flaks16

demonstra que a configuração brasileira do instituto da denunciação é baseada no sistema germânico, pois a denúncia introduz no processo um segundo litígio, secundum eventum litis. É bem distinto do outro sistema básico, o romano, que não dispensa, em hipótese alguma, a subseqüente ação regressiva, se vencido o denunciante na lide originária.

Em apertada síntese do ensinamento deste mestre processual, podemos concluir que existem preocupações comuns aos diversos modelos de chamada em garantia: a) prestigiar a verdade judiciária e evitar julgamentos conflitantes, através da prévia vinculação do denunciado à sentença; b) economia processual – sujeitando o denunciado à eficácia preclusiva da coisa julgada, evita-se a repetição do debate, na ação de regresso, das questões já dirimidas; c) por fim, proteger o litigante alheio à relação de regresso. Quanto a esta última função, esclarece que os modelos que perfilham o sistema germânico adotam cautelas especiais no sentido da separação de processos para evitar a solução de questões muito complexas na lide original.

A atenuação ao instituto, descrita na alínea c, não se aplica às lesões causadas por agente público, exatamente por ser ele próprio que pratica a conduta lesiva ao autor. O fundamento para a sua convocação ao processo é muito mais direto do que em outras situações nas quais a denunciação ocorre, como em face da seguradora ou do vendedor do bem vindicado, nas quais serão discutidas questões estranhas ao fundamento direto do pedido, que é a lesão a direito do autor original.

16 FLAKS, op. cit., p. 5; 27.

17 Ibid., p. 96-97.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 77

Criticando os comentadores do CPC de 73, o mesmo autor aduz que as opiniões restritivas importam em um retrocesso e frustram um objetivo da reforma processual de 1973, que foi estender a denunciação da lide a todas as hipóteses de direito regressivo.

17 Segue a mesma linha Cândido

Rangel Dinamarco18

, para quem qualquer que seja a natureza da garantia ou a natureza da obrigação sobre a qual ela incide, poderá a parte denunciar a lide ao garante.

Maria Sylvia Z. di Pietro19

estabelece uma distinção em razão da causa de pedir. Quando se tratar de ação embasada na culpa anônima do serviço ou apenas na responsabilidade decorrente do risco, não caberá a denunciação, por estar o denunciante incluindo novo fundamento na ação: a culpa ou dolo do funcionário, não argüida pelo autor. No entanto, quando a ação for fundada na responsabilidade objetiva, mas houver argüição de culpa do agente público, será cabível a denunciação da lide a ele, a propositura da ação contra ambos em litisconsórcio ou até somente contra o agente.

Um relevante aspecto intocado pela doutrina é a função social da denunciação da lide. Não se trata de um mero instituto voltado à apuração da verdade dos fatos e à economia processual. Mais do que isso, a denunciação tem uma função profilática de novas infrações e desrespeitos à sociedade praticados pelos agentes públicos. A responsabilização plena e imediata, proporcionada por tal forma de intervenção, tem um importante efeito inibidor de condutas ilegais, freqüentemente atentatórias à vida, à integridade física, à honra ou ao patrimônio, que não é suprido por uma eventual e raríssima ação de regresso. Tão rara que é difícil achar jurisprudência sobre ela, principalmente porque prepondera o entendimento de que o direito de regresso (actio nata) só surge após o pagamento por parte do Poder Público, e não em razão do mero trânsito em julgado da sentença condenatória, o que pode ocorrer décadas após o fato lesivo, em razão da solução constitucional dos precatórios. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, estão sendo pagos precatórios expedidos em 1998, decorrentes de lesões praticadas por vezes dez anos antes. Muitas das ações de regresso teriam que ser voltadas aos espólios dos servidores, que podem nem existir, se não houver abertura de inventário. Desnecessário dizer que o exercício do direito constitucional de ampla defesa será extremamente difícil para o inventariante.18

Intervenção de terceiros. São Paulo: Malheiros, 2000. p.144. Athos Gusmão Carneiro, em obra homônima, discorre sobre o tema, mas não se posiciona. Intervenção de terceiros. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 114-117.19

Direito administrativo. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 536.

78 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

III. O Posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

O TJ-RJ, em 24 de junho de 2002, editou o verbete n° 50, de sua súmula de jurisprudência predominante, aprovado por maioria e com o seguinte teor:

“Em ação de indenização ajuizada em face de pessoa jurídica de Direito Público, não se admite a denunciação da lide ao seu agente ou a terceiro (art. 37, § 6°, CF/88).”

20

O relator do acórdão de uniformização justifica a súmula no caráter meramente protelatório da denunciação, que traria prejuízo ao autor pela mora e ao próprio Estado, pois o sucesso da denunciação dependeria da comprovação da culpa de seu agente, o que é incompatível com a tese de defesa. A redação do acórdão reflete o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello

21, que

também considera a denunciação procrastinatória, além de inadequada a análise subjetiva em ação com fundamento original meramente objetivo.

Com a devida vênia, esta visão representa uma injusta simplificação do problema. Inadvertidamente, a súmula protege os grandes empresários que trabalham para o Estado e causam prejuízos a terceiros, como os empreiteiros de obras. Também impede que o Estado denuncie a lide a tabeliães de notas e protestos, oficiais de registro de imóveis, e outros delegatários de funções públicas regiamente remunerados, que exercem atividade potencialmente lesiva a particulares. Fica garantida a capitalização dos lucros e socialização dos prejuízos.

A preocupação com a defesa do Estado manifestada no acórdão decorre de um enfoque parcial da questão. A denunciação da lide tem o sentido de uma convocação para que o agente público defenda a legalidade de sua conduta, motivada pelo mesmo espírito de justiça presente na determinação da produção de provas por iniciativa do juiz. Representa a reafirmação do dever de transparência e constitui peça importante de uma defesa honesta. Admitir que a revelação da verdade seja incompatível com a defesa do Estado importa em reconhecer que esta deve ser pautada na mentira, o que revela desconhecimento acerca da ética inerente à atuação dos Procuradores públicos.

Também não é correto afirmar que a denunciação da lide gere a prévia 20

Esta súmula reproduz o Enunciado Cível n° 21/2001.21

Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 893-894.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 79

admissão da responsabilidade do Estado, pois para propô-la é desnecessário afirmar que o agente público agiu ilegalmente ou anuir com a existência de condutas indevidas ou a veracidade dos prejuízos alegados pelo autor. Tais aspectos são objeto de comprovação processual e não os pressupostos de validade da denunciação da lide, instrumento processual de apuração da verdade, efetivação da economia processual e de garantia de eventual responsabilização dos que exercem funções públicas. Para o oferecimento da denunciação basta que haja associação entre a conduta do agente público e o nexo causal descrito pelo autor, sem que seja previamente admitida a responsabilidade do Estado ou a culpa de seu agente.

A ausência de denunciação proporciona a impunidade dos que exercem irregularmente funções públicas e os alivia do ônus patrimonial decorrente de sua conduta, por vezes mais efetivo do que outras formas de punição. Exatamente por isso, parece-nos também inadequado afirmar que a denunciação da lide ao agente é uma faculdade e não um dever processual, pois o interesse público é indisponível.

Não é coerente que a denunciação da lide fique vedada apenas quando o Estado causa um prejuízo, freqüentemente em razão da falha de serviço, e o mesmo não aconteça quando pessoa jurídica de Direito Privado incorra em semelhante conduta. Clínicas, empresas de segurança privada, construtoras, meios de comunicação, instituições de proteção ao crédito, entre outras, causam prejuízos idênticos aos decorrentes de condutas públicas, mas podem denunciar a lide a seus agentes quando acionados. Por que o contribuinte não pode defender seu patrimônio da mesma forma? Qual é a diferença entre a pretensa introdução do elemento subjetivo em processos contra pessoas jurídicas de Direito Privado ou Público, se existe lei estabelecendo a responsabilização objetiva para ambos os casos?

A edição da súmula pode ser parcialmente explicada pelo desgaste institucional entre os Poderes do Estado, causado por ocasionais atrasos no cumprimento de decisões judiciais e intenso uso dos recursos processuais disponíveis. Tais problemas têm soluções legais específicas, que não podem ser substituídas pelo cerceamento do exercício do direito de ampla defesa. A transferência ao Estado da rejeição que porventura se tenha a governos é um grave erro que todas as sociedades devem evitar e demonstra uma crise de identidade se cometido por órgãos públicos.

80 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

O efetivo direito de regresso, que depende da denunciação da lide na maioria dos casos, é uma garantia em favor dos que sofrem com condutas irregulares por parte dos agentes públicos. O problema a ser atacado não é a plena apuração da responsabilidade pelas lesões, mas a conduta indevida dos agentes públicos que as causam. A lesiva irresponsabilidade destes é estimulada pela impunidade processual.

Ressalte-se que esta impunidade não ocorreria se as ações de ressarcimento sempre fossem diretamente propostas contra o Estado e o seu agente público, o que é admitido pela doutrina e jurisprudência pátrias. Entretanto, raras são as ações assim colocadas, seja por desconhecimento fático, por interesse em ações mais rápidas ou até por temor de represália, o que aumenta a importância da intervenção provocada pelo réu.

A súmula comentada importa em clara redução de eficácia de um dispositivo legal, no que concerne a ações movidas contra pessoas jurídicas de Direito Público. Este entendimento contra legem, pautado em razões de conveniência, é proporcionado por um exagero na aplicação do pós-22

Karl Larenz sistematiza o problema da colisão de valores, princípios e regras, analisando a jurisprudência da Suprema Corte alemã. Sugere um enfoque em duas etapas. “Trata-se, em primeiro lugar, de saber se, segundo a ‘ordem de valores’ contida na Lei Fundamental, se pode estabelecer uma clara prevalência valorativa de um dos bens aqui em questão face ao outro. Haverá que dizer, sem vacilar, que à vida humana e, do mesmo modo, à dignidade humana, corresponde um escalão superior ao de outros bens, em especial os bens materiais... Final-mente, têm validade os princípios da proporcionalidade, do meio mais idôneo ou da menor restrição possível. Nestes termos, a lesão de um bem não deve ir além do que é necessário ou, pelo menos, é ‘defensável’, em virtude de outro bem ou de um objectivo jurídico reconhecido como de grau superior.” Metodologia da ciência do Direito. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. p. 500. Acerca da ponderação na aplicação de princípios, ensina Alexy: Cuando dos principios entran en colisión – tal como es el caso cuando según un principio algo está prohibido y, según otro principio, está permitido – uno de los dos principios tiene que ceder ante el otro. Pero, esto no significa declarar inválido al principio desplazado ni que em el principio desplazado haya que introducir uma cláusula de excepción. Mas bien lo que sucede es que, bajo ciertas circunstancias uno de los principios precede al otro. Bajo otras circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada de manera inversa. Esto es lo que se quiere decir cuando se afirma que en los casos concretos los principios tie-nen diferente peso y que prima el princípio com mayor peso. Los conflitos de reglas se llevan a cabo en la dimensión de la validez; la colisión de principios – como sólo puedem entrar em colisión principios válidos – tiene lugar más allá de la dimensión de la validez, en la di-mensión del peso. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1990. p. 89. A idêntica conclusão chegou Ronald Dworkin. Taking rights seriously. Cambridge-Harvard University, 1980. p. 26 e seguintes, conforme relatado pelo próprio Alexy e ratificado por Marciano Seabra de Godoi. Justiça: igualdade e direito

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 81

positivismo. Esta corrente filosófica, hoje preponderante, representou uma reação ao positivismo Kelseniano, que não apresentava soluções para as injustiças causadas por leis iníquas. Seus expoentes, com destaque para Karl Larenz, Robert Alexy

e Ronald Dworkin,

22 organizam o sistema

jurídico em normas-princípio e normas-regra, esclarecendo que as primeiras representam um mandado de otimização, ou seja, uma meta de justiça a ser permanentemente buscada na solução dos problemas. As regras, representam a forma escolhida para atingir os princípios. Estes seriam ponderáveis quando da aplicação concreta, mediante compressões e preferências dependendo do direito em questão. As regras seriam apenas aplicáveis ou não, pois não poderiam sofrer ponderações. Nenhum deles afirma, no entanto, que as normas-regra são apenas uma receita provisória de aplicação de princípios, que pode ser livremente afastada quando o aplicador da lei entender que há soluções melhores.

Humberto Ávila23

, em sua monografia sobre a teoria dos princípios, demonstra o engano parcial de tais doutrinadores, pois a atividade de ponderação de razões não é privativa da aplicação de princípios, mas qualidade geral de qualquer interpretação de normas. O autor entende que toda norma possui um caráter provisório, que poderá ser ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo aplicador, diante do caso concreto. Todavia, esta ultrapassagem somente é aceitável e legítima se houver peculiaridades que justifiquem o abandono momentâneo da regra, com retorno aos princípios cuja ponderação a gerou.

O descarte ocasional não significa que o Judiciário possa, simplesmente, discordar da enunciação da regra por entendê-la genericamente inadequada, irrazoável ou inconveniente, se não afrontar algum princípio constitucional. As regras não são normas de status menor do que os princípios, pois constituem o fruto da ponderação entre estes, elaboradas pelos representantes do povo eleitos com tal função.

Quando o legislador processual optou por estabelecer uma grande amplitude para o instituto da denunciação da lide, o que ele fez foi ponderar princípios como a verdade real, o direito constitucional de ampla defesa, a celeridade e a economia processuais. Comprimiu a celeridade no encerramento de alguns processos em prol da economia processual e da própria celeridade,

23 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo:

Malheiros, 2003. p. 50.

82 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

vistas sob um ponto de vista mais amplo, do sistema judiciário. Também foram valorizados os demais princípios referidos, ao contrário da decisão tomada pelo legislador em relação ao mandado de segurança ou ao processo sumário, por exemplo, nos quais a busca pela decisão rápida foi alçada a um grau mais elevado. Neste último é expressamente vedada a intervenção de terceiros, restrição que não foi estabelecida em relação ao processo ordinário, mesmo que seu objeto seja a responsabilização com fundamento objetivo.

A classificação normas-princípio e normas-regra acabou, involuntariamente, desvalorizando as regras, por pretensamente serem normas não principiológicas, o que é uma patologia interpretativa do pós-positivismo. Elas já são a síntese amadurecida e debatida de princípios, naturalmente antitéticos quando concretamente aplicados. O abandono das regras, a pretexto de retorno a eles, deve ser ocasional, sob pena de desprezar a legitimidade eleitoral dos legisladores.

Sem qualquer pretensão de criar classificações, é possível notar que existem normas que apenas enunciam princípios, outras que trazem os princípios e os caminhos de sua aplicação e, por fim, as usualmente

24 Bons exemplos das primeiras encontram-se no Título I, da Constituição Federal, como o art.

1° que traz o princípio da indissolubilidade da Federação, o Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, e os arts. 2° e 3°, que expressam a independência entre os Poderes e os objetivos fundamentais da República, entre eles construir uma sociedade livre, justa e solidária, bem como erradicar a pobreza e promover o bem de todos sem preconceitos. Embora não haja menção à forma de efetivação destes princípios, são plenamente aplicáveis mesmo sem a especificação de regras para afastar a validade das normas e condutas públicas que os contrariem. São exemplos da segunda espécie – normas que trazem princípios e as regras de sua aplicação: o inciso V, do art. 5°, que traz o princípio protetivo do dano moral e estabelece o direito à resposta e à indenização se desrespeitado; a alínea b, do inciso XXXIV, do mesmo artigo, que prevê o direito a certidões gratuitas como regra de efetivação dos prin-cípios da publicidade, segurança jurídica e amplo acesso ao Judiciário. Em relação à terceira espécie temos quase todas as normas processuais civis e penais, que não enunciam princípios a todo momento, mas cuja elaboração é fruto da ponderação entre princípios da liberdade, celeridade e economia processuais, segurança jurídica, devido processo legal e ampla defesa, entre outros.25

Valores são os sentimentos majoritários sobre como deve ser a vida em sociedade, de modo que todos possam desenvolver-se sem desrespeitar o círculo de direitos dos demais. Os princípios positivam ideais e traduzem estas expectativas de comportamento. Por serem mais abstratos, são dotados de uma perenidade dificilmente transmissível às regras, que têm a missão de sintetizá-los, não de forma estática e imutável, mas através de uma permanente evolução, que reflete um conflito entre a tese (no sentido de solução normativa) com a qual a sociedade já não mais está satisfeita e aquela que almeja.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 83

denominadas regras24

, que não expressam princípios, mas deles decorrem, e estão diretamente voltadas à sua aplicação. Não faz sentido falar em normas não principiológicas, pois todas são fruto da ponderação pautada, expressa ou implicitamente, nos valores e princípios constitucionais.

25

Conclusões:

1) A responsabilização objetiva do Estado decorre tanto da dificuldade na produção de prova de culpa, em razão da complexidade oriunda de suas múltiplas funções, quanto da repartição dos encargos de manutenção de suas atividades, que geram naturais riscos (e benefícios) para todos;

2) O direito constitucional que possuem os particulares a obter reparação fundada na responsabilidade objetiva e o direito do Estado a ressarcir-se do custo desta indenização estão no mesmo nível, sendo seu vínculo de natureza eventual, e não subordinada. Não há fundamento para concluir que o primeiro deles deva ser alcançado de forma tão célere a ponto de prejudicar a obtenção do outro. A responsabilidade objetiva é uma questão material cuja efetivação não acarreta desdobramentos processuais diferenciados, salvo no que concerne à desnecessidade de produção da prova de culpa do réu pelo autor;

3) O agente público tem direito subjetivo público a tentar evitar a produção de decisão judicial contrária à sua conduta, que pode gerar graves conseqüências administrativas, civis, penais, eleitorais e morais;

4) A denunciação da lide é um instituto processual que, quando aplicada ao serviço público, tem importantes funções: reveladora da verdade material, profilática de novas ilegalidades, pedagógica e duplamente protetiva da sociedade, tanto por desestimular novos desrespeitos a direitos privados, quanto por proteger o erário através da garantia do direito de regresso;

5) As normas possuem um caráter provisório que poderá ser ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo aplicador diante do caso concreto. Esta ultrapassagem somente é aceitável e legítima, no entanto, se houver peculiaridades que justifiquem o abandono momentâneo da regra, com retorno aos princípios cuja ponderação a gerou;

6) A vedação jurisprudencial ao uso da denunciação da lide nas ações movidas contra as entidades públicas, de forma genérica, ofende o princípio da separação entre os Poderes, o direito constitucional da ampla defesa e não

84 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

decorre de hipótese que justifique o abandono da regra expressa no art. 70, inciso III, do CPC;

7) A Súmula n° 50, do TJ-RJ, proporciona a irresponsabilidade dos agentes públicos e, injustamente, ainda impede a denunciação da lide aos que causam lesão a particulares no exercício de atividades lucrativas, como a empreitada de obras públicas e as serventias extrajudiciais.

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 87

A noção de direito adquirido no diálo-go de fontes normativas: um ensaio na

perspectiva civil-constitucional *

Gustavo Tepedino Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Presidente

do Instituto de Direito Civil.

Sumário: 1. Introdução: o conflito de leis no tempo e o indispensável diálogo de fontes normativas; 2. A tutela constitucional do direito adquirido e os contratos de longa duração; 3. A regra da irretroatividade das leis novas e sua incidência nos contratos em curso; 4. A incidência imediata de leis de ordem pública: ponderação de interesses igualmente tutelados na ordem pública constitucional; 5. A distinção elaborada pelo Supremo Tribunal Federal entre regime jurídico legal e regime contratual.

1. Introdução: o conflito de leis no tempo e o indispensável

diálogo de fontes normativas

Em razão das intervenções legislativas suscitadas por sucessivas crises econômicas e, em 2002, pela recodificação civil, assume particular relevo, no momento atual do direito brasileiro, o problema da aplicação das leis novas aos contratos de longa duração celebrados sob a vigência da lei antiga. A matéria não se restringe à dogmática puramente conceitual, exigindo esforço * Ensaio em homenagem ao Prof. Erik Jayme, Catedrático de Direito Internacional Privado da

Universidade de Heidelberg.

* *

88 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

hermenêutico capaz de compatibilizar as diversas leis especiais e o Código Civil com a Constituição da República, a partir das prioridades axiológicas pretendidas pelo legislador em cada momento histórico.

Para tanto, mostra-se sempre atual a lição de Erick Jayme, que ressalta o pluralismo de fontes normativas como característica da pós-modernidade, conclamando o intérprete a um indispensável diálogo harmonizador dos múltiplos núcleos legislativos

1. A propósito, sublinha Cláudia Lima Marques,

invocando o Prof. Erik Jayme, que diante do “atual ‘pluralismo pós-moderno’ de um Direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo”.

2 Na esteira de tal construção, sugere-se,

no lugar do conflito de leis, a visualização da possibilidade de coordenação sistemática destas fontes: o diálogo das fontes.

3

Nesta direção, a Constituição da República assume papel prioritário na integração entre as fontes normativas, de sorte a conferir unidade sistemática e axiológica ao sistema jurídico. Ou seja: “reconhecendo embora a existência dos mencionados universos legislativos setoriais, é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil”.

4

No que tange aos conflitos de leis no tempo, não basta, contudo, a invocação do texto constitucional isoladamente considerado, devendo ter-se em conta o conjunto de valores e princípios que, postos no ápice do sistema 1 JAYME, Erik. Cour général de droit international privé: recueil des cours. Académie de Droit

International. The Hague-Boston-London, Martinus Nijhoff Publishers, 1997. p. 36-37.2 Por isso mesmo, “propõe Erik Jayme a convivência de uma segunda solução ao lado da tradi-

cional: a coordenação destas fontes. Uma coordenação flexível e útil (effet utile) das normas em conflito no sistema a fim de restabelecer a sua coerência, isto é, uma mudança de paradigma: da retirada simples (revogação) de uma das normas em conflito do sistema jurídico (ou do ‘monó-logo’ de uma só norma possível a ‘comunicar’ a solução justa), à convivência destas normas, ao diálogo das normas para alcançar a sua ratio, a finalidade ‘narrada’ ou ‘comunicada’ em ambas” (Marques, Cláudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o Novo Código Civil: do ‘diálogo das fontes’ no combate às cláusulas abusivas. Revista de Direito do Consumidor, n. 45, p. 71-74, 2003).3

MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Revista de Direito do Consumidor, n. 51, p. 59, 2004.4 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 13.

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normativo, permitem a superação de aparentes antinomias, mormente quando se apresentam em colisão mais de um interesse constitucionalmente tutelado.

2. A tutela constitucional do direito adquirido e os contratos de longa duração

No afã de se assegurar uma proteção definitiva às situações jurídicas constituídas pela autonomia privada, o ordenamento brasileiro inseriu a proteção ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada no rol das garantias constitucionais imutáveis, consagradas como cláusulas pétreas, ou seja, insuscetíveis de alteração por reforma constitucional. Com efeito, nos termos do art. 5º, XXXVI da Constituição da República, “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

A solução brasileira, embora louvável no sentido de se buscar garantir a estabilidade do sistema, acabou por tornar excessivamente engessado o processo de reforma social, restando praticamente impossível a adaptação dos contratos de longa duração às circunstâncias econômicas traduzidas pelo legislador.

Neste particular, importante mostra-se um cotejo com o sistema francês, no qual o Code consagrou a proteção à não retroatividade das leis no seu art. 2º, segundo o qual “La loi ne dispose que pour l’avenir; elle n’a point d’effet rétroactif”. Assim sendo, consagra-se em nível infraconstitucional “le respect des droits acquis et des situations juridiques définitivement établies”, de tal modo que a doutrina e a jurisprudência puderam construir, paulatinamente, meios de ponderar os interesses veiculados pela lei nova, temperando, em favor da ordem pública, “la portée civile du principe de non rétroactivité des lois”. Nesta direção, pode-se afirmar que o direito francês mostra-se mais flexível que o brasileiro, no qual, por esta razão, alguns planos econômicos acabaram por se mostrar incapazes de alterar contratos de longa duração em curso, havendo ainda no Supremo Tribunal Federal processos em que se discute a incidência imediata de dispositivos inseridos por planos econômicos de mais de 10 anos (como é o caso do sistema de conversão conhecido como tablita,

5 O então governo de José Sarney promoveu um choque heterodoxo à economia, mediante o

chamado plano cruzado, criado por meio do Decreto-lei 2.283 de 27.02.86. A moeda passou à denominação de Cruzado (Cz$), que equivalia a 1 mil Cruzeiros (Cr$). O plano congelou os preços praticados no dia da publicação do decreto, inclusive para serviços. Com a supressão do tabelamento de preços, foi instituída a popular “tablita”, tabela de conversão para pagamento de dívidas contraídas antes do plano e que expurgava a inflação projetada.

90 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

do plano econômico de 1986!).5

A questão referente à incidência de leis novas em relações jurídicas constituídas na vigência de leis antigas assume particular relevo no momento da entrada em vigor do novo Código Civil, cujo art. 2.035 dispõe:

Art. 2.035: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

Diante do teor do dispositivo, não faltam vozes que contestam a sua constitucionalidade, ao argumento de que, no sistema constitucional brasileiro, se poderia configurar um princípio da irretroatividade absoluta, de modo que os efeitos futuros dos contratos de duração não poderiam ser atingidos pela lei nova.

Todavia, o exagero de tal posição resta evidente, sendo extremamente úteis os subsídios da doutrina francesa para relativizar, em benefício da ordem pública, os efeitos futuros dos contratos de longa duração.

3. A regra da irretroatividade das leis novas e sua incidência nos contratos em curso

Em certa medida, todas as leis novas atingem efeitos produzidos por atos nascidos na vigência da lei anterior, dentro de uma perspectiva cronológica em que se sucedem os fatos da vida. Assim sendo, há de se estabelecer que tipo de retroatividade é legítima e qual, ao revés, mostra-se hostilizada pelo sistema. O critério de legitimidade para tal aferição funda-se, justamente, na investigação da violação, por parte da lei nova, do ato jurídico perfeito, do direito adquirido ou da coisa julgada, estes sim institutos tutelados constitucionalmente (art. 5º, XXXVI, CF) e, conseguintemente, insuscetíveis de serem alcançados pelo legislador superveniente.

Segundo lição clássica, três são as espécies de retroatividade: máxima, média e mínima. A primeira ocorre nas hipóteses em que a lei nova atinge a coisa julgada e os fatos consumados. Tem-se a retroatividade média, por

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 91

sua vez, quando o novo texto legal atinge as prestações exigíveis, mas não cumpridas antes da entrada em vigor da lei nova. Já a retroatividade mínima consiste na aplicação da lei nova apenas em relação aos efeitos dos fatos anteriores, ocorridos após a vigência desta lei.

Nas duas primeiras espécies não persiste dúvida alguma de que a lei nova retroage efetivamente. Por outro lado, no que se refere à retroatividade mínima, discute-se se seria espécie de retroatividade, ou se apenas configuraria aplicação imediata da lei. Há autores clássicos do direito civil francês, dentre eles Planiol

6, que afirmam não se tratar propriamente de retroatividade, e sim

de aplicação imediata da lei. No caso brasileiro, menor importância adquire a contenda terminológica acerca da retroatividade mínima, já que inexiste princípio constitucional que, tutelando a irretroatividade, tornasse relevante a classificação.

Esse mecanismo não viola direito adquirido simplesmente pelo fato de que as partes, nos contratos de trato sucessivo ou de execução diferida, limitam-se a ter a expectativa de direito no sentido de que os efeitos contratuais sejam produzidos na forma pactuada, segundo os preceitos legais em vigor no momento da sua produção.

Na experiência jurisprudencial brasileira, a admissão da incidência do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de execução diferida, de longa duração, celebrados anteriormente à sua vigência, vem de ser admitida pelo Superior Tribunal de Justiça, em pronunciamento liderado pelo Min. Carlos Alberto Menezes Direito, especialmente no caso de contrato de previdência privada.

7

6 PLANIOL. Traité elémentaire de droit civil. 4. ed. Paris: Librarie Générale de Droit & de

Jurisprudence, 1906. v. 1, n. 243, p. 95: “La loi est rétroactive quand elle revient sur le passé soit pour apprécier les ‘conditions de légalité d’un acte’, soit pour modifier ou supprimer les ‘effets d’un droit déjà réalisés’. Hors de là il n’y a pas de rétroactivité, et la loi peut modifier les ‘effets futurs’ de faits ou d’actes mêmes antérieurs, sans être rétroactive”.7

Recurso Especial nº 331.860/RJ. Rel.: Min.Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 28.05.2002, publ. DJ 05 ago 2002: “O contrato de previdência privada, de fato, é de trato suces-sivo, de execução continuada, sendo que, com relação à primeira ré (...) o contrato prosseguiu sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, renovando-se o contrato a cada pagamento efetuado, não havendo razão para descartar a aplicação do referido Código se o contrato de execução continuada prosseguiu já durante a sua vigência, considerando que se trata de contrato de prazo indeterminado, como é da natureza mesma dos contratos de previdência privada. Parece-me, portanto, que não é possível descartar no que concerne à primeira ré a incidência do Código de Defesa do Consumidor”.

92 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Nesta esteira, ressaltou-se, em doutrina, a incidência imediata da lei nova sobre os contratos de longa duração, nos seguintes termos:

“Diante de situações subjetivas que tenham natureza continuada, duradoura, ou seja, de trato sucessivo, eventuais mudanças legislativas só poderão incidir sobre as situações que automaticamente se ‘repetirem’ já sob sua égide, ou, em outras palavras, a nova lei só poderá em regra pretender regular os efeitos das situações que se materializarem sob sua vigência. As situações subjetivas que periodicamente se ‘repetiram’ e se ‘concretizaram’ no passado, na vigência da lei anterior, são em princípio intangíveis pela lei nova, por significar, uma vez incorporadas ao patrimônio do indivíduo, direito adquirido e, nesta esteira, situação subjetiva constitucionalmente protegida”.

8

Portanto, tratando-se de contratos de execução diferida ou de trato sucessivo, não há que se cogitar da existência de direitos adquiridos a efeitos futuros, sendo legítima a intervenção legislativa que venha a alcançá-los.

4. A incidência imediata de leis de ordem pública: pondera-ção de interesses igualmente tutelados na ordem pública constitucional

Sublinhe-se, de outra parte, que mesmo a proteção constitucional ao direito adquirido não se sobrepõe a outras garantias constitucionais de igual hierarquia, como se fosse dotada de alguma espécie de supremacia axiológica. Tal é a tendência da doutrina e jurisprudência brasileiras, que re-elaboraram a antiga distinção, para fins de aplicabilidade das normas no tempo, entre as leis de ordem pública e as de interesse meramente privado.

Demonstra-se hoje, com efeito, que as normas de ordem pública não podem se submeter à barreira intransponível representada por um interesse privado, mesmo que este se constitua em uma garantia constitucional, como é o caso do direito adquirido, sendo indispensável, na hipótese de colisão entre o interesse público, representado pela lei nova, e o direito adquirido a ponderação entre as situações jurídicas em confronto, guiada pela tábua de valores constitucionais. De tal processo interpretativo não se mostram invulneráveis sequer os direitos que, por força do art. 60, § 4º, IV, da Constituição da República, constituem cláusulas pétreas, insuscetíveis de reforma pelo constituinte derivado.8 TOLOMEI, Carlos Young. A Proteção do direito adquirido sob o prisma civil-constitucional:

uma perspectiva sistemático-axiológica. No prelo da Editora Renovar, 2004.

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Como já se teve ocasião de afirmar em sede doutrinária, “se uma cláusula pétrea fosse levada ao extremo da imponderabilidade, far-se-ia tábula rasa da estabilidade política que, com ela, pretendeu alcançar o legislador. Ou seja, se nem mesmo o constituinte derivado, como expressão da vontade popular, pudesse sopesar direitos adquiridos em favor de outros princípios igualmente importantes, e inseridos, também eles, no rol das garantias constitucionais, eventuais alterações políticas e sociais só se poderiam concretizar mediante movimento revolucionário, sendo impotentes as instituições democráticas, especialmente os Poderes constituídos, para levar a cabo as aspirações democráticas de transformações sociais”.

9

O constitucionalismo contemporâneo, nesta esteira, vem progressivamente consolidando o entendimento segundo o qual, em tema de direitos fundamentais, não há hierarquia principiológica, devendo o intérprete, no caso de colisão entre princípios, ponderar cada um dos direitos em conflito, mediante técnica destinada a verificar: i) a preservação do núcleo essencial dos princípios constitucionais em jogo; ii) a necessidade e adequação do sacrifício de um direito em favor de outro; iii) o direito cuja supressão cause menos dano social. Desse modo, a incidência imediata de uma lei de ordem pública sobre direitos patrimoniais privados anteriormente adquiridos deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade. Em matéria de direitos fundamentais, aliás, comprova-se a insuficiência e a completa superação da técnica da subsunção, substituída pela concreção do princípio no caso concreto, sopesando-se os valores em conflito em favor da máxima eficácia social.

Em última análise, em que pese sua importância para o sistema, os direitos adquiridos não desfrutam de proteção absoluta, superior à tutela conferida pelo ordenamento a outros princípios constitucionais.

Interessante registrar, sobre o tema, a evolução das Cortes Superiores brasileiras, cada vez mais convergentes no sentido da relativização da tutela do direito adquirido diante de imperativos de ordem pública – hipótese recorrente na implantação de planos econômicos.

O Supremo Tribunal Federal, que tradicionalmente considerara a ordem pública prevalente em face do direito adquirido, alterou seu entendimento no

9 TEPEDINO, Gustavo. O STF e a noção de direito adquirido. Revista Trimestral de Direito

Civil, Rio de Janeiro, v. 18, 2000, editorial.

94 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

julgamento da ADIN n. 493/92, em que, liderado pelo voto do Relator Ministro Moreira Alves, rejeitou a supremacia das leis de ordem pública sobre o direito adquirido em razão de este receber tutela constitucional. Ou seja, por merecer proteção constitucional, inserindo-se, assim, na ordem pública brasileira, o direito adquirido seria, segundo este raciocínio, absolutamente inviolável

10.

O ordenamento jurídico nacional, portanto, não se identifica, segundo o esclarecimento do STF, com os países, como a França, cuja tutela ao direito adquirido se limita à disciplina infraconstitucional.

11 Em tais ordenamentos,

a lei nova – de igual hierarquia à garantia do direito adquirido – poderia atingi-lo se inspirada por mandamentos de ordem pública interna. Nos termos da Constituição brasileira, ao revés, a proteção ao direito adquirido (art. 5º, XXXVI) vincula irremediavelmente o legislador ordinário, indiferentemente da matéria sobre a qual esteja legislando.

Esta construção, contudo, manteve-se distante do Superior Tribunal de Justiça que, reiteradamente, preservou o entendimento de que, mesmo inserido no rol das garantias fundamentais da República, o direito adquirido poderia ceder em face de preceitos que, traduzindo ditames da ordem pública, o superassem em determinadas circunstâncias.

12

10 Segundo o Ministro Moreira Alves, “no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adqui-

rido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos – apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal – de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se alteram os efeitos, é obvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é vedado constitucionalmente” (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 493/DF. Rel.: Min. Moreira Alves. RTJ, n. 143, p. 724).11

“Ao atribuir estatura constitucional a tal mandamento, o constituinte pátrio erigiu limitação oponível em face de todas as leis, inclusive aquelas de ordem pública. Neste particular, o direito brasileiro afastou-se de outros modelos, como o francês e o italiano, em que a norma de regência do conflito de leis no tempo foi acolhida em sede legislativa, dando ensejo à cria-ção de exceções, ditadas aqui e ali pelo legislador ordinário na edição de normas cogentes”. SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e justiça social. no prelo da Revista Trimestral de Direito Civil, v. 20, 2004.12

Confira-se: “Recurso Especial. Locação. Diferenciais Locatícios. MP 542/94. Efeito Imediato da Lei Nova. Inexistência de Violação de Ato Jurídico Perfeito. Por ser de ordem pública, a Medida Provisória nº 542/94, convertida na Lei nº 9.069/95, é de incidência imediata e plena, alcançando os contratos em curso, sem que se lhe possa opor direito subjetivo adquirido ou ato jurídico perfeito, à razão de serem ajustados à anterior avença locatícia” (Recurso Especial 94.850. Rel.: Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 18.12.2002. DJ 04 ago 2003).

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 95

Eis que, no julgamento de recente Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Ministro Joaquim Barbosa aproximou novamente a Suprema Corte da linha seguida pelo Superior Tribunal de Justiça. Ao enfrentar os conceitos de direito adquirido e de ato jurídico perfeito, entendeu que estes não são absolutos, submetendo-se à técnica da ponderação, no caso de colisão com outros direitos (ADIN n. 3.105). Afirmou o eminente constitucionalista que a amplitude desmesurada da teoria das cláusulas pétreas revela-se “uma construção intelectual conservadora, para não dizer reacionária, antidemocrática, irrazoável, com uma propensão oportunista e utilitarista a fazer abstração de vários outros valores igualmente protegidos pelo nosso sistema constitucional”. E rematou: “No constitucionalismo moderno, somente através dos procedimentos de emenda constitucional e da jurisdição constitucional, fenômeno jurídico hoje quase universal, é que se consegue manter a sincronização entre constituição e realidade social, cuja evolução é contínua e se dá a ritmo avassalador. Ou seja, é insensato conceber que o constituinte originário possa criar aquilo que o Professor Canotilho qualifica como uma ‘constituição imorredoira e universal’”.

Ao final do julgamento, o plenário da Corte acabou por admitir, por maioria,

13 que a reforma da previdência social pudesse incidir sobre os

proventos futuros dos aposentados, desde que em favor dos princípios constitucionais da solidariedade e da igualdade, prevalentes na colisão de interesses então verificada.

Independentemente do resultado daquele julgamento, contudo, o certo é que o Supremo Tribunal Federal admitiu a ponderação de interesses contrapostos a direitos adquiridos, cimentando e consagrando a tendência, já há muito trilhada pelo Superior Tribunal de Justiça, em negar a prevalência absoluta de um único direito fundamental sobre os demais, e de afastar a tutela do direito adquirido na hipótese de lei de ordem pública.

No caso de leis de ordem pública, sua aplicação imediata decorre de intuitiva percepção de que veiculam normas de proteção de interesses sociais indisponíveis. Nestes casos, é como se o legislador realizasse uma prévia ponderação de interesses, no plano do processo legislativo, optando pela aplicação imediata da lei nova sempre que julgar indispensável o sacrifício de 13

Pela constitucionalidade votaram os ministros Cezar Peluso, Eros Grau, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. Contra a contribuição dos inativos, pronunciaram-se os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Ellen Gracie e Carlos Ayres Brito.

96 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

interesses individuais e patrimoniais futuros, projetados por ato jurídico perfeito, em favor de interesses sociais prementes, cuja tutela integra a ordem pública interna e se torna indispensável para a garantia dos objetivos e fundamentos da República.

5. A distinção elaborada pelo Supremo Tribunal Federal entre regime jurídico legal e regime contratual.

A posição anteriormente consolidada no Supremo Tribunal Federal, inflexível quanto à irretroatividade das leis, comportava um único elemento de abertura, consubstanciada pela distinção entre regime legal e regime contratual. Segundo tal construção, a lei nova poderia atingir imediatamente os efeitos dos regimes legais, não já as relações contratuais, que estariam protegidas pela garantia constitucional do ato jurídico perfeito. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal afirmou e reafirmou a inexistência de direito adquirido a regime jurídico, admitindo, por exemplo, a incidência das alterações legais sobre o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).

14

Em outras palavras, os vínculos obrigacionais decorrentes dos contratos gerariam direito adquirido para os contratantes, ao passo que os decorrentes de relações de natureza institucional, que se submetem a certo regime jurídico, sujeitar-se-iam a alterações legais imediatas, não constituindo para os interessados uma situação jurídica incorporada ao seu patrimônio, senão mera expectativa de direito.

Na ordem jurídica contemporânea, entretanto, as relações contratuais não são reguladas exclusivamente pela vontade das partes. Pelo contrário, crescente se apresenta a intervenção do legislador no regulamento contratual, que se constitui, assim, em uma disciplina múltipla e complexa, congregando dispositivos hauridos de fontes obrigacionais diversas, para além da vontade dos contratantes. O exame de um instrumento contratual, nos dias de hoje, requer atenção para o conteúdo inserido pela autonomia privada que 14

Recurso Extraordinário nº 226.855-7/RS. Rel.: Min. Moreira Alves, julgado em 31.08.2000. DJ 13 out. 2000, assim ementado: “Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS. Na-tureza jurídica e direito adquirido. Correções monetárias decorrentes dos planos econômicos conhecidos pela denominação Bresser, Verão, Collor I (...). O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim estatutária, por decorrer da Lei e por ela ser disciplinado. Assim, é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência desta Corte no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico” (grifou-se).

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convive com um sem-número de dispositivos incluídos por força de normas regulamentadoras que, imperativamente impostas, ampliam a própria noção de ordem pública, que se projeta para as relações privadas. Trata-se do fenômeno que a doutrina italiana denominou de fonti di integrazioni contrattuali

15, a

indicar a justaposição, no regulamento contratual, de um regime obrigacional voluntário e de um regime jurídico legal insuscetível de alteração pela vontade dos contratantes.

As partes, durante a relação contratual, incorporam aos respectivos patrimônios individuais os efeitos jurídicos que paulatinamente se formam mercê do acordo de interesses, sujeitando-se, por outro lado, imediatamente, às alterações legislativas relativas ao regime jurídico aplicável, que se projetam sobre o contrato.

Não há, em hipótese alguma, direito adquirido às conseqüências jurídicas advindas de regime legal, mesmo se este regime, instituído por lei de maneira imperativa, não decorra de uma vinculação institucional (a condição de funcionário, por exemplo), mas de certa disciplina contratual.

Dito diversamente, embora o Supremo Tribunal Federal tenha construído a doutrina da aplicabilidade imediata das leis sobre os vínculos institucionais fora do âmbito contratual, nos casos de regimes instituídos por lei com a finalidade de submeter os negócios firmados pelos particulares a um certo estatuto jurídico, é perfeitamente lícito afirmar que, diante do atualíssimo fenômeno da integração heteronômica dos contratos, as partes se sujeitam, a um só tempo, à disciplina convencionalmente pactuada e à normativa legal imperativamente imposta a certas relações contratuais, que assume, por isso mesmo, a conotação típica de regime jurídico.

Daqui decorre a utilização do entendimento consolidado pela Suprema Corte para afastar a discussão relativa a direito adquirido no caso das leis portadoras de preceitos dirigidos à alteração de regime jurídico, seja este superposto ou não a relações contratuais (configurando o fenômeno das fontes de integração heteronômica dos contratos).

Em última análise, em que pese sua importância para o sistema, os direitos adquiridos não desfrutam de proteção absoluta, superior à tutela conferida pelo ordenamento a outros princípios constitucionais. Se assim não fosse, se uma 15

V. Stefano Rodotá. Le Fonti di integrazioe del contratto. Milano: Giuffré Editore, 1969.

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cláusula pétrea fosse levada ao extremo da imponderabilidade, far-se-ia tábula rasa da estabilidade política que, com ela, pretendeu alcançar o legislador.

Se os contratos de longa duração traduzem o potencial criador da iniciativa privada, as leis novas retratam a confluência de fontes normativas e a prevalência da ordem pública dirigida às transformações sociais. Oxalá deste debate possa resultar a desmistificação do direito adquirido. Afinal, tal importantíssima categoria destina-se à proteção das relações patrimoniais e não deve, definitivamente, ser compreendida em si mesma, sem a necessária valoração de sua aptidão funcional, no caso concreto, à defesa das relações existenciais, dos princípios constitucionais e, especialmente, do valor-princípio da dignidade da pessoa humana veiculados pela atividade contratual.

PARECERESDA PROCURADORIA

GERAL DA CMRJ

Direito Administrativo

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 103

Competência para o tombamento

Parecer no 02/05-CRTS

Ementa: Tombamento. A delimitação do bem tombado é providência administrativa de competência dos órgãos do Poder Executivo. Prevalência do Decreto nº 13.678/95. Parecer pela expedição de ofício ao 4º Registro Geral de Imóveis solicitando a retificação da área tombada, na forma do Decreto nº 13.678/95, sem custas para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Senhora Procuradora-Geral,

A consulta submetida ao exame deste órgão tem por objeto o pedido formulado pelo Ministério da Defesa – Comando Militar do Leste, de destombamento das áreas da desativada Fábrica de Cartuchos do Exército não abrangidas pelo Decreto nº 13.678, de 15 de fevereiro de 1994, que se refere tão somente ao corpo central do prédio e segmento fronteiro do Campo de Marte, necessário à fruição visual da construção.

I. Histórico normativo

A primeira iniciativa do Poder Público carioca no sentido de proteger e preservar as áreas da antiga Fábrica de Cartuchos do Exército foi o Decreto nº 11.502, de 10 de outubro de 1992, que determinou o tombamento provisório das áreas 1 e 3 da fábrica, dado o seu interesse ambiental, arquitetônico e afetivo para os moradores dos bairros da Zona Oeste, atestado em estudos técnicos e culturais realizados pelo Departamento Geral de Patrimônio Cultural e pronunciado pelo Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro.

Em 04 de março de 1993, foi promulgada a Lei nº 1.962 que tombou “o prédio da Fábrica de Cartuchos do Exército, localizada nas ruas Bernardo

104 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

de Vasconcelos, Oliveira Braga e Avenida Santa Cruz, em Realengo, e os bens de seu entorno que integrem o mesmo conjunto arquitetônico e paisagístico”, ampliando o objeto daquela proteção, até então circunscrito às áreas 1 e 3 da fábrica.

Essa lei determina ao Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro que inscreva o prédio tombado no Livro de Tombos dos Bens Culturais do Rio de Janeiro no prazo máximo de dez dias contados da sua publicação (art. 2º) e que notifique a União, através do Comando Militar do Leste, dando-lhe ciência do tombamento, no prazo de trinta dias contados da inscrição (art. 3º).

O teor dessa notificação, que estabelecerá os atos necessários à conservação histórica estética do bem tombado (§ 1º), deverá ser reproduzido, integralmente, no termo de inscrição no Livro de Tombos dos Bens Culturais do Município do Rio de Janeiro e constará de todas as certidões que forem expedidas sobre o seu tombamento (§ 2º).

Em 15 de fevereiro de 1995, o Poder Executivo editou um novo decreto, tombando o corpo central do Prédio da Fábrica de Cartuchos do Exército, assim como o segmento fronteiro do Campo de Marte, necessário à fruição visual da construção tombada (Decreto nº 13.678/95).

São esclarecedores os consideranda do decreto, que justificam essa opção administrativa nos seguintes termos:

“(...) CONSIDERANDO que o procedimento de tombamento, por ser de substância técnica, se assenta mais do que expressão normativa, na efetiva importância cultural do bem tutelado;CONSIDERANDO que, segundo parecer do Departamento Geral do Patrimônio Cultural, constante do processo 12/003550/92, o interesse público na preservação da Fábrica de Cartuchos se concentra na construção onde se situa o corpo principal do estabelecimento fabril, sobre o qual disse Noronha Santos em ‘As Freguesias do Rio Antigo’: ‘poucos edifícios públicos temos visto, que se possam igualar em beleza de construção’;CONSIDERANDO o eminente interesse da União em, preservando o patrimônio histórico da Cidade, disponibilizar seus imóveis em prol da segurança militar do País;CONSIDERANDO o compromisso das autoridades militares em destinar parcela de seu complexo imobiliário para o atendimento da comunidade local, a qual pretende a construção de escola técnica federal na região;

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 105

CONSIDERANDO que no balanço dos interesses da cultura histórica e arquitetônica da Cidade, da defesa militar do País, e do desenvolvimento da comunidade local, cabe ao chefe do Poder Executivo, em sintonia com a indicação legislativa, traçar medida completa e exata (...)”.

II. Competência para o tombamento de bens

O tombamento, poderoso instrumento de preservação de bens culturais, é uma limitação administrativa imposta a bens de interesse público (histórico, artístico, cultural, paisagístico, ambiental, arqueológico, etnográfico etc) que importa em restrição ao direito de propriedade.

A disciplina jurídica do instituto é dada pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que determina a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e dispõe sobre o processo de tombamento.

Essa norma não escolheu o sistema de proteção ex vi legis, isto é, decorrente automaticamente da lei.

“Poderia a lei federal ter escolhido forma vigente em alguns países pela qual coisas com certo tempo de existência ficam imediatamente protegidas. Entretanto, o Decreto-lei 25/37 previu processo administrativo pelo qual cabe ao órgão do Executivo avaliar quais os bens que merecem proteção federal. Com esta previsão legal abriu-se ao Executivo o espaço legal necessário ao exercício de poder de polícia nesta área, já que lhe caberá determinar os bens passíveis de proteção.O Decreto-lei 25/37 previu a causa que determinará a proteção do bem, o órgão do Executivo que terá competência para escolher e julgar o valor de determinado bem, alguns aspectos do processo administrativo e os efeitos que irão operar a partir da determinação da tutela especial do Estado, efeitos estes que criam obrigações tanto para o titular de domínio do bem quanto para os cidadãos em geral. Trata-se, portanto, de ato do Executivo: ato administrativo decorrente do seu poder de polícia administrativa, já que, por ele, a administração pública restringirá direitos de particulares, com o fim de resguardar o interesse público geral da preservação.”

1 (sem

grifos no original).

O Poder Legislativo não está alijado desse processo. A ele, como a cada um dos Poderes do Estado, cabe zelar pela proteção dos bens de interesse

1 CASTRO, Sonia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais: o tombamento. Rio

de Janeiro: Renovar, 1991. p. 34-35.

106 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

público, mas sua atuação no processo tem caráter indicativo.

A lei prevê hipóteses genéricas nas quais cabe o tombamento, mas a restrição ao exercício dos direitos do proprietário do bem protegido é uma limitação de polícia acometida ao Poder Executivo.

Desse modo, no tocante à delimitação do bem tombado, prevalece a disposição do Executivo, ou seja, o Decreto nº 13.678/95, que define como área tombada “o corpo central do Prédio da Fábrica de Cartuchos do Exército, em Realengo, na Rua Bernardo de Vasconcelos nº 941, assim como o segmento fronteiro do Campo de Marte necessário à fruição visual da construção tombada.”

O Ofício GVRA nº 078/2003, encaminhado ao 4º Registro Geral de Imóveis pelo Ilustre Vereador Rubens Andrade, com o fim de averbar na matrícula referente à antiga Fábrica de Cartuchos do Exército o tombamento operado pelas já referidas normas, acabou por estender essa restrição além dos limites impostos pelo Decreto nº 13.678/95, prejudicando, injustificadamente, a disposição do imóvel pelo Exército Brasileiro.

O requerimento que deu origem a este processo tem por objeto a correção desse equívoco.

Como se disse, o tombamento de bens é de competência do Poder Executivo, assim como o são as providências suplementares (registros etc.) ao ato.

Não obstante, em nome da economia processual e com o fim de dar solução ao erro cometido, colaborando com o Exército Brasileiro na sua rápida solução, opino pela expedição de ofício ao 4º Registro Geral de Imóveis solicitando a retificação da averbação, na forma da anexa minuta.

É esse o parecer que submeto à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 2005.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 107

VISTO. Aprovo o Parecer nº 02/05-CRTS, retro.

Encaminhe-se à consideração do Exmº Sr. Presidente.

Em 28 de fevereiro de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 109

Processo de apuração de responsabili-dade por descumprimento de contrato

administrativo

Parecer nº 02/05-FACB

Ementa: - Inexecução parcial de contrato da parte de empresa vencedora de licitação para prestação de serviços à Câmara Municipal. Deliberação da Mesa Diretora para aplicação das penalidades previstas na Lei nº 8.666/93. - Divergência entre unidades administrativas acerca da atribuição para gradação de multa a ser aplicada à empresa recalcitrante. - Parecer no sentido de instauração de processo administrativo, garantido o contraditório e a ampla defesa à empresa contratada para apuração da penalidade cabível à espécie, nos termos dos artigos 86 e 87 da Lei nº 8.666/93.

Excelentíssimo Senhor Vereador Primeiro Secretário,

Após a realização de licitação para a contratação de serviços de operação do Sistema Eletrônico de Votação, a empresa Anver – Empreendimentos e Participações Ltda. sagrou-se vencedora, sendo o contrato assinado em 31 de março de 2004. Não obstante, já em 28 de junho de 2004, o representante legal da referida empresa solicita a rescisão do contrato, reivindicando isenção das penalidades previstas na respectiva Cláusula 9

a.

Após regular instrução, a nobre Mesa Diretora decidiu pela rescisão do contrato com aplicação das penalidades previstas na Lei nº 8.666/93.

Ato contínuo, a zelosa Assessoria Jurídica manifesta-se no sentido

110 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

de que a ASSIMA deva “estabelecer o percentual da multa a ser aplicada à contratada (§1

o da mencionada cláusula 9

a do contrato)”. Instada a se

manifestar a Assessora-Chefe da ASSIMA pondera que sua atribuição é estritamente técnica, sustentando que “não possui subsídios nem perícia necessários para definir tal percentual”.

Tal assertiva é rebatida pela Assessoria Jurídica, que sustenta que a Cláusula 5

a do Contrato (fls. 163) confere à ASSIMA atribuição de fiscalização

do contrato, “bem assim para impor penalidades previstas, como de sua competência, em lei ou neste instrumento”. Ademais, sustenta a Assessoria Jurídica, o §1

o da cláusula 9

a do referido ajuste estabelece a competência da

ASSIMA para aplicação da penalidade da multa.

O Exmo. Vereador Primeiro Secretário determinou, então, a manifestação desta Procuradoria-Geral acerca do Parecer da Assessoria Jurídica.

Passo a opinar.

Como visto, a nobre Mesa Diretora já deliberou pela aplicação, à empresa contratada, “das penalidades previstas na Lei nº 8.666/93” (fls. 218).

Com efeito, conforme bem apontado pela Assessoria Jurídica (fls. 211) “a aplicação das penalidades previstas na Lei 8666/93 e nos contratos é poder-dever da Administração, no resguardo do interesse público”.

Não obstante, parece ser proveitoso recordar que o art. 367 da Lei Municipal 207/80 expressamente prevê que, na ausência de prejuízo para o serviço público, poderá ser relevada qualquer penalidade prevista naquele diploma normativo.

Examine-se, pois, os termos do contrato de prestação de serviços ora em questão. Sua Cláusula 9

a (fls. 165 destes autos) estabelece que, caso

necessário, serão aplicadas à contratada as sanções previstas nos arts. 86 e 87 da Lei nº 8.666/93, bem como nos arts. 321 da Lei Municipal nº 207, de 19.12.1980 e 589 do Regulamento consolidado pelo Decreto Municipal nº 15.350, de 6.12.1996.

De sua parte, o art. 589 do Decreto Municipal nº 15.350, de 6.12.96, prevê a aplicação das seguintes penalidades: advertência, multa moratória de 1% por dia útil, multa de até 20% sobre o valor do contrato ou da nota de empenho,

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 111

suspensão temporária do direito de licitar e impedimento de contratar com a Administração e, por fim, declaração de inidoneidade para licitar e contratar com a Administração.

A divergência que agora se estabelece entre ASSIMA e a ASSESSORIA JURÍDICA reside na dúvida acerca da atribuição para a gradação da multa a ser estipulada contra a contratada, divergência esta que levou o feito ao exame desta Procuradoria-Geral.

No entanto, nada há nos autos que indique que a contratada deverá, efetivamente, receber a pena de multa.

É que, como se demonstrou, a pena de multa constitui apenas uma das penalidades previstas contra o particular inadimplente, havendo a necessidade de prévia avaliação da conduta da contratada à previsão legal, permitindo valorar, observados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a gravidade da pena, tudo de acordo com o que prescreve a legislação pertinente. Mais ainda: tal procedimento deverá assegurar à contratada direito ao contraditório e ampla defesa. É como leciona Marçal Justen Filho:

“Verificada a rescisão, a Administração tem o dever de definir o montante das perdas e danos sofridas. Para tanto, deverá promover procedimento administrativo, respeitando os princípios já referidos e detalhados do contraditório e da ampla defesa. Uma vez apurado o valor da dívida, seu montante deverá ser exigido do particular que poderá pagar espontaneamente ou não. (...) Quando se tratar da Administração Direta e de autarquia, incidirá o regime jurídico da Lei n.º 6.830. O crédito será caracterizável como fazendário e sua exigência poderá fazer-se através de processo de execução. Mas será necessário o cumprimento dos requisitos legais ali previstos. O título executivo será a certidão de dívida ativa, e não a decisão administrativa que rescindiu o contrato. (...)” (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 557-558)

Observando, ainda que superficialmente, a questão, será o caso de se apurar, por exemplo, se a conduta da contratada não caracterizaria a paralisação do serviço, sem justa causa e prévia comunicação à Administração, hipótese prevista no art. 78, V, da Lei de Licitações, considerando-se, especialmente, a informação da ASSIMA (fls. 223) de que a empresa deixou de prestar os serviços referentes ao contrato 04/04 no dia em que solicitou sua rescisão. De outra parte, deverá se apurar se tal conduta causou prejuízo à Casa, permeando-se a instrução do feito com a indispensável defesa da contratada.

112 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Assim, em síntese, opino pela instauração de processo administrativo para apurar eventuais faltas cometidas pela contratada, ao cabo do qual, e se for o caso, deverá ser sugerida penalidade cabível a ser imposta pela Mesa Diretora da Casa, observada a garantia constitucional de direito ao contraditório e ampla defesa.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 2005.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 113

A compensação no convênio adminis-trativo: possibilidades e cautelas

Parecer nº 03/05-SAFF

Ementa: Direito Administrativo. Convênio celebrado entre a Câmara Municipal e o Estado do Rio de Janeiro, visando à compensação de despesas referentes a servidores cedidos. Inadimplência do Estado quanto às parcelas decorrentes de meses em que há crédito desta Casa Legislativa, simultaneamente à existência de pagamentos mensais desta àquele. Parecer pela compensação, nos pagamentos futuros devidos pela Câmara Municipal, dos valores devidos pelo Estado, até o limite do débito total.

Senhora Procuradora-Geral

Cuida o presente processo do Convênio nº 01/03, celebrado entre esta Câmara Municipal e o Estado do Rio de Janeiro, visando à compensação de despesas relativas a servidores cedidos.

1. Histórico

Em 28 de janeiro de 2003, o Estado do Rio de Janeiro e a Câmara Municipal do Rio de Janeiro celebraram o Convênio nº 01/03, que tem por objeto, segundo sua ementa, a “definição de procedimentos destinados a compensar despesas decorrentes da requisição de seus servidores”. Cópia do termo de Convênio encontra-se acostada à segunda contracapa deste processado.

De acordo com a informação de fls. 30, mensalmente, esta Casa Legislativa efetua pagamentos ao Estado, uma vez que a compensação dos valores resulta em um crédito a favor daquele ente federativo. Todavia, nos

114 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

meses em que a Câmara Municipal pagou a primeira parcela do décimo-terceiro salário, a situação se inverteu, pois, não havendo pagamento desta parcela, pelo Estado, no mesmo mês, o resultado da compensação era integralmente favorável a esta Casa Legislativa.

Nada obstante, o Estado do Rio de Janeiro jamais pagou o que era devido, o que gerou sucessivos débitos, apurados e noticiados às fls. 03, 15 e 26. Vários ofícios foram enviados e reiterados, sem que se obtivesse o pagamento da dívida ou mesmo qualquer resposta por parte do Governo Estadual, sendo o mais recente o que consta às fls. 07.

Diante deste quadro, o Exmº Sr. Presidente consulta esta Procuradoria-Geral sobre a possibilidade de compensar o débito acumulado do Estado com os pagamentos que são feitos mensalmente por esta Câmara Municipal.

Passo a opinar.

2. Apreciação

A cessão de servidores entre entes federativos é instituto de largo uso na Administração Pública Brasileira, e tem fundamento na mútua colaboração entre as administrações locais e na eventual necessidade de quadros técnicos que não possam ser encontrados no próprio ente requisitante.

Como é de amplo conhecimento, a cessão pode se dar com ônus para o órgão cedente ou para o cessionário. Na primeira hipótese, o servidor simplesmente presta serviços em órgão diverso, mas continua recebendo sua remuneração pelo órgão de origem. Já no segundo caso, o procedimento mais usual é que o servidor continue recebendo pelo órgão de origem, mas que o órgão cessionário faça o reembolso, ao cedente, da despesa referente à remuneração do servidor.

Dado o razoável número de servidores estaduais cedidos a esta Câmara Municipal, e vice-versa, atendeu plenamente à economicidade e à racionalidade administrativa a celebração do convênio em tela, que permite que, após um ajuste de contas, seja efetuado apenas o pagamento da diferença eventualmente devida por um dos convenentes.

Nada obstante, nota-se que a execução do Convênio vem sendo feita de maneira distorcida, pois uma das partes paga regularmente quando a diferença

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 115

lhe é desfavorável, mas a outra não tem o mesmo procedimento, deixando de pagar o que deve, quando apurado um débito contra si. Daí a indagação sobre a possibilidade de se utilizar a compensação.

A compensação é instituto amplamente conhecido na Teoria Geral do Direito, e atualmente tem previsão legal no art. 368 do Código Civil, verbis:

Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.

Na clássica lição de Caio Mário da Silva Pereira :

“A compensação no Direito brasileiro opera por força de lei. Na sua sistemática, a compensação é legal. Poderá, isto sim, ser afastada por convenção ou ser estendida a casos que não se compreendem na compensação propriamente dita, o que mais corrobora ser ela legal, visto que não há mister a declaração de vontade para operar a compensação típica.”

1 (não sublinhado no original)

Como se percebe da lição acima, a compensação independe de expressa manifestação de vontade das partes. Ao contrário, a não aplicação da compensação é que depende de convenção expressa nesse sentido. Revendo as cláusulas do Convênio em análise, nota-se que não há nenhuma disposição que afaste a possibilidade de compensação na situação em tela. Aliás, seria mesmo incoerente que um instrumento que tem por objeto exatamente a compensação, mês a mês, viesse a proibi-la para um ajuste de contas relativo a períodos mais extensos de débitos e créditos recíprocos.

Como a análise, até aqui, ficou restrita à Teoria Geral do Direito, resta perquirir se o instituto teria aplicação no âmbito do Direito Administrativo, ou se haveria alguma objeção neste particular. O questionamento é pertinente, na medida em que se afirma, com freqüência, que ao administrador público só é dado fazer aquilo que a lei determina, ao passo que ao particular é permitido fazer tudo que a lei não proíbe.

A assertiva continua válida, mas deve ser compreendida dentro de um conceito mais amplo, naquilo que Celso Antônio Bandeira de Mello, em valiosas páginas, caracterizou como o regime jurídico administrativo. Nas palavras do próprio Mestre:1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense,

1994. v. 2, p. 175.

116 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

“Juridicamente, esta caracterização consiste, no direito administrativo, segundo nosso modo de ver, na atribuição de uma disciplina normativa peculiar que, fundamentalmente, se delineia em função da consagração de dois princípios:a) Supremacia do interesse público sobre o privado;b) Indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos”

2

Do ponto de vista do primeiro princípio, a própria celebração do Convênio em análise se fez em atenção ao interesse público, e sua correta execução é a continuação desse desiderato inicial. Quanto à indisponibilidade, é certo que a busca de soluções – como a compensação aqui alvitrada – evitará a formação de um passivo de difícil recuperação, o que evidencia, mais que a possibilidade, o dever do administrador de buscar o pagamento do débito, preservando o Erário municipal.

Conclui-se, assim, que não há qualquer óbice à solução proposta, no sentido de compensar os débitos acumulados pelo Estado com os pagamentos futuros a serem efetuados pela Câmara Municipal, por força do mesmo Convênio. Desse modo, caso decida a Administração Superior desta Casa Legislativa por tal solução, deverá previamente ser feita uma apuração, consolidando todos os débitos até o momento existentes, seguindo-se autorização expressa da Mesa Diretora para que se faça a dedução nos pagamentos futuros, até o limite dos débitos apurados. É conveniente, também, que seja expedido Ofício ao Exmº Sr. Secretário de Estado de Administração, comunicando a decisão e encaminhando cópia deste pronunciamento.

3. Conclusões

Do exposto, concluo que é possível a compensação dos débitos acumulados pelo Estado do Rio de Janeiro com os pagamentos futuros devidos por esta Casa Legislativa, ambos com fundamento no mesmo instrumento contratual (Convênio nº 01/03), observadas as cautelas expostas neste Parecer.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 18 de abril de 2005.

2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 6. ed. São Paulo:

Malheiros, 1995. p. 16.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 117

VISTO. Aprovo o Parecer nº 03/05-SAFF, retro/supra.

Encaminhe-se à consideração do Excelentíssimo Senhor Presidente.

Em 18 de abril de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Sérgio Antônio Ferari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Direito Constitucional e Financeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 121

Considerações sobre requerimento do Ministério Público de cópias de decla-rações de rendimentos de vereadores e

ex-vereadoresParecer nº 04/05-FACB

Ementa: - Requerimentos extraídos de inquéritos civis instaurados pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, encaminhados ao Presidente desta Câmara Municipal do Rio de Janeiro, para fornecimento de declarações de rendimentos de Vereadores e ex-Vereadores. - Requerimentos que, por seu conteúdo, merecem detida reflexão acerca dos limites da atuação do Ministério Público em detrimento do direito de intimidade, mesmo de agentes públicos.- Primeira ponderação, com base em jurisprudência, pela necessidade de prévia submissão da questão ao Poder Judiciário.- Segunda ponderação pela ausência de motivação na requisição de quebra do sigilo. - Risco de que fornecimento de dados cobertos por sigilo possa representar invasão à intimidade daqueles que estão sendo investigados.- Parecer pela expedição de ofício tecendo tais considerações ao Ministério Público, com cópia aos Vereadores citados para, querendo, fornecer espon-taneamente suas próprias declarações de rendimentos.

Excelentíssimo Senhor Presidente,

1. Histórico

A Presidência desta Câmara Municipal do Rio de Janeiro vem recebendo diversos ofícios oriundos do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro requerendo, com base no que dispõem os arts. 8

o, §1

o, da Lei nº 7.347/85, e

122 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

26, I, “b”, da Lei nº 8.625/93, cópias de declarações de rendimentos de alguns ex-Vereadores e de outros tantos que ainda detêm mandato parlamentar nesta Casa Legislativa.

Todos os Ofícios têm como traço comum a expressa alusão a reportagens veiculadas pelo Jornal “O Globo”, ao longo do mês de julho de 2004, que tratam de variação no patrimônio de Vereadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. É fato, contudo, que vários dos Vereadores, cujas declarações de rendimentos estão sendo solicitadas, não são citados nas referidas matérias jornalísticas.

Após o recebimento de tais ofícios, S. Exa. pede a manifestação desta Procuradoria-Geral.

2. Considerações iniciaisConsiderado o teor das solicitações formuladas pelo Ministério Público,

parece ser indispensável examinar, de uma parte, o feixe de atribuições do Ministério Público, tendo em conta, especialmente, o contido no art. 129 da Constituição Federal. Por outro lado, contudo, deve-se estudar se as informações requeridas estariam no elenco de dados cobertos pelo manto do sigilo, espécie do gênero direito à intimidade, assegurado pelo art. 5º, X, da Constituição Federal, considerando-se, por fim, que as informações requeridas referem-se, tão somente, a período em que os investigados encontravam-se no exercício da vereança nesta Casa Legislativa.

A matéria, portanto, demandaria um longo e detido estudo acerca da ponderação dos valores constitucionais em jogo, abordando o alcance do direito à intimidade, bem como a competência do Ministério Público no campo investigatório, questão que, a propósito, vem sendo objeto de aceso debate no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inquérito 1 Trata-se de inquérito em que se pretende o recebimento de denúncia oferecida contra deputado

federal e outros pela suposta prática de crime de estelionato (CP, art. 171, §3º), consistente em fraudes, perpetradas por médicos que trabalhavam na clínica da qual os denunciados eram sócios, que teriam gerado dano ao Sistema Único de Saúde - SUS, as quais foram apuradas por meio de investigações efetivadas no âmbito do Ministério Público Federal. Na sessão de 15.10.2003, o Min. Marco Aurélio, relator, rejeitou a denúncia, por entender que o órgão ministerial não possui competência para realizar diretamente investigações na esfera criminal, mas apenas de requisitá-las à autoridade policial competente, no que foi acompanhado pelo Min. Nelson Jobim. Em voto-vista, o Min. Joaquim Barbosa divergiu desse entendimento e recebeu a denúncia. Os Ministros Eros Grau e Carlos Britto acompanharam a divergência. Após, o Min. Cezar Peluso pediu vista dos autos.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 123

nº 19681 . Não obstante, considerada a necessidade de uma pronta resposta

e o anseio por conferir à presente manifestação um conteúdo de ordem mais prática, o exame levará em conta, fundamentalmente, a legislação pertinente e a interpretação que as mais altas Cortes do país dão ao tema.

A conclusão do presente Parecer – adianta-se – é no sentido de se sugerir a expedição do Ofício ao Ministério Público ponderando que a eventual disponibilização de informações constantes nas declarações de rendimentos de Parlamentares, com ou sem mandato, sem prévia apreciação judicial e sem uma mínima motivação, poderá vir ferir direitos de intimidade dos investigados. Tal conclusão decorre do exame, como se disse, de jurisprudência dos Tribunais Superiores, e será alcançada através do desenvolvimento de duas ponderações centrais:

a) a jurisprudência dos Tribunais Superiores é firme no sentido de que o Poder Judiciário deve deliberar acerca de pedidos de quebra de sigilo formulados pelo Ministério Público;

b) a determinação de quebra de sigilo promovida pelo Ministério Público, mesmo que cabível, deve ser minimamente motivada.

A presente manifestação, por óbvio, não constitui um libelo contra a solicitação do Parquet. Tratando-se, inclusive, de solicitações – e não requisições, estas sim de indisfarçável força coercitiva – pode-se concluir que o Ministério Público receberá a presente manifestação como salutar exercício no campo das idéias e debates.

3. Primeira ponderação: da eventual necessidade de prévio exame juducial do pedido de quebra do sigilo

Cumpre, inicialmente, afirmar que constitui dever de todo agente público apresentar a declaração de bens e valores que compõem seu patrimônio privado, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente, a teor do que expressamente prescreve o art. 13 da Lei nº 8.429/92, verbis.

"art. 13. A posse e o exercício de agente público ficam condicionados à apresentação de declaração dos bens e valores que compõem o seu patrimônio privado, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente.§ 1° A declaração compreenderá imóveis, móveis, semoventes, dinheiro, títulos, ações, e qualquer outra espécie de bens e valores patrimoniais, localizado no País ou no exterior, e, quando for o caso, abrangerá os bens

124 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

e valores patrimoniais do cônjuge ou companheiro, dos filhos e de outras pessoas que vivam sob a dependência econômica do declarante, excluídos apenas os objetos e utensílios de uso doméstico. § 2º A declaração de bens será anualmente atualizada e na data em que o agente público deixar o exercício do mandato, cargo, emprego ou função. § 3º Será punido com a pena de demissão, a bem do serviço público, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, o agente público que se recusar a prestar declaração dos bens, dentro do prazo determinado, ou que a prestar falsa. § 4º O declarante, a seu critério, poderá entregar cópia da declaração anual de bens apresentada à Delegacia da Receita Federal na conformidade da legislação do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza, com as necessárias atualizações, para suprir a exigência contida no caput e no § 2° deste artigo ".

Assim sendo, até por força de lei, não podem os agentes públicos, em geral, opor exceções – como de eventual direito a sigilo – ao dever de apresentar sua declaração de bens, sob pena de demissão, ou punição similar aplicável à espécie. Determina, ainda, a lei que o depositário de tais informações será o serviço de pessoal da respectiva repartição.

Dito isto, caberia já indagar se teria o Ministério Público, por conta de suas atribuições de índole constitucional, livre acesso a esses dados, independentemente da ocorrência de algum fato que possa, ao menos em tese, caracterizar-se como ato ilícito, sob sua esfera de perquirição.

Tal indagação, em verdade, constituiria mais uma faceta desse amplo debate acerca do papel do Ministério Público, questão que ainda hoje vem sendo examinada, como visto, no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Por tais fundamentos, será oportuno trazer um resumo do entendimento das Cortes Superiores e de abalizada doutrina, para se alcançar uma conclusão.

Constitui fato incontroverso que o Ministério Público dispõe de prerrogativa de índole constitucional para promover inquéritos civis para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, a teor do que expressamente estabelece o art. 129, III, da Constituição Federal.

Dispõe o art. 8º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que, para instruir ações civis públicas, o Ministério Público pode instaurar, sob sua presidência,

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 125

inquérito civil ou, ainda, requisitar, de qualquer organismo público, certidões, informações, exames e perícias para instruir Ação Civil Pública. O destinatário somente poderá negar certidão ou informação, “nos casos em que a Lei impuser sigilo” (art. 8º, § 2º). Tal texto acha-se em plena conformidade com o art. 26 da Lei nº 8.625

2, que constitui a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.

Há que se perquirir, contudo, se o Ministério Público detém competência para requisitar – diretamente e sem qualquer motivação – dados que estariam protegidos pelo manto do sigilo fiscal, pesquisando-se, mais, se agentes públicos poderiam opor exceção de sigilo dos períodos em que receberam remuneração dos cofres públicos.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, até aqui, tem sido pacífica no sentido de que, a despeito das respectivas legislações orgânicas, o Ministério Público – Federal ou Estadual – não dispõem de competência para, diretamente, quebrar o sigilo bancário ou fiscal de cidadãos. Esse entendimento pode ser bem resumido na ementa do Recurso Extraordinário nº 215.301, vazada nos seguintes termos, e aplicável à hipótese de sigilo fiscal:

“CONSTITUCIONAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. SIGILO BANCÁRIO: QUEBRA. C.F., art. 129, VIII. I. - A norma inscrita no inc. VIII, do art. 129, da C.F., não autoriza ao Ministério Público, sem a interferência da autoridade judiciária, quebrar o sigilo bancário de alguém. Se se tem presente que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade, que a C.F. consagra, art. 5º, X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria o Ministério Público a promover, diretamente e sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa. II. - R.E. não conhecido”

3.

2 Ar t . 26 - No exercíc io de suas funções , o Minis tér io Públ ico poderá:

I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los:a) expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentos e, em caso de não compa-recimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar, ressalvadas as prerrogativas previstas em lei;b) requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou funda-cional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; c) promover inspeções e diligências investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades a que se refere a alínea anterior.3 Recurso Extraordinário 215.301-CE. 2

a Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ, 28.5.1999, p.

24, RTJ, 169, p. 700.

126 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Nesse julgamento, o Ministro Carlos Velloso teceu as pertinentes considerações, de cunho processual, instando que o Ministério Público busque sempre a chancela do Poder Judiciário para legitimar o afastamento do sigilo de dados do investigado:

“Pode o Ministério Público, portanto, presentes as normas do inciso VIII, do art. 129, da C.F., requisitar diligências investigatórias e requisitar a instauração de um inquérito policial, indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. As diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial deverão ser requisitadas, obviamente, à autoridade policial. Ora, no citado inc. VIII, do art. 129, da C.F., não está escrito que poderia o órgão do Ministério Público requerer, sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de alguém. E se considerarmos que o sigilo bancário de espécie de direito à privacidade que a Constituição consagra, art. 5º, inc. X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria a ação do Ministério Público para requerer, diretamente, sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa.”

Coerentemente, em outro julgamento marcante – e que será adiante referido – o Min. Carlos Velloso fez a seguinte declaração de voto:

“Então deixo assentado, como premissa maior, esta: é possível à norma infraconstitucional estabelecer caso em que será aceita a quebra do sigilo bancário. Como, entretanto, isso poderá ocorrer? Penso que, tratando-se de um direito que status constitucional, esta quebra não pode ser feita por quem não tem o dever da imparcialidade. Somente pode ser realizada, a quebra do sigilo, pela autoridade judiciária, dado que esta procederá sempre com cautela, com prudência, com moderação, porque estas são virtudes inerentes à magistratura, ou virtudes que os magistrados devem possuir. Não posso admitir que a parte, que não tem o dever ou a obrigação de ser imparcial, e que há de ser parcial, porque é inerente à parte ser parcial, não posso admitir que possa ela própria, por suas próprias mãos, efetivar a quebra de um direito inerente à privacidade, que a Constituição consagra, que tem, portanto, status constitucional. As funções do Ministério Público, data venia, por mais importantes que sejam, elas são, entretanto, sobretudo, de parte, de quem requer e não decide, a quem compete a obrigação de ser imparcial. O advogado é sempre parcial, porque não defende a parte. E o Ministério Público é advogado da sociedade, é órgão de acusação na ação penal. Nós que somos juízes há muito tempo, sabemos que o Ministério Público excepcionalmente age como se fosse magistrado. Mas, ele tem o papel de defensor da sociedade,

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 127

é o órgão que promove a ação penal, é parte, pois. Portanto, ele é parte, e a parcialidade é inerente à parte. De modo que penso ser possível à lei conferir ao Ministério Público o direito de promover a quebra do sigilo bancário, num procedimento ou num devido processo legal, mediante a atuação do Poder Judiciário, da autoridade que tem a obrigação de ser imparcial e que, portanto, deverá proceder, repito, com cautela, com prudência e com moderação”

4.

Recentemente, o Ministro Cezar Peluso buscou resumir o entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação à quebra do sigilo bancário e fiscal afirmando que:

“a discussão atinente à quebra de sigilo bancário pela autoridade administrativa, sem a participação da autoridade judiciária, já foi ventilada por esta Corte, pelo menos, nos seguintes julgamentos: MS nº 21.729-4, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ de 19/10/2001; MS nº 23.851, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 21/06/2002; PET n° 2790 AgR, Rel. Min. NELSON JOBIM, DJ de 11/04/2003, e RE n° 215.301, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ de 28/05/1999. Em todos, assentou-se que a proteção aos dados bancários configura manifestação do direito à intimidade e ao sigilo de dados, garantido nos incs. X e XII do art. 5º da Constituição Federal, só podendo cair à força de ordem judicial ou decisão de Comissão Parlamentar de Inquérito, ambas com suficiente fundamentação. A exceção deu-se no julgamento do MS n° 21.729, em que se admitiu que o Ministério Público obtivesse diretamente os dados, por tratar-se de empresa com participação do erário (patrimônio e interesse público)

5”.

Já por diversas ocasiões, portanto, o Supremo Tribunal Federal manifestou convicção de ver o sigilo de dados de operações financeiras como desdobramento do direito à privacidade assegurado no inciso X do art. 5º da Constituição Federal, que constitui ainda uma das formas de expressão da liberdade prestigiada no seu caput, só passível de flexibilização, pela Administração Pública ou pelo Ministério Público, através de ordem judicial.

Invoque-se, ainda, votos proferidos no julgamento do MS nº 21.729 - 4 (adiante referido), destacando algumas palavras do Ministro Celso de Mello de que “o magistério doutrinário, bem por isso, tem acentuado que o sigilo 4 Voto proferido no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.729. RTJ, v. 179, p. 257.

5 Ação Cautelar em medida cautelar nº 415, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ, 20.9.2004, p. 13.

128 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

bancário – que possui extração constitucional – reflete, na concreção do seu alcance, um direito fundamental da personalidade, expondo-se, em conseqüência, à proteção jurídica a ele dispensada pelo ordenamento jurídico do Estado.”

O Superior Tribunal de Justiça vem adotando idêntica linha de entendimento, valendo, por oportuno, destacar algumas de suas mais expressivas decisões:

“RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO. POSSIBILIDADE, DESDE QUE DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA A MEDIDA.O direito aos sigilos bancário e fiscal não configura direito absoluto, podendo ser elidido se presentes indícios ou provas que o justifiquem, desde que devidamente demonstrados na decisão do Magistrado.Recurso desprovido”

6.

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO. DIREITO NÃO ABSOLUTO. PRECEDENTES. NECESSIDADE DA MEDIDA SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADA NA DECISÃO. REQUISIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE.1. A inviolabilidade do sigilo bancário não é absoluta, podendo ser quebrantado em casos excepcionais, quando presentes circunstâncias que denotem a existência de interesse público relevante ou de elementos aptos a indicar a possibilidade de prática delituosa, através de decisão devidamente fundamentada. Precedentes do STJ. 2. Na presente hipótese, a decisão que determinou a quebra do sigilo bancário, encontra-se suficientemente fundamentada, porquanto demonstrou a necessidade da medida, em face da existência de indícios idôneos, reveladores de possível autoria de prática delituosa, além, ainda, de efetivar a individualização do investigado, bem como do objeto da investigação.3. O Ministério Público possui legitimidade para requerer ao Poder Judiciário a quebra de sigilo bancário, uma vez que a ordem jurídica, conforme se extrai dos arts. 129, incisos VI e VIII, da Constituição Federal, e 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar nº 75/1993, confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público.

6 RHC 15.643/RS, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ, 01.02.2005, p. 580.

7 RMS nº 17.649/MT, 5

a Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ, 02.08.2004, p. 435.

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4. Recurso desprovido7”.

“PENAL E PROCESSUAL. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E O SISTEMA FINANCEIRO. LAVAGEM DE DINHEIRO. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. DILIGÊNCIAS PRELIMINARES. INFORMAÇÕES PROTEGIDAS POR SIGILO. FORNECIMENTO AO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LC nº 105/2001. SIGILO BANCÁRIO. QUEBRA. DECISÃO JUDICIAL. LEGALIDADE.Compete ao Ministério Público, no exercício de suas funções, em defesa do interesse público, requisitar diligências investigatórias e, ainda, a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais (art. 129, inciso VIII, da Constituição Federal).É obrigação do Banco Central do Brasil comunicar, às autoridades competentes, a prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa, sem que tal mister importe em quebra de sigilo (artigo 9º, da Lei Complementar nº 105/2001).Os sigilos bancário e fiscal não constituem direito absoluto e devem ceder quando razões de interesse público, devidamente fundamentadas, demonstrarem a conveniência de sua quebra, mediante ordem judicial. O habeas corpus constitui ação constitucional destinada ao resguardo do direito do paciente quanto a ir, vir e permanecer, desde que ameaçados por coação ilegal ou abuso de poder. Precedentes do STJ.Na espécie, os informes requeridos pela Procuradoria Regional da República em Pernambuco decorrem de autorização legal, foram fornecidas ex lege e o sigilo bancário foi quebrado por decisão judicial devidamente fundamentada.Ordem denegada”

8.

Várias outras decisões semelhantes poderiam ser aqui acostadas, na medida em que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça é sólido nesse sentido, tendo o Ministro Francisco Falcão, recentemente, afirmado que “em vários precedentes, esta Corte Superior vem entendendo ser inviável a quebra do sigilo bancário sem prévia ordem judicial, visto que este segredo, mesmo não sendo absoluto, está plenamente delimitado através de mandamento 8 Habeas Corpus nº 24577/PE, Relator Min. PAULO MEDINA, DJ, 01.03.2004.

9 Trecho de voto proferido no Recurso Especial nº 657.037-RJ.

10 “O sigilo e a Constituição”, publicado na Folha de São Paulo, em 9/12/00.

130 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

constitucional”9.

Várias são as lições da doutrina nesse mesmo sentido. Cite-se, por ora, apenas a lição de Celso Bastos, para quem “o sigilo bancário é uma das fontes de proteção à intimidade e à vida privada previstas no inciso X, do artigo 5º da Constituição de 1988. Não é difícil nem ousado afirmar que o pretendido pelo Legislativo no projeto de lei tendente a abolir a necessidade de autorização judicial em razão de decurso de prazo na quebra de sigilo bancário não tem condições de ganhar foro de juridicidade.

10”

Marino Pazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Junior, membros do Ministério Público do Estado de São Paulo, em obra sobre improbidade administrativa, concluem que:

“Ao direito individual à privacidade deve se antepor o interesse público na apuração dos casos de corrupção administrativa, na supremacia da lei sobre a ilicitude e no primado da Justiça. É uma decorrência do princípio da proporcionalidade. É fato, mas que deve ser verificado em cada caso pela via própria, no caso aquela eleita pelo constituinte: a via judiciária.Realmente, não se pode conceber que um agente público que viola a imoralidade administrativa e todos os padrões de legalidade, praticando atos de improbidade contra a coisa pública, possa valer-se do sigilo bancário para colocar obstáculos à apuração promovida pelo Ministério Público e, assim, ancorado a pretenso sigilo constitucional, ficar a salvo das sanções que deve receber. Deve, no caso, ser removido o manto de proteção constitucional, ficar a salvo das sanções que deve receber. Deve, no caso, ser removido o manto de proteção constitucional, mas pelo caminho adequado, justificadamente, sem amarrar os braços do Ministério Público e sem permitir que o devassar da privacidade se torne regra”

11.

Bem se vê, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça está a recomendar ao prévio crivo do Poder Judiciário o pedido de quebra de sigilo bancário ou fiscal de qualquer cidadão, sendo esta, portanto, a primeira ponderação que deve ser submetida ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

4. Segunda ponderação: da necessidade de motivação para a 11

PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias, FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: aspectos jurídicos da defesa do patrimônio público. 4. ed. São Paulo: Atlas, p. 187. Original sem destaques.

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quebra do sigilo

Como visto, há sérios questionamentos acerca da possibilidade de o Ministério Público determinar, diretamente, a quebra do sigilo de qualquer cidadão. Mas a questão, por óbvio, ensejaria um diferente enfoque quando, como no presente caso, pleiteia-se a quebra do sigilo fiscal ou bancário de um ente ou agente público.

O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de decidir, por maioria, que o Parquet teria competência para, naquele específico caso, obter diretamente dados sigilosos de operações de financiamento realizadas pelo Banco do Brasil S.A., sociedade de economia mista, exatamente por lidar, na espécie, com dinheiro público. A ementa desse julgamento foi publicada nesses termos:

“Ementa: - Mandado de Segurança. Sigilo bancário. Instituição financeira executora de política creditícia e financeira do Governo Federal. Legitimidade do Ministério Público para requisitar informações e documentos destinados a instruir procedimentos administrativos de sua competência. 2. Solicitação de informações, pelo Ministério Público Federal ao Banco do Brasil S/A, sobre concessão de empréstimos, subsidiados pelo Tesouro Nacional, com base em plano de governo, a empresas do setor sucroalcooleiro. 3. Alegação do Banco impetrante de não poder informar os beneficiários dos aludidos empréstimos, por estarem protegidos pelo sigilo bancário, previsto no art. 38 da Lei nº 4.595/1964, e, ainda, ao entendimento de que dirigente do Banco do Brasil S/A não é autoridade, para efeito do art. 8º, da LC nº 75/1993. 4. O poder de investigação do Estado é dirigido a coibir atividades afrontosas à ordem jurídica e a garantia do sigilo bancário não se estende às atividades ilícitas. A ordem jurídica confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público – art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar nº 75/1993. 5. Não cabe ao Banco do Brasil negar, ao Ministério Público, informações sobre nomes de beneficiários de empréstimos concedidos pela instituição, com recursos subsidiados pelo erário federal,

12 Mandado de Segurança nº 21.729-DF, Pleno, Relator Min. Marco Aurélio, DJ, 19.10.2001,

p. 33, RTJ, 179, p. 225

132 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

sob invocação do sigilo bancário, em se tratando de requisição de informações e documentos para instruir procedimento administrativo instaurado em defesa do patrimônio público. Princípio da publicidade, ut art. 37 da Constituição. 6. No caso concreto, os empréstimos concedidos eram verdadeiros financiamentos públicos, porquanto o Banco do Brasil os realizou na condição de executor da política creditícia e financeira do Governo Federal, que deliberou sobre sua concessão e ainda se comprometeu a proceder à equalização da taxa de juros, sob a forma de subvenção econômica ao setor produtivo, de acordo com a Lei nº 8.427/1992. 7. Mandado de segurança indeferido”

12.

Prevaleceu, neste caso, o voto condutor do então Ministro Francisco Rezek de que o sigilo bancário, de per si, não constituiria uma garantia de status constitucional, e que as operações financeiras de uma sociedade de economia mista não poderiam ser excluídas do exame de uma instituição como o Ministério Público, especialmente “em virtude de denúncias ou notícias de irregularidades”, como literalmente, anotou o Ministro Néri da Silveira, em seu voto.

Poder-se-ia, portanto, na ausência de hipóteses similares à que ora se examina, concluir que, na suspeita de malversação de dinheiro público, o Ministério Público teria, sim, direito a proceder diretamente à investigação, acatados os limites da interferência a uma outra garantia de índole constitucional – o direito de intimidade – observados, também, os princípios da razoabilidade e da motivação.

Em síntese: conquanto o art. 5º, X, da Carta Magna tenha como invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, essas garantias devem ceder, inapelavelmente, ante o que o Ministro Celso de Mello chamou, com propriedade, de uma “causa provável”, ou seja, uma “fundada suspeita quanto à ocorrência de fato cuja apuração resulte exigida pelo interesse público”. E será essa causa provável que constituirá, em última análise, a própria motivação para o afastamento dos sigilos fiscal e bancário. Colha-se, pois, o entendimento do Min. Celso de Mello, manifestado no julgamento do citado Mandado de Segurança nº 21.729-DF:

“Sendo assim, impõe-se o deferimento da quebra de sigilo bancário, sempre que essa medida se qualificar como providência essencial e indispensável à satisfação das finalidades inderrogáveis da investigação estatal, desde que – consoante adverte a doutrina – não exista “nenhum meio menos

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 133

gravoso para a consecução de tais objetivos” (MARTINS, Ives Gandra, MENDES, Gilmar Ferreira. Sigilo bancário, direito de autodeterminação sobre informações e princípio da proporcionalidade. Repertório IOB de Jurisprudência,n. 24/92, 2

a quinzena de dezembro 1992).

Contudo, para que essa providência extraordinária, e sempre excepcional, que é a decretação da quebra do sigilo bancário, seja autorizada, revela-se imprescindível a existência de causa provável, vale dizer, de fundada suspeita quanto à ocorrência de fato cuja apuração resulte exigida pelo interesse público. Na realidade, sem causa provável, não se justifica, sob pena de inadmissível consagração do arbítrio estatal e de inaceitável opressão do indivíduo pelo Poder Público, a disclosure das contas bancárias, eis que a decretação da quebra do sigilo não pode converter-se num instrumento de indiscriminada e ordinária devassa da vida financeira das pessoas. A existência de causa provável atua, pois, como um insuperável obstáculo à decretação da quebra do sigilo bancário. Constitui, em suma, quando devidamente configurada, fator de legitimação dessa medida, que sempre se apresenta – não custa reiterar – qualificada pela nota da excepcionalidade”.

Pode-se afirmar, pois, que, na verdade, a necessidade de demonstração da causa provável se confunde com o dever de motivação estampado no art. 93, IX, da Constituição Federal.

Germana de Moraes leciona que a motivação dos atos administrativos compreende, ao mesmo tempo, a necessidade de ser trazido à evidência os motivos de fato e os fundamentos jurídicos em que está apoiado o administrador para justificar a tomada de decisão

13. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por seu

turno, considera a motivação do ato administrativo imprescindível para efeitos de permitir uma avaliação da razoabilidade do ato, franqueando aos administrados conhecerem os motivos que levaram a administração a adotar determinada medida, de forma a alcançar as finalidades consignadas implícita ou explicitamente na lei

14. Com efeito, através da motivação do ato administrativo

torna-se possível aferir sobre a existência ou veracidade dos pressupostos de fato declinados pelo administrador, cuja análise e interpretação é necessária ao correto processo de subsunção da norma sobre o fato, conferindo, como conseqüência, ampla transparência à atividade administrativa.13

Obrigatoriedade de motivação, clara, congruente e tempestiva dos atos administrativos. Revista de Interesse Público, São Paulo, ano 2, n. 8, p. 47, out./dez. 2000. 14

Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991. p.151.

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Depreende-se da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que as Comissões Parlamentares de Inquérito são as únicas, ao lado do próprio Poder Judiciário, que detêm a prerrogativa de determinar a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico. Tal circunstância, todavia, não lhes confere eventual direito a deixar de fundamentar suas deliberações, entendendo-se que a “quebra ou transferência de sigilos bancário, fiscal e de registros telefônicos que, ainda quando se admita, em tese, susceptível de ser objeto de decreto de CPI – porque não coberta pela reserva absoluta de jurisdição que resguarda outras garantias constitucionais –, há de ser adequadamente fundamentada” (Mandado de Segurança nº 23480/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julg. em 4/5/2000, DJ, 15.9.2000, p. 119)

Também já se decidiu que “as deliberações de qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, à semelhança do que também ocorre com as decisões judiciais (RTJ 140/514), quando destituídas de motivação, mostram-se írritas e despojadas de eficácia jurídica, pois nenhuma medida restritiva de direitos pode ser adotada pelo Poder Público, sem que o ato que a decreta seja adequadamente fundamentado pela autoridade estatal”. (Mandado de Segurança nº 23.452-Rio de Janeiro, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 12.5. 2000, p. 86)

No julgamento do Mandado de Segurança nº 23.879, relatado pelo Ministro Maurício Correa, afirmou-se a unanimidade da Corte quanto ao “entendimento de que é imprescindível a fundamentação dos atos das CPIs que ordenam a quebra dos sigilos bancários, fiscais e telefônicos, visto que, assim como os atos judiciais são nulos se destituídos de fundamentação, assim também os das referidas comissões. A elas o §3

o do artigo 58 da Constituição

confere ‘os poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias’.”

Os já citados Representantes do Ministério Público do Estado de São Paulo, Marino Pazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Junior, têm o mesmo entendimento:

“Importante é ter presente que a ação civil pública exige um mínimo de indícios que demonstrem a ocorrência da situação lesiva ao interesse público, bem como os respectivos responsáveis, tornando viável o exercício final da tutela jurisdicional.Desse modo, no caso, o pressuposto para a instauração do inquérito civil 15

PAZZAGLINI FILHO, op. cit. Os autores são membros do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 135

é a existência de um fato noticiado como de improbidade administrativa, com ou sem lesão ao erário. (...)Não é possível que o Ministério Público se preste à pesquisa aleatória de fatos para, se eventualmente os detectar, passar então a apurar cada um deles. Essa atividade representa autêntica devassa, não condizente com a destinação constitucional do Ministério Público, de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127 da CF”

15.

A consistente motivação assume relevância especial, segundo lição de Daniel Sarmento, em casos que, como o presente, ocorra ponderações de interesses, “já que estas envolvem uma operação muito mais complexa do que a simples subsunção, na qual a subjetividade do julgado ganha um peso marcante. Conforme ressaltou Ângelo Antonio Cervati, incumbe ao órgão jurisdicional, na ponderação de interesses, um ônus de motivação jurídica, que requer um empenho tanto maior quanto mais as decisões se fundem na utilização de parâmetros elásticos de valoração ou em cláusulas constitucionais formadas de modo aberto”

16

Obviamente, o Ministério Público não se acha excluído deste dever de motivar seus atos, mormente quando vem a interferir, diretamente, na intimidade de um cidadão, ainda que na qualidade de Parlamentar, auferindo verbas públicas.

Pelo que se pode observar, os requerimentos direcionados a esta Casa Legislativa postulam o fornecimento de cópias das declarações de rendimentos. Nada mais é dito. Consta, contudo, na epígrafe do Ofício encaminhado a menção a artigos publicados no jornal “O Globo” no mês de julho de 2004, acerca do patrimônio de um número restrito de Vereadores, sendo certo que o pedido formulado pelo Parquet contempla, na sua grande maioria, Parlamentares que sequer foram referidos nas matérias então publicadas. Mesmo com relação aos Vereadores que foram citados nas reportagens, pode-se dizer que inexiste qualquer motivação que possa, em tese, justificar o requerimento. Em outras palavras, pode-se afirmar que os Parlamentares estão sendo investigados pela 16

A Ponderação de interesses na Constituição Federal. 1. ed., 3. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 119. O autor refere-se à motivação das decisões judiciais, sendo tal discurso, obviamente, aplicável a determinações, como a presente, emanadas do Parquet.

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só circunstância de serem agentes públicos, inexistindo, ao que parece, o que o STF chamou de “causa provável”.

Assim, apesar do amplo feixe de atribuições do Ministério Público, e pelo que se demonstrou, não parece ser pacífico que a legislação lhe confira a competência para requisitar, diretamente, os dados fiscais, ainda que de agentes públicos. Aduza-se a tal fato a circunstância de a requisição vir desacompanhada de qualquer motivação.

Não se está aqui, sob hipótese alguma, a recomendar o desatendimento ao que foi requerido pelo Ministério Público. O intuito da presente manifestação é subsidiar a Presidência desta Casa Legislativa do atual entendimento das Cortes Superiores acerca dos requerimentos de informações fiscais e bancárias.

De toda forma, parece ser oportuno o envio de cópia do Ofício de fls. 2 aos Parlamentares que têm, atualmente, assento nesta Casa Legislativa, para adotarem as medidas que julgarem pertinentes, inclusive, se for o caso, no sentido de fornecer, espontaneamente, os documentos solicitados.

No entanto, considerada a existência de uma torrente de decisões de Cortes Superiores recomendando a prévia submissão do requerimento ao controle judiciário, deseja este Procurador sugerir a expedição de Ofício em resposta aos pedidos formulados pelo Ministério Público, ponderando acerca da eventual necessidade de motivação ou de prévia manifestação do Poder Judiciário.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 23 de maio de 2005.

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Subsídios dos vereadores nas convoca-ções extraordinárias

Parecer nº 01/05-SAFF

Ementa: Direito Constitucional. Subsídios dos Vereadores, relativos a período de convocação extraordinária. Natureza jurídica do subsídio: prerrogativa do mandato parlamentar, sem natureza de contraprestação ou correlação com o efetivo comparecimento às sessões. O exercício do mandato parlamentar não se restringe ao comparecimento às sessões, envolvendo várias outras atividades de relevante interesse. Convocação extraordinária: interpretação do § 4º do art. 39, em harmonia com o § 7º do art. 57 da Constituição da República. Ausência de previsão constitucional ou orgânica de pagamento proporcional do subsídio relativo à convocação extraordinária. Parecer pelo pagamento do valor correspondente a um subsídio integral, a cada Vereador, pela convocação extraordinária.

Senhora Procuradora-Geral

Cuida o presente processo de consulta formulada pelo Exmº Sr. Presidente, a respeito dos subsídios devidos aos Vereadores desta Casa Legislativa, em razão do período de convocação extraordinária no mês de janeiro passado.

1. A consulta

Como é do conhecimento de Vossa Excelência, esta Casa Legislativa foi convocada extraordinariamente, para apreciação de matérias relevantes, no

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período de 04 a 19 de janeiro passado.

Em razão disso, deseja o Exmº Sr. Presidente saber se o subsídio devido por essa convocação deveria ser proporcional ao período efetivo de sessões (04 a 19 de janeiro), ou, ao contrário, se deveria corresponder ao seu valor mensal integral.

Passo a opinar.

2. O subsídio na Constituição: sua natureza jurídica

Após várias alterações do texto constitucional, a atual disciplina do subsídio parlamentar está no § 4º do art. 39:

Art. 39. (omissis)§ 4º. O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.

No que tange especificamente ao subsídio dos Vereadores, o art. 29-VI, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 25, de 2000, assim dispõe:

Art. 29. (omissis)VI – o subsídio dos Vereadores será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais, em cada legislatura para a subseqüente, observado o que dispõe esta Constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e os seguintes limites máximos:f) em Municípios de mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, o subsídio máximo dos Vereadores corresponderá a 75% (setenta e cinco por cento) do subsídio dos Deputados Estaduais;

A atual redação do § 4º do art. 39, dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/06/98, retomou o termo “subsídio”, já utilizado no passado. Jessé Torres Pereira Junior, baseando-se na etimologia do termo “subsídio”, lembra sua peculiar natureza:

“O termo subsídio – do latim subsidium, ajuda, auxílio, de ordem pecuniária ou não (v. DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 4, p. 278) – é de largo e antigo trânsito no direito

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público brasileiro, inclusive no sentido com que o emprega a Emenda 19, ou seja, remuneração de agentes políticos.”

1

Já o Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a despeito de fazer forte crítica ao dispositivo, lembra o significado original de “subsídio”, em que o destinatário estaria “apenas a receber um auxílio, um aporte secundário (subsidiariu)”, acrescentando, em nota de rodapé, que “subsidiarius significa o que é da reserva, o que vem na retaguarda”

2.

De fato, é nítida a intenção do constituinte em distinguir o subsídio de outras espécies do gênero remuneração, como o vencimento do servidor público. O vencimento não é apenas uma contraprestação pelo cargo ocupado, mas pelo efetivo desempenho das atribuições que lhe são inerentes. Tanto é assim que o vencimento comporta hipóteses de suspensão de seu pagamento, como as faltas injustificadas do servidor, e até mesmo sua supressão, em caso de aplicação da sanção disciplinar de suspensão do cargo.

Já o subsídio, como indica o próprio significado do termo, é devido pelo só exercício do cargo, a ele aderindo, não se tratando de uma contraprestação por específicas tarefas desempenhadas. Coerentemente, não se cogita da supressão de seu pagamento nos períodos de recesso parlamentar, em que ao menos uma das atividades do Legislativo – a deliberação – fica suspensa. Como os demais institutos inerentes ao regime jurídico dos parlamentares, os subsídios não têm em vista a pessoa do parlamentar, mas a relevante função que desempenham, sendo, por isso, irrenunciáveis. Na lúcida observação do inolvidável Hely Lopes Meirelles: “As prerrogativas que se concedem aos agentes políticos não são privilégios pessoais; são garantias necessárias ao pleno exercício de suas altas e complexas funções governamentais e decisórias.”

3

Neste passo, cumpre fazer uma importante observação sobre o tema. Tem-se difundido pelos meios de comunicação, com grande rapidez, a noção de que a atividade do parlamentar se resumiria à presença em plenário

1 PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Da Reforma administrativa constitucional. Rio de Janeiro:

Renovar, 1999. p. 2192 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Apontamentos sobre a reforma administrativa. Rio

de Janeiro: Renovar, 1999. p. 79.3 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros,

1998. p. 77.

140 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

e à participação nas votações. Dentro desta visão distorcida, lançam-se juízos de valor sobre o “trabalho” ou a “assiduidade” dos parlamentares, aferindo-as apenas pela sua presença nas sessões plenárias. Equivocam-se gravemente os que alardeiam esta idéia, pois a função parlamentar inclui inúmeras outras atividades, como o trabalho das Comissões Permanentes, a elaboração legislativa em si (redação de projetos, emendas e pareceres), o acompanhamento e fiscalização da atividade do Poder Executivo, e, talvez o mais importante, o contato diuturno com os eleitores e comunidades.

Incorreriam em idêntico equívoco aqueles que dissessem que os Desembargadores só “trabalham” dois dias por semana, quando há sessão na sua Câmara ou Turma; ou ainda quem imaginasse que um sacerdote só “trabalha” no momento em que reza missas ou celebra cultos. Na verdade, esses profissionais exercem diariamente inúmeras outras atividades, não visíveis ao público, mas que são essenciais às missões que lhes foram confiadas.

Nada obstante, tal visão distorcida, infelizmente, vem ganhando adeptos até entre os próprios parlamentares, em todos os níveis de Federação.

Esta observação é importante para que fique mais clara a idéia de que o exercício do mandato se dá de forma permanente, não se resumindo a uma ou outra atividade do órgão legislativo a que pertence o parlamentar, tampouco se limitando ao recinto da casa legislativa, pois é comum – especialmente no âmbito municipal – que o contato com as comunidades se dê em finais de semana ou feriados.

E, num sistema de democracia representativa, o eleitor será o juiz maior da forma como o parlamentar aloca o seu tempo, em cada uma das múltiplas atividades inerentes à sua missão, inclusive ao comparecimento ao plenário.

Desse modo, qualquer tentativa de vincular o subsídio a uma ou outra atividade parlamentar contrariaria sua própria e especialíssima natureza jurídica, pois olvidaria a principal razão que levou o constituinte derivado a instituir dois regimes remuneratórios bem distintos, o dos vencimentos e o do subsídio.

Exatamente em razão desta peculiar natureza do subsídio, a Constituição foi bem clara em vedar o “acréscimo de qualquer gratificação,

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 141

adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”, nos termos do já transcrito § 4º do art. 39. Ora, se não se admite qualquer acréscimo ao subsídio (o que confirma tudo o que se disse acima sobre sua aderência ao cargo, e não às atividades exercidas), como outra face da mesma moeda, não se há de admitir a sua redução ou a realização de descontos. As exceções, num ou noutro sentido, é óbvio, só poderão estar previstas nos textos máximos de cada ente federativo (Constituição Federal, Constituição Estadual ou Lei Orgânica Municipal), observando-se, quando for o caso, o princípio da simetria. Uma destas exceções é o § 7º do art. 57, que será tratado no item seguinte.

3. O subsídio nas convocações extraordinárias

Como visto no item anterior, a Constituição estabeleceu como regra geral que o subsídio compõe-se de parcela única e invariável, não sujeita a acréscimos ou deduções, salvo as exceções previstas no próprio texto constitucional.

Uma destas exceções está consubstanciada no § 7º do art. 57, o qual, em redação dada por Emenda mais recente, a de nº 32, de 2001, passou a ter o seguinte teor:

Art. 57. (omissis)§ 7º. Na sessão legislativa extraordinária, o Congresso Nacional somente deliberará sobre a matéria para a qual foi convocado, ressalvada a hipótese do § 8º, vedado o pagamento de parcela indenizatória em valor superior ao subsídio mensal.

Poderia alguém dizer, a esta altura, que este dispositivo é fruto de alguma “distração” do constituinte derivado que, ao fazer a Emenda nº 32, não teria se dado conta de que as “parcelas” do subsídio teriam sido vedadas pela Emenda nº 19. Ainda que isso tenha ocorrido, pouco importa para o intérprete, pois a chamada vontade do legislador é sempre superada pelo efetivo resultado de sua produção normativa, pela vontade da lei.

A interpretação do dispositivo, porém, há de ter em conta duas premissas básicas da hermenêutica, uma constitucional e outra geral, a saber:

a) não há antinomia real entre duas normas de hierarquia constitucional;

142 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

b) a lei não possui palavras inúteis.

Para demonstrar a primeira premissa, que nada mais expressa que o princípio da unidade da Constituição, recorre-se às lições de dois autores renomados, um estrangeiro e um brasileiro, que assim a expressam:

“O princípio da unidade da constituição ganha relevo autónomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a Constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas. Como ponto de orientação, guia de discussão, e factor hermenêutico de decisão, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (ex.: princípio do Estado de Direito e princípio democrático, princípio unitário e princípio da autonomia regional e local). Daí que o intérprete deve sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios”

4

“Já se disse, anteriormente, que a ordem jurídica de cada Estado constitui um sistema lógico, que não admite a possibilidade de uma mesma situação jurídica estar sujeita à incidência de normas contrastantes entre si. O direito não tolera antinomias. Para impedir que tal ocorra, a ciência jurídica socorre-se de variados critérios, como o hierárquico e o da especialização, além de regras específicas que solucionam os conflitos de leis no tempo e no espaço. Contudo, à exceção eventual do critério da especialização, esse instrumental não é capaz de solucionar conflitos que venham a existir no âmbito de um documento único e superior, como é a Constituição. Mais que isso: do ponto de vista lógico, as normas constitucionais, frutos de uma vontade unitária e geradas simultaneamente, não podem jamais estar em conflito. Portanto, ao intérprete da Constituição só resta buscar a conciliação possível entre proposições aparentemente antagônicas, cuidando, todavia, de jamais anular integralmente uma em favor da outra”

5

Desse modo, o § 4º do art. 39 e o § 7º do art. 57 devem ser compatibilizados pelo intérprete: não há que se imaginar que a remuneração a que alude o segundo dispositivo tenha natureza distinta do subsídio definido pelo primeiro.4

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 226-227.5

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 183. Não sublinhado no original.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 143

Já a segunda premissa constitui, na verdade, clássica lição da hermenêutica jurídica, expressa no brocardo “Verba cum effectu, sunt accipienda” e assim explicada por Carlos Maximiliano:

“Dá-se valor a todos os vocábulos e, principalmente, a todas as frases, para achar o verdadeiro sentido de um texto; porque este deve ser entendido de modo que tenham efeito todas as suas provisões, nenhuma parte resulte inoperante, supérflua, nula ou sem significação alguma.”

6

Assentadas as duas premissas, é fácil interpretar, harmonicamente, o § 4º do art. 39 e o § 7º do art. 57: quis a Constituição que o subsídio fosse invariável, ou seja, não sofresse acréscimos e nem reduções em seu valor mensal. Por outro lado, a própria Constituição estabeleceu uma exceção, ao prever a possibilidade de pagamento de um subsídio adicional quando houvesse convocação extraordinária. Afinal, se assim não fosse, não haveria razão para dizer “vedado o pagamento em valor superior (...)”, se não se pudesse pagar valor algum em razão da convocação extraordinária, restando inúteis tais palavras no texto constitucional. Não há, assim, qualquer dúvida quanto à legalidade do pagamento desta parcela adicional, posto que expressamente prevista na Constituição.

Quanto ao valor deste pagamento adicional, a Constituição preocupou-se apenas em fixar um teto, nada dizendo sobre a determinação do valor exato a ser pago em cada convocação. Ora, no silêncio da Constituição, deve este “subsídio adicional” seguir a natureza do subsídio normal, não comportando acréscimos nem deduções do seu valor mensal, menos ainda – como exaustivamente demonstrado acima – guardando qualquer relação com o número de dias ou de sessões deliberativas da Câmara Municipal.

Para melhor entendimento, é oportuno comparar o atual quadro normativo constitucional sobre o tema com o que era disposto na Constituição de 1969:

Art. 33. O subsídio, dividido em parte fixa e parte variável, e a ajuda de custo de Deputados e Senadores serão iguais e estabelecidos no fim de cada Legislatura para a subseqüente.§ 4º. Serão remuneradas, até o máximo de oito por mês, as sessões extraordinárias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; pelo

6 SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e aplicação do direito. 15. ed. Rio

de Janeiro: Forense, 1995. p. 250-251.

144 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

comparecimento a essas sessões e às do Congresso Nacional, será paga remuneração não excedente, por sessão, a um trinta avos da parte variável do subsídio mensal.

Nota-se, com clareza, que o regime constitucional anterior vinculava a remuneração por sessões extraordinárias ao efetivo comparecimento do parlamentar, além de fixar um limite máximo para esse pagamento.

A Carta de 1988, ao contrário de sua antecessora (e coerentemente com a natureza atribuída ao subsídio, exaustivamente explicada acima), não estabeleceu nenhum tipo de limitação ou correlação entre o número de sessões da convocação extraordinária e o valor do subsídio.

Já a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro trata do tema no seu art. 63, que tem o seguinte teor:

Art. 63. A convocação extraordinária da Câmara Municipal dar-se-á:I – pelo Presidente da Câmara Municipal ou a requerimento de um terço dos Vereadores, para apreciação de ato do Prefeito que importe em crime de responsabilidade ou infração político-administrativa;II – pelo Presidente da Câmara Municipal, para dar posse ao Prefeito e ao Vice-Prefeito e receber seu compromisso, bem como em caso de intervenção estadual;III – a requerimento da maioria absoluta dos Vereadores, em caso de urgência ou interesse público relevante;IV – pelo Prefeito.§ 1º. Ressalvado o disposto nos incisos I e II, a Câmara Municipal só será convocada, por prazo certo, para apreciação de matéria determinada.§ 2º. No período extraordinário de reuniões, a Câmara Municipal deliberará somente sobre a matéria para a qual foi convocada.

Nota-se, assim, que, a exemplo da Constituição Federal, a Lei Fundamental desta Municipalidade nada diz sobre o efetivo valor a ser pago pelas convocações extraordinárias

7.

Diante do silêncio da Constituição e da Lei, que nenhuma exceção estabelecem, só resta ao intérprete seguir a natureza do subsídio, que rejeita, em princípio, qualquer acréscimo ou dedução.7

É oportuno observar que as disposições do art. 51 e seus parágrafos da Lei Orgânica, que dispunham que a remuneração do Vereador teria uma parte fixa e outra variável, restaram evidentemente revogadas pela Emenda Constitucional nº 19/98.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 145

Conclui-se, assim, que o valor devido aos Edis, pela convocação extraordinária da Câmara Municipal, deverá ser igual a um subsídio mensal integral, independentemente da duração do período.

4. Conclusões

Do exposto, concluo que é devido aos Vereadores que compõem esta Casa Legislativa o pagamento equivalente a um subsídio mensal integral, em razão da convocação extraordinária para as sessões realizadas no mês de janeiro passado.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 03 de fevereiro de 2005.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

VISTO. Aprovo o Parecer nº 01/05-SAFF, supra.

Encaminhe-se ao Gabinete do Exmº Sr. Presidente.

Em 03 de fevereiro de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 147

A cobrança judicial de débitos e crédi-tos do Poder Público,

diante do princípio da separação dos poderes

Parecer nº 02/05-SAFF

Ementa: Direito Constitucional, Administrativo e Financeiro. Encaminhamento, pela Procuradoria do Poder Executivo, de guia de depósito judicial, extraída de processo ajuizado por ex-servidora desta Casa Legislativa, em face do Município do Rio de Janeiro. Ilegitimidade desta Câmara Municipal para responder por débito reconhecido em processo judicial, seja por não ter personalidade jurídica para responder por débitos patrimoniais, seja por não ter sido parte no processo de conhecimento, seja pela ausência de dotações com essa finalidade em seu orçamento, seja, finalmente, por não ser órgão pagador de precatórios, cuja ordem deve ser única em cada unidade da Federação. Parecer pela devolução do processo e da guia respectiva, sem pagamento, ao ilustrado Órgão solicitante.

Senhora Procuradora-Geral

Cuida o presente processo de encaminhamento, pelo ilustre Procurador-Geral do Município, de guia de depósito judicial, extraída de processo ajuizado por ex-servidora desta Casa Legislativa em face do Município do Rio de Janeiro.

1. Histórico

Através do Ofício PG/GAB nº 071, de 03 de março de 2005, recebido

148 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

nesta Casa Legislativa aos nove do mesmo mês, o douto Procurador-Geral deste Município encaminha “a anexa guia de recolhimento judicial, no valor de (omissis) extraída dos autos do processo em referência, ajuizado por (omissis,) ex-servidora dessa Casa de Leis” (fls. 02)

Destaca ainda aquela ilustre Autoridade que “o depósito judicial decorre de decisão proferida nos autos da referida ação de rito ordinário, por meio da qual foi o Município condenado a pagar a quantia que essa Casa de Leis, por entender ter sido percebida a maior, pela Autora, quando de sua exoneração, determinou efetivasse a Mesa a respectiva resolução, tudo consoante cópias em anexo”. (fls. 02)

Pelo que se depreende do exame dos Autos, uma servidora ocupante exclusivamente de cargo em comissão teria sido exonerada, há alguns anos, deixando de ter vínculo com esta Câmara Municipal. Em razão disso, teria sido apurado um débito, por valores recebidos a maior, e que foi cobrado administrativamente da ex-servidora. Instada a saldar o débito, a ex-servidora fez um depósito na conta bancária desta Casa de Leis, ajuizando em seguida ação para reaver o valor, obtendo êxito, como consta do acórdão fotocopiado às fls. 07-11.

Expedido o mandado requisitório (cópia às fls. 03), e recebido pela Procuradoria-Geral do Município, foi o mesmo encaminhado a esta Casa Legislativa pelo Ofício inicial. Às fls. 12, o Exmº Sr. Presidente determinou a manifestação desta Procuradoria-Geral.

Passo a opinar.

2. A questão sob o ângulo do Direito Civil e do Direito Administrativo: a ausência de personalidade jurídica da Câmara Municipal

Embora a temática seja antiga, é surpreendentemente hesitante a posição da doutrina – e mais ainda da jurisprudência – acerca da delimitação das pessoas jurídicas de direito público. Por uma natural precedência histórica do Direito Privado sobre o Direito Público, neste como em outros temas (como, por exemplo, o próprio conceito de direito subjetivo), a noção de “pessoa jurídica de direito público” foi desenvolvida inicialmente pelo Direito Civil.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 149

Assim é que o art. 14 do já revogado Código Civil de 1916 enumerava estas pessoas:

Art. 14 – São pessoas jurídicas de direito público interno:I – a União;II – cada um dos Estados e o Distrito Federal;III – cada um dos Municípios legalmente constituídos.

Tal disposição, conquanto recebida com naturalidade pelos civilistas, foi alvo de críticas dos publicistas, especialmente a partir do desenvolvimento do Direito Administrativo Brasileiro, incrementado a partir das décadas de 50 e 60 do século passado. Bem retrata esse período a passagem da clássica obra de José Cretella Júnior, que questiona:

“Esgotar-se-ia, porém, nesta simples enumeração o elenco total das pessoas jurídicas de direito público, no direito pátrio ?”

1

Em seguida, o Autor reconhece que os próprios civilistas estavam abertos a novas considerações:

“Nossos civilistas estudaram o problema, acentuando que, cada dia que passa, novos e imprevistos horizontes se descortinam, nesse proteiforme instituto jurídico, e se, a princípio, não se admitiam outras pessoas jurídicas, ultimamente, a complexidade da administração pública obrigou a criação de organismos paraestatais que, exercendo função pública, gozam de personalidade própria, atribuída para facilitar a ação administrativa.”

2

A partir daí, Cretella Júnior desenvolveu sua substanciosa sistematização das pessoas jurídicas que compõem a chamada Administração Indireta.

O Novo Código Civil (Lei 10.406/02) meramente atualizou esta enumeração, para incorporar ponderações da doutrina administrativista, que sempre sustentou a existência de entidades públicas com personalidade jurídica própria, integrando a chamada Administração Indireta. Assim, dispõe o art. 41 da nova Codificação:

Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:I – a União;II – os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;

1 CRETELLA JÚNIOR, José. Administração indireta brasileira. Rio de Janeiro: Forense,

1990. p. 165.2 Loc. cit.

150 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

III – os Municípios;IV – as autarquias;V – as demais entidades de caráter público criadas por lei.

Percebe-se assim que, apesar de todo este rico debate doutrinário, jamais se cogitou da existência de personalidade jurídica própria das Casas Legislativas. Em outras palavras, o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais não são pessoas jurídicas, integrando a personalidade dos entes federativos que formam, ou seja, União, Estados-membros e Municípios.

Em outro plano, a imortal obra de Victor Nunes Leal demonstrou, há mais de sessenta anos, irrefutavelmente, a existência do que chamou de personalidade judiciária das Casas Legislativas, correspondentes ao que a doutrina processualista chama de capacidade de ser parte. Destaque-se da obra do saudoso Ministro:

“No caso que nos ocupa, é preciso ter em mente a autonomia do direito judiciário. Qualquer tentativa de o escravizar ao direito privado deixaria insolúveis muitos problemas que os processualistas vão progressivamente esclarecendo, para dar sistema a textos aparentemente anômalos do direito positivo.Uma dessas ´anomalias´ nós a encontramos justamente na questão da personalidade judiciária, nos casos em que a lei a reconhece independentemente da personalidade jurídica.”

3

A tese de Victor Nunes Leal alcançou praticamente a unanimidade, não se duvidando hoje da possibilidade de órgãos do Poder Legislativo atuarem em juízo em nome próprio. É certo que, no quadro da atual conformação da autonomia constitucional do Poder Legislativo, pode-se cogitar de um avanço desta tese, talvez reconhecendo a personalidade jurídica das Casas Legislativas, ainda que de natureza diversa da personalidade dos entes federativos. É, todavia, tema à espera de um autor

4, pois nem doutrina nem jurisprudência

ousaram chegar a tanto.

As conseqüências práticas do que se concluiu acima são visíveis, valendo elencar alguns exemplos:3 LEAL, Victor Nunes. Problemas de direito público. Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 429.

4 No âmbito do Direito Privado, vale a pena destacar a obra de Fernando Antônio Barbosa

Maciel (Capacidade e entes não personificados. Curitiba: Juruá, 2001), que aponta para esta finalidade. Ainda muito recente, a obra não foi submetida ao crivo da crítica doutrinária.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 151

a) débitos deixados por ex-servidores da Câmara Municipal, bem assim multas eventualmente aplicadas a contratados, quando não pagos, são inscritos em dívida ativa municipal, cuja cobrança cabe à Procuradoria do Poder Executivo e, quando bem sucedida, faz ingressar recursos no Tesouro Municipal;

b) os honorários de sucumbência auferidos nas ações acima citadas ingressam no Fundo Orçamentário Especial da PGM;

c) nos feitos em que atua a Procuradoria-Geral da Câmara Municipal, eventual condenação em honorários também é executada pela Procuradoria do Poder Executivo e auferida pelo seu Fundo Especial;

d) os imóveis utilizados pela Câmara Municipal são de propriedade do Município do Rio de Janeiro, e como tal registrados no Ofício competente, ainda que seu uso e administração estejam afetados a esta Casa Legislativa;

Os exemplos são inúmeros, e poderiam ser relacionados à exaustão. Poder-se-ia argumentar, contra tais situações, com outros exemplos pragmáticos, como a titularidade de contas bancárias ou a assinatura de contratos por esta Câmara Municipal, em nome próprio. Nestes casos, a Câmara Municipal é gestora de orçamento (embora o faça com ampla autonomia, garantida pela Constituição), mas a rigor quem celebra tais contratos é o Município, através de um de seus órgãos de poder. A menção à Câmara Municipal nestes documentos é uma simplificação, que indica quem são as autoridades responsáveis pela ordenação da despesa ou controle do contrato.

Assentada a premissa – ausência de personalidade jurídica da Câmara Municipal – é fácil perceber que ela jamais poderá suportar condenações de cunho patrimonial, naqueles processos judiciais em que figure como parte. É exatamente por isso que, nas ações em que o pedido cinge-se às obrigações de fazer ou de não fazer (o que é o mais comum nas ações constitucionais, como o mandado de segurança, a ação civil pública e, em menor medida, a ação popular), é possível a esta Casa Legislativa figurar sozinha como Ré. No entanto, havendo pedido referente a obrigação de dar, ainda que cumulado com outros, impõe-se a presença da pessoa jurídica “Município do Rio de Janeiro” no pólo passivo, sob pena de nulidade da citação e do próprio processo.

No caso em análise, a ação foi ajuizada em face do “Município do Rio de Janeiro”, que veio a ser condenado no valor indicado na inicial. Não é por outra razão que o mandado requisitório (fls. 03), no campo “finalidade”,

152 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

tem o seguinte texto:

“REQUISITAR, junto ao Município do Rio de Janeiro, na pessoa do seu representante legal, o pagamento da quantia de (omissis), no prazo de 90 (noventa) dias, já tendo sido cientificado o Setor de Conferência de Cálculos da Assessoria de Precatórios”.

Não pode haver dúvida, assim, sob o ponto de vista da teoria da personalidade jurídica, que o débito noticiado na inicial deve ser saldado pelo Tesouro Municipal, e não por esta Casa Legislativa.

3. A questão sob o ângulo do Direito Processual: a Câmara Municipal não foi parte no processo que originou o mandado requisitório

Admita-se, apenas por amor ao debate, que fossem falsos os argumentos e a conclusão do item anterior, e que a Câmara Municipal tivesse personalidade jurídica e pudesse ser condenada, em nome próprio, a solver a obrigação de dar noticiada no presente processo. Ainda assim, a conclusão não seria pelo atendimento ao ofício inicial, como adiante se verá.

Dispõe o art. 5º, LIV da Constituição Federal:

Art. 5º. (omissis)LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal

Decorre deste dispositivo – e é de amplo conhecimento – que só quem figura como parte num processo pode vir a ser compelido a entregar parcela do seu patrimônio a outrem, como conseqüência da decisão judicial. É exatamente por isso que o Processo Civil tem o instituto dos “embargos de terceiro”, de largo emprego nas relações privadas, e que visa justamente a proteger o patrimônio de quem não foi parte no processo. A respeito, dispõe o art. 1.046 do Código de Processo Civil:

Art. 1.046. Quem, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de apreensão judicial, em casos como o de penhora, depósito, arresto, seqüestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer que lhes sejam manutenidos ou restituídos por meio de embargos. (não sublinhado no original)

A bizarrice da hipótese de esta Casa Legislativa vir a opor embargos de terceiro na execução em tela, para proteger seu orçamento, por não ter sido

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 153

parte no processo, e sequer ter tomado conhecimento da existência do mesmo, bem demonstra a impropriedade, data venia, da solicitação contida na inicial. Isto não seria possível, exatamente porque não foi o Poder Judiciário quem determinou a oneração do orçamento da Câmara Municipal, muito menos a contrição de seus bens, mas o devedor da obrigação que, sponte sua, procurou transferi-la a terceiro (se possível fosse falar em “terceiro”, pelo que se concluiu no item anterior).

Conjugando, agora, as conclusões dos itens 2 e 3 deste Parecer, pode-se concluir com o seguinte raciocínio:

Premissa: a Câmara Municipal tem personalidade jurídica.

i) se a premissa for falsa, conclui-se como no item 2, isto é, pela impossibilidade de responder judicialmente por obrigações de conteúdo econômico;

ii) se a premissa for verdadeira, conclui-se como neste item 3, isto é, na nulidade da execução, em razão da inexistência de citação da “parte” no processo de conhecimento (art. 741-I do CPC).

Sendo certo, salvo melhor juízo, que não há uma terceira alternativa (ou a premissa é verdadeira ou é falsa), só se pode concluir pela impossibilidade de atender à solicitação inicial.

4. A questão sob o ângulo do Direito Constitucional e Financeiro: o Poder Executivo é o gestor do sistema de precatórios, como única forma de se garantir o respeito à ordem cronológica de apresentação

A despeito das conclusões já obtidas até aqui, outra linha de raciocínio, autônoma e suficiente, pode levar às mesmas conclusões. Esta linha, baseada no Direito Financeiro, divide-se em duas vertentes, como se exporá a seguir.

4.1 Descumprimento da Lei Orçamentária, caso esta Casa Legislativa viesse a adimplir obrigação decorrente de decisão judicial

O princípio da legalidade orçamentária tem assento constitucional, como se pode verificar do art. 167-II da Carta da República, in verbis:

154 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Art. 167. São vedados:II – a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais;

Decorre deste dispositivo constitucional que nenhum gestor público pode autorizar a realização de despesa em valor superior ao crédito constante do orçamento, ou, pior ainda, de despesa nele não prevista.

No Brasil, vigora, desde a Lei 4.320/64, o orçamento-programa5, no

qual toda despesa pública está vinculada a uma dotação orçamentária, que consiste em um valor, expresso em moeda corrente, e associado a um programa de trabalho e a uma natureza de despesa.

No orçamento em vigor para o corrente exercício financeiro, a despesa referida na inicial está prevista no programa de trabalho 2201.2884690005.034, intitulado “Precatórios Judiciais de Pequeno Valor – Tribunal de Justiça – ERJ”, conforme se pode ver do Quadro de Detalhamento da Despesa, aprovado pelo Decreto nº 25039, de 24/01/05, do Excelentíssimo Senhor Prefeito desta Cidade

6. O referido programa de trabalho está alocado na Procuradoria Geral

do Município, a quem cabe ordenar as despesas respectivas. Já o Quadro de Detalhamento de Despesas desta Casa Legislativa, aprovado pela Resolução da Mesa Diretora nº 5298, de 10 de janeiro de 2005

7, contém um único

programa de trabalho, 2001.0103100032.033, denominado “Processamento Legislativo”, que não contempla o pagamento de precatórios. Como se percebe, com clareza, a previsão orçamentária para a despesa está prevista no orçamento da Procuradoria Geral do Município, e não no orçamento da Câmara Municipal.

Aliás, dentro da idéia de orçamento-programa, os programas de trabalho são alocados a unidades orçamentárias, às quais cabe geri-los, para execução do programa governamental. É o que se vê do art. 14 da Lei 4.320/64:

Art. 14. Constitui unidade orçamentária o agrupamento de serviços 5 Segundo James Giacomoni: “No Brasil, assim como nos demais países latino-americanos,

a idealização do orçamento moderno está representada no chamado Orçamento-programa, conjunto de conceitos e disposições técnicas sistematizado originalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU).” Orçamento público. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 163.6 O programa de trabalho citado se encontra na página 101 do Suplemento ao Diário Oficial do

Município de 25 de janeiro de 2005.7 Publicado no Diário da Câmara Municipal de 11/01/05, p. 1-2.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 155

subordinados ao mesmo órgão ou repartição a que serão consignadas dotações orçamentárias próprias.

Comentando o dispositivo, a equipe coordenada pelo Professor Flávio da Cruz esclarece:

“Por unidade orçamentária a lei entende o agrupamento de serviços subordinados ao mesmo órgão ou repartição, permitindo, contudo, que, em casos excepcionais, sejam consignadas dotações a unidades administrativas subordinadas ao mesmo órgão.”

8

Na feliz síntese de José Teixeira Machado Júnior e Heraldo da Costa Reis, “em última análise, unidade orçamentária é o órgão ou agrupamento de serviços com autoridade para movimentar dotações”

9. Esta Casa Legislativa,

por óbvio, não tem “autoridade para movimentar dotações” alocadas à Procuradoria Geral do Município, única unidade administrativa que tem em seu orçamento a previsão de pagamento de precatórios. Da mesma forma, se viesse a adimplir a obrigação com suas próprias dotações, a Câmara Municipal terminaria por violar a Lei Orçamentária, com lesão também ao princípio da legalidade orçamentária (art. 167-II da Carta da República).

Desse modo, a Autoridade desta Casa Legislativa que viesse a determinar a realização da despesa relativa ao pagamento de precatório, com o orçamento da Câmara Municipal, incidiria em múltiplos ilícitos, como o desvio de finalidade e a infração ao princípio da legalidade orçamentária, esta especialmente tipificada pelo Direito Penal, como se vê do art. 315 do Código Penal:

Art. 315. Dar às verbas ou rendas públicas aplicação diversa da estabelecida em lei:Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa.

Não há, assim, como recomendar a qualquer Autoridade desta Casa Legislativa que autorize a despesa solicitada na inicial, pois isto equivaleria a recomendar a prática de ilícitos administrativos, de improbidade e criminais.

As razões pelas quais o orçamento desta Casa Legislativa não prevê 8 CRUZ, Flávio da (coord.). Comentários à lei nº 4.320. São Paulo: Atlas, 1999. p. 56.

9 MACHADO JÚNIOR, José Teixeira, REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 comentada. 27.

ed. Rio de Janeiro: IBAM, 1996, p. 50. Não sublinhado no original.

156 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

despesas com o pagamento de precatórios são por si evidentes, mas serão melhor explicitadas no subitem seguinte.

4.2 Da unicidade, por ente federativo, do sistema de precatórios, como conseqüência dos princípios da igualdade e da impessoalidade

Diante da conclusão do subitem anterior, poderia o leitor perguntar, a esta altura: por que, então, a Câmara Municipal não inclui em seu orçamento um programa de trabalho para o pagamento de precatórios? A resposta é simples, como se verá a seguir.

Veja-se, de início, o art. 100 da Constituição Federal:

Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

O pagamento “exclusivamente na ordem cronológica de apresentação” é decorrência dos princípios da impessoalidade e da moralidade. Vale dizer: para cada unidade federativa (União, cada Estado-membro e cada Município), haverá uma única “fila”, na qual serão inscritos os precatórios, fazendo-se o pagamento, segundo as possibilidades da dotação orçamentária respectiva, na ordem cronológica de sua apresentação.

A unicidade, por unidade federativa, do sistema de precatórios, é condição essencial para que seja respeitada a ordem cronológica e, em conseqüência, os princípios da impessoalidade e da moralidade. Se houvesse mais de um órgão pagador de precatórios, não haveria como controlar a precedência temporal de cada crédito. As autoridades responsáveis, em cada órgão pagador, não teriam como dar cumprimento ao art. 100 da Constituição, pois só uma “fila” unificada permite saber se está sendo respeitada a ordem cronológica para os pagamentos.

Em suma: no Município do Rio de Janeiro – como em todas as unidades da Federação – só pode haver um órgão gestor do sistema e do orçamento destinado ao pagamento de precatórios, e este órgão, por certo, não é a Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 157

A Emenda Constitucional nº 30 inseriu nova disposição sobre a matéria, ao alterar o § 3º do art. 100, que passou a ter a seguinte redação:

§ 3º. O disposto no caput deste artigo, relativamente à expedição de precatórios, não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor que a Fazenda Federal, Estadual, Distrital ou Municipal deva fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.

O dispositivo excepcionou da expedição de precatórios os créditos definidos como de pequeno valor. A conseqüência prática é que, ao invés de ser expedido o precatório (cujo pagamento só pode se dar no exercício seguinte), é expedido o que se convencionou chamar de RPV – requisição de pequeno valor (que deve ser paga no mesmo exercício financeiro, através de dotação orçamentária com previsão genérica). Isto, todavia, não afasta a exigência de rigorosa observância da ordem cronológica de apresentação. Tem-se, na verdade, a constituição de duas “filas”, uma do precatório, e outra das requisições de pequeno valor. Por isso, mesmo na hipótese do § 3º (obrigações de pequeno valor), não é possível a existência de mais de um órgão pagador de débitos originados por decisões judiciais.

Em abundância, diga-se que o orçamento do Município do Rio de Janeiro para 2005 espelha esta conclusão, na medida em que contém dois programas de trabalho, um para precatórios e outro para requisições de pequeno valor, ambos alocados à Procuradoria Geral do Município.

Conclui-se, assim, sob mais um fundamento autônomo e suficiente, pela impossibilidade jurídica de atender à solicitação contida no ofício inicial.

5. A questão sob o ponto de vista da coerência: destinação dos recursos obtidos na cobrança, pelo Poder Executivo, da dívida ativa originada por relações contratuais ou estatutárias da Câmara Municipal

Finalmente, não custa acrescentar algumas considerações adicionais, em nome da coerência, valor fundamental à validade de qualquer análise jurídica.

Como todo órgão público, esta Câmara Municipal possui cargos em

158 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

comissão, ocupados, muitas vezes, por servidores sem qualquer outro vínculo com o serviço público, conhecidos no jargão administrativo como “estranhos ao quadro”. Ocorre, com alguma freqüência, que estes servidores sejam exonerados no decorrer do mês, quando já encerrada a folha de pagamento, que é creditada no início do mês seguinte. Nestas hipóteses, embora exercendo o cargo por apenas alguns dias, o servidor acaba recebendo pela totalidade do mês, o que gera um débito seu para com a Câmara Municipal. Quando isso ocorre, o ex-servidor é convidado a adimplir espontaneamente o débito.

Nas hipóteses em que o débito não é espontaneamente adimplido – o que ocorre na grande maioria dos casos – só resta à Câmara Municipal inscrever o valor respectivo na Dívida Ativa do Município, pois não há outro meio de exercer a cobrança contra quem já não tem vínculo funcional com o Município.

De igual sorte, as multas contratuais aplicadas a fornecedores de bens ou serviços, quando não pagas espontaneamente, também são objeto de inscrição na dívida ativa do Município.

Pois bem: os valores auferidos na cobrança da dívida ativa, nestes casos, revertem para onde? Para a Câmara Municipal ou para a conta comum do Tesouro?

Já ocorreu até um caso em que o ex-servidor, ao receber a cobrança da Procuradoria da Dívida Ativa, efetuou, de boa-fé, um depósito na conta bancária da Câmara Municipal, supondo que estaria evitando o ajuizamento da execução fiscal, o que não ocorreu. Instada a se manifestar sobre o problema, esta Procuradoria-Geral sugeriu que se considerasse extinta a obrigação, fazendo o ajuste contábil correspondente. Tal solução não foi aceita pela Procuradoria Geral do Município, que prosseguiu na cobrança

10.

Ora, se a Câmara Municipal gasta recursos do seu orçamento com pagamentos indevidos, e a devolução dos mesmos, quando pela via judicial, ingressa como receita do Município, é verdadeiro monumento à incoerência – data venia – querer que a despesa oriunda de pagamentos devidos também pela via judicial seja suportada pela Câmara Municipal, e não pelo Tesouro.

10 Os fatos narrados neste parágrafo estão registrados no processo CMRJ..., no qual foi lançado

o Parecer nº 09/99-SAFF, que se encontra publicado na Revista de Direito desta Procuradoria-Geral, n. 6, p. 204-210, jul./dez. 1999.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 159

Em suma, a prevalecer a tese implícita na inicial, deveriam existir não só dois órgãos pagadores de precatórios – um no Executivo e outro no Legislativo – como também duas Procuradorias da Dívida Ativa – também uma no Executivo e outra no Legislativo – de modo que cada órgão do poder suportasse as despesas e auferisse as despesas decorrentes de processos judiciais. O absurdo da hipótese bem demonstra – uma vez mais data venia – o absurdo da solicitação contida na inicial.

6. Conclusões

Do exposto, concluo que não é possível o pagamento, através do orçamento dos órgãos legislativos, de despesas decorrentes de condenação da pessoa jurídica de direito público a que pertencem, em processo judicial.

Desse modo, a solicitação contida no expediente inicial não deve ser atendida. Sugere-se, assim, a devolução do processo, sem o pagamento da guia acostada à segunda contracapa, ao órgão solicitante.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 31 de março de 2005.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

VISTO. Aprovo o Parecer nº 02/05-SAFF, retro/supra.

Encaminhe-se ao Gabinete da Assessoria da Presidência, com vistas à Procuradoria-Geral do Município, atentando-se para o prazo na inicial.

Em 1º de abril de 2005.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 161

A CIDE-Combustíveis e o limite de des-pesas da Câmara Municipal

Parecer nº 04/05-SAFF

Ementa: Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Limites constitucionais de despesas da Câmara Municipal. Base de cálculo. Emenda Constitucional nº 42. A parcela, repassada ao Município, da contribuição de intervenção no domínio econômico, deve integrar a base de cálculo dos limites estatuídos pelo art. 29-A da Constituição Federal. Parecer pelo cálculo do limite financeiro com a inclusão da receita da CIDE-Combustíveis e sugestão de consulta ao Tribunal de Contas do Município.

Senhora Procuradora-Geral

Cuida o presente processo de consulta formulada pelo Excelentíssimo Senhor Primeiro Secretário, por sugestão da Diretoria de Finanças, a respeito do cálculo do limite de despesas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

1. Histórico

A diligente Diretoria de Finanças desta Casa Legislativa, por sua Diretora, encaminhou Ofício à Diretora-Geral de Administração, sugerindo a formulação de consulta com o seguinte teor (fls. 02):

“A receita correspondente ao repasse, ao Município, de parcela da contribuição de intervenção no domínio econômico incidente sobre as operações realizadas com combustíveis, criada pela Lei Federal 10.336/01, deve ser considerada no cálculo dos limites impostos pela Emenda Constitucional nº 25?”

Encaminhado o processo ao Exmº Sr. Primeiro Secretário (fls. 03), aquela

162 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Autoridade determinou o pronunciamento desta Procuradoria-Geral (fls. 04), onde Vossa Excelência distribuiu o feito ao signatário.

Passo a opinar.

2. Apreciação

A questão a ser deslindada no presente processo diz respeito ao cálculo do limite de despesas da Câmara Municipal, criado pela Emenda Constitucional nº 25, que inseriu o art. 29-A na Constituição Federal. Para balizar a análise, relembre-se o teor do dispositivo:

Art. 29-A. O total da despesa do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos Vereadores e excluídos os gastos com inativos, não poderá ultrapassar os seguintes percentuais, relativos ao somatório da receita tributária e das transferências previstas no § 5

o do art. 153 e nos arts. 158

e 159, efetivamente realizado no exercício anterior:(omitida a transcrição dos incisos I a III). IV - cinco por cento para Municípios com população acima de quinhentos mil habitantes. (não sublinhado no original)

Deve-se fixar assim, de início, que a base de cálculo do limite de despesas da Câmara Municipal é a soma de dois conceitos: i) toda a receita tributária e ii) todas as transferências, efetuadas por outros entes federativos, de receitas especificadas nos dispositivos indicados. Embora redigido com imperfeição, o dispositivo aponta para a formação do limite por percentual do somatório das receitas próprias tributárias e das receitas transferidas de origem tributária. Basta examinar os dispositivos citados (§ 5

o do art.

153 e os arts. 158 e 159) para ver que ali estão listadas as hipóteses de transferências obrigatórias de receitas tributárias da União e dos Estados para os Municípios.

No caso concreto, a consulta versa sobre a denominada CIDE-Combustíveis, a contribuição de intervenção no domínio econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível, criada pela Lei 10.336/01. Nada obstante, é preciso examinar a matriz constitucional da referida contribuição, presente nos artigos 149 e 177 da Carta da República.

Para maior clareza, transcrevem-se a seguir os dispositivos citados:

Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais,

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 163

de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195 § 6º , relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.Art. 177. Constituem monopólio da União:(omite-se a transcrição dos incisos)§ 4º. A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos:I – a alíquota da contribuição poderá ser:a) diferenciada por produto ou uso;b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b;II – os recursos arrecadados serão destinados:a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo;b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e gás;c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes.

Pode-se perceber, logo de início, que o art. 149 faz uma previsão aberta, instituindo um gênero – contribuição de intervenção no domínio econômico – do qual a contribuição regulada pelo § 4º do art. 177 é apenas uma espécie. Desse modo, é de todo oportuna uma análise sobre o gênero, cujas conclusões valerão, em princípio, para a espécie.

A respeito desse gênero de receita pública, diz Ricardo Lobo Torres:

“A contribuição econômica é devida pelo benefício especial auferido pelo contribuinte em virtude da contraprestação de serviço público indivisível oferecida ao grupo social de que participa. Caracterizam-na, pois, a contraprestação estatal em favor do grupo, que pode ser qualquer ato de intervenção no domínio econômico, de interesse de certa coletividade; a vantagem especial obtida pelo contribuinte que sobreexceda o benefício genérico das atividades estatais.”

1

1TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Re-

novar, 1995. p. 340.

164 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

O mesmo Autor, embora ressalvando sua opinião de que, doutrinariamente, a contribuição seria melhor classificada como ingresso parafiscal, reconhece que:

“A contribuição econômica, também pelo argumento topográfico, possui natureza tributária, colocada que está, desde a redação da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, na Constituição Fiscal”.

2

Da mesma opinião é Luiz Emygdio Franco da Rosa Júnior, que destaca também o caráter aberto, em âmbito constitucional, das hipóteses de incidência da contribuição:

“A Constituição de 1988, em seu art. 149, enumera as causas para a criação da contribuição parafiscal, que é, portanto, tributo especial por ser afetado a finalidades predeterminadas na Constituição. Todavia, essas causas não consubstanciam hipóteses de incidência, cabendo à lei que instituir as contribuições parafiscais definir a sua hipótese de incidência.”

3

Colha-se, finalmente, a lição, ainda mais incisiva, de Roque Antonio Carraza:

“Com a só leitura deste dispositivo constitucional [refere-se ao art. 149 da Constituição Federal], já percebemos que as “contribuições” são, sem sombra de dúvida, tributos, uma vez que devem necessariamente obedecer ao regime jurídico tributário, isto é, aos princípios que informam a tributação, no Brasil.”

4

Desse modo, já se pode perceber que, numa interpretação teleológica, toda transferência de receita que, no ente de origem (União ou Estado) tiver natureza tributária, deverá, ao menos em princípio, ser considerada no cálculo do limite de despesas e, como a CIDE tem tal natureza, deveria ser computada no cálculo referido.

Todavia, na hipótese presente, é desnecessário fazer qualquer análise mais aprofundada, ou valer-se do método teleológico de interpretação. Isto porque o método literal é suficiente para dar adequada solução ao caso. Relembre-se, antes de tudo, que uma das principais funções do método 2 Loc. cit.

3 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da Rosa. Direito financeiro e direito tributário.10.

ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p. 401.4

CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 320. Trecho entre colchetes daqui.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 165

literal de interpretação – seguidamente negligenciada pela doutrina jurídica – é o de estabelecer limites para o intérprete, delimitando os resultados possíveis do processo interpretativo. É sempre oportuna, neste particular, a lição de Karl Larenz:

“Por conseguinte, o sentido literal a extrair do uso lingüístico geral ou, sempre que ele exista, do uso lingüístico especial da lei ou do uso lingüístico jurídico geral, serve à interpretação, antes de mais, como uma primeira orientação, assinalando, por outro lado, enquanto sentido literal possível – quer seja segundo o uso lingüístico de outrora, quer seja segundo o actual –, o limite da interpretação propriamente dita. Delimita, de certo modo, o campo em que se leva a cabo a ulterior actividade do intérprete.”

5

Não destoa dessa posição a doutrina brasileira, valendo citar, por todos, Luís Roberto Barroso:

“É a interpretação gramatical ou literal que delimita o espaço dentro do qual o intérprete vai operar, embora isso possa significar zonas hermenêuticas muito extensas.”

6

Efetuando-se, então, a interpretação literal, percebe-se que o art. 29-A da Carta Magna faz expressa referência aos seguintes dispositivos: § 5

o do

art. 153 e arts. 158 e 159. Examinando este último, percebe-se que a Emenda Constitucional nº 42, de 19/12/03, acrescentou-lhe um parágrafo 4º, que é transcrito a seguir, juntamente com as demais partes deste artigo, relevantes para a compreensão da matéria:

Art. 159. A União entregará:III – do produto da arrecadação da contribuição de intervenção no domínio econômico prevista no art. 177, § 4º, 29% (vinte e nove por cento) para os Estados e o Distrito Federal, distribuídos na forma da lei, observada a destinação a que se refere o inciso II, c, do referido parágrafo.§ 4º. Do montante de recursos de que trata o inciso III que cabe a cada Estado, vinte e cinco por cento serão destinados aos seus Municípios, na forma da lei a que se refere o mencionado inciso.

Como a Emenda Constitucional nº 42 veio a lume posteriormente à Lei 10.336/01, que regulamentou a CIDE-Combustíveis, foi editada a Lei 10.866, 5 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gul-

benkian. p. 457.6

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 122.

166 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

em 04/05/04, acrescentando-lhe o art. 1º-B, com a seguinte redação:

Art. 1o-B Do montante dos recursos que cabe a cada Estado, com base no

caput do art. 1o-A desta Lei, 25% (vinte e cinco por cento) serão destinados

aos seus Municípios para serem aplicados no financiamento de programas de infra-estrutura de transportes.§ 1

o Enquanto não for sancionada a lei federal a que se refere o art. 159, §

4o, da Constituição Federal, a distribuição entre os Municípios observará

os seguintes critérios:I – 50% (cinqüenta por cento) proporcionalmente aos mesmos critérios previstos na regulamentação da distribuição dos recursos do Fundo de que tratam os arts. 159, I, b, e 161, II, da Constituição Federal; eII – 50% (cinqüenta por cento) proporcionalmente à população, conforme apurada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Examinados os dispositivos constitucionais e legais, nota-se que não há outra interpretação possível: o repasse da parcela da CIDE pertencente ao Município é receita prevista no art. 159 da Constituição, expressamente referido pelo art. 29-A da mesma Carta como integrante da base de cálculo do limite de despesas da Câmara Municipal. Entender diversamente seria, simplesmente, efetuar interpretação contra legem. Este é, como se disse acima, um caso em que a interpretação literal basta à solução do caso, excluindo, por si só, qualquer outro resultado alternativo da atividade de interpretação.

Finalmente, cabe observar que é de todo prudente que, antes da publicação de demonstrativos ou de qualquer outra providência, a conclusão aqui obtida seja submetida à apreciação do Tribunal de Contas do Município. Afinal, aquele órgão foi erigido, pela Carta da República, em guardião das normas constitucionais sobre as finanças públicas, inclusive, no âmbito municipal, do respeito aos limites impostos pelo art. 29-A da Lei Maior.

3. Conclusões

Do exposto, concluo afirmativamente quanto à pergunta inicial, isto é, que a receita do repasse, ao Município, da parcela que lhe cabe da contribuição de intervenção no domínio econômico, deve ser considerada para o cálculo do limite de despesas da Câmara Municipal, estipulado no art. 29-A da Constituição Federal.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 167

Sugere-se, ainda, que as presentes conclusões sejam submetidas ao Egrégio Tribunal de Contas do Município, sob a forma de consulta, para que aquele órgão de controle externo se pronuncie sobre a dúvida inicialmente suscitada.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 26 de abril de 2005.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

VISTO. Aprovo o Parecer nº 04/05-SAFF, retro.

À consideração do Exmº Sr. Primeiro Secretário, sugerindo o encaminhamento ao Egrégio Tribunal de Contas do Município, para que aquele órgão se pronuncie sobre a dúvida inicialmente suscitada.

Em 27 de abril de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 169

Poderes de fiscalização das comissões permanentes

do poder legislativo

Parecer nº 06/05-SAFF

Ementa: Direito Constitucional. Função fiscalizadora do Poder Legislativo. Consulta sobre a possibilidade de fiscalização, por comissão desta Câmara Municipal, de estabelecimentos públicos e particulares. Impossibilidade de fiscalização, no sentido jurídico do termo, de estabelecimentos públicos federais e estaduais. Ampla possibilidade de fiscalização de estabelecimentos públicos municipais. Cautelas a serem observadas na fiscalização de estabelecimentos particulares. Parecer pela possibilidade, parcial e em termos, da fiscalização sugerida na inicial.

Senhora Procuradora-Geral

Cuida o presente processo de solicitação da Comissão de Higiene, Saúde Pública e Bem-Estar Social, dirigida ao Exmº Sr. Presidente desta Casa Legislativa, no sentido de que esta Procuradoria-Geral se manifeste sobre a sua competência.

1. A consulta

Através do Ofício de fls. 2, o Sr. Vereador Presidente da Comissão interessada solicita ao Exmº Sr. Presidente a manifestação esta Procuradoria-Geral sobre a “legitimidade e competência da Comissão Permanente de Higiene, Saúde Pública e Bem-Estar Social em fiscalizar hospitais federais, estaduais, particulares bem como clínicas e casas de saúde situadas no Município do Rio de Janeiro”.

170 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Passo a opinar.

2. Apreciação

2.1 Introdução

Diante dos termos da consulta formulada, parece recomendável dividir a análise nos seguintes itens, quanto à possibilidade da fiscalização sugerida:

i) hospitais e clínicas públicos federais;

ii) hospitais e clínicas públicos estaduais;

iii) hospitais e clínicas públicos municipais;

iv) hospitais e clínicas particulares situados no Município do Rio de Janeiro.

Antes de adentrar nessa análise específica, cumpre recordar a matriz constitucional dessa atividade do Poder Legislativo. Desde o surgimento dos Parlamentos na Era Moderna – que remontam à Revolução Inglesa – os órgãos legislativos têm, a par de sua precípua função legislativa, uma importantíssima função, a de fiscalizar os atos de governo e administração, em especial no Poder Executivo. José Afonso da Silva, por exemplo, entende que as funções do Poder Legislativo se dividiriam em três grupos: atribuições legislativas, atribuições meramente deliberativas e atribuições de fiscalização e controle

1.

Já Alexandre de Moraes insere tais atribuições entre as competências típicas do Parlamento, assim compreendidas:

“O exercício da função típica do Poder Legislativo consistente no controle parlamentar, por meio de fiscalização, pode ser classificado em político-administrativo e financeiro-orçamentário. Pelo Primeiro controle, o Legislativo poderá questionar os atos do Poder Executivo, tendo acesso ao funcionamento de sua máquina burocrática, a fim de analisar a gestão da coisa pública e, conseqüentemente, tomar as medidas que entenda necessárias.”

2

1 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.16. ed. São Paulo: Malhei-

ros, 1999. p. 520.2 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 376.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 171

A razão da atribuição de tal competência ao Poder Legislativo tem evidente apoio no fato de ser este, por excelência, o poder de representação popular, cujos integrantes são, na totalidade, ungidos pelo voto. Neste sentido, a lúcida constatação do Professor José dos Santos Carvalho Filho:

“O controle legislativo é aquele executado através do Poder Legislativo sobre os atos da Administração Pública. Sendo o Poder de representação popular, não poderia retirar-se a ele a função fiscalizadora das condutas administrativas em geral.”

3

A função de fiscalização do Poder Legislativo se concretiza em vários institutos bastante conhecidos e de largo uso no quotidiano parlamentar, como o requerimento de informações (art. 50 § 2º da Constituição Federal) e as comissões parlamentares de inquérito (art. 58 § 3º da mesma Carta). Nada obstante, há ainda uma previsão genérica na Constituição da República, consubstanciada no art. 49, X:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:X – fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta;

Este dispositivo tem necessário eco na Constituição do Estado do Rio de Janeiro (art. 99, X). Neste contexto, nota-se que a diretriz traçada pela Constituição aponta para a possibilidade de que a fiscalização, tal como entendida nos excertos acima transcritos, inclua a realização de diligências e vistorias, pelos membros das Comissões Permanentes, em órgãos municipais. A Lei Municipal nº 1692/91 veio a positivar e regulamentar tal possibilidade. No item 2.3, a seguir, seu texto será transcrito e examinado em maior detalhe.

Assentada a possibilidade, em tese, de que as Comissões desta Casa Legislativa – inclusive a que formulou a presente consulta – possam examinar in loco o funcionamento dos serviços públicos do Município, resta apreciar cada uma das possibilidades aventadas na inicial.

2.2 Fiscalização em hospitais, casas de saúde e clínicas públicas federais e estaduais

Indaga-se, na presente consulta, se a Comissão poderia fiscalizar

3 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 11. ed. p. 783.

172 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

hospitais da rede federal ou estadual.

A forma federal de Estado se caracteriza pela autonomia dos entes que a integram, o que, no caso brasileiro, está estampado no art. 18 da Constituição da República:

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

A autonomia dos entes federativos se expressa em vários atributos, dentre os quais se destaca a auto-administração, que já tive a oportunidade de definir, em obra doutrinária, como “a autonomia que têm os integrantes da federação para estruturarem seus órgãos administrativos e exercerem diretamente a sua própria administração, na aplicação e execução das leis”

4.

Este princípio impede que um ente interfira na atividade administrativa de outro.

Daí se infere que a função de fiscalização do Poder Legislativo deve seguir o princípio federativo, de modo que ao Congresso Nacional cabe fiscalizar a administração pública federal, à Assembléia Legislativa cabe fiscalizar a administração pública estadual e à Câmara Municipal cabe fiscalizar, tão somente, a administração pública municipal.

Tal conclusão pode ser ainda reforçada pela própria natureza da Comissão, que é órgão integrante da estrutura desta Câmara Municipal. É da essência do próprio conceito de comissão parlamentar que os seus objetivos e competências não podem ser maiores que os objetivos e competências da própria casa legislativa da qual fazem parte. Na respeitada lição de José Alfredo de Oliveira Baracho:

“As Comissões Parlamentares são constituídas de parlamentares; surgem de divisões internas das Câmaras, às quais são atribuídas certas tarefas, estipuladas dentro da competência do Parlamento. Trata-se de uma instituição duradoura, com o objetivo de ocupar-se de determinados assuntos.”

5 (sublinhamos)

Vale dizer: à Comissão se atribui uma parcela específica das 4 FERRARI, Sérgio. Constituição Estadual e Federação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

p. 50.5 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral das Comissões Parlamentares. Rio de

Janeiro: Forense, 1988. p. 42.

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atribuições da própria Casa Legislativa. Assim, exemplificativamente, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, a Comissão de Administração e Assuntos Ligados ao Servidor Público tem suas atribuições voltadas, em princípio, aos problemas do servidor público e da administração municipal, não havendo sentido em debruçar-se sobre questões da administração estadual ou federal. A Comissão de Transportes e Trânsito ocupa-se de assuntos relativos ao transporte no Município, não cabendo voltar-se para o transporte intermunicipal ou interestadual. Da mesma forma, uma comissão parlamentar de inquérito aqui constituída deverá ter por objeto de investigação fatos que estejam relacionados à competência da própria Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Conclui-se, assim, que não é possível à Comissão consulente fiscalizar hospitais ou clínicas federais e estaduais. Nada obstante, é oportuno fazer ainda duas observações a respeito.

A primeira é que, se um determinado estabelecimento hospitalar se encontra sob administração municipal, por força de instrumento contratual (convênio ou contrato), o que tem sido chamado de “municipalização”, a atuação da Comissão será plenamente legítima, pois se estará diante de serviço público prestado diretamente pelo Município.

A segunda observação é a de que, embora não tenha competência para efetuar, coercitivamente, uma fiscalização, a Comissão tem ampla liberdade para convidar (e não convocar) autoridades estaduais e federais, promover debates, ouvir especialistas no tema e efetuar visitas previamente marcadas, tudo de forma consentânea com o pluralismo, que é um dos vetores que forma o princípio democrático. Embora não possa ter caráter obrigatório ou coercitivo, o levantamento de informações sobre a atuação de órgãos federais e estaduais na área de saúde será sempre de interesse para a Comissão e para a população carioca.

2.3 Fiscalização de hospitais, clínicas e casas de saúde da rede pública municipal

No que se refere à fiscalização de órgãos municipais de saúde, como já se pôde entrever no item 2.1, acima, a Comissão consulente tem ampla legitimidade para fiscalizar e proceder a diligências. Partindo da matriz constitucional, já examinada acima, o Regimento Interno desta Casa

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Legislativa prevê as seguintes competências da Comissão de Higiene, Saúde Pública e Bem-Estar Social:

Art. 68. Compete às comissões permanentes, além das atribuições definidas no art. 56:I – estudar proposições e outras matérias submetidas ao seu exame, dando-lhes parecer e oferecendo-lhes substitutivos ou emendas, quando julgar oportuno;II – promover estudos, pesquisas e investigações sobre questões de interesse público, relativas à sua competência;III – tomar a iniciativa da elaboração de proposições ligadas ao estudo de tais questões ou decorrentes de indicação da Câmara Municipal ou de dispositivos regimentais.Art. 69. É da competência específica:VI – da Comissão de Higiene, Saúde Pública e Bem-Estar Social:a) opinar sobre proposições relativa a:1 – higiene e saúde pública;2 – profilaxia sanitária, em todos os seus aspectos;3 – bem-estar social no Município;4 – família; (não sublinhado no original)

É fácil, então, concluir que a Comissão consulente tem legitimidade para fiscalizar as unidades de saúde do Município. Cumpre, então, verificar de que modo esta fiscalização poderá ocorrer. Como se disse acima, a matéria é regulamentada pela Lei 1.692/91, cujo texto se transcreve integralmente a seguir:

Art. 1º. O Vereador, no exercício do seu mandato, poderá diligenciar junto a órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional, inclusive com acesso a documento.Art. 2º. O Vereador comunicará a visita por ofício, acompanhado de justificativa, ao responsável pelo órgão a ser diligenciado e discriminará, se for o caso, os documentos de que pretende ter vista.§ 1º. A visita do Vereador será marcada dentro de quinze dias do recebimento do ofício, devendo os documentos solicitados estarem à sua disposição quando da diligência.§ 2º. O responsável pelo órgão a ser diligenciado atenderá o Vereador e colocará à sua disposição um servidor, durante todo o tempo da diligência, na qual lhe serão prestados os esclarecimentos solicitados.§ 3º. O ofício de que trata este artigo será publicado no Diário da Câmara

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 175

Municipal e entregue mediante protocolo ao órgão a ser diligenciado.Art. 3º. A requerimento do Vereador, as informações a ele prestadas e os documentos obtidos serão encaminhados ao Presidente da Câmara Municipal, para publicação no Diário da Câmara Municipal.§ 1º. Na hipótese de serem muito volumosos os documentos e informações referidas no caput, a publicação poderá limitar-se a extrato ou relatório elaborado pelo Vereador.§ 2º. Estão dispensados da publicação as informações e os documentos cujo sigilo a lei preserve.Art. 4º. Constitui crime de responsabilidade, se da autoridade, e infração político-administrativa, do servidor, a sonegação de informações ou o cerceamento do acesso aos documentos solicitados.Art. 5º. Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Cabe ressaltar que o art. 4º da Lei foi objeto de Representação por Inconstitucionalidade, ajuizada pelo Prefeito, e julgada procedente pelo Tribunal de Justiça deste Estado. Embora tal decisão ainda não tenha transitado em julgado, a eficácia do dispositivo se encontra suspensa, em razão da declaração de sua inconstitucionalidade.

Conclui-se, assim, que a Comissão consulente tem ampla legitimidade para fiscalizar as unidades de saúde municipal, devendo observar o procedimento descrito na Lei Municipal nº 1.692/91.

2.4 Fiscalização de hospitais, clínicas e casas de saúde particulares

2.4.1 Delimitação da competência municipal na matéria

Para delimitar a possível competência da Comissão consulente para fiscalizar unidades particulares de saúde, é preciso, antes de tudo, conhecer as competências do Município na matéria. Para tanto, examinem-se os seguintes dispositivos da Constituição da República:

Art. 23. É da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiênciaArt. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado

176 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

de acordo com as seguintes diretrizes:I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

Percebe-se assim que, a par de instituir o conhecido sistema único de saúde (SUS) para o âmbito público, a Constituição reafirmou a possibilidade de serviços privados de saúde, sob o regime da livre iniciativa, não integrantes daquele sistema público. A matéria é tratada, em nível infraconstitucional, pela Lei Federal 8.080/90, da qual se destacam os seguintes dispositivos:

Art. 9º A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos:I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; eIII - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde;II - participar do planejamento, programação e organização da rede regionalizada e hierarquizada do Sistema Único de Saúde (SUS), em articulação com sua direção estadual;III - participar da execução, controle e avaliação das ações referentes às condições e aos ambientes de trabalho;IV - executar serviços:a) de vigilância epidemiológica;b) vigilância sanitária;c) de alimentação e nutrição;d) de saneamento básico; ee) de saúde do trabalhador;V - dar execução, no âmbito municipal, à política de insumos e equipamentos para a saúde;VI - colaborar na fiscalização das agressões ao meio ambiente que tenham repercussão sobre a saúde humana e atuar, junto aos órgãos municipais, estaduais e federais competentes, para controlá-las;VII - formar consórcios administrativos intermunicipais;VIII - gerir laboratórios públicos de saúde e hemocentros;

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 177

IX - colaborar com a União e os Estados na execução da vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras;X - observado o disposto no art. 26 desta Lei, celebrar contratos e convênios com entidades prestadoras de serviços privados de saúde, bem como controlar e avaliar sua execução;XI - controlar e fiscalizar os procedimentos dos serviços privados de saúde;XII - normatizar complementarmente as ações e serviços públicos de saúde no seu âmbito de atuação.Art. 22. Na prestação de serviços privados de assistência à saúde, serão observados os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento.(não sublinhado no original)

Da conjugação dos dispositivos acima sublinhados, percebe-se que os Municípios, efetivamente, têm alguma competência para fiscalização dos serviços de saúde, sendo certo que, em tal atividade, não poderão invadir as competências da União e do Estado, definidas nos artigos 16 e 17 da mesma Lei Federal que, por brevidade, deixo de transcrever aqui.

É neste campo de competência que se abre espaço para a atuação de fiscalização do Poder Legislativo. Em outros termos, se o Município tem legitimidade para atuar em determinada atribuição (como as listadas no art. 18 da Lei 8.080, acima transcrito), seu órgão legislativo terá competência para fiscalizar as mesmas atribuições, como já definido no item 2.2 deste trabalho, acima.

2.4.2 Limitações constitucionais à atuação do Poder Público sobre o setor privado

Num outro enfoque, a função de fiscalização do Poder Público em geral, aí incluída a fiscalização legislativa, é limitada pelos direitos fundamentais garantidos na Constituição, especialmente a livre iniciativa, o direito à intimidade e o princípio da legalidade.

De fato, é da essência do Estado Democrático de Direito a limitação do poder do Estado perante os cidadãos. Esta limitação se materializa, entre outros, nos direitos à intimidade (que fundamenta os sigilos fiscal, bancário e de comunicações), à inviolabilidade do domicílio e ao devido processo legal. Transcreva-se, para maior clareza, os dispositivos que os fundamentam:

178 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Art. 5º. (omissis)X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

A necessária compatibilização, entre as funções de fiscalização do Estado e as garantias individuais do cidadão, é matéria de grande dificuldade, pois, em geral, somente no caso concreto se pode dizer quais os limites da atuação do agente público.

Nada obstante, é bastante útil fazer um paralelo com as comissões parlamentares de inquérito, uma vez que a doutrina e a jurisprudência sobre seus limites se desenvolveram bastante nos últimos anos, embora ainda sejam prenhes de controvérsias.

O raciocínio é o seguinte: as comissões parlamentares de inquérito receberam referência específica da Constituição, que lhes atribuiu “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, como consta em seu art. 58 § 3º. A contrario sensu, as comissões permanentes não têm poderes de investigação dessa amplitude. Assim, é cartesiano concluir que, nem tudo que a CPI possa fazer, a comissão permanente também poderá, mas tudo que a CPI não puder fazer a comissão permanente também não poderá. Com isso, elimina-se parte do problema, pois ficam especificadas algumas limitações nas diligências da comissão.

Quais seriam, então, as ações vedadas às CPI´s e, com mais razão, também às comissões permanentes? Em excelente síntese da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, o Professor Alexandre de Moraes faz a seguinte enumeração:

“Dessa forma, não poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito:- decretar quaisquer hipóteses de prisão, salvo as prisões em flagrante delito; (...)6

MORAES, op. cit., p. 382.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 179

- determinar a aplicação de medidas cautelares, tais como indisponibilidade de bens, arrestos, seqüestro, hipoteca judiciária, proibição de ausentar-se da comarca ou do país (...);- proibir ou restringir a assistência jurídica aos investigados”

6

Acrescenta, ainda, em outras partes do texto, o direito ao silêncio de quem for ouvido por uma CPI e o respeito ao sigilo profissional

7.

Prosseguindo na análise, deve-se ressaltar que, ao contrário das CPI´s, as comissões permanentes não receberam da Constituição o “poder de investigação próprio das autoridades judiciais”. Desse modo, não têm quaisquer dos poderes que limitam ou tangenciam as garantias constitucionais acima transcritas, como a “quebra” de sigilos, a condução coercitiva de testemunhas, a busca e apreensão de documentos ou coisas.

Em suma, parece prudente e recomendável que as visitas a estabelecimentos particulares de saúde sejam previamente comunicadas ou agendadas pela Comissão junto aos responsáveis. Durante a diligência, a Comissão deve ter o máximo de cautela para não violar sigilos de dados (especialmente fiscal e bancário), bem assim para não expor indevidamente a imagem de pessoas através da Imprensa, o que poderia configurar danos a imagem (art. 5º,X da Constituição Federal, acima transcrito). Por fim, os profissionais de saúde estão também sujeitos a normas legais e éticas de sigilo profissional, que devem ser respeitadas.

Como observação final, dado o caráter genérico da consulta e deste trabalho, cumpre recomendar que eventuais dúvidas em concreto sobre a legitimidade de atos da Comissão consulente junto a entidades particulares devem ser objeto de consulta específica a esta Procuradoria-Geral.

3. Conclusões

De todo o exposto, concluo na forma das proposições a seguir:

a) A função de fiscalização é inerente ao Poder Legislativo e, em conseqüência, às Comissões Permanentes que o integram.

b) A Comissão de Higiene, Saúde Pública e Bem-Estar Social não tem legitimidade para fiscalizar unidades federais e estaduais da rede pública de saúde, pois tal ato representaria lesão ao princípio federativo.7

Ibid., p. 380-381.

180 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

c) A Comissão tem legitimidade para fiscalizar unidades federais que estejam sob gestão municipal (“municipalizadas”).

d) A despeito de não ter poder de fiscalização em sentido estrito, a Comissão pode acompanhar o funcionamento de unidades federais e estaduais, através de visitas ou convites para depoimentos e debates, sempre consensuais e sem caráter coercitivo.

e) A Comissão tem ampla legitimidade para fiscalizar unidades da rede pública municipal de saúde, devendo observar o procedimento da Lei Municipal 1692/91.

f) É possível a fiscalização de unidades particulares de saúde, sediadas no Município do Rio de Janeiro, garantido o respeito aos direitos individuais e observadas as cautelas constantes deste Parecer.

g) Dúvidas em concreto sobre a legitimidade de atuação junto a unidades particulares de saúde deverão ser dirimidas em consultas específicas a esta Procuradoria-Geral.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 13 de maio de 2005.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

VISTO. Aprovo o Parecer nº 06/05-SAFF, retro/supra.

Encaminhe-se à consideração de Excelentíssimo Senhor Presidente.

Em 16 de maio de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 181

Vinculação previdenciária dos verea-dores ao regime geral de previdência

(INSS), por força da Lei 9506/97, de-clarada inconstitucional pelo Supremo

Tribunal Federal, em 2003Parecer nº 07/05-SAFF

Ementa: Direito Constitucional e Previdenciário. Vinculação previdenciária dos Vereadores. Vinculação ao regime geral de previdência (INSS), por força da Lei 9.506/97, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 2003. Edição da Lei 10.887, de 18 de junho de 2004, com idêntico teor à anteriormente declarada inconstitucional. Conceitos de Direito Constitucional Intertemporal: inconstitucionalidade formal originária, constitucionalização e alteração do parâmetro de controle. Análise da nova lei sob o texto das Emendas Constitucionais nº 20, de 1998 e nº 41, de 2003. Aparente constitucionalidade da reinclusão dos Vereadores entre os contribuintes obrigatórios do INSS, sem efeitos retroativos. Parecer pelo recolhimento da contribuição respectiva, sugerindo-se o oferecimento de Representação ao Procurador-Geral da República, para pôr fim à insegurança jurídica sobre o tema.

Senhora Procuradora-Geral

Cuida o presente processo do regime previdenciário dos Vereadores, diante de substantivas alterações dos textos legais e constitucionais.

1. A consulta

Através do Ofício de fls. 2, a diligente Diretora de Pessoal desta Casa Legislativa indaga sobre a necessidade de recolher contribuição previdenciária sobre os subsídios pagos aos Srs. Vereadores, diante dos termos da Lei Federal 10.887, de 18/06/04. Às fls. 03, o Exmº Sr. Presidente determinou a

182 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

manifestação desta Procuradoria-Geral.

Para subsidiar a análise, solicitei o processo ..., ao qual se encontram apensados vários outros que tratam da matéria. Não parece necessário, entretanto, apensá-los ao presente, o que só dificultaria o manuseio dos autos e a tramitação do processo.

2. Histórico do tema e das anteriores manifestações desta Procuradoria-Geral e do Supremo Tribunal Federal

A questão da vinculação dos Vereadores a algum regime de previdência já foi objeto de várias manifestações desta Procuradoria-Geral. Nada obstante, no curso espaço de seis anos desde o primeiro Parecer sobre o tema, surgiram novas Emendas Constitucionais, Leis e decisões do Supremo Tribunal Federal, o que vem trazendo grande incerteza doutrinária e instabilidade jurídica sobre o tema.

Para elucidar a questão, é imprescindível fazer um histórico de todas estas alterações, tão resumido quanto possível. Recomenda-se, assim, a prévia leitura dos Pareceres citados a seguir, de modo a possibilitar uma perfeita compreensão do tema.

No Parecer nº 17/99-SAFF1, fiz uma análise do quadro jurídico sobre

a vinculação previdenciária dos Vereadores de 1987 até aquele momento. As conclusões daquele estudo foram assim expostas:

“a) Até 28/01/98, os Vereadores tinham duas opções quanto ao regime previdenciário: filiar-se ao PREVI-RIO ou ficar sem qualquer vínculo previdenciário. b) Entre 29/01/98 e 15/12/98, também duas eram as opções dos Vereadores: filiar-se ao PREVI-RIO ou, não o fazendo, serem considerados contribuintes obrigatórios do INSS. c) A partir de 16/12/98, a contribuição dos Vereadores ao INSS passou a ser obrigatória, sem possibilidade de opção. d) Em simetria às contribuições devidas pelos Vereadores, a Câmara Municipal deve efetuar os recolhimentos relativos à parcela de “empregador” ao INSS.”

O Parecer nº 17/99-SAFF teve como fundamento, entre outros, o 1 Publicado na Revista de Direito desta Procuradoria-Geral nº 7 (jan./jul. 2000), p. 209-219.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 183

disposto na Lei 9.506/97 que, alterando a Lei 8.212/91, passou a incluir os detentores de mandato eletivo federal, estadual e municipal entre os contribuintes obrigatórios do INSS. A n. Mesa Diretora, à época, acolheu integralmente as conclusões do Parecer, passando a recolher as contribuições respectivas, bem como, após algum tempo, saldando débitos formados entre 29/01/98 e o início efetivo das contribuições.

Em complemento àquela conclusão, esta Procuradoria-Geral esclareceu que o Vereador que já fosse contribuinte ou aposentado em razão de outra atividade (servidor público, empresário, contribuinte empregado ou autônomo, etc.), teria que contribuir normalmente sobre seus subsídios, pois a contribuição previdenciária incide sobre cada uma das atividades do segurado (Parecer nº 04/00-SAFF

2).

Em 08/10/03, todavia, o Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário, veio a declarar inconstitucional o dispositivo da Lei 9.506/97 que havia tornado os parlamentares contribuintes obrigatórios do regime geral de previdência. Conforme a fundamentação contida no Parecer nº 12/03-SAFF, esta Procuradoria-Geral sugeriu à Mesa Diretora que suspendesse as contribuições, mesmo em se tratando de decisão tomada em controle concreto de constitucionalidade, com efeitos, a princípio, inter partes. Com isso, foram suspensos os recolhimentos a partir de novembro de 2003.

Exatamente ao contrário do que ocorreu anteriormente, esta Casa apurou um valor pago indevidamente, entre janeiro de 1998 e novembro de 2003. Em conseqüência, foi expedido ofício à Procuradoria Geral do Município, sugerindo o ajuizamento da competente ação de repetição de indébito, para recuperação, pelo Município, dos valores pagos naquele período.

Em 18/06/04, foi promulgada a Lei 10.887/04, que voltou a introduzir na Lei 8.213/91 a vinculação dos exercentes de mandato eletivo, com redação idêntica à que constava na Lei 9.506/97, anteriormente declarada inconstitucional.

A questão que se põe em análise, portanto, é saber se a reedição da Lei, com idêntica redação, teria trazido de volta a vinculação dos Vereadores desta Casa ao INSS, com a conseqüente obrigatoriedade da contribuição previdenciária.2 Publicado na Revista de Direito desta Procuradoria-Geral nº 8 (jul./dez. 2000), p. 177-184.

184 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Passo a opinar.

3. Apreciação

3.1 A questão em tese

Com a edição da Lei 10.887/04, o art. 12-I da Lei 8.212/91 passou a ter a seguinte redação:

Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:I – como empregado:h) o exercente de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, desde que não vinculado a regime próprio de previdência social (incluída pela Lei 9.506/97);j) o exercente de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, desde que não vinculado a regime próprio de previdência social (incluída pela Lei 10.887/04);

3

Ao contrário do que pode parecer ao leitor desavisado, não há erro de digitação: a Lei passou mesmo a ter duas alíneas com idêntica redação: a primeira, incluída em 1997 (e declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal) e a segunda incluída em 2004.

Numa abordagem superficial, poderia parecer que se a alínea “h” é inconstitucional, também o seria a alínea “j”, que é absolutamente idêntica. A questão, entretanto, não é assim tão simples. Isto porque, entre 1997 e 2004, a Constituição foi significativamente alterada, por duas Emendas de grande extensão, ambas conhecidas como “Reforma Previdenciária”: A Emenda nº 20, de 1998, e a Emenda nº 41, de 2003.

É necessário, então, apreciar as razões que levaram o STF a declarar a inconstitucionalidade da primeira alínea, para então verificar se tais razões persistiriam após a promulgação das referidas Emendas Constitucionais.

A ementa da decisão do STF no RE 351.717-1 tem o seguinte teor:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PREVIDÊNCIA SOCIAL. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL: PARLAMENTAR: EXERCENTE DE MANDATO ELETIVO FEDERAL, ESTADUAL ou MUNICIPAL. Lei 9.506, de 30.10.97. Lei 8.212, de 24.7.91. C.F., art. 195, II, sem a EC 20/98;

3 Foram transcritas apenas as alíneas que interessam à análise ora empreendida.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 185

art. 195, § 4º; art. 154, I. I. - A Lei 9.506/97, § 1º do art. 13, acrescentou a alínea h ao inc. I do art. 12 da Lei 8.212/91, tornando segurado obrigatório do regime geral de previdência social o exercente de mandato eletivo, desde que não vinculado a regime próprio de previdência social. II. - Todavia, não poderia a lei criar figura nova de segurado obrigatório da previdência social, tendo em vista o disposto no art. 195, II, C.F.. Ademais, a Lei 9.506/97, § 1º do art. 13, ao criar figura nova de segurado obrigatório, instituiu fonte nova de custeio da seguridade social, instituindo contribuição social sobre o subsídio de agente político. A instituição dessa nova contribuição, que não estaria incidindo sobre “a folha de salários, o faturamento e os lucros” (C.F., art. 195, I, sem a EC 20/98), exigiria a técnica da competência residual da União, art. 154, I, ex vi do disposto no art. 195, § 4º, ambos da C.F. É dizer, somente por lei complementar poderia ser instituída citada contribuição. III. - Inconstitucionalidade da alínea h do inc. I do art. 12 da Lei 8.212/91, introduzida pela Lei 9.506/97, § 1º do art. 13. IV. - R.E. conhecido e provido.

Do exame da ementa, e também do texto do voto condutor, nota-se que a premissa do Pretório Excelso partiu da redação original do art. 195 da Constituição Federal, que era a seguinte:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:I – dos empregadores, incidentes sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro;II – dos trabalhadores;

No entendimento externado naquele acórdão, nem a Câmara Municipal pode ser entendida como “empregador” nem os Vereadores estariam no conceito de “trabalhadores”, por tratarem-se de agentes políticos, não mantendo relação contratual com o ente público. Por outro lado, o § 4º do mesmo dispositivo tinha (e ainda hoje tem) a seguinte redação:

§ 4º. A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.

O art. 154, I é exatamente o que trata da competência tributária residual da União, que só pode ser exercida por lei complementar. Como a Lei 9.506/97 é lei ordinária, não poderia instituir nova contribuição previdenciária, incidindo assim em inconstitucionalidade formal.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 20/98, o dispositivo passou a ter a seguinte redação:

186 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;b) a receita ou o faturamento;c) o lucro.II – do trabalhador e demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;

A meu juízo, a alteração operada pela Emenda 20, ao inserir as expressões “entidade a ela equiparada na forma da lei” e “demais segurados da previdência social”, removeu, de forma clara, os óbices antes existentes para a instituição da vinculação ao regime geral de previdência dos detentores de mandato eletivo. Sob tal ponto de vista, a nova inclusão dos parlamentares, pela via da Lei 10.887/04, no regime geral de previdência, seria plenamente legítima.

Reforçam tal conclusão várias passagens do julgamento do RE 351717, em que os Ministros do Supremo Tribunal Federal ressalvaram a questão da alteração do parâmetro de controle pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998. Na própria ementa, ficou ressaltado: “CF, art. 195, I, sem a EC 20/98”. No voto do eminente Ministro Carlos Velloso, tal ressalva foi repetida, embora não se tenha explicitado se tal vinculação seria legítima após a Emenda. De forma mais explícita, o Ministro Sepúlveda Pertence assentou que:

“Sr. Presidente, só a Emenda Constitucional 20 passou a determinar a incidência da contribuição sobre qualquer segurado obrigatório da Previdência Social. (...). A lei é anterior, a inconstitucionalidade é patente.”

A Emenda Constitucional nº 41, de 19/12/03, embora tenha operado significativas mudanças no sistema previdenciário brasileiro, não efetuou nenhuma alteração nos dispositivos que fundamentaram a declaração de inconstitucionalidade da alínea “h” da Lei 8.212/91, introduzida pela Lei 9.506/97.

Nada obstante, o problema que se põe é de Direito Constitucional

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 187

Intertemporal, como se verá a seguir.

É consenso na doutrina constitucional que a inconstitucionalidade é um vício congênito, que acompanha a lei desde o seu nascimento. É exatamente por isso que as decisões, na jurisdição constitucional, se limitam a declarar a inconstitucionalidade, que se pressupõe pré-existente. Por isso, as decisões que declaram a inconstitucionalidade têm efeito mais severo que a própria revogação da lei, pois declaram que a lei inconstitucional jamais gerou efeitos. Na feliz síntese de Daniel Sarmento: “Pertence à tradição do Direito Brasileiro o dogma da nulidade da lei inconstitucional”

4.

Assim, é certo que a Lei 9.506/97, neste ponto, já “nasceu” inconstitucional, jamais tendo gerado qualquer efeito válido. Nem mesmo a circunstância de tal inconstitucionalidade ser formal (edição de lei ordinária, ao invés de lei complementar) altera tal conclusão. A respeito, a sempre clara lição do Mestre Luís Roberto Barroso:

“Veja-se que é necessário distinguir duas possibilidades diversas: a) argüição de inconstitucionalidade formal em face da Constituição em vigor; b) argüição de inconstitucionalidade formal em face da Constituição que presidiu a formação do ato. No primeiro caso, jamais poderá ser pronunciada a inconstitucionalidade, simplesmente porque a questão não pode ser colocada em face do novo ordenamento. Na segunda hipótese, decerto não caberá a apreciação da matéria em ação direta, por descaber esta via de controle quando se trate de argüição em face da Constituição já revogada. Essa tem sido a firme posição da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Nada impede, contudo, que qualquer órgão jurisdicional pronuncie, em concreto, incidentalmente, a invalidade formal de ato que, havendo inobservado os requisitos para sua formação, é inválido ab initio.”

5

Por outro lado, o advento da Emenda Constitucional nº 20/98 não teve o condão de “constitucionalizar” a inserção feita pela Lei 9.506/97. O Direito Constitucional Brasileiro, na linha dos países mais desenvolvidos, não reconhece o fenômeno da “constitucionalização”. A inconstitucionalidade, como se disse acima, é mal congênito, que não pode ser sanado por posterior mudança 4 SARMENTO, Daniel. A Eficácia temporal das decisões no controle de constitucionalidade.

In: _____. (org). O Controle de Constitucionalidade e a Lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 101.5

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 82.

188 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

da Constituição.

Desse modo, embora fosse possível, a partir de 20/12/98, a edição de lei vinculando os detentores de mandato eletivo ao regime geral de previdência (INSS), tal providência só foi tomada em 18/06/04, com a promulgação da já citada Lei 10.887/04.

Neste intervalo, continuaram os detentores de mandato eletivo excluídos de qualquer regime previdenciário. Isto porque a contribuição previdenciária está sujeita ao princípio da reserva legal, isto é, só pode ser criada por lei, como se vê o art. 150, I, da Constituição Federal:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

A lei então existente (alínea “h”, introduzida pela Lei 9.506/97) era, neste ponto, nula, não podendo gerar qualquer efeito. A situação, assim, equiparava-se à ausência de lei.

Finalmente, a Lei 10.887/04 foi promulgada já sob a nova redação da Constituição. Ao menos à primeira vista, o dispositivo inserido na Lei 8.212/91 (alínea “j”) não padece de qualquer inconstitucionalidade. Nem mesmo a igualdade com a redação do dispositivo anteriormente inserido (alínea “h”) milita contra sua legitimidade, dada a substancial modificação da Constituição, como demonstrado acima.

Neste passo, deve ser lembrado o teor do § 6º do art. 195 da Constituição:

§ 6º. As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, b.

Em razão deste dispositivo constitucional, a exigibilidade da contribuição instituída pela Lei 10.887/04 só teve início em 20/09/04.

Assim, podem-se resumir as conclusões até o momento obtidas, atualizando o resumo feito no Parecer nº 17/99-SAFF, acima transcrito, agora considerando a decisão do STF no RE 351.717-1, bem como a edição da Lei 10.887/04:

a) até 15/12/98, os Vereadores tinham duas opções quanto ao regime previdenciário: filiar-se ao PREVI-RIO ou ficar sem qualquer vínculo previdenciário;

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 189

b) entre 16/12/98 e 20/09/04, os Vereadores ficaram excluídos de qualquer vínculo previdenciário, nesta qualidade;

c) a partir de 20/09/04, os Vereadores passaram a ser contribuintes obrigatórios do INSS.

Impõem-se, ainda, duas observações finais.

A primeira observação diz respeito à locução “desde que não vinculado a regime próprio de previdência social”, contida na parte final das alíneas “h” e “j” do referido dispositivo constitucional. No Parecer nº 17/99-SAFF, concluí que tal alternativa só seria possível no curto período entre a edição da Lei 9.506/97 e o advento da Emenda Constitucional nº 20/98. Isto porque a chamada primeira “Reforma da Previdência” só permite duas espécies de regime previdenciário: o público, a ser instituído por cada um dos entes federativos – privativo de servidores efetivos –, e o geral, que engloba todos os trabalhadores e equiparados, e é administrado pelo INSS.

Embora a primeira parte da conclusão tenha sido superada pela declaração de inconstitucionalidade daquele dispositivo da Lei 9.506/97, a segunda parte permanece válida. Desse modo, não é mais possível um regime “próprio” de previdência dos parlamentares, tampouco lhes é facultado filiar-se ao regime “próprio” de cada ente federativo (no caso deste Município, o do FUNPREVI), pois este último é privativo de servidores com vínculo efetivo.

Assim, conclui-se que a locução “desde que não vinculado a regime próprio de previdência social” na Lei 10.887/04 é simplesmente inócua, dada a impossibilidade de filiação de detentores de mandato eletivo a regimes “próprios” de previdência.

A segunda observação diz respeito à obrigatoriedade da contribuição para os Vereadores que sejam contribuintes ou já aposentados em razão do exercício de outra atividade. Quanto a este ponto, as conclusões obtidas no Parecer nº 04/00-SAFF permanecem válidas, não havendo qualquer razão jurídica para revê-las.

3.2 A incerteza jurisprudencial sobre a matéria

A despeito das conclusões obtidas no subitem anterior, já está claro para o leitor que a matéria é imersa em incertezas e volatilidades. Para subsidiar a análise ora empreendida, foi efetuada pesquisa sobre decisões

190 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

judiciais relativas à constitucionalidade, neste ponto, da Lei 10.887/04.

O resultado não diminui em nada a incerteza. Dado o caráter recente da Lei, é quase impossível que exista alguma decisão colegiada, em segunda instância, sobre a legitimidade da recriação da contribuição previdenciária dos detentores de mandato eletivo.

No Tribunal Regional Federal da 2ª Região, não logrei encontrar uma única decisão, monocrática ou colegiada, sobre o tema. Nos Tribunais Regionais Federais da 3ª, 4ª e 5ª Regiões também não há decisões colegiadas a respeito, não estando disponível a consulta jurisprudencial a decisões monocráticas.

No Tribunal Regional Federal da 1º Região, há apenas algumas decisões monocráticas, posteriores à vigência da Lei 10.887/04, que apontam para pelo menos três direções distintas:

i) decisões que, embora não fazendo referência expressa à Lei 10.887/04, entendem que a vinculação de Vereadores ao INSS permanece inconstitucional, mesmo após a edição da Emenda Constitucional nº 20, de 1998

6;

ii) decisões com entendimento idêntico ao obtido no subitem anterior deste Parecer, no sentido de que tal vinculação seria possível, desde que prevista em Lei, a partir da Emenda 20/98, mas nada dizendo sobre a Lei 10.887/04, mesmo tendo sido proferidas após a sua vigência;

iii) decisões que, mesmo rejeitando a “constitucionalização” da Lei 9.506/97, entendem que a contribuição seria exigível desde a Emenda nº 20/98, por decorrência direta da Constituição, independentemente da existência de Lei

7.

A terceira corrente, data venia, é de ser descartada de plano, pois faz tábula rasa do princípio da legalidade tributária. As outras duas expressam exatamente as duas possíveis tendências jurisprudenciais sobre a Lei 10.887/04, ainda não definidas.

6 Assim, entre outros, o agravo de instrumento nº2004.01.00.034927-0-MG, Relator Desem-

bargador Federal Iran Velasco Nascimento.7 Assim, várias decisões idênticas do Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 191

O Supremo Tribunal Federal foi provocado, em sede de Reclamação, a dizer se decisões pela legitimidade da cobrança, após o julgamento do RE 351717 e a edição da Lei 10.887, estariam afrontando a autoridade das decisões daquela Corte. Apreciando o pedido, o ministro Joaquim Barbosa, monocraticamente, assim decidiu:

“A reclamação é o remédio idôneo para preservar a competência do Tribunal ou para garantir a autoridade de suas decisões (art. 102, I, l, da CF/1988). No presente caso, o reclamante aponta como decisão violada o acórdão proferido por esta Corte no RE 351.717, processo do qual não fez parte e que, embora trate do mesmo tema objeto da decisão reclamada – qual seja, contribuição previdenciária dos agentes políticos –, refere-se a declaração de inconstitucionalidade, no controle difuso, de dispositivo da Lei 9.506/1997. Ressalte-se que tal lei cujo dispositivo foi declarado inconstitucional é anterior à Emenda Constitucional 20/1998, a qual determinou a incidência de contribuição previdenciária sobre qualquer segurado da Previdência Social (art. 195, II, da CF/1988). Por outro lado, a Lei 10.887, de 18.06.2004, incluiu entre os segurados obrigatórios da Previdência Social o “exercente de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, desde que não vinculado a regime próprio de previdência social” (art. 12). Vê-se, portanto, que, acerca das novas alterações legislativas implementadas pela Emenda Constitucional 20/1998 e pela Lei 10.887/2004 referentes à questão da contribuição previdenciária dos agentes políticos, ainda não há pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Desse modo, no presente caso, não vislumbro afronta, pela decisão monocrática reclamada, ao acórdão proferido pela Corte no RE 351.717. Ressalto, por oportuno que, conforme orientação jurisprudencial do STF, é incabível a reclamação quando não há decisão da Corte a ser resguardada, bem como se a autoridade de decisão do Tribunal não é desrespeitada. Também não basta para o cabimento da medida argumentar que a questão controvertida no processo é contrária à jurisprudência do STF (cf. Rcl 726-AgR, rel. min. Ilmar Galvão, Pleno, DJ 17.04.1998). Do exposto, com fundamento no art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, nego seguimento à presente reclamação, ficando prejudicada a apreciação do pedido de liminar. Publique-se. Arquive-se.”

8

Percebe-se, então, que o Supremo Tribunal Federal, mais uma vez, deixou claro que a decisão proferida no RE 351717 se limitou a declarar a inconstitucionalidade da contribuição diante da redação original da Constituição de 1988. Sobre as alterações do quadro normativo, operadas pela Emenda Constitucional nº 20/98 e pela Lei 10.887/04, aquela Corte Suprema se mantém cautelosa, aguardando ser provocada pelo meio processual correto.

8 Reclamação 2800/PR, relator Ministro Joaquim Barbosa.

192 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Assim, fica bastante claro que, embora pareça legítima a instituição da contribuição previdenciária dos Vereadores ao INSS, pela Lei 10.887/04, a questão ainda pode ter desdobramentos jurisprudenciais, imprevisíveis no atual momento.

Neste contexto, a responsabilidade dos dirigentes desta Casa Legislativa é enorme, pois se colocam diante de um verdadeiro dilema: se determinam o recolhimento da contribuição, e posteriormente esta vem a ser declarada inconstitucional, haverá prejuízo ao Erário, pois a recuperação dos pagamentos indevidos pode ser difícil e demorada, dependendo de ação judicial própria (como, aliás, está ocorrendo com as contribuições de janeiro de 1998 a novembro de 2003); se, por outro lado, determinam que a Câmara Municipal se abstenha de recolher as contribuições instituídas pela Lei, e o Judiciário vem a reconhecer sua legitimidade, haverá a incidência de acréscimos moratórios, também com prejuízo ao interesse público.

Desse modo, embora a recomendação deste Parecer seja pelo recolhimento da contribuição previdenciária pelos Vereadores, parece recomendável também que sejam tomadas medidas para pôr fim à incerteza jurídica sobre o tema.

3.3 Possibilidades processuais para superação da incerteza por iniciativa da Câmara Municipal

Na atual situação fática, cabe analisar algumas medidas possíveis para dotar de maior segurança jurídica a decisão das autoridades desta Casa Legislativa.

A primeira possibilidade a ser aventada seria a propositura, perante a Justiça Federal, de ação declaratória da inexigibilidade do crédito previdenciário, com pedido de liminar. Conforme o conteúdo da decisão liminar – deferindo-a ou indeferindo-a – a Câmara Municipal iniciaria ou não o recolhimento.

Esta possibilidade esbarraria, inicialmente, numa dificuldade prática. É controvertida, na jurisprudência, a possibilidade de ajuizamento, pelas Câmaras Municipais, de ações diversas do mandado de segurança, em razão da ausência de personalidade jurídica. É certo que tal dificuldade poderia ser contornada pela impetração de um mandado de segurança preventivo, mas que não seria o meio processual mais correto.

Todavia, diante da conclusão externada neste Parecer, no sentido da

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 193

constitucionalidade da referida contribuição, seria incoerente – para não dizer constrangedor – que esta Procuradoria-Geral propusesse tal ação. Por óbvio, também não seria possível a propositura de ação declaratória da exigibilidade do crédito previdenciário, pela evidente falta de interesse de agir.

Há, ainda, a possibilidade de oferecer representação ao Procurador-Geral da República, para que aquela autoridade decida sobre a conveniência de ajuizar ação direta de inconstitucionalidade (ou declaratória de constitucionalidade) do novel dispositivo da Lei 8.212/91, de modo a dissipar, com efeitos erga omnes, qualquer dúvida sobre a legitimidade da nova exação. Esta iniciativa não traria qualquer ônus ou despesa para esta Casa Legislativa.

Caso a n. Mesa Diretora decida afirmativamente quanto ao oferecimento de tal representação, será necessário o retorno destes autos a esta Procuradoria-Geral, para elaboração da minuta respectiva.

4. Conclusões

De todo o exposto, concluo na forma das proposições a seguir:

a) aparentemente, é constitucional a vinculação dos Vereadores ao regime geral de previdência social (INSS), estabelecida pela Lei 10.887/04, sendo devidas as contribuições respectivas – inclusive a contribuição “patronal” – desde 20/09/04;

b) dada a grande controvérsia sobre a legitimidade de contribuição idêntica, instituída pela Lei 9.506/97, afinal declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, sugere-se o oferecimento, por esta Casa Legislativa, de representação ao Procurador Geral da República, para que aquela Autoridade decida por provocar o Supremo Tribunal Federal a se manifestar sobre o tema.

É o parecer, submetido à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 14 de junho de 2005.

Sérgio Antônio Ferrari FilhoProcurador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

VISTO. Aprovo o Parecer nº 07/05-SAFF, salientando a sugestão formulada pelo Parecerista, no sentido de se efetuar o recolhimento da contribuição em tela e também de oferecer Representação ao Procurador-

Direito Parlamentar e Processo Legislativo

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 197

Limites das recomendações expedidas pelo Ministério Público

Parecer nº 01/05-FACB

Ementa: - Recomendação expedida pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro para que os Vereadores da Câmara Municipal “considerem a inconstitucionalidade e ilegalidade do projeto de Lei Complementar Municipal nº 78-A/04 que permite a regularização de ampliação horizontal nos pavimentos de cobertura das edificações e, conseqüentemente, para que se abstenham de aprová-la”. - Manifestação, contudo, desprovida de qualquer carga coativa que possa inibir a atividade parlamentar, de natureza constitucional, valendo mais como substancioso opinamento do Parquet, que, por tal motivo, deve ser franqueado ao conhecimento dos ilustres Parlamentares desta Casa Legislativa.

Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral,

Trata-se de Ofício que encaminha Recomendação subscrita por três Promotores de Justiça, lotados nas Promotorias de Tutela Coletiva de Proteção ao Meio Ambiente da Capital do Estado do Rio de Janeiro, através da qual recomendam que os Vereadores da Câmara Municipal “considerem a inconstitucionalidade e ilegalidade do projeto de Lei Complementar Municipal nº 78-A/04 que permite a regularização de ampliação horizontal nos pavimentos de cobertura das edificações e, conseqüentemente, para que se abstenham de aprová-la”.

Após tecer considerações acerca de supostas inconstitucionalidades e ilegalidades contidas no Projeto de Lei Complementar referido, o Parquet cuida de advertir que a inobservância da Recomendação poderá resultar na instauração de “inquérito civil e na adoção de medidas judiciais cabíveis pelas Promotorias de Tutela Coletiva do Meio Ambiente do Ministério Público

198 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

do Estado do Rio de Janeiro visando impedir tais atos administrativos e, observadas as peculiaridades dos casos concretos, promover a demolição das construções irregulares, responsabilizando o Município e os executores das irregularidades, sem prejuízo da representação ao Procurador-Geral de Justiça solicitando as medidas cabíveis junto ao Tribunal de Justiça para promover a declaração direta de inconstitucionalidade da Lei 78-A/04”.

Esta Procuradoria-Geral, assim, foi instada a se manifestar.

Não é a primeira vez que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro emite Recomendação a esta Câmara Municipal manifestando-se sobre a constitucionalidade de projetos legislativos em tramitação.

Como de outras vezes, a Recomendação encaminhada a esta Câmara Municipal tem suporte na combinação dos artigos 80 da Lei nº 8.625/93 (que manda aplicar aos Ministérios Públicos dos Estados, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União), com o art. 6

o, XX,

da Lei Complementar nº 75/93, que disciplina o Ministério Público da União, e que tem, por seu turno, a seguinte redação:

“Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:......................................omissis...........................................XX - expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis”.

Deflui da leitura dos dispositivos legais que tratam da matéria, que a recomendação constitui uma espécie de notificação que o Ministério Público faz ao responsável – normalmente, uma autoridade administrativa – para que este faça ou deixe de fazer algo com vistas à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública. Quando a questão envolve a legalidade de determinado ato, o administrador fica advertido sobre sua conduta. É como leciona Hugo Nigro Mazzilli

1 :

“Contudo, quando no zelo dos princípios gerais da administração, o relatório ou as conclusões ministeriais versarem sobre matéria cuja solução esteja regida pelo critério da legalidade, as recomendações deverão então ser formalmente encaminhadas, seja para prevenir responsabilidades, seja principalmente para que o responsável aja, sob as penas da lei. Assim, na

1 O inquérito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 414.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 199

defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos, deverá o Ministério Público notificar o responsável para: a) dar divulgação adequada e imediata às recomendações, dando-lhes resposta por escrito; b) tomar as providências necessárias a prevenir eventuais violações da lei, seja para impedir sua repetição ou continuação”.

Mas, há quem, dentro do próprio Ministério Público, não se conforme com a utilização que vem sendo dada ao instituto, vislumbrando exagero nos métodos de sua utilização. Colha-se, nesse sentido, a lição de Paulo de Bessa Antunes

2:

“Qual a natureza da recomendação? Esta é uma questão bastante árdua, pois diz respeito à adoção por órgãos estranhos ao Ministério Público de medidas que, segundo a ótica do Ministério Público, são as mais adequadas para uma determinada situação. Aqui entra-se no delicado campo da separação de atribuições e de poderes, pois, em tese, o Parquet passou a ter ingerência direta na administração pública, não raras vezes, modificando decisões administrativas. É fato que, muitas vezes, decisões administrativas contrárias ao interesse público são revertidas pela ação ministerial. Penso, porém, que devemos examinar o assunto sob a ótica do papel das instituições em um regime democrático. A função do Ministério Público é, evidentemente, aquela estabelecida pela Constituição Federal. Na Lei Fundamental não existe qualquer previsão da figura da recomendação.Geralmente a recomendação é formulada pelo Parquet como resultado de um trabalho apuratório prévio. Em geral ela se origina de um inquérito civil ou das peças de informação. Ela deve ser vista como um instrumento de aperfeiçoamento da administração e de colaboração. Não há, evidentemente, qualquer obrigatoriedade de que o recomendado cumpra os termos da recomendação. Ela, na melhor das hipóteses, assemelha-se a uma notificação extrajudicial. Entretanto, observa-se que, em alguns casos, a recomendação tem sido utilizada como uma forma de coação contra o administrador público, forçando-o a tomar determinadas medidas que, freqüentemente, resultam em prejuízo para terceiros. É claro que, sob a ameaça de se ver processado por improbidade administrativa, o administrador, dificilmente, deixará de atender à “recomendação”, que, no caso, passa a assumir foros de decisão judicial transitada em julgado. Do ponto de vista das instituições democráticas, a prática é extremamente condenável e merece repúdio. Vale notar que ao Ministério Público compete a 'defesa das instituições democráticas'.”

2 MILARÉ, Edis (coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985: 15 anos. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2001. p. 660.

200 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Não se deseja, aqui, examinar essa polêmica. O que se busca pontuar, com tais transcrições, é que, em tese, a Recomendação é provida de inegável caráter coercitivo, caracterizando-se quase que como uma ordem para se sanar ilegalidades vislumbrada pelo Ministério Público, sujeitando-se a autoridade competente às eventuais penas da lei.

Como visto linhas acima, no documento enviado a esta Câmara Municipal, o Ministério Público acena com sanções que não são aplicáveis aos nobres Vereadores. Com efeito, a ameaça de instauração de inquérito civil e adoção de medidas judiciais cabíveis pelas Promotorias de Tutela Coletiva do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro visando impedir atos administrativos advindos da eventual aprovação do projeto de lei sob exame, além de, observadas as peculiaridades dos casos concretos, promover a demolição das construções irregulares, responsabilizando o Município e os executores das irregularidades, sem prejuízo da representação ao Procurador-Geral de Justiça solicitando as medidas cabíveis junto ao Tribunal de Justiça para promover a declaração direta de inconstitucionalidade da Lei 78-A/04.

Bem se vê, portanto, que a Recomendação em tela não contém qualquer advertência contra os Parlamentares desta Casa Legislativa. Trata-se, portanto, de uma mera – e válida – manifestação de conteúdo opinativo.

E não poderia mesmo ser diferente. Por mais que se reconheça a superior missão do Ministério Público, seria impensável que um Parlamentar pudesse deixar de votar de acordo com sua consciência com o receio de instauração de um inquérito civil pelo Ministério Público.

Nessa linha de raciocínio, não há sequer necessidade de exame acerca dos supostos vícios do Projeto de Lei Complementar nº 78-A/04, mormente quando se tem em conta que o processo legislativo acha-se em pleno curso, detendo a nobre Comissão de Justiça e Redação a primazia de tal exame, a teor do que dispõe o art. 69, I, do Regimento Interno desta Câmara Municipal.

Da mesma forma, deixa-se de examinar o cabimento do inquérito civil e das medidas judiciais referidas pelo Ministério Público em caso de promulgação do texto contido no Projeto de Lei Complementar nº 78-A/04, justamente pela circunstância de não haver qualquer ameaça palpável a Parlamentar desta Casa Legislativa.

Em síntese, por não conter os requisitos previstos nas lições de doutrina e, especialmente, no respectivo instrumento normativo, a Recomendação contida nos presentes autos, data venia, sequer mereceria tal titulação. Vale,

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 201

de toda forma, como substanciosa manifestação de acatada instituição, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que vem se destacando por seu zelo com coisa pública, como se demonstra, no final das contas, neste próprio processo.

Por tais razões, opino no sentido de que a Recomendação de fls. 3/7 deva ser amplamente divulgada para inequívoca ciência dos Vereadores desta Câmara Municipal, devendo os ilustres Edis estarem também cientes de que se trata de uma peça opinativa, e que seu conteúdo é desprovido de carga coativa que possa inibir a livre manifestação de pensamento e exercício das prerrogativas constitucionais que lhes tocam por superior disposição constitucional.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2005.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

VISTO. Aprovo o PARECER Nº 01/05- FACB, supra.

Encaminhe-se à consideração do Exmº Sr. Presidente.

Em 13 de janeiro de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 203

Possibilidades do Poder Legislativo em matéria de tombamento

Parecer nº 05/05-FACB

Ementa: Questionamento da parte de Vereador acerca da possibilidade de decretação de tombamento por lei de iniciativa do Poder Legislativo. Exame do instituto e conclusão em sentido positivo.

Excelentíssimo Senhor Vereador Presidente,

Trata-se de Ofício encaminhado à Presidência desta Casa Legislativa pelo ilustre Vereador Rubens Andrade pedindo a emissão de parecer desta Procuradoria-Geral, “quanto à possibilidade e continuidade da iniciativa da Câmara de Vereadores, relativo ao tombamento de bens imóveis e móveis e criação de áreas de especial interesse, autorizados no inciso XIV, do artigo 44, da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro”.

Pondera, ainda, o ilustre Parlamentar que “a sanção determinada no caput do artigo citado, é de competência inerente ao Prefeito, como também, é o veto, devendo ser aplicado um dos atos, em todos os Projetos de Lei votados pelo Legislativo, estando esta prerrogativa estabelecida nos incisos IV e V, do artigo 107, da Lei Orgânica mencionada”.

“Outrossim”, conclui o Vereador, (sic) “ser a iniciativa de tombamento dos Vereadores desta Câmara Legislativa utilizada desde 1990, quando da sanção e publicação da Lei Orgânica”.

O feito veio, então, para exame desta Procuradoria-Geral.

Tombamento, na autorizada lição de Maria Sylvia Zanella di Pietro, constitui uma das modalidades de intervenção estatal na propriedade privada, por meio da qual o poder público protege determinados bens considerados de valor artístico ou histórico, determinando sua inscrição nos chamados Livros do

204 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Tombo, para sujeitá-los a restrições parciais, passando o bem a ser considerado de interesse público

1. Trata-se de uma restrição parcial, porquanto não impede

que o particular exerça os direitos inerentes ao domínio.

Hely Lopes Meirelles define tombamento como sendo “a declaração pelo Poder Público do valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico de coisas ou locais que, por essa razão, devam ser preservados, de acordo com a inscrição em livro próprio”

2.

Não há dúvida que, por constituir inegável restrição ao direito de propriedade, o processo de tombamento não deve possuir viés inteiramente discricionário, devendo o Poder Público observar as garantias constitucionais pertinentes.

A Constituição Federal de 1988 busca implantar, através de variados tópicos, um entrelaçado sistema de proteção aos bens materiais e imateriais. Seu artigo 23, por exemplo, dispõe ser da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a proteção aos documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos (inciso III), conferindo-lhes, por igual, competência para impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural (inciso IV), proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência (inciso V), proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI), e, por fim, preservar as florestas, a fauna e a flora (inciso VII).

O art. 24, por seu turno, delega à União, Estados e Distrito Federal a competência para legislar concorrentemente sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (inciso VI); proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (inciso VII), responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (inciso VIII) e, por fim, educação, cultura, ensino e desporto (inciso IX).

Pode, ainda, ser feita menção ao que dispõem os artigos 170, VI, 215, §§ 1 Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas. p. 113 e ss.

2 Direito administrativo brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros. 465 e ss.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 205

1º e 2º, e, por fim, o artigo 216, todos da Constituição Federal que aludem ao dever do Poder Público na manutenção da memória ambiental e cultural

3.

Sem prejuízo do que dispõe o citado artigo 24, é certo que o artigo 30, IX, da Carta Federal atribui aos municípios a missão de promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Nesse sentido, inclusive, já decidiu, muito recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, atestando que o Município poderá tombar bem de outra unidade da federação, verbis:

“ADMINISTRATIVO – TOMBAMENTO – COMPETÊNCIA MUNICIPAL.1. A Constituição Federal de 88 outorga a todas as pessoas jurídicas de Direito Público a competência para o tombamento de bens de valor

3 Artigo 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre

iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:VI - defesa do meio ambiente;Artigo 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.§ 1°. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2°. A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.Artigo 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imate-rial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:I – as formas de expressão;II – os modos de criar, fazer e viver;III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifesta-ções artístico-culturais;V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, pa-leontológico, ecológico e científico.§ 1°. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.§ 2°. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação go-vernamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3°. A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores cul-turais.§ 4°. Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5°. Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas

206 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

histórico e artístico nacional.2. Tombar significa preservar, acautelar, preservar, sem que importe o ato em transferência da propriedade, como ocorre na desapropriação.3. O Município, por competência constitucional comum – art. 23, III –, deve proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos.4. Como o tombamento não implica em transferência da propriedade, inexiste a limitação constante no art. 1º, § 2º, do DL 3.365/1941, que proíbe o Município de desapropriar bem do Estado.5. Recurso improvido”

4.

Do corpo deste acórdão valerá transcrever o seguinte tópico, que reforça o que está sendo afirmado neste pronunciamento:

“Tombamento é a forma de o Poder Público proteger o patrimônio histórico-cultural, ato que não importa em transferência da propriedade. Portanto, não se confunde tombamento com desapropriação, porque na última existe a compulsória transferência da propriedade para o patrimônio do expropriado.Se assim é, não se pode estender a vedação constante do art. 1º, § 2º, do Decreto-lei 3365, de 21 de junho de 1941, específico para as desapropriações, à hipótese de tombamento. O dispositivo mencionado proíbe que o Município desaproprie bem do Estado, ou que o Estado desaproprie bem da União, devendo-se respeitar a hierarquia entre pessoas jurídicas.Como não há dispositivo expresso proibindo a hierarquização para o tombamento, a solução que se afigura pertinente é partir de uma construção jurídica.De acordo com a Constituição Federal, têm os Municípios competência para legislar sobre assuntos de interesse local ou peculiar interesse, como constava na Constituição antecedente. E, em relação a tombamento, há competência comum às três unidades da federação, cada um dentro da sua esfera de atribuições. Com efeito, estabelece a CF de 88:Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

4 Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 18.952, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon,

DJ , 30.05.2005 p. 266

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 207

III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos.Também está previsto na Constituição, no § 1º, do art. 216:O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.A respeito da competência municipal, ensina José Cretela Júnior, em Dicionário de Direito Administrativo, 3a. ed., pág. 516:Desse modo, todos os Estados Brasileiros, assim como todos os Municípios podem por direito próprio, outorgado pelo diploma maior, editar normas específicas a respeito dos respectivos patrimônios resultáveis do tombamento.Como se vê, cabe ao Município legislar sobre assuntos de interesse local, na medida em que o tombamento pretende preservar e conservar um bem intacto, imune à destruição ou a qualquer tipo de modificação, em face do interesse da comunidade pela manutenção estética do bem, seja por razões históricas, artísticas, arqueológicas ou paisagística. É uma espécie de medida cautelar para preservação do patrimônio cultural e histórico local, sem interferir no direito de propriedade.A conclusão a que se chega é de que cabe ao Município efetuar o tombamento, sem se limitar a sua competência à hierarquia havida entre os entes federativos, como ocorre em relação à desapropriação”.

Bem se vê, portanto, que o Poder Judiciário vem corroborando a preocupação do Constituinte com a disseminação do sistema de preservação dos bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos, além da preservação de florestas, fauna e flora, assegurando a competência municipal para legislar sobre o tema.

Em síntese, pode-se afirmar que a compreensão da competência municipal acha-se balizada pelo que dispõe o art. 30, IX, da Constituição, competindo aos municípios promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual, lembrando que o art. 24 da Carta outorga competência à União e aos Estados apenas para estabelecer “normas gerais” sobre proteção desses bens, não sendo ao Município vedado estipular, em legislação própria, o detalhamento da matéria.

Reforçando a competência municipal para dispor sobre tombamento, a

208 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Lei nº 10.257/01, o chamado Estatuto da Cidade, dispõe que, para assegurar as funções sociais das cidades e da propriedade, o Estado e o Município, cada um nos limites de sua competência, poderão decretar, dentre tantas providências, o tombamento de imóveis (art. 230, II, f), o que somente corrobora a legitimidade da utilização desse valioso instituto para a preservação da memória local.

Afirmada a competência municipal, caberá perquirir acerca da iniciativa legislativa sobre tombamento.

Como dito, o art. 30, IX, da Constituição Federal dispõe que cumpre aos Municípios promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observadas as “normas gerais” que estatuem a legislação federal e estadual, sendo certo que até hoje, na órbita federal, vigora o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.

Como é sabido, não é tarefa fácil conceituar “normas gerais”. Raul Machado Horta

5 define a lei de normas gerais como “uma lei quadro, uma

moldura legislativa”, que será introduzida nos ordenamentos das demais unidades pela lei suplementar “mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais”.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto propõe imprimir um conceito de normas gerais: para ele, “são preceitos principiológicos que cabe à União editar no uso de sua competência concorrente limitada, restritos enquanto princípios, ao estabelecimento de diretrizes nacionais a serem pormenorizadas pelos Estados-membros, embora possam, enquanto preceitos, conter suficiente pormenorização para serem aplicadas direta e imediatamente às situações concretas que devem reger.” Faz uma excelente tabulação acerca das características mais comuns apontadas pelos diversos autores na conceituação de normas gerais (embora o próprio autor não concorde com todas as características listadas), apontando-as como portadoras das seguintes características. Busca, ainda, estabelecer lineamentos identificadores de normas gerais:

“a) estabelecem princípios, diretrizes, linhas mestras e regras jurídicas gerais;b) não podem entrar em pormenores ou detalhes nem, muito menos, esgotar

5 Repartição de competência na Constituição Federal de 1988. Revista Trimestral de Direito

Público, São Paulo, n. 2, p. 18, 1993.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 209

o assunto legislado;c) devem ser regras nacionais, uniformemente aplicáveis a todos os entes públicos;d) devem ser regras uniformes para todas as situações homogêneas;e) só cabem quando preencham lacunas constitucionais ou disponham sobre áreas de conflito;f) devem referir-se a questões fundamentais;g) são limitadas, no sentido de não poderem violar a autonomia dos Estados.h) não são normas de aplicação direta.”

6

Tendo em mente tais critérios, não se pode enxergar o Decreto-Lei nº 25/37 como um balizador satisfatório de normas gerais sobre tombamento, até pela data de sua edição. Deflui de sua leitura, contudo, que alguns conceitos básicos devem ser observados pelo legislador municipal. Assim, se as modalidades e seus efeitos acham-se estampadas na lei federal, nela não se enxerga qualquer restrição que permita concluir que o Poder Legislativo estaria excluído do rol dos legitimados a estipular regras e decretar tombamentos, observados os parâmetros já referidos.

Reforça este argumento a constatação de recente ocorrência de duas hipóteses de tombamento editado pela via normativa: o primeiro, através da própria Constituição Federal, art. 216, §5º, que cuida de tombar “todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”; segundo exemplo é o tombamento de bens culturais das empresas, previsto no Programa Nacional de Desestatização, através da Lei nº 10.413, de 12 de março de 2002

7.

Diante de tais precedentes, parece ganhar força o entendimento de que o Poder Legislativo, como legítimo representante da sociedade, pode, sim, decretar o tombamento de bens de valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico de coisas ou locais que, por essa razão, merecem proteção do Poder Público local. 6

Constituição e revisão: temas de direito político e constitucional. 1. ed. Rio de Janeiro: Fo-rense, 1991. p. 155-156.7 “Art. 1

o Os bens culturais móveis e imóveis, assim definidos no art. 1

o do Decreto-Lei n

o 25,

de 30 de novembro de 1937, serão tombados e desincorporados do patrimônio das empresas incluídas no Programa Nacional de Desestatização de que trata a Lei n

o 9.491, de 9 de setembro

de 1997, passando a integrar o acervo histórico e artístico da União. Art. 2o O Poder Executivo

regulamentará esta Lei no prazo de 60 (sessenta) dias contado da data de sua publicação. Art. 3

o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

210 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Paulo Affonso Leme Machado é taxativo quanto à possibilidade de tombamento ser realizado diretamente por ato legislativo, verbis:

“Não há nenhuma vedação constitucional de que o tombamento seja realizado diretamente por ato legislativo federal, estadual ou municipal. Como acentua Pontes de Miranda, basta para que o ato estatal protetivo – legislativo ou Executivo – , seja de acordo com a lei ou às normas já estabelecidas, genericamente, para a proteção dos bens culturais.O tombamento não é medida que implique necessariamente despesa e caso venha o bem tombado necessitar de conservação pelo poder público, o órgão encarregado para a conservação efetuará tal despesa”

8.

Antonio A. de Queiroz Telles sustenta que o chamado tombamento compulsório deveria revestir-se exclusivamente de lei, considerada a circunstância de constituir uma restrição ao direito constitucional de propriedade.

Eduardo Tomasevicius Filho, em artigo publicado na Revista de Informação Legislativa

9, sustenta que o tombamento pode ser realizado

de diversas formas: “a mais simples delas é aquela realizada por lei, que estabelece o tombamento de um bem móvel ou imóvel, ou de uma determinada região”.

Há, naturalmente, quem divirja parcial ou totalmente de tal entendimento: Sônia Rabello de Castro vê, com restrições, a atuação do Poder Legislativo sobre tombamento. Afirma, no entanto, que “poderíamos conceber que, quando a preservação derivar de ato legislativo e inexistir abstratividade na norma, ao menos a característica de generalidade há que ser respeitada. Quanto à generalidade, ela estará presente se, de alguma forma, o objeto da preservação estiver inserido em alguma categoria ampla ou, em outras palavras, se o que estiver preservado, por decorrência direta da lei, não for um bem específico, mas uma categoria de bens”

10.

José dos Santos Carvalho Filho também somente vislumbra competência do Poder Legislativo para a “edição de regras gerais, abstratas e impessoais

8 Ação civil pública e tombamento. p. 75.

9 O tombamento no direito administrativo e internacional. Revista de Informação Legislativa,

n. 163, p. 231 e ss., 2004. 10

O Estado na preservação de bens culturais. Renovar, 1991. p. 40. Sublinhamos.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 211

sobre a intervenção na propriedade para a proteção desse patrimônio”11

. Sua crítica se assenta na eventual impossibilidade de controle, da parte do particular, pela via administrativa. Tal circunstância, contudo, não pode ter o condão de inviabilizar a decretação do tombamento pela via legislativa, na medida em que, ao particular, restará sempre o amplo acesso ao Poder Judiciário. Recorde-se que o tombamento provisório, de acordo com o art. 10 do Decreto-Lei nº 25/37, produz os mesmos efeitos do tombamento definitivo, legando ao particular, por igual, acesso ao Poder Judiciário.

De outra parte, anote-se que, hoje, o Ministério Público e mesmo o particular, dispõem de instrumentos processuais – nomeadamente a ação civil pública e a ação popular – para compelir o Poder Executivo a fazer a proteção de bens em razão de seu valor histórico ou paisagístico. Ora, dentro da universalização do controle dos bens tutelados, não é razoável sustentar que o Poder Legislativo, microcosmo da sociedade, não possa, observados os limites de sua competência, decretar a proteção de determinado bem.

Frise-se que o que se sustenta é a possibilidade de apresentação de proposição legislativa que será, sempre, submetida à sanção do Chefe do Poder Executivo, com o poder de vetá-la, seja por inconstitucionalidade, seja por ausência de interesse público, a teor do que prescreve, originariamente, o art. 66, §1º, da Constituição Federal. Nem se fale que o tombamento estaria a exigir iniciativa legislativa privativa do Chefe do Executivo; tal argumento não teria qualquer razão para prosperar, considerada a circunstância de que a decretação de tombamento em nada interfere na organização da Administração.

A legislação do Município do Rio de Janeiro sobre o tema reflete adequadamente esse posicionamento. A Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro dispõe em seu art. 44, XIV, que cabe à Casa Legislativa local legislar sobre tombamento, verbis:

“Art. 44 – Cabe à Câmara Municipal, com a sanção do Prefeito, legislar sobre todas as matérias de competência do Município e especialmente sobre:(.................omissis........................)XIV – tombamento de bens móveis ou imóveis e criação de áreas de especial interesse;”

11 Manual de direito administrativo. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 620.

212 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

A legislação ordinária municipal desce às indispensáveis minúcias no trato da matéria. Assim, o art. 1º da Lei n. 166, de 27 de maio de 1980, com a redação conferida pela Lei n. 474, de 14 de dezembro de 1983, assim dispõe:

“Art. 1º - Os atos de tombamento e destombamento de bens móveis ou imóveis de significativo valor cultural para o povo da Cidade do Rio de Janeiro serão efetivados pela Divisão de Proteção do Patrimônio Artístico da Secretaria de Educação e Cultura do Município, por iniciativa própria ou a partir de lei de iniciativa do Poder Executivo ou da Câmara Municipal”.

Em complemento, a Lei n. 928, de 22 de dezembro de 1986 disciplinou em seu art. 1º que:

“Art. 1º - Compete ao Prefeito, através de decreto, e à Câmara Municipal, através de lei, o tombamento de bens móveis e imóveis de valor cultural, histórico ou ecológico cuja conservação seja do interesse público”.

Após disciplinar o procedimento administrativo subseqüente, o art. 6º, Parágrafo Único, estatui que o “destombamento será feito sempre através de lei de iniciativa do Prefeito ou da Câmara Municipal”.

Por tais fundamentos, entendo que o tombamento poderá, sim, ser decretado pelo Poder Legislativo, observados os pressupostos de seu cabimento, elencados no texto constitucional e nas demais normas federais e estaduais de proteção.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 11 de julho de 2005.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Direito de Pessoal e Previdenciário

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 215

Licença para o trato de interesses par-ticulares: requisitos e efeitos

Parecer no 05/05-CRTS

Ementa: Licença para o trato de interesses particulares. 1. Arts. 107/109 da Lei nº 94/79. Ato vinculado. Suspensão da remuneração. Impossibilidade da concessão desse tipo de licença sem prejuízo da remuneração. 2. Decreto Municipal nº 23.265/2003. Licença para estudos com vencimentos e demais vantagens (art. 12, I). Inaplicabilidade aos servidores do Poder Legislativo. Indispensável correlação do curso com o cargo exercido. Inocorrência na hipótese. 3. Parecer pela concessão da licença requerida, na forma do art. 107 do estatuto, com suspensão da remuneração.

Senhora Procuradora-Geral,

Solicitada por V. Exa. a me manifestar sobre a consulta formulada pelo Exmo. Sr. Primeiro Secretário desta Câmara Municipal acerca da possibilidade de concessão de licença para trato de interesses particulares, sem perda de vencimentos, passo a opinar com as considerações que se seguem.

II

Através do requerimento que deu início a este processado, pleiteia, a interessada, a concessão de licença pelo prazo de 6 (seis) meses para se dedicar aos compromissos do curso de doutorado em Políticas Sociais da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sem prejuízo da sua remuneração, por se tratar de “capacitação profissional de interesse da CMRJ”.

216 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

III

A licença para o trato de interesses particulares é disciplinada pelo Estatuto dos Servidores Públicos do Município do Rio de Janeiro (Lei nº 94/79) nos seus artigos 107/109, que dispõem:

“Art. 107 – Depois de estável, o funcionário poderá obter licença sem vencimento, para tratar de interesses particulares.Art. 108 – Em caso de interesse público, a licença de que trata esta Seção poderá ser cassada pela autoridade competente, devendo o funcionário ser expressamente notificado do fato.Parágrafo único – Na hipótese de que trata esse artigo, o funcionário deverá apresentar-se ao serviço no prazo de 30 (trinta) dias, a partir da notificação, findos os quais a sua ausência será computada como falta ao trabalho.Art. 109 – Ao funcionário ocupante de cargo em comissão ou função gratificada, não se concederá, nessa qualidade, licença para o trato de interesses particulares.”

O afastamento para trato de interesses particulares é, portanto, um direito do servidor efetivo e estável, cabendo à Administração concedê-lo sempre que não o impeça o interesse público, hipótese em que deverá justificá-lo.

Sua conseqüência pecuniária necessária é a suspensão da remuneração, não se podendo conceber a concessão de licença para trato de interesses particulares sem prejuízo da remuneração.

O Decreto Municipal nº 23.265, de 11 de agosto de 2003 – que revogou o Decreto nº 13.045/94 – prevê a licença para fins de estudo, com vencimentos e demais vantagens, “desde que seja reconhecido pelo Prefeito o interesse para a Administração, e que a licença não ultrapasse doze meses” (art. 12, I).

Não obstante, as normas elaboradas pelo Poder Executivo que disciplinam o seu relacionamento com os servidores da Administração Municipal (como o citado decreto) não se estendem, automaticamente, aos servidores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, não podendo delas se beneficiar a requerente.

Ainda que assim não fosse, a norma exige que os estudos sejam do interesse da Administração, ou seja, que seu conteúdo curricular guarde estreita correlação com as atribuições do cargo desempenhado, o que não ocorre na hipótese destes autos.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 217

A interessada ocupa o cargo de Operador de Computador, da Assessoria de Informática e Modernização Administrativa, cujas atribuições em nada se aproximam da grade curricular do curso de Doutorado em Políticas Sociais, indicado pela servidora.

Assim sendo, opino pela concessão da licença pleiteada, na forma do art. 107 da Lei nº 94/79, COM SUSPENSÃO DA REMUNERAÇÃO.

É esse o parecer que submeto à elevada consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 04 de julho de 2005.

Claudia Rivolli Thomas de SáProcuradora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

VISTO. Aprovo o Parecer nº 05/05-CRTS, retro/supra.

Encaminhe-se à consideração do Exmo. Sr. Primeiro Secretário.

Em 06 de julho de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 219

Considerações sobre indenização es-pontânea por dano moral pago pela

administração pública

Parecer nº 03/05-FACB

Ementa: Lei Municipal que institui indenização de 200 salários mínimos à servidora que se vitimou em atentado e em acidente ocorrido nas dependências desta Câmara Municipal, causando-lhe seqüelas de ordem, notadamente, psicológica. Queixa da beneficiária quanto ao valor da indenização e quanto ao fato de a Câmara Municipal haver retido, na fonte, o valor devido ao imposto de renda. Parecer considerando improcedente a irresignação.

Senhora Procuradora-Geral,

Versa este expediente, em linhas gerais, sobre a compensação a ser atribuída a ... pela circunstância de ter sido ela, no ano de 1980, vítima de atentado ao Gabinete do então Vereador Antônio Carlos Carvalho. Há, também, notícia de um acidente em um elevador desta Casa Legislativa, ocorrido em 1982. Postulou a servidora, por conta de tais acontecimentos, aposentadoria com proventos integrais.

Após regular instrução, e por orientação desta Procuradoria-Geral1 ,

a servidora foi submetida a exames, realizados por médicos particulares (a despeito da orientação do Procurador), que concluíram pela presença de nexo causal entre os eventos acima referidos e a patologia psiquiátrica. Não se comprovou, contudo, o nexo causal entre os acidentes e o dano estético por ela sofrido (laudos clínico e psiquiátrico, respectivamente, às fls. 118 e 123).

1 Informação n. 29/00-FNB, da lavra do brilhante Procurador Francisco das Neves Baptista,

acostada às fls. 12/13 deste Processo.

220 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Examinados tais dados, o Procurador Francisco das Neves Baptista concluiu que a servidora não preenchia condições para a aposentadoria. A ementa de sua manifestação é do seguinte teor:

“Ementa: Aposentadoria por invalidez, em decorrência de acidente em serviço: somente é viável se cumpridamente preenchidos os requisitos legais respectivos, ainda quando se possa dar por sobejamente caracterizado o acidente, para fins de cobertura integral do atendimento médico e reconhecer direito a indenização, em razão da inércia do Poder Público em face do assunto. Parecer pelo indeferimento, em princípio e ao embargo da possibilidade de novos exames médicos, do pedido de aposentadoria, sem prejuízo dos mencionados direitos”.

Apesar de tal conclusão ser desfavorável ao pleito de aposentadoria da servidora, o então Procurador-Geral, em seu visto, ponderou que, diante das peculiaridades do caso, poderia ser pertinente edição de lei que contemplasse indenização à servidora, nos moldes do que veio a ocorrer em âmbito federal, especialmente em hipótese de indenização a vítimas da repressão política. Rememore-se, por oportuno, o conteúdo do visto exarado por V. Exa. às fls. 150 deste expediente:

“Visto. Aprovo o bem lançado Parecer nº 007/02-FNB, retro e supra, no sentido de indeferir-se o pedido da Servidora de aposentadoria por invalidez decorrente de acidente em serviço, sem prejuízo da edição, nos moldes das Leis federais referentes a vítimas da repressão política (veja-se, por exemplo, a Lei federal nº 9.305, de 12 de setembro de 1996, anexa por cópia), prestar-se indenização à mesma Servidora, inclusive em vista do retardo na decisão sobre seus direitos e de cumprir-se o dever legal da Administração de arcar com todas as despesas médicas oriundas daquele acidente”.

Assim, na esteira de tal manifestação, a Câmara Municipal aprovou a Lei Municipal nº 3.612, de 12 de agosto de 2003, que concedeu, “em decorrência da responsabilidade civil do Poder Público, por acidente em serviço, indenização no valor equivalente a duzentos salários mínimos”, conforme expressamente estatui seu art. 1

o.

Procedido o pagamento à servidora, vem ela às fls. 182 manifestar seu descontentamento, tanto com o valor da indenização, como com o fato de ter havido retenção, na fonte, do imposto de renda. Sustenta que, apesar de a indenização ter sido fixada em 200 salários mínimos (R$ 48.000,00), embolsou, efetivamente, o equivalente a 146 salários mínimos (35.223,08), razão pela qual o Exmo. Sr.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 221

Vereador Presidente solicita a manifestação desta Procuradoria-Geral.

Passo a opinar.

Parece estar claro, inicialmente, que a indenização atribuída à servidora se deu a título de reparação por danos morais por ela sofridos. Apesar da menção, na lei, a acidente de serviço, inexiste nos presentes autos qualquer referência a danos materiais por ela suportados, mesmo porque continuou ela a receber, regularmente, seus vencimentos.

Dito isto, e examinando-se a manifestação da servidora de fls. 182, cumprirá perquirir:

a) se o valor da indenização pago à servidora, previsto na Lei Municipal nº 3.612/03, foi adequado;

b) se agiu a Câmara corretamente em descontar o imposto de renda da verba que foi paga à servidora.

Rememore-se, em primeiro lugar, que o valor de 200 salários mínimos veio a ser pago espontaneamente por esta Câmara Municipal, não tendo a servidora necessidade de ingressar com qualquer medida judicial para ser contemplada com indenização em valor plenamente satisfatório. Não se deve olvidar, nessa linha de raciocínio, que eventual ação indenizatória (que hoje sequer poderia ser ajuizada, considerada a data do infausto acontecimento que lhe causou seqüelas) deveria ser proposta contra o Município, o que compeliria a servidora, ganha a ação, à interminável fila dos precatórios.

Ademais, conquanto seja difícil encontrar hipótese semelhante à presente, o fato é que o valor fixado acha-se plenamente compatível com o que vem decidindo o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

2 e o Superior

Tribunal de Justiça3 em episódios das mais variadas naturezas que terminam

por deixar seqüelas psicológicas nas vítimas.

Assim sendo, o valor fixado pela Lei nº 3.612, de 12 de agosto de 2003, 2

Em dois casos de acidente com morte, o TJRJ fixou em 200 salários mínimos a indenização por danos morais: Processo nº 2004.001.11079, 4ª Câmara Cível, Rel. Sidney Hartung, julg. em 9.11.2004 e Processo nº 2003.001.30811, 16ª Câmara Cível, Rel. Mário Robert Mannheimer, julg. em 9.11.20033 Vide, por exemplo, as seguintes decisões: RESP n. 594.962-RJ, Rel. Min. Antônio de Pádua

Ribeiro, RESP nº 566.468, Rel. Min. Jorge Scartezzini.

222 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

da ordem de 200 salários mínimos, afigura-se estritamente razoável, não constituindo, em absoluto, verba irrisória ou exorbitante, especialmente, como já se afirmou, quando se tem em conta a circunstância de que foi desnecessária a propositura de qualquer ação judicial.

De outra parte, deve-se concluir que a Administração também agiu corretamente ao proceder a retenção na fonte do imposto de renda que incidiu sobre o pagamento efetivado à servidora.

Com efeito, a indenização, paga por pessoa física ou jurídica, em virtude de acordo ou decisão judicial, é rendimento tributável sujeito à incidência do imposto de renda na fonte e na declaração de ajuste.

Hugo de Brito Machado, emérito Tributarista, após distinguir patrimônio econômico e moral, disserta que:

“5.2.4. Indenização pelo dano moral puroTambém aqui a distinção entre o patrimônio econômico e o patrimônio moral é decisiva. Se o objeto da indenização é o elemento moral, porque a ação danosa atingiu precisamente o patrimônio moral, não há dúvida de que o recebimento de indenização implica evidente crescimento do patrimônio econômico e, assim, enseja a incidência dos tributos que tenha como fato gerador esse acréscimo patrimonial.Recorde-se que, para os fins tributários, relevante é somente o patrimônio econômico. Ninguém é tributado em função de seu patrimônio moral, que pode crescer, e cresce em muitas pessoas, sem qualquer repercussão tributária.Assim, na medida em que se opera, pelo recebimento de uma indenização, a compensação de elementos morais por elemento econômico, tem-se um crescimento do patrimônio econômico e ocorrem, no campo tributário, as repercussões daí decorrentes”

4 .

Assim, andou bem a Administração da Casa em cumprir a legislação tributária federal, retendo na fonte o imposto devido pela servidora.

Há, é verdade, decisões que excluem da tributação a indenização por dano moral

5 . Há de se convir, entretanto, que o Poder Público não pode deixar de

se furtar ao cumprimento da letra expressa da lei, não podendo se fiar em 4 “Regime Tributário das indenizações”, disponível no sítio www.hugomachado.adv.br/arti-

gos/regime.5

RESP nº 402.035, 2ª Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ, 17.5.2004, p. 106; RESP n. 410.347, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ, 17.2.2003, p. 227

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 223

incipiente tendência da jurisprudência. De toda forma, nada há que impeça que a servidora encaminhe sua irresignação à própria Receita Federal ou a postule judicialmente. De toda forma, o fato é que a Câmara Municipal agiu corretamente ao reter o imposto de renda na fonte, na forma da legislação tributária vigente.

Em conclusão, portanto, pode-se afirmar que o valor arbitrado pela Câmara Municipal para indenização dos danos sofridos pela servidora é razoável, compatível com a jurisprudência dos Tribunais pátrios. Também foi correta a retenção, na fonte, do valor devido a título de imposto de renda. Nesse sentido, a irresignação de fls. 182 não guarda condição de prosperar, devendo-se dar ciência à servidora da presente manifestação.

À superior consideração.

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2005.

Flávio Andrade de Carvalho BrittoSubprocurador-geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

VISTO. Aprovo o PARECER nº 03/05- FACB, retro.

Encaminhe-se ao Gabinete do Exmº Sr Primeiro Secretário.

Em 02 de março de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 225

Nomeação com eficácia retroativa não subtrai da Administração

o dever de indenizar o substituto eventual

Parecer nº 03/05-JMS

Ementa: A nomeação de diretor de unidade administrativa com eficácia retroativa não retira a base jurídica do exercício de encargo de substituto eventual desempenhado na ausência de titular. Fundado em relação jurídica válida, esse exercício deve ser remunerado. Natureza indenizatória do pagamento.

Exmo. Senhor Primeiro Secretário

A servidora ..., Assistente Parlamentar, matrícula ..., requer pagamento de “gratificação por estar respondendo pela Diretoria de Prevenção de Incêndio e Pânico, conforme documentos em anexo, mês de fevereiro” (fls. 02).

A Assessoria Jurídica se pronunciou pelo indeferimento do pedido, por vislumbrar que não foram preenchidos os requisitos legais (fls. 08/09).

Inconformada a servidora peticiona, no sentido de ser ouvida esta Procuradoria-Geral (fls. 11), fazendo juntar cópia de diversos documentos onde figura como substituta eventual do Diretor de Prevenção de Incêndio e Pânico (fls. 13/18).

Por determinação de V. Exa. o processo veio a esta Procuradoria-Geral para pronunciamento, o que se fará com as considerações que se seguem.

226 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Dos fatos

De acordo com a cópia da Portaria “P” DGA nº 48/96, a interessada foi designada para o encargo de substituta eventual do Diretor de Prevenção de Incêndio e Pânico (fls. 03).

Em 17/01/05, o então Diretor daquela unidade administrativa foi exonerado do cargo em comissão que ocupava (fls. 04), tendo a servidora, nessa data, assumido o encargo de substituta para o qual fora designada.

No entanto, dia 28/03/05 foi publicada no DCM a Resolução “P” nº 1391, de 23/03/05, nomeando ... para exercer o cargo em comissão de Diretor de Prevenção de Incêndio e Pânico, com validade retroativa a 17/01/05( fls. 12).

Nesse contexto, deve-se perquirir se a eficácia retroativa concedida ao ato de nomeação do titular daquela diretoria retira a base legal para o atendimento do pedido.

Fundamentação

A substituição eventual está disciplinada nos arts. 32 e seguintes da Lei nº 94/79 e pode ocorrer ex vi legis ou por ato da administração, como é a hipótese que se apresenta nestes autos.

Com efeito, a servidora exerceu o encargo, para o qual fora designada, por ausência de titular, no período de 17/01/05 a 27/03/05. Os documentos que constam dos autos (fls. 13/18) comprovam a efetiva atuação da interessada no exercício desse encargo.

Desse modo, tendo sido o exercício do encargo validamente desempenhado pela servidora no período acima descrito, deve a Administração remunerá-lo, nos termos estabelecidos na lei.

Assim, tem-se que a retroatividade atribuída ao ato de nomeação do titular da Diretoria de Incêndio e Pânico não retira a base jurídica do encargo então desempenhado pela interessada. O exercício do encargo de substituta eventual do diretor daquela unidade administrativa tem por fundamento a Resolução “P” DGA nº 48/96, que a designou para aquele mister.

Fundado em relação jurídica válida, o exercício do encargo deve ser remunerado, sob pena de locupletamento inválido da Administração.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 227

Note-se que o exercício simultâneo de dois servidores, ocasionado em razão de efeito retroativo concedido a ato de nomeação (substituto eventual e titular), não impede o deferimento do pedido. Isso porque os pagamentos têm natureza e pressupostos diversos: o pagamento do servidor nomeado para o cargo em comissão de Diretor de Incêndio e Pânico, com eficácia retroativa a 17/01/05, tem caráter remuneratório, enquanto que o pagamento devido à interessada tem caráter indenizatório, vale dizer, indeniza o exercício de substituto eventual, validamente por ela prestado.

Cumpre acrescentar, neste ponto, o teor do § 3º do art. 33 da Lei nº 94/79, que dispõe:

“Art. 33 – A substituição será automática ou dependerá de ato da administração e recairá sempre em um funcionário municipal.Omissis.§ 3º - A substituição, nos termos dos parágrafos anteriores, será gratuita, salvo se igual ou superior a 30 (trinta) dias, quando será remunerada.”

Nesse contexto, como o período exercido pela interessada, na prestação do serviço, é superior a 30 (trinta) dias – de 17/01/05 a 27/03/05 – deve a Administração indenizá-la pelos dias em que validamente desempenhou o encargo de substituta eventual.

Conclusão

Em vista do exposto, pode-se afirmar que o exercício do encargo de substituta eventual do Diretor de Incêndio e Pânico foi validamente prestado pela servidora interessada, de modo que deve a Administração indenizá-lo, na forma acima exposta.

É o que cumpre informar a Vossa Excelência.

Em 23 de maio de 2005.

Jania Maria de SouzaProcuradora-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

DECISÃO JUDICIAL

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 231

Recurso extraordinário 390.458-2 Rio de Janeiro

Relator: Min. Carlos VellosoRecorrente(s): Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro - FIRJAN e outro(a/s)Advogado(a/s): Carlos Roberto Siqueira Castro e outro(a/s)Recorrido(a/s): Município do Rio de JaneiroAdvogado(a/s): Luiz Roberto da MataRecorrido(a/s): Câmara Municipal do Rio de Janeiro Advogado(a/s): Sérgio Antônio Ferrari Filho

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MUNICÍPIO. EDIFICAÇÕES DE PRÉDIOS: LICENCIAMENTO: COMPETÊNCIA MUNICIPAL SEGURO OBRIGATÓRIO: Lei Complementar 35, de 1998, e seu regulamento, Decreto 16.712/98, do Município do Rio de Janeiro. D.L. 73, de 1966, art. 20, e. Medida Provisória 2.221, de 04.09.2001, artigo 4°.

I. - Exigindo a Lei Complementar 35, de 1998, e seu regulamento, o Decreto 16.712/98, do Município do Rio de Janeiro, como requisito para o licenciamento de obras a apresentação, pelo construtor, da apólice do seguro garantia criado pelo D.L. 73/66, art. 20, e, comportou-se a legislação municipal nos limites da competência legislativa do Município (C.F., art. 30, I).

II. - Acontece que a alínea e do art. 20 do D.L. 73, de 1966, foi revogada pela Medida Provisória 2.221/2001. Essa revogação tornou a citada legislação municipal sem eficácia e aplicabilidade. No momento em que a lei federal restabelecer a obrigatoriedade do seguro que trata a mencionada legislação municipal, voltará esta a ter eficácia plena e aplicabilidade. Nesse sentido, empresta-se à Lei Complementar 35/98 e ao seu regulamento, o Decreto 16.712, de 1998, do Município do Rio de Janeiro, interpretação conforme à Constituição.

III. - Recurso conhecido e provido, em parte.

Acórdão

232 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade, conhecer do recurso extraordinário e, por maioria, dar-lhe parcial provimento, para julgar ineficaz a Lei Complementar n° 35, de 03 de março de 1998, do Município do Rio de Janeiro, a partir da data da publicação da Medida Provisória n° 2.221, de 04 de setembro de 2001, publicada em 06 de setembro do mesmo ano, e também o Decreto n° 16.712, de 04 de junho de 1998, do mesmo município, nos termos do voto do Relator, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, que negava provimento ao recurso. Votou o Presidente.

Brasília, 17 de junho de 2004.

Nelson Jobim Presidente

Carlos VellosoRelator

Relatório

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO: - O Eg. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por maioria de votos, julgou improcedente a representação de inconstitucionalidade proposta contra a Lei Complementar 35/98 e contra o Decreto 16.712/98, ambos do Município do Rio de Janeiro, que, respectivamente, instituiu e regulamentou a apólice de seguro-garantia do término de obras de construção civil (fls. 286-299).

Rejeitaram-se os embargos de declaração opostos (fls. 315/318).

Daí o RE, interposto pela FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - FIRJAN e pela ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SHOPPING CENTERS - ABRASCE, fundado no art. 102, III, a e c, da Constituição Federal, com alegação de ofensa aos arts. 22, VII, e 30, I, da mesma Carta, sustentando-se, em síntese, o seguinte:

a) cabimento do presente recurso, porquanto a jurisprudência

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 233

do Supremo Tribunal Federal vem admitindo a interposição de recurso extraordinário do acórdão proferido em representação de inconstitucionalidade proposta perante o Tribunal de Justiça Estadual contra ato normativo municipal, quando os dispositivos constitucionais estaduais tidos por violados reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados;

b) violação aos artigos 22, VII, e 30, I, da Constituição Federal, mormente porque não cabe ao Município, cuja competência legislativa restringe-se a assuntos de interesse local, legislar sobre matéria de seguro, de competência privativa da União.

Inadmitido o recurso, subiram os autos em virtude do provimento do agravo de instrumento em apenso.

O ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner de Castro Mathias Netto, opinou pelo provimento do recurso (fls. 406408).

Autos conclusos em 14.4.2004.

É o relatório, do qual serão expedidas cópias para os Srs. Ministros.

Voto

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator): A Lei Complementar 35, de 1998, do Município do Rio de Janeiro, dispõe sobre o “Licenciamento de Obras de Projetos de Construção de Unidades Multifamiliares ou Comerciais”, estabelecendo a obrigatoriedade, para as empresas de construção civil, da prévia apresentação de apólice de seguro, estipulada para a garantia da obra, com a finalidade de proteger a relação contratual estabelecida com os futuros adquirentes dos imóveis.

Assim a mencionada Lei Complementar 35/98, do Município do Rio de Janeiro, conforme transcrição às fls. 339-340:

“(...)Art. 1º - O licenciamento de obras de projeto de construção de unidades multifamiliares ou comerciais, inclusive shopping centers, fica condicionado à prévia apresentação pelo construtor de apólice de seguro garantia da conclusão da obra, observado o disposto nos parágrafos seguintes.§ 1° - Nos grupamentos de edificações será autorizada apólice parcial para cada edificação, ficando condicionado o início das obras à apresentação

234 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

da respectiva apólice.§ 2° - É permitido o licenciamento das obras de mais de uma edificação, dentro de um mesmo projeto, desde que, a cada uma delas corresponda uma apólice parcial.§ 3º - A renovação da licença fica condicionada à renovação de apólice.§ 4° - A renovação prevista no parágrafo anterior, em caso de obra já iniciada, poderá cobrir somente a parte remanescente do projeto ainda a ser executada, qualificada na renovação da apólice respectiva. Art. 2º - Ato do Poder Executivo regulamentará e disporá como cabível sobre as relações das empresas seguradoras, construtoras, empreendedoras e incorporadoras, com o órgão licenciador do Município.Art. 3º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.” (Fls. 339-340)

Contra ela foi formulada representação de inconstitucionalidade, no Tribunal de Justiça local, em face da Constituição Estadual, artigos 343 e 358, I, e art. 21 do ADCT da mesma Carta, sustentando-se que as normas constitucionais estaduais são reproduções de normas constitucionais federais (arts. 30, I, e 22, VII, da C.F.).

Dispõe o art. 343 da Constituição Estadual:

“Art. 343 - os Municípios são unidades territoriais que integram a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil, dotados de autonomia política, administrativa e financeira, nos termos assegurados pela Constituição da República, por esta Constituição e respectiva Lei Orgânica.” (F1. 153)

O Art. 358, I, da Constituição do Rio de Janeiro, estabelece:

“Art. 358 - Compete aos Municípios, além do exercício de sua competência tributária e da competência comum com a União e o Estado, previstas nos artigos 23, 145 e 156 da Constituição da República:I - legislar sobre assuntos de interesse local.” (Fl. 222)

Já o art. 21 do ADCT da Carta Estadual “versa sobre a edição de leis orgânicas municipais, também não guardando qualquer relação com a presente representação” (fl. 175).

II

Abrindo o debate, não se pode afirmar que a disposição inscrita no art. 343 da Constituição do Rio de Janeiro seja reprodução do disposto no art. 30,

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 235

I, ou 22, VII, ambos da Constituição Federal.

O inciso I do art. 358 da Constituição do Rio de Janeiro, esse, sim, é reprodução do art. 30, I, da Constituição da República.

A questão, portanto, tendo em consideração o decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Rcl 383/SP, Relator o Ministro Moreira Alves, fica jungida ao disposto no art. 358, I, da Constituição do Rio de Janeiro, ou art. 30, I, da Constituição da República. Resume-se, portanto, no perquirir se a Lei Complementar 35/98 do Município do Rio de Janeiro desborda-se do conceito de legislação de interesse local, vale dizer, interesse municipal.

III

A Lei Complementar Municipal n° 35, de 1998, está posta nas razões do RE, fls. 339-340, e transcrita neste voto, linhas atrás.

O Decreto Municipal 16.712, de 1998, que a regulamentou, dispõe, segundo transcrição nas razões do RE, fls. 340-342:

“(...)Considerando o disposto na Lei Complementar nº 35/98, que dispõe sobre a obrigatoriedade da contratação de seguros;Considerando o disposto no artigo 20, alínea f, do Decreto-lei n° 73/66;Considerando o disposto na Circular SUSEP n° 005/97;DECRETAArt. 1º - Deverá ser apresentada, por ocasião do início das obras perante o órgão competente do Município para licenciamento, SMU/CPE, a apólice de seguro-garantia, que garanta aos adquirentes de unidades na planta a conclusão da obra nos termos contratados.§ 1º - Tal exigência deverá constar da licença de obras.§ 2° - A apólice deverá assegurar que o construtor executará a obra nas condições contratadas no memorial de incorporação, garantindo a entrega do imóvel naquelas condições ou a devolução das importâncias recebidas.§ 3° - Poderão ser contratadas uma ou mais apólices de seguro-garantia prevendo as obrigações acima mencionadas.§ 4° - Ficam desobrigados de atender a tal exigência os pedidos de licenciamento já formalizados na data de publicação deste Decreto.Art. 2º - As apólices deverão ter vigência por todo o período construtivo e garantir a totalidade das vendas contratadas anteriormente ao “habite-se”

236 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

sob pena de a licença ser cancelada e a obra embargada.Parágrafo Único - A renovação das licenças, no caso de obras iniciadas após a publicação deste Decreto, só será concedida mediante a comprovação da existência do seguro de que trata o artigo 1° deste Decreto.Art. 3º - O início das obras sem o cumprimento desta formalidade ou a comercialização sem a apresentação ao adquirente do certificado de seguro individual, a qualquer tempo, implicará o embargo da mesma, ficando os responsáveis sujeitos às penalidades previstas na legislação.Art. 4° - Ficam dispensadas da apresentação da apólice de seguro-garantia prevista neste Decreto as edificações com até 5 (cinco) pavimentos, no mesmo lote, com uma área total de até 2000m2.Art. 5° - Este Decreto entrará em vigor 60 (sessenta) dias após a data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.(...).” (Fls. 340-342)

O voto do eminente Desembargador Raul Quental, em que se embasa o acórdão recorrido, assim equacionou a controvérsia:

“(...)Quanto ao mérito, nenhuma razão assiste às Representantes, cujo pedido está baseado em evidente sofisma, por isso que falsa uma das premissas do raciocínio por elas desenvolvido: a de que a Lei Complementar n° 35/98 do Município do Rio de Janeiro teria criado e regulamentado uma nova modalidade de seguro obrigatório, o seguro garantia de conclusão da obra, a ser contratado pelo construtor. A ser isso verdade, estariam violados, efetivamente, os arts. 343 e 358, I, da Constituição Estadual, que estatuem acerca da natureza jurídica do Município e sua competência legislativa, pois é óbvio que o contrato de seguro não se enquadra no conceito de ‘assuntos de interesse local’ (art. 358, I), sendo regulado por normas de direito civil ou comercial, em qualquer caso da competência legislativa precípua da União.A verdade é que a Lei Complementar n° 35/98 e o Decreto que a regulamentou não criaram nem regularam seguro algum. Cuidam, apenas, da concessão de licenciamento de obras de construção de unidades multifamiliares ou comerciais, inclusive shopping centers, estipulando como requisito de tal concessão, assim como da renovação de licença, a prévia apresentação, pelo construtor, de apólice de seguro garantia da conclusão da obra, visando a cobrir os adquirentes de unidades na planta do risco do não cumprimento da obrigação do construtor de concluir a obra nos termos contratados.O seguro garantia de conclusão da obra foi instituído pelo Dec. Lei n° 73, de 21 de novembro de 1966, cujo art. 20 inclui, entre os chamados seguros obrigatórios, o seguro de 'garantia do cumprimento das obrigações

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 237

do incorporador e construtor de imóveis', (letra e), e regulamentado pelo Decreto n° 61.867, de 7 de dezembro de 1967, arts. 19 e 21. Sujeita-se, como qualquer seguro, à disciplina normativa do Capítulo XIV do Título V, Livro III do Código Civil e disposições pertinentes do Decreto Lei nº 73/66, não sendo verdadeira, portanto, a afirmação das Representantes de que as normas impugnadas na Representação teriam criado e regulamentado aquele seguro. Nada dispõe elas, com efeito, sobre a disciplina jurídica de tal contrato, seus requisitos intrínsecos e formalidades extrínsecas, direitos e obrigações recíprocas de segurador e segurado, modo de tornar efetivas essas obrigações, conseqüências do descumprimento etc. Estabelecem, apenas, um requisito para que possa ser deferido o licenciamento de uma obra, matéria tipicamente da competência do Município, incluída do seu poder de polícia da atividade de construção civil. A exigência da celebração do contrato de seguro, no caso, equivale à da produção de qualquer outro documento, como prova da propriedade do terreno, que a lei pode exigir seja feita mediante certidão do registro imobiliário (sem que esteja, com isso, legislando sobre registros públicos), prova da habilitação legal do engenheiro ou arquiteto, apresentação de projetos com determinadas especificações, assinatura de termos de responsabilidade.Tampouco se podem considerar normas sobre seguro as regras que estabelecem os detalhes da cobertura exigida e as que cominam sanções ao construtor para o caso de não satisfação da exigência do seguro. Quanto a estas últimas, não tratam de conseqüências do descumprimento do contrato do seguro, mas das sanções – todas no plano puramente administrativo da concessão da licença para o início ou prosseguimento da obra – a que se sujeita o construtor que não atende à exigência da celebração do seguro garantia. Nem é certo que esteja em tais normas o fundamento da obrigatoriedade do seguro garantia, já instituído com esse caráter no Decreto Lei nº 73/66 e em seu regulamento, sendo elas, antes, consectário dessa obrigatoriedade.As regras impugnadas nesta Representação não tratam, em suma, de seguro, e sim de licenciamento de obras, assunto tipicamente de interesse local, a ser disciplinado pela legislação municipal, nos exatos termos do art. 358, II, da Carta Estadual. Nenhuma inconstitucionalidade nelas se vislumbra.(...)” (Fls. 289-291)

O acórdão, pois, deixa expresso que a legislação municipal impugnada simplesmente exigiu, como requisito do licenciamento de obras, a apresentação, pelo construtor, da apólice do seguro garantia criado pelo art. 20, e, do D.L. 73/66. Assim, os diplomas municipais impugnados não ultrapassaram os limites da competência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 358, II, da Constituição do Estado). A citada legislação municipal cuida de disciplinar a atividade da construção civil. A representação de

238 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

inconstitucionalidade, portanto, está fundada em premissa falsa, de que os diplomas municipais conteriam regras jurídicas sobre seguro, da competência legislativa da União.

IV

Posta assim a questão, o recurso extraordinário é de ser conhecido, devendo ser provido, em parte.

É que a matéria relacionada com licenciamento de obras de edificação de prédios – unidades multifamiliares ou comerciais, inclusive shopping centers – no território do Município, é da competência municipal (C.F., art. 30, I). Assim, a legislação municipal que exige, como requisito da concessão da licença para a edificação de unidades multifamiliares ou comerciais, da prévia apresentação, pelo construtor, da apólice de seguro garantia da conclusão da obra, que visa a cobrir o risco do não-cumprimento da obrigação do construtor de concluir a obra nos termos do contrato, comporta-se nos limites da competência municipal (C.F., art. 30, I).

Esclareça-se que o D. L. 73, de 21.11.66, que dispõe sobre o sistema nacional de seguros privados, regula as operações sobre o sistema nacional de seguros privados, regula as operações de seguros e resseguros, regulamentado, com as modificações introduzidas pelos D. L. 168, de 15.02.67, e 296, de 28.02.68, pelo Decreto 60.459, de 13.03.67, estabelece, no seu art. 20, e:

“Art. 20. Sem prejuízo do disposto em leis especiais, são obrigatórios os seguros de:(...)e) garantia do cumprimento das obrigações do incorporador e construtor de imóveis;(...)”

O Decreto 60.459/67, regulamentador do D. L. 73/66, dispõe, a seu turno, no art. 9°, e:

“Art. 9°. Sem prejuízo do disposto em leis especiais, são obrigatórios os seguros de:(...)e) garantia do cumprimento das obrigações do incorporador e construtor de imóveis;(...)”

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 239

V

A Lei Complementar 35/98, do Município do Rio de Janeiro, exige, na verdade, para a concessão do licenciamento de obras de projeto de unidades multifamiliares ou comerciais, inclusive shopping centers, simplesmente a prévia apresentação de apólice de seguro garantia da conclusão da obra. E fez bem de assim proceder, pois o seguro obrigatório, no caso, instituído pela norma federal, assim o foi em benefício do comprador de imóvel na planta. Quantos e quantos compradores já foram prejudicados pela não-conclusão do imóvel contratado, quantos e quantos investiram suas pequenas economias com vistas à aquisição da casa própria e ficaram, vale o dito popular, a ver navios.

A lei municipal cabe estabelecer requisitos, observado, é certo, o princípio da razoabilidade, para a concessão de licenciamento para construção de imóveis no território do município. Exigir a lei municipal a apresentação da apólice do seguro estabelecido, pela lei federal, como obrigatório, não constitui ato que extrapole de sua competência constitucional.

Exatamente nesse sentido o acórdão recorrido, conforme vimos.

VI

Mas há algo mais.

A legislação federal sobre seguros constitui-se numa colcha de retalhos. São diversos os diplomas legislativos a respeito, a partir da norma básica, o D.L. 73, de 1966. Menciono, por exemplo, posteriores ao D. L. 73/66, alterando dispositivos deste, a Lei 6.435, de 15.07.77, a Lei 5.627, de 1°.12.1970, e a Lei 10.190, de 14.02.2001.

A alínea e do art. 20 do D. L. 73/66, que considero norma salutar, estabelecida em prol do comprador de imóvel na planta, foi revogada pela Medida Provisória n° 2.221, de 04.9.2001, anterior, portanto, à EC 32, de 12.09.2001, assim em vigor até que medida provisória ulterior a revogue ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional (EC 32/2001, art. 2°). Foi revogada, repito, a alínea e do art. 20 do citado D. L. 73/66 pela Medida Provisória 2.221/2001, art. 4°. Essa Medida Provisória 2.221, de 04.9.2001, altera a Lei 4.591, de 1964, instituindo o patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias.

240 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

VII

A revogação da alínea e do art. 20 do D. L. 73/66 implica dizer que a Lei Complementar 35/98 e seu regulamento, o Decreto 17.712/98, do Município do Rio de Janeiro, perderam eficácia e aplicabilidade. No momento em que a lei federal restabelecer a obrigatoriedade do seguro de que trata a Lei Complementar municipal 35/98, objeto da causa, voltará esta a ter eficácia plena.

Destarte, o recurso há de ser provido, em parte, a fim de que seja emprestada à Lei Complementar 35/98 e ao seu regulamento, o Decreto 16.712/98, do Município do Rio de Janeiro, interpretação conforme à Constituição: a citada lei e o seu regulamento não têm eficácia plena e aplicabilidade até que sobrevenha legislação federal que disponha a respeito do seguro de que dispunha o D. L. 73/66, art. 20, e.

VIII

Nesses termos, conheço do recurso e dou-lhe provimento, em parte.

**********

À revisão de apartes dos Srs. Ministros Carlos Velloso (Relator), Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence, Gilmar Mendes, Carlos Britto e Cezar Peluso.

Debates

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Ministro, o decreto-lei vigeu até quando?

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Até essa Medida Provisória de 2001.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - A sua vigência é posterior à lei municipal?

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Deixe-me explicar: a lei municipal é de 1998, anterior, pois, à medida provisória de 2001. A lei municipal apenas exigia a apólice decorrente desse art. 20, letra e, que foi revogado pela citada medida provisória.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 241

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Mas, Ministro, não estaríamos assentando a inocuidade da disciplina municipal numa verdadeira sobreposição?

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Na prática, sim.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Isso condiciona o licenciamento; na lei federal, não se condicionava.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Não se fala em licenciamento. Torna-se obrigatório.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Antes, pelo que pude perceber, tínhamos uma legislação federal que previa, expressamente, essa espécie de seguro, sem chegar ao ponto de condicionar o licenciamento para obra à existência do seguro.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Porque isso é de competência municipal. O município do Rio de Janeiro o que fez? Para conceder o licenciamento, passou a exigir a apólice de seguro garantia, seguro obrigatório previsto em lei federal.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - É como se o município tivesse de locar veículos e exigisse que eles estivessem cobertos pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Exatamente. Em 1998, a lei municipal passou a exigir a apólice desse seguro obrigatório para o licenciamento. Até 2001, a lei municipal teve eficácia plena. É que em 2001, sobreveio a medida provisória que revogou a disposição inscrita no Decreto-lei 73, art. 20, e.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - E teria, com isso, deixado de existir o seguro?

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Sim.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Tenho sérias dúvidas a respeito.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Como obrigatório,

242 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

sim.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - A obrigatoriedade passa a ser uma conseqüência da legislação municipal.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Aí, estaria a inconstitucionalidade.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Porque exige-se para a concessão da licença. Vossa Excelência admitiu, de início, que o Município teria legislado no campo reservado, pela Carta da República, à União.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Aí, não há dúvida, porque legislou apenas em termos de licenciamento, mais nada. Exigiu a lei municipal, para viabilização do licenciamento da obra, a apólice do seguro previsto na lei federal.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Eu tenho dúvida se a medida provisória afastou do cenário jurídico a viabilização desse seguro.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Quem legisla sobre seguro é a lei federal, o Congresso Nacional.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - A legislação de seguros – altamente regulamentada, inclusive, pelas previdências de seguros privados – define os tipos de seguros. Não é possível criar-se uma modalidade de seguros que não esteja autorizada no sistema, porque tem todo um cálculo, enfim, das reservas de contingência, todo um cálculo para estabelecer isso. Então, ela define um rol de seguros possíveis de serem comercializados no Brasil. Desse rol de seguros, uns são facultativos, depende da vontade das partes; alguns são obrigatórios. Num determinado momento, entendi que havia uma legislação que tornava obrigatório o seguro garantia da construção.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Isso vinha desde 1966.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Então, num determinado momento, a legislação federal tornou obrigatório: incluiu, no rol dos seguros obrigatórios, esse tipo. Nesse momento, o Município do Rio de Janeiro determinou que todo licenciamento para construção de prédios deveria apresentar uma apólice, que, por sua vez, era obrigatória pela legislação

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 243

federal. Depois, vem a legislação federal e mantém a existência do seguro, mas o remete para a área contratual. Não é mais obrigatório.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Revoga o dispositivo sobre a obrigatoriedade.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Torna obrigatório, mas não remove a existência dos seguros. Assim, Vossa Excelência está sustentando que, com isso, a lei municipal perdeu a sua eficácia no sentido de exigir algo que não é obrigatório nas relações contratuais.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Senhor Presidente, suscitaria uma questão que precede, a meu ver, o exame de fundo. Estamos numa via muito estreita, num campo muito delimitado que é o julgamento do recurso extraordinário. Ele se torna mais restrito, ainda, quando nos defrontamos com o processo objetivo. É o caso. Julgou-se, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, uma representação de inconstitucionalidade.

O relator traz, a meu ver, um tema que não se coaduna com o que serve de base ao conhecimento do extraordinário. Uma questão que, talvez, pudéssemos, e poderíamos, certamente, abordar caso estivéssemos julgando um recurso de natureza ordinária – uma apelação. Apreciaremos essa matéria, pela vez primeira, em sede extraordinária, no processo objetivo, porque não foi suscitado o tema no Tribunal de Justiça.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Ministro, o tema foi suscitadíssimo, data venia.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Quanto à revogação? Não está no acórdão do Desembargador Quental.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Ministro, a revogação veio em 2001, o acórdão é anterior a 2001.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES - O acórdão é de 99, a revogação é posterior.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - A revogação é posterior.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - De qualquer forma, Senhor Presidente, não transporto para o recurso extraordinário, porque tenho

244 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

como premissa, no julgamento, a impossibilidade de apreciar a matéria pela vez primeira, a teoria alusiva ao fato jurídico superveniente.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Ministro, a questão não é essa. Estamos examinando se o Município do Rio de Janeiro extrapolou da sua competência constitucional para legislar. É isso que estamos apreciando, tão-só.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Podemos nós, para isso, considerar um fato superveniente à própria decisão?

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Evidente que sim.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Se a legislação do Município é posterior à revogação, se Vossa Excelência tem essa legislação como válida, então, acaba admitindo que se possa editar um diploma para ficar em stand by, aguardando, no futuro, a disciplina pelo legislador federal. Penso que, aí, contrariaremos premissas básicas do processo legislativo.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Qual premissa básica estaríamos contrariando?

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Se fosse de competência do mesmo órgão legislativo, sim, estaríamos legislando; aqui, é um órgão legislativo municipal cuja eficácia da norma depende de uma vontade que não é dele, ou seja, vontade de um órgão nacional. Não há problema nenhum nisso.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Em síntese, o Município teria legislado sem ter presente um objeto.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Não, Ministro, quando legislou, tinha. A legislação é de 1998, enquanto tinha vigência a disposição federal que estabelecia a obrigatoriedade desse seguro. Quando o acórdão foi proferido pelo Tribunal de Justiça, tinha vigência a disposição da lei federal. Em 2001, foi revogada a disposição federal pela medida provisória que mencionei. Então, é um fato superveniente que ocasiona ficar sem eficácia a lei municipal. Esclareceu o Professor Siqueira Castro, da tribuna, que há projeto de lei nesse sentido.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Confesso que fiquei muito encantado com a primeira parte do voto de Vossa Excelência.

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O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Eu, realmente, acho essa disposição, que torna obrigatório esse seguro, salutar.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Impressiona-me o problema processual. O Ministro Peluso é mestre de todos nós. Se estivéssemos julgando uma ação de despejo e adviesse um fato superveniente, aí, sim. Agora, aqui, estamos examinando se, ao declarar constitucional a lei municipal em 1999, o Tribunal de Justiça violou ou não a Constituição Federal. Não podemos passar disso.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES - Estaremos declarando constitucional a lei hoje – esta é a questão.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Estamos simplesmente emprestando interpretação conforme; quer dizer, ela é constitucional, mas não tem aplicabilidade.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Vossa Excelência está transplantando para o problema do município aquela regra do art. 24, da competência concorrente.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Não, Ministro, essa matéria não está na competência concorrente.

Deixe-me explicar. Artigo 30, inciso I, da Constituição Federal, reproduzido na Constituição Estadual.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Havendo lei federal, sendo o seguro obrigatório, o município pode tornar exigível a sua prova no licenciamento da construção.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator)- Estamos examinando se a lei municipal comporta-se nos limites do art. 30, I:

“Art. 30. Compete aos Munícipios:I- legislar sobre assuntos de interesse local.”

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO - Vossa Excelência diz que sim como premissa de seu voto.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Sim, desde que a lei federal o torne compulsório.

246 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Sim, no caso específico, porque é da competência do município legislar sobre licenciamento de obras.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO - Foi a premissa de seu voto.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - É a premissa do meu voto.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - No caso específico, podia fazê-lo, dado que o seguro era obrigatório pela lei competente para regular seguros – a lei federal.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Era obrigatório.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Aí, desapareceu no meio do caminho.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Esse foi o exemplo que eu dei: o município vai contratar de particular um determinado número de veículos e quer saber se esses veículos estão cobertos pelo seguro obrigatório por lei federal.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - O exemplo de Vossa Excelência é esclarecedor.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Não exultaria o exemplo, porque não extraí a possibilidade de o município resolver contratar determinado tipo de serviço, exigindo seguro, mesmo que não fosse obrigatório – isso é uma relação contratual. Este exemplo não me serve. Aqui, a situação é outra, porque é o município que está dispondo sobre a situação, dizendo que só faz o contrato somente se houver um seguro “tal”.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Atuando em prol dos munícipes.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Transfira isso para os táxis; não pode?

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - O objeto do recurso extraordinário está em indagar se a lei é ainda hoje constitucional, ou não.

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Era; hoje já não o é.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Porque a obrigação não existe.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - É caso de inconstitucionalidade superveniente. No instante em que o seguro deixa de ser obrigatório, o sentido da norma é de interferir na relação, regida pelo Direito Civil, entre construtores.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES - Mas como está subordinado a uma medida provisória que ainda será submetida ao Congresso, parece-me que a solução do Ministro Velloso é viável.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Estou realizando uma interpretação conforme, que representa provimento, em parte, do recurso extraordinário.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Isso é pura eventualidade: pode suceder, ou não.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - A interpretação conforme à Constituição representa provimento do recurso, em parte.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Mas qual teria sido o erro do órgão especial ao declarar, àquela altura, constitucional a lei?

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Mas não houve erro do órgão, senão fato superveniente, que alterou os termos da solução da causa. A decisão era acertada na ocasião em que foi proferida.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Estamos mesclando os processos objetivo e subjetivo.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Isso é inevitável. É um caso de recurso extraordinário com decisão de eficácia erga omnes e força vinculante.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Fiquei vencido nessa Reclamação na companhia do Ministro Pertence.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Sim, porque entendíamos que, quando a norma é de imitação obrigatória pelos estados

248 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

e municípios, na verdade, está em causa um dispositivo constitucional federal.

Voto

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA: Senhor Presidente, acompanho o voto do relator no ponto em que Sua Excelência entende que, realmente, a lei municipal não extrapola os lindes fixados na Constituição federal e na Constituição estadual como caracterizadores da competência municipal.

Tenho dificuldade em acompanhá-lo em outro aspecto, porque estamos em recurso extraordinário. O fato de essa medida provisória ter surgido dois anos depois do acórdão de 2001 significa que essa matéria não foi debatida no Tribunal de Justiça.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE): Ministro, creio que não podemos criar com o processo algo impeditivo de se resolver problemas. Estamos adiando um problema não resolvido e deixando um problema sem resolver, porque achamos que o mundo não se comporta de acordo com as regras do processo?

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE: A cadeira que tenho a honra de assentar, depois do em. Ministro Moreira Alves, fica um pouco inquieta quando se fala em declaração de revogação de uma lei por outra no julgamento de uma ADIn; mas estou muito simpático à tese, porque ela resolve o problema.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE): Sim, resolve, senão vai ficar um problema absolutamente insolúvel, porque estamos trabalhando com regras de prequestionamentos, não-questionamentos. Creio que temos de ter um certo nível de percepção que o Tribunal tem de dar soluções e não criar problemas.

Voto

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO - Senhor Presidente, a lei municipal exigiu seguro garantia como condição para expedição de licença de construção. A lei municipal poderia fazer a exigência? Em princípio sim, porque me parece que há dois objetivos a alcançar ou dois interesses jurídicos

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 249

a tutelar. O primeiro seria uma racional ocupação do espaço urbano. Diz com o bem-estar das populações comunais e isso se contém na regra do art. 182 da Constituição, cabeça. O segundo interesse jurídico, protegido pela lei municipal – não discutido aqui –, foi a defesa do consumidor. A Constituição faz da defesa do consumidor não apenas um princípio da ordem econômica, como um dever da União, Estado lato sensu.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Vossa Excelência permitiria uma observação? No momento em que Vossa Excelência afirma que está protegendo o interesse do consumidor, lembre que isso é uma obrigação que se transfere ao consumidor. Pergunto se poderia estar defendendo o interesse do comércio de seguros?

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO - Não é bem isso. Digo que a lei teve dois objetivos a tutelar. Um deles, já disse, foi a racional ocupação do solo urbano para bem-estar e segurança da população, o que se contém na regra do art. 182. Então, o município, nesse ponto, não extrapolaria sua competência constitucional. Segundo, entendo que sim. A lei visa a defesa do consumidor; e a Constituição diz que é dever do Estado – e aí é Estado-município, Estado-União, Estado-Distrito Federal, Estado-membro – a defesa do consumidor, art. 5°, inciso XXXII, repetido pelo art. 170, como princípio da ordem econômica. Então, não vejo, por parte do município, nenhuma extrapolação de ordem constitucional.

O instituto do seguro garantia para edificações permanece no ordenamento jurídico. Legislar sobre a figura desse instituto é competência da União. Resta saber se o município pode torná-lo obrigatório como condição para licença de construção. Entendo que sim.

Por isso, data venia do ponto de vista do eminente Ministro-Relator e do meu querido amigo e mestre constitucionalista de primeira linha Carlos Roberto de Siqueira Castro, a quem homenageio sempre que posso, conheço do recurso, mas nego-lhe provimento.

*******

À revisão de aparte do Sr. Ministro Nelson Jobim.

Voto

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Sr. Presidente, estou de

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inteiro acordo com as premissas teóricas do voto do eminente Ministro-Relator. A minha dificuldade é apenas do ponto de vista puramente técnico. Acho que seria, a rigor, caso de inconstitucionalidade superveniente, e não, de perda de eficácia, redutível àquelas hipóteses clássicas em que a norma perde seu fundamento de validade. Acho que o caso, aqui, não é bem esse. Penso que a norma não perdeu seu fundamento de validade; a partir da medida provisória que revogou lei que tornava obrigatória a existência desse seguro, a norma passou a exigir o seguro, sem que pudesse fazê-lo. De modo que, a partir daí, se caracterizou inconstitucionalidade superveniente, de modo que aplicaria, sem nenhuma dúvida, porque é hipótese típica, o art. 462 do Código de Processo Civil, o qual serve exatamente para reger casos excepcionais.

No entanto, sob a expectativa de poder vir a ser reeditada a norma que torna obrigatório o seguro, se a Corte entender, como solução prática, que perdeu a eficácia a partir daquela mesma norma, não vejo problema de ordem prática. Considero que, tecnicamente, seria caso de constitucionalidade superveniente, mas, se a Corte entende ser apenas de ineficácia, concordo.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Ministro, a diferença fundamental da solução proposta pelo Ministro Carlos Velloso e a suscitada por Vossa Excelência é que, no caso da solução Velloso, basta a decisão política do poder nacional na obrigatoriedade do seguro garantia, sem a necessidade de uma nova decisão política na Câmara de Vereadores. Na solução outra, dependeria de uma nova vontade, uma nova articulação política no sentido de tornar exigível.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Não me oponho a essa solução.

Conheço do recurso, mas nego-lhe provimento.

Voto

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Sr. Presidente, inicialmente, a propósito da questão que foi suscitada do recurso extraordinário, ao contrário do que sustentou o Ministro Marco Aurélio, penso que aqui temos o que já chamei, em tom mais ou menos jocoso, um tipo de recurso extraordinário do “b”. A rigor, é um recurso extraordinário em um processo de controle abstrato de normas; logo, tanto quanto possível, temos de trabalhar com as premissas do processo objetivo e não o contrário. Essa é uma felicíssima construção do Supremo Tribunal Federal para solver um

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problema que, de outro modo, restaria extremamente difícil de ser resolvido. Temos uma Constituição extremamente analítica que impõe aos Estados a reprodução desses dispositivos. De outro modo não teríamos como solver essas pendengas que surgem do contraste direto da lei municipal ou da lei estadual em face da Constituição Federal.

De modo que o recurso extraordinário, como já salientado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, tem eficácia erga omnes, o que impõe, na verdade, que tenhamos também uma cognoscibilidade muito mais ampla – e felizmente já estamos avançando nesse campo, também em relação ao recurso extraordinário tradicional.

Na matéria, também estou absolutamente convencido do que uma cláusula de remissão que o Poder Legislativo Municipal poderia conceber, como já foi destacado; agora, diante da alteração superveniente da legislação, a questão se põe: qual é a solução adequada? Seria um caso de inconstitucionalidade superveniente, como propõe o Ministro Cezar Peluso? Ou seria um caso de ineficácia superveniente como deixa claro o Ministro Carlos Velloso.

Tenho a impressão de que, se fôssemos adotar uma versão ortodoxa, teríamos que dizer que é um caso do inconstitucionalidade superveniente e, portanto, a lei municipal seria inconstitucional, mas aí teríamos que ressalvar essa aplicação constitucional que se fez durante todo o tempo. Parece-me que, portanto, a solução que melhor consulta à natureza objetiva desse processo é aquela proposta no voto do Ministro Carlos Velloso.

De modo que também eu o acompanho com conforto.

Voto

A SENHORA MINISTRA ELLEN GRACIE - : Sr. Presidente, também aplaudo a solução encontrada pelo eminente Relator, Ministro Car-los Velloso, porque entendo que a exigência contida na legislação municipal é válida até a edição da MP n° 2221, de 2001, que revo-gou a obrigatoriedade desta modalidade de seguro.

Entendo, conforme o eminente Relator brilhantemente colocou, que a legislação municipal permanecerá num estado como que de hibernação até que o legislador federal restabeleça uma obrigatoriedade cuja inspiração é das mais louváveis: garantir que as pessoas que colocam suas economias na construção de imóveis realmente vejam esses imóveis concluídos.

252 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Senhor Presidente, tal como Vossa Excelência, também estou convencido de que não podemos potencializar a forma a ponto de chegar ao próprio fetichismo, mas devo considerar que o processo resume, em si, a liberdade em seu sentido maior, no que, mediante normas imperativas, busca realizar o direito substancial, e não é demasia proclamar, como tenho consignado em atos monocráticos, que, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este, aquele. Se eu tenho como chegar a um certo resultado, chego; se não tenho, devo recuar – a beleza do Colegiado está justamente nisso: na colaboração de cada qual –, e não implementar a solução idealizada, por maior que seja o pragmatismo.

No caso, Senhor Presidente, o recurso extraordinário resultou de uma construção jurisprudencial. Um recurso extraordinário que passou a compor a doutrina do Supremo Tribunal Federal para evitar que o julgamento de uma representação de inconstitucionalidade de lei local ou lei municipal pela Corte de Justiça da unidade federada possa resultar na perpetuação da transgressão da Carta da República. Não admitimos o controle concentrado de lei que não seja uma lei estadual ou federal; não admitimos o controle concentrado, considerada a competência originária do Supremo Tribunal, contra lei municipal; e, aí, para afastar, repito, a violência à Constituição Federal, para preservar o exercício da guarda da Carta da República pelo Supremo, é que se construiu, prevendo-se o cabimento do recurso extraordinário, geralmente inerente ao processo subjetivo, no processo objetivo. Todavia, Presidente, podemos desprezar as balizas que qualificam e delimitam a atuação, em sede extraordinária, por estarmos a nos defrontar com processo objetivo? Não. E diria que, no caso, o cabimento do extraordinário é mais excepcional, em se tratando de processo objetivo, do que a adequação no processo subjetivo.

A decisão, Presidente – e lamento que toda essa discussão ocorra a partir de um móvel precário e efêmero, como é a medida provisória –, foi prolatada...

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Mas essa não é efêmera, é daquelas que estão convertidas.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Pois é, como ocorrem as coisas no Brasil: para se avançar, teve-se de transigir e quase colar, àquelas medidas provisórias ainda dependentes de apreciação, o caráter, sob o ângulo da vigência, indeterminado.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 253

Estamos a julgar um recurso extraordinário, e todo recurso é uma crítica. Daí a exigência constitucional de a decisão impugnada ter fundamentação e também de serem apresentadas as razões recursais.

Ora, o que trazido, de forma tão inteligente, pelo relator foi objeto de debate e decisão prévios perante a Corte de origem? O que trazido, de forma tão inteligente, pelo relator compõe o recurso extraordinário interposto?

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Não compõe, Ministro Marco Aurélio, porque é fato superveniente. O acórdão é de 1999.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Aprecio o erro da decisão proferida à luz da normatividade da época, do que se contém nessa mesma decisão, das balizas, portanto, objetivas e subjetivas do acórdão proferido.

Após conhecer do recurso extraordinário, levando em conta a competência do município para legislar sobre certa matéria e adentrar o tema de fundo, balizado pelo acórdão e pelo recurso interposto, sob pena de contrariar a concepção que faço do processo, por maior que seja o aspecto prático, visando a solucionar problemas futuros – que venham esses problemas, e ter-se-á o Supremo Tribunal Federal atuando no controle subjetivo –, não posso agora julgar uma matéria em sede extraordinária pela vez primeira, porque estaria a adotar posição até mesmo incongruente, já que o conhecimento do recurso extraordinário pressupõe o cotejo do que decidido com o dispositivo apontado como vulnerado. Daí a necessidade do debate e decisão prévios.

Limito-me, portanto, a apreciar a questão sob o ângulo da exigência, da lei municipal, para ter-se a expedição da licença, de aquele que deseje construir, ingressando no mercado, apresentar, para esse licenciamento, um seguro, que poderia ser até uma carta de fiança.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Ministro Marco Aurélio, se Vossa Excelência me permite um aparte, o acórdão recorrido condiciona a eficácia à existência do seguro obrigatório posto na lei federal.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Ministro Carlos Velloso, percebi de outra forma, pela leitura que fiz. Apontou-se, num reforço de argumentação, haver até mesmo uma legislação federal prevendo o seguro, no âmbito da construção civil. Mas o forte, em se tratando de fundamento do acórdão, é a circunstância de a Câmara municipal ter ficado no âmbito da autonomia normativa.

254 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - O Desembargador Quental parece fazer essa análise.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Ele faz essa análise e até diz que, se não existisse, seria inconstitucional a lei municipal.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Aí partimos para a capacidade intuitiva, para admissão do julgamento implícito.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Disse o Desembargador Quental em seu voto (lê autos fls. 289/290):

“A verdade é que a Lei Complementar n° 35/98 e o Decreto que a regulamentou não criaram nem regularam seguro algum. Cuidam, apenas, da concessão de licenciamento de obras de construção de unidades multifamiliares ou comerciais, inclusive shopping centers, estipulando como requisito de tal concessão, assim como da renovação da licença, a prévia apresentação, pelo construtor, de apólice de seguro garantia da conclusão da obra, visando a cobrir os adquirentes de unidades na planta do risco do não cumprimento da obrigação do construtor de concluir a obra nos termos contratados.O seguro garantia de conclusão da obra foi instituído pelo Dec. Lei n° 73 de 21 de novembro de 1966, cujo art. 20 inclui, entre os chamados seguros obrigatórios, o seguro de “garantia do cumprimento das obrigações do incorporador e construtor de imóveis” (letra e), e regulamentado pelo Decreto n° 61.867 de 7 de dezembro de 1967, arts. 19 e 21. Sujeita-se, como qualquer seguro, à disciplina normativa do Capítulo XIV do Título V, Livro III do Código Civil e disposições pertinentes do Decreto Lei n° 73/66, não sendo verdadeira, portanto, a afirmação das Representantes de que as normas impugnadas na Representação teriam criado e regulamentado aquele seguro. Nada dispõe elas, com efeito, sobre a disciplina jurídica de tal contrato, seus requisitos intrínsecos e formalidades extrínsecas, direitos e obrigações recíprocas de segurador e segurado, modo de tornar efetivas essas obrigações, conseqüências do descumprimento etc.”

Segue nessa linha, para então concluir (lê autos fls. 290/291):

“Tampouco se podem considerar normas sobre seguro as regras que estabelecem os detalhes da cobertura exigida e as que cominam sanções ao construtor para o caso de não satisfação da exigência do seguro. (...) Nem é certo que esteja em tais normas o fundamento da obrigatoriedade do seguro garantia, já instituído com esse caráter no Decreto Lei n° 73/66...”

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Julgou. E estamos

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de acordo com a decisão, na data em que foi proferida.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Para encerrar meu voto, assento também que a problemática da inviabilidade de se acionar a lei municipal resolve-se em campo diverso, que não o da inconstitucionalidade, proposta pelo relator, balizada e submetida até a uma condição, ou seja, a medida provisória vir a ser transformada em lei.

Entendo que, se, por acaso, não mais existe, hoje, no mundo jurídico, essa espécie de seguro, a obrigatoriedade está ligada ao licenciamento, que é operado com base na autonomia do município.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO (Relator) - Instituir um seguro obrigatório, somente a lei federal pode fazer.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Por isso, e considerando ainda que a medida provisória referida foi editada para viger por período determinado – regência pretérita – e que sempre sustentei neste Plenário a caducidade mediante a passagem do tempo, sem a conversão, peço vênia ao ilustre relator para desprover o recurso extraordinário.

Acompanho o ministro Joaquim Barbosa.

Voto

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Sr. Presidente, creio, a esta altura, que se pode dar por certo haver um ponto de consenso: a constitucionalidade originária da lei municipal questionada. Afastando-se, assim, dos fundamentos versados na primitiva representação de inconstitucionalidade, o argumento de que teria havido usurpação da competência da União para legislar sobre seguros.

Já se demonstrou exaustivamente não se tratar de disciplinar o instituto do seguro, nem de torná-lo obrigatório. A obrigatoriedade provinha de lei federal, a partir do Decreto-lei 73, de tal modo que a legislação local impugnada tem, ao contrário, o sentido de exigir para o licenciamento de obras, cujos requisitos à lei municipal incumbe regular, algo cuja obrigatoriedade provinha da lei federal competente. Para tanto, bastava ao município a invocação do art. 29, I, da Constituição.

A minha preocupação, já manifestada em apartes no correr da discussão, estava em se é possível, no exame do recurso extraordinário contra decisão

256 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

em representação estadual de inconstitucionalidade, de um lado, afirmar que o acórdão estava correto no tempo em que foi tomado; de outro, no entanto, tomar conhecimento de uma alteração superveniente da legislação federal para, a partir do direito superveniente, alterar o dispositivo, ao seu tempo correto do acórdão recorrido.

A regra ortodoxa, não há dúvida, é que, em princípio, no recurso extraordinário, se toma o objeto do juízo tal como posto perante o acórdão recorrido e por ele considerado.

Já houve exceções, no entanto. Lembro-me, por exemplo, da discussão anterior sobre incumbir, ou não, à Justiça do Trabalho a decisão dos conflitos entre empregadores e sindicatos em que a orientação do Tribunal se inclinava para negar a competência à Justiça especializada, à falta de lei que o determinasse na forma prevista pelo próprio art. 114 da Constituição (v.g., RE 130.552, 4.6.91, 1ª T., Moreira, DJ 28.6.91, RTJ 136/1340; RE 131.032, 1ª T., Pertence, 25.6.91, DJ 9.8.91; RE 131.019, 2 ª T., Marco Aurélio, 8.10.91, DJ 6.12.91) Sobreveio, porém, a L. 8984/95, que atribuiu especificamente à Justiça do Trabalho essa competência. Passamos, então, a entender que não teria outra utilidade, o provimento do recurso extraordinário, considerado o direito existente ao tempo do acórdão recorrido, porque se havia alterado o direito de modo a infirmar a orientação do Tribunal sobre o direito primitivo. Passou-se, então, a tomar de ofício o conhecimento da superveniência de lei ordinária a partir da qual, segundo as próprias premissas da jurisprudência então vigente, passava a competir à Justiça do Trabalho aquele tipo de conflito.

Lembro, para documentação, o RE 140.341, de 02/04/96, Ministro Carlos Velloso, RTJ 164.314, e o RE 131.096, Ministro Moreira Alves.

O eminente Relator, depois de concordar com o acórdão recorrido no que toca a constitucionalidade originária da lei municipal, no entanto, invoca uma alteração subseqüente ao acórdão recorrido, que implicou a revogação, por medida provisória, do Decreto-lei 73, no ponto em que fazia obrigatório o seguro garantia da construção civil.

Mas, a partir daí, constrói S.Exa., com a inteligência que sói, solução que tem parentesco com a solução do art. 24, § 4°, da Constituição, segundo o qual, na área da competência concorrente da União e dos Estados, a superveniência de lei federal sobre normas gerais relativas a determinado tema suspende a eficácia da lei estadual no que lhe for contrária. E este “suspende a eficácia” tem exatamente, conforme doutrina creio que indiscrepante, o sentido de tornar

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desnecessária a reedição de uma nova lei estadual, se se alterar a situação criada com a superveniência de lei federal sobre normas gerais. Portanto, resguardando a lei estadual, embora lhe suspendendo a vigência, para se e quando voltar ela a ser coerente, a ser compatível com a lei federal.

Claro, a hipótese é diversa: não se trata, aqui, de competência concorrente, mas eu diria de uma competência subseqüente do legislador local ao exercício da competência, pelo legislador federal, da legislação sobre seguros.

No entanto, o debate me convenceu a também endossar essa construção – afinal de contas é o nosso engenheiro constitucional, como dizia o Ministro Néri da Silveira – do Ministro Carlos Velloso.

O RE contra a decisão em ADIn estadual criada como cláusula compensatória do despautério a que poderia chegar a solução da Reclamação 383 – é um RE em tudo peculiar. Basta notar o seu marco fundamental, o seu caráter diferencial básico que é o de, em recurso extraordinário, proferir-se uma decisão que substituirá, com os mesmos efeitos, uma decisão de um processo objetivo de controle abstrato de normas, e que não julga causa alguma. Isto já o assentamos nos primeiros casos em que examinamos tal tipo de recurso extraordinário.

Convenci-me, assim, de estarmos em mais um ponto daquilo que tenho chamado a difícil convivência, nesse ambicioso ensaio da evolução do Direito Constitucional brasileiro, no ponto, da convivência integral dos dois métodos de controle de constitucionalidade de normas.

Por isso, Sr. Presidente, reportando-me no mais às antecipações no mesmo sentido de vários dos meus eminentes colegas, às quais adiro, acompanho o voto do Relator para dar provimento parcial ao recurso extraordinário.

Voto

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Também acompanho o voto do Relator explicitando que a Medida Provisória n° 2.221, de 04/09/2001, revogou, na data de sua publicação, em 06 de setembro, a alínea “e” do artigo 20 do Decreto-lei n° 73/66, que dava embasamento constitucional e estrutural à norma da lei complementar municipal. Com a revogação, pelo artigo 4°, desaparece supervenientemente o fundamento.

258 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

É bom ter presente que a Medida Provisória n° 2.221, que revogou a alínea “e” do artigo 20 do já citado decreto-lei, é de 04 de setembro de 2001 e foi publicada no dia 06 de setembro. No dia 11 de setembro do mesmo ano, foi publicada a Emenda Constitucional n° 32 que, contrariamente ao que se poderia pensar, no seu artigo 2°, transformou as medidas provisórias publicadas antes da emenda em textos legais. Nem mesmo a sua revogação é retroativa.

Diz o texto:

“Art. 2°. As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue” – a partir da sua data – “explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.”

Não haverá deliberação, pois essas medidas provisórias, na verdade, em termos práticos, transformaram-se em lei no sentido estrito, e serão revogadas por lei superveniente. Então, desaparece o problema da retroação da medida provisória revogada.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - É hipótese de edição de lei ordinária por emenda constitucional.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Exatamente. Então, eles consolidaram e vieram fazer uma conversão, um avatar no sistema.

No caso específico, creio que o Ministro Sepúlveda Pertence deixou muito claro algo perceptível no trato das questões constitucionais e, principalmente, na ação deste Tribunal: o tempo e os casos concretos não respeitam as teses primitivas, ou seja, há determinados momentos em que as circunstâncias e os casos mostram que a pretensão do fundamento essencialista de determinados pressupostos históricos não funcionam.

Chega um momento em que temos de dar a mão à palmatória ao tempo e ao mundo, e este acaba convertendo-nos e mostrando-nos que as soluções constitucionalmente adequadas não são aquelas que eventuais princípios extratados de experiências anteriores foram formulando abstratamente. A abstração vale enquanto permanecem as situações empíricas que a legitimaram.

Este é um caso típico mostrando-nos ser a solução alvitrada pelo Ministro Carlos Velloso absolutamente compatível com a função deste Tribunal. Sua

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Excelência entende ter essa norma permanecido absolutamente constitucional até a 06/09/2001, data em que foi publicada a medida provisória revogadora da alínea “e” do artigo 20 do Decreto-lei n° 73/66, embasando a obrigatoriedade constante da lei municipal que colocava a apresentação da apólice de seguro-garantia como um dos elementos para o pedido de licenciamento de construção.

Diria mais: a norma municipal era uma forma de fiscalização do cumprimento da norma federal que havia obrigado a apresentação da apólice.

O SENHOR MINISTRO CARLOS VELLOSO (RELATOR) - Perfeito.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) - Exatamente. É uma questão de integração do sistema legislativo: tem-se competência nisso e condiciona o que é obrigatório a uma forma de fiscalização indireta. É o mesmo caso da exigência de certidão negativa do INSS para fazer negócios públicos.

Louvo o voto do Ministro Carlos Velloso que encontrou uma fórmula completamente eficaz. Se ficássemos na ortodoxia eventual do sistema, a partir da experiência pretérita, estaríamos protraindo no tempo a solução de um problema que está em Mesa. Então, o solucionamos desde logo.

Acompanho o Relator.

Retificação de Voto

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO - Senhor Presidente, queria dizer que realmente Vossa Excelência está certo. Muitas vezes o direito positivo introduz no sistema jurídico uma categoria que desmente os nossos quadros mentais, as nossas concepções teóricas.

Quando o Ministro Carlos Velloso concebeu a sua tese de forma engenhosa, no sentido afirmativo – engenharia Constitucional –, reagi de modo conservador porque aprendi, em teoria geral do Direito, o que todo mundo aprendeu: a eficácia é o atributo que tem a norma de guardar uma coerência consigo mesma, ou seja, norma eficaz é a que tem condições de cumprir os desígnios a que se preordena. É, portanto, a correspondência lógica da norma consigo mesma.

260 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Então, se me afigurou estranha a expressão “suspensão de eficácia” por efeito da invocação de uma outra lei, quer dizer, a norma municipal é eficaz consigo mesma, mas, pela superveniência de uma nova lei, já de âmbito federal, deixa de ser.

Mas quando o Ministro Sepúlveda Pertence trouxe à consideração o § 4° do artigo 24 da Constituição, alertou-me para o fato de que a própria Constituição trabalha com a figura da suspensão de eficácia por efeito de comparação de normas de diversa matriz federativa. De procedência estatal diferente. Então cai por terra a minha fundamentação; a minha resistência se esboroa.

Reformulo o meu voto para acompanhar, com louvor, o eminente Relator.

Voto (Retificação)

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA: Senhor Presidente, reformulo o meu voto, para conferir maior densidade à decisão, a qual será, certamente, o norte em questões futuras a serem colocadas.

Acompanho o relator.

Extrato de ataRecurso Extraordinário 390.458-2Proced.: Rio de Janeiro Relator: Min. Carlos Velloso Recte.(s): Federação das Indústrias do Estado do Rio de janeiro - FIRJAN e outro(a/s)Adv.(a/s): Carlos Roberto Siqueira Castro e outro(a/s)Recdo.(a/s): Município do Rio de JaneiroAdv.(a/s): Luiz Roberto da MataRecdo.(a/s): Câmara Municipal do Rio de JaneiroAdv.(a/s): Sérgio Antônio Ferrari Filho

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, conheceu do recurso extraordinário e, por maioria, deu-lhe parcial provimento, para julgar ineficaz

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 261

a Lei Complementar nº 35, de 03 de março de 1998, do município do Rio de Janeiro, a partir da data da publicação da Medida Provisória nº 2.221, de 04 de setembro de 2001, publicada em 06 de setembro do mesmo ano, e também o Decreto nº 16.712 de 04 de junho de 1998, do mesmo município, nos termos do voto do Relator, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, que negava provimento ao recurso. Votou o Presidente, o Senhor Ministro Nelson Jobim. Falaram, pela recorrente, o Dr. Carlos Roberto Siqueira Castro; pela recorrida, Câmara Municipal do Rio de Janeiro, o Dr. Sérgio Antônio Ferrari Filho e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Cláudio Lemos Fonteles, Procurador-Geral da República. Plenário, 17.06.2004.

Presidência do Senhor Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Senhores ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto e Joaquim Barbosa.

Dr. Cláudio Lemos Fonteles.Procurador-Geral da República

Luiz TomimatsuCoordenador

ÍNDICE

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 265

ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO

Agente público – Direito de defesa – Direito constitucional – Responsabi-lidade civil do Estado – Responsabilidade objetiva – Denunciação da lide – Princípio constitucional – Súmula – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – CF/88 O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

Atentado – Servidor público – Vítima – Acidente – Elevador – Laudo mé-dico – Distúrbios psicológicos – Nexo causal – Correlação – Dano estético – Exclusão – Aposentadoria por invalidez – Impossibilidade – Dano moral – Lei municipal - Edição – Indenização – Pagamento – Valor – Correção – Imposto de renda – Retenção na fonte – Inci-dência Parecer 03/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 219

Bens imóveis – Bens móveis – Tombamento – Intervenção do estado na propriedade – Competência legislativa – Competência municipal – Patrimônio histórico – Patrimônio cultural – Administração local – Interesse – Câmara Municipal – Poder Legislativo – Iniciativa – Possibilidade Parecer 05/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 203

Câmara dos Deputados – Jurisdição constitucional – Emenda Constitucio-nal – Controle da constitucionalidade – Poder Judiciário – Processo legislativo – Constituição Federal – Regimento Interno – Senado – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Câmara Municipal – Despesa pública – Limitação – Base de cálculo – Re-ceita municipal – Transferência de recursos – Repasse – Inclusão – CIDE – Combustível – Interpretação da constituição – Interpreta-ção literal Parecer 04/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 161

Câmara Municipal – Poder Legislativo – Iniciativa – Possibilidade – Tom-bamento – Bens imóveis – Bens móveis – Intervenção do estado na propriedade – Competência legislativa – Competência municipal

266 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

– Patrimônio histórico – Patrimônio cultural – Administração local – Interesse Parecer 05/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 203

Cargo em comissão – Servidor público – Substituto eventual – Diretor – Exoneração – Nomeação – Data – Eficácia retroativa – Titular – Ausência – Exercício efetivo – Remuneração – Natureza indeniza-tória Parecer 03/05 – Jania Maria de Souza ....................................p. 225

CIDE – Combustível – Receita municipal – Transferência de recursos – Re-passe – Inclusão – Câmara Municipal – Despesa pública – Limita-ção – Base de cálculo – Interpretação da constituição – Interpretação literal Parecer 04/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 161

Cobertura – Construção – Projeto de lei complementar – Regularização – Ampliação horizontal – Ministério Público Estadual – Recomen-dação – Notificação – Votação – Aprovação – Abstenção – Suspen-são – Vereador – Função legislativa – Impedimento – Impossibilida-de – Manifestação – Opinião – Divulgação Parecer 01/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 197

Cobrança judicial – Depósito judicial – Guia de recolhimento – Encami-nhamento – Ex-servidor – Processo judicial – Pessoa jurídica de direito público – Câmara Municipal – Personalidade jurídica – Au-sência – Municípios – Rio de Janeiro (RJ) – Dotação orçamentária – Previsão orçamentária – Precatório – Pagamento – Previsão legal – Tesouro Municipal – Princípio da separação dos poderes Parecer 02/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 147

Código Civil – Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Contrato – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias individuais – Norma constitucional – Princípio constitucio-nal – Constituição Federal – Código de Defesa do Consumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Código de Defesa do Consumidor – Direito adquirido – Fontes do direito

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 267

– Lei – Contrato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroativi-dade das leis – Direitos e garantias individuais – Norma constitucio-nal – Princípio constitucional – Constituição Federal – Código Civil A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Comissão parlamentar – Comissão permanente – Fiscalização – Hospital – Clínica – Casa de saúde – Câmara Municipal – Controle parlamen-tar – Serviço público – Unidade de saúde – Administração munici-pal – Legitimidade – Estabelecimento particular – Limitação legal – Direitos e garantias fundamentais Parecer 06/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 169

Compensação – Convênio – Câmara Municipal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro (Estado) – Despesa de pessoal – Servidor público – Requi-sitado – Pagamento – Ajuste de contas – Parcela – Décimo terceiro salário – Inadimplência – Débito – Dedução – Pagamentos futuros Parecer 03/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 113

Competência legislativa – Competência municipal – Tombamento – Bens imóveis – Bens móveis – Intervenção do estado na propriedade – Patrimônio histórico – Patrimônio cultural – Administração local – Interesse – Câmara Municipal – Poder Legislativo – Iniciativa – Possibilidade Parecer 05/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 203

Competência municipal – Lei Complementar – Prédio – Construção – Li-cenciamento – Seguro-garantia – Empresa de construção civil – Obrigatoriedade – Ineficácia – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01 Recurso Extraordinário nº 390.458-2 .....................................p. 229

Conflito de leis no tempo – Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Contrato sucessivo – Irretroatividade das leis – Direitos e garan-tias individuais – Norma constitucional – Princípio constitucional – Constituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Con-sumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......

268 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

p. 87

Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambiental – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Constituição Federal – Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Con-trato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias individuais – Norma constitucional – Princípio constitucional – Constituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Consumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Constituição Federal – Jurisdição constitucional – Emenda Constitucional – Controle da constitucionalidade – Poder Judiciário – Processo legislativo – Regimento Interno – Câmara dos Deputados – Senado – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Construção – Lei Complementar – Prédio – Licenciamento – Competência municipal – Seguro-garantia – Empresa de construção civil – Obri-gatoriedade – Ineficácia – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01 Recurso Extraordinário nº 390.458-2 .....................................p. 229

Contratação – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Po-der Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambiental – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Contrato administrativo – Votação eletrônica – Prestação de serviço – Res-cisão – Inexecução contratual – Penalidade – Multa – Aplicação

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– Processo administrativo – Instauração – Princípio do contraditório – Ampla defesa – Garantia Parecer 02/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto...........p. 109

Contrato de programa – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Municípios – Licitação – Dispensa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambien-tal – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Contrato sucessivo – Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias in-dividuais – Norma constitucional – Princípio constitucional – Cons-tituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Consumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Contribuição previdenciária – Vereador – Previdência social – Vinculação – Segurado obrigatório – INSS – Regime geral de previdência social – Lei federal – Declaração de inconstitucionalidade – Vício formal – Emenda constitucional – Reforma previdenciária – Agente político – Inclusão – Direito constitucional – Direito intertemporal – Lei or-dinária – Contribuição – Recriação – Legitimidade – Recolhimento – Recomendação Parecer 07/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 181

Controle da constitucionalidade – Jurisdição constitucional – Emenda Constitucional – Poder Judiciário – Processo legislativo – Constitui-ção Federal – Regimento Interno – Câmara dos Deputados – Senado – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Convênio – Câmara Municipal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro (Estado) – Compensação – Despesa de pessoal – Servidor público – Requi-sitado – Pagamento – Ajuste de contas – Parcela – Décimo terceiro salário – Inadimplência – Débito – Dedução – Pagamentos futuros Parecer 03/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 113

270 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Convocação extraordinária – Vereador – Subsídios – Mandato eletivo – Exercício – Agente político – Remuneração – Acréscimo – Redu-ção – Inadimissibilidade – Interpretação da constituição – Pagamen-to adicional – Salário integral Parecer 01/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 137

Dano moral – Lei municipal - Edição – Servidor público – Vítima – Atenta-do – Acidente – Elevador – Laudo médico – Distúrbios psicológicos – Nexo causal – Correlação – Dano estético – Exclusão – Aposen-tadoria por invalidez – Impossibilidade – Indenização – Pagamento – Valor – Correção – Imposto de renda – Retenção na fonte – Inci-dência Parecer 03/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 219

Débito – Dedução – Pagamentos futuros – Convênio – Câmara Munici-pal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro (Estado) – Compensação – Despesa de pessoal – Servidor público – Requisitado – Pagamento – Ajuste de contas – Parcela – Décimo terceiro salário – Inadimplên-cia Parecer 03/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 113

Declaração de inconstitucionalidade – Lei federal – Vício formal – Verea-dor – Previdência social – Vinculação – Contribuição previdenciária – Segurado obrigatório – INSS – Regime geral de previdência social – Emenda constitucional – Reforma previdenciária – Agente político – Inclusão – Direito constitucional – Direito intertemporal – Lei or-dinária – Contribuição – Recriação – Legitimidade – Recolhimento – Recomendação Parecer 07/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 181

Declaração de rendimentos – Vereador – Ex-vereador – Fornecimento – Re-querimento – Ministério Público Estadual – Atuação – Limitação – Direito a privacidade – Jurisprudência – Poder Judiciário – Quebra de sigilo – Sigilo bancário – Sigilo fiscal – Controle prévio – Autori-dade judicial Parecer 04/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 121

Denunciação da lide – Direito de defesa – Direito constitucional – Res-ponsabilidade civil do Estado – Responsabilidade objetiva – Agente público – Princípio constitucional – Súmula – Tribunal de Justiça do

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 271

Estado do Rio de Janeiro – CF/88 O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

Depósito judicial – Cobrança judicial – Guia de recolhimento – Encami-nhamento – Ex-servidor – Processo judicial – Pessoa jurídica de direito público – Câmara Municipal – Personalidade jurídica – Au-sência – Municípios – Rio de Janeiro (RJ) – Dotação orçamentária – Previsão orçamentária – Precatório – Pagamento – Previsão legal – Tesouro Municipal – Princípio da separação dos poderes Parecer 02/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 147

Despesa de pessoal – Servidor público – Requisitado – Convênio – Câmara Municipal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro (Estado) – Compen-sação – Pagamento – Ajuste de contas – Parcela – Décimo terceiro salário – Inadimplência – Débito – Dedução – Pagamentos futuros Parecer 03/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 113

Despesa pública – Limitação – Câmara Municipal – Base de cálculo – Re-ceita municipal – Transferência de recursos – Repasse – Inclusão – CIDE – Combustível – Interpretação da constituição – Interpreta-ção literal Parecer 04/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 161

Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Contrato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias in-dividuais – Norma constitucional – Princípio constitucional – Cons-tituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Consumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Direito constitucional – Direito de defesa – Responsabilidade civil do Estado – Responsabilidade objetiva – Denunciação da lide – Agente público – Princípio constitucional – Súmula – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – CF/88 O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

Direito de defesa – Direito constitucional – Responsabilidade civil do

272 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Estado – Responsabilidade objetiva – Denunciação da lide – Agente público – Princípio constitucional – Súmula – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – CF/88 O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

Direitos e garantias individuais – Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Contrato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroa-tividade das leis – Norma constitucional – Princípio constitucional – Constituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Con-sumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Dispensa – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Mu-nicípios – Contrato de programa – Licitação – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambien-tal – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Distrito Federal – Consórcio – União Federal – Estados – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambiental – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Emenda Constitucional – Jurisdição constitucional – Controle da constitu-cionalidade – Poder Judiciário –Processo legislativo – Constituição Federal – Regimento Interno – Câmara dos Deputados – Senado – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Empresa de construção civil – Lei Complementar – Prédio – Constru-ção – Licenciamento – Competência municipal – Seguro-garantia – Obrigatoriedade – Ineficácia – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 273

Recurso Extraordinário nº 390.458-2 .....................................p. 229

Estados – Consórcio – União Federal – Distrito Federal – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambiental – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Ex-vereador – Vereador – Declaração de rendimentos – Fornecimento – Re-querimento – Ministério Público Estadual – Atuação – Limitação – Direito a privacidade – Jurisprudência – Poder Judiciário – Quebra de sigilo – Sigilo bancário – Sigilo fiscal – Controle prévio – Autori-dade judicial Parecer 04/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 121

Fábrica de Cartuchos do Exército – Tombamento – Patrimônio cultural – Demarcação de área – Poder de polícia – Poder Executivo – Com-petência administrativa – Averbação – Retificação Parecer 02/05 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .......................p. 103

Fiscalização – Hospital – Clínica – Casa de saúde – Comissão parlamentar – Comissão permanente – Câmara Municipal – Controle parlamen-tar – Serviço público – Unidade de saúde – Administração munici-pal – Legitimidade – Estabelecimento particular – Limitação legal – Direitos e garantias fundamentais Parecer 06/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 169

Fontes do direito – Direito adquirido – Lei – Contrato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias in-dividuais – Norma constitucional – Princípio constitucional – Cons-tituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Consumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Hospital – Clínica – Casa de saúde – Fiscalização – Comissão parlamentar – Comissão permanente – Câmara Municipal – Controle parlamen-tar – Serviço público – Unidade de saúde – Administração munici-pal – Legitimidade – Estabelecimento particular – Limitação legal

274 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

– Direitos e garantias fundamentais Parecer 06/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 169

Indenização – Pagamento – Valor – Correção – Imposto de renda – Retenção na fonte – Incidência – Servidor público – Vítima – Atentado – Aci-dente – Elevador – Laudo médico – Distúrbios psicológicos – Nexo causal – Correlação – Dano estético – Exclusão – Aposentadoria por invalidez – Impossibilidade – Dano moral – Lei municipal - Edição Parecer 03/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 219

Ineficácia – Lei Complementar – Prédio – Construção – Licenciamento – Competência municipal – Seguro-garantia – Empresa de construção civil – Obrigatoriedade – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01 Recurso Extraordinário nº 390.458-2 .....................................p. 229

Irretroatividade das leis – Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Contrato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias individuais – Norma constitucional – Princípio constitucional – Constituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Consumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Jurisdição constitucional – Emenda Constitucional – Controle da constitu-cionalidade – Poder Judiciário – Processo legislativo – Constituição Federal – Regimento Interno – Câmara dos Deputados – Senado – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Lei – Direito adquirido – Fontes do direito – Contrato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias in-dividuais – Norma constitucional – Princípio constitucional – Cons-tituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Consumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 275

Lei Complementar – Prédio – Construção – Licenciamento – Competência municipal – Seguro-garantia – Empresa de construção civil – Obri-gatoriedade – Ineficácia – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01 Recurso Extraordinário nº 390.458-2 .....................................p. 229

Lei federal – Declaração de inconstitucionalidade – Vício formal – Verea-dor – Previdência social – Vinculação – Contribuição previdenciária – Segurado obrigatório – INSS – Regime geral de previdência social – Emenda constitucional – Reforma previdenciária – Agente político – Inclusão – Direito constitucional – Direito intertemporal – Lei or-dinária – Contribuição – Recriação – Legitimidade – Recolhimento – Recomendação Parecer 07/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 181

Licença para educação – Vencimentos – Manutenção – Decreto executivo – Inaplicabilidade – Câmara Municipal – Servidor público – Licen-ça para tratar de interesse particular – Concessão – Remuneração – Suspensão Parecer 05/05 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .......................p. 215

Licença para tratar de interesse particular – Servidor público – Concessão – Remuneração – Suspensão – Licença para educação – Vencimen-tos – Manutenção – Decreto executivo – Inaplicabilidade – Câmara Municipal Parecer 05/05 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .......................p. 215

Licenciamento – Lei Complementar – Prédio – Construção – Competência municipal – Seguro-garantia – Empresa de construção civil – Obri-gatoriedade – Ineficácia – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01 Recurso Extraordinário nº 390.458-2 .....................................p. 229

Licitação – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Mu-nicípios – Contrato de programa – Dispensa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

276 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

Ministério Público Estadual – Atuação – Limitação – Vereador – Ex-vere-ador – Declaração de rendimentos – Fornecimento – Requerimento – Direito a privacidade – Jurisprudência – Poder Judiciário – Quebra de sigilo – Sigilo bancário – Sigilo fiscal – Controle prévio – Autori-dade judicial Parecer 04/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 121

Ministério Público Estadual – Recomendação – Notificação – Projeto de lei complementar – Regularização – Ampliação horizontal – Cober-tura – Construção – Votação – Aprovação – Abstenção – Suspensão – Vereador – Função legislativa – Impedimento – Impossibilidade – Manifestação – Opinião – Divulgação Parecer 01/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 197

Multa – Penalidade – Aplicação – Votação eletrônica – Prestação de ser-viço – Contrato administrativo – Rescisão – Inexecução contratual – Processo administrativo – Instauração – Princípio do contraditório – Ampla defesa – Garantia Parecer 02/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 109

Municípios – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Municípios – Licitação – Dispensa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambiental – Sa-neamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Norma constitucional – Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Con-trato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias individuais – Princípio constitucional – Constituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Con-sumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Patrimônio cultural – Tombamento – Fábrica de Cartuchos do Exército – Demarcação de área – Poder de polícia – Poder Executivo – Com-petência administrativa – Averbação – Retificação

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 277

Parecer 02/05 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .......................p. 103

Patrimônio histórico – Patrimônio cultural – Tombamento – Bens imóveis – Bens móveis – Intervenção do estado na propriedade – Compe-tência legislativa – Competência municipal – Administração local – Interesse – Câmara Municipal – Poder Legislativo – Iniciativa – Possibilidade Parecer 05/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 203

Penalidade – Multa – Aplicação – Votação eletrônica – Prestação de ser-viço – Contrato administrativo – Rescisão – Inexecução contratual – Processo administrativo – Instauração – Princípio do contraditório – Ampla defesa – Garantia Parecer 02/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 109

Poder Judiciário – Jurisdição constitucional – Emenda Constitucional – Controle da constitucionalidade – Processo legislativo – Cons-tituição Federal – Regimento Interno – Câmara dos Deputados – Senado – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Poder Legislativo – Câmara Municipal – Iniciativa – Possibilidade – Tom-bamento – Bens imóveis – Bens móveis – Intervenção do estado na propriedade – Competência legislativa – Competência municipal – Patrimônio histórico – Patrimônio cultural – Administração local – Interesse Parecer 05/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 203

Poder Público – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Con-tratação – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambien-tal – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Precatório – Pagamento – Previsão legal – Tesouro Municipal – Princípio da separação dos poderes – Cobrança judicial – Depósito judicial – Guia de recolhimento – Encaminhamento – Ex-servidor – Proces-so judicial – Pessoa jurídica de direito público – Câmara Municipal

278 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

– Personalidade jurídica – Ausência – Municípios – Rio de Janeiro (RJ) – Dotação orçamentária – Previsão orçamentária Parecer 02/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 147

Prédio – Lei Complementar – Construção – Licenciamento – Competência municipal – Seguro-garantia – Empresa de construção civil – Obri-gatoriedade – Ineficácia – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01 Recurso Extraordinário nº 390.458-2 .....................................p. 229

Previdência social – Vinculação – Vereador – Contribuição previdenciária – Segurado obrigatório – INSS – Regime geral de previdência social – Lei federal – Declaração de inconstitucionalidade – Vício formal – Emenda constitucional – Reforma previdenciária – Agente político – Inclusão – Direito constitucional – Direito intertemporal – Lei or-dinária – Contribuição – Recriação – Legitimidade – Recolhimento – Recomendação Parecer 07/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 181

Princípio constitucional – Direito adquirido – Fontes do direito – Lei – Contrato sucessivo – Conflito de leis no tempo – Irretroatividade das leis – Direitos e garantias individuais – Norma constitucional – Constituição Federal – Código Civil – Código de Defesa do Con-sumidor A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio numa perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino ......p. 87

Princípio constitucional – Direito de defesa – Direito constitucional – Res-ponsabilidade civil do Estado – Responsabilidade objetiva – Denun-ciação da lide – Agente público – Súmula – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – CF/88 O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

Processo administrativo – Instauração – Princípio do contraditório – Ampla defesa – Garantia – Votação eletrônica – Prestação de serviço – Con-trato administrativo – Rescisão – Inexecução contratual – Penalida-de – Multa – Aplicação Parecer 02/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 109

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 279

Processo legislativo – Jurisdição constitucional – Emenda Constitucional – Controle da constitucionalidade – Poder Judiciário – Constituição Federal – Regimento Interno – Câmara dos Deputados – Senado – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Projeto de lei complementar – Regularização – Ampliação horizontal – Co-bertura – Construção – Ministério Público Estadual – Recomenda-ção – Notificação – Votação – Aprovação – Abstenção – Suspensão – Vereador – Função legislativa – Impedimento – Impossibilidade – Manifestação – Opinião – Divulgação Parecer 01/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 197

Quebra de sigilo – Sigilo bancário – Sigilo fiscal – Controle prévio – Auto-ridade judicial – Vereador – Ex-vereador – Declaração de rendimen-tos – Fornecimento – Requerimento – Ministério Público Estadual – Atuação – Limitação – Direito a privacidade – Jurisprudência – Poder Judiciário Parecer 04/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 121

Receita municipal – Transferência de recursos – Repasse – Inclusão – CIDE – Combustível – Câmara Municipal – Despesa pública – Li-mitação – Base de cálculo – Interpretação da constituição – Interpre-tação literal Parecer 04/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 161

Recurso Extraordinário nº 390.458-2 Lei Complementar – Prédio – Construção – Licenciamento – Com-petência municipal – Seguro-garantia – Empresa de construção civil – Obrigatoriedade – Ineficácia – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01 ....................................p. 229

Regimento Interno – Jurisdição constitucional – Emenda Constitucional – Con-trole da constitucionalidade – Poder Judiciário – Processo legislativo – Constituição Federal – Câmara dos Deputados – Senado – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Remuneração – Acréscimo – Redução – Inadimissibilidade – Vereador

280 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

– Subsídios – Convocação extraordinária – Mandato eletivo – Exer-cício – Agente político – Interpretação da constituição – Pagamento adicional – Salário integral Parecer 01/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 137

Remuneração – Natureza indenizatória – Servidor público – Cargo em comissão – Substituto eventual – Diretor – Exoneração – Nomeação – Data – Eficácia retroativa – Titular – Ausência – Exercício efetivo Parecer 03/05 – Jania Maria de Souza ....................................p. 225

Remuneração – Suspensão – Servidor público – Licença para tratar de inte-resse particular – Concessão – Licença para educação – Vencimen-tos – Manutenção – Decreto executivo – Inaplicabilidade – Câmara Municipal Parecer 05/05 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .......................p. 215

Responsabilidade civil do Estado – Direito de defesa – Direito constitu-cional – Responsabilidade objetiva – Denunciação da lide – Agente público – Princípio constitucional – Súmula – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – CF/88 O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

Responsabilidade objetiva – Direito de defesa – Direito constitucional – Responsabilidade civil do Estado – Denunciação da lide – Agente público – Princípio constitucional – Súmula – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – CF/88 O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

Saneamento ambiental – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispen-sa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públi-cos – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Saneamento básico – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Fe-deral – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 281

– L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Seguro-garantia – Lei Complementar – Prédio – Construção – Licencia-mento – Competência municipal – Empresa de construção civil – Obrigatoriedade – Ineficácia – LCP MUN 35/98 – DEC MUN 16712/98 – DL 73/66 – MPV 2221/01 Recurso Extraordinário nº 390.458-2 .....................................p. 229

Senado – Jurisdição constitucional – Emenda Constitucional – Controle de constitucionalidade – Poder Judiciário – Processo legislativo – Constituição Federal – Regimento Interno – Cämara dos Deputa-dos – STF Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Serviços públicos – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Con-tratação – Poder Público – Setor privado – Saneamento ambiental – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Servidor público – Cargo em comissão – Substituto eventual – Diretor – Exoneração – Nomeação – Data – Eficácia retroativa – Titular – Ausência – Exercício efetivo – Remuneração – Natureza indeniza-tória Parecer 03/05 – Jania Maria de Souza ....................................p. 225

Servidor público – Licença para tratar de interesse particular – Concessão – Remuneração – Suspensão – Licença para educação – Vencimen-tos – Manutenção – Decreto executivo – Inaplicabilidade – Câmara Municipal Parecer 05/05 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .......................p. 215

Servidor público – Requisitado – Convênio – Câmara Municipal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro (Estado) – Compensação – Despesa de

282 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

pessoal – Pagamento – Ajuste de contas – Parcela – Décimo terceiro salário – Inadimplência – Débito – Dedução – Pagamentos futuros Parecer 03/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 113

Servidor público – Vítima – Atentado – Acidente – Elevador – Laudo mé-dico – Distúrbios psicológicos – Nexo causal – Correlação – Dano estético – Exclusão – Aposentadoria por invalidez – Impossibilidade – Dano moral – Lei municipal - Edição – Indenização – Pagamento – Valor – Correção – Imposto de renda – Retenção na fonte – Inci-dência Parecer 03/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 219

Setor privado – Consórcio – União Federal – Estados – Distrito Federal – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Con-tratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Sane-amento ambiental – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Sigilo bancário – Sigilo fiscal – Quebra de sigilo – Controle prévio – Auto-ridade judicial – Vereador – Ex-vereador – Declaração de rendimen-tos – Fornecimento – Requerimento – Ministério Público Estadual – Atuação – Limitação – Direito a privacidade – Jurisprudência – Poder Judiciário Parecer 04/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 121

Silva Filho, Derly Barreto e Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional p. 13

Souto, Marcos Juruena Villela Parceria Público-Privada: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental ..............................................................p. 45

STF – Jurisdição constitucional – Emenda Constitucional – Controle da constitucionalidade – Poder Judiciário – Processo legislativo – Constituição Federal – Regimento Interno – Câmara dos Deputa-dos – Senado Jurisdição de controle do processo de emenda constitucional. Derly Barreto e Silva Filho ...............................................................p. 13

Subsídios – Vereador – Convocação extraordinária – Mandato eletivo

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 283

– Exercício – Agente político – Remuneração – Acréscimo – Redu-ção – Inadimissibilidade – Interpretação da constituição – Pagamen-to adicional – Salário integral Parecer 01/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 137

Substituto eventual – Servidor público – Cargo em comissão – Diretor – Exoneração – Nomeação – Data – Eficácia retroativa – Titular – Ausência – Exercício efetivo – Remuneração – Natureza indeniza-tória Parecer 03/05 – Jania Maria de Souza ....................................p. 225

Súmula – Direito de defesa – Direito constitucional – Responsabilidade civil do Estado – Responsabilidade objetiva – Denunciação da lide – Agente público – Princípio constitucional – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – CF/88 O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

Supremo Tribunal Federal ver STF

Tepedino, Gustavo A Noção de direito adquirido no diálogo de fontes normativas: um ensaio na perspectiva civil-constitucional ...............................p. 87

Tombamento – Bens imóveis – Bens móveis – Intervenção do estado na propriedade – Competência legislativa – Competência municipal – Patrimônio histórico – Patrimônio cultural – Administração local – Interesse – Câmara Municipal – Poder Legislativo – Iniciativa – Possibilidade Parecer 05/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 203

Tombamento – Fábrica de Cartuchos do Exército – Patrimônio cultural – Demarcação de área – Poder de polícia – Poder Executivo – Com-petência administrativa – Averbação – Retificação Parecer 02/05 – Claudia Rivolli Thomas de Sá .......................p. 103

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Direito de defesa – Direi-to constitucional – Responsabilidade civil do Estado – Responsabi-lidade objetiva – Denunciação da lide – Agente público – Princípio constitucional – Súmula – CF/88

284 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005

O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos. Fernando Lemme Weiss ........................p. 65

União Federal – Consórcio – Estados – Distrito Federal – Municípios – Contrato de programa – Licitação – Dispensa – Contratação – Poder Público – Setor privado – Serviços públicos – Saneamento ambiental – Saneamento básico – L 11.107/05 Parceria Público-Pública: ensaio sobre os consórcios públicos e saneamento ambiental. Marcos Juruena Villela Souto ...........p. 45

Vereador – Ex-vereador – Declaração de rendimentos – Fornecimento – Requerimento – Ministério Público Estadual – Atuação – Limi-tação – Direito a privacidade – Jurisprudência – Poder Judiciário – Quebra de sigilo – Sigilo bancário – Sigilo fiscal – Controle prévio – Autoridade judicial Parecer 04/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 121

Vereador – Previdência social – Vinculação – Contribuição previdenciária – Segurado obrigatório – INSS – Regime geral de previdência social – Lei federal – Declaração de inconstitucionalidade – Vício formal – Emenda constitucional – Reforma previdenciária – Agente político – Inclusão – Direito constitucional – Direito intertemporal – Lei or-dinária – Contribuição – Recriação – Legitimidade – Recolhimento – Recomendação Parecer 07/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 181

Vereador – Subsídios – Convocação extraordinária – Mandato eletivo – Exercício – Agente político – Remuneração – Acréscimo – Redu-ção – Inadimissibilidade – Interpretação da constituição – Pagamen-to adicional – Salário integral Parecer 01/05 – Sérgio Antônio Ferrari Filho .........................p. 137

Votação – Aprovação – Abstenção – Suspensão – Vereador – Função legis-lativa – Impedimento – Impossibilidade – Projeto de lei complemen-tar – Regularização – Ampliação horizontal – Cobertura – Constru-ção – Ministério Público Estadual – Recomendação – Notificação – Manifestação – Opinião – Divulgação Parecer 01/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 197

Votação eletrônica – Prestação de serviço – Contrato administrativo – Res-

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, jan./dez. 2005 285

cisão – Inexecução contratual – Penalidade – Multa – Aplicação – Processo administrativo – Instauração – Princípio do contraditório – Ampla defesa – Garantia Parecer 02/05 – Flávio Andrade de Carvalho Britto ...............p. 109

Weiss, Fernando Lemme O Direito constitucional de ampla defesa e a denunciação da lide aos agentes públicos .......................................................................p. 65

Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janei-ro

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