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Revista da Abordagem Gestáltica

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Revista da Abordagem Gestáltica

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Instituto de Treinamento e Pesquisa emGestalt-Terapia de Goiânia – ITGT

Revista da Abordagem Gestáltica

Volume XVII - N. 2

2011

Goiânia – Goiás

www.itgt.com.br

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Ficha Catalográfica

Revista da Aborda-gem Gestáltica/ Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia – Vol. 17, n. 2 (2011) – Goiânia: ITGT, 2011.

119p.: il.: 30 cm

Inclui normas de publicação

ISSN: 1809-6867

1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.

CDD 616.891 43

Citação:REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 17, n. 1, 2011. xxxp

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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Revista da aboRdagem gestáltica

Volume XVII - N. 2 – Jul/Dez, 2011

Expediente

EditorAdriano Furtado Holanda

(Universidade Federal do Paraná)

Editores AssociadosCelana Cardoso Andrade

(Universidade Federal de Goiás)Danilo Suassuna Martins Costa

(Pontifícia Universidade Católica de Goiás)Marta Carmo

(Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiás)

Conselho EditorialAdelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)

Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná)

Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Brasília)Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)

Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)

Marcos Aurélio Fernandes (Universidade Católica de Brasília)Marisete Malaguth Mendonça (Universidade Católica de Goiás)Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)Sérgio Lízias (Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão)

Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)

William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Suporte TécnicoJosiane AlmeidaMarcos Janzen

Norma Susana Romero Martinovich

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CapaFranco Jr.

Diagramação e Arte FinalFranco Jr.

BibliotecárioArnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)

FinanciamentoInstituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)

Encaminhamento de ManuscritosA remessa de manuscritos para publicação, bem como toda a correspondência

de seguimento que se fizer necessária, deve ser endereçada a:

EditorRevista da Abordagem Gestáltica

Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT)Rua 1.128, nº 165 - St. Marista - Goiânia-GO - CEP: 74.175-130

Fone/Fax: (62) 3941-9798E-mail: [email protected]

Normas de Apresentação de ManuscritosTodas as informações concernentes a esta publicação, tais como normas de

apresentação de manuscritos, critérios de avaliação, modalidades de textos, etc.,podem ser encontradas no site http://pepsic.bvs-psi.org.br

Fontes de Indexação- Clase

- Latindex- Lilacs

- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)- Scopus

As opiniões emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão e adequação das referências bibliográficas são de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.

A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que citada a fonte.

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Sumário

vii Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): vii-viii, jul-dez, 2011

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EDIToRIAl ..................................................................................................................................................IX

ARTIGoS

“Como Sei que Eu Sou Eu?” Cinestesia e Espacialidade nas Conferências Husserlianas de 1907 -e em Pesquisas Neurocognitivas ............................................................................................................ 123

Thiago Gomes de Castro (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) & William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

A Crítica da Fenomenologia de Husserl à Visão Positivista nas Ciências Humanas - .......................... 131

Carlos Diógenes Cortes Tourinho (Universidade Federal Fluminense)

Fenomenologia e Experiência Religiosa em Paul Tillich - ...................................................................... 137

Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)

A ontologia da Carne em Merleau-Ponty e a Situação Clínica na Gestalt-Terapia: -Entrelaçamentos ...................................................................................................................................... 143

Monica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Pensando o Suicídio sob a Ótica Fenomenológica Hermenêutica: Algumas Considerações - .............. 152

Elza Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

o Cuidado como Amor em Heidegger - .................................................................................................... 158

Marcos Aurélio Fernandes (Universidade Católica de Brasília)

A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia -Fenomenológica ...................................................................................................................................... 172

Virginia Moreira (Universidade de Fortaleza)

A Clínica Psicológica Infantil em uma Perspectiva Existencial - .......................................................... 185

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

A (Pouco Conhecida) Contribuição de Brentano para as Psicoterapias Humanistas - ......................... 193

Georges Daniel Janja Bloc Boris (Universidade de Fortaleza)

Dificuldades, Desafios e Possibilidades para uma Clínica Sartreana - ................................................ 198

Carolina Mendes Campos (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro); Fernanda Alt (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) & André Barata (Universidade da Beira Interior/Portugal)

Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno obsessivo Compulsivo - ............. 205

Sylvia Mara Pires de Freitas (Universidade Estadual de Maringá)

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Sumário

viii Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): vii-viii, jul-dez, 2011

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TEXToS ClÁSSICoS

Sobre o Conceito de Sensação - (1913) ...................................................................................................... 217

José Ortega y Gasset

DISSERTAÇÕES E TESES

A Ambiguidade na Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty (2007) - ......................... 227

Leandro Neves Cardim (Doutorado em Filosofia, Universidade de São Paulo)

A Clínica da Urgência Psicológica: Contribuições da Abordagem Centrada na Pessoa e da -Teoria do Caos (2003) .............................................................................................................................. 229

Márcia Alves Tassinari (Doutorado em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro)

NoRMAS

Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica - .............................................................. 235

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Editorial

ix Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): ix, jul-dez, 2011

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Ao final do século XIX, quando aquelas ciências que – na atualidade – viriam a ser chamadas de “ciências hu-manas” davam seus primeiros passos, e buscavam se es-tabelecer no terreno das objetividades, Wilhelm Dilthey (1833-1911) já discutia sua “teoria da visão de mundo”, ou a Weltanschauung: “(...) em que ‘viver é apreciar’, é avaliar, é escolher, é dar sua ‘interpretação’ ao mundo natural” (Japiassu & Marcondes, 1990, p. 73). Em sua obra funda-mental, Introdução ao Estudo das Ciências Humanas1 (de 1883), Dilthey critica a apropriação da visão positivista da realidade humana, afirmando que esta realidade é “es-sencialmente social e histórica” (Japiassu & Marcondes, 1990, p. 73) e, assim, não seria passível de explicação – causal e racionalista –, mas de compreensão.

Posteriormente, em outra obra fundamental – prin-cipalmente para a psicologia, as Ideias sobre uma psi-cologia descritiva e analítica (de 1894) – Dilthey ratifica esta posição, assinalando que as ditas “ciências huma-nas” (à época chamadas de ciências do espírito) tem uma especificidade:

As ciências humanas partem do nexo psíquico dado na experiência interna. A diferença fundamental do conhecimento psicológico em relação ao conhecimen-to da natureza consiste no fato de o nexo ser dado aqui primariamente na vida psíquica, e é aí que reside, por-tanto, mesmo a primeira e fundamental peculiaridade das ciências humanas (Dilthey, 1894/2011, p. 158).

Este nexo é representado pela palavra alemã Erlebnis, ligada a “vida”, a “viver”. Quem traduziu este vocábulo, originalmente proposto por Dilthey, foi o filósofo espa-nhol José ortega y Gasset (1883-1955), em 1913, com a palavra “vivência” (Mora, 1994/2004). Este neologismo castelhano passou a significar “experiência vivida subje-tivamente” ou “experiência interna”, fundamental – pois – para as ciências humanas em geral e, particularmente, para as ciências psicológicas, como bem aponta o imi-nente psiquiatra Nobre de Melo (1979).

Fizemos esta introdução como forma de anun-ciar o que trazemos neste novo número da Revista da Abordagem Gestáltica que, ao longo dos últimos cinco anos, assumiu uma proposta – e um desafio – de se tor-nar mais um veículo para a difusão, debate e solidifica-ção do pensamento fenomenológico no Brasil. Como tal, este novo número conta com os primeiros trabalhos apre-sentados no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia, realizado na Universidade Federal do Paraná, entre 02 e 04 de junho de 2011.

Um número expressivo de participantes – mais de 350

1 Título original: Einleitung in die Geisteswissenschafter.

pessoas – e outro ainda mais expressivo – mais de cem trabalhos2 apresentados, entre conferências, palestras, comunicações, etc. – mostra que um novo movimento começa a tomar corpo no país.

Começamos a publicar algumas destas contribuições, trazendo aos leitores doze desses trabalhos – oito deles frutos de pesquisas em Programas de Pós-Graduação –, que refletem não apenas a solidez da discussão, como também a diversidade de temas e autores que tem sido trabalhados em psicologia fenomenológica no país: Brentano, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre e Tillich, dentre outros, são alguns desses autores. Em contrapartida; espacialidade, percepção, religiosidade, arte, clínica, suicídio e psicopatologia, são alguns des-ses temas.

E, ao final, brindamos a todos com a tradução de um excelente texto de Ortega y Gasset – intitulado Sobre o Conceito de Sensação, de 1913 – onde o autor, além de fazer uma breve, mas significativa introdução à fenome-nologia, nos indica o lugar da “vivência” a que nos refe-rimos no início.

Adriano Furtado Holanda- Editor -

Referências

Dilthey, W. (2011). Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica. Rio de Janeiro: Via Verita Editora (Original pu-blicado em 1894).

Japiassu, H. & Marcondes, H. (1990). Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Mora, J.F. (2004). Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola (Original publicado em 1994).

Nobre de Melo, A.L. (1979). Psiquiatria (Vol. I). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/FENAME.

2 Os Anais do II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia (cujo tema foi “Vínculo, Relação, Diálogo), estão disponíveis online e podem ser consultados no link: http://www.labfeno.ufpr.br/textos/Anais_II_ Congresso_Sul_%20Brasileiro_de_Fenomenologia_2011.pdf

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“Como Sei que Eu Sou Eu?” Cinestesia e Espacialidade nas Conferências Husserlianas de 1907 e em Pesquisas Neurocognitivas

123 Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011

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“Como Sei que eu Sou eu?” CineSteSia e eSpaCialidade naS ConfeRênCiaS HuSSeRlianaS de 1907 e em peSquiSaS

neuRoCognitivaS1

How do I Know That I am Myself? – Kinesthesia and Spatiality in the Husserlian Conferences of 1907 and in Neurocognitive Research

¿Cómo Puedo Saber que Soy Yo? – Cinestesia y Espacialidad en las Conferencias Husserlianas de 1907 y en Investigaciones Neurocognitivas

Thiago gomes de CasTro

William BarBosa gomes

Resumo: Husserl definiu cinestesia como a experiência vivida e autoconsciente do movimento e do gesto, associada à uni-dade corporal, ao desenvolvimento do esquema do ego estendido, e à percepção de espaço. O estudo contrasta dificulda-des históricas e colaborações recentes entre fenomenologia e pesquisa experimental. A análise sustenta-se na revisão de estudos clássicos sobre cinestesia e percepção, e em pesquisas neurocognitivas recentes, destacando as implicações para a compreensão da intencionalidade. O conceito de cinestesia refere-se a duas questões fenomenológicas: como sei que eu sou eu, e quem sou eu. O senso de si e da ação presente passam pela integração da consciência reflexiva no desempenho motor e perceptivo, conforme confirmam experimentos fenomenológicos e neurocognitivos sobre situações de ambiguidade pro-prioceptiva. Tais estudos estão abrindo novas possibilidades para reabilitação de desordens proprioceptivas – como no caso de amputação, comorbidades de auto-imagem e mesmo esquizofrenia – e para colaborações profícuas entre fenomenologia e neurociências cognitivas.Palavras-chave: Cinestesia; Autoconsciência; Intencionalidade; Fenomenologia; Neurocognição.

Abstract: Husserl defined kinesthesia as the self-consciousness lived experience of movement and gesture, associated to the body unity, to the development of an extended ego schema, and to spatial perception. The study contrasts historical diffi-culties and recent collaborations between phenomenology and experimental research. The analysis is sustained in classical studies review on kinesthesia and perception, and in recent neurocognitive research, emphasizing implications to an under-standing of intentionality. The concept of kinesthesia refers to two phenomenological issues: How do I know that I am my-self, and who am I. The sense of self and actual action passes through the integration of reflective consciousness in motor action and perception, as confirmed by phenomenological and neurocognitive experiments using proprioceptive ambiguity contexts. Those studies are opening new possibilities to the rehabilitation of proprioceptive disorders – as in the case of am-putees, self-image comorbidities and schizophrenia – and also to fruitful collaborations between phenomenology and cogni-tive neurosciences. Keywords: Kinesthesia; Selfconsciousness; Intentionality; Phenomenology; Neurocognition.

Resumen: Husserl define cinestesia como la auto-conciencia de la experiencia vivida del movimiento y el gesto, asociado a la unidad del cuerpo, a lo desarrollo de un esquema de ego extendido, y a la percepción espacial. El estudio contrasta las difi-cultades históricas y recientes colaboraciones entre la fenomenología y la investigación experimental. El análisis se sustenta en la revisión de estudios clásicos en cinestesia y la percepción, y en la investigación neurocognitiva reciente, destacando las implicaciones para la comprensión de la intencionalidad. El concepto de cinestesia se refiere a dos aspectos fenomenológicos: Cómo puedo saber que soy yo, y que yo soy. El sentido de sí mismo y la acción propia pasa por la integración de la conciencia reflexiva en la acción motora, según lo confirmado por experimentos fenomenológicos y neurocognitivos utilizando contex-tos de ambigüedad propioceptiva. Estos estudios están abriendo nuevas posibilidades para la rehabilitación de los trastornos propioceptivos – como en el caso de los amputados, comorbilidades de imagen de sí mismo y la esquizofrenia – y también a la colaboración fructífera entre la fenomenología y las neurociencias cognitivas.Palabras-clabe: Cinestesia; Auto-consciencia. Intencionalidad; Fenomenología; Neurocognición.

1 Palestra proferida pelo primeiro autor no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, realizado na UFPR, em Curitiba, de 03 a 04 de junho de 2011.

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Thiago G. Castro & William B. Gomes

124 Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011

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introdução

O presente artigo discute a articulação entre os con-ceitos de cinestesia e espacialidade no texto husserliano intitulado Dingvorlesung (Thing and Space – Lectures of 1907) e a relação com estudos de psicologia experimen-tal, de diferentes períodos históricos, que investigaram os mesmo processos. O texto está organizado em quatro partes. Primeiro, apresenta breve descrição do contexto histórico e das características do texto de Husserl de 1907. Segundo, discute as definições de cinestesia e espaciali-dade em Husserl, destacando a importância dada à me-diação autoconsciente. Terceiro, contrasta a definição de percepção espacial de três pesquisadores experimentais – David Katz, James J. Gibson e Alva Nöe – com a definição husserliana. Por fim, traz resultados de pesquisas recen-tes com correlatos neurais em tarefas experimentais na percepção de movimento e propriocepção espacial para rediscutir a versão husserliana de cinestesia.

1. Cinestesia e Contexto Histórico de Husserl em 1907

O tema da Cinestesia em Husserl aparece com maior detalhamento em uma série de conferências proferidas em 1907, quando Husserl lecionava na Universidade de Göttingen na Alemanha. O texto de 1907 refere-se à transcrição de um curso oferecido naquela Universidade, sendo que apenas parte dessas conferências foi traduzida para o português, com o título A Idéia da Fenomenologia (1907/2000). Nesse breve texto são apresentadas cinco conferências introdutórias do curso de Husserl, mas são relativamente independentes do seguimento das palestras descritas em Thing and Space. Na Idéia da Fenomenologia Husserl enfocará a descrição do método das reduções fenomenológicas. Já em Thing and Space o escopo das análises tratará basicamente da construção da espacialidade, com ênfase na cinestesia. Vale lembrar que em 1905 Husserl já havia se detido à discussão da consciência interna do tempo, e agora espaço e tempo se fundirão para uma compreensão ampliada da experiên-cia intencional.

Sabe-se que entre a audiência do curso de 1907 estava Georg Elias Müller (1850-1934), chefe da cadeira de psico-logia experimental da Universidade de Göttingen (Ash, 1995). Nesse momento, Müller já havia estabelecido um programa de psicologia experimental que buscava fun-damentação na fenomenologia, dedicando-se principal-mente à investigação empírica da memória. O sentido fe-nomenológico adotado por G.E.Müller foi o da fenomeno-logia como psicologia descritiva, associado à transposição metodológica da fenomenologia de Husserl. Spiegelberg

2 Palestra proferida pelo primeiro autor no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, realizado na UFPR, em Curitiba, de 03 a 04 de junho de 2011.

(1972) relata, contudo, que Husserl não aprovava o uso da fenomenologia conforme Müller e o departamento de psicologia de Göttingen. De seu lado, Müller considerava a resistência de Husserl em relação às inovações empíri-cas como um isolamento não produtivo e que sua forma de filosofar era um preciosismo verbal.

Mesmo assim, ao contrário do laboratório de Leipzig, em Göttingen a nova teoria fenomenológica na experimen-tação procurava distanciar as teses elementaristas e fisi-calistas sobre o funcionamento da consciência. Wundt e os psicólogos de Leipzig são inclusive criticados em Thing and Space por Husserl no tocante à questão da distinção entre percepção e apercepção. Como se sabe, o termo per-cepção refere-se ao processo de conhecimento de obje-tos e eventos por meios sensoriais. Em contraste, o termo apercepção, de Leibniz a Wundt, foi entendido como o processo no qual o conteúdo era focalizado mais clara-mente para a compreensão, posterior à percepção (Klein, 1970). A insistência de Husserl (1907/1997), no entanto, é enfatizar a percepção como processo ativo vinculado à intencionalidade. O entendimento da época para aper-cepção sugeria certa passividade e independência entre percepção e intencionalidade. Segundo o filósofo, tal en-tendimento passivo da apercepção teria sido suplantado pelo conceito de apreensão de Carl Stumpf (1848-1936). De acordo com Husserl, Stumpf entende que a ideia de apercepção seria insuficiente dentro de uma compreensão intencional da percepção, sendo mais adequado falar de um modo particular do organismo no acesso a evidência como apreensão ativa das coisas. Similar a essa propo-sição ativa de Stumpf é o conceito de intencionalidade operante de Husserl (Husserl, 1913/2006).

Em 1907, Carl Stumpf coordenava o laboratório de psi-cologia da Universidade de Berlim, onde orientava as te-ses de doutorado de dois dos fundadores da Psicologia da Gestalt: Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfgang Köhler (1887-1967). No entanto, o interesse de Stumpf pela fenomeno-logia começava a declinar em 1907, uma vez que Husserl buscava, há algum tempo, afirmar a fenomenologia como ciência primeira e com um método filosófico próprio para tal empreitada. Assim como G.E.Müller, Stumpf não via com bons olhos o excessivo afastamento de Husserl da investigação empírica, exatamente por este defender uma via puramente teórica à intencionalidade.

Também entre os ouvintes das conferências de 1907, estava o orientando de Husserl em Göttingen, Wilhelm Schapp (1884-1965), que realizou uma análise intencio-nal filosófica da percepção de cores. Na mesma época, o psicólogo Oswald Külpe (1862-1915), aluno de Wündt, buscava desenvolver um programa de psicologia experi-mental na Universidade de Würzburg, baseado em uma fenomenologia descritiva e entendida como ciência de realidades (Spiegelberg, 1972). Külpe foi o orientador da tese de Max Wertheimer (1880-1943), outro cofundador da Psicologia da Gestalt, também na década de 1900. Acompanhando Müller e Stumpf, Külpe mantinha res-

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“Como Sei que Eu Sou Eu?” Cinestesia e Espacialidade nas Conferências Husserlianas de 1907 e em Pesquisas Neurocognitivas

125 Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011

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trições à direção da filosofia fenomenológica delineada por Husserl, considerando-a importante, mas metodolo-gicamente imperfeita no tratamento da realidade. Schapp e Külpe são dois exemplos de autores influenciados por Husserl nesse período, mas que seguiram por caminhos distintos no estudo da percepção, o primeiro para a aná-lise eidética e o segundo para a análise descritiva, em-pírica e rigorosa.

Ainda que notórias as diferenças de propósito entre Husserl e os psicólogos alemães da década de 1900, per-cebe-se entre os autores uma forte tendência de combate às teses psicofísicas vigentes nesse momento. Enquanto Husserl fazia esforços para suplantar a epistemologia das investigações baseadas no sensorialismo, alguns psicólo-gos enfrentavam o desafio de criar condições experimen-tais e leis de interpretação diferenciadas, na direção de uma lógica descritiva fenomenológica. Nesse momento, o destaque que Husserl confere à cinestesia para a per-cepção mantém conexão com as modalidades inovadoras de pesquisa de percepção espacial que os discípulos de Müller, Külpe e Stumpf irão desenvolver nas décadas se-guintes. Vejamos como Husserl define cinestesia.

2. “Como sei que eu sou eu?” – Cinestesia e espa-cialidade em Husserl

Em um sentido genérico, o termo Cinestesia é com-posto por dois radicais, “Cine” que significa movimento e “Estesia” que indica sensação ou percepção. Cinestesia, portanto, seria uma sensação ou percepção de movimen-to. Cinestesia é diferente de Sinestesia, que significa a relação de planos sensoriais distintos como, por exem-plo, olfato e visão. O termo “sinestesia” é empregado na neurologia como uma união sensória involuntária em que a informação real de um sentido é acompanhada por uma percepção em outro sentido não estimulado (Hubbard & Ramachandran, 2005). Por exemplo, o indi-víduo é estimulado por uma cor azul, como o céu azul, e sente ao mesmo tempo o cheiro de um morango, que não está presente no contexto de estimulação. Há também uma tendência em se considerar cinestesia como sinôni-mo de propriocepção. Contudo, embora semelhantes, os dois termos guardam diferenças sutis. A propriocepção englobaria um sentido mais conceitual e integrativo da percepção, associado ao senso de equilíbrio corporal, mas não necessariamente à ênfase no senso de movimento como na cinestesia.

A cinestesia está associada a um senso espacial cor-poral interno e externo, sendo a dimensão externa as-sociada ao conceito denominado peri-espaço, que seria o espaço não corporal logo em torno do corpo e que faz parte de um sistema de esquema corporal ligado à sensa-ção de movimentos (Cardinali, Brozzoli & Farnè, 2009). O senso interno estaria associado à interação entre ca-nais sensoriais básicos no corpo para a sensação de mo-

vimento. Ambos, sensos interno e externo, indicam uma integração primária com o sistema sensorial vestibular, localizado no ouvido interno.

Para Husserl (1907/1997), a cinestesia designa a expe-riência vivida da postura corporal, isto é, a orientação dos órgãos motores da percepção em movimento, incluindo os atos usados para simular esses movimentos na cons-ciência. A sensação de movimento é o fenômeno puro na constituição da espacialidade. A constituição dos mem-bros como conteúdos físicos aparentes no campo visual precede a noção de unidade do corpo (Husserl, 19313, ci-tado por Petit, 2010). As dinâmicas cinestésicas remetem aos impulsos instintuais nos bebês, nos fenômenos da orientação da visão e na projeção das mãos em direção a um objeto de interesse (Husserl, 1907/1997).

O ato em movimento está alocado na teoria da cons-tituição de Husserl. Por constituição fenomenológica en-tende-se o ato pelo qual um objeto surge ou configura-se na consciência, cuja característica mais fundamen-tal na cinestesia é a autoconsciência do sujeito na ação (“eu estou fazendo”). O ato tem o significado de uma autoconsciência ativa por todo o período em que persis-te sua execução (Husserl, 1907/1997). Portanto, trata-se para Husserl de uma vigília concomitante da constitui-ção do ato e da consciência de estar desempenhando este ato. Daí deriva a indagação que dá o título a essa exposição: Como sei que eu sou eu? Nas conferências de 1907, a cinestesia está associada à necessidade de uma concomitância autoconsciente no desempenho da ação, especialmente em vista do método descritivo de análi-se da intencionalidade, que repousa sobre o aspecto da experiência consciente.

Posteriormente, no texto Psicologia Fenomenológica, Husserl (1925/1977) relata que o estudo da intencionali-dade e seus modos de acesso à evidência não se faz com-pleto sem o correspondente intencional do corpo em sua função perceptiva. Segundo o autor, o corpo é, ao mesmo tempo, coisa (eidos) e função intencional (gênese). Uma análise do sistema cinestésico seria uma nova forma de análise da intencionalidade (Husserl, 1925/1977). Tanto no sentido eidético (estático), como em um sentido gené-tico (processual), conforme indicado a seguir.

Schmicking (2010) reforça a idéia de Husserl ao situar a cinestesia como um dos aportes nas análises estática e genética da intencionalidade para a constituição dos ob-jetos ou experiências. Junto com a incorporação, a cines-tesia seria a referência para entender o acesso tipificado ou padronizado a novas experiências, como um modo intencional (Análise Estática). A cinestesia seria também uma via alternativa para compreender a auto-organiza-ção perceptiva no acesso a novas experiências ao longo de um fluxo temporal de vividos (Análise Genética). Em ambos os casos, ocorrem análises de estabilidade e de variações: na fenomenologia estática, procede-se uma

3 O Problema do Ato (1931) – Edmund Husserl

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análise de essências pelo traço perceptivo em um even-to experiencial; na fenomenologia genética, procede-se uma análise de transições e constâncias da percepção em um fluxo temporal de vividos. Schmicking (2010) não menciona a análise generativa, que seria o modo de análise intencional sobre as conexões ecológicas dos atos. Ainda em 1907 nota-se também a ausência desta análise no texto de Husserl.

Em Husserl (1907/1997), a constituição recíproca do movimento de diferentes órgãos em um campo sensorial define a noção de espaço próprio e, por conseguinte, de um mesmo corpo (unidade egóica). Pergunta-se então: O que seria primordial na reunião desses diferentes mo-vimentos? Aparentemente, a visão desponta como o re-curso integrador do eu. Nesse texto, o sistema háptico, a participação músculo-esquelético em toques e contatos táteis é reconhecido como fundamental na integração, possivelmente como recurso concomitante à visão. Isto porque exerceria uma função diferente da visão, sendo a visão o pólo primário de identificação do movimento e o sistema háptico como pólo de sensação de continuidade temporal do movimento. O sistema táctil, decorrente do sistema háptico, aparece como recurso na extensão da unidade do ego para os movimentos externos à sensação de movimento corporal. Nesse ponto, o tema da cineste-sia integra-se ao da experiência do mundo para a consti-tuição de um esquema de ego estendido.

Os objetos intencionados que compõem a corporeida-de estendida obviamente não possuem caracteres cinesté-sicos. Contudo, os objetos que estão no mundo participam do sistema auto-referente do corpo, este sim cinestésico (Husserl, 1931 citado por Petit, 2010). Isto significa que a sensação de movimento e a construção da espacialida-de corpórea não englobariam a carne do mundo, como em Merleau-Ponty, mas os objetos do mundo são funda-mentais para a dimensão auto-referente e autoconsciente do corpo em relação à percepção do mundo. Os objetos são parte do sistema cinestésico como utensílios ou pólo negativo, mas não como extensão carnal do movimento. Husserl discute em 1931 a relação do corpo com ferra-mentas que ampliam o sistema intencional de constitui-ção auto-referente da espacialidade. O uso de ferramen-tas, como descrito em 1931, poderia ser uma saída em direção à via generativa, ecológica, não enfatizada nas conferências de 1907.

Observamos a importância dada por Husserl à dimen-são autoconsciente na sensação de movimentos. O filó-sofo buscava com isso enfatizar o elemento operante da intencionalidade na construção de referentes espaciais no fluxo de vividos. Esse controle consciente da experi-ência do espaço não só serviria a um domínio da espacia-lidade, como também uma via para a análise de padrões intencionais na percepção do meio e na propriocepção. Com isso, Husserl define uma posição contrária à tese de que a percepção seria uma reação sensorial aos estímu-los recebidos do meio.

3. percepção espacial e decorrências fenomenológi-cas

As ideias trabalhadas por Husserl em 1907 conver-giram, direta ou indiretamente, no desenvolvimento de teorias psicológicas sobre a percepção espacial. Três im-portantes representantes desta convergência temática são David Katz (1884-1953), James J. Gibson (1904-1979), e o filósofo contemporâneo Alva Noë, um professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, interessado em percepção e consciência. A seguir, destaca-se como a te-oria fenomenológica da percepção espacial se relaciona ao trabalho destes três pesquisadores, representando o desenvolvimento durante o século XX.

A repercussão mais direta pode ser observada nos es-tudos do psicólogo experimental alemão que foi orientado por Georg Elias Müller no período das conferências de Husserl em Göttingen. Em 1911, David Katz escreve seu principal trabalho sobre a percepção das cores a partir de estudos experimentais, dando destaque à função da intencionalidade na constituição da espacialidade, em oposição às teses da sensação na tradição de Hermann von Helmholtz (1821-1894). O livro foi traduzido para o inglês em 1935, com reimpressões em 1970, 1999, 2000, 2001, 2002 o que aponta para a importância da obra. Na apresentação de sua teoria da percepção das cores, Katz (1911/1935) mencionou Ewald Hering (1834-1918) como principal influência, informando que as ideias de Husserl sobre esse tema não eram tão inéditas ao tempo das con-ferências de Göttingen. Para Katz (1943/1945), o padrão de percepção das cores poderia servir de exemplo para a percepção do espaço como um todo. Para tanto, seria ne-cessário levar em conta que a percepção de uma cor não se limita à correlação estímulo-percepção, segundo as variações unidimensionais de intensidade. Requer ainda a investigação de covariantes de iluminação nos objetos que circundam o espaço da percepção. Ou seja, a percep-ção de espaço é o produto da posição espacial do sujeito em relação ao contexto percebido, bem como as relações de iluminação e sombra entre os objetos que compõem o cenário da percepção total. Posteriormente, algumas das teses de Katz foram trabalhadas por Köhler na questão dos padrões da continuidade perceptiva da visão (Ash, 1995). Katz reconheceu a grande influência de Husserl para suas pesquisas experimentais, em particular, a ati-tude fenomenológica nas seguintes palavras:

Para mim, a fenomenologia como advogada naquele tempo (i.e. durante os anos de estudante de Katz em Göttingen) por Edmund Husserl, parece ser a mais importante conexão entre filosofia e psicologia. Ne-nhum dos meus professores acadêmicos, com exceção de G. E. Müller, influenciou-me tão profundamente no procedimento e na atitude sobre as questões psicológi-cas quanto Husserl com seu método fenomenológico. (Katz, 1952 citado por Spiegelberg, 1972, p. 44).

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A constituição da percepção visual reaparece for-temente nos meados do século XX com a profícua pro-dução do pesquisador norte-americano James J. Gibson (1904-1979). Em especial seu livro de 1979, intitulado The ecological approach to visual perception, que aborda a construção da percepção e propriocepção a partir do uso ativo que o organismo faz dos recursos disponíveis em seu meio. A relação de Gibson com a fenomenologia é indireta, sendo apenas possível realizar indicações de convergência conceitual e temática entre as ideias sobre percepção de movimento e propriocepção.

Para Gibson (1979), a conexão ecológica é princípio e não fim para entender a emergência da percepção. Seu conceito mais conhecido é affordance, que tange espe-cificamente sobre este uso intencional dos recursos am-bientais para situar a percepção visual em uma articu-lação ativa com o meio. Segundo Gibson (2002), a per-cepção visual deve ser estudada e entendida como um processo direto no ambiente, sem recorrer às teses de processamento indireto ou representação da visão total como imagem no córtex occipital. Acerca dessa defesa, Gibson afirma que o sistema visual estrito faz uma se-leção de estímulos no meio antes de qualquer mediação de filtro sensorial secundário no cérebro. Isto significa afirmar que os olhos têm capacidade suficiente de sele-ção de estímulos, levados por uma intenção prévia, sem que seja necessária uma captação da imagem total para posterior reorganização topográfica dos estímulos em um córtex específico.

Mais recentemente encontra-se em Nöe (2004) um retorno às teses de Katz e Gibson para examinar, por meio de estudos experimentais, a relação entre inten-cionalidade pré-consciente e reorganização intencional, conforme a discriminação de pistas ambientais durante o desempenho da ação. Para Nöe, a ação no meio cons-titui a percepção, sendo que as subsequentes atualiza-ções interferem continuadamente nas intenções da ação. Observa-se novamente, nesse exemplo, que o conceito de intencionalidade é ressignificado à luz das ações efeti-vas do organismo no ambiente, até como uma intencio-nalidade operante. Contudo, a mediação autoconsciente não é ponto chave aqui para a constituição intencional, como desponta no texto de 1907 de Husserl. Nöe recor-reu a vários estudos de Gibson para afirmar a tese de que a percepção recairia, em ultima instância, sobre a ação corporal no ambiente. Nesse sentido, não seria nem uma criação autoconsciente nem uma dependência pura de contingências ambientais. Trata-se de uma combinação entre realismo e idealismo. Aliás, a tese sobre a ação no meio não descarta o modelo funcional de seleção por consequências, mas retoma a importância enativa do organismo nas trocas com este meio e o papel da auto-consciência nessa mediação. Por enativa entende-se a ação guiada pela percepção na vivência sensório-motora contextualizada do sujeito da ação (Varela, Thompson & Rosch, 1991).

As pesquisas sobre percepção visual desenvolvidas por Katz (1911/1935), Gibson (1979) e Noë (2004) abor-dam, em certa medida, a relação entre intencionalidade e concomitância autoconsciente na ação, considerando as interferências da mediação pré-consciente e intenção motora dos atos. Nesse sentido, qual seria a relação entre motricidade, consciência dos atos e intencionalidade? Tal questão é pertinente diante do entendimento de que as atualizações entre o encontro da intencionalidade com as contingências ambientais provocam um momento de retomada unitária da experiência do corpo.

A discussão emergente desses novos desenvolvimen-tos da fenomenologia está nas questões decorrentes de como compreender e explicar as atualizações constantes e operantes da percepção espacial e da propriocepção. O ponto chave nessa discussão procede das ciências cog-nitivas de abordagem enativa (Thompson, 2007), sob o argumento de que tais atualizações do comportamento e da percepção não dependem exclusivamente de pistas ambientais, mas especialmente da intencionalidade pré-via em relação ao ambiente. Para essa ciência cognitiva influenciada pela fenomenologia, existiria um modo in-tencional operante que caracteriza os modos de acesso perceptivo às coisas e que não exclui os elementos con-tingenciais reais do ambiente (Smith, 1999). Nesse senti-do, reafirma-se, mais uma vez, não se tratar nem de um idealismo puro e nem de um realismo puro. Haveria, portanto, modos intencionais tipificados que acessam o meio de forma ativa ou operante, mas que se atualizam permanentemente conforme as pistas ambientais para se reorganizar. Nesse momento de reorganização, a retoma-da autoconsciente da experiência seria fundamental para a preparação intencional a experiências futuras.

4. “Quem sou eu?” – transições da fenomenologia para experimentação

Em uma tentativa de reunir a fenomenologia constitu-tiva husserliana e a neurocognição, os atos pré-conscien-tes vêm sendo estudados em experimentos que incluem a descrição experiencial consciente após o desempenho de determinadas tarefas (Lutz & Thompson, 2003). Os ex-perimentos consistem na proposição de uma tarefa expe-riencial e motora, passível de ser descrita, com objetivo de verificar a associação entre a descrição perceptiva e o desempenho corporal (motor). Pesquisas em neurociência (Iriki, Tanaka & Iwamura, 1996) desde meados da déca-da de 1990, têm demonstrado que o uso de ferramentas como prolongamento do corpo intencional coincide com os achados sobre a ativação de neurônios viso-táteis na utilização de instrumentos por macacos.

Em relação aos achados neurocientíficos sobre a fun-ção integrada de visão e tato em um mesmo neurônio, cabe uma ressalva ao texto husserliano. Para Husserl (1907/1997), os sistemas sensórios eram correlacionados

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e complementares, uma idéia desafiadora para os siste-mas teóricos atomistas de seu tempo. Contudo, Husserl não entra no mérito da questão neurológica, pois não quer recair nas propostas biológicas da consciência ou da cau-salidade psíquica. Ele enfatiza a necessidade de se man-ter no âmbito puro descritivo da experiência de sensação de movimentos. Atualmente, o que se constata é que não apenas os sistemas cerebrais estão correlacionados, como também residem, em uma unidade cerebral, diferentes funções concomitantes, como atividade motora, cogniti-va e respostas sensórias efetoras.

Ainda em Husserl, a doação de significado para a ex-periência do corpo aparece implicada a uma concepção de plasticidade dos movimentos, que requerem constantes atualizações, e ao uso de ferramentas para o acesso inten-cional do mundo. A formação da espacialidade passa em 1907 pela articulação autorreferente dos atos corporais em uma experiência consciente estendida no tempo. É impossível neste ponto não associar a posição de Husserl com o verbete de percepção espacial na Enciclopédia de Ciências Cognitivas do MIT (Colby, 1999, p. 786): “Nossa experiência unitária do espaço emerge de uma diversida-de de representações espaciais estendidas no tempo”. A semelhança entre a fenomenologia do espaço e a recente ciência cognitiva é realmente inegável.

O tema da vigília autoconsciente na sensação de movi-mentos do próprio corpo ganha contornos mais complexos quando se contrastam as definições de Husserl com a de-finição contemporânea de cinestesia. Henrik H. Ehrsson, um aclamado neurocientista cognitivo de Estocolmo, esco-lheu, para sua conferência proferida no Congresso Toward a Science of Consciousness realizado em Tucson/AZ nos EUA, o título: “Two legs, two arms, one head: Who am I?” (Ehrsson, 2010). O confronto entre as duas pernas, os dois braços e uma cabeça remete exatamente ao problema da presença da autoconsciência no desempenho e na percep-ção de atos motores. Ehrsson investiga as relações entre percepção e comportamento com base em pesquisas com ilusão corpórea. Seus estudos articulam dados de correlato neural e descrição de experiência dos participantes em um contexto de tarefa experimental. O pesquisador defende a tese de integração dos sistemas sensoriais e, por conse-guinte, integração de áreas cerebrais na constituição da percepção do espaço. Os trabalhos de Ehrsson levantam, em alguma medida, a indagação sobre a importância da mediação da consciência reflexiva no desempenho motor e perceptivo em situações de ambiguidade propriocepti-va. Isto é, qual o nível de influência da autorreflexividade implícita necessária para o desempenho de ações. Nessa direção, discute o tema da intencionalidade do organis-mo em seus experimentos. A incerteza e principalmente instabilidade sobre a experiência integrada e unitária do corpo, como revelados por seus achados experimentais, levam Ehrsson a perguntar: Quem sou eu?

O pesquisador sueco representa uma linha de pes-quisa que tem procurado compreender a conexão entre

traços psicológicos e as variações na sensação de movi-mento (cinestesia). Mais especificamente, a relação entre ação, autoconsciência e intencionalidade motora. Nessas pesquisas criam-se ambientes de ação em que se geram ambiguidades perceptivas para o acompanhamento dos processos decisórios motores e autoconscientes associa-dos à tomada de posição diante das ambiguidades. Tais ambiguidades baseiam-se, em grande parte, na perturba-ção da integração de canais sensoriais.

Um exemplo de estudo é o experimento conhecido como Rubber Hand Illusion (RHI), que busca avaliar a in-tegração intermodal proprioceptiva na auto-atribuição de membros fantasmas (Botvinick & Cohen, 1998). Os pes-quisadores criam uma situação de ilusão perceptiva em que se produz uma distorção da posição manual pela esti-mulação sincrônica de uma mão verdadeira e uma mão de borracha. A partir de uma variação de condições experi-mentais Ehrsson, Spence, e Passinham (2004) evidencia-ram que a ocorrência da ilusão na tarefa RHI depende de uma estimulação sincrônica da mão verdadeira e da mão falsa. Em média, 80% dos participantes relatam a ilusão esperada pela indução da RHI, dentro de um intervalo de 15 segundos de estimulação sincrônica na mão verdadeira e na mão de borracha (Ehrsson, Holmes & Passingham, 2005). Embora a sincronicidade viso-tátil da estimula-ção seja um fator importante na produção da ilusão, não é suficiente para explicar a recalibração proprioceptiva. Tsakiris e Haggard (2005) demonstraram que o efeito da ilusão diminui ou se extingue mesmo com estimulação em sincronia, quando a postura ou a lateralidade da mão de borracha são incongruentes com a posição da mão verdadeira. Essa evidência indica que representações e expectativas prévias sobre o corpo exercem também um importante papel na propriocepção.

Sobre a integração dos canais sensoriais na percepção, Ehrsson, Holmes e Passingham (2005) demonstraram que o aumento sensível da atividade nos córtices pré-motor, ventral intra-parietal bilateral e cerebelo correspondem ao aumento gradual da intensidade da ambiguidade ou ilusão perceptiva gerada nos contextos de tarefa. Isso comprova que diferentes regiões do cérebro estão altamente integra-das na percepção e que não haveria uma prevalência de um canal sensório sobre o outro na integração perceptiva. Ou seja, já partindo das constatações de que a percepção está integrada, tanto na cinestesia quanto na propriocepção conceitual e unitária do corpo, busca-se avaliar a reação do corpo diante da dissociação da integração perceptiva.

As perguntas lançadas remetem aos comportamentos observados no laboratório. Isto é, diante de ambiguidades perceptivas prevalece o padrão intencional motor previa-mente aferido, independente da distorção? Ou prevalece o ajuste da ação de acordo com a mediação autoconscien-te da dissociação perceptiva durante o ato? Tais achados sobre plasticidade da atualização proprioceptiva podem auxiliar no tratamento ou reabilitação individualizada de sujeitos, que por alguma razão possuam prejuízo na in-

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tegração proprioceptiva do corpo (ex. amputados, comor-bidades de auto-imagem em transtornos alimentares, ou mesmo esquizofrenia). Essas perguntas estão sendo inves-tigadas no Laboratório de Fenomenologia Experimental e Cognição da UFRGS, através de dois paradigmas expe-rimentais de ilusão perceptiva em tarefas experimentais com seres humanos.

Considerações finais

De modo direto ou indireto, a problemática da con-comitância autoconsciente na percepção de movimentos sustenta o mesmo interesse teórico levantado por Husserl há mais de um século atrás. A pergunta continua sendo a mesma: como se constitui e se desenvolve a percepção? Embora os caminhos de investigação tenham seguido por rumos diferentes, as nuanças da percepção continuam a despertar interesse, como bem atestam os estudos recen-tes do pesquisador H.H. Ehrsson. As divergências entre Husserl e os psicólogos experimentais da época, repre-sentados por Müller, foram captadas com elegância pelo psicometrista C. E. Spearman, em sua autobiografia, refe-rindo-se à visita que fez à Universidade de Göttingen em 1906. Spearman discorreu sobre Husserl, após descrever suas impressões das aulas de Müller:

Na mesma universidade, a de Göttingen, eu tive a vantagem adicional de assistir as palestras de Husserl, em seu modo, um grande homem como G.E. Müller. Mas rumos seguidos por eles os levaram a mundos à parte. Na verdade, a única coisa que parecia comum aos dois era a inabilidade de um apreciar o outro! Para Müller, as análises refinadas de Husserl pareciam ser um renascimento da idade média (como, de fato, elas amplamente foram, mas não necessariamente como uma desvantagem). Para Husserl, as tentativas de Mül-ler em lidar com os problemas psicológicos por meio de experimentação era como tentar desvendar rendas com um tridente. Ainda assim, o procedimento de Hus-serl – como ele o descreveu para mim – apenas diferia daquele usado pelo melhor experimentalista, lidando com problemas similares, em que pesa Husserl não ter ninguém além dele mesmo como sujeito experimental (Spearman, 1930 citado por Spiegelberg, 1972, p. 35).

Mesmo trabalhando com problemas similares, como atesta Spearman na citação, Husserl mantinha uma forte preocupação em definir um programa filosófico sólido o suficiente para se afastar das proposições empíricas em-basadas em um tipo de racionalismo que ele discordava. O projeto que Husserl seguiu foi o de uma filosofia pri-meira como refundação para as ciências naturais. Nesse sentido, seu desentendimento praticamente generalizado com a psicologia empírica da época pode ser compreen-dido a partir do panorama dessa refundação.

O tipo de confronto entre apologistas e detratores da ciência natural parece ser reeditado de tempos em tem-pos, especialmente sob o argumento da distinção en-tre ciências humanas e ciências naturais. Tal discussão não escapa à literatura fenomenológica. Contudo, com os avanços tecnológicos e a incorporação da descrição de ex-periência como heurística em protocolos experimentais, tal distinção parece perder espaço para o debate mais profícuo em torno dos acréscimos que uma teoria pode sugerir a outra. Este novo horizonte também se situa na revisão da definição clássica de naturalismo, que vem sendo ressignificada pelas mudanças recentes na inves-tigação científica (Zahavi, 2009).

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Thiago Gomes de Castro - Mestre em Psicologia (UFRGS) e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS. Pesquisador do Laboratório de Fenomenologia Experimental e Cognição - LaFEC. Endereço Institucional: IP/UFRGS, Rua Ramiro Barcelos, 2600 - Sala 123. CEP 90035.003. Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected] William Barbosa Gomes - PhD em Psicologia pela Southern Illinois University e com estágios de pós-doutoramento na Southern Illinois University e na Universidade de Michigan, fundador e professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS. Coordenador do Laboratório de Fenomenologia Experimental e Cognição - LaFEC. Endereço Institucional: IP/UFRGS, Rua Ramiro Barcelos, 2600 - Sala 123. CEP 90035.003. Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected]

Recebido em 16.06.2011Aceito em 23.09.11

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A Crítica da Fenomenologia de Husserl à Visão Positivista nas Ciências Humanas

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The Critique of Husserl’s Phenomenology the Positivist View in Humanities

La Crítica de la Fenomenología de Husserl la Visión Positivista en Humanidades

Carlos diógenes CorTes Tourinho

Resumo: O artigo concentra-se em torno da especificidade da atitude fenomenológica, bem como da metodologia adotada pela fenomenologia de Edmund Husserl no começo do século XX. Tal atitude consiste em uma atitude reflexiva e analítica, a partir da qual se busca fundamentalmente elucidar, determinar e distinguir o sentido íntimo das coisas. Já o método fenomenológico é, por sua vez, um método de evidenciação dos fenômenos, cuja estratégia consiste no exercício da suspensão de juízo em rela-ção à posição de existência das coisas, viabilizando a recuperação destas em sua pura significação. Contrastando a atitude feno-menológica com o que Husserl chamou de “atitude natural” (atitude na qual se encontra mergulhada a consciência das ciências positivas), o artigo abordará, em seguida, a crítica da fenomenologia à perspectiva positivista nas Ciências Humanas.Palavras-chave: Fenomenologia; Ciências humanas; Edmund Husserl; Positivismo.

Abstract: The present paper focuses around the specificity of the phenomenological attitude and the methodological strategy adopted by the phenomenology of Edmund Husserl in the Twentieth Century. Such attitude is reflective and analitical, from which one seeks to fundamentally elucidate, identify and distinguish the sense of things. Impelled by the slogan of the “return to the things itself”, the phenomenology of Husserl adopts, through a methodological point of view, the call “phenomenological reduction”, that is, the suspension of the judgement in relation to the natural world, to recover it, in the consciousness, in an indubitable way, in his pure meaning. Contrasting the attitude phenomenological with what Husserl called “natural attitude”, the paper addressed then the critique of phenomenology to perspective positivist in humanities.Keywords: Phenomenology; Humanities; Edmund Husserl; Positivism.

Resumen: El presente artículo tiene como objetivo abordar la especificidad de la actitud fenomenológica, así como de la metodo-logía adoptada por la fenomenología de Edmund Husserl a principios del siglo XX. Esta actitud consiste en una actitud reflexiva y analítica, de la cual se busca aclarar, identificar y distinguir el significado íntimo de las cosas. El método fenomenológico es un método de aclaración de los fenómenos, cuya estrategia consiste en el ejercicio de la suspensión del juicio en relación la po-sición de la existencia de las cosas, lo que permite la recuperación de estos en su significación pura. Por último, se abordará la crítica de la fenomenología la concepción positivista de las humanidades.Palabras-clave: Fenomenología; Humanidades; Edmund Husserl; Positivismo.

introdução

O presente artigo concentra-se em torno da tarefa de aclarar a especificidade da atitude fenomenológica (en-quanto modo de consideração do mundo), bem como da metodologia adotada pela fenomenologia de Edmund Husserl para o alcance de um grau máximo de eviden-ciação dos fenômenos. Tal atitude consiste, conforme será destacado – em uma atitude reflexiva e analítica, a partir da qual se busca, nos termos das “Cinco Lições” de Husserl – em fundamentalmente elucidar, determinar e distinguir o sentido íntimo das coisas (a coisa em sua “doação originária”, revelada “em pessoa”). Já o método fenomenológico será, por sua vez, um método de eviden-ciação dos fenômenos, cuja estratégia consiste, grosso modo, no exercício da suspensão de juízo em relação à posição de existência das coisas, viabilizando a recupe-ração destas em sua pura significação.

Contrastando a atitude fenomenológica com o que Husserl chamou de “atitude natural” (modo de orientação no qual se encontra mergulhada a consciência das ciências positivas), o artigo abordará, em seguida, a crítica da feno-menologia à perspectiva positivista nas Ciências Humanas. Enquanto o programa positivista deixa-nos, para o estudo do homem, confinados, do ponto de vista metodológico, a uma lógica indutiva, segundo a qual conhecer consiste em descrever, pela observação positiva dos fatos, a regularida-de desses fatos, a abordagem fenomenológica nas ciências humanas convida-nos para uma clarificação do que há de mais fundamental na coisa sobre a qual retornamos, deslo-cando-nos a atenção dos fatos contingentes para o seu sen-tido originário indissociável de uma intencionalidade. Tal abordagem consolida, com isso, uma espécie de “conver-são filosófica” que nos faz passar de uma visão ingênua do mundo para um modo de consideração das coisas, no qual o mundo se revela em sua totalidade como “fenômeno”.

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1. atitude fenomenológica e o método de evidencia-ção na fenomenologia

Movido por seu projeto filosófico, Husserl anuncia-nos explicitamente – em A Idéia da Fenomenologia (Die Idee der Phänomenologie), núcleo das “Cinco Lições” proferi-das em abril-maio de 1907 – que, com a fenomenologia, deparamo-nos com a proposta de uma “nova atitude” e de um “novo método”. Deparamo-nos primeiramente com uma ciência, com uma conexão de disciplinas científi-cas. Mas, para Husserl, acima de tudo, por “fenomeno-logia” designamos “...um método e uma atitude de pen-samento: a atitude de pensamento especificamente filo-sófica e o método especificamente filosófico” (Husserl, 1907/1997, p. 45).

A atitude fenomenológica consiste em uma atitude reflexiva e analítica, a partir da qual se busca funda-mentalmente elucidar, determinar e distinguir o senti-do íntimo das coisas, a coisa em sua “doação originária”, tal como se mostra à consciência. Trata-se de descrevê-la enquanto objeto de pensamento. Analisar o seu sentido atualizado no ato de pensar, explicitando intuitivamen-te as significações que se encontram ali virtualmente implicadas em cogitos inatuais, bem como os seus dife-rentes modos de aparecimento na própria consciência intencional. Explorar a riqueza deste universo de signifi-cações que a coisa – enquanto um cogitatum – nos revela no ato intencional é o que é próprio da atitude fenome-nológica enquanto um “discernimento reflexivo” levado a cabo com rigor.

A especificidade de tal atitude faz da fenomenologia a “ciência clarificadora” por excelência. Já o método feno-menológico será, por sua vez, um método de evidencia-ção plena dos fenômenos. Também será, para Husserl, o método especificamente filosófico, cuja estratégia maior consiste, para o alcance de um grau máximo de evidên-cia, no exercício da suspensão de juízo em relação à po-sição de existência das coisas. Tal exercício viabiliza, assim, a chamada “redução fenomenológica” e, com ela, a recuperação das coisas em sua pura significação, tal como se revelam (ou se mostram), enquanto objetos de pensamento, na consciência intencional.

O ponto de partida de Husserl é o que ele próprio de-finiu, no § 27 de Idéias I, como sendo a “Tese do Mundo” (ou mais precisamente, a “Tese da Orientação Natural”), isto é, a tese segundo a qual o que chamamos de “mun-do” encontra-se aí, diante de nós, tudo isto que, da ma-neira a mais imediata e direta, nos é revelado através da experiência sensível: as coisas situadas em uma dimen-são espaço-temporal, cada uma das quais com as suas propriedades, relações, etc. Trata-se do mundo que nos cerca, constituído de entes mundanos, frente aos quais podemos tomar atitudes variadas, quer nos ocupemos com eles quer não. Vivenciamos, portanto, a todo ins-tante, a chamada “Tese do Mundo”. Mas, se além da vi-vência dessa tese, fazemos uso da mesma, passamos, en-

tão, a exercer o que Husserl chamou de “atitude natural” (natürliche Einstellung).

Na atitude natural, atribuo a mim um corpo em meio a outros corpos e me insiro no mundo através da experi-ência sensível. Admito, em tal atitude, sem que haja, ao menos, um exame crítico, a existência do mundo (con-cebido como “realidade factual”), bem como a possibi-lidade de conhecê-lo e, com isso, adoto, de certo modo, um “realismo ingênuo”. Daí Husserl afirmar, em seu im-portante artigo de 1911, intitulado A filosofia como ciên-cia rigorosa, que: “Toda ciência da natureza se comporta de maneira ingênua...a natureza tomada como objeto de suas investigações encontra-se para ela simplesmente aí” (Husserl, 1911/1989, p. 25).

Neste sentido, a tarefa crít ica da Teoria do Conhecimento de promover uma investigação acerca do que torna possível a relação de correspondência entre as vivências cognoscitivas e as coisas a serem conhecidas encontra-se desapercebida na atitude natural. Dá-se às costas para o chamado “enigma do conhecimento trans-cendente”, para o que, classicamente, passou-se a chamar pelo nome de “problema da correspondência”. Afinal, o que torna possível tal conhecimento do mundo? Em que ele se funda? Quais são os seus limites? “Como pode o co-nhecimento estar certo da sua consonância com as coisas que existem em si, de as ‘atingir’?” (Husserl, 1907/1997, p. 103). Dá-se, portanto, na atitude natural, a possibilidade do conhecimento do mundo (entendido como “realidade factual”) como algo certo e inquestionável. Nos termos de Husserl: “Óbvia é, para o pensamento natural, a pos-sibilidade do conhecimento...não há nenhum ensejo para lançar a questão da possibilidade do conhecimento em geral” (Husserl, 1907/1997, p. 41). Para Husserl, tanto a consciência do senso comum quanto a consciência das ciências ditas “positivas” encontram-se, ainda que de mo-dos distintos, mergulhadas na atitude natural, cujo exer-cício expressa a relação entre uma consciência espontâ-nea (empírica ou psicológica) e o mundo natural, revelado empiricamente para essa consciência em sua facticidade. Absorvida por esse realismo ingênuo, tal consciência na-tural – tanto do senso comum quanto das ciências po-sitivas – não se aperceberá do enigma do conhecimento transcendente em torno do qual gira a tarefa crítica da investigação promovida pela Teoria do Conhecimento: afinal, “como pode o conhecimento ir além de si mesmo, como pode ele atingir um ser que não se encontra no âm-bito da consciência?” (Husserl, 1907/1997, p. 105).

Para Husserl, se torna obscuro como pode o conhe-cimento atingir o que é transcendente, aquilo que não é, em seus termos, dado em pessoa, mas “trans-intentado”. Porém, nas “Cinco Lições”, Husserl alerta-nos para o fato de que se o conhecimento encerra um problema, não sig-nifica dizer, com isso, que ele seja em si próprio proble-mático. Em outros termos, admitir que haja no conheci-mento um enigma, não nos obriga a afirmar que todo o conhecimento é enigmático. Husserl deixa-nos claro en-

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tão que, na esfera do conhecimento objetivo, aquilo que é enigmático, que nos deixa perplexos sobre a possibilidade de conhecer é propriamente a sua “transcendência”. Tal constatação coloca-nos, conforme veremos mais adiante, frente a relação entre mundo interior e mundo exterior, entre o “imanente” e o “transcendente”.

Fiel ao seu projeto filosófico de constituição da filoso-fia como uma “Ciência de Rigor”, Husserl sabe que as tais evidências apodíticas – necessárias para a fundamenta-ção da própria filosofia – não poderiam ser extraídas do plano empírico-natural, pois, por mais perfeita que seja uma percepção empírica, ela será sempre a percepção de um ponto de vista e, enquanto tal, somente poderá revelar “aspectos” ou “perspectivas” – admiravelmente conver-gentes, mas continuamente diversas e incompletas – da coisa percebida (perceptum) que, por sua vez, não será re-velada em sua plenitude, mas apenas parcialmente, “por um de seus lados”. Ainda assim, a crença acerca do que percebemos empiricamente vai muito além daquilo que a percepção empírica efetivamente nos revela. Neste sen-tido, pode-se dizer que a coisa vista empiricamente será sempre um “misto de visto e não visto”. Portanto, toda evidência extraída do plano empírico-natural, no qual a consciência empírica se relaciona com as coisas munda-nas, será sempre uma evidência perspectivista (ou exis-tencial), ou seja, uma evidência parcial.

Dos fatos não podemos extrair “evidências absolutas”. A coisa e o mundo em geral não são apodíticos, pois não excluem a possibilidade de que duvidemos deles e, por-tanto, não excluem a possibilidade de sua não existência. Eis um segundo motivo do porque não podermos, na visão de Husserl, extrair evidências plenas de nossa percepção empírica do mundo, pois, a julgar pelo o que a experiên-cia sensível nos revela do mundo, nós jamais poderíamos eliminar, por completo, a possibilidade de duvidar da po-sição de existência das coisas que se nos apresentam e, neste sentido, estaríamos sempre prestes a corrigir as nos-sas percepções do que havia sido estabelecido com base na experiência sensível. “É sempre possível que o curso ulterior da experiência nos obrigue a abandonar o que já se tinha estabelecido sob a autoridade da experiência” (Husserl, 1913/1950, p. 150). Portanto, para Husserl, com base no ente mundano, seria impossível elaborar uma fi-losofia que se pudesse apresentar como ciência rigorosa.

Com vistas a viabilizar tal projeto filosófico, surgia, então, para Husserl, o desafio de encontrar uma estratégia metodológica que renunciasse, sem negar a existência do mundo tal como um cético, ao modo de consideração do senso comum e das ciências positivas acerca do mundo, modo esse ingênuo e espontâneo por meio do qual as coi-sas somente se revelariam, conforme vimos, parcialmen-te. Em outros termos, o desafio de Husserl consistiria em encontrar um método cujo exercício tornasse viável uma operação capaz de garantir o aparecimento das coisas em sua “inteireza”, em sua doação originária, revelando-se na consciência em uma evidenciação plena ou “apodítica”.

Afinal, conforme ficará cada vez mais claro, tudo aquilo que não tiver o caráter de apresentação imediata, só rea-lizável na consciência, não pode ser “apodítico”.

Husserl opta, então, como estratégia metodológica para o alcance das evidências apodíticas, pelo exercício da epoché, isto é, pelo exercício da “suspensão de juízo” em relação à posição de existência das coisas. Husserl re-cupera, já nas “Cinco Lições” e, posteriormente, em Idéias I, o conceito de epoché do ceticismo antigo, porém, para pensá-lo não como um modus vivendi (como um princípio ético a ser praticado como “hábito virtuoso”) – conforme propunha o ceticismo pirrônico no período Helênico – mas sim, como um recurso metodológico. Com o exercício da epoché, abstemo-nos de tecer considerações acerca da existência ou não existência das coisas mundanas. Nos termos de Husserl, promovo a “colocação da atitude na-tural entre parênteses”, a facticidade do mundo fica “fora de circuito” (Husserl, 1913/1950, p. 96). Ao suspender o juízo em relação à facticidade do mundo, eu não deixo de vivenciar a “tese do mundo”, no entanto, como diz o § 31 de Idéias I, não faço mais uso dessa tese, procuro mantê-la fora de circuito: “...a tese é um vivido, mas dele não fazemos ‘nenhum uso’...” (Husserl, 1913/1950, p. 99). Tal renúncia implica, de certo modo, em uma espécie de “conversão filosófica”, por meio da qual adotamos um novo modo de consideração do mundo.

A serviço desta tal reflexividade radical própria da atitude fenomenológica, a epoché fenomenológica – en-quanto um “instrumento de depuração do fenômeno” – proporcionará, em seu exercício generalizado, o des-locamento da atenção, inicialmente voltada para os fa-tos contingentes do mundo natural, para o domínio de uma subjetividade transcendental, “...domínio absoluta-mente autônomo do ser puramente subjetivo...” (Husserl, 1924/1970, p. 321), dentro da qual e a partir da qual os “fenômenos” – enquanto idealidades puras – se revela-rão como “evidências absolutas” para uma consciência transcendental, dotada da capacidade de ver verdadeira-mente estes fenômenos tal como se apresentam em sua plena evidência. Trata-se, como o próprio Husserl insiste em ressaltar, em diferentes momentos de sua obra, de um “puro ver” (reinen Schauen) das coisas. Ainda nos termos do § 35 de Idéias I, trata-se “...não exatamente e meramen-te do olhar físico, mas do ‘olhar do espírito’...” (Husserl, 1913/1950, p. 113). Nas “Cinco Lições”, Husserl nos diz: “A fenomenologia procede elucidando visualmente, deter-minando e distinguindo o sentido...Mas tudo no puro ver” (Husserl, 1907/1997, p. 87). Em suma, a fenomenologia prescindirá de tecer considerações acerca da posição de existência das coisas mundanas para direcionar, então, a atenção para os “fenômenos”, tal como se revelam (ou como se mostram), em sua pureza irrefutável, na auto-reflexão da consciência transcendental. Nos termos de Husserl, atingimos assim o “ego cogito” verdadeiramen-te radical, somente inteligível na sua explicitação plena “ego-cogito-cogitatum”.

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Portanto, de um lado, deparamo-nos com um modo de consideração das coisas a partir do qual o mundo se reve-la para a nossa consciência espontânea como o domínio empírico-natural dos fatos, do que se encontra submeti-do a uma dimensão espaço-temporal. Trata-se do modo de consideração do mundo próprio das ciências positivas em geral. Paralelamente, como um recurso metodológico para o alcance das evidências apodíticas, o exercício ge-neralizado da epoché e, conseqüentemente, da redução fenomenológica, promoverá o salto para o modo de con-sideração transcendental (ou fenomenológico) das coisas, fazendo agora com que o mundo se revele, na e para a consciência pura (ou transcendental), como um “hori-zonte de sentidos”. Se esta consciência pura não pode ser tomada em termos de dados empíricos, cabe-nos apenas concebê-la a partir de sua relação intencional com o seu objeto que, em sua versão reduzida, enquanto um objeto de pensamento, nada mais é do que um conteúdo inten-cional da consciência.

Trata-se, com tal redução, de fazer o mundo reapa-recer na consciência como um horizonte de idealidades meramente significativas, que se revelam como um dado absoluto e imediato para uma tal consciência pura que o apreende e o constitui intuitivamente. A mesma consci-ência que intuitivamente apreende o objeto em sua ver-são reduzida, isto é, como “fenômeno puro”, é também responsável pela constituição desse mesmo objeto, agora atualizado no pensamento como uma unidade de senti-do. O objeto, precisamente porque inconcebível sem ser pensado, enquanto um cogitatum, exige uma doação de sentido que só pode vir através dos atos intencionais da consciência, isto é, as unidades de sentido pressupõem uma consciência doadora de sentido. Sendo assim, dizer que toda consciência é consciência de alguma coisa é di-zer que não há cogito sem cogitatum.

Portanto, deparamo-nos com duas atitudes – a “ati-tude natural” e a “atitude fenomenológica” – que, por sua vez, colocam-nos frente a frente com o que Husserl considerou, no § 76 de Idéias I, a mais radical de todas as diferenciações ontológicas: o ser como ser “transcen-dente” e o ser como consciência, ou ser transcendental (Husserl, 1913/1950, p. 243). Tais atitudes consistem em duas orientações ou dois modos distintos de considera-ção das coisas. Na primeira dessas orientações, o mun-do exterior que transcende a consciência, mundo para o qual nos encontramos naturalmente orientados, nos é revelado em sua facticidade (em termos tomistas, dirí-amos sob o modo de existência de “coisa natural”/ esse naturale). Eis a idéia do ser como “ser transcendente”, fora da consciência. Já na orientação fenomenológica, o mundo se revela, na autêntica imanência da consciên-cia transcendental, em sua pura significação, o que é o mesmo que dizer que o mundo se revela, em sua totali-dade, como “fenômeno” (como um dado imanente), in-existindo sob o modo de “coisa pensada” (cogitatum) na consciência. As referidas atitudes impõe-nos, portanto,

respectivamente, duas modalidades radicais de ser: o ser como “transcendente” e o ser como consciência (ou ser transcendental). A fenomenologia transcendental será, então, uma fenomenologia da consciência consti-tuinte (pode-se dizer que, em Husserl, “ser evidente é ser constituído”). Exercer a epoché é reduzir à consciên-cia transcendental. Tal redução do objeto à consciência transcendental, na medida em que não desfaz a relação entre sujeito e objeto, revela uma dimensão nova dessa relação, impedindo que a verdadeira e autêntica objeti-vidade desapareça.

2. a Crítica da fenomenologia às Ciências positivas

Quando pensamos a crítica da fenomenologia às ciên-cias positivas, pensamos, então, em dois modos distintos de consideração do mundo. Tal crítica se faz notar, par-ticularmente, quando pensamos a relação da fenomeno-logia com as ciências humanas. Para Husserl, não pode-mos inferir, como pretendem as correntes positivistas, uma lei geral a partir da observação de casos particula-res e da constatação de sua regularidade (afinal, dos fa-tos não podemos extrair “evidências absolutas”, a coisa e o mundo em geral não são apodíticos). Com a fenome-nologia, deparamo-nos, de antemão, com uma eidética, isto é, com uma “doutrina de essências”. Nos termos de Husserl: “...a fenomenologia pode, enquanto ciência, não ser senão uma investigação de essências...” (Husserl, 1911/1989, p. 53). Para Husserl, não há ciência que não comece por estabelecer um quadro de essências obtidas pela técnica de variação imaginária dos objetos. Antes de se fazer física, faz-se necessário refletir sobre o que seja o “fato físico” em sua essência. O próprio Husserl salien-ta, em sua Crise das Ciências Européias, que Galileu já havia estabelecido uma eidética da coisa física, de modo que não poderia obter a lei da queda dos corpos induzin-do o universal a partir do diverso da experiência, mas somente pela “intuição de essência” do corpo físico. O mesmo valeria para as demais ciências. Da definição do eidos apreendido pela intuição originária, se poderá tirar as conclusões metodológicas que orientarão a pesquisa empírica. A cada ciência empírica corresponde uma ci-ência eidética concernente ao eidos regional dos objetos adotados para investigação (na física, uma eidética da “coisa física”; na psicologia, uma eidética do “fato psico-lógico”, e assim por diante).

A “essência” deve ser entendida em Husserl não como a essência de uma “forma pura” que subsiste por si mes-ma (tal como em um realismo platônico), independente-mente do modo como se mostra à consciência intencio-nal, mas sim como aquilo que é retido no ato intencional desta consciência por meio da redução fenomenológica. Pode-se entender esta essência como aquilo que é retido no pensamento pela técnica de variação imaginária dos objetos: atenho-me, ao exercer a redução fenomenológi-

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ca, ao núcleo invariante da coisa, isto é, ao que persiste na coisa pensada mesmo diante de todas as variações as quais a submeto arbitrariamente em minha imaginação1. A variação arbitrária de um objeto qualquer na imagina-ção permite-nos notar que tal arbitrariedade não pode ser completa, uma vez que há condições necessárias sem as quais as “variações” deixam de ser variações daquilo que se intenciona no pensamento. Cada uma dessas possibili-dades ou desses “exemplares” que se perfilam – “...de uma maneira inteiramente livre, ao sabor da nossa fantasia...” (Husserl, 1931, p. 59) – na imaginação somente poderá variar enquanto variação daquilo que se intenciona em um cogito atual, na medida em que necessariamente tais variações compartilham algo de “invariante”, coincidindo em relação ao caráter necessário do que é intencionado no próprio pensamento. Nos termos de Husserl, no § 98 de Lógica Formal e Lógica Transcendental, tratam-se de “divergências que se prestam à coincidência” (Husserl, 1929/1965, p. 332). Trata-se, portanto, de uma “condição necessária” sem a qual não poderíamos exercer as refe-ridas variações, sem a qual sequer poderíamos conside-rar no pensamento um determinado objeto intencionado como tal. Tal “núcleo invariante” do cogitatum – o caráter necessário do objeto idealmente considerado – define pre-cisamente a “essência” (o que Husserl chama, no § 98 da referida obra, de “forma ôntica essencial” ou “forma apri-órica” (Husserl, 1929/1965, p. 332) daquilo que se mostra na e para a consciência intencional, revelando-se, portan-to, em sua dimensão originária na própria intuição vivi-da. Eis o que Husserl denominou de “intuição de essên-cias” (Wesenschau). No § 34 de Meditações Cartesianas, Husserl descreve-nos novamente a dinâmica do exercí-cio da variação imaginária dos objetos na consciência, afirmando-nos que tal exercício permite-nos deslocar a atenção das variações as quais submeto arbitrariamente o objeto intencionado para a sua “generalidade essencial” e absoluta, generalidade essencialmente necessária para qualquer caso particular desse mesmo objeto (Husserl, 1931, § 34, pp. 59/60).

Tal modo de conhecimento se torna uma peça deci-siva em uma abordagem fenomenológica das ciências do homem. Adotando, por exemplo, tal abordagem na so-ciologia, se quisermos estudar a existência de uma ins-tituição em um determinado grupo social, sua gênese histórica e o seu papel atual na sociedade, faz-se neces-sário definir, primeiramente, pela variação imaginária, o que seja esta instituição. Se tomarmos a sociologia de Durkheim como exemplo, constataremos que a mesma assimila a vida religiosa à experiência do sagrado, afir-mando-nos que o sagrado tem a sua origem no totemis-mo, cuja origem resulta, por sua vez, de uma sublimação

1 Husserl menciona-nos a técnica de variação imaginária dos objetos na consciência em alguns momentos de sua obra. Sobre a referida técnica, o leitor poderá consultar (Logique Formelle et Logique Transcendantale, § 98, p. 332; Méditations Cartésiennes, § 34, pp. 59/60).

do social. No entanto, é exatamente neste ponto que uma visada fenomenológica da sociologia poderia promover os seguintes questionamentos: a experiência do sagrado constitui a essência da vida religiosa? Não seria possível conceber (por variações imaginárias) uma religião que não se apoiasse sobre esta prática do sagrado? Enfim, o que significa o “sagrado” propriamente dito? Ao invés de inferir leis gerais a partir da observação de casos particu-lares e da descrição da regularidade desses casos, confor-me propõe, do ponto de vista metodológico, o programa positivista, a atitude fenomenológica concentra-se – em um processo inverso aquele adotado pelas ciências po-sitivas – na descrição (ou análise) de essências. Nos ter-mos de Husserl, trata-se, com a atitude fenomenológica, de um processo dinâmico, de uma atitude reflexiva e analítica, cujo intuito central passa a ser o de promover a elucidação do sentido originário que a coisa expressa, em sua versão reduzida, independentemente da sua po-sição de existência.

Engana-se aquele que pensa que, com a estratégia metodológica adotada pela fenomenologia, Husserl es-taria negando a existência do mundo. Antes sim, esta-ria renunciando a um modo ingênuo de consideração do mesmo, para viabilizar, com o exercício da redução fenomenológica, o acesso a um modo transcendental de consideração do mundo. Em sua versão reduzida, o mundo se abriria, então, enquanto campo fenomenal, na e para a consciência intencional como um “hori-zonte de sentidos”. Sem negar a existência do mundo factual, renunciamos, pela epoché, à ingenuidade da atitude natural, para reter, então, a “alma do mundo”, o mundo na sua pura significação. A redução fenome-nológica faz reaparecer, na própria camada intencional do vivido, a verdadeira objetividade pela qual o obje-to intencionado é, enquanto conteúdo intencional do pensamento, constituído e apreendido intuitivamente. Daí o próprio Husserl dizer que se por “positivismo” entendemos o esforço de fundar as ciências sobre o que é suscetível de ser conhecido de modo originário, nós é quem somos os verdadeiros positivistas! (Husserl, 1913/1950, p. 29). Se as ciências positivas não deixam de conceber a relação entre subjetivo e objetivo em termos da dicotomia “interioridade” / “exterioridade”, considerando o objetivo como algo que nos remete sem-pre para uma realidade exterior e independente, para o que transcende a própria “vivência do mundo”, a re-dução fenomenológica permite-nos, ao nos lançar para o modo transcendental de consideração do mundo, re-cuperar a autêntica objetividade na própria subjetivida-de transcendental – domínio último e apoditicamente certo sobre o qual deve ser, segundo Husserl, fundada toda e qualquer filosofia radical – unindo, com isso, o objetivo e o subjetivo. Trata-se, nos termos de Husserl, de “...uma exterioridade objetiva na pura interioridade” (Husserl, 1929/1992, p. 11), trata-se de uma “autêntica objetividade imanente”.

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Considerações finais

A adoção do programa positivista nas ciências huma-nas implica, ao fazer uso da Tese do Mundo, ao mergulhar a consciência na atitude natural, na aceitação de um rea-lismo ingênuo, desconsiderando, neste sentido, os proble-mas filosóficos suscitados pela Teoria do Conhecimento. Este mesmo programa insiste, nos estudos sobre o ho-mem (seja em Sociologia, seja em Psicologia), em extrair leis universais a partir da observação sistematizada do comportamento humano, desenvolvendo um estudo pe-riférico do homem em relação ao meio no qual se insere. Particularmente, em Psicologia, a aceitação do programa positivista começa a se consolidar no último quarto do século XIX por meio de uma aliança da ciência psicoló-gica com o método experimental das ciências naturais. Tal aliança fez, no mesmo período, com que os sistemas em psicologia confundissem, muitas das vezes, na aceita-ção de um paralelismo psicofísico, as leis do pensamento com as leis causais da natureza, confundindo o “sujeito do conhecimento” com o “sujeito psicológico”, conforme o próprio Husserl denunciou em sua crítica ao psicolo-gismo nos Prolegômenos das Investigações Lógicas. Tal programa positivista deixa-nos, para o estudo do homem, confinados, do ponto de vista metodológico, a uma lógi-ca indutiva, segundo a qual conhecer consiste em des-crever, pela observação positiva dos fatos, a regularida-de desses fatos, buscando, a partir de casos particulares, inferir uma “lei geral”. Para Husserl, tal lei inferida nada mais é do que uma “regra empírica”, cuja validade é me-ramente circunstancial e, portanto, uma regra que care-ce de exatidão absoluta. Ao se lançar sobre os fatos por meio de uma observação sistematizada, no exercício da indução, o positivista desconhece o quadro de essências acerca dos fatos que investiga.

Já a abordagem fenomenológica nas ciências huma-nas convida-nos a exercer justamente uma reflexivida-de levada a cabo com rigor e discernimento acerca des-te quadro de essências estabelecido por variações ima-ginárias, a vivência da intuição do que há de originário (ou de invariante) naquilo que se toma como objeto de investigação. Convida-nos a uma atitude reflexiva e ana-lítica acerca do sentido íntimo daquilo que se investiga – tanto aquele que se atualiza no pensamento quanto as significações que se encontram ali virtualmente presen-tes, bem como os seus diferentes modos de aparecimento na própria camada intencional do vivido. Convida-nos, portanto, para uma clarificação do que há de mais fun-damental na coisa sobre a qual retornamos, deslocando-

nos a atenção dos fatos contingentes para o seu sentido originário indissociável de uma intencionalidade, con-solidando, com isso, uma espécie de “conversão filosófi-ca” que nos faz passar de uma visão ingênua do mundo para o “puro ver” das coisas, no qual o mundo se revela em sua totalidade como “fenômeno”. Eis o convite genu-íno da fenomenologia às ciências humanas.

Referências

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Husserl, E. (1950). Idées directrices pour une phénoménologie et une philosophie phénoménologique pures (Tome Premier). Paris: Gallimard (Original de 1913).

Husserl, E. (1965). Logique Formelle et Logique Transcendantale. Paris: PUF (Original de 1929).

Husserl, E. (1970). Philosophie première 1923-1924, 1: Histoire critique des idées. Appendice. Paris: PUF (Original de 1924).

Husserl, E. (1989). La philosophie comme science rigoureuse. Paris: PUF (Original de 1911).

Husserl, E. (1992). Conferências de Paris. Lisboa: Edições 70 (Original de 1929).

Husserl, E. (1997). L idée de la phénoménologie. Cinq leçons. Paris: PUF (Original de 1907).

Carlos Diógenes Côrtes Tourinho - Formado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre e Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professor de Filosofia da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NUFIPE/ UFF) e dos GTs de Filosofia Francesa Contemporânea e de Fenomenologia da ANPOF. Organizador da Coleção Encontros com a Filosofia (EDUFF/ Booklink) e da Série Ensaios sobre o Pensamento Contemporâneo (Editora Proclama). Recentemente, organizou o primeiro livro do GT de Fenomenologia da ANPOF: Fenomenologia: influxos e dissidências (Booklink, 2011). Endereço Institucional: Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação/ Departamento de Fundamentos Pedagógicos (SFP). Campus do Gragoatá (São Domingos). CEP 24020-200. Rio de Janeiro/RJ. E-mail: [email protected]

Recebido em 12.07.11Aceito em 10.12.11

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Paul Tillich s Phenomenology and Religious Experience

Fenomenología y Experiencia Religiosa en Paul Tillich

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Resumo: O objetivo deste artigo é explicitar a presença da fenomenologia filosófica no pensamento filosófico e teológico de Paul Tillich, tanto na questão metodológica quanto na investigação do fenômeno religioso. Apesar de Paul Tillich ter tido uma meto-dologia própria em sua teologia - tal como o método de correlação e do círculo teológico – também se encontra vários comentá-rios sobre a fenomenologia em suas principais obras e a sua aplicabilidade na investigação da experiência religiosa. A fenome-nologia que se afirma estar presente no pensamento de Tillich não é nem uma fenomenologia “pura” – de acordo com o concei-to de Edmund Husserl, nem uma fenomenologia hermenêutica concebida por Martin Heidegger, apesar de ter sido influenciado por ambos os autores –, mas uma fenomenologia crítica, como sugerida pelo teólogo, que seria a união de ambos os elementos: o intuitivo-descritivo (fenomenologia clássica) e o crítico-existencial. Neste sentido, tem-se como ponto de partida da análise os comentários feitos por Tillich sobre a fenomenologia, entendendo o que o teólogo quis dizer sobre esta metodologia e destacan-do a relevância dessas observações para a construção de sua teologia e filosofia.Palavras-chave: Fenomenologia; Experiência religiosa; Paul Tillich.

Abstract: The aim of this text is to point out the presence of the philosophical phenomenology in Paul Tillich’s philosophical and theological thought, either concerning the methodological issue or the religious phenomenon investigation. In spite of Paul Tillich having had a methodology of his own in his theology – such as the correlation method and the theological circle – we can also find in his main works comments about phenomenology and its applicability in the investigation of the religious ex-perience. The phenomenology that we assert to be present in Tillich’s thought is neither a “pure” phenomenology – according to Edmund Husserl’s concept nor a hermeneutic phenomenology inspired by Martin Heidegger, in spite of having been influenced by both authors –, but a critical phenomenology, as suggested by the theologian, that would be the union of both elements: the intuitive-descriptive (phenomenology classical) and the critical-existencial. In this sense, we shall start from the comments made by Tillich on phenomenology, understanding what he meant about this methodology and emphasizing the relevance of those comments for the construction of his theology and philosophy.Keywords: Phenomenology; Religious experience; Paul Tillich.

Resumen: Este texto tiene como objetivo mostrar la presencia de la fenomenología filosófica en el pensamiento filosófico y teo-lógico de Paul Tillich, sea en la cuestión metodológica, sea en la investigación del fenómeno religioso. A pesar de Paul Tillich haber tenido una metodología propia en su teología – como el método de la correlación y el círculo teológico – también puede encontrar, en sus obras principales, comentarios sobre la fenomenología y su aplicabilidad en la investigación de la experiencia religiosa. La fenomenología que afirma estar presente en el pensamiento de Tillich, no es una fenomenología “pura” en el senti-do de Edmund Husserl y tampoco una fenomenología hermenéutica inspirada en Martin Heidegger – aunque fue influenciada por ambos autores – sino una fenomenología crítica, como lo ha sugerido el propio teólogo, que sería la unión del elementos: el intuitivo-descriptivo (fenomenología clásica) con el existencial-crítico. En este sentido, tienes como punto de partida los comen-tarios hechos por Tillich sobre la fenomenología entendiendo lo que quiso decir sobre esa metodología y destacando la relevan-cia de estos comentarios para la construcción de su teología y filosofía.Palabras-clave: Fenomenología; Experiencia religiosa; Paul Tillich.

introdução

O objetivo deste artigo é explicitar a influência da Fenomenologia de Edmund Husserl (1849-1938) e Martin Heidegger (1889-1976) no empreendimento filosófico e teológico de Paul Tillich (1886-1965). De início destacar-se-á como Tillich compreendeu a Fenomenologia e a rela-cionou à teologia e filosofia da religião para, em seguida, indicar como o filósofo apropriou-se do método fenome-nológico em seus conceitos. É importante destacar, logo

de início, que não há em Tillich uma descrição explícita do método fenomenológico em suas análises teológicas e filosóficas. Por isso é preciso, a partir dos breves comen-tários do próprio autor, entender o que quis dizer sobre a Fenomenologia e sua apropriação.

O que se pode destacar é a evidente presença da Fenomenologia no pensamento filosófico e teológico de Tillich. Essa fenomenologia deve ser compreendida de modo particular, não podendo ser generalizada como o principal método teológico ou filosófico do teólogo.

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Entretanto, a analítica fenomenológica está presente nas pesquisas do autor e percorre de modo ora implícito, ora explícito em suas obras.

A partir de leituras atentas e estudos, chegou-se à conclusão de que a Fenomenologia, que se apresenta de modo particular, está presente em Tillich nos seguintes aspectos: a) a Fenomenologia é legitimada como um mé-todo filosófico para filosofia da religião e teologia (cita-do, por exemplo, no texto “Filosofia da Religião”); b) a Fenomenologia é postulada como um recurso metodoló-gico para analisar os conceitos básicos da teologia, prin-cipalmente experiência religiosa; e c) a Fenomenologia como ontologia, ou seja, a ontologia tillichiana como fenomenológica.

Apesar de Paul Tillich ter desenvolvido uma meto-dologia própria – como o método da correlação – pode-se reconhecer outra metodologia aplicada na sua analítica. Essa outra metodologia é a Fenomenologia. Encontra-se em suas obras principais citações e definições que se re-ferem à fenomenologia, por exemplo, Tillich (1951/2001) em seu texto sobre Razão e Revelação sugeriu uma feno-menologia crítica para a teologia em vista da análise de seus conceitos básicos.

Reforçando essa análise crítica, o conceituado historia-dor da Fenomenologia Herbert Spiegelberg (1965) comentou em sua obra monumental O Movimento Fenomenológico, a relação de Paul Tillich com a Fenomenologia, relação essa marcada por duas fases. O autor diz:

Na teologia americana, a fenomenologia recebeu importante apoio do recente recurso de Paul Tillich ao método fenomenológico. Todo este caminho ainda é notável, pois durante a sua carreira alemã, Tillich rejeitou o método fenomenológico e junto com isso o pragmatismo a favor de uma aproximação “crítica-dialética”. A principal objeção dele na ocasião era o caráter não-histórico e antiexistencial da fenome-nologia. Há indicações que, em grande parte, com o advento da versão de Heidegger da fenomenologia, Tillich mudou a sua atitude. De fato, ele parece agora considerar a fenomenologia como método primário de filosofia existencial. O mais importante agora é que ele afirma, na sua Teologia Sistemática, a necessidade do método fenomenológico na concepção de Husserl das Idéias, como essencial para a teologia. (Spiegel-berg, 1965, p. 639)

Esses aspectos que se destacam entre Paul Tillich e a fenomenologia husserliana mostram definitivamente a in-terdependência entre a filosofia e a teologia no pensamen-to do autor analisado. Essa interdependência se confirma no primeiro aspecto citado, na qual Tillich legitima a feno-menologia de Husserl, principalmente a redução eidética como método filosófico para a filosofia da religião.

Em relação ao primeiro aspecto tem-se, por exem-plo, o trabalho Filosofia da Religião (1969/1973), na qual

Tillich expõe quatro métodos possíveis da filosofia da religião se fundamentar: crítico-dialético, fenomenoló-gico, pragmático e o “metalógico”. Neste texto o teólogo reconheceu a importância do método fenomenológico e a destacou como um método para a filosofia da religião se aproximar de seu objeto de forma mais vital, assim legitimando-a como um recurso metodológico para a fi-losofia da religião. No texto, analisa Tillich que:

Segundo o método fenomenológico, a filosofia da religião, portanto, será capaz de intuir eideticamen-te a essência e as qualidades peculiares da religião em qualquer manifestação religiosa. Tal intuição será independente da realidade empírica do objeto e possuirá, contudo, um apriori de rico conteúdo não meramente formal. (Tillich, 1969/1973, p. 29)

Ao mesmo tempo, também explicitou o fato da feno-menologia não abranger o movimento individual-histó-rico, pela fenomenologia pura iniciar sua investigação a partir das experiências vivências em visando às essên-cias ou do universal. Na acepção de Tillich (1951/2001), o fenomenólogo responderá sobre um evento revelatório típico a partir de seu sentido universal. Assim, para o te-ólogo a fenomenologia pura embora seja competente na área das significações lógicas, é relativamente competen-te no âmbito das realidades espirituais.

Para Tillich a vida espiritual, experienciada, cria mais que significações exemplares e universais; ela cria “corporificações únicas de algo universal”. Para a apreensão dessas “corporificações únicas”, Tillich su-geriu, então, uma fenomenologia crítica: “Trata-se de uma fenomenologia crítica, que une um elemento in-tuitivo-descritivo com o elemento existencial-crítico” (Tillich, 1951/2001, p. 121), preservando a abordagem fenomenológica.

A fenomenologia crítica é um método que mantem o elemento intuitivo-descritivo da fenomenologia pura com a técnica de descrever o sentido daquilo que se manifesta, porém acrescenta-se à análise o elemento existencial-crí-tico, ou seja, o caráter concreto, histórico e único daquilo que se manifesta. Com isso conclui Tillich:

A primeira forma, porem, leva ao método de abstra-ção, que priva os exemplos de sua concretude e reduz seu significado a uma generalidade vazia (p.ex., uma revelação que não é nem judaica nem cristã, nem profética nem mística). É precisamente isso que a fenomenologia deseja superar. A segunda forma está baseada na convicção de que uma revelação especial (p.ex., a aceitação de Jesus como o Cristo por Pedro) é a revelação final e, em conseqüência, é universalmente válida. (...) A fenomenologia crítica é o método mais adequado para fornecer uma descrição normativa dos significados espirituais (e também Espirituais). (Tillich, 1951/2001, p. 120-121)

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O segundo aspecto está relacionado com a aceitação e validação da Fenomenologia como recurso metodoló-gico na teologia. O interesse da teologia em utilizar a Fenomenologia deu-se em Tillich, fundamentalmente como recurso metodológico para rever e avaliar conceitos postulados da sua própria analítica. Não tem só a intenção de buscar a essência do religioso no sentido universal e histórico – como no caso da história das religiões - mas de fundamentar rigorosamente aquilo que já foi dado pela revelação a partir da experiência. Explica Tillich, no ca-pítulo sobre “A realidade da revelação” que a:

finalidade do método fenomenológico é descrever ‘significados’, deixando de lado, por um tempo, a questão da realidade [existência fática] á qual se referem. (...) A teologia deve aplicar a abrdagem fe-nomenológica a todos os conceitos básicos, forçando assim seus críticos a ver sobretudo o que significam os conceitos criticados e obrigando a si próprio a fazer descrições cuidadosas de seus conceitos e a usá-los com consistência lógica, evitando assim o perigo de tentar preencher as lacunas lógicas com material devocional (Tillich, 1951/2001, p. 120).

É importante salientar que existe uma diferença en-tre a fenomenologia religiosa e a teologia, porque para a teologia há uma impossibilidade da universalização da experiência religiosa dada pela revelação. Isso significa que cada revelação tem um caráter concreto e pessoal que o universal e o abstrato não abrangem. Esta crítica visa esclarecer que a teologia tillichiana, mesmo aplicando a fenomenologia, não pode ser confundida e nem se asse-melhar com a fenomenologia da religião.

Pode-se dizer, então, que Paul Tillich foi um precur-sor no esclarecimento destas diferenças, mesmo que de maneira implícita, já que formulou esta crítica em seus próprios estudos. Assim, é devido salientar que existe uma diferença em se utilizar metodologicamente a feno-menologia na teologia e de concebê-la como fenomeno-logia da religião. O caminho da fenomenologia filosófi-ca, de sua contribuição como fenomenologia da religião e de ser um recurso metodológico das ciências da reli-gião, faz-se necessário para compreendermos a influên-cia da fenomenologia em Paul Tillich. Por fim, o último aspecto a ser destacado é a aproximação e a semelhança da Fenomenologia com a teologia de Tillich no âmbito da ontologia. Sem dúvida, é na ontologia tillichiana que a fenomenologia se fez presente como método e atitude.

A partir destes esclarecimentos iniciais sobre a com-preensão de Tillich da Fenomenologia, pode-se indicar os possíveis encontros metodológicos do teólogo com o método. A Fenomenologia tem primeiramente o caráter de ser uma epistemologia, ou seja, de analisar a experi-ência religiosa a partir dela mesmo. Sabe-se que muitos conceituam a experiência religiosa com conceitos e idéias pautados em ideologias ou conceitos filosóficos. A pro-

posta fenomenológica está um buscar um “começo bom”, ou seja, encontrar a gênese da experiência religiosa por ela mesma. Explica Tillich:

O teste de uma descrição fenomenológica consiste em sua capacidade de oferecer um quadro que seja convincente, de torná-lo visível a qualquer pessoa que esteja disposta a olhar na mesma direção, de ilumi-nar com ele outras idéias e de tornar compreensível a realidade que estas idéias pretendem refletir. A fenomenologia é uma forma de considerar os fenô-menos tal como ‘se apresentam’, sem interferência de pré-conceitos e explicações negativas ou positivas (Tillich, 1951/2001, p. 120).

Dito isso, é possível resumir rapidamente o método fenomenológico de E. Husserl nos seguintes aspectos: um método analítico-descritivo (busca o significado a partir do próprio fenômeno, sem conduzir a teorias metafísi-cas); uma ciência eidética (busca a essência do fenôme-no); conduz à certeza (evidência racional), sendo assim uma disciplina a priori; e fundamentalmente é um mé-todo derivado de uma atitude, pois se presume ser sem pressupostos (“Voltar às coisas mesmas”). Dessa breve caracterização, destaca-se o que Husserl comentou em sua Introdução da obra Idéias para uma Fenomenologia Pura e para uma filosofia fenomenológica (1913): a feno-menologia possibilita “aprender a se mover livremen-te nela, sem nenhuma recaída nas velhas maneiras de orientar-se, aprender a ver, diferenciar, descrever o que está diante dos olhos, exige, ademais, estudos próprios e laboriosos”. (Husserl, 1913/2006, p. 27).

Em Husserl, a Fenomenologia caminhou também na ontologia, porque tinha o objetivo de encontrar o funda-mento das ciências e, para isso foi necessário ampliar o método para que se levasse à análise ao originário do ser. Ao se caminhar rumo à origem do ser, penetra-se necessariamente no âmbito do ser. O fundamento dos conceitos está naquilo que não varia, ou seja, no invari-ável, o que permanece. Segundo a concepção de Husserl (1913/2006), o invariável é a essência do ser, aquilo que permanece e, por isso o invariável passa a ser entendido como essência ontológica. Dessa forma:

não é no âmbito das ciências de fatos ou experimen-tais, mas exclusivamente no âmbito das ciências eidéticas, que Husserl fala de ‘ontologias’ e ‘ontologia’. O caráter hierárquico que aqui se manifesta leva-nos a dois grandes grupos, o primeiro das quais determi-na as ‘ontologias regionais’; o segundo, a ‘ontologia formal’. (Fragata, 1965, p. 23)

Assim, evidencia-se a questão do ser originariamente como uma questão fenomenológica, porque “a fenomeno-logia é concebida como uma ontologia a partir das con-dições a priori dos objetos e em seu conteúdo categorial.

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A ontologia husserliana se preocupa em revelar as estru-turas internas do mundo e seus domínios como indica-dores do ser” (Josgrilberg, 2001, p. 164).

Para a teologia tillichiana, esses aspectos metodoló-gicos da Fenomenologia de Husserl foram tratados com atenção, pois Tillich encontrou neles a garantia de poder rever e validar os conceitos já concebidos pela filosofia e teologia. Para Tillich (2001) a Fenomenologia propicia a compreensão do sentido originário dos fenômenos, indo diretamente a eles pela intuição originária, saindo das abstrações metafísicas dos conceitos chegando à evidên-cia. Rever os conceitos teológicos pela Fenomenologia é dá-los o caráter de certeza. Nesse sentido, o caminho que Tillich elege para a análise da experiência religiosa será o caminho do sentido originário do ser, ou seja, para além dos processos lógicos e da análise da consciência. Percebe-se aqui uma análise se desenvolveu como onto-logia, ou seja, a partir de uma “razão ontológica”.

Além da Fenomenologia se constituir como um méto-do ou uma ciência de rigor, também se constituiu como ontologia, principalmente à partir da contribuição de Martin Heidegger. Com Heidegger, a Fenomenologia e a Ontologia (Fenomenologia Hermenêutica) se tornaram um único meto do de investigação e o objetivo de toda a filosofia. Porque a ontologia para resgatar o sentido pri-meiro do ser só é possível, então, como fenomenologia. Isso é fortemente evidenciado na § 7 da obra Ser e Tempo (Heidegger, 1927/1993) na qual comenta:

Ontologia e fenomenologia não são duas disciplinas diferentes da filosofia ao lado de outras. Ambas caracterizam a própria filosofia em seu objeto e em seu modo de tratar. A filosofia é uma ontologia feno-menológica e universal que parte da hermenêutica do dasein, a qual, enquanto analítica da existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lu-gar de onde ele brota e para onde retorna. (Heidegger, 1927/1993, p. 69)

Com a publicação de Ser e Tempo, a filosofia colocou-se paradigmática devido à desconstrução da onto-teo-metafísica e da primazia das ciências empíricas. Para Heidegger, a ontologia deve se constituir como uma onto-logia fundamental, ou seja, deve-se voltar às coisas mes-mas e ir diretamente a questão do ser sem passar pelas especulações anteriores. Para isso o resgate da questão do ser deve ser colocado, fundamentalmente, pela per-gunta do sentido do ser. Comenta Heidegger que: “Deve-se efetuar essa destruição seguindo o fio condutor da questão do ser até se chegar às experiências originárias em que foram obtidas as primeiras determinações do ser que, desde então, tornaram-se decisivas” (Heidegger, 1927/1993, p. 50).

A teologia européia não poderia deixar de ser in-fluenciada diretamente por esta mudança ontológica com o advento do método fenomenológico-hermenêutico

de Heidegger, tais como a teologia de Rudolf Bultmann ou de Hans Jonas. Algumas teologias contemporâneas e posteriores à Fenomenologia de Husserl e Heidegger, so-freram também revisões epistemológicas e ontológicas, seja no aspecto da aceitação ou negação, tais como as te-ologias de Gianni Vattimo, Jean Luc-Marion, Jean- Louis Chrétien e Jean-Yves Lacoste.

É notório destacar que também por este motivo, a fe-nomenologia influenciou, além das teologias às ciências da religião. Essa influência fenomenológica às ciências religiosas se mostrou basicamente de duas maneiras, como estabelecem Filoramo & Prandi (1999): uma, estru-turando-se como uma disciplina particular, denominada Fenomenologia da Religião; e outra, como recurso meto-dológico para outras disciplinas, filosofia, psicologia, an-tropologia, história ou como no caso: a teologia.

Mas, ainda é importante comentar que existe uma di-ferença em se utilizar à fenomenologia na teologia e ser uma fenomenologia teológica. A teologia fenomenológica se diferencia da teologia – mesmo quando essa se utili-za da fenomenologia como método – porque põe “entre parênteses” a questão da prova ou não da existência de Deus. A teologia fenomenológica, como define Maldonado (2003), busca o descobrimento de todo o sentido da trans-cendência que se origina na vivência, ou seja, no campo das vivências.

Voltando a teologia tillichiana, diga-se que se define fundamentalmente pelo método de correlação e não pela fenomenologia. Entretanto, a fenomenologia auxiliou a correlação no sentido validar os conceitos polares que são correlacionados. A fenomenologia precedeu a correlação na análise ontológica, ou seja, ela está presente na análi-se existencial. Os conceitos correlacionados são funda-mentalmente ontológicos e para a descrição rigorosa desta ontologia Tillich fez buscou uma fundamentação feno-menológica. Tem-se em algumas obras a Fenomenologia na fundamentação da análise ontológica e do método de correlação, definindo estruturalmente a teologia. Somente pela fenomenologia não se tem uma teologia tillichiana, mas é a partir da correlação que a teologia se fez presen-te, principalmente na correlação do ser e Deus.

A Fenomenologia dada antecipadamente à correlação se mostrou de forma ontológica. Para atingir o fundamen-to do ser, a compreensão fenomenológica se apresentou como melhor método, por buscar diretamente o fenôme-no naquilo que se manifesta, sem rodeios metafísicos ou especulativos. Essa ontologia presente na correlação surgiu como fenomenológica. Goto (2004) destaca, então, três características da ontologia tillichiana como fenome-nológica: a) a primazia do retorno ao originário (sentido originário do ser-essências); b) a estruturação de catego-rias ontológicas (categorias existenciárias e não metafí-sicas); e c) o fato de a análise ontológica só ser possível como descritiva (pela experiência).

Essas são as semelhanças que mais caracterizam a ontologia tillichiana como uma ontologia fenomenológi-

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ca. Contudo, ainda como defende Goto (2004), a análise ontológica tillichiana busca as significações originárias na correlação, estruturando-se em quatro níveis: 1) a es-trutura ontológica básica; 2) os elementos que consti-tuem a estrutura básica; c) as características do ser (con-dições da existência) e, por fim: 4) as categorias do ser e conhecer.

Diante dessas apropriações é importante salientar que a fenomenologia husserliana não descartou a pólo existencial, apenas evitou a palavra “existência”, como enfatiza Fragata (1965), para que não houvesse uma con-fusão entre a existência fática e a própria atitude natural. Ainda, para Husserl a existência e a essência estão cor-relacionadas, sem que uma deixe de apreender a outra. Pode-se postular a tese que Heidegger entendeu e seguiu esse caminho e, por isso, elegeu a fenomenologia como método de sua ontologia.

Para explicitar o pensamento filosófico e teológico de Paul Tillich como fenomenológico, elegeu-se três obras que evidenciam a presença desta metodologia nos pontos que foram definidos como características fenomenológi-cas. São elas: Teologia Sistemática (1951/2001), A Coragem de ser (1952/1973) e Amor, Poder e Justiça (1954/1970), e em cada uma delas aponta-se resumidamente caracterís-ticas fenomenológicas.

Na Teologia Sistemática (1951/2001), como citado ante-riormente, a Fenomenologia foi abordada como um méto-do complementar ao método da correlação na construção de uma teologia sistemática. Esta característica não apare-ce explicitamente, porque como colocado anteriormente, Tillich tem como método teológico principal o “método da correlação”, sendo sua sistemática construída funda-mentalmente da correlação entre a questão existencial e a resposta teológica. “A teologia sistemática usa o méto-do de correlação. [...] O método de correlação explica os conteúdos da fé cristã através de perguntas existenciais e de respostas teológicas, em interdependência mútua” (Tillich, 1951/2001, p. 58).

Entretanto, além da questão metodológica acima ana-lisada, a fenomenologia está presente também na análise ontológica, implícita na correlação. É na análise existen-cial que a fenomenologia aparece, para garantir o rigor dos conceitos que formam os pólos da correlação. O pólo fenomenológico é o pólo existencial (perguntas), justa-mente por ser dado pela experiência da compreensão do ser. “A análise da existência, inclusive o desenvolvimento das perguntas implícitas na existência, é tarefa filosófica [...]”. (Tillich, 1951/2001 p. 60).

No entanto, perguntas e respostas estão correla-cionadas, logo não se pode separá-las fenomenologi-camente e, para isso Tillich propõe uma outra versão fenomenológica, isto é, uma fenomenologia crítica. A fenomenologia crítica é permitida, desde a fenomeno-logia enquanto método se tornou uma possibilidade de pensamento. Tillich postulou a fenomenologia crítica, como uma fenomenologia que tem o elemento existen-

cial-crítico, ou seja, a descrição do caráter concreto úni-co da experiência. Assim, temos na Teologia Sistemática a presença antecedente da fenomenologia, como feno-menologia crítica.

A Coragem de ser (1952/1973) é a obra na qual Tillich se mostra mais fenomenológico. Isso porque a fenome-nologia está no âmbito de sua ontologia, que difere da fenomenologia crítica da sistemática. Nesta obra, evi-dencia-se a análise da angústia por ver nela o modo de análise fenomenológico. Tillich analisou a angústia assemelhando-se com os critérios da ontologia feno-menológica de Heidegger, que viu nesta ontologia fun-damental a única possibilidade de encontrar o senti-do originário do ser. Foi na ontologia da angústia que Tillich mostrou sua análise ontológica como análise fenomenológica.

Nessa obra é analisado a influencia da fenomeno-logia-hermenêutica de M. Heidegger na qual se percebe que Tillich a reproduziu metodologicamente como um recurso analítico. Ao mesmo tempo, cabe advertir que a análise ontológica da angústia que Tillich descreveu se afasta da ontologia heideggeriana de Ser e Tempo. Isso acontece porque Tillich propõe a superação da angústia pela coragem de ser do ponto de vista teológico ficar res-trito à facticidade da existência e no niilismo heidegge-riano do ser-para-a-morte. Nesse sentido, para Tillich, “a coragem de ser é uma expressão de fé, o que a ‘fé’ significa deve ser entendido através da coragem de ser”. (Tillich, 1952/1973, p. 134).

Tem-se aqui uma fenomenologia do ser, exposto por sua coragem de ser. Essa análise fenomenológica buscou o retorno ao originário da coragem a partir da descrição dos elementos constitutivos de ser, destacando assim seus pólos correlacionais dos modos de ser: os tipos de angústia e a coragem de ser. Por isso, pode-se também falar em uma fenomenologia da angústia; uma fenome-nologia que talvez tenha faltado na ontologia fenomeno-lógica de Martin Heidegger.

A obra Amor, Poder e Justiça – Análise ontológica e implicações éticas (1954/1970) representa outro exemplo da fenomenologia-hermenêutica na análise ontológica do teólogo. Nessa obra tem-se a ontologia do amor como uma fenomenologia do amor, pois nela o teólogo buscou a primazia do sentido do amor, evitando as ciladas, os problemas e os maltratos que a palavra “amor” esteve su-jeita. Com isso Tillich descreveu fenomenologicamente o amor a partir de sua natureza (origem) ontológica, por-que só assim poderia resgatar o seu sentido originário (ser amor) ao descrever as diferentes formas de amar, a partir da experiência.

Isso é percebido logo no Prefácio da obra na qual Tillich afirma: “A ontologia precede toda outra tentativa de aproximação cognitiva a realidade. (...) Ninguém pode fugir da ontologia se quiser conhecer. Já que conhecer significa reconhecer alguma coisa como ser”. (Tillich, 1954/1970, p. 32-33). Na análise fenomenológica do amor,

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percebe-se como Tillich conheceu o ser humano, ou seja, a partir da descrição e compreensão do ser e, não de con-ceitos e teorias.

O amor é um conceito ontológico, deve ser analisado pela fenomenologia-hermenêutica, ou seja, deve-se co-meçar pela pergunta: o que significa o amor (ser)? Nisso, destaca Tillich, evitam-se muitas ciladas em ética social, teoria política e educação pela incompreensão do caráter ontológico do amor. Em suas análises descritivas, Tillich conclui que o “amor é unir o que está separado. A reunião pressupõe separação daquilo que estava essencialmente junto. (...) Portanto, o amor não pode ser descrito como a união do estranho, mas como a reunião do separado”. (Tillich, 1954/1970, p. 36). Como analisa Goto (2004), para o teólogo toda a vivência amorosa, seja emotiva ou ética, está fundada originalmente em uma vivência do ser doadora de sentido.

É importante advertir que nessa obra Tillich ainda promove a fenomenologia do poder e da justiça, pois esses estariam ligados ao fenômeno do amor. Os mes-mos problemas e confusões na análise do amor estão em relação com o poder e com a justiça, por isso todos eles devem ser levados a uma análise ontológica do tipo fenomenológica.

Considerações finais

A partir desta análise pode-se dizer que o filóso-fo e teólogo Paul Tillich promoveu em algumas obras, a Fenomenologia como recurso metodológico em suas análises teológicas e filosóficas. Ainda, podemos afirmar como foi evidenciado nessa crítica que Tillich conheceu o método fenomenológico e reconheceu a importância dele como um método descritivo das essências por man-tém, fundamentalmente, o rigor daquilo que pretende investigar.

No entanto, ainda é preciso analisar a relação do his-tórico da fenomenologia com as leituras de Tillich, isto é, reconhecer e mapear com maior precisão quais foram os textos que Tillich fez da Fenomenologia de Husserl, Heidegger ou outro filósofo fenomenólogo para entender alguns aspectos de sua crítica.

Paul Tillich foi um dos pioneiros ao incluir o méto-do fenomenológico na teologia, não de forma sistemática, porém dialogando criticamente com ela. Disso conclui-se que Tillich não foi fenomenólogo da religião e nem um teólogo fenomenológico, segundo a análise, mas re-correu a Fenomenologia como recurso metodológico nas situações que só ela poderia ser eficaz, como é o caso da razão e do ser.

Referências

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Tommy Akira Goto - Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, Professor Adjunto I da Universidade Federal de Uberlândia. Endereço Institucional: Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Artes, Filosofia e Ciências Sociais, Faculdade de Psicologia. Av. Pará, 1720, Bairro Umuarama. CEP 38400-902, Uberlândia (MG). E-mail: [email protected]

Recebido em 28.08.11Aceito em 30.11.11

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A Ontologia da Carne em Merleau-Ponty e a Situação Clínica na Gestalt-Terapia: Entrelaçamentos

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a ontologia da CaRne em meRleau-ponty e a Situação ClíniCa na geStalt-teRapia: entRelaçamentoS

The Ontology of the Flesh in Merleau-Ponty and Clinical Situation in the Perspective of Gestalt-Therapy

La Ontología de la Carne en Merleau-Ponty y la Situación Psicoterápica desde la Perspectiva de la Terapia Gestalt

môniCa BoTelho alvim

Resumo: Neste trabalho discutimos a clínica da Gestalt-Terapia como campo de experiência, buscando ampliar sua compreen-são por meio do diálogo com Merleau-Ponty. Nosso ponto central é a experiência no mundo com o outro e o lugar dessa expe-riência no processo de significação da existência. Sublinhando na Gestalt-Terapia: a) as noções de campo organismo-ambiente e fronteira de contato como concepções descritivas da experiência no mundo, um processo de desdobramento temporal que envolve diferença e criação de sentidos; b) a proposta metodológica de que a psicoterapia deve buscar concentrar-se na situa-ção, na estrutura da experiência aqui e agora; c) a consideração da psicoterapia como uma situação que envolve eu e outro em diálogo. Considerando que Merleau-Ponty comunga com a Gestalt-Terapia raízes e influências e que faz um retorno ao mun-do e à experiência na busca do sentido, buscamos fazer aproximações com seus últimos escritos, quando propõe uma ontolo-gia da carne e pensa a experiência como fissão, diferença e reversibilidade, introduzindo com a noção de intercorporeidade a possibilidade de “sentir com”, ou seja, encontrar o outro não no espaço objetivo, da reflexão, mas no campo do irrefletido e da experiência em estado bruto. Palavras-chave: Gestalt-terapia; Merleau-Ponty; Intercorporeidade; Ser bruto; Carne.

Abstract: In this work we discuss Gestalt therapy clinical practice as a field of experience, seeking to broaden its understand-ing through dialogue with Merleau-Ponty. Our focal point is experience with the other in the world and the place of experi-ence in the process of signification of existence. Underlining in Gestalt-Therapy: a) the notions of environment-organism field and contact boundary as descriptive conception of the human experience, an unfolding temporal process that involves dif-ference and meaning-making; b) Its methodological proposal that psychotherapy should seek to focus on the situation, ie, the structure of experience here and now; c) The consideration of psychotherapy as a situation involving self and other in di-alogue. Considering that Merleau-Ponty shares with Gestalt Therapy roots and influences and both propose a return to the world and experience in the search for meaning, we seek to make comparisons with his late thought, when he proposes an on-tology of the flesh and thinks experience as fission, difference and reversibility, to introduce by the notion of intercorporeal-ity, the possibility of “feeling with”, ie, find the other not in the objective space of reflection, but in the realm of thoughtless. Keywords: Gestalt-Therapy; Merleau-Ponty; Intercorporealty; Brute being; Flesh.

Resumen: Hablamos de la atención clínica de la terapia Gestalt como un campo de experiéncia, tratando de ampliar su com-prensión mediante el diálogo con Merleau-Ponty. Nuestro punto central es la experiencia con otros en el mundo y el lugar de la experiencia en el proceso de significación de la existencia. Destacando en la terapia gestalt: a) las nociones de campo organis-mo-entorno y el frontera-contacto como concepción descriptiva de La experiencia en el mundo, un proceso de desarrollo tempo-rale que implica la diferencia y la producion de significado; b) la metodología propuesta que la psicoterapia debe tratar de cen-trarse en la situación, la estructura de la experiencia aquí y ahora; c) la consideración de la psicoterapia como una situación de diálogo entre yo y el otro. Teniendo en cuenta que Merleau-Ponty comparte con las raíces de la Terapia Gestalt e influencias y ofrece regreso al mundo y la experiencia en la búsqueda de sentido, tratamos de hacer comparaciones con sus últimos escritos, cuando el filósofo propone una ontología de la carne y piensa en la experiencia como fisión, diferencia y reversibilidad. Ali in-troduce la posibilidad de “sentir con” a través de la noción de intercorporeidad , es decir, encontrar el otro en el espacio oscuro de la irreflexión. Palabras-clave: Terapia Gestalt; Merleau-Ponty; Intercorporeidad; Ser Bruto; Carne.

“Doravante somos plenamentevisíveis para nós mesmos,

graças a outros olhos”(Maurice Merleau-Ponty, 1990, p. 139)

introdução

A Gestalt-terapia introduziu, no âmbito da psicolo-gia, um pensamento que ressignificava as relações pes-soa-mundo, transitando de um paradigma intrapsíqui-co para outro organísmico, definindo a psicologia como

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o estudo da operação da fronteira de contato no campo organismo-ambiente. A fronteira não é lugar, mas cam-po de presença, vivido temporalmente, corporalmente, quando nos deparamos com o novo, diferente ou estra-nho, que buscamos significar a partir da criação. A psi-coterapia busca concentrar-se na situação, na estrutura da experiência aqui e agora, uma gestalt formada a partir do campo organismo-ambiente e que engloba eu e outro, eu e mundo. Estrutura que não tem o centro no sujeito, tampouco no ambiente ou no outro, indicando uma con-cepção que considera o ser-no-mundo e que não pretende atribuir, senão à experiência e à espontaneidade corporal situada, a fonte da produção de sentidos. Tal processo, de-nominado contato, envolve, assim a recriação de formas, um processo interminável de ressignificação da história a partir da experiência que é temporalidade.

Partindo de minha filiação à Gestalt-Terapia e con-cebendo a situação clínica como um campo de presen-ça, busco, em minhas reflexões, ampliar o significado do trabalho psicoterápico com a experiência, pesquisando e discutindo suas origens fenomenológicas e dialogando com Merleau-Ponty. Em seus últimos escritos, Merleau-Ponty enfatiza a noção de carne e pensa “a experiência já não como acoplamento, mas, ao inverso, como fissão (...) sobre o fundo de unidade da carne” (Dupond, 2010, p. 15). A carne “é uma noção última que não é união ou composição de duas substâncias, mas pensável de per si e mostra uma relação do visível consigo mesmo que me atravessa e me transforma em vidente” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 137). Conclui que esse movimento pode animar igualmente outros corpos, aludindo a uma pos-sibilidade de reversibilidade entre um eu e o outro seme-lhante, uma sinergia entre diferentes organismos, uma intercorporeidade, instalando um outro em minha pai-sagem. O outro se insere na junção do mundo e de nós mesmos, ele é um eu generalizado. É assim que minha relação corporal com o mundo pode ser generalizada – e podemos falar de uma intercorporeidade. O ser bruto envolve uma totalidade que abarca a diferença, unidade na diferença, quiasma vidente-visível, sensível- sentien-te, eu-outro.

Neste trabalho proponho refletir acerca da experiên-cia clínica em Gestalt-Terapia partindo da discussão de algumas concepções centrais feitas por Merleau-Ponty no âmbito de sua ontologia do Ser Bruto, demarcando alguns aspectos gerais que permitem uma aproxima-ção do filosofar e da psicoterapia e, por fim, a partir de um fragmento de experiência clínica, entretecer os dois campos de discussão da experiência humana no mundo com o outro.

1. merleau-ponty: elementos de sua ontologia

Desde a primeira obra, a Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty (1942/2006) buscara uma solução para o

problema do conhecimento e da verdade que oferecesse uma alternativa ao intelectualismo e ao empirismo. A noção de estrutura oferece um modo de conceber as re-lações com o mundo como forma ou configuração: um homem situado, matéria, vida e espírito entrelaçados com o mundo físico, sócio-cultural e histórico. É sua pri-meira versão para uma concepção que considera a ver-dade fruto de uma operação de entrelaçamento espírito-corpo-mundo.

Tomando a percepção como âmbito do originário, na Fenomenologia da Percepção (1945/1994) o filósofo enfa-tiza o corpo como campo de presença, autor de uma sín-tese prática que dota a consciência de um sentido de “eu posso”. Propõe assim um conhecimento tácito dado por uma praktognosia, que não subordina o conhecimento a uma função simbólica ou objetivante, para opor-se à reflexão idealista que transforma o mundo em correlato da consciência. De acordo com Moutinho (2005, p. 11), Merleau-Ponty tem como problema dar legitimidade ao fenomenal face ao pensamento objetivo, mostrar que a experiência irrefletida é o transcendental. Para isso: a) recorre às descrições psicológicas que implicam sempre em contradições no sistema eu-outrem-mundo (psíquico/fisiológico, solipsismo/comunicação, em si/para si); e, b) ao contrário de buscar resolver tais contradições, Merleau-Ponty busca despertar a experiência do corpo, do mundo e de outrem as tornando irremediáveis e colocando-as no centro da filosofia para mostrar que as contradições não são da ordem das aparências, mas são – elas próprias – o coração da experiência e o verdadeiro transcendental. De fato, tal como compreendemos, a redução de Merleau-Ponty é para o domínio da experiência, uma existência capturada pelas teses. Para refletir sobre o irrefletido da experiência, ele toma a trilha de Kurt Goldstein, busca o eu impuro, onde a tese falha, a patologia. Vai pelo avesso, reflexão radical, afirmando uma postura anti-teórica, tal como afirmou M.J.Muller-Granzotto (comunicação pes-soal, novembro de 2005). Na doença, cria-se algo inusita-do, que não se submete a teses universais. Fala da doença onde se aprende algo, cria-se algo. É aí que se radicaliza a postura anti-teórica.

De acordo com a compreensão de Moutinho (2005), a reflexão de segundo grau que Merleau-Ponty propõe – e que converte o campo fenomenal em campo transcen-dental – é desenvolvida a partir de suas reflexões sobre o tempo feitas na terceira parte da Fenomenologia da Percepção (1945/1994), onde o filósofo anuncia o que será desenvolvido e aparecerá de modo definitivo mais à fren-te, quando então tomará o projeto ontológico: a recusa à concepção de uma identidade através da constituição. O filósofo, nas notas que darão origem ao livro póstumo O visível e o invisível (1964/2000), recusa um tipo de refle-xão que “recua sobre as pegadas de uma constituição” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 41). Abandonando a inten-cionalidade de ato, ele explora a noção de síntese passiva, na qual concebe o tempo não como sucessão, mas como

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passagem e movimento, uma transição que se dá em blo-co, modificação contínua e não continuidade sucessiva, uma síntese de transição que não tem autor. O tempo já é anunciado aqui como movimento centrífugo, dissolu-ção, deiscência, tempo como diferença, ou seja, afirma Moutinho (2005, p. 41):

Cada instante se afirma por diferença com outros, ele não é apenas uma totalidade, mas é uma totalidade que cava a diferença em seu interior e assim ele se abre para uma relação a si (...) condição para qual Merleau-Ponty poderá dizer que o tempo não é para alguém, mas que ele é alguém.

É nessa direção que em seus últimos escritos Merleau-Ponty recusa explicitamente o cogito e muda o foco do corpo para a noção de carne, inaugurando uma nova on-tologia – a ontologia do ser bruto – que passarei a discutir brevemente a partir de uma articulação que envolve as noções de diferenciação ou deiscência, carne, ser bruto, intercorporeidade e fé perceptiva.

1.1 A Experiência como Diferenciação que faz surgir um Visível

Merleau-Ponty pensa a experiência já não como aco-plamento, mas, ao inverso, como fissão que faz nascer um visível do fundo de um tecido invisível que é “pos-sibilidade, latência e carne das coisas” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 130). O visível surge de uma diferenciação, é uma espécie de “cristalização momentânea da visibili-dade”, é “menos cor ou coisa que diferença entre as coisas e as cores” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 129), ou seja, um visível nasce da diferença entre as coisas ou entre as cores, reunidas em uma constelação aqui-agora. Podemos aqui nos remeter a Paul Cézanne e os impressionistas que instauraram na pintura uma nova ordem que partia jus-tamente de uma proposta que não diferenciava o dese-nho da cor, a forma do conteúdo e postulava certa “pas-sividade” para que o desenho nascesse espontaneamente do contraste das cores. Para ele, delinear os contornos do desenho era uma “falha que se deve combater a todo cus-to (...) ao ser consultada a natureza nos dá os meios para atingir esses fins” (Cézanne, citado por Chipp, 1999, p. 19). Dizia com isso que se o pintor estivesse atento “à ri-queza de colorações que animam a natureza” (Merleau-Ponty, 1948/1980, p. 118), a forma brotaria espontanea-mente da expressão. “Pintando, desenha-se; mais a cor se harmoniza, mais o desenho se precisa” (Cézanne, citado por Merleau-Ponty, 1948/1980, p. 118).

A pintura é referência importante para Merleau-Ponty, que coloca a Visibilidade como um universal, uma possibilidade. É a partir de um movimento de en-trecruzamento momentâneo que um quiasma é produ-zido como uma emergência possível, uma diferenciação

que surge como um visível. Um instante efêmero em que há uma cristalização de algo que emerge de uma trama, feita por um tecido invisível, a carne, minha e também do mundo. O invisível seria a “armação do vi-sível que dá ao visível sua presença significante, sua es-sência ativa” (Dupond, 2010, p. 50). Merleau-Ponty esta-belece entre vidente e visível uma relação originária e íntima que se funda numa espessura que se comunica por horizontes. O visível não é uma coisa idêntica a si mesmo que se oferece nua a uma visão total do viden-te, mas é sim “uma espécie de estreito entre horizontes exteriores e interiores sempre abertos” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 129), toca e faz ressoar à distância outras regiões, criando por diferenciação uma modulação efê-mera deste mundo. O vermelho que vejo em algo liga um tecido visível e invisível. É uma “pontuação” no campo das coisas vermelhas e também no das roupas verme-lhas; da bandeira da revolução russa e dos vestidos das mulheres ou dos mantos dos bispos. E não será o mes-mo vermelho se aparecer numa constelação ou noutra (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 129).

1.2 A Carne como Elemento

Merleau-Ponty propõe uma nova compreensão, que coloca o originário na carne. Meio formador do sujeito e do objeto, a carne é equivalente ao que os gregos deno-minavam elemento (água, terra, fogo). A carne, para ele: (...) não é matéria, não é espírito, não é substância. (...) espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Neste sentido, a carne é um ‘elemento’ do Ser (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 136).

Os elementos são representativos do todo, estão no in-dividual e no universal como um emblema, um estilo de ser. A carne é elemento comum do sujeito e do mundo, corpo e mundo se constituem reciprocamente numa ex-periência tecida no fundo carnal. Ela é o ponto de parti-da, origem, antes do que nada é pensável. Como elemen-to originário, possibilidade e tecido invisível, a carne sustenta o visível que irradia um modo de ser, aparece como cristalização momentânea a partir da experiência no mundo que reúne sujeito e mundo, corpo e coisas, num horizonte comum. Ela liga aquilo que é visível – coisa do mundo e aquele que vê – corpo, sendo estofo de que ambos são feitos, indicando uma relação de paren-tesco que dá àquele que vê uma familiaridade, por assim dizer, prévia com o visível.

Aqui está em jogo uma nova visão das relações sujei-to-mundo que busca escapar das alternativas ser idên-tico/fundido ou ser diferente/exterior, partes extra-par-tes. “Em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo é, ao contrário, o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas”, afirma Merleau-Ponty (1964/2000, p. 132).

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As coisas não são achatadas, elas também são seres em profundidade (como a roupa vermelha que conste-lada nos remete ao horizonte da revolução) que só são acessíveis a um sujeito que com elas coexista e não as queira sobrevoar1. Coexisto com elas habitando-as com meu corpo, meu olhar, meu tato. Como elas, tenho um avesso, espessura, distância dentro-fora. Comunico-me com elas por um entrecruzamento que só pode se dar por sermos feitos da mesma carne, por essa familiarida-de prévia. É isso que permite encontrar uma correspon-dência entre seu fora (o vermelho constelado daquele modo) e meu dentro (um horizonte que se conecta com o horizonte daquela constelação que se me apresenta). Entre meu dentro (aquele que sente a partir do que é sen-sível na coisa) e meu fora (aquele que pode ser sentido enquanto sente). Com a noção de carne, o filósofo pro-põe uma correlação, entrelaçamento corpo e mundo que “comunica às coisas sobre as quais se fecha essa identi-dade sem superposição, essa diferença sem contradição” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 132).

Merleau-Ponty acentua o corpo como aquele que tem uma dupla pertença ao âmbito do sujeito e do objeto. Está na ordem do sujeito e das coisas. Busca fazer uma onto-logia da carne reabilitando o sensível. O que é visto e o que vê estão unidos por essa familiaridade primordial, carnal, seu encontro se dá como um quiasma, um entre-cruzamento sensível-sentiente.

Com a noção de deiscência – termo originário da bo-tânica, que indica a abertura de um órgão quando atin-ge a maturação – Merleau-Ponty nos remete a uma nova compreensão. As contradições estão agora no cerne de suas propostas, não como simples contradições, mas como movimento de diferenciação, como deiscência da carne, que é o originário. Se utilizarmos a metáfora da botânica, um fruto, quando maduro, amolece e se abre, oferecendo-se ao mundo como alimento para outros se-res, que se transformam e se abrem, oferecendo-se como alimento para outro ser, para a terra, num ciclo de vida interminável que mantém viva a vida, renovando-se e transformando-se.

Assim, o que brota e emerge como ser e visível não é fruto de uma reflexão, mas de uma experiência de fis-são e diferenciação que faz surgir um visível (e um vi-dente), sustentados por um invisível, horizonte carnal, experiência espácio-temporal. De acordo com Dupond (2010, p. 15), “já não se trata de pensar o ‘um’ sobre o fundo de ‘dois’ (Si/o mundo), mas o ‘dois’ sobre o fun-do de ‘um’”.

Merleau-Ponty propõe um ser bruto como um ser de indivisão, totalidade prévia, experiência em estado bru-to, não lapidado por um movimento reflexivo. Afirmando uma ontologia do ser bruto, propõe que universalidade e particularidade estão imbricadas numa relação íntima

1 Coexistir é abrir-se ao horizonte comum, e, ao contrário, sobrevoar seria vê-las acabadas, sem horizontes, fechadas em si e de mim separadas. À minha subjetividade, submetidas.

no âmbito da experiência temporal e mundana. De acor-do com Chauí (2002, p. 153-154):

O ser bruto não é uma positividade substancial idên-tica a si mesma e sim pura diferença interna de que o sensível, a linguagem e o inteligível são dimensões simultâneas e entrecruzadas (...) não é também um negativo, mas aquilo que, por dentro, permite a posi-tividade de um visível, de um dizível, de um pensá-vel, como a nervura secreta que sustenta e conserva unidas as partes de uma folha (...) é o invisível que faz ver porque sustenta por dentro o visível (...) o Ser Bruto é a distância interna entre um visível e outro que é o seu invisível.

Quando Merleau-Ponty deixa o foco no corpo pró-prio – o ponto de vista de um corpo-sujeito – para colo-car o foco no corpo como carne, reafirma uma espécie de passividade do eu ao ser bruto, esta totalidade complexa composta por: eu, outro, percepção, cultura, historicida-de, temporalidade. Instaura um campo primordial, um a priori que correlaciona sujeito-objeto, uma indiferen-ciação original de onde brota o sentido – uma dimensão carnal. O ser bruto é uma dimensão primordial, anterior a toda atividade reflexiva:

(...) anterior a toda diferenciação em termos de sub-jetividade. (...) Trata-se de se recolocar na zona do há preliminar, de nosso contato originário com o ser, onde o saber não operou ainda a cisão entre o “subje-tivo” e o “objetivo” e no qual se institui uma primeira estratificação de sentido (Bonomi, 2004, p. 40).

Essa indiferenciação como subjetividade pode ser compreendida como dimensão impessoal, geográfica, biológica, sócio-histórica, uma complexidade irrefleti-da, porém presente, que pode ser sentida de modo tácito e pertencente ao âmbito de uma intercorporeidade. Esse ponto indica a passagem da intersubjetividade para a in-tercorporeidade realizada por Merleau-Ponty. Vinculando a experiência da visibilidade ao corpo e postulando uma ontologia do sensível, Merleau-Ponty passa a pensar o sen-tido primordial a partir da experiência em estado bruto, uma dimensão carnal que não é sustentada pela reflexão. A possibilidade de reversibilidade entre visível e vidente dada pelo corpo não é fruto de uma consciência e indi-ca, antes, certa passividade, indiferenciação como sub-jetividade, generalidade que pode ser partilhada como intercorporeidade.

1.3 A Intercorporeidade

Merleau-Ponty opõe-se ao subjetivismo psíquico, clas-sificando seus conceitos de míticos. Combate a intros-pecção, não acredita em uma visão do interior, mas em

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“uma vida ao pé de si, uma abertura a si, mas que não desemboca em outro mundo diferente do mundo comum – e que não é necessariamente fechamento aos outros” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 29).

A experiência intercorporal é, assim, para Merleau-Ponty, uma experiência irrefletida, que nos dá o outro não como um espetáculo ao qual aprecio de fora. O filósofo afirma através da ontologia da carne a impossibilidade da constituição subjetiva e a possibilidade da instituição, quando conclama a necessidade de que:

Se pare de definir primordialmente o sentir pela pertença a mesma consciência, compreendendo-o, ao contrário, como retorno sobre si no visível, aderência carnal do sentiente ao sentido e do sentido ao sen-tiente. Porquanto recobrimento e fissão, identidade e diferença, essa aderência faz brotar um raio de luz natural que ilumina toda a carne, não apenas a minha (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 138).

Aqui ele afirma a dimensionalidade da experiência intercorporal, possibilitada e ao mesmo tempo instituinte de um modo de ser, tornada carne quando, singularidade, particularidade espácio-temporal, minha expressão é to-mada pelo outro como sua, dimensão universal.

A experiência intercorporal nos dá o outro como ou-tro eu, outro feito de minha substância, que me mos-tra, através do seu olhar para o mundo que pensava ser “meu”, que vemos o mesmo mundo; que me mostra, atra-vés dos seus olhos marejados de lágrimas que se dirigem a uma cena do mundo, a “minha” dor. A presença do ou-tro acrescenta ao paradoxo interno de minha percepção “este enigma da propagação no outro da minha vida mais secreta” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22).

Não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto não sou eu que vejo, nem é ele que vê, ambos somos habitados por uma visibilidade anônima, visão ge-ral, em virtude dessa propriedade primordial que pertence à carne de, estando aqui e agora, irradiar por toda a parte e para sempre, de, sendo indivíduo, também ser dimensão e universal (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 138).

A criação é, para ele, o movimento selvagem, não do-mesticado, livre de uma natureza a priori que permite, pela singularidade, a manifestação de uma universalida-de. Trata-se de uma ontologia que descreve como a ex-periência cria. Experiência que se faz no entrelaçamento eu-outro-mundo, em situação, inexoravelmente imbrica-dos e incorporados.

Uma vez traçados esses referenciais, buscarei agora uma aproximação com a Gestalt-Terapia e sua dimensão de abordagem que busca descrever a experiência e os mo-dos de ser-no-mundo.

2. Situação Clínica e filosofia

A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história narrada pode

significar o mundo com tanta “profundidade” quanto um tratado de

filosofiaMaurice Merleau-Ponty (1994, p. 19)

Ao me propor esse diálogo entre Gestalt-Terapia e Merleau-Ponty, busco manter em meu horizonte os limi-tes de tal aproximação. Limites que não se colocam, en-tretanto, sem ambigüidades, que considero – na mesma ótica do filósofo – boas ambigüidades, aquelas que par-tem de um campo comum de experiências impessoais. Essas experiências, apontadas a seguir, não são da Gestalt-Terapia ou de Merleau-Ponty, mas de um campo comum de influências, certo espírito de época, demarcado por um horizonte de tempo-espaço, filósofos, teóricos, história, sociedade, política, um fundo, uma mesma carne.

Encontramo-nos nas propostas da Psicologia da Gestalt, e nas críticas a ela; no pensamento de campo, organísmico; nas tentativas de ultrapassar um intelectu-alismo ou um empirismo de um lado, um reducionismo psíquico ou comportamental de outro; encontramo-nos também na remissão constante à arte e à estética, na busca da expressão como criação, na oposição ao assujeitamen-to e na ênfase à liberdade como poder instituinte de uma corporeidade compreendida não como sujeito, mas como espontaneidade motora, nem ativa nem passiva, modo mé-dio, nem consciência, tampouco inconsciência.

Toda psicoterapia tem uma proposta de intervenção, um método, construído com base em sua concepção da pessoa, das relações pessoa-mundo, do funcionamento humano em seu entrelaçamento com natureza e cultura e nas tensões presentes nessas relações.

Tomando uma dimensão não objetivista da psicolo-gia, tal como discute Merleau-Ponty na obra Ciências do Homem e Fenomenologia (1951/1973), que coloca o sujei-to ou a consciência como objeto, fruto de determinações externas ou sociais, é possível afirmar que há, no cer-ne do trabalho psicoterápico na perspectiva da Gestalt-Terapia, motivações que nos aproximam de uma atitude filosófica.

Falamos aqui de uma atividade que é trabalho de cria-ção dado a partir de uma situação de crise, sempre uma crise de sentido, trabalho de produção de sentido para a existência no mundo com o outro, e mais que isso, um trabalho que, na perspectiva da Gestalt-Terapia, visa res-gatar a capacidade de criar a partir da situação no mundo com o outro, concebendo a corporeidade como esponta-neidade criadora, instituinte.

É nesse sentido que entendemos que uma psicotera-pia de base fenomenológica, como a Gestalt-Terapia, está encarnada ela mesma no âmbito de uma atividade crítica que acompanha o nascimento de um filosofar, tal como

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proposto por Souza (2008). Para ele o nascimento da fi-losofia se dá a partir do núcleo de uma crise, quando há um movimento de crítica, que define como “a mobiliza-ção e efetivação das forças criadoras e transformadoras que habitam o núcleo da crise (...) seu momento radical-mente construtivo” (p. 70).

Entendemos que ao transitar no campo da produção de sentidos, podemos considerar a Gestalt-Terapia uma proposta que, no âmbito de uma singularidade, lida com um tipo de atividade que transcende o campo da realida-de tomada como objetividade, das predições e determi-nações causais, rumo ao campo do transcendental – aqui entendido do ponto de vista merleau-pontyano como o mundano, o ser bruto, a dimensão originária e que “está aquém do ser e do nada, já que como ser poroso, ele é a originária indivisão deles” (Dupond, 2010, p. 68/69).

Lidamos na psicoterapia com questões existenciais que, muitas vezes travestidas de uma objetividade, con-tadas por meio de um discurso objetivante, naturalizan-te, convidam para as análises explicativas e para as de-terminações causais. Indicam, de modo mais ou menos explícito, o desejo por parte do cliente de um trabalho apenas analítico que explique as causas do sofrimento, tampone a angústia e gere alívio.

Quando esse caminho é tomado pelo terapeuta, se não está “suficientemente atento” ao que a experiência objetiva relatada descreve, tal como recomenda Merleau-Ponty (1951/1973, p. 50), nos afasta do âmbito da produ-ção de sentidos e nos protege – terapeutas, pessoas con-cretas e envolvidas naquela situação – da experiência do risco, conforme discutimos em trabalho anterior sobre a psicoterapia e a experiência estética (Alvim, 2007a). Essa experiência do risco é aquela típica do filósofo, aquele que não acredita poder sobrevoar seu objeto, que não tem por adquirida a correlação do saber e do ser, aquele que quando “questiona é, ele próprio, posto em causa pela questão” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37).

Ao contrário disso, o sentido ético da psicoterapia no meu entender está em provocar um desajustamento cria-dor (Alvim, 2007b). Um desvio para o vazio, para o que ainda não é. E para isso é necessário sustentar a experiên-cia do não-sentido e a angústia aí envolvida. Entendemos que está em jogo no sofrimento, a relação entre o ser e o nada. Longe de serem considerados aqui pólos de uma relação dicotômica, o que é está sustentado de modo tê-nue por um tecido invisível, algo que ainda não é, mas que nos sustenta, conectado por horizontes temporais com uma possibilidade futura de ser ainda não visível, im-pré-visível.

A terapia deve ter como meta proporcionar um tipo de reflexão que nos conecte com essa dimensão originá-ria presente na experiência pré-reflexiva, que nos ponha em contato com a experiência reversível do ser e do nada, do sentido e do não-sentido, da visibilidade sustentada por uma invisibilidade presente de modo não-explícito, visando uma presença tal que propicie criação, institui-

ção de sentidos, movimento, reconfiguração. A terapia visa uma presença como corpo situado no mundo com o outro. E é somente pela experiência com o outro que po-deremos alcançar esse tipo de reflexão.

A Gestalt-Terapia propõe como método concentrar-se na estrutura concreta da situação, método que a partir do diálogo com o outro, remete ao âmbito do originário, do fazer-se sentido. A relação aqui-agora com o outro é privilegiada. É o outro eu que me dá a possibilidade da diferença, do descentramento. Falamos da terapia como ampliação de horizontes. E eles já estão aqui como um aí prévio, invisíveis, latentes, sustentando o visível. É par-tindo desse fundo, que gostaria agora de compartilhar cenas fictícias de uma experiência clínica.

3. o encontro com Lara

Lara chega ao consultório. Rosto sofrido, olhos cansa-dos, maquiagem forte. Andar pouco equilibrado, corpo endurecido pela roupa apertada, sapato muito alto, talvez demais. Olho para ela e me abro, busco um fio que nos conecte, que ligue a chave do encontro. Diz que está ali porque não tem mais para onde ir. Fez terapia por vários anos, sabe tudo sobre si. E conta o enredo do filme que rodou em muitas versões ao longo de sua vida. Repete que seu problema é a repetição de uma estória de rejeição. Chora, desesperada. Rebela-se por novamente ter que fazer terapia. – Tudo o que fiz, não valeu de nada? Interroga. E repete a sinopse da última versão. Sinto-me estranha. Como se devesse algo a ela pelas terapias que “não funcionaram”. Mas espero e sigo escutando-a. Fala da mãe, do ex-marido, da traição de ambos, da injustiça, de suas qualidades, solidarie-dade, queixa-se dos sofrimentos, conta detalhes das situações que sofreu. Ao final de nosso primeiro en-contro proponho abandonar um pouco o enredo dessa história para concentrarmo-nos nos diferentes roteiros e versões. Em pequenos detalhes de algumas cenas. Em imagens secundárias, pequenas percepções. Com essa proposta faço a Lara o primeiro convite para um olhar mais demorado, com presença, que a desvie de uma estória já constituída e automatizada.Lara me olha ligeiramente surpresa. Algo incrédula. Parece duvidar de seu próprio caminho, automatiza-do em uma fala que não para, mas isso dura poucos segundos. Logo volta ao movimento anterior, volta a queixar-se e a dizer do seu desespero. Como um motor, ela gira. E assim nos despedimos naquele primeiro encontro. Sem conexão. Outras sessões se sucedem. Semelhantes. Começo a sentir um incômodo. Ela gira o motor e sofre muito. Sofre pelo que se passou, mas sofre ainda mais de so-lidão. Sofre porque sabe demais. Sabe que tudo aquilo lhe faz mal, mas não consegue deixar de desejar tudo

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aquilo. Porque todos que a amam lhe dizem como ela é boba, como tem tudo para “virar a página”, “fazer a fila andar”. Falam de como tem uma vida boa e como é incapaz de superar relações tão maléficas e dani-nhas. Sofre pelos acontecimentos. Mas sofre também porque “sente” demais, é “frágil e sensível demais”, afirma. E porque se sente incapaz de mudar, se sente “incompetente, burra”. Ao fim das sessões sinto-me estranha, sem perceber sinais de uma conexão que se anuncie. Ao mesmo tem-po, noto que ela está engajada. Vem a todas as sessões, pontualmente. O motor gira sem cessar. Aqui e ali busco encontrá-la. Seu olhar me atravessa. Convites para olhar outras cenas não são aceitos. Tam-pouco para se demorar sobre elas. As perspectivas são sempre as mesmas. Como em um filme hollywoodiano, as cenas que Lara mostra se sucedem rapidamente, sem qualquer espaço para a criação, para o sonho, o devaneio. Tudo está pronto e acabado. Acabado. Um dia ela fala mais uma vez das pessoas que a criti-cam por sofrer. Naquele dia, diferente de outros, ela diz isso olhando para mim. Sinto novamente a sensação de dever algo a ela. E compartilho isso. Lara desacelera, reduz a marcha e para pela primeira vez. Olha-me mais uma vez nos olhos, quase demoradamente, e depois de alguns segundos, murmura: – É. Mas você não faz parte dessa estória. Já ia dando a partida novamente no motor, quando a interrompo: – Faço parte, sim. Estou aqui-agora com você tentando mudar essa estória. E tenho a sensação de que você não quer reescrevê-la. Mas se eu pudesse fazer algo nesse roteiro, permitiria que você sofresse bastante. Digo isso emocionada e me sentindo muito conectada com Lara, que, diante do meu gesto e de minha emoção que transborda, me olha estupefata: – O que?!? – Deixaria você sofrer bastante, Lara. Acho seu sofri-mento tão legítimo! – Mas e tudo o que as outras pessoas me dizem? Que sou boba, que tenho uma vida ótima, que não tenho motivos para sofrer? Olho profundamente nos olhos de Lara. Vejo ali uma grande solidão, um grande sofrimento que não pode ser sentido, tornar-se sentido, porque não há outro para comungá-lo. E digo: – Olhando nos seus olhos, posso sentir seu sofrimento aqui no meu peito.Lara desliga o motor e desce do carro. Estaciona, toma o elevador e entra em meu consultório pela primeira vez. Finalmente podemos ter nosso primeiro encontro.

A Gestalt-Terapia é uma terapia do contato. A neurose é concebida de modo amplo como fixação na forma, perda

das possibilidades expressivas, expressão aqui entendi-da de modo merleaupontyano como criação. Laura Perls desejou que a Gestalt-terapia se chamasse Gestaltung-terapia, ou seja, terapia da formação de formas. O que se visa, nessa perspectiva é um trabalho psicoterápico que permita o restabelecimento do fluxo de awareness, defini-do como “conhecimento imediato e implícito do campo” (Robine, 2006). A noção de awareness envolve um tipo de sentir que é abertura, passividade, entrega ao campo e ao outro como representantes de uma dimensão intercorpo-ral que é generalidade e que me põe, me afirma, me inclui, com meus paradoxos, na categoria do ser carnal.

Ao discutir as relações com o mundo, Merleau-Ponty nos fala de uma “presença perceptiva no mundo” como “a experiência de habitar o mundo por meio de nosso corpo” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37). Afirma a ante-rioridade dessa experiência em relação à reflexão, “nossa experiência que está aquém da afirmação e da negação, aquém do juízo – opiniões críticas, operações ulteriores -, é mais velha que qualquer opinião” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37).

Critica assim a filosofia reflexionante, aquela que busca compreender o nosso vínculo natal com o mundo desfazendo-o para refazê-lo. Aquela que acredita encon-trar a clareza pela análise, nos elementos mais simples, nas condições mais fundamentais, em premissas de onde ele resulta como consequência, uma reflexão que “recua sobre as pegadas de uma constituição” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 41).

Lara era expert em analisar reflexivamente. Conhecia com clareza todos os elementos, condições fundamentais, premissas, causas e conseqüências. Através dos anos de terapia, havia recuado todas as pegadas da constituição de seu sentimento de rejeição, que conotava como “in-fantil”. Orientada pelas premissas da Gestalt-Terapia, eu buscava uma conexão, um fio que nos ligasse. No fun-do de minha experiência, estavam as lições de Merleau-Ponty (1964/2000):

O segredo do mundo que procuramos é preciso, ne-cessariamente, que esteja contido em meu contato com ele. De tudo o que vivo, enquanto o vivo, tenho diante de mim o sentido, sem o que não viveria e não posso procurar nenhuma luz concernente ao mundo a não ser interrogando, explicando minha frequentação do mundo, compreendendo-a de dentro (p. 41).

Estou aderido ao mundo através de meu corpo, que me dá a verdade a partir da minha experiência de ha-bitá-lo. É nesse a priori da minha relação de aderência ao mundo e à situação que está a base e a fundação da verdade. É no sentido que se produz no encontro com o mundo, ou seja, no campo e na situação, que está o fun-damento da verdade. As tentativas de explicação atra-vés do pensamento reflexivo me fazem perder o mundo e o sentido.

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Mas como transpor a barreira da explicação e da ver-dade das teses? Lara buscava explicações, e nelas buscava o sentido que não encontrava. Os “anos de terapia” a en-cheram de significados e de verdades que havia tomado como si. Teses e enunciados que falhavam. E era justa-mente nesta falha que estava a brecha para o corpo, para um movimento de habitação e de partida para o trabalho de signific-ação existencial.

Recorro novamente a Merleau-Ponty e me apoio na fé perceptiva. Aquilo que existe antes de qualquer juízo, tomada de posição, uma fé animal, corporal. A fé per-ceptiva me dá uma certeza inelutável e ao mesmo tempo inexplicável e obscura. É “uma adesão que se sabe além das provas, não necessária, tecida de incredulidade, a cada instante ameaçada pela não-fé” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 21).

Ameaçada de um lado pela fragilidade da percep-ção, esta que nos dá um domínio da totalidade, porém circundado por uma visão lateral, por uma selva com-posta por uma “vegetação de fantasmas”, a percepção é dotada de movimento e instabilidade. Tais ameaças se apresentam a todo instante, quando examino o mundo com meu pensamento e recuo, saindo dessa habitação e me entrincheirando em algum fantasma-arbusto, seja ele imaginação, tese ou enunciado. “O mundo é o que percebo, mas sua proximidade absoluta, desde que exa-minada e expressa, transforma-se também, inexplica-velmente, em distância irremediável” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 20).

Lara estava perdida em uma floresta de fantasmas. Só e distante de todos, do mundo, sobretudo da sua ex-periência. Para ajudá-la a encontrar o caminho, eu pre-cisava de um fio. Mas diferente de Ariadne, eu não tinha um fio pronto para oferecer a Lara. Precisávamos tecê-lo juntas. Ela estava sozinha e perdida. As explicações dela e dos outros os distanciavam irremediavelmente. Busca o remédio na terapia e ao mesmo tempo não sabe se aproximar.

O sentido e o significado da experiência são criados nessa relação (eu e outro) que me envolve e ao terapeuta. As lições da Gestalt-Terapia nos ensinam como método concentrar-se na situação, “trabalhar a unidade e a de-sunidade dessa estrutura da experiência aqui e agora” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 46). Buscar a integração necessidade-figura-fundo a partir do cam-po, uma gestalt vigorosa, uma experiência integradora a partir da awareness, criando sentidos/significados para a experiência aqui-agora.

Lara não me vê. Não me escuta. Não sabe se apro-ximar. Está só em seu labirinto. Para resgatar sua fé perceptiva precisa ampliar sua presença. Encontrar-se aqui-agora comigo nesta situação. Mas sente-se tão só. Inferiorizada diante do outro que sabe o que é melhor para ela e a critica por não agir de acordo com as teses. Assim, gira como um motor, potência rotativa de uma for-ça centrípeta que a mantém no centro, de pé, um si-mes-

mo. Ensimesmada, não deixa espaço para outrem, para ultrapassar a personagem, a personalidade. Precisamos criar uma força contrária, uma força centrífuga que a lance para fora de si.

Ao discutir o tema da relação com o outro, Merleau-Ponty pergunta-se o que aconteceria se, além de minha visão sobre mim e sobre o mundo, me fossem dadas tam-bém as visões de outrem sobre si, o mundo e sobre mim. Refere-se à visão como “sentido”, como experiência cor-poral. Assim, encontramos o outro não no espaço objeti-vo, da reflexão, mas no meio obscuro no qual a percepção irrefletida se move à vontade. Encontramos o outro assim como encontramos nosso corpo, no campo, na expressão. E é esse o espaço da psicoterapia.

Como me encontrar com Lara? Como conectar-me com ela, me perguntava através do incômodo que sentia. Outra lição merleau-pontyana: o diálogo genuíno é inter-corporeidade. O meu vínculo com a situação e com aquele mundo que o cliente sente como seu mundo, aponta algo daquele (seu) campo, demonstra, reflete o seu vínculo e sua aderência a ele – que como que por um passe de má-gica, ele passa a notar.

O filósofo nos ensina que é quando “surge o insóli-to na partição do diálogo (...) quando uma resposta do outro (aqui, o terapeuta) responde bem demais ao que eu pensava sem tê-lo dito inteiramente” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22), ou quando um gesto sinaliza algo que sinto, “irrompe a evidência de que também acolá, minuto por minuto, a vida é vivida” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22).

Isso é uma demonstração de aderência ao mundo, uma revelação de que aquilo que sinto e não explico é vida passível de ser vivida, é digno de uma subjetividade, de um mundo próprio.

Em algum lugar atrás desses olhos [que me olham], atrás desses gestos, ou melhor, diante deles, ou ainda em torno deles, vindo de não sei que fundo falso do espaço, outro mundo privado transparece através do tecido do meu, e por um momento é nele que vivo [nesse outro mundo privado], sou apenas aquele que responde à interpelação que me foi feita (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22) [observações minhas entre colchetes].

Saio do meu centro, visível, me descentro, porque me vejo no outro – e isso não é projeção – sou arrastado com ele para o âmbito de outrem. Afirma: “a experiência que faço de minha conquista do mundo é que me torna ca-paz de reconhecer uma outra experiência e de perceber um outro eu mesmo, bastando que, no interior de meu mundo, se esboce um gesto (expressivo) semelhante ao meu” (Merleau-Ponty, 1969/2002, p. 171).

A intervenção realmente terapêutica acrescenta esse enigma da propagação no outro da minha vida mais se-creta. Merleau-Ponty afirma:

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Então é mesmo verdade que os ‘mundos privados’ se comunicam entre si, que cada um deles se dá a seu titular como variante de um mundo comum. A comunicação transforma-nos em testemunhas de um mundo único, como a sinergia de nossos olhos os de-tém numa única coisa. Dá-nos, por uma operação de reversibilidade, a experiência intercorporal (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 23).

A intercorporeidade aponta para uma possibilidade de comunicação que prescinde da reflexão, que nos lan-ça além da subjetividade, da “consciência de”, ao âmbito de uma corporeidade, aderência carnal que faz visível, que faz brotar um raio de luz que ilumina toda a carne, por toda parte. Lara chega ao consultório quando nos co-nectamos ambas com a tristeza. Aí ela conquista o mun-do e pode legitimar o que sente. Primeiro passo e indício de um sentido que se anuncia a partir da deiscência da carne, de uma generalidade de ser que se singulariza e a permite ver-se triste. É no âmbito da experiência inter-corporal, compreendo, que fecunda o terapêutico como criação e ação de produção de sentidos. “A mordida do mundo tal como a sinto em meu corpo fere tudo o que está exposto como eu” (Merleau-Ponty, 1969/2002, p. 171). O outro se insere, conclui o autor, na junção do mundo e de nós mesmos, ele é um eu generalizado. É assim que minha relação corporal com o mundo pode ser generali-zada – e podemos falar de uma intercorporeidade como a possibilidade de um sentir com. Ponto de partida para nosso caminho. Vamos, Lara. Sigamos.

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Monica Botelho Alvim -- Doutora em Psicologia, Professora Adjunta na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Departamento de Psicologia Clínica). Endereço Institucional: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Pasteur, 250 (Campus da Praia Vermelha, Urca). CEP 22290-240. Rio de Janeiro (RJ). E-mail: [email protected]

Recebido em 14.07.11Primeira Decisão Editorial em 20.10.11

Aceito em 22.11.11

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penSando o SuiCídio SoB a ÓtiCa fenomenolÓgiCa HeRmenêutiCa: algumaS ConSideRaçõeS

Thinking About Suicide under the Phenomenolocial Hermeneutics: Some Considerations

Pensal el Suicidio en la Hermenéutica Fenomenológica: Algunas Consideraciones

elza duTra

Resumo: Este trabalho tem como objetivo desenvolver algumas reflexões sobre o suicídio a partir da perspectiva fenomenológica-hermenêutica heideggeriana. As noções heideggerianas de ser-aí, ser-no-mundo, angústia e ser-para-morte nortearão as reflexões aqui iniciadas. Para isso utilizamos as narrativas de seis adolescentes que tentaram suicídio, apresentadas em nossa pesquisa de doutorado. Pretende-se, a partir da experiência desses jovens, alcançar uma compreensão mais profunda do suicídio, uma vez que as considerações terão como horizonte a concretude da experiência vivida. Entendendo o ser-aí, o Dasein, como um ser de abertura e, portanto, de possibilidades, a morte se apresenta como a última possibilidade existencial. Na realidade, a morte representa a possibilidade mais concreta com a qual o homem pode contar, como propõe Martin Heidegger. A morte afirma a finitude da vida e da existência. Sobretudo, representa a única certeza para o ser humano. Nesse sentido, interrogamos se o sui-cídio poderia ser pensado como a falta de sentido de si mesmo e um modo impessoal de se lidar com a angústia, eliminando-a. Significaria o desespero por não suportar a finitude da existência? Os questionamentos representam um esforço no sentido de pensar o suicídio a partir de um olhar que contemple a dimensão existencial que caracteriza o Dasein em sua busca de sentido como ser-no-mundo. Esperamos, assim, contribuir para a construção de um olhar desprovido de rótulos e categorizações, como histórica e cientificamente o suicídio tem sido abordado.Palavras-chave: Suicídio; Fenomenologia hermenêutica; Ser-para-morte; Heidegger.

Abstract: This work aims to develop some thoughts about suicide from the perspective of phenomenological-hermeneutics. The Heideggerian notions of being there, being in the world, anguish and death-to-be will guide the discussions started here. For that use the stories of six teenagers who attempted suicide, presented in our doctoral research. We intend, from the experience of these young people, achieve a deeper understanding of suicide, since the horizon considerations will have the concreteness of lived experience. Understanding the being-there, Dasein, as being an opening and, therefore, opportunities, death is present-ed as the ultimate existential possibility. In fact, death represents the most concrete possibility with which the man can count, as proposed by Heidegger. Death claims the finitude of life and existence. Above all, the only certainty is that you have in life. In this sense, we question whether the suicide could be thought of as a lack of sense of self and an impersonal way of dealing with anxiety, eliminating it. Despair would not support the finitude of existence? The questions represent an effort to think of suicide from a look that encompasses the existential dimension that characterizes Dasein in its search for meaning as being in the world. We hope thus to contribute to building a look devoid of labels and categorizations, as historically and scientifically suicide has been discussed.Keywords: Suicide; Hermeneutic phenomenology; Being-for-death; Heidegger.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo desarrollar algunas reflexiones sobre el suicidio desde la perspectiva de la herme-néutica fenomenológica-. Las nociones de Heidegger de estar ahí, estar en el mundo, la angustia y la muerte-a-ser guiará las dis-cusiones iniciadas aquí. Para obtener que el uso de la historia de seis adolescentes que intentaron suicidarse, se presentan en nuestra investigación doctoral. Se pretende, a partir de la experiencia de estos jóvenes, lograr una comprensión más profunda de suicidio, ya que las consideraciones tendrá en el horizonte la concreción de la experiencia vivida. La comprensión del ser-ahí, Dasein, como una apertura y, por tanto, las oportunidades, la muerte se presenta como la posibilidad existencial final. De he-cho, la muerte representa la posibilidad más concreta con la que el hombre puede contar, según lo propuesto por Heidegger. La muerte reclama la finitud de la vida y la existencia. Por encima de todo, es la única certeza que el ser humano tiene en la vida. En este sentido, nos preguntamos si el suicidio podría ser considerado como una falta de sentido del yo y de una manera imper-sonal de tratar con la ansiedad, eliminando la misma. La desesperación no apoyaría la finitud de la existencia? Las preguntas representan un esfuerzo para pensar en el suicidio de una mirada que abarca la dimensión existencial que caracteriza el Dasein en su búsqueda de un sentido como ser en el mundo. Esperamos contribuir así a la construcción de una mirada desprovista de etiquetas y categorías, como histórica y científicamente, el suicidio se ha discutido.Palabras-clave: Suicidio; Fenomenología hermenéutica; Ser-para-la muerte; Heidegger.

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introdução

O objetivo deste artigo é refletir acerca do suicídio sob a ótica fenomenológico- existencial, a partir de pes-quisa realizada com adolescentes que tentaram suicídio (Dutra, 2000). Embora se saiba que as tentativas de sui-cídio (TS) diferem do suicídio (S) em relação a algumas características, tais como: população – os homens come-tem mais suicídio e as mulheres, mais tentativas; faixa etária e meio causador – quando relacionados ao gênero e contexto cultural, são diferentes no S e na TS, consi-deramos que refletir sobre o suicídio a partir de depoi-mentos de quem tentou se matar nos aproxima desse fenômeno (Dutra, 2002; 2010). Não nos propomos a dar respostas sobre o suicídio, uma vez que o único consen-so existente entre os suicidologistas é o de que esse ato é multideterminado, acontecendo quando um conjunto de fatores ambientais une-se a determinados modos de ser. Não é possível, portanto, traçar um perfil do suici-da, como sugerem alguns mitos construídos em torno desse fenômeno.

O motivo ou motivos que levam alguém ao suicídio formam-se ao longo da sua história e se revelam nos sen-tidos e modos de ser que constituem a sua existência. Por isso esse fenômeno não escolhe idade, classe social, gê-nero ou nacionalidade. Em nosso entendimento, o suicí-dio significa, antes de tudo, sofrimento e desespero; ou, como disse Camus (1952), consiste mais numa questão filosófica, uma vez que interroga sobre o sentido da vida. Assim, o nosso intuito é iniciar uma reflexão que, nesse momento, se anuncia como um esboço de idéias e ques-tionamentos de natureza fenomenológica e existencial sobre o tema tratado.

Tendo como horizonte a reflexão pretendida, adota-mos como ponto de partida para este trabalho as entre-vistas realizadas com seis jovens que tentaram suicídio (cinco mulheres e um homem), com idades entre 15 e 20 anos, participantes de um estudo de doutoramento (Dutra, 2000)1. Sendo assim, as reflexões empreendidas, aqui, sobre o suicídio, em alguns momentos envolvem as TS, uma vez que o desejo de interromper a vida, presen-te em ambas as situações, nos permite pensar o suicídio numa dimensão existencial e vivenciada através da nar-rativa de quem esteve próximo da experiência do suicídio. As idéias aqui esboçadas terão como referência teórica e filosófica a fenomenologia existencial segundo o pensa-mento do filósofo alemão Martin Heidegger.

Não causa estranheza se constatar a busca incessante do ser humano pela explicação do seu viver, e do morrer também. De onde viemos e para onde vamos, é a interro-gação que atravessa a existência. Por isso, a finitude é uma das questões mais significativas e presentes nas corren-

1 A referida pesquisa foi desenvolvida no Programa de Doutorado em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa e cumpriu todos os requisitos exigidos para a sua realização.

tes existencialistas. Talvez seja esta a razão da busca dos motivos e a explicação para o desejo de não mais viver, observado de maneira tão clara nas narrativas dos ado-lescentes sobre as suas experiências ao tentar o suicídio. Percebe-se, em todas elas, uma fala que aponta os motivos de cada um, as situações e pessoas envolvidas na experi-ência. A experiência narrada é sempre relacionada a mo-mentos de vida e fatos que conduziram o jovem àquele ato de desespero. Há sempre um motivo ou motivos que são apontados como geradores da crise e que sinalizam para o suicídio como uma saída para o sofrimento.

As experiências de vida desses jovens revelam que a maioria deles encontra-se mergulhada em famílias deses-truturadas emocionalmente, com histórias de agressões físicas e abusos sexuais, geralmente ocorridas no seio da própria família. As narrativas revelam experiências de vida comumente marcadas pela rejeição, abandono e incompreensão. Os motivos causadores da tentativa de suicídio sempre são identificados pelos participantes da pesquisa. Há um sentido, na forma de uma razão aparen-te e consciente que explica o ato que cada um cometeu contra si mesmo, demonstrando uma compreensibilidade dos motivos de cada um, o que pode ser entendido como a presença da compreensão, uma das estruturas existen-ciárias da Analítica Existencial, proposta por Heidegger (1927/1999). As falas de Leila e Marta (todos os partici-pantes do estudo que aqui serão citados receberam no-mes fictícios) ilustram essa compreensão:

Leila:...eu acho que a tentativa de suicídio é mais o “rejeitamento”... Eu acho que pra pessoa tentar se suicidar sempre tem que ter um motivo. A pessoa não vai tentar querer tirar a vida sem ter um motivo... tem aquele motivo... do problema.... Senti vontade de morrer por causa de um homem sem futuro.... Um rapaz sem futuro... que não presta.... Eu pensei em morrer por causa dele....Marta: Esses pensamentos passam pela minha cabe-ça,.quando eu penso em resolver todos os problemas...Aí eu digo: “Eu vou fazer isso... vou resolver tudo...” mas eu acho que não....Queria resolver os problemas... Não quero brigar com meu irmão... Eu tinha que segurar a barra antigamente. Me dava raiva... Aí eu não aguentava...

Nessas falas, os motivos alegados sempre se localizam na figura de um outro, representado pela família, namo-rado, marido e situações desfavoráveis de vida, enfim, pelo outros entes do mundo, trazendo à tona o caráter de mundanidade do Dasein. Podemos perceber a presença da cotidianidade na qual esses jovens estão mergulha-dos, na ruína e decadência, pela absorção de um outro que não é o seu ser, revelando-se como um modo-de-ser na impessoalidade cotidiana. Nesse contexto, percebe-se o momento em que a crise se instala. Nesse sentido lem-bramos Procópio (1999), ao dizer que a crise que surge

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na convivência com um desses outros concretos serve para deixar à mostra e revelar uma angústia que já está aí, porque é originária do ser, como nos faz ver Heidegger (1927/1999). Angústia que ao ser desvelada, e diante da dor que provoca, faz surgir a necessidade de nomeá-la, de fazê-la compreensível, a fim de aliviar o desespero de não se saber. E o que acontece a seguir, é o que ge-ralmente se observa acontecer em um momento como esse. Não raro se aponta um motivo, um acontecimento ou se atribui ao outro a razão do ato, além de este outro ser considerado o elemento causador e responsável pelo acontecimento. Na verdade, é a angústia que não é enca-rada, e da qual o Dasein não se apropria, como parte da sua existência. É a revelação do ser e também do não ser. Porque é nessa dimensão de velamento e desvelamento que se dá a pre-sença, ou seja, a existência. Pois como diz Novaes de Sá (2010):

O Dasein foge de si, esquecendo-se do seu “ser pró-prio”, relacionando-se com ele como algo que já tem uma configuração preestabelecida. A ausência de surpresas e a evidência caracterizam a ocupação e a preocupação cotidianas. O modo de falar e escrever descomprometido (falatório e escritório), a forma des-personalizada e insaciável de lidar com o novo para preservar o conhecido, evitando as transformações (curiosidade), constituem o modo de ser cotidiano do Dasein (p. 185).

No entanto, é justamente no momento da crise que a angústia pode ser facilitadora de uma mudança nos sen-tidos da existência. Como disse Heidegger (1927/1999), nessa situação duas possibilidades se colocam diante do ser: continuar na ruína, ou seja, absorvido pela cotidia-nidade e permanecer na impessoalidade ou se apropriar do si mesmo, ao buscar uma existência mais autêntica. A respeito da angústia, Novaes de Sá (2010, p. 188) diz:

Referimo-nos, anteriormente, à angústia como a dis-posição que leva à possibilidade de singularização, por colocar o Dasein em contato com o seu ser mais próprio, que é a existência como abertura de sentido. Sendo o ser-para-a-morte a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável do homem como projeto, pode-se dizer que toda angústia aponta, em última ins-tância, para o caráter temporal e finito da existência.

Como se pode ver nos atos de suicídio, a escolha tem sido a morte, ou seja, a eliminação da angústia na vivên-cia da última possibilidade do Dasein, a morte. Quando não se abre à angústia, parte-se para localizar no mundo concreto, no outro, e não em si mesmo, uma explicação para a dor. O mundo é responsável pela angústia vivida. É preciso conhecer, classificar e catalogar o sofrimento. Este, decorrente da angústia, necessita ser nomeado e com-preendido. É difícil para o homem olhar de frente a sua

finitude, porque ao fazê-lo, além de enfrentar a certeza da morte, toma consciência de que ninguém jamais poderá viver por ele, desvelando-se, assim, o seu poder-ser; por-tanto, é preciso se apropriar da vida e das suas escolhas. A possibilidade da morte revela a vida que se vive. E en-frentar a realidade da vida que se tem muitas vezes é tão frustrante, que em muitas pessoas prevalece a intolerância à dor, conduzindo-os, freqüentemente, a escolher a morte e assim, escapar do sofrimento. O sofrimento de empunhar o seu si mesmo, de apropriar-se da sua existência assu-mindo todas as implicações que dela decorrem.

A morte, enquanto uma possibilidade, é presente no ser-aí, constituindo-se, portanto, numa abertura que vai ao encontro do Dasein. Entretanto, no mundo contempo-râneo em que vivemos, numa sociedade líquida, como pensa Bauman (2007), o que se percebe é uma busca in-cessante e a qualquer preço, da felicidade. E para isso elimina-se qualquer sofrimento; todo mal-estar será ba-nido, “tratado” e curado, criando-se, inclusive, uma cul-tura de medicalização, como a que vivemos atualmen-te, e que tem sido objeto de estudos, como os de Dantas (2009). Nesse contexto, a condição de sofrente que somos não tem lugar nesse mundo, como não há espaço para se ser triste, frágil, ou simplesmente ser diferente do modo de ser proposto pela sociedade capitalista e de consumo que prevalece no mundo globalizado. Assim, o mundo torna-se cada vez mais inóspito para o ser humano, que se desenraíza e perde, lentamente, a sua morada, o seu ethos (Figueiredo, 1996; Safra, 2004; Dutra 2004).

Nesse contexto de mundo, a ansiedade ocupa o vácuo deixado pelo não-ser. A existência, quando vivida na im-pessoalidade, leva o Dasein, cada vez mais, a afastar-se dos sentidos que lhes são próprios, e desse modo, perder a sua singularidade. Tal modo de viver pode gerar ansie-dade e muitas vezes, depressão; esses modos de ser nada mais representam do que um não-ser, ou seja, a perda de sentido. Quando essas disposições afetivas levam o so-frente aos seus limites mais extremos e o desespero tor-na-se insuportável, então a possibilidade da morte passa a representar o sentido para eliminar tal sofrimento.

Para os jovens do estudo referenciado neste artigo, a tarefa de ser autêntico, de se apropriar de si mesmo tor-na-se mais difícil ainda ou mesmo impossibilitada de ocorrer, quando se considera as diversas circunstâncias que envolvem as suas existências. Além de jovens em plena adolescência, momento esse marcado pelos con-flitos próprios da fase em que se encontram, eles ainda têm que lidar, e como se vê, de forma dolorosa, com as vicissitudes da sua existência concreta, seja no âmbito familiar, seja no contexto social mais amplo. As famílias do estudo referenciado, em sua maioria, eram famílias desestruturadas; os pais não favoreciam vínculos afeti-vos positivos com os seus filhos, quando os assumiam; quando não, atiravam-nos ao mundo para que eles enfren-tassem as suas mudanças e adversidades por conta pró-pria. Ou seja, os pais, como se percebe nos depoimentos,

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não possuíam recursos, em todos os sentidos que a pala-vra evoca, para lidar com a problemática dos seus filhos e exercer um cuidado de um modo pré-ocupado, como pensa (Heidegger, 1927/1999). As palavras de Leila são um exemplo da condição de abandono e desamparo em que essas meninas muitas vezes se encontram. A morte, então, surge como uma maneira de se defender do outro, revelando um desespero e uma busca de proteção. Nessas condições, a morte parece ser uma saída:

Leila: Depois....por conta de um namorado...inferni-zaram a minha vida.... começaram a me agredir...a dizer coisas comigo...minhas tias me chamando de rapariga... me chamando de um monte de coisa... aí eu não tinha como... não sabia como me defender. A única maneira que eu achei de me defender foi ou me matar... ou então dizer que não me lembrava de nada. Aí eu tentei me suicidar....

Não são raras a utilização de drogas, tanto as lícitas, como as bebidas alcoólicas, quanto as ilícitas, além do envolvimento de alguns jovens com traficantes. As expe-riências de algumas adolescentes também falam de de-pressão, internamentos em hospitais psiquiátricos, como mostram os depoimentos de Elizabete e Leila.

Elizabete: Sinceramente... eu não estou entendendo o que se passa comigo. Estou num estágio de vida em que me vejo parada... eu estacionei Eu nem ando... nem volto... nem para um lado e nem para o outro.... Eu parei.... E tenho tido crises depressivas.... Às vezes eu páro em casa e fico pensando em quantas vezes eu quis me matar. Por que será...?

Leila: E depois disseram que eu estava doida e então me internaram na Casa de Saúde. Depois de muito tempo... quando aconteceram esses problemas com o meu namorado... eu fui pra lá. Antes disso eu saí de casa.... Cheguei quase a tomar um litro de cachaça.... Não tomei porque não deixaram... Isso foi há quatro anos atrás ou mais ou menos cinco anos atrás.... Eu tinha em torno de doze anos.... Depois disso... me in-ternaram no hospital psiquiátrico.

A necessidade de ser aceito, amado, surge em todas as falas dos jovens, seja de forma explícita, consciente, ou não. Na verdade, é a falta de amor e a busca do outro que perpassam todos os depoimentos. O viver de forma inautêntica, sem sentido, tem em suas bases a condição co-originária do ser-com, uma vez que o ser é co-origi-nário ao mundo, ou seja, é sendo-no-mundo. Por isso será impossível para o Dasein passar de um modo de ser impróprio para uma existência com propriedade plena, uma vez que essa condição de existir de maneira co-ori-ginária ao mundo e com os outros entes e Daseins, não permite que tal aconteça.

A experiência revelada nas narrativas expressa as pessoas que eles são no momento, vivenciando sentimen-tos de não serem aceitos e reconhecidos como pessoas de valor, ou seja, sem reconhecimento existencial. Nas narrativas de alguns desses jovens, percebe- se a neces-sidade de serem aceitos e amados tal como se percebem; e o sofrimento por não estarem inteiros na sua relação com os pais, ou seja, com o outro. Assim, viver nessas condições será sempre um vivenciar de angústias e so-frimentos constantes, em razão da consciência de não existir, nem para si e nem para o outro. O sentimento de não ser-com-os-outros do seu mundo gera situações que conduzem à sensação de fracasso, desesperança e solidão, criando uma possibilidade para o fim do sofrimento, de maneira mortal, como se viu nas experiências desses jo-vens, através do suicídio.

A solidão é muito presente nas narrativas apresenta-das. Muitas das adolescentes dizem da sua falta de ami-gas, de não ter com quem trocar as suas experiências de inquietudes e tristezas. As relações interpessoais são ca-racterizadas, em sua maioria, pelos conflitos e disputas de homens, territórios e poder. Há uma carência de víncu-los afetivos que possam servir de continente às angústias por que elas passam, seja no contexto familiar ou social. Pode ser em razão dessa falta que alguns deles recorrem às drogas, à vida sexual promíscua e mesmo aos conflitos com os seus pares na rua e escolas. Os comportamentos hostis, assim como as respostas agressivas, muitas vezes em direção aos familiares, podem ser interpretados como expressão do sofrimento por não ser amado.

As experiências narradas nos fazem ver que viver na impropriedade nos afasta do sentido que podemos dar à própria vida e de uma existência com mais propriedade. Elizabete revela que não consegue contatar com a expe-riência do seu ser. Confunde a experiência autêntica de ser com uma imagem que idealiza de si mesma, uma vez que é esta a esperada pelos outros e a quem ela satisfaz, para, assim, sentir-se amada. Em outras palavras, pode-mos dizer que Elizabete, como outras jovens aqui apre-sentadas, deixou-se absorver pela cotidianidade, passan-do a viver na impropriedade e na impessoalidade, como nos faz pensar Heidegger (1927/1981).

Essa condição, portanto, vai gerar uma alienação de si; um não-sei-quem-sou, que, além de permear de forma contundente e previsível o processo de adolescer, agrava-se pelo sofrimento gerado pelas circunstâncias desfavo-ráveis com que cada um deles se depara em sua vida e pela própria condição de existir.

Pensando o suicídio, quem sabe este pode ser compre-endido como uma maneira de lidar com a angústia, elimi-nando-a. Seria a incapacidade de enxergar uma existência na qual o outro se institua de um jeito novo, distinto da-quele que o absorveu. Ou seja, a descrença de que a vida possa ser vivida de outra maneira, com um sentido pró-prio, o que significaria uma recusa em continuar sendo como antes. O suicídio ainda poderia ser pensado como

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uma forma desesperada de se apropriar da vida, do seu ser, ainda que seja eliminando-o, o que não deixa de ser um modo de assumir o seu destino, como um ser-para-a-morte. É possível pensar o suicídio em razão, entre tan-tos outros motivos, do desespero de não poder enfrentar a finitude da existência, o ser-para-a-morte. Assim, esse ato pode significar a onipotência de se tomar nas mãos o destino do ser-para-morte. Isso pode ser percebido nas experiências dos jovens deste estudo, que colocam a tenta-tiva de morte como um desejo de sair do sofrimento, sem que se pense na possibilidade de retomar a vida com um modo de ser diferente. Ao pensar dessa maneira, o desejo de morte então se sobrepõe, pela descrença em novas pos-sibilidades existenciais. Pois a resposta continua sendo o outro, o que significa um não apropriar-se da existência, como se percebe nas palavras de Márcia:

Eu sou muito nova... eu tenho quinze anos agora... eu ainda vou aproveitar muito.... Que um dia vai chegar uma pessoa que me faça feliz... Eu estou esperando isso.... E também não estou fazendo nada para ser feliz...

Mesmo após a tentativa de morte, ou seja, a crise, Márcia ainda não conseguiu perceber outra possibili-dade para a sua existência. Continua sem apropriar-se do seu ser, à espera de alguém que faça isso por ela. Na verdade, compreendo que esta é uma tarefa muito árdua para essa menina de quinze anos, que desde os treze foi expulsa de casa pelo pai, que a rejeita até hoje. Foi obri-gada a entrar na adolescência como uma adulta capaz de autonomia, em todos os sentidos, mas sem condições reais para fazê-lo, em razão da natural imaturidade da idade e da sua condição de ser-no-mundo.

Outra direção do olhar nos levaria a entender o sui-cídio como uma paralisação diante da abertura do ser-aí às possibilidades e, diante da finitude, a morte, que não se sabe quando virá e, assim, tenta-se antecipá-la. Desse modo, alivia-se a angústia de saber-se um ser que, em sendo um ser-para-a-morte, deve acolher, em seu proje-to, essa possibilidade. Viver um projeto que inclua o ser-para-a-morte não significa antecipá-la, eliminá-la ou vi-ver no sofrimento, morrendo a cada momento. É, antes de tudo, encará-la como uma das possibilidades do ser-aí, como abertura ao mundo. É viver a angústia como uma das possibilidades do ser, entre elas, a morte. Ainda so-bre a morte e seguindo as idéias de Heidegger, Novaes de Sá (2010, p. 189) afirma:

O Dasein se esquece de que existe, projetando-se e compreendendo-se antecipadamente em suas possibi-lidades, e se perde nos ruídos ambíguos do falatório. Nesse contexto, a morte é encarada como um fenô-meno do qual é preciso desviar-se, pois a existência deseja fugir da angústia perante a possibilidade do não-ser. É somente experienciando essa angústia

diante do nada que o Dasein pode escolher-se a si mesmo e encontrar o que tem de mais próprio e sin-gular para além das estruturas do “mundo público” e impessoal.

Assim, sair da vida pode ser entendido como uma recusa a enfrentar a responsabilidade por ela. Seria antecipar o final do ser, que é a morte. Como diz Boss (xxxx/1981, p. 40), “(...) o futuro do ser humano, ele só o al-cança completamente no momento da morte”. Ao mesmo tempo, seguindo o pensamento de Boss, a culpa, tal como a angústia, por ser inerente ao homem, dela jamais este se livrará. De nada adiantam as explicações concretas, no ní-vel biológico, psicológico ou psicodinâmico sobre a culpa e a angústia, já que esta se constitui pela falta, que sem-pre acompanhará o homem. Vista sob o ângulo também da culpa, do ficar-a-dever, no dizer de Boss, o suicídio se configuraria no ficar-devendo, ou no débito, segundo Heidegger, no abrir mão do poder-ser; no desvencilhar-se da existência escolhida e responsável e mergulhar no vácuo do não-ser. Seria uma entrega a esse sentimento indissociável do ser humano, que é a culpa.

A visão de Dasein, de ser-aí, ser-para-a-morte e co-tidianidade, entre outras idéias heideggerianas, nos faz encontrar neste filósofo um pensamento extremamente contemporâneo, criando um horizonte que favorece uma compreensão mais ampla das questões da existência, en-tre elas, o suicídio. Assim, o que fica mais evidente e que ressalta aos nossos olhos nessa visada fenomenológica sobre o suicídio, é a dimensão existencial que se revela em cada experiência narrada. Independente das condi-ções que circunscrevem o suicídio e por meio das quais esse fenômeno é abordado, tais como as condições mate-riais, sociais, psicológicas e psiquiátricas, entre outras, o que vem em primeiro plano e que se impõe aos nossos olhos diante de todas as categorizações do ser humano, é a existência. É a capacidade do homem para existir de uma forma singular, numa condição existencial criadora de sentidos, fazendo com que pessoas em condições de vida semelhantes não percorram o caminho previamente determinado e esperado por uma sociedade tecnicista e que ignora o outro enquanto sujeito singular.

O que sugere que antes de qualquer categorização, ró-tulo ou algo semelhante que tente aprisionar o homem, está o ser, que surge na clareira do ser-aí, na abertura do homem ao mundo. Pois é através de um movimento de ve-lamento e desvelamento que a existência se constrói, num eterno e infindável processo de vir-a-ser, impedindo que o Dasein seja considerado um ser simplesmente dado ou cristalizado no seu desocultamento, condição intrínseca da existência. É também essa condição que nos legitima como responsáveis pelo nosso destino e, ao mesmo tem-po, nos lança na incerteza desse mesmo destino, quando nos coloca como seres de possibilidades e assim, existin-do num processo permanente de escolhas, em busca da completude que nunca virá. Portanto, diferentemente da

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tradição objetivista e técnica que prevalece nas ciências e no mundo ocidental, pensar o suicídio numa perspec-tiva fenomenológica hermenêutica heideggeriana desve-la a possibilidade de se considerar este fenômeno como expressão da angústia e do desamparo humano diante de um mundo que será sempre inóspito para o Dasein na sua condição existencial de ser-no-mundo. E esta, certa-mente, se constitui num outra possibilidade de pensar o suicídio; não a única ou a mais verdadeira, apenas outra possibilidade, mais condizente com a condição de singu-laridade e de solicitude que caracterizam o ser humano.

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Elza Dutra - Psicóloga e psicoterapeuta. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), e Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço Institucional: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Departamento de Psicologia. Campus Universitário, Lagoa Nova, s/n. CEP 59075-970. Natal/RN. E-mail: [email protected]

Recebido em 06.07.11Aceito em 15.11.11

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o Cuidado Como amoR em HeideggeR

Care like Love in Heidegger’s Thought

Cuidado como Amor en Heidegger

marCos aurélio Fernandes

Resumo: O presente artigo procura compreender uma indicação dada por Heidegger a Medard Boss, segundo a qual “Sorge” (cura, cuidado) não pode ser diferenciada em contraposição ao amor, como fizera Binswanger, por ser o nome para a constituição extático-temporal do traço fundamental da presença (Dasein), ou seja, da compreensão do ser. O artigo analisa cada momento desta indicação e busca compreender em que sentido cuidado é, ontologicamente, o mesmo que amor.Palavras-chave: Cuidado. Amor. Temporalidade. Presença. Ser.

Abstract: This article seeks to understand a statement given by Heidegger to Medard Boss, according to which “Sorge” (cure, care) can not be differentiated as opposed to love, as had Binswanger, because it is the name for the constitution ecstatic and temporal of the fundamental trace of presence (Dasein), or, the understanding of being. The article analyzes every moment of this statement and seeks to understand the sense in which care is ontologically the same as love.Keywords: Care. Love. Temporality. Presence. Being.

Resumen: Este artículo trata de comprender una declaración dada por Heidegger a Medard Boss, según el cual “Sorge” (cura, la atención) no se pueden diferenciar en lugar de amor, como lo había hecho Binswanger, por ser el nombre para la constitución extática-temporal del trazo fundamental de la presencia (Dasein), es decir, la comprensión del ser. El artículo analiza en cada momento de esta declaración y trata de comprender el sentido en que la atención es ontológicamente lo mismo que el amorPalabras-clave: Cuidado. Amor. Temporalidad. Presencia. Ser.

uma Crítica e uma Resposta

Nos Seminários de Zollikon, certa vez, em diálogo com Medard Boss, Heidegger recorda uma crítica feita a ele por Ludwig Binswanger, de que teria se esqueci-do de falar de amor. Ele teria falado do cuidado (Sorge) em seu caráter sombrio, teria falado da angústia e do tédio como humores ou disposições fundamentais da existência humana e teria se esquecido do amor. A esta crítica, Heidegger (1994a, p. 237) responde da seguinte maneira:

Contudo Sorge (cura, cuidado), se entendido de ma-neira correta, isto é, de modo fundamental-ontológico, nunca pode ser diferenciado em contraposição ao amor, mas é o nome para a constituição extático-temporal do traço fundamental da presença (Dasein), a saber, da compreensão do ser.1

O que o presente texto propõe é compreender esta indicação de Heidegger a respeito da Sorge (cura, cui-dado). Como compreender aquilo que Heidegger chama

1 Aber Sorge ist recht, d.h. fundamentalontologisch verstanden, ni-emals unterscheidbar gegen die ’Liebe’, sondern ist der Name für die ekstatisch-zeitliche Verfassung des Grundzuges des Daseins, nämlich als Seinsverständnis. Tradução do autor.

de “Sorge” (cura, cuidado)? Em que medida é o mesmo a “cura” e o “amor”, ou seja, em que sentido há uma coin-cidência no ser entre ambos? É fácil, para a nossa repre-sentação cotidiana, entender onticamente o amor como cuidado, mas, como entender ontologicamente o “cuida-do”, a “cura”, como amor?

1. o Horizonte do entendimento fundamental-ontológico

Entretanto, o que significa esta passagem do ôntico para o ontológico? Denominamos de “ôntico” o que con-cerne ao ente, ou seja, ao que é, ao sendo. Denominamos de “ontológico” o que concerne ao ser. Esta distinção pres-supõe, pois, uma diferença, não entre ente e ente, mas entre ente e ser. Como, porém, esta diferença entre ente e ser é uma diferença de ser e não uma diferença entre en-tes ou entre aspectos dos entes, não sendo, portanto, uma diferença ôntica, então a denominamos “diferença onto-lógica”. Nesta colocação, porém, está pressuposto que, se vigora uma diferença, vige também uma referência entre ente e ser. Pois, como poderia haver uma diferença sem referência mútua? Ente e ser se diferenciam à medida que se referenciam um ao outro. Contudo, também esta referência não é ôntica, isto é, uma referência entre ente

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e ente ou entre aspectos do ente, mas uma referência de ser entre ente e ser, portanto, uma referência ontológica. A questão é: como fica essa colocação para quem só tem olhos para o ôntico? Resposta: não fica, supondo-se que haja alguém assim. Mas, há alguém assim? A resposta, neste caso, parece ambígua: por um lado, todos somos de alguma maneira cegos para o ontológico; por outro, todos, por natureza, temos a capacidade de vê-lo. Com efeito, nós já sempre o vimos, mas não nos atinamos para essa visão. Nós já partimos sempre de uma apreensão do ente enquanto ente, e isto quer dizer, do ente no seu ser. Dito de outro modo: nós nos movemos já sempre numa com-preensão do ser, embora esta compreensão seja, de início e na maior parte das vezes, não temática, não explícita, não teórica, mas antes “operativa”, que se dá com e no nosso próprio ser, com e no nosso próprio existir, em-sendo, em existindo (Heidegger, 1988, p. 29). Em todo o lidar com o ente nós já sempre o apreendemos como ente simples-mente e, ademais, como ente deste ou daquele ser: o ins-trumento na sua instrumentalidade, o vivente no vigor da vida, o homem no modo de ser de sua humanidade, etc. Em-sendo, nós mesmos já sempre nos abrimos para o ser, a priori, nós já sempre mantemos uma relação de ser com o que somos e com o que não somos, com o que podemos ser e com o que devemos ser, com o que vamos nos tornando, enfim, com nossas possibilidades e impos-sibilidades de ser. Esta abertura se dá numa compreen-são, que é anterior a toda tematização, que é ela mesma e nela mesma um poder-ser. É a partir desta compreen-são, ainda que vaga e mediana, ainda que atemática, que nós podemos dizer “é”, “sou”, “és”, “somos”, conjugando o verbo “ser” nos seus tempos e nos seus modos, abrin-do as nossas possibilidades de nos pronunciarmos e de nos comunicarmos, de falarmos das nossas coisas e das nossas causas, etc.

Na indicação acima de Heidegger, somos remetidos ao “ontológico”: somos advertidos para o fato de que “Sorge” (cura, cuidado) é entendida corretamente se for assumida de modo fundamental-ontológico, como um traço funda-mental que caracteriza o humano enquanto presença, a saber, a compreensão do ser. O ôntico do ente que somos nós mesmos é de tal feitio que é em si mesmo ontológico (Heidegger, 1988, p. 38). O humano enquanto presença (Dasein) se cumpre como e a partir de uma relação com o ser, relação que se cumpre como “compreensão”. Ao dizermos “traço fundamental que caracteriza o humano enquanto presença” o fazemos correndo o risco de uma incompreensão, devido à ambiguidade latente nesse dizer. Não se trata do humano enquanto substância (um “certo quê”), nem do humano enquanto sujeito, modo predomi-nante de o humano se dar na época moderna. O humano, aqui, não é sujeito, nem o ser, aqui, não é nenhum objeto. A compreensão do ser por parte do humano também não é nenhum conhecimento objetivo. E, por não ser objetivo, não é nem mesmo subjetivo. Pois só há objeto onde há sujeito e só há sujeito onde há objeto. Sujeito-objeto são

dois polos de uma mesma relação funcional. Só vigoram a partir da vigência da funcionalidade. Ora, a presença é um modo de ser epocal do humano que se subtrai a esta vigência da funcionalidade. O que? Mas, o que experi-mentamos a todo o momento não é que justamente esta vigência se dá em sua hegemonia incontestável hoje por toda a parte e a todo o momento? Na vigência da funcio-nalidade tudo já não se tornou sistema? Talvez sim. E na vigência do sistema, tudo não já se tornou insumo e re-curso e não é a partir daí que se organiza a “sociedade da produção”, inclusive sua última concreção, a “sociedade do conhecimento”? Então, o que é a presença? Neste con-texto, talvez uma possibilidade de ser do humano que não há, um nada. Somos e não somos presença. Ou melhor: em não sendo presença, podemos ser presença. Mas este poder-ser pressupõe a necessidade de nos subtrairmos da hegemonia da funcionalidade, isto é, da objetividade e da subjetividade, do sistema e da vivência. Este subtrair, no entanto, não é nenhuma fuga ôntica, mas é, antes de tudo, um adentrar mais profundamente, só que esta “in-trodução” é de cunho ontológico. Supõe a intenção de pensarmos o sentido de ser que vigora na hegemonia da funcionalidade, de seguirmos o que aí se retrai, o que se encobre e se vela, o que se resguarda e se protege, como um “nada” (Heidegger, 1999, p. 57-63).

Portanto, falar do humano enquanto presença e do traço fundamental do cuidado, não é descrever o huma-no enquanto algo já constituído, enquanto um determi-nado quê aí ocorrente, com determinadas propriedades características, objetivamente dadas. Nem é mesmo fa-lar do humano enquanto sujeito que se autoconstitui em seus relacionamentos com os objetos e o mundo objetivo, com o outro enquanto objeto ou mesmo com o outro en-quanto outro sujeito no mundo das relações intersubje-tivas; nem consigo enquanto objeto, nem mesmo consigo enquanto sujeito, pondo-nos na perspectiva de um mun-do intrasubjetivo. É que todo objetivo e todo o subjetivo, mesmo o inter e o intrasubjetivo, tanto a perspectiva da racionalidade e suas operações, quanto da animalidade e de suas vivências, já se encontram no lance da com-preensão de ser dominante e hegemônica hoje, que é o da funcionalidade.

Falar do humano enquanto presença, porém, é outro lance. Isto é, significa abrir outro horizonte de compreen-são, por conseguinte, de poder-ser. É um aceno ao futuro, portanto (Heidegger, 1994b, p. 294). Contudo, não se trata de entender o futuro como prolongamento do passado e do presente, mas como porvir, um porvir a partir donde emerge a possibilidade de uma passagem, que reponha o humano numa relação originária com o ser. Contudo, mais uma vez, não se trata de passar de algo real a ou-tro algo real, mas da passagem de um poder-ser a outro poder-ser, de uma passagem que é, na verdade, um salto, um salto de liberdade que, abismando-se no nada, fun-da outro modo de ser para o humano, um modo de ser que se chama presença por possibilitar ao humano ser o

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aí do ser, ou seja, que se rege na proximidade do ser, do ser não como funcionalidade, mas do ser como evento-apropriador (Ereignis).

Se essa for a questão, então o humano que hoje vigora não é tanto presença, mas ausência (Heidegger, 1994b, 323). O que hoje celebramos como ser não é tanto ser, mas nada; o que hoje consideramos um nada, não é tanto um nada, mas ser numa plenitude ainda não pressenti-da. Esta passagem é, portanto, uma guinada (Kehre) no ser e no humano. E a crise de nosso tempo pode guar-dar em si a prenhez de uma decisão, que versa sobre esta passagem, ou seja, se ela acontece ou não, quer dizer, se aquela guinada se consuma ou não. Ou então, a decisão que versa sobre o fato de se esta decisão mesma aconte-ce ou se ela simplesmente não acontece e o homem e o ser sigam vigorando como vigoram (ou como não vigo-ram) na hegemonia da funcionalidade. Em todo o caso, pensar em face a essa decisão que é um poder-ser, sig-nifica, sempre renunciar a toda futurologia e cálculo so-bre o futuro e a aguardar, na vigilância, o inesperado de uma outra parusia do ser e, por conseguinte, de uma ou-tra essencialização do humano. A questão é: se da crise que abala os fundamentos mesmos de uma história que vigora há cerca de dois milênios e meio, pode irromper uma outra regência do ser e uma outra vigência do hu-mano. Neste contexto, se o pensamento também encon-tra um caminho de passagem para outro início em diá-logo com as fontes do primeiro início, de onde vivem as possibilidades da metafísica, cuja última ressonância é o domínio absoluto da tecnociência e o controle do real pelo virtual.

À luz desta situação epocal, há que se ler de modo di-verso o sentido de uma ontologia-fundamental. Para co-meçar, ontologia não é, aqui, uma disciplina que estuda o ente, mas sim um pensar que busca, pergunta, questiona, investiga o sentido do ser. Enquanto tal, ela fundamen-ta e supera, ao mesmo tempo, toda ontologia (Heidegger, 1994b, p. 305). O que está em jogo aqui é, na verdade, uma transformação no próprio perguntar do pensamento: a passagem do questionamento que pergunta pelo ser do ente (o que é o ente enquanto ente, isto é, o que é o ente no tocante ao ser?), que visa o ser como entidade, para o questionamento que pergunta pela verdade do ser mesmo, de seu desencobrimento e encobrimento, ou melhor, de seu abrir-se e clarear-se e de seu resguardar-se e ocultar-se. Isto significa: estar atento à verdade do ser, ao modo como o ser, dando-se, se retrai; presenteando-se, se sub-trai; destinando-se, se resguarda. Pensar é, neste sentido, deixar-se atrair pela força de tração do retraimento do mistério do ser nas destinações de nosso tempo. É estar atento ao nada na vigência do ser, ou seja, à ausência na presença e à presença na ausência, seguindo, nos cursos, percursos e discursos da linguagem, a dinâmica do tem-po. Pensar é, pois, fundar, no humano, o “medium” para o dar-se da verdade do ser. É, por conseguinte, cofundar o humano como presença: ser o aí-do-ser. Neste sentido, a

ontologia fundamental é uma arrancada para a passagem, um embalar-se para o salto, um primeiro movimento em favor da fundação da verdade do ser no humano como presença. Isso comporta uma transformação do humano de senhor do ente em pastor do ser:

O homem foi ‘lançado’ pelo próprio Ser na Verdade do Ser, a fim de que, ec-sistindo nesse lançamento, guarde a Verdade do Ser; a fim de que, na luz do Ser, o ente apareça como o ente que é. Se e como o ente aparece, se e como Deus e os deuses, a História e a natureza ingressam, se apresentam e se ausentam da clareira do Ser, isso não é o homem quem decide. O advento do ente repousa no destino do Ser. Para o homem, a questão é, se ele encontra o que é ‘destinado’ à sua Essência, correspondente ao destino do Ser. Pois é de acordo com esse destino, que, como ec-sistente, ele tem de guardar a Verdade do Ser. O homem é o pastor do Ser. É somente nessa direção que pensa Ser e Tempo, ao fazer, ‘na Cura’, a experiência da existência ec-stática (Heidegger, 1967, p. 50s).

Partindo, pois, destas indicações de Heidegger sobre a “Sorge” (cura, cuidado) em seu sentido ontológico, ten-temos aprofundar a sua compreensão e ver o que ela tem a ver com o amor.

2. presença e ausência

A primeira indicação diz: “Sorge” (cura, cuidado) é o nome para a constituição extático-temporal do traço fun-damental da presença (Dasein), a saber, da compreensão do ser. Como entender esta indicação?

Em primeiro lugar, o que quer dizer presença (Dasein)? Em sentido usual na língua alemã Dasein significa estar aí. Heidegger usa a palavra francesa “présence” (presen-ça), aludindo ao significado usual de Dasein. Aqui con-vém apresentar a citação na língua alemã, seguida da sua tradução em língua portuguesa, para que apreendamos este uso da palavra.

No significado costumeiro, porém, quer dizer, por exem-plo: a cadeira “está aí”; o tio “está aí”, ele chegou e está presente; daí: presença (Heidegger, 1994b, p. 300).2

No significado usual, pois, o verbo dasein quer dizer “estar aí”: presença. Em grego seria parousia. O nome pa-rousia significa presença, aparecimento, vinda. A tradu-ção para o latim é: adventus. Parousia remete ao verbo pareimi, estar presente, ter vindo. O que está aí é pen-sado, pois, como o que adveio ou sobreveio. Presença é a vigência do que advém e sobrevém. Perdendo-se de

2 In der gewöhnlichen Bedeutung jedoch meint es z.B.: der Stuhl “ist da”; der Onkel “ist da”, ist angekommen und anwesend; daher présence. Grifos de Heidegger.

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vista esta dinâmica temporal, porém, a presença passa a ser entendida como simples “ousia”: a presença ou o que está presente, ou seja, o que está aí. Caso se entenda a presença do presente como o repousar em si mesmo, como autossubsistência ou autoconsistência, visando o ser em si de alguma coisa, então ousia se traduz em la-tim para substantia (substância). Entretanto, na história da metafísica, a compreensão do ser vai se esvaziando cada vez mais: de vigência do que advém a simples pre-sença e da simples presença a substância e da substân-cia ao mero ocorrer aí de algo, de uma res (coisa), de cer-to “quê” (aliquid). Na modernidade, o “quê” passa a ser interpretado como o que é apresentado e representado por e para um sujeito, ou seja, por um ente que é fun-damento ou suporte (subjectum) de toda apresentação e representação dada no conhecimento, o qual passa a ser compreendido em sua função objetivante, e cuja consti-tuição se dá como autopresença ou como presença de si a si mesmo (a “mens”, o “ego cogito”, a “res cogitans”). A presença por excelência passa a ser esta substância que é autopresente e que se apresenta e representa todo o ente no projeto de domínio calculador de todo o ente, pela ciência e pela técnica. A partir daí todo o ente, objetivo (simplesmente presente) ou subjetivo (autopresente), se equaciona no horizonte da funcionalidade do “poder”, ou melhor, da inessência do poder, que agencia o domí-nio, que tudo domina, explora e controla. O ser do ente, ou seja, a presença do presente passa a ser compreendi-do no horizonte da funcionalidade, isto é, como recur-so, insumo, elemento de um processamento infinito de produção. Em tudo isso, porém, a presença é pensada a partir da compreensão do ser como simples ocorrência, isto é, na perspectiva da instrumentalidade ou da dispo-nibilidade para a produção. Tudo se nivela na impesso-alidade funcional. O homem mesmo se torna um “que”, um elemento, recurso, mesmo que fundamental, dentro da vigência desta funcionalidade técnico-científica, a serviço da produção.

Contudo, a partir da ontologia fundamental, “pre-sença” (Dasein) nomeia justamente a apreensão e com-preensão de um poder-ser do homem, do humano e de sua humanidade, que se subtrai ao horizonte da simples ocorrência, quer como substancialidade, quer como sub-jetividade e objetividade, quer ainda como recurso da funcionalidade produtiva. Presença nomeia, então, não simplesmente um “quê”, mas um “quem”. Ela responde não à pergunta: “o que somos nós?”. Ela corresponde ao questionamento “quem somos nós?” (Heidegger, 1994b, p. 48-54). Presença não é algo, mas alguém. Seria, porém, um equívoco logo empurrar a presença para dentro do ho-rizonte da “pessoa” (Heidegger, 1988, p. 84-85). Com efei-to, a pessoa veio sendo interpretada, ao longo da história, ou como substância ou como sujeito e hoje se encontra absorvida na impessoalidade funcional da técnica e da sociedade de produção, inclusive em seus aspectos “vi-venciais”. A presença como “ser-quem” e não como “ser-

que”, portanto, haure o seu vigor do porvir, como fun-damento para o homem porvindouro. Ela é um apelo de ser que nos alcança, ou seja, que alcança a nós, humanos deste tempo, na passagem. Alcançar uma compreensão do cuidado requer, portanto, a capacidade de nos manter-mos no sentido de ser (horizonte de compreensibilidade) que nos advém do “ser-quem”, subtraindo-nos, assim, do sentido de ser dominante do “ser-que”.

A partir desta perspectiva, o que nós temos comu-mente como presença (Dasein, ousia), a saber, a mera presença, a ocorrência no horizonte do “ser-que”, tanto como substancialidade quanto como objetividade-sub-jetividade, ou ainda quanto como recurso da funciona-lidade, passa a ser chamado de ausência (Wegsein, apou-sia). Arrebatado, isto é, endoidecido e apaixonado pela mobilização total do produzir e do dominar, encantado pelos dispositivos e pelas disponibilizações da operacio-nalidade funcional da técnica, em toda a parte e a todo o momento ocupado e preocupado com o ente, ao homem permanece velado, oculto, desconhecido, o mistério do ser. Ele, epocalmente, “não está nem aí” para o misté-rio de ser. Este fechamento e encobrimento que vigora como esquecimento, melhor, como esquecimento do es-quecimento, só pode ter o ser como nada, só pode ter o pensar que medita o sentido do ser como delírio. Esta situação não é superada ali onde se condena a raciona-lidade com sua unilateralidade e se procura refúgio nas “vivências” (Heidegger, 1994b, p. 131). Por isso, o pós-moderno é ainda, neste sentido, um prolongamento do moderno, da ausência que se consuma na modernidade, portanto, não é propriamente uma passagem, mas uma aparência de passagem. Uma passagem só se cumpre na presença e como presença.

Presença é um modo de ser, no qual o aí é, toman-do-se o verbo ser, por assim dizer, como ativo-transiti-vo (Heidegger, 1994b, p. 296). Ser o aí é, por assim di-zer, fundar o aí, deixar e fazer viger o aí, a saber, o aí para o ser e do ser. Presença é “estar aí” para o mistério do ser. É ser o aí, ou seja, a abertura que deixa ser o ser em sua proximidade. Cuidado é o ser (o viger) do aí. O homem, fundado na presença, deixa de ser o senhor do ente, para se tornar o cuidador do ser. Somente cuidan-do do ser é que o homem deixa ser o ente como ente. Do contrário, no esquecimento do ser, o ente só vigora em sua inessência, em sua niilidade (niilismo). Contudo, se a presença vigora como um “ser-quem” e não como um “ser-que”, então, também o “ser” e o “cuidar” só poderão ser apreendidos e compreendidos em seu sentido a par-tir do “ser-quem”.

Entretanto, poder-se-ia perguntar: qual a necessidade da transformação do humano, aqui evocada, de senhor do ente em cuidador do ser? Resposta: o homem precisa se transformar para poder-ser si-mesmo. É no horizonte do poder-ser-si-mesmo que se inscreve a necessidade de o humano e sua humanidade se fundar no fundo e no abismo (sem-fundo) da presença.

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3. os momentos estruturais do Cuidado: existencia-lidade, facticidade e decadência

Voltamos, agora, à indicação dada por Heidegger a respeito de como compreender o cuidado. “Sorge” (cura, cuidado) é o nome para a constituição extático-temporal do traço fundamental da presença (Dasein), a saber, da compreensão do ser.

O cuidado é indicado como “traço fundamental” da presença. Não se há de entender o cuidado, porém, como uma característica ou uma propriedade ôntica de um ente que ocorre aí (“presença” como ocorrência). O traço resulta de um traçar. O traçar, contudo, se cumpre num imaginar. O humano como presença é uma imaginação (Heidegger, 1994b, p. 312). Contudo, essa imaginação não é nem empírica nem transcendental. É, antes, existencial-ontológica. Este imaginar tem o sentido de trazer à luz o que vigora como poder-ser. Significa intuir no porvir outra possibilidade de configuração do humano e de o humano ser o que ele é, ou seja, configurador do mundo. Trata-se, portanto, de criar, a partir do poder-ser, outra forma de essencializar-se do humano, na qual a huma-nidade do homem não se encontre fechada, mas aberta para o mistério de ser. Imaginação tem o sentido, aqui, de projeção da fundação da presença em seu poder-ser fundamental, como clareira do ser.

Na ontologia fundamental, o cuidado aparece como uma totalidade estrutural (Heidegger, 1988, p. 255). Estrutural é aquela totalidade em que o todo se encontra todo em cada um de seus momentos. Isso quer dizer: to-talidade não é, aqui, soma de partes, pois a presença não é nenhuma ocorrência (coisa ou “substância”); também não é sistema, pois a presença não é um ente que ocorre a modo do ser funcional (mecânico ou orgânico, causal-eficiente ou causal-teleológico). Estrutural é uma totali-dade existencial, isto é, uma totalidade que tem o modo de ser da liberdade. Isto quer dizer que as estruturas do cuidado são estruturações da liberdade. Somente a par-tir do sentido de ser (horizonte de compreensibilidade) do ser-quem e da liberdade (ser-livre) é que pode aconte-cer a compreensão do poder-ser da presença e, por con-seguinte, do cuidado.

A estrutura do cuidado reúne três momentos: exis-tencialidade, facticidade e de-cadência (Heidegger, 1988, p. 255).

Existencialidade é o caráter de ser da existência. A palavra existência, aqui, não tem o sentido habitual de ocorrência efetiva de alguma coisa, nem mesmo o sen-tido tradicional filosófico. Em sentido tradicional a pa-lavra existência significa o “que” do ser: que o ente é (que-ser) e que ele é como ele é (como-ser). Esta se conju-ga com a essência ou quididade: “o que” o ente é (o que-ser). Enquanto a essência é entendida como possibilida-de (potência), a existência nomeia a realização efetiva daquela possibilidade, o ser real do ente (ato, realidade como efetividade). Existência, porém, no contexto da

ontologia fundamental significa a essência (no sentido verbal de viger, de conceder ou propiciar vigência) da presença (Dasein), do ser-quem. Se a existência é a es-sência (o que deixa e faz viger) da presença; a cura ou cuidado (Sorge) é a essência da existência; e a tempora-lidade é o sentido de ser da cura (Sorge); então a existên-cia é (vige como) temporalidade. A existência é, portan-to, essencialmente extática. “Ex-sistere” significa “estar fora de si”, “pôr-se de pé no fora”, isto é, ser exposto ao ente como ente, ou seja, estar fora na abertura do ser. Existir é, neste sentido, estar inserido na verdade do ser; é insistir nela; é nela estar arraigado.

A partir deste caráter extático é que se determina o que é o ente em questão (a presença): ele não é um que, mas um quem. Enquanto tal, ele não é uma coisa que ocorre aí, simplesmente dada; nem uma coisa de uso, um instrumento, cuja serventia se dê para isso ou para aquilo, mas ele é por mor de si mesmo (worumwillen) (Heidegger, 1988, p. 256). Esta expressão “por mor de” sig-nifica na linguagem habitual “por causa de”. Em sua ori-gem, porém, tem o sentido de “por amor de”. A presença, enquanto existência, é não por amor de outra coisa (não é “um meio para um fim” – usando-se o modo de dizer de Kant), mas é por amor de si mesma (é “um fim em si mesma”). Isso porque, na presença enquanto existência, ou seja, enquanto um ente da liberdade, o que está em causa ou em jogo é, cada vez e sempre, em toda decisão, o seu ser, o seu poder-ser si-mesmo. Existir é, neste sen-tido, ser livre para o poder-ser mais próprio. Enquanto tal, ou seja, enquanto ser-para-o-poder-ser-mais-próprio, existir significa já sempre estar indo adiante de si mesmo, antecipar-se, preceder-se a si mesmo (sich vorweg sein). Existir é, pois, ultrapassar-se, transcender-se. Só que este transcender-se não é ultrapassar-se na direção do que não se é, mas sim, ultrapassar-se na direção do próprio ser, ou melhor, na direção do poder-ser mais próprio, ou seja, daquele poder-ser em que a presença pode ser mais propriamente o que, melhor, quem ela é. Existir é, pois, estar sob a lei da liberdade, que diz: “torna-te o que tu és”. Isto significa: torna-te quem tu és, melhor ainda, torna-te quem tu podes ser.

O si-mesmo, aqui, não é a coincidência do eu consigo próprio, a coincidência entre o representador e o repre-sentado, a autoconsciência ou autopresença da mente. O si-mesmo é a regência do próprio. É o acontecer pelo qual a presença vem a si e para junto de si (Heidegger, 1994b, p. 319). Somente à medida que a presença vem a si e jun-to de si é que ela pode propriamente assumir o ser para os outros. É a partir do si-mesmo que o eu, tu, nós en-contram seu modo apropriado de ser. O vir para si e o ser junto de si da presença, porém, não se dá como reflexão da consciência, como autoconsciência do eu. A “retror-relação” expressa no “vir-a-si” e no “ser-junto-de-si” não pode ser compreendida a partir do horizonte da consci-ência e de sua reflexão, mas é um acontecer da presença a partir da regência do próprio. O si-mesmo não é algo

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já dado, a modo de ocorrência. O si-mesmo é o dom de uma apropriação e a apropriação de um dom. Apropriar-se, aqui, porém, não é apossar-se do que já está aí, como algo simplesmente dado ou como um recurso ou coisa de uso. Apropriar-se significa tornar-se apto no poder-ser mais próprio. Querer possuir, dominar, assegurar-se é um modo impróprio de se apropriar do vigor do próprio (da “propriedade” da existência). Este querer só demonstra a inaptidão para o próprio. Mas, o que torna a presença apta à regência do próprio, à propriedade da existência? Resposta: a abnegação, a renúncia. A abnegação não é a mera negação de si. Mas a negação do modo impróprio de querer apropriar-se de si: ou seja, do querer possuir-se sem conquistar-se, sem conquistar a aptidão para ser, a capacidade de poder-ser. A negação da abnegação não é mera negatividade.

A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgo-tável da simplicidade (Heidegger, 1977, p. 48).

Portanto, a renúncia não é perda. No não da renún-cia vigora o poder-ser do sim à verdade do ser. A renún-cia anuncia o que se vela e se oculta (Heidegger, 2003, p. 129). Ela assinala o retraimento do mistério do ser, o outro do ente. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da identidade de si sob a regência do próprio. Por isso, a aptidão do poder-ser se consuma como dedicação, na pertença ao ser. Ela é crescimento e matu-ração de si a partir do ser.

A aptidão do poder-ser acontece como doação à ver-dade do ser. E isso significa: é recepção à regência do ser. Esta, porém, a regência do ser, consiste em provocar cada ente para o seu próprio. Ele concede a vigência do próprio a cada e a todo o ente (Heidegger, 1967, p. 28). Dito de outro modo: é o ser que deixa e faz ser o ente no seu próprio, é ele que leva cada ente à sua propriedade. Por isso a aptidão do poder-ser, pelo qual a presença se torna si mesma, con-siste em receber do ser o vigor de ser o próprio de si e em comunicar adiante este vigor. Somente no pertencimento ao ser é que a presença alcança constância e consistência de ser-si-mesma e somente sendo propriamente si mesma é que ela pode dizer propriamente eu, tu, nós. Existência não é, pois, outra coisa do que a insistência, a consistência e a constância da presença na verdade do ser.

Facticidade é o caráter de ser do fato de a presen-ça já existir, mais precisamente, de já ser-no-mundo (Heidegger, 1989, p. 71-73). Neste sentido, a facticidade é ontologicamente diferente da factualidade do ente sim-plesmente dado ao modo da ocorrência ou do ente à mão que se dá ao modo da instrumentalidade. Embora sejam reais, estes não existem, no sentido do uso aqui dado à palavra “existência”, como um existencial.. Estes não têm o modo de ser-no-mundo, mas apenas vêm ao encontro da presença como entes intramundanos. Enquanto já-ser-em (o mundo) a facticidade é o a priori da existência, a sua autodatidade, o já ser si-mesmo, do si-mesmo, para si-mesmo (autorrelação). Entretanto, o si-mesmo é si-mesmo para si-mesmo, concretamente, em sendo, em existindo,

e isto quer dizer: entregue à própria responsabilidade de assumir este fato de já ser. A presença existe em concre-to, tendo que ser si-mesma, submetida à necessidade da liberdade. Em concreto quer dizer: como cada-vez-minha em sua singularidade e na respectividade de cada vez, ou seja, inserida na finitude de cada situação. A facticidade é o fato de que, sendo, a presença já está lançada no aí e já se abriu como disposição, compreensão e linguagem; é o fato de que, sendo, ela já se precedeu a si mesma, ou seja, já está a caminho de si-mesma e já se lançou para o ser como um poder-ser; o fato de que, sendo, ela já se achou a si-mesma em alguma disposição ou humor, já abriu o mundo como uma estrutura remissiva de significâncias e já articulou e recolheu a sua compreensibilidade na linguagem. A facticidade é o fato de a presença não po-der retroceder ao fato de já-ser-em-o-mundo, ao fato de já ser e de ter que, sempre de novo, ser. A presença, com efeito, não pode nunca estar diante de sua existência. Ela só pode ser a partir da existência, como existência e em vista da existência. Por isso, a presença não pode nunca absolutamente dominar a existência. A facticidade é o fato ambivalente de a presença não ser fundamento de si e, ao mesmo tempo, ter que ser fundamento de si mesma. O fato de não ser fundamento de si mesma, ou seja, de já estar lançada no aí, na abertura da verdade do ser, mos-tra sua niilidade. O fato de ser fundamento de si mesma, ou seja, o fato de ter que ser si-mesma, assumindo o seu próprio poder-ser, a cada vez, mostra sua liberdade. O fato de existir, com efeito, a presença assume sempre de novo e a cada vez, na solidão de sua singularidade e na finitude de sua mortalidade, na comunhão do ser-com-os-outros, como cuidado (Sorge), exercendo-o concreta-mente na ocupação (Besorgen) com as coisas intramun-danas e na preocupação (Fürsorge) com os outros. E este exercício se dá concretamente nos lances pelos quais ela assume o seu poder-ser, que é, também e de modo igual-mente originário, um poder-ser-no-mundo e um poder-ser-com-o-outro. A presença é seu fundamento em exis-tindo, ou seja, em podendo ser, ou seja, em assumindo ou não o poder ser si-mesmo, a regência da propriedade. Por isso, a presença pode cumprir-se entrando nesta re-gência ou desviando-se dela, abrindo-se ou fechando-se para a verdade do ser.

A decadência constitui a inessência da existência. Entretanto, enquanto inessência, ela pertence à essência como uma sua possibilidade, na verdade, como aquela possibilidade que de início e na maior parte das vezes já se realizou, na facticidade da existência. Ela é o avesso da existência. Só que este avesso é justamente o modo mais comum dela, a existência, se dar (Heidegger, 1989, p. 144-147). Por ela, o homem diz “eu sou”, mas em ver-dade não é, isto é, não vigora na propriedade do ser-si-mesmo. Por ela, cada um é, antes de tudo, “os outros”: o “a gente” que, na verdade, é “todo o mundo”, que, em última instância, é “ninguém”. Por ela, a existência é arrebatada pelo mundo das coisas de que se ocupa, se

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move em relacionamentos impessoais e se dissipa no fa-latório, na curiosidade e na ambiguidade da publicida-de. Decadência é desarraigamento, um desarraigamento fundado no fato de já ser-junto ao ente. Mas é, acima de tudo, uma cadência: uma mobilidade e movimentação do existir, cuja característica é a precipitação para o nada negativo, ou seja, o nada aniquilante. Não que com ela o homem fosse destruído. Mais do que a destruição do ho-mem, ela é a aniquilação do fundo ontológico do poder-ser pelo qual o homem pode construir o seu modo de ser, isto é, se constituir como humano em sua humanidade. Nela, o homem pode permanecer, mas permanece inumano. A existência continua, mas em simulacros. Radicalmente acomodada em sua movimentação, promove a agitação frenética do fazer, do agir, do empreender, escolhendo o imediatamente útil como critério último de valor de tudo e de todos. A sua niilidade, portanto, não é a niili-dade da não ocorrência, mas é uma niilidade que se dis-simula na efetividade, na proximidade da vida, na exal-tação do “concreto”. Na decadência, a existência foge de si mesma, se aliena, se fecha, se aprisiona, gira de modo vazio em torno de si mesma, como em um vórtice. Pela decadência a existência desliza em defasagens: do ser ao ente; do si-mesmo ao mundo; do mundo ao intramunda-no; do que está à mão no uso como coisa ao simplesmente dado; do simplesmente dado como objeto ao recurso. Uma mobilidade de precipitação, portanto, que vai da vigên-cia à mera ocorrência, do recolhimento no uno à disper-são na multiplicidade, da plenitude e prenhez ao vazio e esterilidade, da originariedade criativa e criatividade originária à estereotipia, da abertura ao fechamento, do desencobrimento ao encobrimento dissimulador, da ver-dade ao falseamento.

4. Cuidado como Constituição extático-temporal da presença

Mais uma vez, retomemos a indicação inicial que nos guia nesta reflexão: “Sorge” (cura, cuidado) é o nome para a constituição extático-temporal do traço fundamen-tal da presença (Dasein), a saber, da compreensão do ser. Acabamos de ver como esta constituição se articula em três momentos estruturais: a existencialidade, a factici-dade e a decadência. Agora tentemos entender como esta constituição se denomina “extático-temporal”.

A totalidade estrutural da cura ou do cuidado (Sorge), que se articula em seus momentos (existencialidade, facti-cidade e decadência) não é uma moldura rígida na qual a presença se realiza, nem é um arcabouço estático a partir do qual o homem constrói sua humanidade (Heidegger, 1988, p. 255-256). A totalidade estrutural da cura ou do cuidado (Sorge) é, essencialmente, temporalidade. Trata-se, aqui, não da intratemporalidade do ente intramunda-no que ocorre “no tempo”. Também não se trata de uma temporalidade psíquica, vivenciada de modo imanente

por um sujeito em sua consciência. A presença não ocor-re “no tempo” como se fosse algo intramundano. O fato de ela se interpretar a si mesma como tal é apenas uma sua possibilidade, no esquecimento de si mesma jun-to às coisas com que ela lida. A presença também não é pura e simplesmente a consciência na qual e para a qual o tempo ocorre. Tanto o tempo objetivo (físico), quanto o tempo subjetivo (psíquico) são modos defasados de se entender a temporalidade existencial. A presença só tem tempo e vivencia tempo por já ser tempo. A temporalidade não é algo que ela tem, mas algo que ela é. Por exemplo, ela apenas conta o tempo no calendário por que precisa contar com o tempo em sua ocupação. Mas ela só conta com o tempo em sua ocupação porque o seu tempo está contado, isto é, porque ela é mortal. Temporalidade im-plica, radicalmente, finitude.

A temporalidade, porém, não é, no sentido do ocorrer ou do estar à mão. Ela somente é no sentido do vigorar em temporalizações: futuro, presente e passado. As tempora-lizações não se sucedem uma à outra. O futuro não vem depois do passado e o passado não vem antes do presente. A cada instante, a presença é o seu porvir, o seu ter-sido e o seu presente. A unidade dessas temporalizações é a temporalidade. A temporalidade perfaz radicalmente o ser da presença, tornando-a extática, isto é, fora de si. As temporalizações são “êxtases”, isto é, mobilizações que empurram a presença, constituindo-a como “fora de si”, como existente (Heidegger, 1989, p. 123). Estes “empur-rões” abrem a presença em seu aí e a torna a aberta do ser, o espaço de liberdade, onde emerge a claridade do ser. A temporalidade extática libera e ilumina, pois, o aí do ser, a presença em sua existência. Por ser temporalmente ex-tática é que a presença é cura, cuidado (Sorge). A tempo-ralidade é o fundamento existencial da cura.

O modo mais imediato de cuidado se dá como ocu-pação (Besorgen). As ocupações com os entes intramun-danos, de fato, preenchem os dias do homem. A cada dia toca o seu cuidado. O cotidiano é, neste sentido, o tem-po das ocupações, da lida. É no ordinário do cotidiano que a presença tem a experiência do extraordinário que é existir. É na familiaridade do ser-no-mundo a partir das ocupações cotidianas que se cumpre a sua estranha forma de ser: a estranheza de existir. Desta estranheza normalmente ela já fugiu e, movida pela angústia laten-te desta estranheza, que traz entranhada o saber de sua facticidade e de sua mortalidade, ela já se lançou em mil cuidados e já se dispersou em fazeres e afazeres desar-raigados; já se entregou também à ditadura do impesso-al e abriu mão do poder-ser si-mesma, delegando “aos outros”o que ela deve ser, dispersando-se no falatório, na curiosidade e na ambiguidade da (in-) compreensão ha-bitual e corriqueira. Esta fuga se torna precipitação e, em seu desarraigamento, tende a se acelerar cada vez mais, entregando-se cada vez mais à velocidade das próprias atividades e empreendimentos, bem como das próprias diversões e entretenimentos.

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Existindo, a presença é junto do ente de que se ocupa, junto do “mundo” das coisas, isto é, no mundo das ocu-pações, que é o mundo circundante. Existir é empenhar-se no mundo. É ter a ver com as coisas e se interessar por elas. Este ter a ver, porém, se dá numa visão que é uma cir-cunvisão: uma visão que administra as possibilidades de ocupação com as coisas ao redor. Isto significa apreender e reter as referências que as coisas guardam umas com as outras enquanto coisas que se dão num nexo instrumen-tal e numa conjuntura do uso, que, por sua vez, estão em vista da presença mesma e de sua existência. Este apreen-der e reter de possibilidades de uso constitui o empenho contínuo da presença de atualizar o que está à mão. Por isso, o tempo da ocupação é, fundamentalmente, o tempo atual, o presente (Heidegger, 1989, p. 151-157).

Com a abertura do aí pela temporalidade abre-se tam-bém o mundo da ocupação. Este mundo é o horizonte de todos os horizontes dos afazeres do cotidiano. O mun-do não é simplesmente dado como ocorrência, nem é à mão como instrumental. O mundo é o horizonte que se abre a partir do “fora de si” da presença. É esta abertu-ra horizontal-extática do mundo que possibilita a desco-berta das possibilidades de uso das coisas. Entretanto, a presença atualiza estas possibilidades tendo em vista a sua própria existência, ou seja, cuidando de seu poder-ser, que é também, de modo igualmente originário, um poder-ser com os outros. É junto das ocupações, de fato, que, de início e na maior parte das vezes, nós nos encon-tramos com os outros. É a partir delas que se articula a convivência cotidiana. Na impessoalidade desta convi-vência, cada um é aquilo que ele faz no mundo aberto da publicidade, do “todo o mundo”. Entretanto, o ocupar-se com as coisas, que é momento constitutivo e imprescin-dível da existência enquanto cura, pode levar em conta o poder-ser mais próprio e ser assumido em vista deste poder-ser ou pode se perder na dispersão das muitas ati-vidades, alimentando a fuga de si mesmo. O sentido po-sitivo do fazer é a dedicação (Rombach, 1977, p. 44; 52). Pela dedicação o homem penetra nas possibilidades das coisas e as deixa e faz ser, ou seja, as faz emergir no seu próprio. No emergir das coisas como obra de sua dedi-cação, o homem também emerge como presença em sua existência. Esta penetração das possibilidades e este dei-xar-ser que faz emergir as coisas em sua propriedade é a forma de compreensão originária das coisas. Esta compre-ensão, porém, é em-sendo, ou seja, é operativa. Ela acon-tece no pôr-em-outra a coisa em sua possibilidade mais própria. Esta compreensão é arte. Ela é um saber, que é poder, mas um poder, que é deixar-ser, que fazer emergir a coisa na sua propriedade, como coisa. Trata-se de uma doação positiva, por ser originária e criativa, às coisas. É uma forma positiva de êxtase pois nela o homem se es-quece de si e se doa ao mundo, sem contudo, perder-se a si mesmo, ou seja, sem perder o seu próprio poder-ser si-mesmo. É fazendo, deste modo, coisas, que o homem se perfaz a si mesmo. É expondo-se ao mundo neste cui-

dado positivo, que é doação, entrega, esquecimento de si, criação diligente e afetiva, que o homem originariamen-te se edifica a si mesmo. Tal modo de ser pode ser visto, por exemplo, no brincar da criança. O brincar é o modo primordial pelo qual o humano aprende a seriedade da dedicação criativa e criadora ao mundo das coisas.

A defasagem, porém, desta dedicação é o fazer como entrega desarraigada e dispersa ao mundo das coisas, do uso e abuso, da instrumentalidade e instrumentalização. Na decadência, a atualização se torna inconsistente. Ela é o apelo do imediato, a cobiça do sempre novo, o aban-dono do poder-ser si-mesmo em favor da realização das coisas como efetivação que se supera sempre de novo a si mesma num horizonte infinito. Em sua agitação, este fazer não guarda o modo de ser da finitude, ou seja, da autoresponsabilização da liberdade. Ela dispara em um agenciamento sem fim, esquecendo-se da mortalidade e da niilidade da própria facticidade. Este disparo, que é também um disparate, atropela as coisas e não as deixa ser no seu próprio. A coisa deixa de ser coisa, para ser apenas objeto de domínio e exploração, recurso para uma infinita demonstração de um poder que não é propria-mente poder, pois se esvaziou da autoridade, cujo sen-tido consiste em deixar e fazer crescer o vigor de ser de todas as coisas. Deste modo, a presença fica sem amparo, sem apoio, sem abrigo e guarida em seu ser-no-mundo. O seu habitar torna, assim, o mundo imundo (inóspito). A existência se fecha à sua pertença ao céu e à terra, à verdade do ser.

O homem tende a se deixar tomar pelo mundo, como o contexto ou a tessitura de relações, referências e remis-sões em que ele se empenha. Tomado pelo mundo, ele se deixa absorver pelo habitual e familiar. A familiaridade do mundo acaba reprimindo e desviando a atenção da estranheza da facticidade de existir, que pertence essen-cialmente à presença. Esta familiaridade é perturbada, porém, de maneira imprópria, pelo temor (Heidegger, 1988, p. 195-197). O temor ameaça a presença a partir de um determinado ente em concreto. Essa ameaça atinge e perturba a presença, que se interpreta a si mesma a partir do “mundo”, isto é, a partir dos entes intramundanos e até mesmo como um ente intramundano. O temor perturba e confunde o atualizar das possibilidades de uso, em que a presença cotidianamente se move. Entretanto, o temor não abala a familiaridade do mundo e o ser-tomado-pelo mundo por parte da presença. O humor que torna possível a retirada da presença deste arrebatamento na familiari-dade do mundo é a angústia. A angústia é um despertar do esquecimento do si-mesmo nos empenhos cotidianos que se insere na familiaridade do mundo. É um desper-tar, porém, por ser um estranhamento.

A angústia traz de volta a presença de sua fuga no mundo e a põe em face ao seu já-ser-em, ao seu já-ser-lançado, ou seja, de sua facticidade, desvelando a estra-nheza da familiaridade cotidiana do ser-no-mundo. Pela angústia, o mundo enquanto estrutura remissiva de sig-

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nificâncias se torna insignificante. A angústia revela o nada do mundo (Heidegger, 1999, p. 60). É com o nada do mundo, isto é, com sua estranheza, que a angústia se an-gustia. Com isso, também, a presença é remetida de vol-ta à facticidade de seu existir, ou seja, à niilidade de seu fundamento. Mas, esta niilidade que a angústia desvela não é a niilidade de um nada negativo ou simplesmen-te privativo. Trata-se, antes, de uma niilidade positiva e criativa, pois ela também revela que a presença em seu poder-ser e que ela está entregue à responsabilidade por dar sentido a esse poder-ser. Ela mobiliza a presença para assumir a sua responsabilidade de ser, para repetir, isto é, ir buscar de novo e de modo novo, o seu poder-ser si-mesma. A angústia retira a presença de seu esquecimento no mundo da efetividade e a traz para a disposição de as-sumir o seu ser-possibilidade. Por isso, a angústia é uma provocação à presença, no sentido de ajuda-la a escutar a voz silenciosa do clamor que conclama a presença a ser si-mesma. Neste sentido, ela repõe a presença em sua fi-nitude e a faz assumir-se em sua mortalidade. Ela instiga a presença para o salto da decisão que assume, no instan-te, o apelo para o poder-ser mais próprio, para a regên-cia da propriedade. Ela deixa e faz a presença pressentir no nada da niilidade da facticidade do existir, o toque do estranho, ou seja, do outro do ente, o toque do ser. A vigência do nada, porém, não é, neste caso, a destruição da factualidade, nem a aniquilação do poder-ser, mas é, ao contrário, o deixar-ser si-mesmo. Por isso, o nada que desvela a estranheza de ser, é um nada positivo e criati-vo, pois dispõe a presença para ser-si-mesma e a desperta para o não-ente, para o ser em sua diferença.

O temor e a angústia mostram que a presença já está sempre disposta desta ou daquela maneira na abertura de sua existência. Mostram certa afinação ou desafinação com o mundo ou com o poder-ser-si-mesmo. A angústia pode ser interpretada, a partir da afinação com o mundo, como uma desafinação. Mas, olhando-se mais de perto, a angústia não é meramente uma desafinação com o mun-do, mas é uma dissonância pela qual a presença pode se afinar mais propriamente com o nada de sua facticidade, que é o seu ter-sido originário. A angústia é, em sua dis-sonância, a oportunidade de uma afinação mais própria com o abismo, isto é, com o nada do fundamento da fac-ticidade, ou seja, com o abismo do ser. Entretanto, uma vez que se dá o acorde ou o acordo com essa niilidade do abismo, a existência se afina com o seu poder-ser mais próprio, com o ser si-mesmo. A presença é, pois, reposta em sua essência de futuro.

A disposição diz o modo como a presença se acha e como ela vai. Ela se dá sempre como certa afinação com a facticidade do existir, ou seja, com o seu ter-sido lança-do na existência, na abertura desvelada do ser. Ela entoa a compreensão enquanto ser para o poder-ser. Pela com-preensão de si entoada desta ou daquela maneira com o poder-ser, a presença sabe “como vai”. Apenas, este saber não é explícito ou temático, mas é um saber em-sendo,

um saber que é sabor da experiência. A experiência diz o modo como a presença é atingida de imediato em sua disposição e como ela deslancha em seu poder-ser. A experiência é o toque ou a percussão da facticidade, que ressoa e repercute na existência. Em toda a experiência o humor se põe numa certa afinação com a facticidade do existir. Por já ser sempre numa certa afinação é que o humor pode mostrar harmonia ou desarmonia, com esta facticidade, ou seja, se a presença vai bem ou vai mal, ou seja, se ela se acha em afinação com o poder-ser si-mesma ou em desafinação com ele. O humor, pois, diz o modo como a presença está disposta na existência, como ela se acha em sua facticidade e como ela vai em seu poder-ser, se ela deslancha ou se ela se obstrui os caminhos para o poder-ser si-mesma. Decisivo é se ela se afina com a fac-ticidade (o ter-sido originário) e com o poder-ser (o por-vir originário) (Heidegger, 1989, p. 137-144). O ser para o poder-ser, porém, se chama compreensão. Portanto, toda disposição já entoa e determina alguma compreensão (Heidegger, 1989, p. 132-127).

Compreensão não significa, aqui, conhecimento ob-jetivo ou objetivante e nem mesmo conhecimento subje-tivo ou reflexivo. Caso convenha falar de conhecimento, então há que se dizer que a compreensão é um conhe-cimento em-sendo, em existindo, um co-nascimento ou uma co-nascença com as possibilidades da existência. Compreender é, aqui, saber de si, saber como se vai, a quantas anda o si-mesmo. Trata-se de um conhecimento que é anterior a todo o reconhecimento. Trata-se de um saber que é sabor de experiência feita. Compreender é, aqui, existir. Isto significa: ser lançando-se para um po-der-ser. O que está em jogo, portanto, no compreender não é o alcance de uma informação, nem de uma refle-xão, mas o apropriar-se de um poder-ser. A compreen-são é uma relação de ser com o próprio ser, que se dá no existir mesmo da presença. Ela é um lance que abre o poder-ser, que possibilita o poder-ser-si-mesma da pre-sença, que deixa e faz deslanchar a existência na regên-cia da propriedade. Enquanto abertura, a compreensão propriamente dita, isto é, a compreensão para o poder-ser mais próprio, destranca a existência e a libera para ser a aberta onde a verdade do ser se ilumina. Assim, a presença vem a si mesma, singularizando-se. O que está em jogo, portanto, na compreensão é o porvir da presen-ça, a essência de futuro, em que repousa originariamente a humanidade do homem.

Contudo, de início e normalmente, a presença se move na incompreensão do poder-ser si-mesma. Absorvida nas ocupações e tomada pela familiaridade do mundo, ela se empenha sempre de novo em função da atualização das possibilidades de uso e desfrute. Ela se compreende, as-sim, a partir daquilo de que ela se ocupa, a partir de seus empreendimentos e negócios. Aparentemente ela está em função do futuro, mas este futuro é apenas o prolonga-mento da atualização. O cuidado apreensivo e aflitivo pelo futuro se baseia no afã do autoasseguramento das

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possibilidades de atualização das possibilidades de uso e desfrute. Ele se empenha todo em atender e providen-ciar as condições destas possibilidades. Os cálculos sobre as chances de realizar tal atendimento e providência ca-racteriza a expectativa deste modo de se relacionar com a existência. Contudo, este modo de ser ansioso não se relaciona com o futuro como futuro, quer dizer, o futu-ro que aí está em questão não é o porvir da presença, ou seja, o vir a si-mesma da presença, mas o prolongamen-to da atualização. Portanto, na compreensão das possi-bilidades de ocupação em que a presença se esquece de seu poder-ser mais próprio, vigora, na verdade, uma in-compreensão, um trancamento para a regência da pro-priedade do si-mesmo. O cálculo das expectativas conta com todas as chances, só não conta com a morte. É que a morte apresenta-se como a possibilidade da impossi-bilidade (Heidegger, 1989, p. 46), ou seja, como aquela possibilidade latente, que é radical, pois é insuperável e irremissível, a possibilidade que anula todas as possibi-lidades. A morte revela assim a niilidade da existência, mostra o fundamento da facticidade como abismo e re-colhe a presença na sua finitude.

A compreensão da mortalidade, portanto, ou seja, o ser para aquele poder-ser que nadifica todo o poder-ser, é um abismar-se no qual a presença se desvia do adiantar-se e antecipar-se que prolonga a atualização no arrebata-mento do mundo e no esquecimento do si-mesmo; mas é também, ao mesmo tempo, um abismar-se que reenvia a presença para assumir aquele adiantar-se e antecipar-se no qual a presença se destranca para o poder-ser si-mes-ma. A compreensão da mortalidade, portanto, enquanto possibilidade impossível se revela, paradoxalmente, como impossibilidade possível, ou seja, como impossibilidade possibilitadora do poder-ser si-mesmo. Com efeito, com a compreensão da mortalidade, a finitude urge da presença o bem-viver, contudo, não mais um bem-viver que é inter-pretado a partir das ocupações como uso e desfrute, mas um bem-viver que é interpretado a partir da obediência (ausculta) à voz silenciosa que conclama a presença para o poder-ser mais próprio. Assim, o abismar-se da compre-ensão da mortalidade se torna salto gracioso e gratuito da decisão, entendida não como escolha disso ou daqui-lo, mas como escolha do poder-ser si-mesmo. A compre-ensão da mortalidade, portanto, é o aguilhão que deixa e faz a presença abrir-se para o seu poder-ser si-mesma. Isto quer dizer: ela é a provocação para a singularização da presença e, nessa singularização, para assumir a per-tença ao mistério do ser, cujo véu se dá como mortalida-de da existência. O singular que a morte traz consigo é o fato de ela ser o convite para se deixar apropriar pela verdade do ser, tanto em sua dimensão de desvelamento (apolínea), quanto em sua dimensão de velamento (her-mética). A morte revela o mistério da existência, ou seja, ela mostra que o desvelado se enraíza no velamento, que o aberto está radicado no ocluso. Ela é o supremo estra-nhamento da familiaridade do ser-no-mundo. Ela é o baú

do nada, do não-ente, e, enquanto tal, a testemunha do ser em seu caráter abissal. Paradoxalmente, porém, a com-preensão do caráter abissal do ser não retira da presença o seu poder-ser si-mesma, antes, é ela que lhe possibilita esta possibilidade. Ela liberta, no sentido de destrancar a presença para o seu poder-ser si-mesma, ou seja, para a regência da propriedade, que é o acontecer da pertença à verdade (desvelamento-velamento) do ser. Ela singula-riza na solidão. Mas esta solidão é condição para toda e qualquer comunhão verdadeira.

Graças à solidão e à singularização que se abre com a compreensão da mortalidade da existência, a presença pode se tornar, de fato e propriamente histórica. Histórica se torna a presença não quando entra em cena no palco da “história mundial”, a partir de seus feitos. Histórica se torna a presença quando seu existir se torna constan-te numa temporalidade originária. Originária é a tempo-ralidade quando ela acontece a partir do porvir; quando o futuro deixa de ser o prolongamento da atualização e passa a ser a antecipação da liberdade do poder-ser; quan-do o passado deixa de ser esquecimento e passa a ser re-tomada da facticidade; quando o presente deixa de ser o atual e o atuante e passa a ser o instante. Só se torna histórica a presença que se recolhe no vigor do instante (Heidegger, 1989, p. 135).

Por instante entende-se aqui, porém, não o instan-tâneo, o fugaz momento, o agora do tic-tac do relógio. Instante é, aqui, a coincidência, o encontro, a identida-de de futuro (como porvir, poder-ser, lance de abertura) e passado (como facticidade, ter-sido, ser-lançado). Este encontro, porém, se dá como decisão da presença, ou seja, como destrancamento da existência. Trata-se, po-rém, não da decisão como escolha disso ou daquilo, mas da decisão em que a presença se torna decidida, isto é, livre para o poder-ser si mesma e para assumir a facti-cidade abissal da existência. Instante é o advir da jovia-lidade de ser, que assume a abissalidade da existência como mistério da gratuidade. Instante é o momento aza-do, o kairós, da libertação e da maturação da presença na verdade do ser.

5. Cuidado como Ser-com-o-outro

O mundo que se abre com a própria abertura da pre-sença a partir da temporalidade é também e de modo igualmente originário o mundo da convivência, do ser-com-os-outros (Heidegger, 1988, p. 168-178). Se factual e onticamente o outro pode faltar, estar ausente, fáctica e ontologicamente o outro é sempre presente, melhor, co-presente. O ser-com não é o resultado da ocorrência de uma pluralidade de sujeitos. O ser-com é estrutura a prio-ri da existência. Neste sentido, duas coisas que ocorrem aí ou que estão à mão não são propriamente uma com a outra. Neste contexto, só são um com o outro aqueles entes que são no modo de ser da presença, que igual-

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mente existem, e que compartilham do mesmo modo de ser-no-mundo.

Ser-com, enquanto a priori da facticidade, significa que o eu nunca precisa sair de si para entrar no mundo do outro. O ser-com determina, de antemão, que o eu já esteja desde sempre aberto para o outro, comunicado com ele, no mesmo mundo compartilhado da convivência. Trata-se de uma comunicação ontológico-existencial, isto é, uma comunicação que já acontece pelo simples fato de existir. Cada eu é o mundo, não um mundo fechado e sim um mundo aberto, pela disposição, pela compreensão e pela linguagem, onde já sempre se deu a abertura para o outro, que também é, igualmente, um constituidor e um configurador de mundo. Isso quer dizer: O mundo é, na verdade, um ser-com de muitos mundos.

O ser-com é o fundamento da relação eu-tu. Na ver-dade, a idéia de uma relação eu-tu ainda fica presa ao eu. O fundante da relação não é o eu, nem simplesmente o tu, mas a própria relação que se instaura em sua reci-procidade, a partir do ser-com: “Em vez de se falar sem-pre de uma chamada relação eu-tu seria melhor falar de uma relação tu-tu, porque eu-tu é sempre falado somente a partir de mim, enquanto na realidade é uma relação mútua” (Heidegger, 2001a, p. 224). O ser-com é também, por conseguinte, o fundamento do nós. O nós não resul-ta da soma ou do ajuntamento de eus. O nós se constitui a partir da comum-pertença dos humanos no ser-com, à medida que compartilham e coparticipam da existência, do mundo, da história. Portanto, por já ser no ser-com é que a presença sempre pode dizer: eu, tu, nós, vós. O di-zer eu-tu ou o dizer nós-vós não depende tanto da ocor-rência dos outros, nem do seu número, mas do fato de os outros serem encontrados num determinado tipo de re-lação, onde o cuidado se realiza desse ou daquele modo. É o como da relação que decide se há ou não uma relação eu-tu ou uma relação onde emerge propriamente o nós ou o vós. Na verdade, na impessoalidade do “todo o mundo”, não se dá propriamente um eu, um tu, um nós, um vós. Todos são como “eles”. Cada um é “os outros”, um “a gen-te”. O tu não é encontrado como tu, mas como um isso. O nós também não acontece propriamente, pois não há lu-gar para a comunidade, apenas para a sociedade e o povo não pode ser povo, mas apenas massa. A pluralidade se dissolve na homogeneidade e não há mais propriamente um nós e um vós, pois tudo sucumbe na virulência da indiferença. O ser-com, fundamento do eu, tu, nós, vós, é, por sua vez, um ser-quem, são modalidades da “si-mesmidade” ou ipseidade. Contudo, a própria ipseidade, ou o ser-quem, já é sempre, a priori, relação. Ela é aquele modo de ser em que o que está em jogo é uma livre rela-ção de ser com o ser, podendo-se, portanto, ganhar-se ou perder-se para a regência da propriedade.

A relação, portanto, está radicada no modo de ser da existência e requer ser compreendida em sua existencia-lidade. Como tal, ela não é objetiva, nem subjetiva, mas existencial. Qual sua essência?

A relação com algo ou alguém, na qual eu estou, sou eu. Entretanto, “relação” não deve ser objetivamente entendida aqui no sentido moderno, matemático de relação. A relação existencial não pode ser objetivada. Sua essência fundamental é ser aproximado e deixar-se interessar, um corresponder, uma solicitação, um responder, um responder por base no ser tornado claro em si da relação (Heidegger, 2001a, p. 202).

Por conseguinte, a propriedade da relação depende do como da aproximação, do interesse, da correspondência, da solicitação, ou seja, no como da resposta à interpela-ção do outro, se esta resposta se libera para a liberdade da recepção e da doação e se clareia na disposição, na compreensão e na linguagem, ou se ela se tranca e não alcança transparência. Em sua estruturação, a relação com o outro é, portanto, regida pelo cuidado. Este pode acontecer, por exemplo, no modo privativo da indiferen-ça da impessoalidade. Não só pode acontecer como acon-tece de início e na maior parte das vezes. Neste caso, o cuidado com o outro se priva de suas possibilidades, se tranca de antemão e permanece inteiramente opaco. Se, contudo, o cuidado com o outro acontece de fato, então ele oscila entre dois modos extremos: a negligência e a solicitude. A negligência se alimenta da desconfiança e da vontade de se sobrepor ao outro, dominando-o. A so-licitude, por sua vez, pode se dar de modo impróprio e próprio. No modo impróprio, a solicitude busca substi-tuir o outro na incumbência de seu cuidado. Ela retira do outro o poder-ser. No modo próprio, porém, a solici-tude busca antecipar-se ao outro na incumbência de seu cuidado. Ela libera o outro para as incumbências de seu cuidado e apoia-o para que ele tenha a capacidade de as-sumir por si mesmo o seu poder-ser si-mesmo. O cuida-do solícito é aquele em que alguém se antecipa no cui-dado pelo outro, preocupando-se com ele numa atitude de consideração, não para lhe retirar a possibilidade do cuidado, mas para preparar-lhe os caminhos do assumir responsável pelo cuidado que é confiado e que lhe soli-cita e lhe reivindica como um apelo.

6. Cuidado, poder-Ser e amor

O que decide, por conseguinte do cuidado, é o como de seu poder-ser. O que está em jogo no cuidado é a ca-pacidade de assumir positivamente as suas possibilida-des de ser.

Assumir uma possibilidade significa ter sido atingido por ela, ter-se afeiçoado a ela, significa deixar-se conduzir pela sua tendência, fazer a sua travessia, deslanchar nela, crescendo no seu gosto. O gosto é o apego à possibilidade. Trata-se de um apego amoroso. O amor é o que possibili-ta a possibilidade. O amor é o que torna a possibilidade possível, isto é, capaz de ser. É o que a faz vingar, o que a faz deslanchar bem, é o que a faz consumar.

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Apegar-se a uma coisa” ou “pessoa” em sua essência, quer dizer: amá-la, querê-la. Pensando de modo mais originário, querer significa essencializa, dar essência. Esse querer é que constitui a própria essência do poder, que não somente pode realizar isso ou aquilo mas também deixa uma coisa “vigorar” em sua pro-veniência, isto é, deixa que ela seja. O poder do querer é aquilo em cuja “força” uma coisa pode propriamente ser. Esse poder é o “possível” em sentido próprio, a saber, aquilo cuja essência se funda no querer” (Hei-degger, 1967, p. 29).

O amor, o querer como bem-querer, benevolência, é possibilidade da possibilidade da relação do ser-com, pois o amor é o que deixa-ser, isto é, o amor é o que presenteia essência, reconduzindo tudo e todos ao seu próprio. O amor, como possibilidade da possibilidade do relaciona-mento é o fundamento do cuidado. A in-sistência no ser-com se dá, no seu sentido mais próprio, como diligência e dileção (diligo = dilectio = o lógos do relacionamento).

Entende-se, aqui, possibilidade como poder-ser, isto é, como capacidade e gosto de ser. Qual, porém, a relação entre poder e ser no poder-ser? Ser é, originariamente, poder. Poder como potência, isto é, como vigência e re-gência. A atuação do poder como vigência e regência se chama autoridade: a capacidade de fazer surgir, crescer e consumar o que está sendo (auctoritas, em latim, de augeo = aumentar, fazer crescer). Com outras palavras, autoridade, enquanto dinâmica de atuação do poder, é a capacidade de fazer surgir a concreção do sendo, en-tendendo-se esta concreção como con-crescimento e co-criatividade. A potência do poder, que atua como auto-ridade, consiste, portanto, na positividade da liberdade, ou seja, na benignidade e cordialidade do deixar-ser. O ser enquanto poder coincide, nesse sentido, com o bem, melhor, “é” a bondade (bom-dade, o vigor de ser do bom) que, ao mesmo tempo, se difunde e se retrai. Difunde-se e irradia na sua magnanimidade e se retrai e se vela no pudor de sua simplicidade. É a grandeza em cuja mag-nanimidade tudo se ergue, cresce e amadurece, e, ao mesmo tempo, a simplicidade, que, em sua singeleza e humildade, já sempre se subtraiu, se retraiu e se velou. Por isso a autoridade do ser enquanto poder é suave. Seu vigor não se impõe. Sua força é silenciosa. Sua força é a fraqueza e a vulnerabilidade da ternura. É que o poder, na sua essência, não é outra coisa do que querer. Poder é querer. Isto quer dizer: potência é “volência”, melhor, benevolência (a “volência”, a querença do bem), isto é, bem-querer que possibilita ser (Heidegger, 2001b, p. 180). Poder é querer, melhor, benquerença que presenteia o dom de ser. Trata-se, no entanto, de um presentear onde quem presenteia se oculta, se vela, se retrai no pudor de seu mistério. Por conseguinte, somente o amor é poder, é poder que possibilita ser.

Dileção e benevolência, por sua vez, se dão ao modo de ser da gratuidade (charis). A gratuidade é o modo de

ser originário, fontal, do cuidado. É a origem, a fonte mesma de todo o sendo, que, brotando espontaneamen-te do fundo abissal do ser, deixa e faz ser o manancial, o fluxo, das possibilitações e realizações de todo o sendo. Intuímos isso, se tivermos presente o modo de ser, isto é, de vigorar da fonte. A fonte é origem de um manancial. Em seu efluir e fluir, as águas de um manancial brotam das entranhas da Terra, serpenteiam por entre as chapadas, traçam veredas, abrem paisagem, saltam de montanhas, rasgam regiões, tornando-se cada vez mais longínquas, acolhendo e recolhendo afluentes, alargando-se, aprofun-dando-se, até que, por fim, mergulham no grande mar. Por isso, o mar não é o outro da fonte. É antes, o aparecer da profundidade abissal da fonte, a vigência da generosi-dade originária da fonte. A fonte, porém, deixando e fa-zendo aparecer o manancial como tal, nunca a si mesma se mostra. Ela se retrai no vigor de sua renúncia. A fonte deixa e faz tudo aparecer, mas ela mesma se oculta, se esconde. Ela é como a protagonista do filme “A festa de Babette”: celebração da pura gratuidade e graciosidade da vida. O brotar sem por quê nem para quê do ser. Ou então como a Rosa do poeta Ângelus Silesius (poeta do século XVII), cujo poema diz: “A rosa é sem por quê / floresce por florescer / não olha pra seu buquê / nem pergunta / se alguém a vê” (cfr. Silesius, 1992, p. 156).

A rosa sem porquê no orvalho matinal: a alegria acolhe o coração do mortal, no frescor, na claridade natal da inocência original. O mortal descansa, res-pira livre, regozija-se e renasce, na cercania da rosa, porque se recolhe e é acolhido no recato da natureza. A natureza da rosa de Angelus Silesius não é uma re-gião do ente em oposição ao homem. É a nascividade, a liberdade do mistério que evoca o homem para a sua essência. É a própria vigência da presença que se abre como o frescor, a limpidez, a transparência e a graça de todas as coisas. É à mercê da liberdade do mistério que é o amor, a ternura, a benignidade, a paz, o bem, o rigor, a coragem, a sinceridade, a simplicidade. A liberdade do mistério, a nascividade é a jovialidade. A jovialidade é paciente, é benigna, ela não é invejosa, a jovialidade não é jactanciosa, não se ensoberbece. Não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não guarda rancor: tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera (1Cor 13,4-7) (Harada, s.d., p. 110).

A liberdade do mistério do ser, que é jovialidade e gratuidade, benevolência e dileção, estão evocadas na palavra que nomeia o ser enquanto ser, em Heidegger: Ereignis – o evento originário da apropriação, a regência originária e fontal da propriedade, que, no deixar-ser do ser, faz emergir cada coisa em seu próprio. Em sua forma originária, porém, Ereignis se dizia Eräugnis (Ur- äugnis) – o olhar originário, a mira originária. É o vigorar do ins-tante (Augenblick), ou seja, do “piscar de olhos”, em que a presença e o ser se encontram em seu copertencimen-

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to. O instante, em que a presença se abre, eclode, como a clareira do ser e, em sua liberdade e transparência, deixa-ser o próprio ser, consuma sua relação de ser com o ser, relação em que ela, originariamente, existe. Esta relação, porém, acontece originariamente desde o ser mesmo, que busca o homem como presença, como abertura. Trata-se da relação do ser para com o homem. O que está, pois, em jogo aqui é:

A relação elevada, na qual o homem está de pé, é a relação do Ser para com o homem, de tal modo que o Ser mesmo é esta relação, que puxa para si da essência do homem, enquanto aquela essência que está de pé nesta relação e, subsistindo nela, a custodia e a habita. No aberto desta relação do Ser para com a essência do homem, nós experimentamos o ‘espírito’ – ele é o que suavemente reina (das Waltende) vigorando a partir do Ser e, presumivelmente, em favor do Ser (Heidegger, 1994c, p. 7).

O que o pensamento, pela primeira vez, procurou expressar-se em Ser e Tempo, pretende alcançar, é algo de muito simples. Por ser simples, o Ser permanece misterioso, a proximidade calma de um vigor (Walten), que não se impõe à força. Essa proximidade se essen-cializa como linguagem.. (Heidegger, 1967, p. 54)

A palavra “ser” diz, aqui, a proximidade calma de um vigor (Walten), que não se impõe à força, mas que pede para ser recebida ao doar-se, que solicita, portanto, do homem, a disposição de dar ao doador a possibilida-de de ser recebido. Suave é a regência do ser pois o re-lacionamento que ele é vigora como deixar-ser. Deixar-ser é libertar tudo quanto é para o vigor de sua própria essência. Deixar-ser é poupar (schonen), não no sentido de não usar, mas no sentido de cuidar com atenção e ca-rinho. Deixar-ser é deixar repousar em sua própria es-sência, através do desvelo que custodia e salvaguarda (Heidegger, 1994c, p. 8).

“Agora, porém, justamente o ser, que todo ente, a cada vez e sempre de novo, deixa ser o que é e como é, é o li-bertador, o que deixa cada coisa repousar em sua essên-cia, isto é, o que a cada coisa trata com cuidado e cari-nho” (Heidegger, 1994c, p. 9).

O homem existe. Isso significa: ele se ergue no espa-ço livre para a ressonância e a transparência do ser. Essa abertura da liberdade da ressonância e transparência em que o ser se confia ao homem e o homem se confia ao ser é a verdade. Verdade como o mistério do ser, isto é, o jogo amoroso de aparecer e retrair-se, de dar-se e retirar-se. Mas, no retrair-se e retirar-se, o ser não se desvia do homem, ele, antes, o atrai para dentro da intimidade de seu mistério, onde oculta as riquezas de seus dons. Esta insistência na verdade do ser é o cuidado (Sorge). O fundamento, pois, do cuidado é o relacionamento amoroso com o ser: filo-sofia (de philein, amar, tó sophon, o ser - como “um-tudo”).

A relação própria, portanto, da presença com o ser, é amorosa, tanto da parte da presença para com o ser, como da parte do ser para com a presença. O ser se dá. Ele se entrega ao homem enquanto presença.

“Só enquanto se a-propria a clareira do Ser, é que o Ser se entrega, no que ele é propriamente, ao homem. Que, porém, o Da (lugar), a clareira, como Verdade do próprio Ser, se a-proprie, é destinação do próprio Ser. É o destino da clareira” (Heidegger, 1967, p. 60).

A entrega do ser ao homem, portanto, é destina-ção e isso perfaz a essência da história. Na destinação (Geschick) do ser está um presentear-se (sich schenken), o dar-se de si como dádiva. Pensar (denken) é, justamen-te, agradecer (danken) este presentear-se do ser. Ereignis significa, portanto, o recolhimento na unidade amorosa de ente, presença e ser.

Podemos dizer que a dinâmica dessa coincidência Dasein:Ser:ente, assim descrita de modo desengonça-do, é o sentido propriamente dito da famosa “Khere” Heideggeriana, que não está a dizer a reviravolta da atividade literária e mutação ou transmutação ou evolução das ideias de Heidegger, mas sim a estruturação interna do ente ser. O Ser é: o Da do da-seiend, ao aparecer concreto no pudor da conten-ção das implicâncias do evento (Ereignis) como este próprio ente, aquele próprio ente, na “naturalidade” imediata. Na modéstia, no insignificante do dar-se simplesmente, como cada vez o próprio, como em sendo co-creação viva do pulsar tênue no nascer, crescer e consumar-se, como estremecer do viver, o cintilar “do olho” de cada coisa forma em composi-ções estruturais, a imensa superfície aparentemente opaca e óbvia do cotidiano e comum, i. é, da maioria e do imediato do ente, sob cuja pele na tênue vibração, nesse da-seiend, se oculta o frêmito de vida do ser. Frêmito de vida do ser! É a vigência da Vida, que no abalo instantâneo, se revela superfície e abismo, serenidade e ira contida, ternura e vigor, nascimento e morte do estremecer e do abrir os olhos do renas-cimento, a se anunciar na penumbra do declínio ocidental e no cinzento claro do arrebol vindouro; é o incoativo retorno do outro início ao entardecer do primeiro início: o oriente do ocidente: esse sempre de novo e novo, cada vez da-seiend, i. é, o ente. (...) Então Ser, Tempo, Vida, coincide como, no e a partir do “ponto de salto”, cuja mira, se dá na contenção e continência, no espanto e no pudor, no titubear de uma tênue vibração que ao assim se pôr constitui a empiria nasciva da aberta do retraimento na verdade do ser, acolhida e recolhimento da vigência do sa-bor humano, demasiadamente humano do “Homem humano”, o ser-in de todas as coisas, a novidade do saber do concreto positivismo e da sua “lógica” ana-lítica, cujo início longínquo ecoa e diz: to on legethai polakhos (Harada, 2004, p. 94-95).

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Por falar em oriente, terminamos esta reflexão com um poema oriental do sábio chinês Chuang-Tzu (Merton, 2002 p. 65-66). Parece evocar aquela proximidade calma de um vigor que não se impõe, a regência da proprieda-de, do evento-apropriador (Ereignis).

O sopro da naturezaQuando a Natureza magnânima suspiraOuvimos os ventosQue, silenciosos,Despertam as vozes dos outros seres,Soprando neles.De toda frestaSoam altas vozes. Já não ouvistesO marulhar dos tons?Lá está a floresta pendenteNa íngreme montanha:Velhas árvores com buracos e rachaduras,Como focinhos, goelas e orelhas,Como orifícios, cálices,Sulcos na madeira, buracos cheios d’água:Ouve-se o mugir e o estrondo, assobios,Gritos de comando, lamentações, zumbidosProfundos, flautas plangentes.Um chamado desperta o outro no diálogo.Ventos suaves cantam timidamente,E os fortes estrondam sem obstáculos.E então o vento abranda. As aberturasDeixam sair o último som.Yu respondeu: Compreendo:A música terrestre canta por mil frestas.A música humana é feita de flautas e de instrumentos.Que proporciona a música celeste?Mestre Ki respondeu:Algo está soprando por mil frestas diferentes.Alguma força está por trás de tudo isso e fazCom que os sons esmoreçam.Que força é esta?

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Marcos Aurélio Fernandes - Graduado em Filosofia pela Universidade São Francisco (1991), com Mestrado e Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Antonianum (2000 e 2003). Atualmente é Professor Doutor da Universidade Católica de Brasília, lotado no Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião. Endereço Institucional: Universidade Católica de Brasília (Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia). QS 07 LOTE 01 EPCT - Areal (Águas Claras). CEP 71966-700 - Brasilia, DF – Brasil. E-mail: [email protected]

Recebido em 12.05.11Aceito em 23.10.11

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a ContRiBuição de JaSpeRS, BinSwangeR, BoSS e tatoSSian paRa a pSiCopatologia fenomenolÓgiCa

The Contribution of Jaspers, Binswanger, Boss and Tatossian to Phenomenological Psychopathology

La Contribución de Jaspers, Binswanger, Boss y Tatossian para la Psicopatología Fenomenológica

virgínia moreira

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir as contribuições de quatro grandes nomes da tradição da Psicopatologia Feno-menológica: Karl Jaspers, que através de um método descritivo-compreensivo fundou a psicopatologia enquanto área específica do conhecimento com sua Psicopatologia Geral; Ludwig Binswanger, o criador da Psicopatologia Fenomenológica; Medard Boss que se propôs a desenvolver uma psicopatologia de inspiração Daseinsanalítica e, finalmente, Arthur Tatossian que desenvolve uma psicopatologia do Lebenswelt (mundo vivido).Palavras-chave: Psicopatologia fenomenológica; Jaspers; Binswanger; Boss; Tatossian.

Abstract. This article aims to discuss the contributions of four big names of the Phenomenological Psychopathology tradition: Karl Jaspers, whom through a descriptive comprehensive method funded psychopathology as an specific area of knowledge with his General Psychopathology; Ludwig Binswanger, the creator of the Phenomenological Psychopathology; Medard Boss whom tried to develop a psychopathology from a Daseinsanalytic inspiration, and finally, Arthur Tatossian, whom develops a psychopathology of the Lebenswelt (lived world).Keywords: Phenomenological psychopathology; Jaspers; Binswanger; Boss; Tatossian.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo discutir las contribuciones de cuatro grandes nombres de la tradición de la Psicopatología Fenomenológica: Karl Jaspers, que a través de un método descriptivo comprensivo ha fundado la psicopatología en cuanto área específica del conocimiento con su Psicopatología General; Ludwig Binswanger, el creador de la Psicopatología Fenomenológica; Medard Boss que se ha propuesto a desarrollar una psicopatología de inspiración Daseinanalítica y, finalmen-te, Arthur Tatossian que desarrolla una psicopatología del Lebenswelt (mundo vivido).Palabras-clave: Psicopatología psicopatológica; Jaspers; Binswanger; Boss; Tatossian.

introdução

Psicopatologia [de psic(o)- + patologia.] se define como patologia das doenças mentais ou como o estudo das causas e natureza das doenças mentais. Psic(o) – vem do grego – psyché – que significa alento, sopro de vida, alma. Patologia, afecção, dor, pato, que também provém do grego – pathos – que significa “doença, paixão, sen-timento”. Ambos os termos foram introduzidos na lin-guagem científica internacional a partir do século XIX (Cunha, 1997).

O primeiro registro de utilização do termo psicopato-logia foi na Alemanha em 1878, com Emminghaus, mas, neste momento, psicopatologia equivalia à psiquiatria clínica. Enquanto método e disciplina, a psicopatologia nasce no início do século XX, na França, com o filósofo Theodule Ribot e a criação do método psicopatológico enquanto psicologia patológica, um ramo da psicologia científica diferente da psicologia experimental ou gené-tica (Bauchesne, 1993). A substituição do termo psicolo-gia patológica por psicopatologia ocorreu gradativamen-te, correspondendo a um deslizamento de sentido, que se

deu quando a psicologia patológica se propôs a ser uma psicologia da conduta, substituindo, paulatinamente, a linguagem das ações nervosas por uma linguagem psi-cológica (Widlöcher, 1996; Moreira, 2002).

Em 1913, na Alemanha, com a publicação de Psicopatologia Geral de Karl Jaspers, nasce a psicopa-tologia propriamente dita, representando uma corrente diferenciada em relação à vertente de Ribot, que se de-senvolverá como uma psicopatologia fenomenológica. Este artigo tem como objetivo discutir as contribuições singulares de Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, Medard Boss e Arthur Tatossian ao desenvolvimento da tradição da psicopatologia fenomenológica.

1. Karl Jaspers e uma psicopatologia descritivo-Compreensiva

Karl Jaspers (1883-1902), médico psiquiatra alemão, foi também professor de filosofia na Universidade de Heidelberg. Seu pensamento está assim imbuído, desde sua origem, de seu interesse em reunir as ciências na-

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turais e as ciências humanas, caminho sobre o qual ele desenvolverá a psicopatologia. Isto foi possível a partir da situação privilegiada de Jaspers, como filósofo, dispor para a fundamentação de suas idéias, dos elementos em-píricos acessíveis na Clinica Psiquiátrica de Heildelberg (Rodrigues, 2005).

A publicação de Psicopatologia Geral, em 1913, marca o início da psicopatologia enquanto campo específico do saber, diferenciado da psiquiatria. A proposta de Jaspers era integrar o modelo causalista-explicativo empregado pelas ciências naturais, ao modelo histórico-compreen-sivo, próprio das ciências humanas, para a descrição e compreensão do fenômeno psíquico. O que conferiu valor central a esta obra foi, especialmente, sua crítica metodo-lógica e sistematização dos dados. Sua tarefa foi mapear suportes conceituais e métodos vigentes pelo exame de suas virtudes e limitações na sua aplicação individual, isto é, a partir da descrição e compreensão de casos in-dividuais, Jaspers propôs um modelo de psicopatologia geral, que na sua visão, poderia atender às aspirações científicas (Rodrigues, 2005). Nas palavras de Jaspers, na introdução de Psicopatologia Geral:

A prática da profissão psiquiátrica se ocupa sempre do indivíduo humano todo (...). Aqui, todo o trabalho se relaciona com um caso particular. Não obstante, para satisfazer as exigências decorrentes dos casos particulares, o psiquiatra lança mão, como psico-patólogo, de conceitos e princípios gerais (Jaspers, 1913/1987, p. 11).

A psiquiatria de sua época era entendida como par-te das ciências naturais, utilizando, unicamente, o mo-delo explicativo-causal para compreender os fenôme-nos objetivos. Com o objetivo de associar este modelo ao modelo histórico-compreensivo, Jaspers introduz em Psicopatologia Geral o método fenomenológico, que se tornou então, a grande “novidade” do seu pensamento no âmbito da psiquiatria. Este fato gera, até os dias de hoje, muitos mal-entendidos no sentido de nomear o trabalho de Jaspers como psicopatologia fenomenológica, quando ele mesmo deixa muito claro que a fenomenologia é ape-nas um dos métodos possíveis para a psicopatologia. No prefácio da sétima edição de 1959 esclarece:

Se, (...) o meu livro é por vezes designado como representante da corrente fenomenológica ou da corrente de psicologia compreensiva, só em parte esta designação é correta, uma vez que o seu sentido é mais compreensivo: a saber o esclarecimento dos métodos da psiquiatria em geral, de seus modos de concepção e de seus caminhos de investigação (Jas-pers, 1913/1987, p. 7).

Ou seja, Jaspers entende seu método como compreen-sivo, não como fenomenológico, indicando com isto que a

compreensão inclui tanto o método fenomenológico (que para ele será prioritariamente a descrição), como o tradi-cional método explicativo-causal.

1.1 A Psicopatologia como uma Ciência

Para Jaspers (1913/1987), a psiquiatria, como uma pro-fissão prática, se volta para os casos individuais enquanto que a psicopatologia, como uma ciência, se desenvolve no domínio dos conceitos e das regras gerais, isto é, sobre os modos das experiências, buscando seu sentido geral:

O objeto da psicopatologia é o acontecer psíquico realmente consciente. Queremos saber o que os homens vivenciam e como o fazem. Pretendemos conhecer a envergadura das realidades psíquicas. E não queremos investigar apenas as vivências hu-manas em si mas também as condições e causas de que dependem os nexos em que se estruturam, as relações em que se encontram e os modos em que, de alguma maneira, se exteriorizam objetivamente (Jaspers, 1913/1987, p. 13).

O tema da Psicopatologia Geral de Jaspers é o homem todo em sua enfermidade psíquica ou psiquicamente de-terminada. O homem se diferencia do animal e ocupa um lugar especial, pois o espírito e a alma atuam sobre as enfermidades psíquicas. A alma, por sua vez, torna-se objetiva pelo que é perceptível no mundo: fenômenos somáticos, expressões, comportamentos e ações, bem como na linguagem.

Para Jaspers (1913/1987), a consciência se caracteri-za como consciência objetiva, como interioridade real de uma vivência, como auto-reflexão e consciência de si mesmo, como intencionalidade do sujeito e como o todo da vida psíquica momentânea. A noção de inconsciente, encontrada em “Psicopatologia Geral”, refere-se ao não lembrado, o que não está relacionado com a atenção, o que é inadvertido, o que dá origem. A atenção é definida neste contexto como consciência clara, onde se dá a vivência do voltar-se para um objeto. A seleção de conteúdos cons-cientes e o afeto sobre o curso da vida psíquica condicio-nam a claridade da consciência de uma vivência.

As noções de percepção, enquanto conhecimento e reconhecimento de um dado fenômeno, e de orientação, como rendimento apreensivo mais complexo, serão tam-bém fundamentais à psicopatologia fenomenológica de Jaspers, compreendida por ele como fenomenológica por investigar o fenômeno subjetivamente: o psíquico expres-sa o mundo do paciente através de seu funcionamento, suas manifestações e ações (Moreira, 2002)

Ainda para Jaspers (1913/1987), no seu propósito de construção de uma psicopatologia científica, a compre-ensão do fenômeno psicopatológico pode ser estática, ge-nética (contextualizada) ou total, o que implica na consti-

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tuição do indivíduo, abordando a unidade da doença e a totalidade biográfica. Sua psicopatologia geral distingue quatro grupos de fatos a serem estudados: os fenômenos vividos (consciência), o rendimento objetivo (apreensão, memória e inteligência), os fenômenos somáticos e as objetividades de sentido (estruturas de percepção). Na perspectiva destes fenômenos, a expressão dos pacien-tes com relação aos seus sintomas se dá pela descrição do espaço e tempo e a consciência do corpo e da realida-de (Moreira, 2002).

1.2 A Introdução do Método Fenomenológico

Embora Psicopatologia Geral seja a fonte mais difun-dida do método fenomenológico de Jaspers, neste livro ele está descrito de maneira sucinta. O foco maior é sobre a descrição fenomenológica das experiências específicas sem oferecer maiores detalhes do método. É em um traba-lho menos conhecido, de 1912 – intitulado “A abordagem fenomenológica em psicopatologia” – que a fundamenta-ção, a descrição e a aplicação do método fenomenológico são mais detalhadas (Rodrigues, 2005).

No artigo de 1912, Jaspers observa que ao se exami-nar um paciente psiquiátrico é comum a distinção entre sintomas objetivos e subjetivos. Os sintomas objetivos são aqueles “mensuráveis”, que podem ser percebidos pelos sentidos tais como movimentos registráveis, a fisiono-mia do indíviduo, sua atividade motora, expressão ver-bal, ações e conduta em geral, que podem incluir idéias delirantes ou falsas memórias etc. Ou seja, os sintomas objetivos são todos os conteúdos racionais comunicados pelo paciente sem o auxílio de qualquer “empatia” para com o mesmo.

No entanto, lembra Jaspers (1912/2005), existem os sintomas subjetivos que, para serem compreendidos, exigem um processo subjetivo de “transposição de si mesmo, por assim dizer, ao psiquismo do outro indiví-duo; isto é, pela empatia” (p. 770). Os sintomas subjeti-vos incluem as emoções como alegria, medo, tristeza: processos mentais que necessitam ser inferidos a partir das manifestações do paciente e que por isso, são con-siderados pouco confiáveis do ponto de vista científico. Trata-se da priorização de uma “psicologia científica” em detrimento de uma “psicologia subjetiva”. É esta posição tradicional que Jaspers (1912/2005) critica: “Enquanto a psicologia objetiva, eliminando tudo aquilo que é psí-quico, se converte em fisiologia, a psicologia subjetiva ambiciona preservar a dita vida psíquica como objeto de seu estudo” (p. 771).

Tendo em vista a diversidade de fenômenos psíqui-cos existentes, Jaspers (1912/2005) assinala que, para se abordar questões subjetivas, é necessário tornar claro qual é a experiência psíquica específica referida a dife-rentes fenômenos psíquicos, identificando semelhanças e diferenças entre estes:

Este trabalho preliminar de representação, definição e classificação dos fenômenos, perseguido como atividade independente, constitui a fenomenologia (...). Na esfera da investigação psicológica E. Husserl deu o primeiro passo crucial em direção a uma feno-menologia sistemática, seus antecessores antes nisto havendo sido Brentano e sua escola, assim como Th. Lipps (Jaspers, 1912/2005, p. 772).

Para desenvolver o seu método fenomenológico na psi-copatologia, Jaspers toma como base o primeiro Husserl – o da “psicologia descritiva” (nesta fase, ainda muito próximo do pensamento de Brentano) – que foi interpre-tado por ele como uma fenomenologia descritiva. Mas como bem assinala Rodrigues (2005), reconhecer que a fenomenologia de Jaspers é uma fenomenologia descri-tiva não deve se dar no sentido pejorativo, como acon-tece freqüentemente por parte de seus críticos. Jaspers se restringe à etapa descritiva como a etapa inicial para que se possa atingir o fenômeno subjetivo. Seu objetivo era garantir a cientificidade da compreensão dos sinto-mas subjetivos.

Assim, a fenomenologia surge, para ele, como um mé-todo visado para responder às necessidades de cien-tificidade para a psico(pato)logia e, ao mesmo tempo, atender ao imperativo de não exclusão ao verdadeiro objeto de estudo destas disciplinas: a experiência subjetiva (Rodrigues, 2005, p. 764).

Ainda que Karl Jaspers não deva ser considerado o iniciador da Psicopatologia Fenomenológica – um mal entendido comum em nossos dias – cabe a ele, sem dúvi-da, o papel pioneiro de se preocupar com cientificidade do sintoma subjetivo. Foi esta preocupação que fez com que ele buscasse na fenomenologia do primeiro Husserl um método que pudesse compreender cientificamente o sintoma subjetivo. Assim, deve-se reconhecer que a fe-nomenologia de Jaspers não pode ser chamada de psico-patologia fenomenológica, justamente por sua concepção restritiva da experiência científica ligada ao dualismo cartesiano da psique e do soma (Tatossian, 2006). Mas, como assinala Fédida (1998), “a psicopatologia geral de Karl Jaspers, pouco rigorosa fenomenologicamente, tem o mérito de contribuir historicamente para a constituição de uma antropologia fenomenológica em psicopatologia” (p. 109). É possível afirmar que em Jaspers se encontram os germes da psicopatologia fenomenológica desenvolvi-da posteriormente em Binswanger e toda a tradição da psicopatologia fenomenológica até os dias atuais.

Enquanto um campo específico do saber científico que se funda na interseção da tradição histórico-com-preensiva das ciências humanas com a tradição explica-tivo-causal das ciências naturais, a psicopatologia deve a Jaspers não apenas a sua origem, mas seu desenvolvi-mento conturbado, sempre envolvido pela discussão da

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subjetividade versus objetividade, que se mantém ainda em seu bojo na contemporaneidade.

2. ludwig Binswanger: uma psicopatologia fenome-nológica

Ludwig Binswanger (1881-1966), médico suíço com formação psiquiátrica junto a Bleuer e a Jung, no Hospital Burghölzli, foi diretor do Sanatório Bellevue, fundado por seu avô, em Kreuzlingen, na Suiça. Iniciou sua carreira aderindo à proposta clínica psicanalítica, mas foi gradu-almente se afastando das proposições metapsicológicas de Freud, à medida em que seus estudos da fenomenologia de Husserl e da ontologia fundamental de Heidegger iam se aprofundando (Pereira, 2001). No seu texto “Analyse Existentielle et Psychothérapie”, Binswanger retoma uma comunicação feita no Congresso Internacional de Psicoterapia em Barcelona em 1958, em que deixa clara sua divergência em relação à psicanálise:

Apesar de toda a nossa admiração pela obra de Freud e toda a estima pela importância gigantesca da psi-canálise no plano da psicoterapia, nossa formação filosófica não nos permitiu reconhecer suas hipóteses filosóficas, particularmente no que concerne à rela-ção entre corpo e alma, entre o instinto e o espírito (Binswanger 1971c, p. 155).

Ao contrário da psicanálise, que havia sido criada por Freud a partir de uma preocupação terapêutica, a análi-se existencial de Binswanger teria sido inicialmente um novo método de pesquisa, que pretendia se contrapor ao da psiquiatria tradicional: “A direção de pesquisa ana-lítico existencial em psiquiatria surgiu da insatisfação quanto aos projetos de compreensão científica da psi-quiatria da época” (Binswanger 1970, p. 115). Isto expli-ca o caráter mais completo e elaborado da psicopatologia decorrente da análise existencial binswangeriana do que suas teorizações sobre a psicoterapia propriamente dita, tendo em vista que só secundariamente ela teria se orga-nizado como proposta de tratamento. A Daseinsanalyse de Binswanger instituiu um corte na tradição médica e psiquiátrica da psicopatologia (Pereira, 2001).

2.1 A Psicopatologia como um Campo Diferenciado do Saber

Na perspectiva de sua Daseinanalyse e de sua antro-pologia fenomenológica Binswanger (1971b) defendeu a idéia – já defendida anteriormente por Jaspers, embora sobre outras bases – de se especificar a psicopatologia em um campo diferente do das ciências naturais, que enten-diam o homem como um sistema de funções de ordem orgânica ligadas a processos naturais no tempo. Sua pro-

posta da antropologia fenomenológica deveria ser a disci-plina para fundar a psicopatologia e a psiquiatria tendo em vista que “vê nele [o homem] um ser pessoal que vive sua vida e cuja continuidade – não somente vivida, mas se vivendo, ela mesma – se desdobra em história” (Kuhn & Maldiney 1971, p, 12).

No seu famoso texto Fonction vitale et histoire inté-rieure, publicado em Introduction a l’Analyse Existentiele, Binswanger (1971b) reconhece a contribuição metodoló-gica de Jaspers em relação à distinção entre relações de causalidade e de compreensão no campo do acontecer psí-quico. As relações causais se referem aos fatos concretos que estabelecem conjunções constantes com o surgimen-to de certos quadros mentais. As relações de compreen-são visam a dar conta do encadeamento psíquico de uma forma compreensível para nós. “E nós já assinalamos re-petidas vezes que não podemos nos apoiar nem em um conceito de valor causal de um lado, nem, por outro lado, naquele da compreensão” (Binswanger, 1971b, p. 55-56). Buscando a superação desta discussão que remete à du-alidade físico x psíquico:

Binswanger propõe que se examine, em seu lugar, a questão mais fundamental: aquela do Ser e das rela-ções do fenômeno psicopatológico com a existência do que padece. Dessa forma a análise existencial abriria a possibilidade de um olhar sobre a totalida-de da existência do homem. A dimensão histórica, anteriormente evocada, é decisiva no pensamento binswangeriano, na medida em que se apóia na Da-seinsalytik de Heidegger para construir suas próprias bases teóricas e metodológicas de abordagem da psi-copatologia (Pereira 2001, p. 139).

2.2 A Analítica do Dasein de Heidegger na Psicopato-logia Binswangeriana

É por partir da Análise do Dasein heideggeriana que na Daseinsanalyse de Binswanger os conceitos de tem-poralidade e espacialidade terão um lugar de destaque. As dimensões fundamentais constituintes do Dasein – os existenciais descritos por Heidegger em Ser e Tempo – são a temporalidade, a espacialidade, o ser-com-o-ou-tro, a disposição, a compreensão, o cuidado (Sorge), a queda e o ser-para-a-morte (Moreira, 2010). No seu tex-to “Analyse existentielle et psychotherapie”, Binswanger (1971d) esclarece que:

Ainda que Heidegger tenha sido para nós o pensador mais prestigiado de nossos tempos, e que ano a ano mergulhemos mais fundo no coração de sua obra, nosso propósito pessoal não era de estudá-la como tal, mas de retirar dela o que seria útil à psiquiatria, cujo fundamento e aprofundamento filosófico sempre haviam sido objeto de nossas preocupações (p. 156).

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É importante observar que a apropriação que Binswanger faz da Daseinanlyse de Heidegger para apli-cá-la à sua Daseisnanalyse no campo da psicopatologia, utilizando-se do método fenomenológico, não se restrin-ge apenas a descrever as vivências dos doentes e seus encadeamentos psíquicos ou naturais que levaram ao surgimento da doença, como o faz Jaspers, mas apreen-der as condições particulares de existência de um indi-víduo singular em relação aos existenciais descritos por Heidegger no plano ontológico.

O método psicopatológico de Binswanger visa descre-ver a experiência de mundo e as condições de existên-cia tal como estas se dão nas condições particulares do Dasein. Trata-se de uma abordagem fenomenológica, no sentido em que depende da abertura à experiência concre-ta do outro, mas, ao mesmo tempo, volta-se às estruturas a priori e transcendentais da existência, visando situar a or-ganização específica daquele indivíduo enquanto Dasein, face a seus existenciais. Trata-se, portanto, de descrever o mundo a partir da perspectiva e das possibilidades da-quela existência singular (Pereira 2001, p, 140).

2.3 Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt

Em um de seus primeiros escritos – Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins (“Formas fundamentais e conhecimento da existência humana”), publicado em 1942 –, Binswanger descreve modos simultâneos de ser no mundo de seus pacientes, distinguindo três regiões do mundo: Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt. Ainda que os es-critos posteriores de Binswanger tenham ampliado suas análises para modos existenciais de ser no mundo, esta definição dos três modos de ser no mundo passou a ser bastante conhecida e associada ao nome de Binswanger, tanto como por conta dele ter utilizado estes três mo-dos de ser no mundo para analisar seu conhecido caso de Ellen West (Binswanger, 1977), como pelo fato desta definição ter sido utilizada e divulgada por Rollo May, nos Estados Unidos. Em seu livro A Descoberta do Ser, Rollo May (1988) resume os três modos de ser-no-mundo de Binswanger.

O primeiro modo é o Umwelt, que significa literal-mente “o mundo ao redor”. É o mundo natural, o mundo biológico, conhecido por ambiente. O Umwelt é o mundo material, que cerca a todos os animais e seres humanos, abrangendo necessidades biológicas, impulsos e instin-to. É o mundo dos ciclos naturais do dormir e acordar, do nascer e morrer, o mundo que é imposto a cada um nós pelo nascimento. O segundo modo – o Mitwelt – é o mundo dos inter-relacionamentos, o mundo com o outro, que caracteriza o humano. Os animais vivem apenas no Umwelt. O ser humano não existe senão no Mitwelt, que é a característica básica do Dasein: ser-no-mundo. Pode-se dizer que os animais têm um ambiente, enquanto que os seres humanos têm um mundo, que envolve suas re-

lações com os outros indivíduos, com a família e a co-munidade. O Mitwelt é o modo de ser no mundo social. Finalmente, o terceiro modo – o Eigenwelt é o “mundo próprio”, o “eu”, que inclui um corpo. O Eigenwelt pres-supõe uma autoconsciência, uma percepção de si mesmo, um “auto-relacionamento” que também está presente ape-nas nos seres humanos. Não se trata de uma experiência meramente subjetiva, ao contrário, é a base sobre a qual nos relacionamos a partir da percepção do que uma coi-sa qualquer no mundo significa para mim.

Binswanger estava preocupado em descobrir a visão de mundo de seus pacientes, o mundo vivido de cada um. Neste sentido é que considerou importante, na clí-nica, que envolve principalmente a relação intersubjeti-va médico-paciente, observar como o paciente vivencia cada uma dessas dimensões de ser-no-mundo. Ainda que Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt sejam três regiões de mun-do diferentes, eles serão sempre modos simultâneos de ser-no-mundo.

2.4 Método Fenomenológico x Método Psicopatológico

No seu texto “De la Phénomenologie”, Binswanger (1971c) discute as diferenças metodológicas entre a feno-menologia e a psicopatologia, lembrando que a pesquisa fenomenológica das essências é diferente da busca dos fatos patológicos:

Desde que a psicopatologia é e será sempre uma ciência da experiência ou dos fatos, ele não quererá nem poderá jamais aceder em uma generalidade absoluta, a uma intuição das essências puras (...). Entendemos, por outro lado que não é insensato falar de uma fenomenologia psicopatológica, apesar desta profunda diferença entre a pesquisa dos fatos psicopatológicos e a pesquisa fenomenológica das essências (p. 101).

Binswanger (1971c) adverte que, se por um lado uma fenomenologia psicopatológica não pode buscar as es-sências, por outro é importante que não se cometa o en-gano de realizar uma psicopatologia meramente descri-tiva ou subjetiva. Uma fenomenologia psicopatológica busca o sentido, a significação da palavra, a experiência vivida. Busca se introduzir “dentro” em lugar de julgar “sobre” a significação da palavra, tal como longamente explicado no seu conhecido exemplo do paciente com alucinação que ao ser perguntado se ele estaria escu-tando vozes, responde: “Não, eu não escuto vozes, mas à noite as salas-de-falar estão abertas e que elas fos-sem dispensadas eu gostaria”. Ao descrever as longas conversas com este paciente, o psiquiatra suíço mostra que, no fenômeno particular, a pessoa se faz conhecer e, inversamente, é o fenômeno que faz o psicoterapeuta penetrar na pessoa.

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Do ponto de vista do fenomenólogo, o essencial de tais fenômenos psicopatológicos reside em que você não vê jamais um fenômeno isolado, mas aquele que se desenrola sobre um plano de fundo de um Eu, de uma pessoa, ou, dito de outra forma, nós o vemos sempre como expressão ou manifestação emanando de tal ou tal pessoa (Binswanger, 1971c, p. 105).

E mais adiante no mesmo texto:

O fenomenólogo, analisando a experiência psicopato-lógica vivida, (...) busca se familiarizar com as signi-ficações que a expressão verbal do doente despertam nele (...). No lugar de refletir sobre sua relação com ou-tros fenômenos psíquicos anormais e suas condições de aparição, ele busca apenas os sinais distintivos imanentes a esta experiência psicopatológica e o que se pode descobrir nela (Binswanger, 1971c, p. 116).

2.5 A Psicopatologia Fenomenológica

A partir deste arcabouço teórico e metodológico é que, na introdução do seu livro Introduction a l’Analyse Existentielle, Binswanger (1971a) afirma que “o ser-psi-quiatra depende referencialmente do encontro e da com-preensão mútua com o outro tomado em sua totalidade e ele está dirigido à compreensão do homem em sua tota-lidade (...)” (p. 47). Nesse sentido, entende que a psiquia-tria é uma ciência do homem, da presença humana, cuja missão enquanto ciência é discriminar o que se aplica ao doente ou ao sadio e buscar a maneira como a presença do doente pode ser modificada em uma presença sadia. Assim, “o pro-jeto científico da psiquiatria não é mais ‘a psyché doente’, e seus ‘transtornos funcionais’, nem tão pouco se trata mais ‘do doente do espírito’ com suas ano-malias de comportamento, mas ‘do homem’” (Binswanger 1971d, p. 157).

A psicopatologia deve ser entendida como o que se afasta da estrutura apriorística do ser em suas catego-rias ontológicas. A presença perturbada se caracteriza como o extravio ou o malogro da sua realização ontoló-gica, de maneira que uma só categoria passa a servir de “fio condutor” do projeto de mundo (May, 1988). A pre-sença fica limitada em torno de uma categoria existen-cial prioritária (os chamados existenciais de Heidegger). Por exemplo, quando a presença fica limitada em torno da corporalidade, temos o Dasein hipocondríaco ou o bulímico; na temporalidade temos o melancólico ou o maníaco (Tatossian, 2006); na espacialidade encontra-mos o agorafóbico, e assim por diante. Ocorre aí o que Binswanger vai chamar de formas de existência frustra-da, onde o indivíduo se fecha em si mesmo perdendo o eixo comum com o mundo do outro. A presença psicopa-tológica se projeta assim de diferentes formas: presença perdida (melancolias), momentânea (manias), vazia (es-

quizofrenias), exibicionista (histeria) e controlada (trans-torno obsessivo-compulsivo).

Ainda que o Dasein seja um conceito fundamental na teoria da psicopatologia e da psicoterapia de Binswanger, e ele se utilize amplamente do pensamento de Heidegger em seus livros, seu pensamento permanece mais próxi-mo do de Husserl do que do de Heidegger (Loparic, 2002; Tatossian; 2006, Freire, 2008; Gonçalves, Garcia, Dantas & Ewald, 2008; Mattar & Novaes de Sá, 2008; Moreira, 2010). O proprio Heidegger (2001), no seminário de 23 de novembro de 1965, em Zollikon, na Suíca explici-ta: “A fenomenologia de Husserl, que ainda o influencia [Binswanger], a qual permanece fenomenologia da cons-ciência, impede a visão clara da hermenêutica fenomeno-lógica do Dasein” (Heidegger 2001, p. 146). Binswanger reconheceu este fato, o que o levou a propor, por ocasião do I Congresso de Psiquiatria, em 1950, em Paris, a ideia de uma “Análise Antropológica-Fenomenológica”. Esta denominação não chegou a ser amplamente utilizada e foi, finalmente, sob a denominação “Análise existencial” que seu trabalho passou a ser divulgado nos últimos anos, agora com a sua concordância que, no mesmo congres-so, de 1950, fora negada por não querer que sua proposta fosse associada com o pensamento de Sartre (Verdeaux & Kuhn, 1971).

Para além das várias denominações assumidas pela extensa obra de Binswanger – Dasinsanalyse, Análise Antropológica-Fenomenológica, Análise Existencial –, no âmbito da psicopatologia sua contribuição fenome-nológica foi de tal magnitude que Binswanger passou a ser considerado o “pai da psicopatologia fenomenológica” (Van den Berg, 1994; Moreira, 2010).

3. medard Boss: uma psicopatologia de inspiração Daseinsanalítica

Medard Boss (1903-1990), médico psiquiatra tam-bém suíço, foi analisado por Freud e influenciado por Bleuler, com quem trabalhou por quatro anos no Hospital Burghölzli. Quando estudou em Berlim teve professores do círculo de Freud, como Karen Horney e Kurt Goldstein. Foi, também, sócio de Jung, que propunha uma psicaná-lise diferente da proposta freudiana.

No prefácio à primeira edição dos Seminários de Zollikon, de Martin Heidegger, editado por Boss (1976), este descreve seu encontro com Heidegger. Conta que, quando serviu na guerra, pela primeira vez em sua vida ficara entediado: “Aquilo que chamamos ‘tempo’ tornou-se problemático. Comecei a refletir sobre essa ‘coisa’. Procurei ajuda em toda a literatura a esse respeito a que tive acesso. Por acaso encontrei num jornal uma nota so-bre o livro Ser e Tempo, de Martin Heidegger” (p. 10).

Neste prefácio, Boss relata o quanto lhe parecera di-fícil e intrigante, a leitura da obra de Heidegger, tendo em vista sua formação científico-médica. De forma que,

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ainda que houvesse sido desestimulado por colegas que designavam a Heidegger de nazista (que Boss argumen-ta serem calúnias), em 1947 entrou em contato por carta com Heidegger de quem se tornou amigo pessoal, se cor-respondendo ao longo de cerca de 30 anos.

Durante dez anos, a partir de 1959, Boss deu início à coordenação de uma série de seminários ministrados por Heidegger em sua casa em Zollikon, na Suíça, para cerca de 70 psiquiatras e estudantes de psiquiatria. Estes seminários tornaram-se famosos nos meios psiquiátri-co e psicológico clínico, pois se constituiu em momento único em que Heidegger mais profundamente descreve sua Analítica do Dasein para um público de psiquiatras, e não de filósofos (o que, conta Boss, era de interesse de Heidegger que visava a um maior público que o filosófi-co). Estes seminários, bem como as cartas trocadas entre Medard Boss e Martin Heidegger foram publicados no livro Seminários de Zollikon, cuja edição em português, em 1976, se deveu à iniciativa do médico e psicoterapeu-ta brasileiro, Solon Spanoudis, quem, por sua vez, troca-ra cartas com Boss convidando-o a participar de alguns seminários no Brasil, a partir de 1973.

É interessante observar como a or igem da Daseinsanalyse de Boss se diferencia da de Binswanger, no sentido de que o que moveu Boss ao encontro com Heidegger foi um interesse pessoal e não teórico, a partir de sua própria vivência de tédio durante a guerra (tema so-bre o qual Heidegger escrevera). Enquanto Binswanger foi antes de tudo levado a penetrar no pensamento desse fi-lósofo por um ‘impulso puramente científico’ e não, como Freud, por um interesse de ordem terapêutica, foram so-bretudo preocupações terapêuticas que determinaram a escolha de Boss. Esperava em primeiro lugar que as re-centes considerações filosóficas de Heidegger lhe fossem úteis no domínio da terapêutica (Boss & Condrau 1997, p. 26). O artigo de autoria de Boss, publicado em 1997 na Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, onde ele faz uma apresentação pessoal da Analítica do Dasein de Heidegger é intitulado “Encontro com Boss” (Boss, 1997).

3.1 A Daseinsanalyse de Boss

Descontente com os fundamentos da psiquiatria tradicional e, de início, estimulado pelos trabalhos de Binswanger, Boss se voltou para o pensamento de Heidegger, desenvolvendo todo o seu trabalho, ao longo dos anos que se seguiram, em torno da sua Analítica do Dasein. Acreditava que a psicopatologia muito se enrique-ceria por um pensamento que não permitia a colocação da distinção cartesiana sujeito-objeto e que, por outro lado, aproximava a medicina da psicologia. Por isso conside-rava que a Daseinsanalyse não deveria ser considerada simplesmente mais uma escola: “É, antes de tudo e pri-mordialmente uma nova abordagem do conjunto dos fe-

nômenos normais e patológicos do existir humano (...) tem como intuito ver sem deformações aquilo que se mostra a nós do si-mesmo” (Boss & Condrau, 1997, p. 26).

A concepção Daseinanalítica de Boss parte da ob-servação de que o homem nunca se encontrou primor-dialmente sozinho, subsistindo sozinho; o homem pode se relacionar de diferentes modos, mas não pode não se relacionar; mesmo a indiferença é um modo de relação; os homens estão sempre e primordialmente co-existindo perto das mesmas coisas de um mesmo mundo, contri-buindo primariamente em comum, embora cada um a seu modo, para manter aberto este mundo, o que se constitui no caráter fundamental de ser-com-o-outro primordial (Boss & Condrau, 1997). Ou seja, o existencial ser-com-o-outro é central, ainda que Boss também dê atenção aos outros existenciais descritos por Heidegger tais como a temporalidade, a espacialidade, a disposição, o cuidado (Sorge), a queda e o ser para a morte. Boss retoma assim, o mais ao “pé da letra” possível, as idéias de Heidegger em Ser e Tempo, onde o grande filósofo distingue, no Dasein, os planos ôntico (plano relacionado à elucidação da exis-tência do Dasein) e ontológico, que é a apresentação das estruturas existenciais do ser, dimensões fundamentais constituintes do Dasein que Heidegger chamará de “exis-tenciais”. O ôntico se refere ao ente, enquanto o ontológi-co diz respeito ao ser (Heidegger, 1989).

Com base no existencia l ser-com-o-outro a Daseinsanalytik de Heidegger, retomada por Boss, en-tende a existência humana como uma abertura estendida e transparente, tanto no sentido temporal quanto espacial, para tudo aquilo que vem ao seu encontro no mundo. A essência do existir humano é ser esta “clareira”, que con-siste meramente em um poder “ver”, experienciar, o que vem ao seu encontro (Heidegger, 1989).

3.2 A Inspiração Daseinsanalítica na Psicopatologia

Ao contrário de Binswanger, Boss nunca chegou (nem, aparentemente era esta sua intenção) a propor uma te-oria de psicopatologia. No entanto, parece possível di-zer que seus escritos, particularmente o artigo Análise Existencial – Daseinsanalyse: como a daseinsanalyse en-trou na psiquiatria, escrito em co-autoria com seu assis-tente G. Condrau, a partir do qual desenvolvemos este tópico neste artigo, mostram que ele realizou curtos “en-saios” do que poderia vir a ser chamado uma “psicopato-logia de inspiração daseinsanalítica”. Nesta perspectiva, “o modo de ser-doente só pode ser compreendido a par-tir do modo de ser-sadio e da constituição fundamental do homem normal, não perturbado, pois todo modo de ser-doente representa um aspecto particular de determi-nado modo de ser-são” (Boss & Condrau 1997, p. 29). Na medida em que entende que a essência fundamental do homem sadio caracteriza-se por suas possibilidades de relação na abertura livre de seu mundo – a “clareira” – o

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modo de ser-doente poderá ser compreendido como uma limitação dessas possibilidades.

Boss & Condrau (1997) subdividem o modo de ser-do-ente em: 1) Ser doente caracterizado por uma perturba-ção evidente da corporeidade do existir humano; 2) Ser-doente caracterizado por uma perturbação pronunciada da espacialidade do seu ser-no-mundo; 3) Modo do ser-doente caracterizado por uma limitação da disposição própria à essência da pessoa; e 4) Modos de ser-doente concernentes a limitações na realização do ser-aberto e da liberdade. Ainda que cada um destes modos de ser-doen-te faça referência a um existencial específico do Dasein, descrito em Ser e Tempo enquanto dimensões fundamen-tais do ser-aí, formam, todos juntos, uma estrutura total e indivisível. Assim, se um deles é perturbado em sua realização, as outras dimensões, como parte do todo, so-frerão igualmente as conseqüências.

Esta questão é esclarecida por Boss & Condrau (1997) com um exemplo sobre o primeiro modo de ser-doente, relativo à corporeidade do existir humano:

(..) qualquer modo da corporeidade faz parte a tal ponto e tão diretamente do ser-no-mundo do homem, isto é, de sua existência, que qualquer redução toca sempre e imediatamente este ser-no-mundo e, por isso mesmo, todas as suas possibilidades de relação com o mundo. Assim, uma fratura na perna constitui primordialmente uma redução da possibilidade exis-tencial de se aproximar ou de se afastar daquilo que se oferece ao nosso encontro no mundo, independen-temente, aliás do fato dos sofrimentos provocados por uma fratura reduzirem consideravelmente a abertura para o mundo de um ‘da-sein’, não lhe deixando mais que um pequeno número de interesses (p. 30).

Boss & Condrau (1997) citam outros exemplos na mesma linha do citado da fratura, agora no domínio da psicopatologia. Para compreender uma paralisia histéri-ca, dizem eles, a Daseinsanalyse não precisa recorrer à “invenção de desejos insconscientes” [e aqui, como em alguns outros momentos deste artigo, os autores são ex-plícitos em sua crítica a Freud]:

Sem que seja necessário recorrer a hipóteses metap-sicológicas, qualquer paralisia histérica pode ser di-retamente compreendida como uma perturbação que afeta a possibilidade de realizar na corporeidade uma certa relação com o que se apresenta no mundo, isto é, como uma perturbação que consiste em interdições estranhas à pessoa” (Boss, & Condrau, 1997, p. 30).

No mesmo artigo os autores assinalam que o modo de ser-doente pela redução dos existenciais “disposição” “e o ser-aberto”, relacionadas às distimias depressivas são cada vez mais freqüentes: “Hoje encontra-se cada vez mais pessoas sofrendo de uma opressão vaga, do absurdo e do

tédio, de sua vida (...) Freqüentemente estes doentes ten-tam durante muito tempo mascarar seu desespero se en-torpecendo, seja pelo trabalho, pelas distrações ou pelas drogas”. (Boss & Condrau 1997, p. 31).

Esta observação, ainda que se refira à realidade de pelo menos cerca de 40 anos atrás, parece muito característica da nossa sociedade contemporânea da epidemia da de-pressão (Moreira, 2002). Este distúrbio da abertura para mundo do Dasein é descrito por Boss & Condrau (1997) como o tédio, em que o homem ainda que esteja aberto para o mundo enquanto ente, não o está como ser, ou seja, não deixa que lhe cheguem mensagens do mundo, não se deixa tocar, permanecendo fundamentalmente indi-ferentes a tudo. Para estas pessoas o tempo é comprido, o que quer dizer que no tédio é principalmente a tempo-ralidade que é afetada, não existindo futuro verdadeiro ou passado rico de experiências, nem mesmo presente que tenha algum sentido.

Ainda que todos estes modos de ser-doente apresen-tem uma perturbação da realização do caráter fundamen-tal do ser-humano que é seu ser-livremente-no-mundo, ao mesmo tempo em que lhe revela o mundo, para Boss & Condrau (1997) a esquizofrenia deve ser considerado o modo de ser-doente mais humano e, ao mesmo tempo, mais desumano:

Justamente porque aqui se manifesta abertamente uma grave perturbação fundamental do ser humano, isto é, em seu ser-aberto esta doença mais do que qual-quer outra coisa lança uma luz sobre a natureza mais profunda de nosso existir e por isso mesmo sobre sua fragilidade. A esquizofrenia pode ser considerada uma perturbação específica do ‘poder-existir-o-ser-aberto’ conforme a essência do ser-aí (p. 31).

Existiria no esquizofrênico uma dupla incapacidade: de poder se engajar totalmente no que se mostra na aber-tura do seu existir e de preservar seu si-mesmo capaz de manter uma relação livre com o que aparece.

O esquizofrênico perde sua liberdade existencial no momento em que como ser-aí, enquanto possibili-dade de responder aos numerosos significados e às diversas solicitações do que aparece em seu mundo, se sobrecarrega a tal ponto que ele não é mais capaz de responder ao que aparece como o fazem todas as pessoas ao seu redor. Ele não é mais capaz de resistir à dissolução de seu ser na esfera de seu mundo tornado vasto demais (Boss & Condrau 1997, p. 32).

Isto explicaria o fato deste modo de ser-doente apa-recer, mais freqüentemente, na puberdade ou em mu-lheres depois da maternidade quando as exigências em relação ao outro se tornam mais fortes, para um “deixar aproximar-se” entre adultos do sexo oposto ou para o devotamento do amor materno. Boss & Condrau (1997)

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defendem a idéia de que ninguém pode ser considerado esquizofrênico e que a esquizofrenia não pode ser con-siderada uma doença em si-mesma. Mais conveniente seria se perguntar:

Esquizofrênico diante de qual situação relacional acima de suas forças? (...) O caráter patológico destes doentes reside no fato de lhes faltar uma possibilidade de existir em relação aos seres sãos. Falta-lhes acentu-adamente a capacidade de assumir as possibilidades constitutivas do seu ser-aí para tornar-se si-mesmo livre e autônomo cuja abertura para o mundo possa se manter firme face a tudo que a eles se oferece. (...) Assim, pode-se dizer que [os esquizofrênicos] existem em grande parte fora deles mesmos. São tão pouco capazes de assumir as suas possibilidades num ser-si-mesmo autônomo que somente podem sentir o que se mostra a eles como algo estranho e imposto de fora. É por isso que tão freqüentemente têm a impressão de que o que a eles se oferece é ditado por ‘vozes’ ex-teriores e que tudo o que fazem e pensam é pensado por outra pessoa (pp. 32-33).

Em outras palavras, as assim chamadas alucinações no esquizofrênico seriam fruto de uma total impossibi-lidade de ser-si-mesmo autônomo. Da mesma forma que nos esquizofrênicos, Boss & Condrau (1997) vêem nos neuróticos obsessivos uma perturbação da liberdade existencial, de caráter defensivo tal como ocorre nas es-quizoidias ou no autismo: “De fato, o que existe de mais oposto à liberdade do que a obsessão?” (p, 33). No entan-to, os autores assinalam que a realização do ser-aberto e do ser-livre nos neuróticos obsessivos jamais será atin-gida da mesma maneira que nos esquizofrênicos; eles ja-mais são absorvidos completamente pelo percebido nem se perdem, enquanto ser-humano, totalmente nele como ocorre nos esquizofrênicos.

Na medida em que Boss desloca o entendimento da doença para a compreensão da experiência do ser-doente, considera, então, a psicopatologia como redução ou per-da das possibilidades constitutivas dos modos do exis-tir humano enquanto Dasein. Assim, no ser-doente por uma perturbação na corporalidade teremos, por exemplo, as doenças psicossomáticas ou a conversão histérica; na espacialidade teremos a agorofobia; no humor teremos a mania e a depressão, na realização do ser aberto teremos a esquizofrenia (Boss & Condrau, 1997).

Ainda que Medard Boss seja considerado o autor na área da psiquiatria que se manteve mais próximo da pro-posta heideggeriana (Gonçalves, Garcia, Dantas & Ewald, 2008), Loparic (2002) insiste no “fracasso da escola suíça” (referindo-se a Boss e a Binswanger) no que se refere à uti-lização apropriada da Analítica do Dasein de Heidegger pela psiquiatria. Para além desta discussão, é possível observar que as interessantes observações de Boss sobre os modos de ser-doente, com base nos existenciais de

Heidegger, carecem de maior profundidade e sistemati-zação. Além disso, o pensamento de Heidegger é infini-tamente mais amplo que os existenciais, aos quais Boss parece se aferrar. Neste sentido, mesmo tendo claro que mais pesquisas sobre este assunto necessitariam ser fei-tas, talvez seja possível arriscar dizer que Loparic (2002) tinha razão. Só que, no caso de Binswanger, se ele não conseguiu “se apropriar adequadamente” da Analítica do Dasein heideggeriana, acabou criando novas vertentes: a Análise Existencial e a Psicopatologia Fenomenológica. No caso de Boss, a questão parece mais complicada, me-recendo pesquisas mais extensas que possam vir a escla-recer melhor esta questão.

4. arthur tatossian: uma psicopatologia Contempo-rânea do Lebenswelt

Arthur Tatossian (1929-1995) nasceu em Marseille, na França, filho de uma família de emigrantes armênios, o que segundo Jeanne Tatossian – sua esposa –, teve reper-cussões profundas na sua personalidade tímida e sempre discreta. Foi o que poderia ser chamada de “uma crian-ça superdotada”, dormia poucas horas por noite e usava as outras horas para trabalhar (Tatossian & Samuelian, 2006). De formação médica, dedicou-se a neurologia e, posteriormente a psiquiatria, sendo seus artigos mais pro-fundos os fenomenológicos (Darcourt, 2006). Ao longo de sua carreira ocupou vários cargos, tanto na docência da psicopatologia, como de chefias de serviços médicos. Trabalhou no Hospital de Marseille em 1952 e em 1959 se tornou Chefe do Serviço de Neuropsiquiatria. Ocupou, ainda, vários outros cargos, entre os quais o de Médico-Chefe da Rede de Hospitais de Marseille e encarrega-do do curso de Psicologia na Faculdade de Medicina de Marseille, em 1961.

Além de artigos e capítulos de livros deixou três pu-blicações na França: Psychiatrie Phénomenologique, obra póstuma que reúne seus primeiros textos fenomenológi-cos praticamente desconhecidos visto que ele os publica-va em revistas locais ou não os publicava; La vie en fau-te de mieux, um livro sobre a depressão, de linguagem menos acadêmica e mais acessível que, segundo Jeanne Tatossian1, Arthur Tatossian não valorizava muito; e Phénomenologie des Psychoses, publicado em português pela Editora Escuta em 2006.

Mas, se Tatossian, após sua morte prematura aos 66 anos, não deixou mais que três livros publicados (que se superam em número pela densidade de seu texto), cha-ma a atenção o número de pessoas – ex-alunos e colegas dele na universidade ou no Hospital de La Timone, onde dirigiu o Serviço de Psiquiatria e de Psicologia Médica a partir de 1980, além, é claro, de Jeanne Tatossian – que

1 Algumas das informações aqui relatadas como sendo de autoria de Mme Tatossian, esposa de Arthur Tatossian, foram relatadas em conversas informais quando da ida da autora em visita a Marseille, no outono de 2001.

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o admiravam em sua enorme sensibilidade humana, fato que pode ser observado nos prólogos e prefácios de seus livros, que não apenas mencionam a obra, mas o homem. Ele foi reconhecido não apenas pelo seu papel desempe-nhado no pensamento fenomenológico como na prática psiquiátrica do seu cotidiano clínico. Nunca quis ser con-siderado um mestre nem criar escolas, pois achava que a fenomenologia já se “vivia” e não poderia se resumir em receitas (Tatossian & Samuelian, 2006). A possibilidade de reunir esta sensibilidade, juntamente com sua grande capacidade de trabalho (tinha o hábito de dormir quatro horas por noite, trabalhando durante as outras horas), além de sua reconhecida genialidade (vide, por exemplo, o fato de ter aprendido alemão sozinho a fim de ler os origi-nais de Husserl, Heidegger e outros autores alemães para a sua tese de Doutorado em Medicina, de 1957, intitula-da Étude Phénomenologique d’un cas de esquizophrenie paranöide, publicado postumamente no livro Psychiatrie Phénomenologique, em 1997, faz do pensamento de Arthur Tatossian uma psicopatologia fenomenológica da clíni-ca – sua preocupação prioritária era a pessoa em sofri-mento, o paciente; para a clínica – entendia que o que de mais útil a fenomenologia poderia oferecer à psiquiatria seria “uma comunicação compreensiva com o Outro” (Tatossian & Samuelian, 2006, p. 354).

4.1 Uma Psicopatologia Fenomenológica da Clínica e para a Clínica

Um aspecto que salta aos olhos ao leitor da obra de Arthur Tatossian é a enorme facilidade com que ele pas-seia através das obras dos vários autores da fenomenolo-gia: Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Scheler, bem como autores que contribuem diretamente para a tradição fenomenológica em psicopatologia: Jaspers, Binswanger, Minkowski, Blankenburg, Tellenbach, Von Gebsattel, Van Den Berg, Kimura, entre outros.

Seus escritos consistem em um constante diálogo com estes representantes da fenomenologia, o que faz de sua obra uma psicopatologia fenomenológica contempo-rânea, na medida em que integra em um só texto, em um momento histórico um pouco mais avançado – segunda metade do século XX até a atualidade – grandes nomes da fenomenologia. A partir deste diálogo crítico com al-guns dos clássicos da psicopatologia fenomenológica, Tatossian escreve uma psicopatologia fenomenológica mais amadurecida, em que:

A fenomenologia utilizada em psiquiatria não é a banal aplicação de uma teoria filosófica, mas antes, uma forma de ‘questionar’ e de compreender o doente mental; que realiza uma fenomenologia que sabe dis-tinguir sintoma de fenômeno e tomando consciência da importância do ‘modo de ser-no-mundo’ (...) não esquecendo que o doente é um ser que sofre e que o

melhor a fazer é reconfortá-lo em vez de elaborar hi-póteses, certamente muito sedutoras, mas pouco úteis na prática clínica cotidiana (Tatossian & Samuelian, 2006, p. 354-355).

A preocupação em desenvolver uma psicopatologia da clínica e para a clínica é central no pensamento de Tatossian. Logo no início de Fenomenologia das Psicoses ele explicita sua posição:

Talvez o presente estudo se justifique por apresentar, sem pretensão de originalidade, mas com a preocu-pação da fidelidade a uma visão de conjunto a mais completa possível, o quadro da fenomenologia psiqui-átrica tal como ela tem sido praticada pelos psiquiatras e não como poderia ou deveria sê-lo a partir de tal filosofia (Tatossian, 2006, p. 23).

E mais adiante:

Se ele [o psiquiatra] deseja atingir a experiência pro-priamente fenomenológica da doença mental, não pode se isolar com o filósofo transcendental em sua torre de marfim. Ao trabalho especulativo sobre a literatura especializada, que foi o método de Merleau-Ponty e de outros também, deve preferir obrigatoria-mente o comércio direto com o que está em questão: a loucura e o louco (Tatossian, 2006, p. 29).

A preocupação primordial de Tatossian com a clínica leva-o a se posicionar criticamente em relação ao “qua-drunvirato fenomenológico dos anos 1920” – Binswanger, Minkowski, Straus e Von Gebsattel –, criticando a Binswanger, um de seus constantes interlocutores, por suas habituais e, em sua opinião, excessivas exposições teóricas e análises com considerações metodológicas. Acreditava que Minkowski, Straus e Von Gebsattel per-maneciam mais próximos da experiência clínica, o que também acontecia na psiquiatria mais recente, onde ape-sar da via seguida por Binswanger, seria a imbricação mais íntima entre metodologia e análise de casos clíni-cos que predominava (Tatossian, 2006).

Da mesma forma, Tatossian critica o que ele cha-ma de “reviravolta fenomenológica” do pensamento de Binswanger que, havendo partido do Dasein de Heidegger para pensar a psicopatologia, como que retrocede à feno-menologia da consciência de Husserl. Referindo-se a obra de Binswanger, Melancolia e Mania, afirma: “A análise existencial de Heidegger permanece, sem dúvida, como o afirma no prefácio, o ponto de partida, mas se apaga no corpo do trabalho diante da fenomenologia de Husserl, sob a sua forma mais técnica” (Tatossian, 2006, p. 172). Para Tatossian, distanciar-se do Dasein como horizonte metodológico da clínica, traz graves e profundas implica-ções, dado que significa perder de vista a idéia dos esta-dos psíquicos enquanto transformação da estrutura onto-

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lógica primordial do ser-no-mundo, independente de um modo de ser patológico. Na fenomenologia transcendental, os estados psíquicos estariam explicitamente presentes enquanto doença mental em sua constituição:

A passagem da Daseinsanalyse à fenomenologia transcendental comporta, assim, ir de uma atitude profundamente impregnada pela historicidade huma-na a uma outra totalmente a-histórica e, mais grave, de uma perspectiva que, com Heidegger, teria superado a distinção sujeito/objeto a uma outra que não a supera mais, já que fala de doenças. A solução é sem dúvida que a perspectiva da fenomenologia não exclui aquela da Daseinsanalyse (Tatossian, 2006, p. 173).

Ou seja, trata-se de pensar em termos de uma comple-mentaridade entre as propostas de Husserl e de Heidegger para se pensar a psicopatologia.

4.2 O Lebenswelt como Foco na Psicopatologia Feno-menológica Contemporânea

Tatossian (2006) entende que o último Husserl quis mostrar a capacidade da fenomenologia de incorporar a existência e o que havia sido colocado por Heidegger em Ser e Tempo. Para isto desenvolveu mais amplamente o conceito de Lebenswelt que, por sua vez irá, posteriormen-te, caracterizar a fenomenologia existencial de Merleau-Ponty “e que interessa à psicopatologia fenomenológi-ca em sua referência simultânea a Husserl e Heidegger” (p. 87). Merleau-Ponty, um representante contemporâ-neo do pensamento fenomenológico, tem o conceito de Lebenswelt como fio condutor de todo o seu pensamento ambíguo (Bidney, 1989).

Para além de uma complementaridade da Fenome-nologia e da Daseinsanalyse, defendida por Kuhn, Tatossian (2006) vai, então, preferir a pista deixada por Husserl e desenvolvida por Merleau-Ponty: o Lebenswelt. Cita a Bröekman para quem a análise heideggeriana se-ria uma análise do Lebenswelt e a Merleau-Ponty, em Fenomenologia da Percepção quando este afirma que tudo em Heidegger havia partido de uma indicação de Husserl, o Lebenswelt. Com base no desenvolvimento deste conceito é que Tatossian justifica a “reviravolta” de Binswanger à fenomenologia husserliana: “É por isso que a fenomenologia psiquiátrica atual, impulsionada pelo próprio Binswanger se orientou em direção a Husserl em sua obra tardia...” (p. 85).

Segundo Tatossian (2006), o Lebenswelt, tal como con-ceituado nos textos do último Husserl – da Experiência e Julgamento e da Krisis – significa uma realidade primária da nossa experiência imediata, o mundo das significações tal como ele se apresenta à ação humana. Este mundo é, antes de tudo, o mundo do indivíduo humano, ou seja, é o segmento da existência humana vivida pelo indivíduo

em sua unicidade sendo, assim, o lugar da vida primá-ria do indivíduo, caracterizado essencialmente por sua familiaridade – o meu mundo – um horizonte interno da experiência. “Os conteúdos podem variar de uma socie-dade a outra e neste sentido há os Lebenswelten, mas a forma do Lebenswelt é única (...) É porque ‘meu’mundo é sempre assim ‘nosso’mundo, um mundo intersubjetivo, um mundo comum” (Tatossian, 2006, p. 88).

O Lebenswelt, aqui, é ainda o mundo correlativo do mundo natural, mas agora no nível da experiência pré-intencional, não mais no nível intencional e conceitual tal como descrito no jovem Husserl. O Husserl tardio revela as estruturas pré-predicativas da experiência:

O Lebenswelt é o mundo percebido por baixo das construções do pensamento. O eidos está presente aqui, mas não como essência fechada, inata e fixada, mas como estrutura de sentido aberta, histórica e, portanto, de validade forçosamente transitória, as-sintótica da experiência humana vivida (Tatossian, 2006, p. 88-89).

Neste sentido, na medida em que se encontra no domí-nio do pré-reflexivo, não cabe a distinção entre conscien-te e inconsciente. Para Tatossian (2006), a psicopatologia deve visar o Lebenswelt do doente em duas dimensões de sua experiência: por um lado trata-se de uma experiên-cia pré-teórica e pré-objetiva que temos diante do doente e, por outro, parte da questão de como se constitui um Lebenswelt particular que se imprime sobre seu vivido, sua experiência, sua ação, sua forma de se apresentar no mundo. O Lebenswelt

(...) existe como mundo concreto e cotidiano, é sempre individual, é sempre ‘meu’mundo, sendo também totalmente ‘nosso’ mundo porque [é] impregnado de historicidade e intersubjetividade (...) o Lebenswelt não pode ser compreendido como pura derrelição e implica a entrada em cena da estrutura de projeto de ser humano” (Tatossian, 2006, p. 207).

4.3 O Tempo Vivido

O conceito de Lebenswelt é utilizado ao longo da Fenomenologia das Psicoses, seja na descrição e com-preensão das diferentes enfermidades, seja no diálo-go com outros autores da psicopatologia fenomenológi-ca. Diretamente ligada ao vivido no Lebenswelt é que a questão da temporalidade ocupou um lugar de destaque no pensamento de Tatossian, sem que com isso ele se descolasse das outras dimensões do vivido humano tal como espacialidade, corporalidade, abertura ao mundo e assim por diante.

A temporalidade esteve intimamente relacionada a sua própria clínica, onde Tatossian deu especial aten-

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A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia Fenomenológica

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ção a esta questão, sempre muito atento à forma como o tempo era vivenciado por seus pacientes. Este tema – amplamente desenvolvido em Binswanger, Minkowski e Tellenbach – fez com que ele estivesse em constante diálogo com estes autores. O tempo vivido, seja para o indivíduo doente ou sadio, não é o tempo mensurável, que pode ser medido objetivamente – “o tempo do mun-do exterior ao sujeito” –, mas é o tempo imanente ao su-jeito, o tempo dele. Para Tatossian (2006), os indivíduos “normais” tem o tempo dominado pela noção de devir, de futuro, enquanto que o indivíduo doente vivencia altera-ções no tempo vivido: o melancólico, por exemplo, vive, passivamente, uma estagnação do tempo pela inibição do devir e a impossibilidade de antecipações, ficando preso ao passado; o maníaco também vivencia esta mesma es-tagnação embora ativamente, como que querendo ante-cipar o futuro, e assim por diante.

O tempo vivido é o tempo do Lebenswelt: imanente e transcendente, consciente e inconsciente, singular e universal. E, nesse sentido, é fundamento de um modo de ser-no-mundo sadio ou patológico:

No homem normal o primado do futuro faz do vivido temporal um vivido de poder – poder de transformar o mundo pela ação, e a si mesmo pelo alargamento da pessoa. A imobilização do tempo vivido tem por corolário a perda da categoria do possível – não como possibilidade lógica, vazia, mas como possibilidade concretamente ‘minha’, como capacidade (p. 127).

Segundo Tatossian & Samuelian (2006) a significa-ção particular que Tatossian dá ao tempo vivido permite compreender sua tolerância e paciência em relação aos outros, o que repercutiu na sua qualidade de relação com seus pacientes. Para ele:

(...) o tempo é a escola da experiência, experiência do fenômeno. A identidade do sujeito não é mais que o equilíbrio entre identidade do eu e identidade do papel; é, portanto, um equilíbrio entre a constituição do outro por si e a constituição de si pelo outro. Se esse equilíbrio não é atingido, ou se subitamente é posto em dúvida, a vida cotidiana não pode ser vivida senão como uma impostura evidente, e os distúrbios do comportamento aparecem (...) É, portanto, nesta situação paradoxal em que se encontra colocado o sujeito que ele deve cons-truir o mundo fora dele, que lhe é ao mesmo tempo imanente e transcendente (Tatossian, 2006, p. 356).

É neste sentido que a psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian não é uma explicação, mas um “ver” da experiência psiquiátrica, sendo em si empírica e apri-órica. A contribuição singular do pensamento de Arthur Tatossian tem um duplo sentido: aliado ao fato de, por se encontrar em um momento histórico posterior, Tatossian ter tido a possibilidade de construir seu pensamento no

diálogo com os autores clássicos da fenomenologia da pri-meira metade do século XX, ele atualiza esta vertente na medida em que procura desenvolver seu pensamento em torno do conceito de Lebenswelt. Cria-se com Tatossian uma psicopatologia fenomenológica contemporânea.

Considerações finais

A psicopatologia fenomenológica não pode se dar de outra forma que não seja a existencial. É impossível uma psicopatologia fenomenológica transcendental, pois esta não é uma ciência natural, que pode ter um método ei-dético transcendental puro, tal como era o projeto do primeiro Husserl, mas uma ciência do empírico, do ou-tro, do ser-no-mundo, ou do Lebenswelt. Como bem lem-bra Merleau-Ponty, no prefácio da “Fenomenologia da Percepção”: a essência está na existência. Este é o eixo central que, de alguma maneira, atravessa o pensamento de cada um destes quatro grandes nomes da psicopatolo-gia fenomenológica.

Karl Jaspers, ao introduzir o método fenomenológico em seu trabalho de descrever e compreender uma psico-patologia geral inaugura uma nova área do saber – a psi-copatologia – que a partir de então se preocupará tanto com a realidade subjetiva quanto com a realidade objetiva de pessoas que sofrem com transtornos mentais. Ludwig Binswanger, com sua daseinsanalyse, que passou a se chamar análise existencial, inaugura a tradição da psi-copatologia fenomenológica, cuja preocupação primor-dial não é mais o psíquico ou a doença, mas o homem. Medard Boss desenvolve, ou pelo menos dá os primeiros passos, na direção de uma psicopatologia mais puramen-te inspirada no Dasein de Heidegger. Finalmente, Artur Tatossian, a partir do diálogo com os filósofos e psiquia-tras representantes da tradição fenomenológica em psi-quiatria, descreve uma psicopatologia fenomenológica contemporânea do Lebenswelt.

Quatro grandes nomes, quatro contribuições singula-res à psicopatologia fenomenológica existencial.

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Virginia Moreira - Psicoterapeuta, Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós-Doutora em Antropologia Médica pela Harvard University. É Professora Titular da Universidade de Fortaleza e Affiliated Faculty da Harvard Medical School. Endereço para correspondência: APHETO – Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade de Fortaleza. Av. Washington Soares, nº1321 – Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: [email protected]; [email protected]

Recebido em 30.03.2011Aceito em 25.07.2011

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The children’s psychological clinic in an existential perspective

La clínica psicológica de niños en una perspectiva existencial

ana maria lopez Calvo de Feijoo

Resumo: Neste artigo, tentaremos responder aos questionamentos acerca da viabilidade de uma clínica psicológica com base na filosofia da existência. Iniciamos assinalando aspectos que apontam para a possibilidade de uma clínica psicológica infantil em uma perspectiva existencial. Para tanto, consideraremos que o que está em questão na criança, ou seja, seu caráter de indeter-minação, de liberdade e de cuidado, em nada difere do adulto. E que os aspectos essenciais na postura do clínico são a atitude fenomenológica e a preocupação libertadora. Desta forma, o psicólogo clínico, prescindindo de qualquer posicionamento teórico e da respectiva categorização acerca do comportamento infantil, pode acercar-se do fenômeno tal como esse se apresenta. Palavras-chave: Clínica infantil; Fenomenologia; Filosofia da existência; Heidegger.

Abstract: In this article we will try to show a child psychological clinic is possible under the existential perspective. So, for this we will start by considering that what is at issue in the child, i.e. their character of indetermination, freedom and care dif-fers nothing from adult. And that the essential aspects of posture are clinical phenomenological attitude and liberating con-cern. Thus, the clinical psychologist - besides any theoretical position and categorization about child’s behavior - can get closer to the phenomenon as it presents itself. Keywords: Child clinics; Phenomenology; Philosophies of existence; Heidegger.

Resumen: En este artículo intentaremos mostrar elementos que hacen viable la clínica psicológica en una perspectiva existen-cial. Por lo tanto, vamos a empezar por considerar lo que está presente en el niño, es decir, su carácter de indeterminación y libertad que en nada difiere del adulto. Y que los aspectos esenciales de la postura clínica son la actitud fenomenológica y la preocupación libertadora. Así, el psicólogo clínico, sin cualquier posicionamiento teórico y sin la categorización del comporta-miento infantil, se acerca del fenómeno tan como éste se presenta a él. Palabras clave: Clínica com niños; Fenomenología; Filosofías de la existencia; Heidegger.

introdução

Apresentar a clínica psicológica em uma perspectiva existencial consiste em uma tarefa desafiadora na medi-da em que muitos estudiosos da psicologia consideram a relação da Filosofia com a Psicologia algo improvável. Por esse motivo, consideramos que, muito mais do que convencer os nossos leitores da viabilidade desta rela-ção, devemos problematizá-la. Porém, como não só esta-beleceremos um diálogo entre a filosofia da existência e a Psicologia, mas também traremos à discussão a clínica psicológica e a infância, consideramos que primeiramen-te, teremos muito mais elementos a serem clarificados, para depois pensarmos na viabilidade da clínica psico-lógica existencial na primeira etapa da vida. A tarefa então, para ser executada, dependerá de seguir um per-curso até podermos dispor dos elementos necessários à problematização da proposta e a consequente discussão

1 Trabalho apresentado ao II Congresso Sul Brasileiro de Fenomeno-logia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná (2-4 de junho de 2011), Universidade Federal do Paraná (UFPR).

de sua viabilidade. Importante aqui é trazer como esses filósofos – mais especificamente Heidegger –, interpre-tam temas tais como ser-aí, indeterminação, liberdade e responsabilidade. E, ainda, de que modo eles dialogam polemicamente com as classificações diagnósticas muito próprias da modernidade.

Para a realização de nossa tarefa, primeiramente, te-remos que nos deslocar das teorias psicológicas tradi-cionais acerca do desenvolvimento da personalidade e da aprendizagem da criança, e nos reconduzirmos ao fe-nômeno da experiência infantil tal como ela se mostra. Esse modo de reconduzir-se ao fenômeno denomina-se Fenomenologia.

Para exercitarmos uma outra visada sobre a experiên-cia em questão, traremos alguns esclarecimentos sobre o modo como os filósofos da existência, por meio de um posicionamento fenomenológico, discutem e posicionam o ser da criança. Os três filósofos da existência mais dis-cutidos – Kierkegaard, Heidegger e Sartre – partem da noção de que a existência acontece desde o início pelo seu caráter de indeterminação e negatividade, daí o fato

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da liberdade, da angústia e do desespero serem consti-tutivos do existir. E, já ao nascer, a indeterminação traz em si essas outras condições. Logo, a criança – desde seu nascimento – constitui-se, respectivamente como espírito (Kierkegaard), como ser-aí (Heidegger) ou como para-si (Sartre). Ou ainda, em uma abertura, indeterminação e negatividade que estarão presentes em toda a sua existên-cia. É no decorrer de sua vida que a criança tomará para si o seu modo de ser, em sua incompletude e sempre em jogo com as determinações do mundo.

A partir da filosofia da existência, buscamos o que acontece frente à indeterminação e negatividade da exis-tência. Já que nada a princípio determina o homem, como ele se constitui? Como ele se determina? Trata-se então de uma tabula rasa? Para desenvolver essas questões, teremos que trazer à baila a discussão acerca do caráter de imanência da existência, da co-originalidade homem/mundo, de ter de ser em abertura, em que o existente torna-se responsável por constituir-se no mundo, desse ser que é responsável pela sua existência. Iniciaremos, para isto, com esclarecimentos sobre a noção de inten-cionalidade tal como introduzida e amplamente estuda-da por Husserl e de seus desdobramentos em Heidegger com a noção de ser-aí. Por fim, trataremos de que modo acontecem na facticidade, os processos de atribuição de identidade, e de como tal procedimento acaba por resul-tar, em primeiro lugar, em escapar do caráter de negati-vidade e indeterminação.

Embora o homem tenda a escapar a sua negativida-de e indeterminação, buscando uma identidade, ao mes-mo tempo tenta escapulir da identidade que o outro lhe atribui – por um clamor de sua liberdade. Esses proces-sos identificatórios acabam por alicerçar as categori-zações e os diagnósticos tão frequentes na atualidade. Diagnósticos que muitas vezes aliviam a angústia frente à indeterminação, mas retira do homem a responsabili-dade pelos seus atos e escolhas. Por fim, além do mundo passar a justificá-los, também os tutela. Essa discussão em Heidegger (1927/1989) vai dirigir-se ao modo que ele interpreta a lida com os utensílios. Dado como esta se dá por meio das determinações dos objetos, tendemos a nos compreender do mesmo modo que compreende-mos aquilo que manuseamos, logo também como se nos constituíssemos por meio de determinações e sentidos previamente dados.

Após esclarecermos as questões acerca da constitui-ção da existência, discutiremos a viabilidade de uma clí-nica psicológica existencial com crianças. Sabemos que Heidegger (1987/2001) apenas refere-se à clínica psicológi-ca nos Seminários de Zollikon. Mas, por outro lado, sabe-mos também que a tentativa de articular a Fenomenologia hermenêutica com a clínica psicológica data dos meados do século XX, com dois proeminentes psiquiatras: Ludwig Binswanger e Medard Boss, que mesmo pouco estudados (principalmente, aqui no Brasil), jamais foram esqueci-dos. A questão que se impõe consiste em perguntar sobre

o risco iminente de traduzir o pensamento filosófico em termos de mais uma disciplina. E como tal, acabar por reduzir as reflexões filosóficas em um produto palpável, intercambiável e técnico. Mas, se não é isso, o que que-remos? Como fazer para que não aconteçam essas redu-ções? Devemos manter-nos, com muito esforço, no cam-po de questionamentos da clínica psicológica e não no das certezas. Assim, mantemo-nos em um espaço em que não importa o numérico, os resultados, as informações e as teorias. Importa o deixar-se corresponder ao essencial em uma clínica infantil.

Por fim, despenderemos de todo esforço para apre-sentar os fundamentos da filosofia da existência, com um maior detalhamento das considerações heideggeria-nas, tentando não recair em uma disciplina ou em uma nova técnica que nos diga como devemos proceder para obtermos resultados efetivos e eficazes. Para tanto, ini-ciaremos apresentando aquilo o que caracteriza uma fi-losofia da existência.

A filosofia da existência consiste em não partir de pressupostos de que a constituição do homem já está apriori dada, seja pela constituição biológica, psíquica ou pelos condicionamentos ambientais. Nesses três pressu-postos, o homem, já ao nascer, apresenta-se passivo frente a estas determinações. A filosofia existencial defende o caráter de indeterminação da existência, a partir do que esta se constitui. Logo, é no existir, em sua articulação homem/mundo que a existência acontece. Este modo de articular à existência humana é expressa na máxima de Sartre (1943/1997) de que “a existência precede a essên-cia”; afirmativa esta que, mesmo criticada por Heidegger (1947/1987), não deixa de tornar clara a situação de inde-terminação da existência.

o método fenomenológico e a investigação do Ser da Criança

Heidegger (1947/1987), ao tecer considerações acer-ca do sentido da existência nos primeiros anos de vida, assume uma atitude fenomenológica para discorrer so-bre o ser-aí da criança. Para tanto, vai suspender toda e qualquer pressuposição teórica - seja da Psicologia ou da Biologia - acerca do comportamento infantil. E assim po-der deixar que o sentido do fenômeno se dê no próprio campo de mostração deste fenômeno. Husserl (1952/ 2007) vai denominar este posicionamento referente àquilo que se mostra de atitude antinatural. Esta consiste em re-duções fenomenológicas, exercício que requer um esfor-ço incessante para alcançar o fenômeno, deixando para trás todas as pressuposições sobre o mesmo. Ainda de Husserl, Heidegger manteve a tese de que a consciência não pode ser tomada a partir de uma concepção de que esta se constitui como substância e de que se encontra espacial e temporalmente determinada. Husserl confere à consciência uma imanência, logo por seu caráter de inten-

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cionalidade, encontra-se sempre ‘dirigida a’...Heidegger denomina então de Dasein (ser-aí) a este campo de ima-nência onde a existência se dá.

A Psicologia dispõe de diferentes teorias do desenvol-vimento infantil que muitas vezes servem de base para a compreensão do modo de ser da criança por meio dos critérios de normalidade e ajustamento, podendo-se assim prescrever os comportamentos inadequados, desajusta-dos, enfim fora dos padrões estabelecidos pelo numéri-co ou qualitativo. Assumir uma postura fenomenológi-ca frente ao fenômeno consiste em suspender qualquer posicionamento ontológico, seja da ciência ou do senso comum sobre as coisas, fenômenos. Sem qualquer posi-cionamento ontológico prévio acerca do comportamento das crianças, é possível assim se aproximar daquele modo que se mostra em sua expressão singular.

o Caráter de indeterminação da existência: Cuidado e liberdade

Cabe esclarecer que liberdade, na perspectiva exis-tencial, diz respeito ao fato da indeterminação da exis-tência, o que torna o homem responsável por aquilo que fizer de si. A indeterminação, a liberdade e a angústia são temas presentes nos três grandes representantes da filosofia, que se voltam para a existência, anteriormente mencionados. Kierkegaard (1842/2010) refere-se à posição psicológica de liberdade como sendo a posição que o ho-mem se apresenta frente a sua indeterminação e respec-tiva angústia. À tentativa de escapar da mobilização da angústia, Kierkegaard denomina de posição psicológica de não-liberdade, na qual o homem tenta a qualquer preço posicionar-se como se ele fosse determinado por algo que transcende seu existir. Heidegger (1927/1989) denomina essa situação de cuidado, que consiste em tomar o ser-aí como aquele que sempre tem de ser, e assim ele tem de assumir a tutela por sua existência. Sartre (1943/1997) diz que estamos fadados à liberdade. Logo, a criança, ser-aí, para-si que desde sempre é um existente, não prescinde de seu caráter de indeterminação, liberdade e responsa-bilidade por sua existência e a tentativa de fugir dessa condição é o que muitas vezes mobiliza a criança e seus pais a buscarem psicoterapia.

A liberdade e a responsabilidade na perspectiva exis-tencial dizem respeito ao caráter de indeterminação da existência e ao fato de que qualquer que seja a etapa da vida, cada um tem de cuidar de sua existência. Os fi-lósofos da existência apontam para a indeterminação como o caráter mais próprio do existir. Kierkegaard, em O conceito de angústia, esclarece a situação de indeter-minação do homem como marca da existência humana. A este respeito, diz:

O surgimento da angústia condensa o fulcro de toda a questão. O ser humano é uma síntese de corpo e

alma; esta apenas se torna inimaginável se ambos os elementos não se reunirem em um terceiro. O terceiro é o espírito. No estado de inocência, o homem não é apenas um animal e, finalmente, e se alguma vez o fosse, em qualquer instante de sua existência, nunca se tornaria homem. Assim o espírito já está presente, ainda que em um estado de imediatidade, de sonho. (Kierkegaard, 1842/2010, p. 47)

O pensador dinamarquês responde prontamente a per-gunta que ele mesmo colocou: “Qual é, portanto, a relação do homem com a potência ambígua? Qual é a relação do espírito com ele mesmo e com sua condição? A relação é a angústia.” (ibid, p. 47) Para este filósofo, aquilo que confere humanidade ao homem é a presença do espírito, síntese do eterno e do temporal, do finito e infinito, dos possíveis e do necessário, mesmo que de início esse se encontre adormecido.

Heidegger – na mesma linha de pensamento de Kierkegaard – em Ser y tiempo (1927/1989) já afirma que as estruturas existenciais não são estruturas ônticas, e nesse sentido elas podem ser encontradas em qualquer experiência de mundo do ser-aí. Isto não diz respeito apenas à caracterização do ser-aí europeu desenvolvi-do, mas tanto ao que se refere ao ser-aí infantil, como ao ser-aí dos povos primitivos; o que estará em questão é o ser-aí humano. E a base do ser-aí humano é seu cará-ter essencialmente histórico. E, por mais que Heidegger (1929/2008) afirme que as estruturas existenciais se mos-tram mais claramente no homem primitivo ou no aborí-gine, por conta da simplicidade da vida desses homens, as estruturas históricas existenciais estão presentes em seu caráter de aí em todos os homens, em todas as épo-cas, lugares ou fases de desenvolvimento de suas vidas. E é a partir deste caráter que o ser-aí conquista o poder-ser que ele é.

Sartre (2005/1939), em seu conto “A infância de um chefe”, deixa clara a sua defesa ao caráter de indetermi-nação e liberdade presentes no percurso de vida do prota-gonista do conto, Lucien Fleurier. O filósofo traz o modo como Lucien vai traçando a sua existência, do princípio ao fim. O marcante nesse trajeto é que sempre ele tem de escolher frente àquilo que o mundo lhe apresentava, mostrando que a determinação está ausente. A tarefa de Lucien consiste em determinar-se por si mesmo por meio das referências da sua situação.

Agora vale ressaltar como acontece esse constituir-se, já que a criança ao nascer já se constitui na relação com o mundo. Cabe perguntar como isto é possível, se a criança nada sabe, nada conhece. Não haveria uma determina-ção biológica, que a levaria a sobreviver, conduzindo-a a alimentar-se? Ou ela não sobreviria caso não tivesse a presença de outros homens? Estas questões foram ampla-mente debatidas na década de 50 e 60, quando o menino Victor, abandonado em uma selva, nos primeiros anos de vida, foi encontrado em Eveyron, na França. A partir de

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então, todos os posicionamentos teóricos - sejam inatistas ou empiristas - tentaram comprovar suas teses, por meio daquilo que no comportamento de Victor evidenciaria e comprovaria as premissas das teorias racionalista e em-pirista. A primeira que os fundamentos do humano são inatos e a segunda que são aprendidos.

As filosofias da existência surgem em uma tentati-va de se deslocar das discussões epistemológicas, que se interessam pela origem, pelas determinações iniciais. Kierkegaard em La enfermidad mortal (1849/2008, p. 33), ao tratar da constituição do eu, refere-se ao desespero:

O homem é espírito, mas o que é o espírito? O espírito é o eu. Mas o que é o eu? O eu é uma relação que se rela-ciona consigo mesmo. Dito de outra maneira: é o que na relação faz com que a relação se relacione consigo mes-ma. O eu não é a relação, mas o fato de que a relação se relaciona consigo mesma. O homem é uma síntese de in-finitude e finitude, de temporal e de eterno, de liberdade e necessidade, em uma palavra, é uma síntese.2

Kierkegaard nesse trecho deixa claro que é na relação que a existência se constitui, daí o fato da liberdade e da responsabilidade que cada um carrega com relação a sua existência. A relevância e importância dada ao existir em detrimento a qualquer posicionamento apriorístico sobre a constituição do homem são, marcadamente, explicita-das por Kierkegaard, a quem devemos a retomada do as-pecto sensível da existência humana, a que denominou com estádio estético, também marcante da experiência infantil.; tanto que no seu texto A rotação dos cultivos, que conta da obra O lo uno o lo otro (1842/2006), referin-do-se a tal experiência, recomenda – do lugar do conse-lheiro esteta – que quem procura uma babá nunca deve contratá-la pelas suas características éticas. Explica-se: a moça vai ser muito fiel aos horários e ao cumprimen-to do estabelecido, porém vai entediar a criança. A boa babá, diz através do pseudônimo esteta, é aquela que, en-tregue ao caráter sensível da brincadeira, sabe distrair a criança, de modo que, quando esta se encontrar tomada pelo tédio na intranquilidade que lhe é própria, possa distrair-se com as brincadeiras da babá e, assim, rapida-mente possa se afastar do entediar-se próprio à repetição do existir. Essa situação de fuga do tédio e da repetição vai estar presente, segundo o filósofo dinamarquês du-rante todas as etapas da existência humana.

As considerações de Kierkegaard sobre a existência, embora pautadas em observações atentas e ricas em de-talhes, davam-se por meio de um gesto fenomenológico, ou seja, não considerando as teorias e os sistemas que tentavam, já em sua época, elaborar sistematicamente o acontecimento da vida. Kierkegaard tentava acompanhar as experiências e descrevê-las a partir do modo como ele as apreendia. Dizia que o caráter universal das experiên-cias humanas poderia ser encontrado em suas expressões singulares (1959/1966).

2 Tradução livre da autora.

Porém foi Husserl que trouxe o como poderíamos utilizar um modo de alcançar o fenômeno em sua mo-bilidade estrutural, na existência mesma. Dois aspectos desenvolvidos por Husserl em sua Fenomenologia foram fundamentais para o desenrolar das filosofias da exis-tência – assim denominadas por retomarem o aspecto fáctico da existência humana. São eles: a noção de inten-cionalidade e a atitude antinatural. E é a partir dessas duas concepções que tanto Heidegger quanto Sartre vão proceder as suas ontologias.

Para Heidegger, pensar no ser-aí das crianças requer, primeiramente, esclarecer de que modo se dá este ente em seu primeiro momento de vida. Em uma interpreta-ção existencial, partimos da noção de que, desde o iní-cio, a criança, ser-aí, é um ente que tem o caráter de in-determinado, exposto, jogado, lançado para fora dele. Ao tomar a existência como se constituindo pela indetermi-nação, deslocamo-nos de qualquer tentativa de posicio-nar o homem a partir de determinações biológicas ou so-ciais para aproximarmo-nos assim da existência mesma. Com isto, a ênfase acontece na intencionalidade, espaço onde a existência acontece. Logo, já que a existência se constitui nesse espaço, a que Husserl denominou inten-cionalidade, nada aprioristicamente pode ser considera-do como constituindo o homem que não seja ele mesmo na esfera do existir.

a desconstrução das teorias identificatórias

Para referir-se ao modo identificatório em que o ho-mem moderno tenta se posicionar, Kierkegaard utiliza-se da denominação de estádio, estádio em que a existência é tomada de acordo com um processo normativo. Heidegger, em Ser y tiempo, diz que, no início e na maioria das vezes, o ser-aí se toma como coisa e assim se compreende. Isso acontece porque se considera do mesmo modo em que se dá a sua lida com os objetos a sua volta, na ocupação. Ao tomar-se com um ente presente à vista, logo com de-terminações e identificações dadas em si mesmo, acaba por esquecer seu caráter de poder-ser e acredita que, do mesmo modo que os objetos, ele possui características e funções previamente determinadas. No entanto, o ser-aí não se deixa aprisionar, apresentando sempre duas possi-bilidades – a de clarificação e a de obscurecimento de seu ser. E Sartre (1943/1997) refere-se ao modo como o homem busca uma identidade e ao mesmo tempo a considera o seu inferno, já que é o fato do olhar do outro que o torna um em-si. Esse filósofo relata com riqueza de detalhes o percurso de Lucien Fleurier em sua existência, no conto A infância de um chefe (1939/2005). Lucien, logo de iní-cio, ao confundirem-no com uma menina, questiona-se: “Serei uma menina ou um menino?”. Este, entre outros trechos, deixa claro como a criança se define a partir do mundo. No final, já homem, Lucien diz precisar de um bigode para parecer um chefe. E pelo caráter do indeter-

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minado da existência e a tentativa de sair da situação da indeterminação é que as categorizações se enraizam em todas as especialidades, sejam médicas ou psicológicas. É preciso cuidado para não nos deixarmos conduzir por tais rótulos, que obscurecem a visada daquilo que se mostra. Aliás, a clínica existencial vai logo de início retirar de seu campo de visão todos os rótulos, diagnósticos e categori-zações que provêm tanto das disciplinas científicas como do senso comum, numa postura frente ao fenômeno que Husserl denominou de atitude antinatural.

Em síntese, a clínica psicológica infantil com funda-mentos existenciais requer primeiramente uma postura fenomenológica, suspendendo todos os posicionamen-tos teóricos – seja da psicologia do desenvolvimento, da personalidade, da aprendizagem ou qualquer outro. Em segundo lugar, cabe dizer que liberdade e responsabi-lidade na perspectiva existencial dizem respeito ao ca-ráter de indeterminação da existência e ao fato de que, qualquer que seja a etapa da vida, cada um tem de cui-dar de sua existência. Tomar a existência como se cons-tituindo pela indeterminação, consiste em deslocar-se de qualquer tentativa de posicionar o homem, no caso, a criança, a partir de determinações biológicas ou sociais. E, por fim, para pensar em uma clínica fenomenológico-existencial infantil, é preciso partir da ideia de que desde o início a criança é este ente que, por se constituir pela indeterminação, exposto, jogado, lançado para fora dele, livre de determinações, é marcada pelo caráter de poder ser e ter de ser.

a Clínica psicológica com Crianças

Como anteriormente explicado, a atitude fenomenoló-gica consiste em abandonar todas as teorias e técnicas em Psicologia, que determinam caminhos e procedimentos. Duas situações deixam evidente a importância de assu-mirmos tal postura. A primeira situação consiste em ver a criança a partir dos diagnósticos previamente dados. Aproximar-se fenomenologicamente da situação consiste em reconduzir aquilo que é apresentado, de forma a não se deixar conduzir pelo que previamente já foi posiciona-do. A segunda seria partir do princípio de que a criança não pode jamais assumir a responsabilidade pelas suas ações e situações. Já a postura antinatural, na clínica, consistiria em acompanhar a criança, porém, deixando que ela mesma tutele as suas decisões e escolhas.

Assim, a primeira situação consiste quando a criança chega ao consultório, portando todos os rótulos e deter-minações de seus problemas que, normalmente, a esco-la e os pais, dentre outros, já atribuíram, como diagnós-tico e as interpretações do que vem acontecendo. Com esta configuração previamente determinada, o fenômeno propriamente dito desaparece, dando lugar a uma con-figuração do real previamente dada, com determinações também já dadas. Uma atitude fenomenológica na clínica

consistirá em suspender qualquer interpretação acerca do que está acontecendo com a criança trazida ao con-sultório. Assim, poder-se-á acompanhar o fenômeno no seu modo de revelar-se, ou seja, na sua própria mobili-dade estrutural.

Em uma atitude natural, acredita-se que a criança deva ficar sempre na tutela do adulto, e que a este com-pete toda a responsabilidade pelas escolhas da criança. Desta forma, nós estamos correspondendo ao horizonte histórico em que nos encontramos, o qual interpreta o primeiro momento de vida como uma situação natural-mente frágil, não cabendo à criança nenhum compromis-so com sua existência, desonerando-a de sua responsa-bilidade, transferida aos pais ou aos adultos próximos a ela. Os adultos, de um modo geral, também neste mes-mo horizonte, tendem a assumir a tutela, sem nem mes-mo refletirem acerca do modo como se relacionam com a criança. E ainda, temendo que a criança fique sozinha, tentam, a qualquer preço, distraí-la, por variados e dife-rentes modos. E por não conseguirem sustentar a criança no seu silêncio, acabam assumindo para si mesmos todo o cuidado e tutela, deixando assim que a criança acabe por acreditar que não cabe a ela mesma a responsabili-dade por sua existência. E o medo da solidão e a não res-ponsabilidade por sua existência acaba acompanhando-a não só na primeira etapa da vida, mas em todas as suas etapas. É isso que Kierkegaard vai considerar as sequelas da existência e Sartre vai denominar de má-fé.

Adotar uma atitude fenomenológica na clínica psico-lógica implica em não fazer ou pensar o que naturalmen-te se faz ou se pensa. Junto à criança, o profissional não assumirá no lugar dela o seu cuidado, ou seja, a respon-sabilidade pelo seu existir. E assim, desprovido de um modo de pensar como naturalmente se pensa, o psicó-logo pode questionar o que naturalmente se toma como verdade pronta e acabada. Nisso consiste o seu ofício. E, ao assumir um posicionamento fenomenológico, o clíni-co estará sempre presente e, ao mesmo tempo, deixando parecer à criança que ele está ausente. Desta forma, per-mite que a criança, entregue a si mesma, o mais demora-damente possível, possa ter uma experiência de perma-necer consigo mesma e, assim, desvele-se no seu caráter de ter de cuidar de si e poder-ser. A postura antinatural consiste em poder dar um passo atrás, deixando a criança, no momento clínico, na tutela por si mesma. Ao recuar, pode-se acompanhar as determinações oriundas do seu comportamento, a partir da sua própria tutela. Heidegger (1927/1989) denomina esse modo de acompanhar o outro de preocupação por anteposição ou libertadora.

Para esclarecer o que foi dito até aqui e exemplificar a postura fenomenológica em uma situação de atendimento clínico infantil, apresentaremos fragmentos de um caso clínico. Neste caso, a atenção volta-se para a criança em seu modo próprio de comportar-se, deixando-a que ela se mostre por si mesma. E, ao mesmo tempo, confiar no caráter de indeterminação do seu ser que lhe confere a

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libertação de todos os diagnósticos estabelecidos, seja pela Psiquiatria, pela Psicologia ou pelo senso comum. E nisso consistem a liberdade e responsabilidade desta criança. Mantê-la em liberdade, entregando-a a sua pró-pria tutela, ou seja, à sua responsabilidade, é a própria relação psicoterápica. Deixá-la caminhar por si mesma, sem tentar desonerá-la desta tarefa de diferentes modos, é o caminho no qual a criança perde a tutela do adulto, mas pode ganhar a si mesma, ao assumir o seu cuidado por si próprio, a sua tutela. O adulto, ao mesmo tempo, sem preocupar-se ao modo substitutivo, tem sob os olhos o que está acontecendo.

No caso apresentado a seguir, os dados foram trocados a fim de garantir o sigilo da criança atendida. Antônio tinha sete anos quando sua mãe procurou acompanha-mento psicológico para ele. A primeira entrevista foi com ambos os pais por ser importante que os dois trouxessem a questão de Antônio e o modo como vinham lidando com aquilo que se apresentava. Além disto, os dois deveriam estar de acordo com o acompanhamento psicológico, com-prometendo-se a comparecer quando solicitados.

Os pais de Antonio procuram psicoterapia, por in-dicação de um psiquiatra, preocupados com o fato de a criança estar “pegando coisas dos outros”. O médico dissera que se tratava de uma cleptomania. A mãe co-locara em dúvida o diagnóstico médico, acrescentando que Antônio só queria chamar a atenção dos pais. Tenta, assim, justificar o comportamento do filho usando uma determinação psíquica. Ela mostra-se bastante aflita com a situação e inicia: “Antônio vem pegando coisas dos ou-tros. (chora). Isto me preocupa muito, porém acho que ele está querendo chamar a atenção, estamos precisando fi-car mais próximos dele, sempre muito preocupados com o trabalho e outras coisas e acho que Antônio vai ficando meio esquecido. Por isso, vim aqui te pedir ajuda, todos nós precisamos ser ajudados, as coisas andam meio confusas.” Ao dizer que o menino só queria chamar a atenção dos pais, retira-lhe a responsabilidade de seu ato e coloca-o na tutela do psíquico. O pai também dá uma interpreta-ção a partir de sua experiência e em uma atmosfera afe-tiva de irritabilidade com a situação: “Eu só quero saber porque Antônio está me agredindo. João (o irmão) é total-mente diferente, um garoto exemplar, faz tudo como deve ser feito (...) Eu digo sempre para Antônio: ‘João, o irmão, é um exemplo a ser seguido’. Agora, se ele insistir em me provocar, se não mudar, se continuar a ter atos ilícitos, eu não vou mais querer saber dele. Se continuar me agredin-do, eu vou esquecer que ele existe.” O pai deixa claro que, caso o menino não modifique a situação, ele suspenderá a sua tutela, pois não aceita um ato ilícito.

Apenas com esse breve trecho, podemos refletir sobre como se dá uma atitude fenomenológica frente à questão apresentada pelo médico e pelos pais. O médico, em uma “atitude natural”, tende a classificar o comportamento da criança pelas características que constam nos manuais de Psicopatologia e conclui, a partir dos sintomas, que se

trata de uma cleptomania. Assim os comportamentos do menino se transformam em sintomas. E o conjunto des-ses sintomas são o suficiente para deduzir que se trata de uma compulsão. A criança e seus comportamentos de-saparecem, dando lugar a uma categoria de diagnóstico, que fala por si mesmo.

Outra atitude natural foi assumida pela mãe, ao in-terpretar a ação da criança como uma tentativa de cha-mar a atenção. Aqui não é mais a voz da ciência que dá o veredicto, mas a do senso comum. Deste modo, o furto teria sido motivado por algo que se encontrava por trás do ato, no caso, “chamar a atenção”. Segundo esta visão, não caberia mais a Antônio o compromisso com sua ação, estava totalmente justificado. Já o pai caracteriza a situ-ação como ilícita. Assim, uma vez identificado por uma classificação psiquiátrica, pelo senso comum ou pela con-travenção, não era mais Antônio que pegava as coisas dos outros e sim aquilo com que o passaram a identificar.

A postura fenomenológica implica em deslocar-se das interpretações comumente atribuídas, assumindo uma atitude antinatural com relação à questão que se apre-senta, ou seja, tomando o modo de ser da criança em sua expressão singular. Na postura antinatural, o psicólogo clínico suspende o “diagnóstico” dado pela mãe e pelo médico. Ao voltar-se para o fenômeno em sua mobilidade estrutural, importa o sentido que Antônio dá a sua expe-riência. A visada sobre o fenômeno que se apresenta não se dá a partir de nenhum pressuposto em tese acerca do que possa ser uma “compulsão a furtar coisas” e a aten-ção clínica volta-se para a criança em seu modo próprio de comportar-se. Permite-se que a criança se mostre por si mesma, deixando–a livre para si mesma, para assim poder assumir a sua liberdade e responsabilidade.

Em uma clínica fenomenológica, a criança será rece-bida a partir daquilo que vai acontecer na relação, neste momento estabelecida. Para tanto, vai-se suspender todo e qualquer pressuposto que anteriormente se fez presen-te, inclusive no relato dos pais. Para exemplificar este modo de proceder clinicamente, apresentaremos um tre-cho desse atendimento:

Antônio: Eu queria contar um problema. Pedro vai ter a festa de aniversário dele, só que vai ser na casa dele. Eu não tenho vontade de ir, sabe? Eu não quero ir à festa, tem muita gente que rouba e também tem um pequeno probleminha: acusam a pessoa de uma coisa que ela não fez. Alex rouba as coisas dos outros. Eu desconfio também da Flávia, ela também pega as coisas dos outros. Mas não é só isso não, tem outro problema: meu pai vai sair com João, e eu também quero ficar com meu pai, sair com os dois. Psicóloga: Então você tem dois motivos para não querer ir à festa.

Antônio: Tem outro, tenho medo de não controlar.Psicóloga: Tem medo de não controlar o quê? Antônio: A vontade. (silêncio)Psicóloga: Vontade de que, Antônio?Antônio: De pegar as coisas dos outros. Eu não quero

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pegar, mas eu olho a coisa e me dá muita vontade, vontade mesmo. Também tenho medo que Flávia coloque coisas na minha bolsa e depois me culpe. Ela já fez isso, guardou no meu estojo o lápis de Bruna. Bruna sentiu a falta do lápis, aí eu coloquei o lápis na mesa de Bruna, só que ela me viu colocando o lápis e eu me defendi, disse que tinha sido a Flávia que tinha colocado no meu estojo, só que ninguém acreditou, ficou todo mundo olhando para mim.

Antônio fica calado, parecendo triste, abaixa a ca-beça, põe a mão no rosto, parecia estar chorando. Repentinamente, levantou a cabeça e fitou-me por um longo tempo). Na tentativa de mobilizá-lo e tentar com-preender o que estava acontecendo, falei:

Psicóloga: Parece que essa situação te deixa muito triste.

Antônio: E vou ficar muito sozinho.Psicóloga: E como é ficar sozinho para você?Antonio: (permanece em silêncio) Não ter ninguém

por perto, nunca vivi isto, tenho medo, ficar sozinho no recreio.

Assumindo uma atitude fenomenológica, a psicóloga não interveio, nem se colocou como alguém que, desde o início, já sabia qual era o problema. Caso partisse de diagnósticos ou de teorias acerca do “problema”, criaria obstáculos à apresentação do fenômeno. Na situação de Antônio seria, por exemplo, destinar-lhe uma identidade de cleptomaníaco e insistir para que ele falasse no tema, buscando rapidamente o que determinava esse compor-tamento. Assim, entregue a si mesmo, pode ver as conse-quências do modo como vinha se comportando, só a ele cabendo a decisão do que iria ou não fazer.

Partir do diagnóstico que lhe havia sido previamen-te conferido, seria dar-lhe uma identidade que, além de retirar-lhe o seu caráter de poder ser, também o desone-raria de sua escolha. Assim, todo o seu modo de ser seria justificado por tal identidade, não cabendo a ele a sua tu-tela. Retirar o caráter de poder ser de sua existência, por um procedimento identitário, constitui-se em um cami-nho de acesso fácil, porém pode acabar por sedimentar um determinado modo de ser. Esse processo é discutido com muita pertinência em Sartre (2001) ao referir-se a todo percurso do personagem Lucien Fleurier até tornar-se um chefe, tal como já havia sido decidido pelos seus pais, muito antes dele nascer.

A atenção fenomenológica consiste em abandonar toda e qualquer identidade estabelecida para a criança, seja com relação a um diagnóstico, expectativa familiar ou social, entre outros modos. Em uma postura fenome-nológica, cabe então ao psicólogo deixar a criança em li-berdade e entregá-la a sua própria tutela, ou seja, à sua responsabilidade. Trata-se, sem dúvida, de uma tarefa de-licada. No entanto, deixá-la caminhar por si mesma sem tentar desonerá-la desta tarefa, de diferentes modos, pa-

rece ser o caminho pelo qual a criança perde a tutela do adulto, mas ganha a si mesma. Deixá-la sozinha, consi-go mesma, nesta abordagem, é uma arte que consiste em estar sempre presente, sem mostrar a criança que se está ali. E assim permitir que a criança por si própria possa aproximar-se, entregue a si mesma o mais demoradamen-te possível, de uma experiência de si mesma.

Considerações finais

Com o desenvolvimento da temática acerca da clíni-ca psicológica em uma perspectiva existencial, pudemos afiançar que a filosofia da existência traz aspectos for-mais que criam um espaço de articulação de uma práxis clínica por diferentes motivos. O primeiro deles é que as filosofias da existência retomam o que as filosofias mo-dernas haviam abandonado, ou seja, a existência mes-ma tal como acontece em seu campo de imanência. Esse projeto de voltar-se à imanência foi ineditamente apre-sentado por Husserl. Esse filósofo deslocou-se da noção de consciência como algo encapsulado, que se encontra localizado em uma interioridade e com sentidos e deter-minações dados em si mesmo, tomando, então a consci-ência como algo que acontece em um espaço relacional, logo imanente. Ele refere-se então à intencionalidade, que passou a ser o elemento fundamental, mesmo que com di-ferentes acepções das filosofias da existência. Heidegger e Sartre deram continuidade ao projeto de retomada da existência, cada um a seu modo, mas preocupados com a facticidade onde o existir acontece. Esse mesmo movi-mento foi acompanhado pela Psicologia que, primeira-mente, seguindo o projeto moderno, tomou o psíquico em todas as suas denominações como algo da ordem de uma interioridade que se relaciona com o exterior. Ao surgir uma Psicologia Fenomenológica, a pretensão também é de pensar o psíquico como algo imanente, co-originário ao mundo e, portanto, não passível de ser determinado, nem localizado em uma interioridade.

Pensar a Psicologia a partir das filosofias da existên-cia consiste em assumir o caráter de indeterminação que não pressupõe mais uma essência, seja ela qual for, que precede a existência. Consiste, ainda, em aceitar a árdua tarefa de não ter como prever, nem garantir nenhum re-sultado, dado o caráter de abertura e consequente liber-dade em que a existência sempre se encontra.

Articular uma proposta de clínica infantil com base na filosofia existencial torna-se possível ao tomar a crian-ça na mesma perspectiva em que se toma o adulto. Trata-se de pensar a existência em sua imanência, qualquer que seja a etapa de vida em que nos encontramos. Logo, importa é que, aquele que tenta evitar a sua condição de liberdade, abertura e indeterminação, possa assumir-se como um ser de possibilidades, logo, em liberdade para dizer sim e não às determinações inseridas no horizonte histórico em que se encontra.

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Ana Maria lopez Calvo de Feijoo - Doutora em Psicologia, Professor-Adjunto da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereço Institucional: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia. Rua São Francisco Xavier, 524 (Maracanã). CEP 20550.013. Rio de Janeiro/RJ. E-mail: [email protected]

Recebido em 15.03.11Aceito em 22.09.11

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A (Pouco Conhecida) Contribuição de Brentano para as Psicoterapias Humanistas

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a (pouCo ConHeCida) ContRiBuição de BRentano paRa aS pSiCoteRapiaS HumaniStaS1

The (Little Known) Contribution of Brentano for Humanistic Psychotherapies

La (Poco Sabida) Contribución de Brentano para las Psicoterapias Humanistas

georges daniel janja BloC Boris

Resumo: Este texto se propõe a discutir, entre aqueles vinculados à fenomenologia, o estranho fato de que, ao contrário do que ocorre em relação a Husserl, Heidegger, Sartre ou Merleau-Ponty, poucos parecem reconhecer a importante contribuição de Franz Brentano para as psicoterapias humanistas. Embora não fosse psicólogo, Brentano se dedicou à Psicologia e, como precursor da fenomenologia, foi um desbravador de questões fundamentais que, atualmente, perpassam as bases epistemológicas e filosóficas das abordagens fenomenológicas e humanistas em psicoterapia. Assim, o texto aborda sua teoria da intencionalidade, a Psicolo-gia do Ato e a Filosofia do Presente como contribuições significativas à prática das psicoterapias humanistas. Palavras-chave: Fenomenologia; Brentano; Psicoterapias humanistas; Psicologia.

Abstract: This text is proposed to discuss, between those who are linked to phenomenology, the strange fact of that, in contrast of what happens to Husserl, Heidegger, Sartre or Merleau-Ponty, few of them seem to recognize the important contribution of Franz Brentano for humanistic psychotherapies. Although he was not a psychologist, Brentano was dedicated to psychology and, as a precursor of phenomenology, he was a pioneer of fundamental questions that, currently, cross the epistemological and philosophical bases of phenomenological and humanistic approaches in psychotherapy. Thus, the text discusses his theory of intentionality, the Act-Psychology and the Philosophy of the Present as meaningful contributions to the practice of humanis-tic psychotherapies. Keywords: Phenomenology; Brentano; Humanistic psychotherapies; Psychology.

Resumen: Este texto se propone a discutir, entre los que se vinculan à la fenomenología, el hecho extraño de que, al contrario de lo que sucede en relación a Husserl, Heidegger, Sartre y Merleau-Ponty, pocos parecen reconocer la contribución importan-te de Franz Brentano para las psicoterapias humanistas. Aunque él no era psicólogo, Brentano estuvo dedicado a la psicología y, como precursor de la fenomenología, era un pionero de cuestiones fundamentales que, actualmente, cruzan las bases epis-temológicas y filosóficas de los enfoques fenomenológicos y humanistas en la psicoterapia. Así, el texto discute su teoría de la intencionalidad, la Psicología del Acto y la Filosofía del Presente como contribuciones significativas a la práctica de las psico-terapias humanistas. Palabras-clave: Fenomenología; Brentano; Psicoterapias humanistas; Psicología.

Os objetivos dos esforços que acabamos de descrever não são nem os últimos, nem os supremos objetivos de uma elucidação fenomenológica do conhecimen-to em geral. Por mais extensas que sejam as nossas análises, o domínio extraordinariamente frutífero do pensar e do conhecer mediatos permaneceu quase completamente não elaborado; a essência da evidên-cia mediata e de seus correlatos ideais continua sem uma elucidação suficiente. Ainda assim, acreditamos que as nossas pretensões não foram insignificantes, e esperamos ter desnudado os mais básicos e, por sua própria natureza, primeiros fundamentos da crítica do conhecimento. É preciso fazer uso, também na crítica do conhecimento, daquela modéstia que pertence à

1 Trabalho apresentado ao II Congresso Sul Brasileiro de Fenomeno-logia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, de 2 a 4 de junho de 2011, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba.

essência de toda investigação científica. (...) As aná-lises que seguem mostrarão que mesmo um trabalho epistemológico tão modesto terá que superar ainda uma enorme quantidade de dificuldades, ou melhor, terá ainda quase tudo a fazer.

Husserl, em Investigações Lógicas (1900-1901/1980)

introdução

Franz Clemens Honoratus Hermann Brentano era alemão e lecionou em Würzburg e na Universidade de Viena. Em 1864, foi ordenado padre, mas questionou a doutrina da infalibilidade papal, abandonando a Igreja em 1873. Sua Filosofia era nitidamente empírica em seu método. Os trabalhos mais importantes de Brentano estão voltados ao campo da Psicologia, por ele definida como ciência dos fenômenos psíquicos ou da consciência. Os

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objetos de seus estudos não foram, porém, os estados, mas os atos e processos psíquicos. Segundo ele, o fenô-meno psíquico se distingue dos demais por se referirem sempre a um objeto, bem como a um conteúdo de cons-ciência, por meio de mecanismos puramente mentais. À Psicologia, caberia, então, investigar os diversos modos pelos quais a consciência institui suas relações com os objetos nela existentes, descrevendo a natureza de sua relação, bem como o modo de existência de tais objetos. Seu trabalho mais importante publicado em vida foi A Psicologia Segundo o Ponto de Vista Empírico, de 1874. Foi o mestre de Edmund Husserl, sendo um dos precur-sores da fenomenologia. Ele é mais conhecido por rein-troduzir o conceito escolástico da intencionalidade na Filosofia e proclamá-la como a marca característica dos fenômenos psíquicos. Seus ensinamentos, especialmen-te sua Psicologia descritiva, influenciaram o movimento fenomenológico no século XX. O significado das contri-buições de Brentano para a Filosofia e a Psicologia con-temporâneas é ainda estranhamente subestimado. A fe-nomenologia seria inconcebível sem ele. Ele foi o mestre de Husserl, influenciando, também, Scheler e Heidegger. Seu método tem uma notável semelhança, em muitos as-pectos, com os procedimentos do empirismo dos dias de hoje (Crisholm & Simons, 1998).

1. a teoria da intencionalidade

A primeira preocupação de Brentano no campo da Psicologia era encontrar uma característica que separas-se os fenômenos psicológicos dos físicos. Foi a partir de tal tentativa que ele desenvolveu sua doutrina célebre da intencionalidade como componente determinante dos fe-nômenos psicológicos. O termo “intencionalidade” é de crucial importância: todo fenômeno psíquico é carac-terizado por aquilo que os escolásticos da Idade Média chamavam de in-existência (ou existência em, dentro de) intencional de um objeto na consciência, ou o que pode-ríamos chamar de referência (Beziehung) a um conteú-do, ou, ainda, de direcionamento (Richtung) a um objeto. Aqui, “in-existência intencional” significa, literalmente, a existência de uma ‘intentio’ dentro do que pretende ser, como se encaixado nele. Ou seja, referência a um objeto é, portanto, a característica decisiva e indispensável do psíquico: na representação (Vorstellung), algo é represen-tado; no julgamento, algo é confirmado ou rejeitado; no desejo, desejamos algo ou alguém etc. Tal “in-existência intencional” é peculiar somente aos fenômenos psíqui-cos. Os fenômenos físicos não apresentam nada parecido, sendo caracterizados, por outro lado, como a falta de tal referência. Portanto, podemos definir os fenômenos psí-quicos como aqueles que contêm objetos em si mesmos. Também deve ficar claro que os fenômenos psicológicos de Brentano são sempre atos ou processos, pois envolvem as experiências dos sujeitos, bem como seus estados de

consciência, o que, então, viria a se tornar um dos pa-drões básicos para toda análise fenomenológica a partir da Psicologia do Ato de Brentano (Spiegelberg, 1963). O conceito de intencionalidade é, na verdade, um problema entre Brentano e a fenomenologia. De fato, ele, posterior-mente, desistiu do termo “intencional” porque acreditava que a sua opinião tinha sido mal interpretada. Portanto, Brentano não usa a expressão “intencionalidade”, mas “in-existência intencional” para distinguir os fenômenos psíquicos dos fenômenos físicos. A cor vermelha é um fe-nômeno físico, mas, ao se relacionar com a consciência, torna-se um fenômeno psíquico (Münch, 1997).

2. a Psicologia do Ato de Brentano

Brentano criou um sistema filosófico que era uma sín-tese do aristotelismo, do cartesianismo e do empirismo inglês. Este sistema foi modificado de diferentes formas, muitas vezes altamente originais, por seus discípulos, entre os quais, um dos mais importantes foi Edmund Husserl. Em contraposição a Hegel e seus companheiros idealistas, a Escola de Brentano foi muito bem sucedida em associar a sua obra filosófica aos modernos desenvol-vimentos no campo das ciências, sobretudo na Psicologia e na Lingüística. Os alunos de Brentano foram respon-sáveis pela fundação não apenas de novos movimentos filosóficos, como a fenomenologia, mas, também, novas perspectivas de investigação científica, tais como as teo-rias da Gestalt (Smith & Burkhardt, 1991). Como filósofo, Brentano discordou das teses do empirismo clássico, do racionalismo e do criticismo kantiano; como psicólogo, rejeitou a tese associacionista do conteúdo da consciência como algo permanentemente real, assim como as idéias de Wundt sobre a consciência como um epifenômeno, reduzido aos seus aspectos fisiológicos. Neste sentido, Brentano denominou sua perspectiva de Psicologia do Ato, argumentando que os fenômenos psíquicos consti-tuem atividades, não conteúdos. Seu método era empíri-co, mas não experimental, como propunha o empirismo clássico inglês. Afirmava que a Psicologia, à semelhan-ça das ciências da natureza, devia partir da percepção e da experiência, sendo a percepção interna seu princi-pal recurso metodológico. As idéias de Brentano exerce-ram forte influência nas Filosofias fenomenológicas de Husserl, de Scheler e de Heidegger. Embora questionas-se os determinismos biológico e psicológico, não retor-nou à Psicologia como estudo da alma nem à Filosofia especulativa. Negava a possibilidade de levar o psiquis-mo ao laboratório, mas propunha que ele fosse abordado de forma empírica, não experimental, abandonando a introspecção como método, já que ela implicava em ob-servação interna, pois aos fenômenos psíquicos cabia a percepção interna. Tal proposta está claramente descri-ta em seu livro A Psicologia do Ponto de Vista Empírico (Brentano, 1874/1973):

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al como as ciências da natureza, a Psicologia repousa sobre a percepção e a experiência. Mas seu recurso essencial é a percepção interna de nossos próprios fenômenos psíquicos, consistindo em uma represen-tação, um julgamento. O que é prazer e dor, desejo e aversão, esperança e inquietação, coragem e desen-corajamento, decisão e intenção voluntária, nunca o saberíamos se a percepção interna de nossos próprios fenômenos não nos lho ensinasse (p. 29).

Brentano considerava a consciência um substrato sin-tético de representações, sensações, imagens, lembranças e esperanças, denominando-as todas de vivências de fe-nômenos psíquicos, e, portanto, intencionados. São atos mentais que se referem a objetos exteriores. A intenciona-lidade constitui a propriedade essencial da vida conscien-te, indicando uma direção ou tensão da consciência para o objeto. A consciência, na Psicologia do Ato de Brentano, difere da consciência cartesiana, que se desdobra sobre si mesma, enquanto, para Brentano, ela tende sempre a algo no mundo; assim, denominava-a de consciência in-tencional. A intencionalidade, como a principal caracte-rística da consciência, modifica a noção de experiência como estrutura e conteúdo. A consciência intencional constitui uma atividade na qual os fatos físicos diferem dos fatos psicológicos, denominados de fenômenos por Brentano. Os fenômenos psíquicos constituem experiên-cias intencionais, ocorrendo como representações, juízos e fenômenos emocionais. Assim, as idéias de Brentano deram início a uma Psicologia que busca as propriedades da consciência por meio da experiência interna. A partir da sistematização de sua teoria, surgiram a Psicologia da Gestalt, a perspectiva lewiniana e a Psicologia fenomeno-lógica, ou seja, toda a Psicologia cuja ênfase recai sobre a consciência e sua característica fundamental: a inten-cionalidade (Feijoo, 1999).

Em 1874, ao mesmo tempo em que publicava A Psicologia do Ponto de Vista Empírico, Brentano foi de-signado professor na Universidade de Viena. Lá, perma-neceu até 1895. Gozava de grande popularidade entre os estudantes, entre os quais estavam Sigmund Freud e o filósofo Edmund Husserl. Freud assistiu suas aulas por pelo menos dois anos, exatamente na época em que Brentano publicou seu famoso livro de 1874, no qual seu equacionamento entre o físico e o psíquico, o psi-cossomático, é mais salientado. O que Freud retirou de Schopenhauer foi, provavelmente, através de Brentano (Cobra, 2001). Em 1884, Husserl, matemático de forma-ção, despertou seu interesse pela Filosofia sob a influ-ência decisiva de Brentano, seu mestre, influência con-firmada por Husserl, num texto de 1932: “sem Brentano eu não teria escrito uma única linha de Filosofia” (con-forme citado por Maciel, 2003, p. 28). Brentano se opu-nha à Psicologia experimental, objetiva e mensurante de Wundt. Distinguia a Psicologia da Filosofia, propondo uma Psicologia empírica, tanto subjetiva quanto objetiva

e, portanto, rigorosa (Penha, 1985). Brentano recomen-dou a Husserl que participasse, em 1886, dos cursos, em Halle, do filósofo e psicólogo Stumpf, seu aluno e cola-borador direto, onde Husserl se interessou pela percep-ção e pela imaginação, analisando criticamente os fun-damentos introspectivos e experimentais da Psicologia (Depraz, 2007). Ao publicar sua primeira obra, Filosofia da Aritmética, em 1891, Husserl deduziu que teria que retornar à tese de Brentano de que toda representação objetiva está fundamentada numa representação psíqui-ca pré-mental (Capalbo, 2001).

3. Brentano: uma Filosofia do Presente nas psicote-rapias Humanistas

Poucos sabem, mas a Filosofia do Presente, que afirma que os fenômenos ocorrem aqui e agora e que o presente é a única experiência possível (Boris, 1994), nasceu de Brentano, senão exclusivamente, pelo menos numa parte decisiva. Neste sentido, para Ramón (2006),

(...) os postulados da Psicologia brentaniana não estão menos presentes na Psicologia da Gestalt, de forma geral, e, de forma muito mais nítida, na chamada Gestalterapia. Essa influência explica-se pelo fato de Stumpf (1884-1936) ter sido aluno e colaborador de Brentano (p. 341).

acrescentando que

(...) o método de centrar-se na descrição imediata dos fenômenos das experiências vividas, preconizado pela Fenomenologia e que teve muita influência sobre os teóricos da Gestalt, antes de ser sistema-tizado por Husserl, já havia sido propugnado por Brentano (p. 341). Assim, nas psicoterapias humanistas, trabalhar fe-

nomenologicamente significa que a experiência única e imediata de nossos pacientes precede toda tentativa de classificação ou de julgamento. Neste sentido, importa mais que ele descreva sua experiência do que qualquer tentativa nossa, por mais brilhante que possa parecer, de interpretá-la (Ribeiro, 1994). Desta forma,

Brentano propõe é que, ao estudar, por exemplo, a esquizofrenia, não basta apenas conhecer suas bases genéticas e fisiológicas. O saber científico do trans-torno deve incluir também sua dimensão psicológica, ou seja, o saber ou significado de ser esquizofrênico vivenciado por cada sujeito esquizofrênico. Os frutos da chamada abordagem fenomenológica da psicopato-logia, defendida entre outros por Jaspers, Binswanger e Rogers, confirmam de forma irrefutável a tese bren-taniana (Ramón, 2006, p. 344).

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Nas psicoterapias humanistas que têm como base a fenomenologia, o psicoterapeuta busca que as pessoas se deparem com a diferença entre o que é percebido e sen-tido na situação presente e o que são resíduos do passa-do. As abordagens humanistas privilegiam a percepção imediata, tratando tanto o que é vivido subjetivamente no presente quanto o que é objetivamente observado, considerando-os dados reais e importantes, o que con-trasta com as abordagens que tratam o que o paciente ex-periencia como meras aparências e usam a interpretação para buscar um pretenso significado verdadeiro (Yontef, 1998). Neste sentido, endosso a posição de Granzotto & Granzotto (2010) de que,

(...) para Brentano, tão importante quanto explicar, com base em um modelo associacionista ou reflexivo, como opera o intelecto na constituição dos objetos, é descrever quais as ‘intenções’ (ou de que maneira os sentimentos e as ações) orientam o intelecto (p. 37).

Destaque-se que tais “intenções” nada têm a ver com o sentido corriqueiro que atribuímos ao termo: “(...) a no-ção brentaniana de intencionalidade não implica a pré-via concepção de algum objeto, [mas] apenas a antevisão de um objeto possível” (p. 37). Neste sentido, podemos compreender a importância das “intuições” do psicote-rapeuta no trabalho de facilitação da awareness de seus pacientes.

A vivência imediata representa o momento de contato com a realidade, contendo a chave do passado e do futu-ro e podendo responder às questões mais sutis de como o tempo se concretiza e o espaço se temporaliza: trata-se do fenômeno (Ribeiro, 1994). Neste sentido, mais do que afirmar que as psicoterapias humanistas trabalham com o presente, prefiro considerar que elas sempre par-tem dele, num processo de “presentificação” que atualiza tanto o passado quanto o futuro.

Para adotar uma atitude verdadeiramente fenomeno-lógica, ou seja, para que possa fazer intervenções des-critivas sem a priori, é imprescindível que o psicotera-peuta humanista mantenha suas crenças, seus valores e suas necessidades entre parênteses, o que implica numa suspensão de seu juízo, tanto na compreensão quanto na condução da situação psicoterápica. Neste sentido, o psicoterapeuta humanista convida o paciente a des-crever sua experiência, a expandir suas fronteiras e a alcançar novos significados para o experiencia no pre-sente da situação psicoterápica e em sua própria vida (Aguiar, 2005). Ribeiro (1985) assim descreve o objetivo da fenomenologia:

(...) ela procura descrever a experiência do modo como ela acontece e se processa. Para tanto é preciso, como diz Husserl, colocar a realidade entre parênteses, suspendendo todo e qualquer juízo. Não afirmar, nem negar, mas antes abandonar-se à compreensão

é o modo de atingir a realidade, assim como ela é (p. 47). [...] Assim, podemos deduzir que “(...) o ato psicoterapêutico se converte, então, em um ato cria-tivo, numa busca a dois, se converte numa procura paciente de descrever, de compreender e analisar a realidade como vem ao meu encontro” (p. 57).

Considerações finais

De acordo com Granzotto & Granzotto (2007), há uma ampla gama de influências exercidas pelo criador da Psicologia do Ato, em especial no que se refere à Gestalt-Terapia, mas, também, sobre diversas áreas da ciência psicológica. Neste sentido, em outra obra (Granzotto & Granzotto, 2010), consideram que a fenomenologia é uma postura ética, por meio da qual se privilegia a descrição daquilo que se mostra desde si mesmo: mais precisamen-te, as Gestalten. Da mesma forma, destacam que a feno-menologia husserliana passou por muitas transformações desde a ideia de intencionalidade de Brentano, e, a partir dela, podemos detectar diversas repercussões nas psico-terapias humanistas.

Para Fonseca (2008), a Gestalt-Terapia tem raízes muito claras na fenomenologia, na Filosofia da vida de Nietzsche e, particularmente (pelo menos para os fins deste traba-lho), no empirismo de Brentano: “a raiz da Gestalt-Terapia é Brentano, ou melhor, é o empirismo fenomenológico de Brentano”. Para ele, Brentano e Nietzsche são as princi-pais raízes não apenas da Gestalt-Terapia, mas, também, da perspectiva de Heidegger.

Assim, portanto, espero que, a partir desta breve ex-planação, possamos perceber mais claramente que, ape-sar das variadas posições e do questionamento da influ-ência da fenomenologia sobre as diversas psicoterapias humanistas, um ponto comum é apontado com frequên-cia: na criação de tais abordagens, a principal raiz é o empirismo de Brentano.

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Georges Daniel Janja Bloc Boris - Psicólogo, Mestre em Educação e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Coordenador do Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista-Fenomenológica Crítica - APHETO. Psicoterapeuta fenomenológico-existencial, supervisor de estágios em Psicologia Clínica, formador de psicoterapeutas em Gestalt-Terapia. Endereço Institucional: Universidade de Fortaleza. Avenida Washington Soares, 1321 (Bairro Edson Queiroz). CEP 60811-905. Fortaleza/CE. E-mail: [email protected]; [email protected]

Recebido em 15.06.11Primeira Decisão Editorial em 08.09.11

Aceito em 10.12.11

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Difficulties, Challenges and Possibilities for a Sartrean Clinic

Dificultades, Retos y Posibilidades para una Clínica Sartreana

Fernanda alT

Carolina mendes Campos

andré BaraTa

Resumo: Refletir sobre a possibilidade de uma clínica fenomenológico-existencial é ainda hoje um grande desafio para os pro-fissionais e estudiosos deste campo. Por se tratar de um trabalho que parte da filosofia, este se revela por vezes mais árduo, ao se mostrar carente de pressupostos psicológicos. No entanto, esta carência, longe de ser um impedimento, abre espaço para pen-sarmos em uma clínica desembaraçada das amarras cientificistas e positivistas que impregnaram a psicologia desde o seu nasci-mento. Frente a essa possibilidade, destacamos dentre as filosofias fenomenológicas e existenciais a de Jean-Paul Sartre, devido à constante preocupação presente em sua extensa obra de considerar criticamente as teorias psicológicas. É diante deste pano-rama que pretendemos, neste artigo, levantar algumas considerações sobre o desafio de pensar e realizar uma psicologia feno-menológico-existencial, tendo em vista a importância de sustentar o caráter crítico do qual ela é oriunda. Para tal, discutimos o problema da “importação” de conceitos por via de noções fundamentais do pensamento de Sartre, como liberdade e má-fé. Palavras-chave: Fenomenologia; Existencialismo; Psicologia clínica; Liberdade; Má-fé.

Abstract: Reflecting on the possibility of a phenomenological-existential clinical is still a great challenge for professionals and scholars of such field. Because it is a work that stems from philosophy, it sometimes proves to be more difficult, as it shows to have a lack of psychological assumptions. However, this gap, far from being an impediment, opens our minds up for thinking about a clinical cleared of its scientistic and positivist ties that have permeated psychology since its birth. Faced with this pos-sibility, we highlight among the existential and phenomenological philosophies the one of Jean-Paul Sartre, owing to his con-stant concern during his extensive work to critically consider psychological theories. It is before this scenario that we intend in this article to raise some considerations about the challenge of thinking and realizing an existential-phenomenological psy-chology keeping in mind, at the same time, the importance of preserving the critical character of which it is originated. To this end, we discussed the problem of the “importation” of concepts by considering some fundamental notions of Sartre’s thought, like freedom and bad faith.Keywords: Phenomenology; Existentialism; Clinical psychology; Freedom; Bad faith.

Resumen: Reflexionar sobre la posibilidad de una clínica fenomenológica-existencial es todavía un gran desafío para los profe-sionales y estudiosos en este campo. Teniendo en cuenta que este es un trabajo que parte de la filosofía, esto a veces resulta ser más difícil, por mostrar la carencia de los presupuestos psicológicos. Sin embargo, esta carencia, lejos de ser un impedimento, deja un espacio abierto para pensarnos en una clínica libre de las amarras del cientificismo y del positivismo que ha impregna-do la psicología desde su nacimiento. Ante esta posibilidad, destacamos entre las filosofías existenciales y fenomenológicos a de Jean-Paul Sartre, debido a la constante preocupación presente en su extensa obra de considerar críticamente las teorías psi-cológicas. Es en este contexto que pretendemos en este artículo plantear algunas consideraciones sobre el desafío de pensar y realizar una psicología existencial-fenomenológica teniendo en cuenta la importancia de sustentar el carácter crítico de lo cual proviene. Con este fin, hemos discutido el problema de la “importación” de conceptos a través de las nociones fundamentales del pensamiento de Sartre, como la libertad, y la mala fe.Palabras Clave: Fenomenología; Existencialismo; Psicología clínica; Libertad; Mala fe.

zamentos metodológicos, práticos e conceituais, seja na referência a uma metodologia fenomenológica, já por si mesma plural, seja na inspiração numa atitude existen-cial que nem sempre, porém, é entendida no sentido de um existencialismo, seja, enfim, na origem destas pers-pectivas não no campo da psicologia clínica, mas no da filosofia. Tal entrecruzamento nos confronta com os ris-

introdução

Considerar as possibilidades de uma clínica fenome-nológico-existencial continua, hoje, a ser um desafio para os profissionais e estudiosos no campo da psicologia clí-nica. A princípio, esse desafio parece se anunciar pelo fato de estarmos nos referindo a uma zona de entrecru-

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todológico que pudesse servir de base para uma prática clínica. Apesar de discordar de alguns dos pressupostos fundamentais da psicanálise freudiana como, por exem-plo, a postulação da hipótese do inconsciente, esta forma de abordagem das questões relativas ao homem é a prin-cipal inspiração para o projeto levado a cabo por Sartre de uma psicanálise existencial. Tal projeto o ocupará ao longo de sua obra de forma recorrente e significati-va, desde O ser e o nada até O idiota da família, aliando às suas críticas metapsicológicas à psicanálise empírica uma permanente preocupação metodológica, em particu-lar no que diz respeito à fundamentação de um método de compreensão do homem.

O fato de podermos identificar no rastro da obra de Sartre um “caminho a seguir” em vista de uma clínica psicológica de recorte sartriano, dentro do círculo das abordagens fenomenológico-existenciais, não suprime as dificuldades teóricas e metodológicas a serem enfrenta-das. No intuito de trilhar esse caminho de Sartre deve-mos, de início, voltar brevemente nossa atenção para sua crítica a uma psicologia que ainda carregava a marca do espírito de seu tempo: legitimar-se como ciência empíri-ca, ao lado de outras ciências empíricas como a física e a química, alicerçadas na ideia de um método científico natural. Para que a psicologia pudesse alcançar semelhan-te status, era necessário desenvolver um método particu-lar cientificamente equivalente, valendo-se das mesmas ideias positivistas das ciências da natureza. Deste modo, a psicologia tomou de “empréstimo” de outras discipli-nas já legitimadas um molde previamente elaborado, no qual deveria se encaixar com o máximo de exatidão. Os problemas subseqüentes deste “empréstimo”, feito pelas ciências humanas em geral, foram muito bem explora-dos por pensadores como Wilhelm Dilthey e Edmund Husserl, ao afirmarem a necessidade de demarcar as ci-ências compreensivas, nelas incluindo-se a psicologia e todas as disciplinas visando à compreensão do humano, das ciências naturais e da sua epistemologia baseada no princípio da explicação causal.

Prosseguindo esta linha de demarcação, Sartre, por sua vez, imprime o seu cunho crítico aos problemas de fundamentação epistemológica da psicologia. Sua in-tenção, aliás, vai além da mera crítica epistemológica ao modelo naturalista positivista ao oferecer pressupostos da fenomenologia de Husserl como alternativa para uma psicologia, conforme podemos observar em Esboço para uma teoria das emoções ou em A transcendência do ego. No Esboço, Sartre (2007) demonstra que o problema da psicologia está em estabelecer suas premissas a partir dos fatos isolados, o que significa que ela busca “encontrar” na experiência dos fatos o seu objeto sem definir ante-riormente o que seria este objeto. Sabemos que este “ob-jeto” pesquisado pela psicologia é o homem, e esta falta de definição anterior acaba, segundo Sartre (2007), por transformar a idéia de homem em uma abstração, em um conceito vazio. Para os psicólogos, tal definição aparece

cos e dificuldades que sempre resultam do diálogo in-terdisciplinar, das suas articulações e apropriações, com migrações conceituais não raras vezes equívocas, bem como da árdua tarefa de fazer a ponte entre o plano da teoria psicológica e o da prática clínica.

Aliás, a problemática não segue apenas na direção de entrada para o campo da psicologia clínica. Já dentro deste campo, têm sido tantas as abordagens, cambian-do aspectos, inspirações e filiações, que se torna difícil o mapeamento exato das suas diferenças e, talvez mais importante, das suas expectativas face ao que o pensa-mento fenomenológico e existencial pode trazer à prática clínica na psicologia. Apesar da ingenuidade de algumas formulações adotadas pelos psicólogos americanos que, há mais de meio século, avançaram com a perspectiva de uma psicologia e de uma psicoterapia existenciais, Rollo May (1960) já advertia sabiamente que era “duvido-so que tenha sentido falar-se de um ‘psicólogo ou psicote-rapeuta existencial’, em contraposição a outras escolas” (p. 17). E explicitava em seguida o seu pensamento nos seguintes termos:

Existencialismo não é um sistema de terapia, mas uma atitude para com a terapia. Muito embora tenha conduzido a muitos avanços na técnica, não é um conjunto de técnicas por si mesmas, mas é um inte-resse pela compreensão da estrutura do ser humano e sua experiência que deve sustentar todas as técnicas (May, 1960, p. 17-18).

Esta exigência de “compreensão da estrutura do ser humano e sua experiência”, no quadro de uma “atitude” existencial face à terapia não autoriza a sua dogmatização num receituário de técnicas. Fazer prevalecer a atenção crítica sobre os esquematismos generalizadores e abstra-tos e sobre os determinismos é um dos aspectos mais no-táveis nas reflexões que Jean-Paul Sartre produziu quer sobre a psicologia, quer sobre a psicanálise.

O presente artigo anima-se deste propósito tão sartria-no de atenção crítica, mas precisamente tomando como objeto algumas das noções mais celebrizadas (e também por isso muitas vezes simplificadas) que o existencialis-ta cunhou ao longo da sua reflexão. Em concreto, propo-mos discutir, com este artigo, a “importação” de noções sartreanas como as de liberdade e má-fé para o âmbito da clínica fenomenológico-existencial.

No itinerário da obra de Sartre encontramos reflexões marcantes, a partir de uma abordagem fenomenológica, para uma psicologia da imaginação e das emoções, bem como de uma descrição das estruturas psíquicas dos es-tados e qualidades do Ego. Além das importantes con-tribuições para uma psicologia fenomenológica, no sen-tido que Edmund Husserl atribuía a esta nova discipli-na, Sartre também sustenta uma longa interlocução com Sigmund Freud, indicação de uma ambição sua de ir além de especulações teóricas e desenvolver um esboço me-

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como resultado dos fatos pesquisados que, agrupados e classificados, oferecem empiricamente suas característi-cas. Assim, a psicologia parte, de acordo com o filósofo, de uma pretensa posição “neutra” diante de seu objeto de estudo, como se o pesquisador pudesse encontrar o “homem” ao final da investigação e não o colocasse em questão desde o início, esquecendo-se de que ele mesmo pertence à realidade que estuda: “eles (psicólogos) querem estar diante de seu objeto como o físico diante do dele” (Sartre, 2007, p. 13). Por conseqüência, o psicólogo acaba por retirar de sua investigação aquilo que mais interessa ao fenomenólogo: a significação.

Para a fenomenologia, “todo fato humano é por exce-lência significativo” (Sartre, 2007, p. 25), e por esta razão o ponto de partida deverá ser um estudo dos fenômenos e não dos fatos empíricos positivos, isto é, partir da re-lação da consciência intencional com o mundo. No caso da emoção, por exemplo – estudada pelo psicólogo como fato psíquico –, a psicologia fenomenológica deverá fazer uma dupla interrogação ao fenômeno:

Assim, o fenomenólogo interrogará a emoção sobre a consciência ou sobre o homem, perguntar-lhe-á não apenas o que ela é, mas o que tem a nos ensinar sobre um ser do qual uma das características é jus-tamente ser capaz de se emocionar. E, inversamente, interrogará a consciência, a realidade humana sobre a emoção: o que deve ser então uma consciência para que a emoção seja possível, talvez até para que seja necessária? (Sartre, 2007, p. 25).

Trata-se de uma questão de ponto de partida, de uma atitude inicial. A psicologia positivista parte do pressu-posto de que o mundo de alguma forma está dado e que o esforço consiste em estudar com rigor os fatos empíricos positivos para que deles brotem as verdades. Como diz Sartre (2007), esta psicologia positivista estuda o homem da mesma forma que o botânico analisa e classifica as plantas, procurando enquadrar o humano em categorias taxonômicas e leis naturais. Em contrapartida, a atitude fenomenológica, ao buscar as significações, convida a psicologia a “dar um passo atrás” e interrogar, a relação do homem com o mundo.

Posto isto, é importante evitar quatro confusões recor-rentes acerca do estatuto que Sartre se propõe conferir à psicologia fenomenológica, mas desde logo clarificadas nas primeiras páginas de A Transcendência do Ego. Em primeiro lugar, tal psicologia fenomenológica apresenta-se como uma disciplina científica, dotada da mesma ambi-ção de rigor e objetividade que quaisquer outras ciências apregoem para si – longe de se tratar de uma psicologia anti-científica ou contra o discurso científico, a aposta da psicologia fenomenológica consiste em pensar a ciên-cia de uma maneira diferente da do cientificismo e do positivismo redutor. Em segundo lugar, o fato de Sartre começar por um exame crítico das bases epistemológi-

cas da psicologia do seu tempo, aliás muito inspirado no movimento de Husserl, não converte a sua psicologia numa psicologia crítica no sentido em que se contentas-se com o exame das suas condições de possibilidade, à maneira de um tribunal da razão kantiano. Em terceiro lugar, e na sequência do ponto anterior, importa deixar claro que a psicologia fenomenológica, e a fenomenologia em geral, não são ciências apriorísticas que constituem o seu conhecimento independentemente da experiência. Bem pelo contrário, é lema central da fenomenologia o retorno às coisas mesmas, às coisas na sua concreta apa-rição, imersas na sua significação integral. Por último, e concluindo estas sequências de observações, a psicologia fenomenológica é uma ciência de fatos. Evidentemente, não uma ciência de fatos empíricos positivos, dados no seu recíproco isolamento e explicados através de uma lógica causal conferida externamente, a partir da cons-tatação e generalização de correlações, mas uma ciência de fatos relativos à consciência, fatos dotados de signifi-cação a esclarecer fenomenologicamente, tal qual se dão à consciência, seu fato primeiro e absoluto.

A fenomenologia é um estudo científico e não crí-tico da consciência. O seu procedimento essencial é a intuição. A intuição, segundo Husserl, põe-nos na presença da coisa. Deve entender-se que a feno-menologia é, portanto, uma ciência de fato e que os problemas que ela põe são problemas de fato, como aliás se pode ainda perceber considerando que Hus-serl a denomina uma ciência descritiva. Os problemas das relações do Eu com a consciência são, portanto, problemas existenciais. (…) Esta consciência já não é um conjunto de condições lógicas, é um fato absoluto (Sartre, 1994, p. 45).

Estas são as bases constituintes da psicologia fenome-nológica que Sartre propõe nos seus primeiros ensaios e que servem de apoio para o desdobramento de seu pensa-mento existencial como um todo, cujas idéias principais são: 1) a radicalização do princípio de intencionalidade – retirando à consciência qualquer possibilidade de ser mais do que o movimento de fuga em direção às coisas; 2) a assunção do ser da consciência como liberdade – re-tirando-lhe a possibilidade de ser determinada por algo mais além dela mesma; 3) a descrição da estrutura me-ta-estável da consciência – como ser que é o que não é e não é o que é; 4) a descrição da angústia como apreen-são reflexiva da própria condição livre e indeterminável da consciência, 5) a má-fé como uma conduta de fuga à angústia, procurando o descanso de um determinismo, seja o das condições sociais, seja o de um inconsciente e suas pulsões, seja o de qualquer outro expediente que vise alijar as responsabilidades pelas próprias escolhas. Assim, se vai costurando aquilo que com inteira legiti-midade se pode designar por psicologia fenomenológico-existencial sartreana, nela podendo incluir-se as bases

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para o projeto que Sartre inicia em O Ser e o nada de uma psicanálise existencial, bem como das suas perspectivas sobre as relações concretas com o outro.

Contudo, aquela vontade de fazer ciência que ani-mou, na esteira de Husserl, a psicologia fenomenológica nas obras iniciais de Sartre, não pode ser sobrestimada no quadro do pensamento do existencialista. Pelo con-trário, é crucial compreender em que medida tal ambi-ção “científica” deve ser situada e subordinada, ainda que não superada, se se quiser tomar, em todo o seu al-cance, as consequências do pensamento de Sartre para uma clínica psicológica. Com efeito, a postura científica, elaborada de dentro de uma disciplina científica, esgo-ta-se diante da necessidade de remontar do plano do co-nhecer, de algum modo sempre já derivado, ao plano das relações de ser. No essencial, é essa a crítica que Sartre dirige a Husserl. De outro modo, algo fundamental para uma clínica psicológica como a compreensão das rela-ções concretas entre os homens veria as suas possibili-dades anular-se. Além disso, o projeto de uma psicaná-lise sartreana, justamente porque existencial, perderia a sua maior originalidade se se deixasse enredar na ideia de uma psicanálise científica. Não está em causa, com isto, tornar impertinente a questão de um método, mas a sua configuração como um método pensado através de requisitos científicos de aplicabilidade repetida, previsi-bilidade, fiabilidade, etc. O movimento que leva Sartre de uma psicologia fenomenológica à afirmação de uma onto-logia fenomenológica não pode, portanto, ser entendido simplesmente como continuação de um fazer científico num campo disciplinar delimitado através da definição de um objeto de estudo e aplicação de uma metodologia para o investigar.

Evidentemente, da investigação ontológica sartreana resulta um “saber” que caracterizará a clínica fenome-nológico-existencial e que moldará escolhas no relacio-namento terapêutico. Por exemplo, que nenhum a prio-ri, nenhuma abstração, deve interpor-se na compreensão das relações inter-pessoais. Tal como a existência pre-cede a essência, também a ontologia da relação precede qualquer ciência da relação. Tal “saber” que precede a “ciência” deverá incorporar, e assim caracterizar distin-tivamente, uma clínica fenomenológico-existencial que se reclame sartreana.

o problema da “importação” de Conceitos filosóficos na psicologia

De acordo com Ana Maria Feijoo (2009), não são pou-cas as indagações em torno do que seria uma psicologia fenomenológico-existencial, especialmente quando se trata de pensar uma prática clínica. Em meio a mal-en-tendidos e confusões entre correntes de pensamentos, também não são poucas as dificuldades a serem trans-postas. Dentre os percalços inerentes a este caminho,

Feijoo (2009) ressalta a constante e complicada tentativa de junção, na psicologia, das filosofias da existência ao pensamento humanista. No caso de Sartre, pensamos que essa mistura é acentuada pelo próprio autor que dá o nome de “O Existencialismo é um Humanismo” a uma de suas conferências que viria a se tornar um de seus textos mais lidos. Em tal conferência, ele explica que o termo “humanismo” se aplica em dois sentidos distintos. O pri-meiro sentido “toma o homem como meta e como valor superior” (Sartre, 1987, p. 21), o que acaba por gerar um tipo de culto da “humanidade”, na qual ela é vista como admirável e louvável, conduzindo a uma visão viciada de homem e a um humanismo solipsista. Esta concep-ção não se assemelha a do existencialismo sartriano, já que nela o homem nunca é tomado como meta, como um modelo vangloriável, que é pronto e fechado em si, “pois ele (homem) está sempre por se fazer” (Sartre, 1987, p. 21). Se o homem está “por se fazer”, ele é busca por me-tas fora de si, em um movimento incessante que expres-sa sua indissociável relação com o mundo. O sentido de “humanismo” que Sartre sustenta remete assim a para-doxal condição da existência, na qual o homem só se faz homem perdendo-se fora de si.

Talvez Sartre tenha sentido a urgência de privile-giar o “humano” em toda a sua concretude no bojo do pensamento fenomenológico-existencial, por considerar que seus precursores deram ou excessiva importância à questão do conhecimento ou um “passo a mais” na crí-tica ao subjetivismo, deixando assim o olhar relativo ao homem ora embaçado pela poeira racional da teoria, ora perdido em relação à experiência mais concreta e coti-diana. Neste sentido, o esforço de Sartre é o de recuperar este “homem-no-mundo” entendido, por sua vez, como radicalmente distinto do homem exultado no centro do pensamento humanista.

Na psicologia, esta distinção entre os “humanismos” se torna essencial, visto que o humanismo clássico se en-contra na base de uma teoria psicológica que enveredou para o desenvolvimento de uma prática que permanece ligada a pressupostos de ordem da natureza humana, afas-tando-se da formulação básica das teorias existenciais, na qual “a existência precede a essência”. Apesar de tal diferença de pressupostos, muitas leituras se formaram na tentativa de manter essa conexão entre o existencia-lismo e o humanismo. Isso se faz notar na própria deno-minação corrente de “Psicologia Humanista Existencial”, muito em voga principalmente a partir da segunda meta-de do século XX. A abordagem “Humanista Existencial” surge como uma tentativa de transpor noções da filosofia fenomenológica e existencial aos princípios da Psicologia clínica, fato que pode ser observado, por exemplo, em al-gumas leituras entusiasmadas, mas igualmente precipi-tadas, do pensamento de Sartre por parte de psicólogos humanistas norte-americanos. Esse movimento suscita, até hoje, dúvidas quanto aos problemas das “importa-ções” dos conceitos filosóficos, visto que nesta proposta

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é inevitável pôr a serviço da psicologia centrada numa essência de pessoa humana um pensamento que visa justamente desconstruí-la. Em outras palavras, a aborda-gem “Humanista Existencial” se utiliza de noções como angústia, desamparo, desespero e liberdade de modo a diluí-las em um escopo teórico mais amplo, no qual es-tas são acrescidas de ideias chaves da psicologia clássica como as de saúde/doença, cura, processo terapêutico e, sobretudo, ideias humanistas de difícil compatibilidade com o pensamento fenomenológico-existencial como as de pessoa interior, potencialidade e atualização, cresci-mento interior e natureza humana.

Por estas razões, é certo que o humanismo implicado na terapia centrada na pessoa de Carl Rogers, referência maior da psicologia humanista, só enganadoramente pode encontrar fundamento filosófico, caso dele carecesse, no pensamento existencial de Sartre, ou mesmo, num senti-do mais amplo, no pensamento fenomenológico tout court – “Uma psicoterapia centrada na pessoa é incompatível com uma psicoterapia fenomenológica” (Moreira, 2009, p. 36). Isto não significa, porém, que sejam improceden-tes todas e quaisquer aproximações entre humanismo e fenomenologia, ou ainda, entre humanismo e existencia-lismo. São, a este propósito, dignas de nota as leituras do próprio trabalho rogeriano que testemunham uma mu-dança de perspectiva em sua prática clínica, já não ten-do a “pessoa como centro”, mas visando “para além da pessoa”, designadamente a “relação cliente-terapeuta” e de “campo em comum” (Moreira, 2009, p. 35-36).

A tentativa de evitar uma simples “importação” de termos filosóficos, mantendo ao mesmo tempo as possibi-lidades abertas para uma prática clínica parece traduzir-se no desafio da psicologia fenomenológico-existencial ainda hoje. Se seguirmos o caminho de Sartre, surpre-endentemente ainda tão pouco explorado, podemos com-preender que para que essa clínica seja possível é preci-so, primeiramente, dar “um passo atrás” e reencontrar o solo ontológico donde se constitui fenomenologicamente uma psicologia. Isto implica em desimpregná-la de suas bases cientificistas e normativas e tomar o homem não mais pela perspectiva de uma subjetividade solipsista, abstração de si mesmo, mas pela prerrogativa primeira da fenomenologia que aponta para uma relação indisso-ciável entre o homem-e-seu-mundo.

A possibilidade de articulação de uma prática clíni-ca a partir de Sartre deve, portanto, levar em conside-ração este esforço de pensar mais originariamente, ou seja, na atenta consideração das fontes fenomenológi-cas de investigação psicológica. Pautados nesta atitude, podemos tomar as noções desenvolvidas por Sartre em torno da psicologia como um projeto que ultrapassa sua própria postulação metodológica de psicanálise existen-cial. Camila Gonçalves (2006) ressalta que a psicanálise sartreana deve também abarcar toda a análise ontológi-ca presente em O Ser e o Nada, que envolve descrições acerca “da contingência, da facticidade, do ser do valor,

do ser dos possíveis, do eu, da temporalidade, e da ipsei-dade” (p. 58). Desta forma, devido ao amplo desafio de produzir uma prática na zona de encontros (ou desencon-tros) entre a psicologia e a filosofia, devemos caminhar de modo a evitar uma busca “apressada” por definições provenientes da ontologia que seriam “importadas” e “di-luídas” em um escopo psicologizante transformando-as em normatizações.

Tal risco se evidencia, a nosso ver, principalmente em relação às noções sartreanas de liberdade e má-fé que, por se apresentarem como os jargões de base de um pensa-mento amplamente difundido, acabam por ser interpre-tadas de forma confusa. Na psicologia, isso se expressa em uma leitura que faz equivaler liberdade e vontade, e de acordo com a qual a psicoterapia passa a servir como um espaço de reflexão que visa promover uma atitude voluntariamente responsável sobre as livres escolhas. Ora, em tal interpretação a existência se reduz àquilo que “quero (reflexivamente) ser”; as escolhas são encara-das como enganosas ou autênticas no intuito de direcio-narem as mudanças a serem tomadas responsavelmente pelo sujeito. Esta é, contudo, uma interpretação que se afasta consideravelmente do espírito e da letra do pen-samento de Sartre.

Com efeito, a liberdade sartreana em nada se equivale à vontade, pelo contrário; segundo ele, a vontade não é senão uma anunciadora do que a liberdade já escolheu: “Quando delibero, os dados já estão lançados (...) Quando a vontade intervém, a decisão já está tomada, e a vonta-de não tem outro valor senão o de anunciadora” (Sartre, 2001, p. 557). Escolhemos simplesmente porque somos liberdade, esta é uma condição ontológica de nosso ser, que significa a nossa não determinação por uma natureza substancial. Tal condição de não-natureza determinante indica, por si só, que cada traço do existir é uma escolha, ou, nas palavras de Sartre:

O homem é livre porque não é si mesmo, mas pre-sença a si. O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade-humana a fazer-se em vez de ser (...) para a realidade-humana ser é escolher-se (Sartre, 2001, p. 545, grifo do autor).

Logo, devemos pensar mais originariamente, a saber, devemos “pensar contra” a tendência natural de atribuir-mos um caráter reflexivo à escolha, a qual nos joga rapi-damente na interpretação de uma liberdade voluntarista que “escolhe o que quer ser”. Para Sartre (2001), o ideal da vontade é um ideal reflexivo que nos conduz ao “sen-tido da satisfação que acompanha um juízo como ‘fiz o que quis’” (p. 558). A escolha fundamental da liberdade sartreana é anterior a reflexão, é irrefletida e espontânea, constitutiva dos próprios caminhos da reflexão. Isto in-dica uma principialidade e autonomia do irrefletido em Sartre, como destaca Pedro Alves (1994), posto que “no

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seio da vivência irrefletida, se consuma já um saber ate-mático de si que é independente e autônomo relativamen-te à consciência reflexiva” (p. 11). Em outras palavras, esse saber atemático da vida irrefletida se dá pelo que Sartre denominou de cogito pré-reflexivo, uma relação primeira da consciência consigo mesma, que se escolhe anteriormente e independentemente de qualquer reflexão. Escolhas irrefletidas e espontâneas não representam, as-sim, uma eleição de si alienada e irresponsável, mas ape-nas um movimento original. A responsabilidade existen-cial em Sartre se aproxima a noção de cuidado (sorge) de Heidegger, na qual mesmo o descuido é compreendido como uma forma de ser cuidado. Isso também vale para a responsabilidade sartreana, já que mesmo decidindo sobre mim de forma irrefletida ainda assim sou respon-sável pelo que escolho, não havendo necessidade de um recurso de segundo grau (reflexão), para que a responsa-bilidade entre em jogo.

Dentro desta mesma perspectiva podemos considerar que também a noção de má-fé corre o risco de ser inter-pretada equivocamente e, dessa forma, acabar submetida a uma chave interpretativa redutora. Aliás, a própria de-nominação má-fé conduz facilmente a uma interpretação de cunho moralista, visto que pode soar como uma adje-tivação que remete a algo ruim, disfuncional. Por conse-guinte, tal olhar pode transformar a compreensão deste fenômeno em um rígido campo de julgamento entre es-colhas certas e erradas. Contudo, há, de fato, uma moral em Sartre. Porém, ela não se aproxima do que podemos considerar como uma moral dita tradicional, que articula em seu bojo valores como Bem e Mal. Só pode existir uma moral em Sartre se a situarmos como uma moral que se estabelece na e pela liberdade e, neste contexto, Bem e Mal não podem ser tomados como valores objetivos da-dos a priori e sequer podem ser pensados apartados da atividade inventiva de uma liberdade que cria valores e doa sentido ao mundo. Simone de Beauvoir (2005) afir-ma que é próprio de toda moral tradicional “considerar a vida humana como uma partida que se pode ganhar ou perder, e ensinar ao homem o meio de ganhar” (p. 25). A principal diferença entre os princípios estruturantes da Moral – tradicional e sartreana – se dá, justamente, no ponto de partida: a concepção de homem. Como resume muito bem Beauvoir:

Não se propõe moral a um Deus; é impossível propô-la a um homem se o definirmos como natureza, como dado; as morais ditas psicológicas ou empíricas não logram constituir-se a não ser introduzindo subrepticiamente alguma falha no seio do homem-coisa que elas primeiramente definiram (Beauvoir, 2005, p. 16).

Partindo, então, da concepção de homem pelo viés sar-triano nos deparamos com uma realidade humana que é liberdade, que se define por sua perpétua incompletude.

O homem que nunca está pronto pode somente “brincar de ser” toda vez que esboça definir para si uma identida-de fechada. Do mesmo modo que a moral só faz sentido a uma realidade humana inacabada também a má-fé só é possível ao ser que nunca é capaz de coincidir totalmente consigo mesmo: “se eu fosse triste ou covarde assim como o tinteiro é tinteiro, sequer seria concebível a possibili-dade de má-fé” (Sartre, 2001, p. 113). Assim, a má-fé não se trata de um modo de ser “errado” ou uma escolha fal-sa, e sim de uma possibilidade sempre em aberto e volta e meia realizada pelo homem, isto é, atalhos inevitáveis em seu percurso existencial.

Aliás, toda interpretação do fenômeno da má-fé ar-risca incorrer num equívoco se não for feita a partir de uma perspectiva ontológica, que é a que Sartre desenvol-ve em O ser e o nada, e se, pelo contrário, se fixar, des-de logo, num plano moral, de considerações normativas, sobre o que se deve e o que não se deve fazer (Anderson, 1993). De outro modo, seriam, por exemplo, ininteligí-veis os momentos em que Sartre considera até a sinceri-dade como uma forma de má-fé. Por outro lado, importa distinguir dois âmbitos: um, persistente, em que pode-mos falar de uma escolha original de má-fé, e que assim estruturará todo o projeto de ser como projeto de má-fé; outro, transitório, em que ambas, a má-fé e a boa-fé são proporcionadas pela própria disposição meta-estável da consciência, podendo uma converter-se facilmente na outra consoante a conveniência das escolhas projetadas (Catalano, 1985). Na verdade, neste sentido transitório, a má-fé pode bem ser indispensável para que uma cons-ciência se determine inteiramente a ser as escolhas que faz, vencendo o impasse da angústia (Barata, 2005). Em suma, o sentido profundo da má-fé se traduz brilhante-mente nas palavras de Gerd Bornheim (2007): “a realidade humana nunca está realmente em casa, e quando pensa que está, incide em má-fé. O homem se habita perpetua-mente como um estranho” (p. 126).

Pretendemos ter explorado aqui, justamente, algumas dificuldades e constantes fontes de mal-entendidos que, por vezes, acabam nos levando a leituras normatizantes, distorcendo, assim, os significados de noções caras ao pensamento sartriano. Como vimos, essas confusões se dão, principalmente, quando ocorre uma simples “im-portação” de conceitos da filosofia à psicologia, retirando dos mesmos sua riqueza de origem. Contudo, esses im-passes não representam um impedimento ao diálogo in-terdisciplinar entre tais áreas, mas apenas dificuldades a serem trabalhadas que indicam, muito pelo contrário, possibilidades necessárias para quem deseja compreen-der o homem fora dos determinismos e dos reducionis-mos herdados pela psicologia desde o seu nascimento no auge do positivismo. Além do mais, percebemos que um olhar atento a esses temas aponta para um necessário de-lineamento da relação da psicologia fenomenológica de Sartre com a questão da ciência e do humanismo. Este mesmo olhar atento é que nos guia, portanto, a pensar

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as dificuldades, desafios e possibilidades de uma clínica com inspiração sartreana.

Resulta de todas essas considerações, que o ponto de partida adotado pelo psicólogo revela-se essencial para definir de que forma as relações podem ser articuladas no espaço clínico. Partindo da ontologia proposta por Sartre e de seu projeto de psicanálise existencial não podemos ansiar “corrigir” o homem em suas escolhas em busca de um processo terapêutico que potencialize uma atitu-de mais “livre” e saudável. Quando buscamos pensar a prática clínica a partir de Sartre devemos compreender, a princípio, que para o homem que está em vias de se fazer, que escapa a toda e qualquer lei de causalidade e determinismo, não existem explicações e caminhos pré-vios a serem alcançados. Longe de uma visão de natureza humana, de uma liberdade voluntarista e de uma má-fé sentenciadora,o que existe são possibilidades de ser que podem ser mais bem conhecidas e que, assim, colaboram para revelar esta perpétua escolha que o homem tem que fazer de si. Também, a fenomenologia nos mostra que a atitude de mover-se em direção a algo é constitutiva do próprio fenômeno. Portanto, compreendemos que sem este movimento de dar “um passo atrás”, convite da feno-menologia à psicologia, esta última corre o risco de pro-duzir relações que, ao invés de abrir um campo de pos-sibilidades de ser para aqueles que estão “em questão” na relação clínica, acaba por enclausurá-los em suas próprias verdades inquestionáveis. Desta forma, os contornos que circunscrevem uma relação clínica com base sartreana estão ainda por serem definidos, mas precisamos, antes de tudo, libertar essa relação das tendências aprisiona-doras, que reduzem nossa visão de homem a simples es-quemas teóricos. Por fim, seguindo uma inspiração sar-trean, propomos que o objetivo de tal psicologia clínica deve ser entendido como aquilo que possa tornar a vida humana, de alguma forma, mais possível.

Referências

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Fernanda Alt - Psicóloga clínica, Mestre em Psicologia Social pela UERJ, e graduada em Psicologia pela PUC-Rio. Foi professora substituta da UFRJ e atualmente dá aulas sobre existencialismo na Especialização em Psicologia Clínica do IFEN e em outros cursos de especialização. Endereço Institucional: Rua Barão de Pirassununga, 62 – Tijuca, Rio de Janeiro – RJ. E-mail: [email protected] Carolina Mendes Campos - Psicóloga clínica, Doutoranda em Psicologia da Puc-Rio, Mestre em Psicologia também pela PUC-Rio e Professora da Especialização em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN). Endereço Institucional: Rua Barão de Pirassununga, 62 – Tijuca, Rio de Janeiro – RJ. E-mail: [email protected] André Barata - Professor da Universidade da Beira Interior (UBI) em Portugal, além de filósofo com doutoramento em filosofia contemporânea pela Universidade de Lisboa. Foi professor visitante do Instituto de Psicologia da UERJ. É autor de livros e artigos sobre filosofia e fenomenologia. Seus últimos títulos são “Mente e consciência - ensaios de filosofia da mente e fenomenologia” (2009) e “Sentidos de liberdade” (2007). Endereço Institucional: Universidade da Beira Interior, Faculdade de Artes e Letras, Rua Marquês d’Ávila e Bolama, 6200-001 Covilhã, Portugal. E-mail: [email protected]

Recebido em 04.02.11Primeira Decisão Editorial em 06.08.11

Aceito em 03.10.11

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Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno Obsessivo Compulsivo

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uma análiSe exiStenCialiSta paRa um CaSo ClíniCo de tRanStoRno oBSeSSivo CompulSivo1

An Existential Analysis for a Case of Obssessive Compulsive Disorder

El análisis existencial para un caso deTrastorno obsesivo-compulsivo

Sylvia mara pires de FreiTas

Resumo: O presente relato de experiência se refere ao desvelamento do Projeto de Ser de uma mulher de 35 anos, que apresenta um quadro de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), experienciado pela mesma como um evento ahistórico, singular, des-conectado de uma possível construção com o social, e entendendo-o como de sua única responsabilidade. Sendo histórico, dia-lético e social, o homem sartreano deve ser compreendido em toda trama de sua existência, assim, os pensamentos obsessivos e os comportamentos compulsivos, apresentados pela cliente, apesar de poderem ser identificados tais como descritos no DMS IV, anunciam uma existência inundada pela vivência contraditória entre o Ser-para-si e o Ser-para-o-outro. A estrutura deste relato busca seguir a metodologia para a compreensão terapêutica do Projeto de Ser da cliente, segundo a Psicologia Clínica de base sartreana, a qual engendra o caminho de conscientização sobre os fundamentos e nexos das ações do sujeito, favorecendo reflexões sobre os fatores que constituem seu Projeto de Ser, e assim sua apropriação pelo mesmo. Palavras-chave: Psicoterapia existencialista; Transtorno obsessivo compulsivo; Projeto de ser.

Abstract: This experience report provides readers the unveiling of Project Being a woman of 35 years, which presents a nosolog-ical of Obsessive Compulsive Disorder (Ocd), experienced the same event as an ahistorical, singular, disconnected from a pos-sible construction with the social, and understanding it as your sole responsibility. As historical, dialectical and social Sartrean man must be understood in any plot of his existence, so the obsessive thoughts and compulsive behaviors presented by the cli-ent, although they can be identified as described in the DMS IV, announce a flooded existence the contradictory experience of Being-for-itself and Being-for-the-other. The structure of this report seeks to follow the methodology for the design of therapeu-tic understanding of Being customer, according to the Clinical Psychology of Sartre’s base, which generates the path of aware-ness about the foundations and links the actions of the subject, encouraging reflection on the factors that Project constitute its being, and thus its appropriation for the same.Keywords: Existential psychotherapy; Obsessive compulsive disorder; Project self.

Resumen: Este informe proporciona a los lectores la experiencia con la presentación del Proyecto Ser una mujer de 35 años, que presenta una nosológica del trastorno obsesivo compulsivo (Toc), experimentó el mismo evento como un singular ahistó-rica, desconectado de una posible construcción con lo social, y la comprensión como de su exclusiva responsabilidad. Como histórico, el hombre sartreano dialéctico y social debe ser entendida en cualquier parcela de su existencia, por lo que los pen-samientos obsesivos y comportamientos compulsivos presentada por el cliente, aunque se pueden identificar como se descri-be en el IV DMS, anunciar una existencia inundado la experiencia contradictoria del ser-para-sí y el ser-para-el-otro. La es-tructura de este informe trata de seguir la metodología para el diseño de la comprensión terapéutica de ser cliente, de acuerdo con la Psicología Clínica de la base de Sartre, que genera el camino de la conciencia acerca de los fundamentos y los enlaces de las acciones del sujeto, fomentando la reflexión sobre los factores que proyecto constituye su ser, y por lo tanto su apropia-ción para el mismo.Palabras-clave: La psicoterapia existencial; Trastorno obsesivo-compulsivo; Proyecto libre.

introdução

Apesar de o título deste artigo colocar em relevo uma nomenclatura referente a um quadro nosológico (DSM IV e CID-10), a análise compreensiva do caso clínico não se fecha nos sintomas que configuram o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Esta nomenclatura serve

1 Palestra proferida na mesa redonda do I Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & I Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, realizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, de 04 a 07 de junho de 2011.

mais como uma provocação para mostrar como é fácil reduzirmos nosso olhar à existência de uma pessoa, por meio de uma classificação diagnóstica.

Em nosso empreendimento, o sujeito será compre-endido em sua totalidade, sendo a unidade nosológica integrada a toda dimensão da existência deste, que tam-bém se constitui pelo quadro sadio. A análise terá como base a Psicanálise Existencial sartreana, tal como propõe Schneider (2002; 2011).

O destaque dado ao quadro nosológico, objetivou tam-bém evidenciar o momento em que a cliente procurou a

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terapia. Schneider (2011, p. 190) coloca, tendo como base o argumento de Jaspers (1979), que:

[...] a questão psicopatológica fundamental é o desen-volvimento de uma personalidade, horizonte em que ela deve ser compreendida. Pode ocorrer que certa sintomatologia, a princípio específica, vá aos poucos se apoderando da existência inteira e acorrentando a personalidade.

Sendo assim, ao encontrar-me com Sol2 pela primeira vez, percebi sua existência inundada pelos pensamentos obsessivos e ações compulsivas, mas apesar deste desta-que, também mostrava questionamentos que denuncia-vam senso crítico sobre sua situação.

Os pensamentos obsessivos e os comportamentos compulsivos, como todos os outros atos do sujeito, de-vem ser visados em suas finalidades e não como uma soma de manifestações. Em cada ato há o fundamento da inteireza do sujeito. Conhecendo como transcende a tensão entre mundo concreto e o simbólico, uma vez que homem e mundo se dialogam fazendo-se mutuamente, é que podemos chegar a seu projeto fundamental. Em cada síntese sua história singular e a da humanidade são construídas.

É pelo método sartreano que proponho compartilhar com o leitor mais uma maneira de investigar, compre-ender e elucidar o mundo de uma pessoa cujo projeto de ser foi construído sob os fundamentos das relações dualistas entre o certo e errado e do perfeito e imper-feito. E na vivência do conflito entre o que deve ser e o que é, mostra algumas ações impregnadas pela preo-cupação com a necessidade de convencer-se de que seu Ser corresponde ao ideal imposto na infância e, dian-te a experiência duvidosa sobre a veracidade do mes-mo, compele-se a agir de maneira a aliviar a angústia da possibilidade de não Ser, com isso desenvolve com-portamentos identificados como Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC).

Entre o Ser conforme os modelos apreendidos e o que é, o sujeito se perde na contradição contida nas in-formações interiorizadas: deve ser não sendo o que é. Não conseguindo ser o que não é, confirma o ser não perfeito, mas experiencia essa vivência sob o manto da culpa.

Para melhor compreender a metodologia utilizada para a realização da análise do caso em questão, situa-rei brevemente o método sartreano para investigação da realidade humana, como já coloquei anteriormente, con-forme elucidado por Schneider (2002; 2011).

2 Por questão ética, referir-me-ei a cliente por este pseu-dônimo.

em Busca da Compreensão do projeto de Ser

O projeto de Sartre (1943/1999; 1960/2002), no desvela-mento do empreendimento humano, transcendeu os três principais pensadores que deram base para sua teoria: (1) O Eu transcendente de Husserl (1901/1988) perde o sen-tido, haja vista que para Sartre, a consciência é “despro-vida de conteúdos formais e materiais” (Cahet, 2008, p. 04), inclusive de um Eu. Sendo este constituído pelo ato reflexivo, o Eu sartreano reside no mundo, logo é um Eu transcendido. Somente pela consciência da sua criação de seu Eu, na relação com o mundo, que o homem pode assumir a responsabilidade pelas suas escolhas, pelo seu Projeto de Ser; (2) a busca pela compreensão do Ser on-tológico heideggeriano, para Sartre deve ser focada no Para-si e suas condutas, construído pela relação dialéti-ca entre subjetividade e objetividade e; (3) na proposta marxista de conhecer o homem concreto que transforma o mundo. Sartre ao invés de “[...] descrever a realidade a partir de categorias universais (economia, modo de pro-dução, classe social)” (Schneider, 2002, p. 118), resgata o indivíduo na relação com o coletivo. A concretude da existência individual e social se dá, para Sartre, através da interdependência do diálogo entre ambos.

Através dessas e outras superações, o homem sartre-ano possui características de um Ser histórico, dialético e também social, visto que a singularidade não se opõe à coletividade e vice versa. Cada ato do sujeito circuns-creve os contextos familiar, social, cultural, econômico, político, intelectual, bem como a história da humanidade é construída através de cada escolha singular que tece com todas as outras a trama do universal. Assim, atra-vés de sua antropologia podemos compreender a práxis que tem em seu bojo a conversão do processo existencial e do histórico.

Quiçá, por uma concepção dicotomizada do indi-víduo e do coletivo, corroborada também pelas teorias sociais que se opõem a concepção de indivíduo das te-orias psicológicas, por sua vez construídas sob a influ-ência da atmosfera liberalista e neoliberalista, é que ainda esbarramos na incompreensão do Ser dialético. Mas mesmo assim, realizando uma leitura dialética, neste próprio movimento de oposição, a verdade cons-truída por uma parte dependeu da verdade já construí-da historicamente pela outra, como ponto de referência para a refutação.

Ao descartarmos a compreensão dialética, negamos o diálogo entre o homem e o mundo, bem como contribuí-mos com o impedimento de uma das atitudes, que pode-mos considerar como um dos pilares da teoria sartreana: o assumir a responsabilidade por nossas escolhas.

Sendo a consciência sempre intencional (de e para al-guma coisa), todos os nossos atos são livres, solitários e a nós cabe responder por eles. A liberdade de nossas esco-lhas e consequentes ações nelas fundamentadas,

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[...] por mais alienada que seja[m], sempre transforma[m] o mundo. Isto porque o que caracteriza o homem é a sua transcendência, pois ele ‘sempre faz alguma coisa daquilo que fizeram dele’, mesmo que ele não se reconheça na sua ação. Ainda que alienados, somos sujeitos de nossa história. Essa transcendência, que faz o sujeito ir além daquilo que lhe é determinado pela materialidade, pela sociedade, é o que Sartre denomina de projeto [grifos da autora] (Schneider, 2002, p. 120).

Resumindo: as verdades são os projetos singulares/universais construídas no percurso histórico da humani-dade, através das relações dialéticas estabelecidas entre indivíduo/mundo, indivíduo/coletividade, subjetividade/objetividade. São criadas a partir da liberdade da ação individual que, ao se apropriar das diversas verdades ob-jetivas do mundo, escolhe assimila-las, sufocar-se nelas ou rejeita-las (Schneider, 2002).

Para compreender o projeto de Ser de uma pessoa, temos que considerar as condições reais que circundam sua existência concreta, situada e definida durante toda sua história, através de contextos objetivos que podem oferecer-lhe possibilidades e limitações. Por sua vez, os obstáculos e facilidades, também assim serão significa-dos de acordo com o projeto de Ser.

Sartre (1960/2002) propõe o método progressivo-re-gressivo para se realizar a compreensão do projeto de Ser de uma pessoa. Um método heurístico que permite, progressivamente, nos aproximar da história do sujei-to. Partindo de suas experiências, tomamos uma atitude compreensiva para perceber o sentido dado por ele a cada um de seus atos. Comparando as unidades de sentido en-tre estes, chegamos ao seu projeto fundamental.

Tal método se faz importante, já que:

[...] o homem deve ser encontrado inteiro em todas as suas manifestações. O modo de vida, os trajes, a postura política e moral, a fala, etc, remetem sempre ao projeto do indivíduo, que, como vimos, é fruto das condições materiais, sociais históricas em que ele está inscrito (objetivo) e da sua apropriação ativa por parte do sujeito (subjetivo). A compreensão da realidade humana passa, portanto, pelo movimento dialético de compreensão entre o objetivo e o subjetivo (Schneider, 2002, p. 121).

Diante o exposto, os diagnósticos psiquiátricos tradi-cionais recortam a existência do indivíduo. Sendo defini-dos a partir de alguns comportamentos que expressam a leitura da média abstraída de um coletivo, desconsidera a minoria excluída dessa média, bem como a singulari-dade no diálogo com o mesmo. Reduzir ao diagnóstico a compreensão do projeto de Ser, é desconsiderar a cons-trução dialética, histórica e social do sujeito. É restringir o processo existencial, tornando-o estanque. Mesmo que

o diagnóstico nos seja útil para entendermos alguns com-portamentos à luz da teoria, ele (diagnóstico) por si, nunca refletirá o sentido dado pelo sujeito à sua existência.

Buscarei a seguir, apresentar a biografia de Sol, uma vez que, segundo Schneider, as biografias possibilitam

[...] a compreensão rigorosa do ser dos seus bio-grafados, [...] devem expor um homem enquanto totalizações, e não como um conjunto fragmentário de comportamentos, emoções, desejos [...], colocam o sujeito concreto, através de um movimento de compreensão, no qual busca esclarecer as condições epocais, culturais, sociais, familiares, além das subje-tivas, psicológicas, que possibilitam a seu biografado chegar a ser quem ele foi e como chegou a sê-lo, não abrindo mão do movimento, constante da análise em-preendida, entre sujeito e a objetividade, movimento dialético este produtor do psíquico [grifos da autora] (Schneider, 2011, pp. 234-235).

Sendo assim, estruturada de acordo com o objetivo da Psicanálise Existencial sartreana, através da biogra-fia de Sol, buscarei mostrar “o nexo existente entre os diversos comportamentos, gostos, gestos, emoções, ra-ciocínio do sujeito concreto, ao extrair o significado que salta de cada um desses aspectos em direção a um fim” (Schneider, 2011, p. 233). Para tal feito, é necessário lan-çar mão do método comparativo ao buscar os nexos exis-tentes entre esses aspectos de um indivíduo em situação e com o método compreensivo ou sintético chegar “à in-tuição do psíquico, atingida por dentro” (Jaspers, 1979 apud Schneider, 2011, p. 234), e assim elucidar o Projeto fundamental que dá sentido ao conjunto.

No entanto, por uma questão didática, apresentarei a biografia, num primeiro momento, descrita “por fora” (ib-dem, p. 235), de maneira narrativa, para depois apresentá-la através de uma análise compreensiva da relação dialé-tica que Sol trava com a objetividade, tal como proposto por Sartre (1997) em sua Psicanálise Existencial.

apresentando (estaticamente) Sol

Sol é uma mulher de 35 anos, casada há quatro, com nível superior, sem filhos. Mostra investimento em sua aparência. É uma mulher cuidadosa com seu corpo, apa-rentando menos idade do que tem. Usa roupas e acessó-rios descontraídos que acompanham a moda. Trabalha em uma lanchonete como vendedora.

Filha do meio de uma família católica praticante, classe média alta. Os pais estão aposentados. Todos os irmãos, o marido e o pai possuem nível superior. O pai sempre supriu financeiramente as necessidades e desejos da família. Apóia a educação dos filhos em uma moral tradicional. Morou longe dos pais enquanto fez faculda-de e depois que se casou.

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1º momento: demarcando o fenômeno (o psicodiag-nóstico)

Neste instante, buscaremos delimitar o fenômeno de acordo com a sua atualidade, uma vez que, de acordo com Schneider (2011, p. 270), “no caso da clínica, a definição clara da sintomatologia e do quadro psicopatológico do paciente, ou seja, a elaboração do psicodiagnóstico [...] é que definirá os rumos da intervenção”.

na primeira Sessão

Esta ocorreu em dezembro de 2010. Sol relatou que há dois anos começou a ter pensamentos constantes de que poderia fazer mal às pessoas e de que poderia contami-nar os objetos. Após conversar com alguém, ou mesmo, somente ao olhá-las, se angustiava por pensar que poderia ter falado ou feito alguma coisa que lhe causasse algum mal. Diante este tipo de pensamento obsessivo, tirava a dúvida com marido ou, se possível com a própria pessoa, mas “não sossegava enquanto não perguntava a alguém sobre as consequências de suas ações”3.

Quanto aos pensamentos de possível contaminação, como trabalha lidando com comida, lavava constante-mente as mãos, abria a torneira com o braço e tocava na tampa do lixo somente com luvas “para não contaminar os objetos e a comida”, e assim poder prejudicar alguém. A preocupação obsessiva com o ter feito alguma coisa errada, também se dava, por exemplo, em ter colocado alguma coisa na comida que servia.

Além destes comportamentos, também pensava que poderia ter deixado alguma coisa ligada, acessa ou aber-ta em casa e no trabalho, fazendo diversas vezes o ritual de verificação.

Por isso, sua vida social estava muito pobre, tinha medo de sair porque “no dia seguinte fica pensando no mal que pode ter feito a alguém”. Alegou apresentar mui-to sono, dormindo quando “não tinha que realizar suas obrigações”. Neste momento mencionou que achava es-tar com Transtorno do Pânico, justificando seu suposto diagnóstico devido a sua ansiedade e ao medo de sair de casa.

Relatou que tinha uma coisa ruim dentro de si (co-locando a mão no peito), que “queria arrancar isso”, não sabendo definir o que era. Intuí que Sol estava falando da vivência da angústia, mas pensei também que, como nunca deve ter se permitido refletir sobre tal vivência, desconhecia do que se tratava.

Queixou-se que depois que casou o dinheiro ficou escasso, limitando suas possibilidades. Sente-se sozinha quando está em casa, pois está longe da família, o mari-do trabalha e estuda o dia todo.

3 Optei por intercalar o texto com falas da cliente, para melhor compreensão de suas vivências.

Devido aos comportamentos obsessivo-compulsivos, identificados como clássicos de quem apresenta TOC, segundo sua descrição dos mesmos e, principalmente porque percebi a dificuldade de escuta devido sua an-siedade, solicitei que procurasse um médico homeopata de minha confiança que, por ser flexível em sua atuação profissional, poderia diagnosticar a necessidade de inter-venção medicamentosa e o tipo (alopático ou homeopáti-co) e/ou de outro tipo de encaminhamento médico. Este, após consultar Sol, prescreveu Lexapro4, iniciando, em janeiro de 2011, com um comprimido ao dia.

em algumas Sessões Seguintes: Contando Sua His-tória...

A Infância

Ao solicitar-lhe para contar sua história, desde sua in-fância, Sol a inicia lembrando de uma fala de sua mãe:

“[...] ela disse que quando eu era bebê, chorava muito. Por não saberem o motivo, meus pais me levavam aos médicos e benzedeiras, mas nenhum conseguiu encontrar uma explicação. Eu não ficava com outra pessoa sem ser eles. Diante essa experiência, minha mãe dizia que Deus a livrasse de ter outro filho. Isso me faz sentir uma pessoa problemática para meus pais, como um patinho feio da família”.

Quando terminou a licença maternidade, a mãe re-tornou ao seu trabalho. O pai trabalhava durante o dia e fazia faculdade no período noturno, em uma cidade próxima, ficando Sol e seu irmão aos cuidados de uma empregada “que gostava muito. Era como uma segunda mãe, pois cuidava da gente e morava também conosco”. Nos finais de semana “adorava ir dormir na casa da em-pregada e dos meus avós paternos, mesmo sabendo que tinha a oportunidade de ficar com meus pais”.

Quando começou ir à escola, chorava muito. O pai tinha que ficar com ela esperando que entrasse. Disse não gostar muito de estudar e “não entender porque chorava”.

No que tange às brincadeiras, preferia brincar na rua, subir nas árvores, dançar “em cima da mesa”. Não gosta-va de brincar com bonecas, ou de qualquer brincadeira “monótona”. Preferia aquelas que lhe fizessem “sentir-se em liberdade. Nunca fui uma pessoa caseira, desde pe-quena adorava liberdade”. Gostava também de nadar, de andar de carrinho de rolimã. Brincava mais com seu

4 ESCITALOPRAM (antidepressivo da classe dos inibido-res de serotonina. Indicado para tratamento e prevenção de recaídas ou recorrência da depressão, TP, com ou sem agorafobia, Transtorno de Ansiedade Generaliza-da, Transtorno Obsessivo Compulsivo e Fobia social). Outros nomes comerciais: Cipralex e Exodus.

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irmão do que com a irmã. Considera que esta era prote-gida pelo pai. “Hoje dizem que sou muito ciumenta, mas não tive a proteção dele. Tudo que faço, para eles é erra-do, isso me frustra muito...”.

Com relação às tarefas que exigiam maior discipli-na: estudou piano até os seis anos, fez pintura em pano e estudou balé durante dois anos, pois “minha mãe era contra eu fazer balé, em função dos gastos que se tinha com as festividades no final do ano”.

Em suas relações de amizade, nunca foi de ter mui-tos amigos, preferindo brincar mais sozinha. Mencionou que em brincadeiras em grupos, sempre tinha um “líder que queria ser o melhor, isso me irritava muito! Eu era muito briguenta e tinha dificuldade em ceder. Dois bicu-dos não se beijam”. Os pais a comparavam com o irmão que tinha muitos amigos. Quando ia para festinhas em casa de amigos, sentia-se o “patinho feio”, pois ninguém a tirava para dançar.

Apesar de se perceber “mulecona” durante a infân-cia, mencionou a vaidade com sua aparência, desde pe-quena. Usava roupas de adulto, brincos grandes, gostava de ler revista de moda. Inspirava-se nas tias mais novas, desejando logo crescer para poder se vestir como adulto, sem as críticas da mãe, que não a deixava usar este tipo de vestimenta e acessórios por ser nova.

Nunca foi aluna exemplar, chegando a reprovar de sé-rie, mas seus pais “tinham noção de que não tinha condi-ção de ir prá frente. Sabiam que não gostava de estudar.” A mãe a castigava, não deixando fazer as coisas que gos-tava como ir ao clube e nadar.

A Juventude

Aos dez anos mudou-se para outra cidade. Para Sol tudo era novidade, considerando “uma época muito boa”. Aos 15 anos começou a sair à noite com amigos, tendo que voltar mais cedo que esses devido ao horário estabe-lecido pelos pais, uma vez que para eles “tudo tem o seu tempo”. Não entendia o real motivo do limite dado, por-que “nada de errado faria”.

Começou a sair com o irmão e seus amigos, e “se acha-va” sendo amiga dos amigos de seu irmão. Por vezes dizia que ia dormir na casa de uma amiga para estudar, mas saía para “as baladas”. Expressou de maneira saudosis-ta: “Que época boa que não volta mais!”.

A Adultez

Na época que fez o cursinho “só tinha o interesse em festar”. Mencionou que, de sua turma, ninguém passou no vestibular. Estava ansiosa para se mudar para a outra cidade onde faria mais um ano de cursinho e prestaria o vestibular novamente. Justifica por assim sair das vistas dos pais e ter sua liberdade.

Como seu intuito era sair com amigos, sem com-promissos sérios, começou a namorar somente aos 20 anos com um rapaz que a “fazia meio de boba”, pois como tinha que retornar cedo para casa, ele voltava “às baladas depois que me deixava em casa”. Aos sábados a preteria em função do jogo de futebol com amigos. Com a mãe do namorado tinha uma boa ligação, sen-do cúmplices por esta também não aceitar as atitu-des do filho e torcer pelo namoro. Terminaram quan-do Sol mudou-se para a cidade que faria o cursinho. Atualmente são amigos.

Na nova cidade estudava e festava, “uma nova expe-riência de vida, sem pai e mãe para encher o saco. Saía e não tinha hora para voltar”. Após um ano de faculda-de conheceu seu atual marido. Diz ter sido “amor à pri-meira vista” e sempre achou que seria com ele que iria se casar. “Sempre gostei dele”. Naquela época ficavam juntos esporadicamente, pois ele “nada queria comigo, só queria festar”.

Arrumou um namorado que “era meu oposto, não gos-tava de festar, era estudioso, bonzinho, meus pais o ama-vam”, mas Sol não. Sente que se acomodou no namoro, intuindo ser porque a família gostava dele.

Durante a faculdade “festava muito… curtia muito… Foram dois anos de festa, festa, festa, resultado: reprovei! Como estava namorando e tinha que estudar, dei uma parada com as festas”. No último ano da faculdade vol-tou a “festar”, mas o namorado não gostava, “ele tirava o telefone do gancho, me proibia de sair. Uma amiga que morava comigo falava que eu era doida...”. Terminou de-pois de um tempo que retornou à casa dos pais.

Namorou outro rapaz que os pais não aceitaram, “eu tinha que pagar tudo pra ele, emprestar-lhe dinheiro. Ele me fazia de tonta, apesar de gostar ainda dele. Acho que queria ajudá-lo”. Ele terminou com ela quando ar-rumou outra namorada. Com o tempo “fui enxergando quem ele era”.

Após se formar, o pai não quis que trabalhasse, mas que fizesse um estágio. Assim o fez e recebia uma mesada “gorda” do pai. Ficou um tempo sem namorar, até quando o seu antigo amor à primeira vista ligou. Conversaram pelo telefone por umas três vezes durante um mês e re-solveram se casar neste ínterim. “Meus pais sabiam que sempre gostei dele”, mas ficaram receosos, uma vez que para casar teria que se mudar para a cidade dele. O atu-al marido, na época ligou para os pais justificando suas reais intenções com o casamento. Os pais conversaram com os pais dele para se certificarem. Como seus pais nunca aceitaram que fossem morar junto, tiveram que se casar formalmente. Sol conheceu os sogros uma sema-na antes do casamento e o marido, os pais de Sol, cinco dias antes.

Mencionou nunca ter se arrependido dessa decisão, pois disse que sempre gostou dele. Os pais não acredita-vam que poderia dar certo. Para estes, Sol tinha tudo em casa e a mudança seria radical. Atualmente:

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“[...] meus pais amam meu marido. Minha mãe trata-va bem o namorado da minha irmã e passou a tratar da mesma maneira meu marido. Ela não tem meio termo, gosta ou não gosta. A maneira como ela trata as pessoas é o parâmetro para saber se gosta ou não. Ela não faz questão de agradar, mas quando gosta faz de tudo!”

Casou-se, gosta do marido, “ele é uma ótima pessoa”, dá o respaldo financeiro, mas não como os pais. Ele acre-dita que ela pode fazer várias coisas sozinha, sem depen-der dele. No início teve dificuldades porque não conse-guia trabalhar na sua área. Disse não ter nascido para fazer serviços domésticos. No 1º ano de casada fez cur-so de inglês, mas estava sem dinheiro. Não conseguindo serviço em sua área, foi trabalhar em uma franquia de comida. “O primeiro dia foi a morte. Tendo diploma su-perior, estava eu ali servindo as pessoas”.

Este foi seu primeiro trabalho depois de casada, em cujo ambiente de trabalho, sentia-se todo o momento con-trolada, por haver câmeras e qualquer suspeita de que os funcionários façam algo errado são chamados à atenção, correndo o risco de demissão.

Após alguns meses nessa empresa, Sol começa a de-senvolver os pensamentos obsessivos de que estava fa-zendo alguma coisa errada e de que poderia prejudicar alguém, bem como os comportamentos relacionados ao excesso de limpeza e verificação exagerada e repetitiva dos ambientes e de suas ações para com os outros.

Mencionou que a vida de casada sempre foi uma roti-na, mas tem que acompanhar o marido. Na adolescência, os pais bancavam tudo e agora tem que correr atrás.

Há dois meses, já em psicoterapia, Sol foi demitida desse emprego, pela armadilha de ter seguido instruções de sua chefia superior que foram contra as normas da em-presa. Tal atitude embasada no medo de colocar limites a tal instrução e ser demitida, não garantiu sua permanên-cia no emprego, desprotegendo-a, quando os superiores descobriram a transgressão das normas.

Ao comunicar seus pais que fora demitida, ainda “tive que ouvir de minha mãe a pergunta sobre o que eu tinha feito de errado e que estava com vergonha de mim!”. Ficou alguns dias desempregada, e conseguiu emprego em outra lanchonete onde se encontra trabalhando até o momento.

Podemos observar, através do sucinto relato da his-tória de Sol, que não há como não considerar que a mesma apresenta um quadro nosológico de TOC. No entanto, através deste quadro, Sol nos anuncia como lida com a contradição entre sua responsabilidade e o julgamento do outro, que a coloca em cheque. Através dos comportamentos obsessivo-compulsivos parece mostrar como vivencia a angustiante batalha entre as suas reais ações, como por exemplo, a de que não ter feito mal a alguém, ou mesmo ter apagado a luz e a dú-vida sobre estas.

Experienciando o TOC como se fosse duas pessoas numa só, uma ré e a outra o juiz, podemos chegar a um psicodiagnóstico que descreve uma pessoa, no momen-to, tendo a sua existência absorvida por este conflito, mas que busca ansiosamente dar fim nesta batalha, só que, por não ter apropriado seu projeto de Ser, não sabe a quem entregará o troféu de vencedor: se ao réu ou ao juiz. Portanto, o projeto terapêutico engendra o caminho para que ambos saiam de cena, dando lugar a uma sínte-se em que a avaliação de seus atos seja balizada a partir de seu próprio crivo e não alienada em projetos alheios, ou seja, que se torne “sujeito de seu ser” (Schneider, 2011, p. 271).

Destarte, até que tal intento seja alcançado, veremos a seguir, “as variáveis fundamentais na constituição dos impasses psicológicos [de Sol], compreendidos no hori-zonte da sua personalidade” (ibdem, p. 270), ou seja, como Sol se sabe, a partir de sua dinâmica psicológica constru-ída através do diálogo que trava com o mundo.

2º momento: elaboração da problemática – possibi-litando a Compreensão terapêutica

O homem sartreano sendo corpo/consciência (em-si-para-si) é um homem em relação: “entre consciên-cia e corpo, relação com o mundo que o cerca, relação com a exterioridade” (Schneider, 2011, p. 213). Como ser-no-mundo, sua intencionalidade está voltada sem-pre para o exterior. Assim, sua consciência estabelece relação com a materialidade. Nascemos num mundo já posto, que se nos apresenta com uma história dada e com condições materiais pré-existentes ao nosso nascimento.

Sol nasceu na metade da década de 70, no berço de uma família católica, com padrões rígidos de criação, os quais se confrontavam com um Zeitgeist5 de transição de valores culturais e econômicos. O Brasil, apesar de ainda estar sob a ditadura militar do então Presidente Ernesto Geisel, vivenciava o auge do movimento feminista, a eclo-são dos movimentos musicais de rock in roll, do início da era Dancing Days, com o surgimento das discotecas e do movimento punk. Na moda as vestimentas e adere-ços aparecem com muitas cores e brilhos. A calça boca de sino, sapato plataforma, saltos altos e finos com meia lurex, ou seja, a moda Psicodélica foi de encontro a tudo que era tradicional. Para sobreviver a esse movimento de contracultura, os padrões das famílias tradicionais ne-cessitavam enrijecer.

Quanto à condição financeira estável da família, po-deria ser beneficiada também pelo período de crescimen-to econômico que o Brasil passava. Sol então, ao nascer e durante parte de sua infância, se deparou com uma exterioridade que mostrava um contexto de abertura de-

5 Espírito da época.

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Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno Obsessivo Compulsivo

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mocrática, mas no familiar, em contraponto, ocorria um recrudescimento dos padrões de educação.

Como toda relação do homem é dialética (interioriza-ção do exterior e exteriorização do interior), Sol se apro-priou da segurança financeira de maneira conflitante: se por um lado tinha a segurança financeira oferecida pelo pai, por outro se sentia culpada por depender deste, posto que as possibilidades dadas para usufruir o que desejava eram também colocadas com cobranças.

No tocante às regras impostas em sua criação, não via sentido em algumas, inclusive a de ter que sair das fes-tas mais cedo que seus amigos. Sol se sentia culpada por poder fazer coisas erradas aos olhos dos pais, sem saber o fundamento deste prejulgamento.

O projeto dos pais com relação ao filho ideal foi ex-teriorizado por estes através de ações que Sol deveria desempenhar: estudar, fazer faculdade, estagiar após se formar ao invés de trabalhar, chegar mais cedo em casa, usar roupas adequadas para sua idade, ter amigos como seu irmão, namorar um rapaz com o perfil traçado pela família, enfim, tal projeto foi interiorizado por Sol como aquele que limitava sua espontaneidade, sendo assim, vivenciar suas escolhas sem julgamentos, somente lon-ge dos pais. Prazer e diversão somente nesta última situ-ação, porém, continuava financiada por eles. O prazer e as obrigações são entendidos por Sol de maneira dicotô-mica, sem haver um diálogo entre eles, somente na base financeira.

A relação com o corpo, outra condição constituti-va da existência, faz-se importante mencionar. O corpo não deve ser entendido de maneira cartesiana, separado da consciência. Ambos integram-se6, totalizando o Ser. É por meio do corpo que mediamos nossa relação com o mundo.

Schneider (2011) menciona que Van Den Berg (1981) sustenta duas maneiras de o sujeito relacionar-se com o corpo: o corpo como ser-para-o-outro e o corpo que sou (corpo ser-para-si). No primeiro, o corpo é visto de fora, é o corpo alienado ao ponto de vista dos outros, é o cor-po abstrato, e o segundo, o corpo concreto, aquele que vivencio enquanto espontaneidade por ser meu instru-mento no mundo e meta de minhas ações.

A maneira como Sol fala de seu corpo, mostra-nos interiorizá-lo a partir do olhar do outro. Sentia-se gordi-nha e feia na infância, tendo como fundamento a crença de que os meninos não gostavam dela. Atualmente cui-da de sua aparência, faz regime, pois ainda percebe seu corpo de maneira distorcida, sendo sempre mais avanta-jado do que é. No entanto, interessante compreender que em alguns comportamentos relacionados ao Toc, o corpo sujo é apropriado como o corpo ser-para-si.

A relação que travamos com a temporalidade tam-bém deve ser visada. Sabemos que o existencialismo compreende que os acontecimentos históricos são criados

6 Corpo/Consciência = Somos.

num movimento do futuro para o passado, condição da consciência intencional projetar-se no futuro, ascender o passado e realizar as escolhas no presente, sintetizan-do assim, passado, presente e futuro. No entanto, essa temporalização real, antropológica nem sempre é expe-rimentada desta maneira pelo sujeito. Este geralmente entende o passado como determinante de seu presente e futuro, tornando assim, uma temporalização aparente (Schneider, 2011).

Sol teve seu futuro praticamente delineado pela sua criação. Como deveria agir, ter e ser fora predefinido pe-los projetos dos pais, contudo, não a estimularam a arris-car e aprender, do seu jeito e no seu tempo, o como fazer. Aprendeu que devia ser responsável no que faz, mas o fu-turo tornou-se ameaçador, ansiógeno, quando deve criar saídas, haja vista que, para Sol, no passado estas eram criadas por outro. Diante o nada do vazio, paralisa-se, dorme, tem preguiça, e assim age para recusar o risco. Da mesma maneira ansiógena lida com o pensamento de ter feito algum mal aos outros ou ter deixado algo por fazer e que pode trazer algum dano, na verdade, não ao outro, mas a ela. No caso do Toc, precisa assegurar-se, através do outro, que seu futuro não está ameaçado, quando lhe pergunta se fez algo de errado.

Só podemos nos conhecer através do outro. Assim a criação do nosso Eu perpassa antes o olhar alheio. Na sua relação com o outro, Sol o percebe como seu juiz, seu inferno. Sendo o outro quem define os caminhos a serem trilhados no percurso das obrigações e compromissos, tornou-se dependente desses para não correr risco, mas, paradoxalmente, os outros também são os que limitam sua liberdade relacionada ao prazer e diversão. Estabelece então, uma relação conflituosa com os outros: estes são interiorizados como protetores-castradores e não como limitadores-possibilitadores.

De acordo com a maneira como trava a relação com o outro, a sua com o TOC se dá fundamentada através de um Eu dividido. Vivencia um estranhamento com re-lação aos seus pensamentos sobre fazer mal a alguém. Apesar de ter os pensamentos obsessivos, sabe que não fez e que não fará mal se não quiser. O mesmo ocorre com os comportamentos de verificação dos ambientes, de lavar as mãos e de questionar as pessoas se a fez al-gum mal. Tem a compulsão, faz, mas sabe que não há necessidade.

Tal vivência pode ocorrer porque ter conhecimen-to de algo não significa ter consciência reflexiva de. O Eu só surge diante a consciência reflexiva, uma vez que somente ela posiciona o Eu no mundo, sendo as-sim, podemos desvelar o projeto de Ser de Sol, através de suas ações, as quais não mostram uma consciência reflexiva do Eu que, por sua vez, de maneira irreflexi-va, se sabe sendo.

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desvelando o projeto de Ser: o eu alienado

Conforme podemos compreender a dinâmica psico-lógica de Sol, esta por se saber sendo impotente, inca-paz, limitada intelectualmente, medrosa, preguiçosa, feia, má, rejeitada, mas responsável: (1) projeta ser uma pessoa com segurança financeira, mas financiada pelo Outro (no caso atual, o marido); (2) por meio do traba-lho busca ser reconhecida pela sua honestidade e res-ponsabilidade, não suportando dúvidas sobre sua ido-neidade; (3) idealiza ser amada como uma boa filha. Pela culpa em omitir seus erros e fracassos dos pais, dá satisfações de sua vida para eles, o que ratifica seu sen-timento de rejeição quando eles a julgam e; (4) mantém o corpo sob excessivo cuidado (corpo abstrato) para ser bonita para o Outro. Mas, por estar magra, continua re-cebendo críticas.

Vemos aí um Projeto de Ser-para-o-outro, cujo Eu fra-cassado foi interiorizado pelo olhar do outro. Sem passar pelo seu senso crítico, a fim de poder escolher com mais reflexividade sobre o que criaram para ela, Sol aceitou e assentou este Eu. Mesmo que apresente em alguns de seus comportamentos uma tentativa de libertação deste, o faz com culpa, expondo-se e interiorizando as críticas, uma vez que a maneira como tenta se livrar deste fardo, não é de maneira transcendente, mas em oposição, apa-recendo para o outro como um confronto que também o ameaça.

Diante esta compreensão, o trabalho com Sol foi encaminhado para que a mesma pudesse apropriar-se desse Eu que se sabe sendo, construído no modo como estabeleceu relação com a realidade. Sem a consciên-cia reflexiva deste, impossível responsabilizar-se como também construtora do mesmo e assim poder redimen-sionar seu Ser.

Veremos a seguir como ocorreu este processo de re-dimensionamento até o momento.

Redimensionando o projeto de Ser

Reflexão Espontânea ou Cúmplice

Como coloca Schneider (2002, p. 168):

Um homem escolhe-se em uma dada estrutura de escolha; a escolha não é, portanto, gratuita, deter-minada unicamente por seu desejo de sujeito, mas é uma escolha a partir das possibilidades que se lhe apresentam e frente às quais ele não pode deixar de escolher.

A estrutura de escolha com que Sol se deparou du-rante sua infância, foi a de uma criança que não corres-pondeu às expectativas do perfil de filha já desenhado pelos seus pais antes mesmo dela nascer. De uma maneira irreflexiva, que posiciona as coisas e pessoas no mundo,

mas ainda não posicional do Eu (Sartre, 1965; Bertolino et al, 1998 citados por Schneider, 2002, p. 339), Sol re-flete que os pais criaram para ela o projeto de filha per-feita, mas paradoxalmente, para atingirem o projeto de serem pais perfeitos, uma vez que para serem pais bons, precisam ter filhos problemáticos. “Meus pais me deixa-ram dependente, impotentes, limitada ao traçarem meus caminhos, buscarem solucionar meus problemas, me ban-cando financeiramente.”

Colocou que sua educação foi direcionada para a obediência, o que gera passividade e infantilidade. Não a deixaram arriscar e assumir as consequências de suas escolhas, “até porque o que eu escolheria poderia ir con-tra os valores deles. Só que me criticam também por não arriscar. Parece não haver saída na relação com eles, ou sou do jeito que eles querem ou não tenho valor!”.

No tocante as suas relações amorosas, acredita que para seu pai nenhum homem seria tão bom para ela quan-to ele, mas que atualmente conseguem aceitar seu marido e ver que este é bom. Até aqui Sol posiciona o Outro no mundo, mas é necessário que realize uma reflexão críti-ca, posicionando seu Eu para si.

Reflexão Crítica

Intervindo durante o processo psicoterapêutico, de maneira a mostrar-lhe suas escolhas diante esse mundo que se deparou, até o momento, Sol conseguiu apropriar-se de algumas escolhas que faz, fundamentadas em seu Projeto de Ser, questionando-as e redimensionando-as, a saber: (1) no tocante às satisfações que dá aos seus pais sobre seus erros e fracassos, atualmente têm consciência de que é uma mulher adulta e casada, que não precisa dar-lhes essa obediência, mas que para isso, precisa ser independente financeiramente, não emprestando mais di-nheiro deles. “Meu pai não aceita que eu o pague, diz que estou com pouco dinheiro, mas assim eu crio uma dívida afetiva”; (2) quanto as suas relações com o outro, inclu-sive no trabalho, não permite mais que a hierarquia seja justificativa para tratarem-na mal. “Não é porque é meu superior que tem o direito de falar do jeito que fala. Que aponte meus erros, mas não precisa ser sem educação” e; (3) sobre o TOC, coloca que está melhorando. “Consigo não voltar atrás para verificar se está tudo desligado em casa. Se eu tenho a certeza que desliguei, saio, mesmo com o coração apertado. Estou duvidando menos do que faço”. Atualmente Sol toma um comprimido do Lexapro, três vezes na semana.

Em busca desta elucidação do Projeto de Ser, a psicoterapia encaminha-se com o propósito de ajudar Sol a conscientizar-se de que nossa existência não é determinada, mas sim construída. Os resultados da nossa relação com o mundo escrevem a nossa histó-ria, portanto, podemos também escrevê-la de maneira não alienada.

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um Ser em Construção: Considerações finais

Diante todo o exposto, acompanhamos, mesmo que de maneira breve, a história de uma mulher sufocada por um projeto de ser construído mesmo antes de sua existência.

A maneira dicotômica como interiorizou o mundo, oportunizou vivências contraditórias entre perfeição x imperfeição, certo x errado, dependência x independên-cia, maturidade x imaturidade, alienação x liberdade.

Filha de pais cujo projeto de filhos perfeitos é defini-do por aquele que não dá trabalho, mas orgulho, Sol fra-cassa desde seu nascimento, não se mostrando um bebê “bonzinho”. Ao chorar frequentemente, sem que o moti-vo fosse descoberto, nem pelos especialistas, começou a tirar a tranquilidade dos pais no sucesso de terem uma filha que correspondesse suas expectativas.

Frustrando o projeto inicial que fizeram para ela, opostamente, os pais interiorizaram a imagem da filha imperfeita. Quiçá, a mãe ao contar-lhe o episódio de sua história sobre seu choro, Sol tenha percebido a decepção em sua fala e o quanto dera trabalho para os pais e os deixara impotente. Perceber-se irreflexivamente, como uma criança problemática, por não fazer nada certo se-gundo os pais, fez sentir-se o patinho feio da família e não amada por eles.

Destarte, no decorrer de sua infância e adolescência, os comportamentos da filha problemática passam a ser foco de controle dos pais. Normas de conduta compõem a cartilha da boa educação de Sol e a culpa, o instrumento de controle e manipulação. Sufocada pelos limites im-postos à sua liberdade, Sol busca experienciá-la de ma-neira opositiva ao projeto dos pais. Mas nessa busca por ações orientadas somente pela liberdade ontológica, Sol não tinha consciência de que suas escolhas ratificavam o Ser diferente e problemático definido por eles. A cada ação diferente do que se esperava dela, um olhar que a julgava e punia pelo seu fracasso em ser um modelo a ser seguido. Foi através das repetições dos empreendimentos de ambos os lados, que a relação dependente entre Sol e seus pais se sintetizou.

A tese dos pais, que compreendia os seus padrões de conduta, foi um dos focos a ser combatido por Sol, mas ao buscar transcendê-la, o fazia negando o ser em situa-ção, não compreendendo que:

O homem é condenado à liberdade, numa perspectiva ontológica, pois não pode deixar de escolher; no sen-tido antropológico, contudo, ele nunca é inteiramente livre, pois como diz Sartre na Questão de Método, “a alienação está no ápice e na base”, quer dizer, o homem nunca será inteiramente desalienado, já que sua condi-ção de ser-com-os-outros o coloca sempre em poder dos demais [grifo da autora] (Schneider, 2002, p. 168).

Assim, ao direcionar a possibilidade da experiência livre somente aos contextos que compreendem diversão

e prazer, excluindo aqueles relacionados aos compromis-sos e obrigações, Sol paradoxalmente, enquanto festava, perdia a admiração dos pais, projeto também a ser con-quistado por ela. Pelo lado dos pais, que a viam incapaz de agir com responsabilidade e ter sucesso em seus em-preendimentos, cobriam financeiramente os prejuízos causados.

Mesmo tendo a imagem de Sol como uma pessoa ima-tura e incapaz, os pais, ao buscarem consertar financei-ramente suas ações inconsequentes, oportunizando a Sol e aos outros dois filhos as condições objetivas para que nada os faltassem, e indicando o melhor caminho a ser seguido, mostram o projeto de Ser pais a ser perseguido e mantido, circunscrito num projeto social.

Vemos até aqui a trama da história de Sol tecida pela sua e por várias outras mãos, bem como ajudava a escre-ver também a história dos pais, da família e da socieda-de, tal como coloca Schneider (2002, p. 120):

O homem faz a história, ao mesmo tempo em que é feito por ela. Eis o processo dialético que engendra a realidade sócio-cultural. No entanto, é preciso assinalar que a história não está em meu poder, ela me escapa.

Se por um lado tinha como ponto de referência os modelos impostos para se debater, por outro Sol não aprendera, nem foi ensinada a criar saídas alternativas. Padrões predefinidos e caminhos orientados ajudaram Sol a estabelecer seu ponto de referência no mundo, in-clusive seu Eu real fora baseado empiricamente na opo-sição do ideal imposto, e afetivamente na ausência do reconhecimento de sua capacidade. Um Eu paradoxal-mente construído através das faltas: dos impedimentos de se expressar como desejava, da incapacidade de obter sucesso, do afeto que envolve a admiração. Foi assim que Sol conhecia seu Eu: impotente, limitado, incapaz, fra-cassado, errado, acomodado, dependente dos pais, mas não admirado e não amado.

Com relação ao TOC, Sol o experiencia como um even-to ahistórico, singular, desconectado de uma possível construção com o social. Compreendendo como um even-to isolado, de sua única responsabilidade e que reforça seu projeto de Ser uma pessoa que faz coisas erradas, Sol busca em sua família de origem o apoio de sua cura.

Mais uma vez a família é acionada para proteger as ações de Sol, agora diante algo inusitado e desconheci-do, que os deixam impotentes, como sempre devem ter se sentido na criação desta. Como na época que chorava quando era bebê, a família procura ajuda de um especia-lista, no caso o psicoterapeuta.

Partindo da história de Sol, de seu projeto de Ser, o trabalho realizado em psicoterapia visa, de uma manei-ra geral, a ajudá-la a apropriar-se do projeto fundamental que criou para si, buscando altera-lo ou não, mas a partir de seu próprio crivo.

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Os caminhos percorridos para a conquista deste obje-tivo mais amplo envolvem alguns outros mais específicos, tais como: (1) a compreensão de quais valores embutidos no projeto dos pais, fundados numa forte moral religiosa, de uma família patriarcal com certo tom de preceitos ma-chistas, fazem sentido para ela, como aqueles que deseja descartar; (2) o reconhecimento da diferença entre as pre-ocupações e medos fundados em situações reais, objetivas e aquelas apoiadas em situações somente imaginárias e subjetivas; (3) a compreensão do nexo de suas ações que se enquadram no diagnóstico tradicional de TOC, com seu Projeto de ser; (4) a consciência de que precisará criar saídas alternativas para situações em sua vida, ao invés de esperá-las prontas, conhecendo seus valores como ponto de apoio para essas escolhas, e que isso também envolvem riscos, mas que mostrará através de ações mais maduras e protetoras de si, por estarem situadas na sín-tese de suas limitações e possibilidades, podendo assim responsabilizar-se mais facilmente por elas.

Observo que nos caminhos da psicoterapia que esta-mos construindo juntas, a liberdade que antes era vivida por Sol como se fosse errada, chegando a considerar-se “muito doida”, hoje é compreendida como uma “loucu-ra com responsabilidade”, uma vez que também em suas diversões, escolhia de maneira consciente não transgre-dir alguns fundamentos da moral que embasa os valores paternos, por concordar com estes.

Conseguiu também perceber, que o estranhamento que sentia com relação aos pensamentos obsessivos era o mesmo que sentia diante a falta de sentido de algumas regras impostas pelos pais, como, por exemplo, ter que chegar às 22h em casa, enquanto suas amigas poderiam continuar se divertindo, sabendo que ela não iria fazer nada que abonasse sua conduta, mas mesmo assim jul-gava-se errada, como já dito anteriormente.

Por fim, reconhece agora, que na vida há também li-mites e regras, obrigações e compromissos, e a maneira como deve lidar com elas requer sintetiza-las as suas pos-sibilidades. E assim, vamos construindo nossos encon-tros psicoterapêuticos.

Referências

Cahet, H.J.P. (2008). Sartre: aspectos de noção de consciência. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina.

Husserl, E. (1988). Elementos de uma elucidação fenomenológi-ca do conhecimento. In HUSSERL, E. Investigações lógicas: sexta investigação: elementos de uma elucidação fenome-nológica do conhecimento. São Paulo: Nova Cultural. (pu-blicado originalmente em 1901).

Sartre, J-P. (1997). O Ser e o Nada. Ensaios de ontologia feno-menológica. Rio de Janeiro: Vozes. (Publicado original-mente em 1943).

Sartre, J-P. (2002). Crítica da razão dialética. Rio de janeiro: DP&A. (Publicado originalmente em 1960).

Schneider, D. R. (2002). Novas Perspectivas para a Psicologia Clínica - um estudo a partir da obra “Saint Genet: comédien et martyr” de Jean-Paul Sartre. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Schneider, D. R. (2011). Sartre e a psicologia clínica. Edufsc: Florianópolis, SC.

Sylvia Mara Pires de Freitas - Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUC/RS). Especialista em Psicologia do Trabalho (CEUCEL/RJ). Formação em Psicologia Clínica na abordagem existencial (NPV/RJ). Docente dos cursos de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR) e da Universidade Paranaense (UNIPAR/PR). Endereço: Av. Colombo, 5.790 - Bloco 118 (DPI). Jardim Universitário. Maringá. Paraná. CEP 87.020-900. E-mail: [email protected]

Recebido em 03.07.11Aceito em 16.11.11

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Sobre o Conceito de Sensação

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SoBRe o ConCeito de SenSação1

José ortega y gasset

(1913)

Por ainda ser sumariamente escassa a produção na-cional [Espanha] de temas com sentido filosófico, estarei ocupando essa seção da Revista de Libros com trabalhos estrangeiros, com mais freqüência que em outras revis-tas. Dessa maneira, espera-se que o leitor possa, em torno de um ano, colocar essas notas como índice da situação em que se encontra a presente filosofia, pelo menos en-quanto afeta os problemas superiores e decisivos. A oca-sião é propícia. Assistimos um renascimento daquilo que Schopenhauer chamava de “necessidade metafísica” do homem. Para as pessoas educadas em pleno século XIX é incompreensível esse retornar novíssimo e vigoroso, por-que talvez só tenha sido no século X que a Europa chegou a uma mínima pressão filosófica dessa forma. Contudo, quiseras ou não, esse fenômeno se apresenta com carac-terísticas indubitáveis.

Deixando para uma outra ocasião o estudo desse fenô-meno que, em verdade, serviu de tema de uma das con-ferências populares dadas por mim em Ateneo, no ano 1912; hoje, limito-me a dar conta da parte crítica da tese de doutorado abaixo citada2.

O senhor Hoffmann foi discípulo de Edmund Husserl3, professor de Gotinga. Com isso fica dito qual o propósito geral de seu trabalho. A influência – cada vez maior – da “fenomenologia” sobre a psicologia tende a separar, de modo mais radical e salutar, a descrição da explicação.

Na psicologia atual e em Wundt mesmo, por exemplo, coexistem de forma confusa duas ciências muito dife-rentes: uma que trata de descrever e classificar os fenô-menos da consciência; e a outra, de construir de forma causal o mundo psíquico. A diferença de ambas é total, principalmente se sua diferenciação não for apenas uma questão formal. Os conceitos psicológicos primários são intransferíveis de uma ciência para outra; porém, quan-do se esquece isso, perde-se todo valor e precisão. O au-

1 Texto publicado originalmente nas séries de artigos da Revista de Libros (Madrid), no ano de 1913.

2 “Estudos sobre o conceito de sensação” (Untersuchungen über dem Empfindungsbegriff), por Heinrich Hoffmann, Archiv für die gesamte Psychologie, tomo XXVI, cadernos 1 e 2, 1913.

3 Grifos nossos (Nota do Editor).

tor em questão se ocupa especialmente de um desses conceitos: a sensação. Passa, então, a revisar certas defi-nições típicas da sensação como um elemento psíquico. Tais definições vêm de Ebbinghaus, de Fr. Hillebrand, de Wundt, etc.

A primeira definição encontrada é o que Hoffmann chamou de “sensação pura”. Segundo Ebbinghaus são sensações aqueles conteúdos da consciência “produzi-dos imediatamente na alma por excitações exteriores, sem intermediários específicos, em especial sem expe-riências; puramente à mercê da estrutura inata dos ór-gãos materiais de uma parte e, por outra, a maneira ori-ginal da alma reagir frente os impactos nervosos”. Em tal definição, tem-se a sensação como algo que, segundo ela mesma, não poderia estar na consciência real de um indivíduo adulto. Nessa consciência adulta todo o con-teúdo se apresenta fundido nas experiências (recorda-ção, imagens, etc.). Segundo essa concepção, a maioria de tais sensações “puras”, só poderá existir na consciên-cia do recém-nascido. Com essa observação, parece cla-ro que se trata de uma hipótese análoga aos átomos da física. Assim, a “sensação pura” constitui um objeto ide-al, construído por reflexão metódica, com o fim de fazer possível a explicação da gênese psíquica. Porém, longe de colocá-la presente na consciência real, por ser isso um problema inconcluso, ou seja, um x a determinar assinto-maticamente. Na acepção de Hoffmann, esse conceito de sensação é necessário para a psicologia genética, contudo carece de sentido para a psicologia descritiva (é curioso, não obstante, que o defensor mais extremo da psicologia puramente descritiva – Paul Natorp – nos beneficiou com um conceito parecido de sensação em sua “Introdução à Psicologia” de 1888. Eu espero que na nova edição, cujo segundo tomo ainda não apareceu, ele ofereça de certo modo uma correção).

Enquanto isso o conceito wundtiano de sensação, na opinião de Hoffmann, resume-se, como “estado simples, puramente intenso e qualitativo que pode segregar-se pela análise das diversas percepções sensíveis”. Desse modo, a sensação resulta em um elemento da consciên-cia real que por sua natureza elementar não se dá, claro, separado e por si mesmo; mas se dá na mera descrição

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da imediatez originária da consciência. Não é como as sensações do recém-nascido; conteúdo da consciência que se define por características completamente opos-tas aos possuídos pela nossa consciência atual, mas na mera redução dessa e já não sujeito à análise. A simpli-cidade ou irredutibilidade de uma análise maior cons-titui a sensação, segundo Wundt (se entende, deixando de lado todo o âmbito sentimental da consciência). Se o conceito de Ebbinghaus era genético, construtivo e hi-potético, o de Wundt satisfaz aos propósitos da psicolo-gia descritiva, mantendo-se na imanência do esponta-neamente dado.

Até aqui o estudo de Hoffmann não nos oferece nada de novo. No entanto, é digna a leitura de suas considera-ções porque servem, por exemplo, para chegar à escassez do pensamento de Wundt. À parte de certas dificuldades internas na concepção dos elementos psíquicos sustenta-das pelo famoso psicólogo – que segundo mostrarei em outro lugar, são maiores das que encontram Hoffmann –, é sabido que a exposição de Wundt é de uma pobre cla-reza e de grave imprecisão de fundo.

Hoffmann procede com um extremo empirismo, não pretendendo formar um conceito genético de sensação. Ao contrário, sustenta que para chegarmos ao conceito de sensação seria preciso estudar isoladamente cada classe de fenômenos sensíveis. Assim, postula que a definição e o método definidos por Wundt satisfazem nas ditas representações sonoras, mas não nas visuais. Naquelas, chegamos efetivamente aos conteúdos “relativamente independentes”, como Wundt propõe: o som simples, relativamente simples nada mais, mesmo que ainda se integrem à intensidade e qualidade. Certo de que esses dois componentes do som simples são absolutamente abstratos; ou dito de outro modo, que o fundamento de sua distinção pertence a um princípio abstrato toto co-elo, diferente daquele que chegamos de um acorde aos últimos sons simples.

A facilidade de abstrair o som “simples” dos comple-xos não se repete nas visuais. Ainda, não entendendo bem o que Wundt chama “sensações luminosas incolo-res”, pergunta-se: em que consiste a simplicidade de uma cor? O critério da impossível redução a elementos mais simples não é tão seguro aqui como era na ordem para-lela ao acústico. Fala-se de quatro cores fundamentais. Seriam essas as verdadeiras sensações visuais? Wundt afirma que na consciência imediata – e dessa só se fala descritivamente – as cores fundamentais não se dife-renciam das cores de transição. O laranja é tão simples como o vermelho ou o amarelo. Wundt se separa – mais ainda do que Hoffmann parece notar – de seu critério de simplicidade e o substitui pelo de “saturação”. As cores simples são os gesaettigten Farben [cores saturadas]. E, no entanto, indo do vermelho ao amarelo, percebemos nesse último um processo de combinação até seu triun-fo, de modo que as cores, entre o vermelho e o amarelo, nos pareçam compostas. Por isso é tão comum entre os

psicólogos a opinião contrária a Wundt, segundo a qual só o vermelho, o amarelo, o verde e o azul são simples. Isso mostra que o tema é muito discutível.

Pareceria muito mais discutível se tivéssemos espaço aqui para referirmos os trabalhos admiráveis de Jaensch e Katz, que tem influenciado Hoffmann, mesmo que só citemos o segundo. Em suma, Hoffmann, reconhece tam-bém que o conceito de “sensação simples” é útil para a psicologia. No entanto, não pôde se contentar com esses conceitos, porque “representam mais uma meta que um ponto de partida para a investigação e, consequentemen-te, tem que se começar a teoria da sensação com forma-ções sensíveis”, mais complexas “que sejam susceptíveis de precisa determinação”.

Com isso, encerra Hoffmann seu trabalho crítico, e inicia a sua descrição fenomenológica da percepção visu-al, segundo os graus de maior e menor complexidade para chegar a um novo termo, “intimidade sensível” – das sinn-liche Erlebnis – e detendo-se, sem dizer formalmente, até um ponto que está por trás da “sensação” procurada.

A tese a que nos referimos é um grato produto da no-víssima tendência que se tem tido no centro de Gotinga. Por isso vale a pena expor e discutir seu método e suas conclusões, reunindo frente aos comentários de certa amplitude, todo um grupo de obras recentes, nascidas do mesmo ou parecido espírito. Fica, pois, intacto o tema original de Hoffmann, que poderíamos intitular assim: o conceito fenomenológico da sensação.

Quando percebemos algo e, aqui o percebido é o que nos interessa: vivemos definitivamente o ato da percep-ção. Dito de outra maneira: no momento de uma percep-ção tal que nos interessa, também irá se constituir em nossa consciência outros atos – por exemplo, de querer, de sentir, e ainda, de pensar – ademais, o ato de perce-ber. Contudo, o foco de nossa atenção passa somente por este último, que se ergue no centro de nossa vida men-tal. Essa preferência da atenção por um ato determinado em cada instante é o que expressamos ao dizer: vivemos definitivamente esse ato.

Mas quando julgamos, quando dizemos, por exem-plo: “isso é branco”, nos encontramos com um ato com-plexo, cujos elementos são díspares. Há nele um puro ato de predicação pelo qual afirmamos a “brancura” do “isso”. Contudo esse ato de predicação é impossível sem outros atos em que nos é dado a “brancura” e o “isso” ao que nos referimos. Nesse exemplo que tomamos o “isso” significa um objeto visual presente, portanto, algo que só pode estar frente a nós, mediante um ato perceptivo. Já a “brancura”, ao contrário, só pode chegar aos nossos olhos por um ato perceptivo, mas também por um ato me-ramente imaginativo ou talvez por um ato de fantasia4. Percepção, imaginação e fantasia são três classes de atos que se reúnem em uma classe única, principalmente se as colocarmos em relação com o ato predicativo. Frente

4 Refiro-me ao tema, hoje muito discutido, da fantasia de cores em cegos de nascimento.

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a esses atos, temos aqueles mais comuns cuja função é “presentificar” simplesmente os objetos. Os chamaremos de atos “presentativos”. A predicação não é um ato pre-sentativo, porém supõe inevitavelmente esse ato. É, por-tanto, o juízo um ato de segundo grau que se funda em atos presentativos ou de primeiro grau. E ainda: o juízo é uma estrutura de atos em que há um ato fundado e atos básicos ou fundantes.

Agora bem, essa unidade de atos de diversos graus traz consigo uma relação funcional entre eles que se ma-nifestam, por um lado, enquanto atendo ao ato superior – nesse caso a predicação –, também vivo nele e só nele me dou conta, não dando conta dos outros atos concomi-tantes. No entanto, não há dúvidas que os realizo; não há duvidas de que constituem nesse instante minha consci-ência, como pode fazê-lo o ato superior. Do mesmo modo, quando a visão de algo me irrita dou-me conta do objeto como objeto de minha irritação e não como simples ob-jeto de minha visão.

Todo o juízo, dizíamos, se funda em atos presenta-tivos. Todavia, os atos presentativos são independentes e não se fundam em outros atos mais simples ainda? A questão, como podemos perceber, tende a dispor um con-junto íntegro de atos da consciência em uma escala que cada grau supõe o antecedente como fundamento. De um lado encontraríamos uma classe de situações da consci-ência em que é essencial a dualidade de elementos: atos definitivos ou aos que atendemos primariamente; e atos periféricos (periféricos a respeito ao que fixo a atenção) cujos atos àqueles se fundam. Do outro lado, aparece com toda agudeza o problema se há outro tipo de situação da consciência em que esta se coloque constituída por um só ato. O tipo anterior parecia mais essencial a essa, ou seja, a funcionalidade entre ato central e ato periférico. Dir-se-ia que a consciência consiste em uma dinâmica entre uma zona de atenção e uma zona de desatenção: como se para dar-se conta de algo fosse forçoso ter outro “algo” sem se dar conta disso.

Para resolver a dificuldade e fixar a essência dos atos mais simples sobre o qual se ergue o complexo edi-fício de nossa consciência integral, convém, pois, trazer a análise precisa do ato presentativo mais importante: a percepção. Mas, antes, duas palavras sobre o método dessa análise.

De propósito deixamos esse lugar para responder à pergunta: o que é fenomenologia? O que acabamos de tra-tar é um exemplo de fenomenologia, por isso será mais fácil edificarmos uma definição. A propósito: “todo juí-zo é um ato de segundo grau que se funda em atos pre-sentativos”, isso possui um valor legal. É uma lei. Mas de onde chega esse valor, lei? Para obtê-la não necessi-tamos investigar muitos atos reais de juízo, basta ape-nas como nos colocaremos diante de um. Não se trata, pois, de uma lei indutiva, de uma lei empírica; só vale para fatos observados ou, pelo menos, dentro de um es-paço de experiência limitada pelas condições de fato.

Por exemplo, limitando a existência de uma espécie de-terminada, o homem. Essa proposição vale para todo ser capaz de julgar. Não expressa uma conexão fática como expressa a lei da gravidade. Não nos diz sobre as condi-ções do espaço e tempo (que são fáticas) a que está sub-metida um juízo. Ao contrário, proclama uma necessi-dade absoluta: a de que é impossível ter um juízo sem um ato de presentificação, seja de quem julga, seja esse um homem ou Deus.

Tampouco se trata de uma lei dedutiva. Não parti-mos de um conceito de juízo, de um juízo geral para encontrar ele mesmo, como Kant diria, analiticamente, na exigência de fundar-se em outros atos. Na dedução, o caso particular não deriva conhecimento. Somos nós, que frente à indução, dizemos: não necessitamos de um ato real e presente de juízo, porque ele e só ele traz a lei... Não é do conceito de juízo que extraímos a lei, senão do juízo mesmo, de um juízo qualquer que verificamos ou fingimos verificar.

O caso não é tão estranho como pudera parecer à pri-meira vista. A visão de algo colorido já basta para estabe-lecer essa lei: “Não há cor sem extensão sobre aquilo que se estenda”. Agora bem, o conceito “cor” e o conceito “ex-tensão”, por si mesmos, não possibilitariam nunca essa lei. Por outro lado, essa lei não se apóia em minha visão enquanto essa seja um fato – como a lei da gravidade se apóia no fato bruto da situação dos astros no espaço. Não, a verdade é que eu não posso separar a cor da extensão: isso não depende de minha constituição fática, de meu real poder ou não poder. Não sou eu quem tem poder ou desejo poder: a lei expressa é que a cor não pode liber-tar-se da extensão.

Indução e dedução são métodos indiretos de obter proposições verdadeiras. Os termos expressam isso com claridade: a verdade é por esses métodos, induzida ou deduzida, nunca vista. Toda proposição, mediante o al-cance, funda sua certeza, eventualmente, nas leis for-mais que a lógica estabelece para a indução ou dedução no geral. De modo que, embora a proposição indutiva se refira aos objetos materiais – os ópticos, por exemplo –, sua verdade procede da subordinação ao observado em conceitos puramente lógicos. Como em Stuart Mill, que todas as verdades indutivas dependem da verdade do axioma (?) e proclama a uniformidade no curso da Natureza. O axioma cujo qual é muito mais um capri-cho de Stuart Mill, quanto mais uma louvável esperan-ça. Disso resulta que nossas afirmações sobre um obje-to físico não extraem seu valor cognoscível do que ele mesmo é, senão de uma complicação entre o que dele possuímos e o axioma geral da indução. O axioma, sem hesitar, perturba todas as afirmações sobre os objetos concretos.

O mesmo acontece com a dedução. Também aqui a verdade de uma proposição objetiva se obtém abandonan-do o objeto que se trata, apoiando-se em outras propo-sições que se consideram como verdades provadas. Isso

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não significa dizer que indução ou dedução não sejam métodos científicos suficientes: significa simplesmente dizer que não se pode com eles pretender a dignidade de métodos primários na obtenção da verdade.

A proposição: “estou vendo uma mesa com livros e papéis” não deriva sua verdade de nada que não seja o es-tado objetivo mesmo que se faz referência. A proposição se limita a descrever em expressões uma objetividade pa-tente, imediata, não inferida. O perigo da alucinação não põe em risco sua verdade, porque não falo de um objeto como existindo à parte e independente de minha visão, senão do que vejo, enquanto vejo.

Portanto, essa proposição supõe em mim a capaci-dade de dar-me conta dos estados objetivos individuais: essa capacidade se chama percepção, imaginação..., na experiência em geral ou intuição individual5. Por essa intuição é dado um objeto individual, ou seja, um objeto presente, frente a mim em um momento do tempo e em algum lugar do espaço. A mesa que falávamos é um ob-jeto individual, porque é um objeto que eu tenho agora, só agora; aqui e só aqui frente a mim.

Em todo objeto individual há, portanto, dois elemen-tos: o primeiro, o que o objeto é: a mesa, com sua forma e cor, etc.; e outro elemento é a observação de sua exis-tência, aqui e agora. O segundo elemento é o que faz de um objeto um fato. Como o tempo flui e as relações es-paciais variam isso leva o objeto ser fato junto a que o envolve externamente e, por isso, se diz que frente a nós só se dão coisas absolutamente fugazes; uma incessan-te mudança. Contudo, isso é um erro: em toda intuição individual pode-se abstrair algo desse elemento que o individualiza e converte em fato o objeto, ficando o que se abstrai isento das narrações têmporo-espaciais, inva-riável, eterno.

Meu ato de visão da mesa transcorre: a mesa mate-rial – motivo de minha visão – corrompe-se, mas o ob-jeto “mesa que eu vejo agora” é incorruptível e isento de vicissitudes. Talvez minha recordação dela seja obscura e confusa, mas a mesa que vi, tal e como a vi, constitui um objeto puro e idêntico a si mesmo. Não é um objeto individual, mas sim sua essência. A intuição individual, chamada na experiência, converte-se sempre em intuição essencial. Vejamos como:

Há uma “maneira natural” de efetuar os atos da cons-ciência, quaisquer que sejam esses atos. Essa maneira natural se caracteriza pelo valor de ação que têm es-ses atos. Assim, a “atitude natural” no ato de percepção consiste em aceitar, existindo diante de nós, uma coisa pertencente a um âmbito de coisas que consideramos efetivamente como reais e que chamamos de “mundo”. A atitude natural no juízo A é B, consiste em crermos resultantemente que existe um A que é B. Quando ama-mos, nossa consciência vive sem reservas no amor. Nessa eficácia dos atos, quando nossa consciência vive os atos

5 Edmund Husserl, em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica”.

em atitude natural e espontânea, chamamos o poder de execução daqueles.

Suponhamos agora que, ao ponto de ter efetuado em nossa consciência, por assim dizer, de boa fé e natural-mente, um ato de percepção se flexiona sobre si mesma e, em lugar de viver na contemplação do objeto sensível, se ocupa agora em contemplar sua percepção mesma. Essa, com todas suas conseqüências executivas, com toda sua afirmação de que algo real há em sua frente, ficará, por assim dizer, em suspensão. Sua efetividade não será de-finitiva, será só efetiva como “fenômeno”. Notemos que esta reflexão da consciência sobre seus atos: 1º) não os perturba, a percepção é o que está antes, só que agora – como diz Husserl de maneira esboçada – está posto “en-tre parênteses”; 2º) não se pretende explicá-los, senão que descrever o que meramente se vê, da mesma maneira que a percepção não explica o objeto, somente a presencia na perfeita passividade.

Pois bem, todos os atos de consciência e todos os ob-jetos desses atos podem ser “colocados entre parênteses”. O mundo “natural” inteiro, a ciência enquanto sistema de juízos efetuados de “maneira natural”, tudo fica reduzido a fenômeno. E não significa aqui fenômeno no que Kant sugere, por exemplo, com algo substancial por trás dele. Fenômeno é aqui simplesmente o caráter virtual que ad-quire tudo, quando seu valor efetivo natural passa a ser contemplado, em postura espetacular e descritiva, sem atribuir-lhe o caráter definitivo. Essa descrição pura é a Fenomenologia.

A Fenomenologia é descrição pura das essências como é a matemática. O tema cujas essencialidades a fenome-nologia descreve é tudo aquilo que constitui a consciên-cia6. Definição semelhante aproxima de uma maneira perigosa a fenomenologia da psicologia. E, efetivamente, as primeiras investigações de Husserl – ainda sem saber ter chegado à fórmula clara – padeceram de uma inter-pretação psicológica. Husserl mesmo em sua obra de 1900 – Investigações Lógicas – fala equivocadamente da feno-menologia como uma “psicologia descritiva”. Tratava-se de um novo território de problemas que o próprio fun-dador não podia ainda abarcar de uma só vez. Contudo, fica evidente que a nova ciência não é psicologia, se por psicologia entendermos, segundo o uso, uma ciência des-critiva empírica ou uma ciência metafísica.

A fenomenologia separa-se das formas usuais na psi-cologia, porque se ocupa exclusivamente das essências e não das existências. Em geral, a psicologia trata do fato da psique humana, como a astronomia do fato dos cor-pos celestes. A existência da consciência humana é um suposto constitucional sem a qual a psicologia careceria de sentido. Ao contrário, esse suposto é só necessário para que existam fenomenólogos, mas é indiferente para a constituição da fenomenologia. Cabe, com certeza, uma fenomenologia particular da consciência humana. É o que

6 Edmund Husserl, em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica”, § 75.

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com maior veemência nos interessará – mas, como será possível isso sem uma fenomenologia geral?

Do que foi dito até aqui, e se meditarmos um pouco, deixamos de estabelecer uma distância inequívoca entre fenomenologia e psicologia. Por isso, cabe fazer uma bre-ve observação que acentue sua diferença. A consciência humana – de que trata a psicologia – é, digamos com in-genuidade, um objeto bastante específico, ou seja, mais específico que aquela “razão sã” e aquele “entendimen-to são e natural” que se costumava falar em épocas mais felizes que a nossa. Porque a adição de “humana” traz uma prudente intenção limitativa, que falta, se falarmos simplesmente “consciência”. Temos, pois, adiante dois elementos heterogêneos que aspiram formar unidade de uma coisa: consciência-humana.

Com efeito, por consciência entendemos aquela ins-tância definitiva que de uma ou outra maneira constitui o ser dos objetos. Se nosso interesse ao falar de “consci-ência humana”, como acontece em toda linhagem de po-sitivismo, consiste em limitar estritamente a qualidade de ser e não-ser, reduzindo-a às perfeitas relatividades, necessitamos pelo menos que o objeto limitado – todos aqueles que envolvemos para mediarmos – não seja um ser relativo e de qualidade limitada. De maneira que o relativismo e antropologismo mais extremo exijam um sentido do termo consciência ilimitado e absoluto– pro-va da contradição íntima em que aqueles vivem –, den-tro do qual se constituirá, como objeto entre nós, o objeto “consciência humana”. Esse sentido é o que tem o termo consciência na expressão “consciência de”: “consciência de” branco, da figura, da existência, etc.

Quando Descartes supôs que todas nossas predica-ções sobre as coisas padecem de erro; ainda, quando se coloca entre parênteses toda objetivação transcenden-tal, toda afirmação ou negação de algo como realidade, adverte-se que nem por isso tem-se concluído o âmbito íntegro do ser. Que anuladas pela dúvida todas as nossas proposições transcendentais, continuam possuindo uma constância, um ser absoluto tomadas como meras cogita-tiones. Na cogitatione, na consciência, chegam todos os objetos de uma vida absoluta. O ser real, o ser transcen-dente poderá ser de outro modo que como eu penso que ele é, mas o que eu penso é tal e como eu penso, seu ser consiste precisa e exclusivamente no ser pensado. Assim, o real tem dois lados: o que dele aparece na consciência, o quê se manifesta e, ademais, aquilo que não se mani-festa. Assim, um corpo físico é essencialmente uma du-alidade, porque não pode manifestar-se; se aparece em três dimensões, somente em uma série e sucessivas co-gitationes (que nesse caso chamaremos percepções) par-ciais – agora de um lado, depois do outros, etc. No en-tanto, como tem profundidade, tem um interior que vai se manifestando em séries de percepções até o infinito; de sorte que, o que do corpo físico é como realidade in-tegral, nunca obter-se-á por completo a evidência, por ser fenômeno e consciência. E é por isso que a física nunca

converter-se-á em um ciência pura e exata. Ou seja, um triângulo é puramente o que pensamos que ele é; o que é como consciência.

Na fenomenologia, a consciência é o plano da objeti-vidade primária em que tudo esgota seu ser no aparecer (phainómenon), mas não como um fato têmporo-espacial e nem como realidade de uma função biológica ou psico-física ligada a uma espécie, mas sim, como “consciência de”. Assim, para concluir essa brevíssima introdução do que entendemos por fenomenologia, citemos um exem-plo, seguindo a concepção de Husserl.

O brilho metálico é uma evidente peculiaridade lu-minosa que percebemos envolvendo um objeto de prata. Um físico estudará o porquê as combinações não paten-tes, não-manifestas, produzem esse fenômeno. O psicó-logo estudará por quais mecanismos psicofisiológicos chegamos a essa percepção. O físico, assim, busca num lado do fenômeno “brilho metálico” a constituição da coisa material que dele se manifesta. O psicólogo busca a gênese desse fenômeno na realidade da psique indivi-dual. Ambos partem do fenômeno, porém, o abandonam pelos objetos reais, isto é, objetos científicos, produtos de uma operação racional construída. No caso, o fato está em entendermos sobre o que é o “brilho metálico” mes-mo; ou de outro modo, que classes de cores e em que dis-posição, etc., temos que vê-los, para que vejamos “brilho metálico”. Em suma, convém fixar a essência dele, do que vejo enquanto, e só enquanto vejo. Parece coisa ób-via e supérflua? Então, ensaie uma definição para esse fenômeno e verá como esta tarefa é extremamente peno-sa. Provavelmente não se tem dado uma descrição satis-fatória de coisa tão trivial. Se a tivéssemos à mão, pos-suiríamos a definição da “consciência de” brilho metá-lico, a qual valeria a pena ao humano, sobretudo, para o infra-humano e sobre-humano. Todo sujeito, divino ou mundano, para quem o brilho existe, perceberá da mes-ma maneira o essencial.

Como vemos, a fenomenologia goza de uma aborda-gem invejável, digna de prestígio histórico, sem arreba-tar novidade. Todo clássico idealismo – Platão, Descartes, Leibniz, Kant – partiram de tal princípio fenomenológico. Os objetos são, antes que reais ou irreais, objetos, ou seja, presenças imediatas frente à consciência. O que faz a fe-nomenologia ser inédita consiste em interromper o mé-todo científico no plano do imediato e patente enquan-to tal do vivido. O erro a ser evitado radica que, sendo a pura consciência o plano das vivências7– a objetividade

7 Edmund Husserl em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica”, § 75. Aproveito essa ocasião para pedir auxílio em uma questão terminológica aos que se interessam pela filosofia espanhola se, como creio, filosofia espanhola significar só a filosofia explicada em vocábulos e que sejam para os espanhóis plenamente significativos. O caso que agora me refiro trata de um curioso problema que hoje tem conquistado atenção de toda a filoso-fia alemã e, contudo, faz poucos anos – que não chegam a cinqüenta – que tivemos pensadores alemães que buscaram ou compuseram uma palavra nova que vou expressar. Essa palavra, Erlebnis, foi in-troduzida, segundo penso, por Dilthey. Depois de dar muitos rodeios

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primária e envolvente –, quer circunscrever-se dentro de uma classe parcial de objetos como sendo a realidade. A realidade é “consciência de” a realidade; mal pode, por sua vez, ser a consciência uma realidade. Bem, isso por-que a psicologia considera a “consciência humana” como uma realidade que nasceu em um dia determinado e em um ponto do espaço sobre o feixe do real. Porém, sem esquecer que não é o que tem na consciência, mas o que tem de humana quem faz daquela unidade um tema de estudo realista. A mecânica é uma parte da pura consci-ência, cuja verdade e não-verdade, juntamente com seus juízos, raciocínios, etc., é completamente alheia a toda a determinação tempo-espacial. Como poderá ser um pro-blema para uma psicologia realista? Não o é, com efeito, nem poderia sê-lo; tal equivaleria a estudar a influência da gravitação nas leis do xadrez. O que se pode estudar na psicologia é: por que o corpo da mecânica ideal, a “consciência de” a mecânica se atualiza no corpo vivo de um inglês em tal data exata. Não, pois, a consciência mesma, mas a entrada e saída dos conteúdos da consci-ência em um corpo ou, o que me é indiferente em uma alma, em uma realidade, é tema da psicologia explicati-va. Para a fenomenologia fica o campo literalmente ili-mitado das vivências.

Terminando aqui esta breve informação, voltemos à questão da memória em Hoffmann. Os “graus da sensi-bilidade visual” são os temas principais de Hoffmann. O seu propósito consiste em delimitar as distintas formas de “consciência de” uma coisa – entendendo por coisa o que vulgarmente se entende – o que constitui a percep-ção real. Ou de outro modo: quais são os elementos que se dão ante um sujeito para que este perceba uma coisa. Os elementos que se buscam não têm de entender-se ge-neticamente, senão descritivamente.

É certo que esse propósito fica reduzido à mais mo-desta proporção. Hoffmann limita-se a perseguir o que um sentido – a visão – aporta à percepção. Ele propôs, antes de tudo, chegar a um conceito claro do último ele-mento perceptivo: a sensação. Veremos como fica esse último empenho.

durante anos, esperando esbarrar em algum vocábulo já existente em nossa língua e suficientemente apto para transcrever aquela, tenho constantemente abandonado e passado a buscar uma nova. Trata-se do que se segue em frases como: “viver a vida”, “viver as coisas”, que adquire no verbo “viver” um curioso sentido. Sem deixar seu valor declarante tomar uma forma transitiva, significando aquele gênero de relação imediata em que entra ou pode entrar o sujeito com certas objetividades. Pois bem, como chamar cada atualização desta relação? Eu não encontro outra palavra que “vivência”. Tudo aquilo que chega com tal imediatez a meu eu, que entra formando parte dele, é uma vivência. Como o corpo físico é uma unidade de átomos, assim também o eu ou corpo cônscio é uma unidade de vivências. Como toda palavra nova, reconheço que esta pode soar mal. No entanto, ela já existe em composições como convivência, sobrevivência, etc. e outras análogas. Estou certo que o dicionário acadêmico não traz essas formas compostas, o que me faz temer se será um pouco exótica. Solicito, pois, aos filólogos, que se interes-sem por essa consulta. Por enquanto não se encontra outro termo melhor, assim continuarei usando “vivência” como correspondente a Erlebnis.

Antes de qualquer avanço, Hoffmann distingue entre o que chama “coisa” o físico e o que pensamos no cotidia-no. A “coisa” do físico é um composto de átomos, por defi-nição, imperceptíveis, dotada de qualidades, que em rigor também são imperceptíveis. Algo, portanto, indisponível para a percepção; um ente só racionalmente abstrato. As chamadas “qualidades secundárias” são atribuídas pela física, não às coisas; mas sim seu influxo mecânico sobre nossos órgãos do sentido. Ao contrário disso: “quando na vida ordinária falamos de coisas, entendemos algo corpó-reo que completa o espaço (o aparente, não o geométrico), que tem essa ou aquela situação frente às outras coisas, que em seu interior, assim como nas diversas partes de sua superfície possui tal cor; a que atribuímos certa re-sistência contra a pressão; um certo grau de dureza, de polimento ou aspereza, etc..” A física parte dessas proprie-dades, arrebatando umas, adicionando outras, chegando a formar o que Hoffmann chamou de “coisa atômica”, em oposição a “coisa sensível”. Essa “coisa sensível” é o conte-údo da percepção plena. Essa coisa existente agora entre nós no espaço em que percebemos, de tal e qual forma, com um interior e um exterior.

Aqui se impõe uma nova distinção analítica. É in-dubitável que no ato de percepção plena percebemos as coisas como corpos, isto é, como cheias, não constituídas por meras superfícies. E, contudo, em cada momento, os sentidos manifestam só superfícies. De modo que a per-cepção já nos surge como síntese de duas formas de cons-ciência distintas: aquela em que nos dá a coisa superficial e aquela em que pensamos o interior da coisa. Hoffmann abandona o problema de como isso que chamamos o in-terior das coisas se apresenta frente a nós e limita a ques-tão às propriedades superficiais da coisa. Como, por ou-tra parte, refere-se só à percepção visual, designando o correlato8 dessa como “coisa real visual”.

Um exemplo disso está em qualquer objeto alheio, remoto a nosso tato. Um corpo cúbico colocado a alguns metros de distância nos oferece três de suas superfícies, de forma que não coincide nunca com a que atribuímos à coisa real cubo. Variando nossa orientação e distância a respeito dele, muda-se a forma, o tamanho, a cor, etc.; contudo, nós sempre percebemos como cubo. A “coisa real visual” consiste, assim, em uma série de visões so-bre a coisa com certa continuidade que nos representa a permanência de um idêntico objeto. E, é essencial para que todos entendam o que é coisa real, que essa série de visões, de experiências, seja literalmente infinita. Não podemos esgotar os pontos de vista das quais cabe ver a coisa que, segundo Hoffmann, Kant chamaria de uma idéia, pois se trata de um conceito limite.

8 Todo ato de consciência é referência a um objeto por meio do “in-tencional” do ato. O correlato do ato não é o objeto – por exemplo, o sol de que falo –, senão aquele “objeto imanente”, aquele “sentido” pelo qual penso, referindo-se ao sol. O correlato da percepção é o percebido, não o objeto transcendente a mim. Essa distinção, acaso difícil, não pode ser aqui explanada.

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Se subtrairmos o que na percepção declaramos como presente – o que em verdade não está – teremos uma sé-rie de visões efetivas que não nos dará adequadamente a coisa real, mas sim, o que a toda hora estamos tomando como coisa real. Se eu dou uma volta inteira ao redor de uma cadeira, uma série contínua de imagens se desen-volve em mim, chegando a formar um círculo fechado. Posso chamar isso de coisa real? É certo que não. Essa série concluída não é mais que uma mínima parte do que posso apreender sobre o objeto. Se, a partir da dis-tância que mantive ao girar em torno da cadeira não se mostraram os veios, a aspereza, etc., da madeira, essas propriedades podem aparecer se me aproximar. A nova distância me permitirá obter uma nova série concluída. Que privilégio pode-se atribuir a uma dessas séries sobre as outras pretendendo ser ela a real?

Essas coisas obtidas são, portanto, uma série concluída de visões, algo que parece adequar-se ao que chamamos realidade, mas que não é. Hoffmann chama essa série con-cluída de “coisas visuais” (Sehding), seguindo a termino-logia de Jean Hering, em oposição às reais. Com respeito a essas, aquelas são verdadeiramente presentes na visão. Tudo o que não seja “coisa visível” da “coisa real”, pertence ao que podemos chamar de fator ideal da percepção.

Assim por exemplo: o tamanho. Um tamanho deter-minado é propriedade que atribuímos muito caracteristi-camente a cada coisa. Não falo do tamanho métrico, que seria o da “coisa atômica”, mas do tamanho aparente que geralmente atribuímos a um objeto. Agora bem, as árvores do final de uma rua têm menor “tamanho visual” que as primeiras mais próximas. Um copo é grande se estiver a um metro de distância; menor se estiver a alguns metros. Por outro lado, o “tamanho visual” varia segundo os indi-víduos. Hoffmann fala que para quem está na lua cheia no zênite, ao diâmetro rígido pode-se atribuir meio metro.

Qual é, então, o tamanho da “coisa real”. Entre os vá-rios que vimos, tomamos um e fazemos dele o tamanho. Hoffmann chama esse tamanho de “tamanho natural”. Cada coisa tem “uma zona de distância” na qual nos pa-rece mais ela mesma. O tamanho que nessa zona de dis-tância se oferece é elevado à norma. Não se pode marcar uma determinação geral a respeito de qual seria essa zona. Só cabe dizer que os limites dela estariam entre a dis-tância mais próxima que permite tomar a visão integral dos objetos e suas partes e a mais distante que conserva o tamanho que nessa mais próxima apresentava.

Uma curiosa complicação vem ao encontro. As par-tes de uma casa – um tijolo, por exemplo – não são vistas por mim em seu “tamanho natural” quando vejo a casa inteira em seu “tamanho natural”. Nos objetos de mag-nitude considerável, o tamanho natural não é uma sim-ples soma de tamanhos naturais de suas partes. É possí-vel, sem dúvida, reunir uma parte sobre a outra em seu tamanho natural e obter assim um tamanho do todo que seja a soma. Nesse exemplo da casa, isso seria um produto construtivo e não o tamanho visual do objeto.

Prossegue Hoffmann fazendo observações interes-santes sobre o gênero de dependência entre as variações de tamanho visual e as variações das imagens da retina. Ao meu entender, essa consideração não interessa ao pro-blema fenomenológico, prosseguindo o tema memória de Hoffmann que trago nesse extrato. Só para referir sobre isso, quando ele fala da sensação, reproduzo suas con-clusões. Ao afastar-se uma coisa da pupila, diminui-se o tamanho natural da coisa visual em menor grau que o tamanho métrico das imagens na retina. Por conseguin-te, não há correspondência estrita, há relativa interde-pendência entre a base fisiológica e a imagem. Assim, cabe que, tendo o mesmo tamanho a imagem na retina, o tamanho visual varia. Tome-se uma pena de escrever: coloque-a a 30 ou 40 centímetros de distância e apare-cerá em seu tamanho natural. Conservado-a na mesma distância, coloque de fundo a janela e acomode a visão ao molde desta. A pena aparecerá, então, bem maior.

Ficam, então, outros constituintes fenomenológicos da “coisa visual” ainda mais importantes: a figura e a cor9.

Nota Biográfica José ortega y Gasset (1883-1955) foi um filósofo espanhol, que atuou como ativista político e jornalista. Formou-se na Universidade Central de Madri em 1904, seguindo para a Alemanha, período caracterizado pela primeira etapa de sua filosofia. Nesse período recebe a influência da escola de Marburg e da Fenomenologia de Edmund Husserl. Já insatisfeito com o neokantismo, o encontro com a fenomenologia de Husserl foi um “feliz sucesso”. Em 1923, fundou a Revista de Occidente, revista que ficou responsável por publicar, traduzir e comentar grandes autores do pensamento filosófico. Durante a ditadura espanhola, exila-se na Argentina, contribuindo também para a difusão da Fenomenologia na América Latina. Regressa à Espanha em 1948, porém, logo em 1955, falece acometido de um câncer. Autor prolífico, discorreu sobre temas diversos, entre filosofia, história, política, arte, dentre outros. De sua vasta obra, destacam-se: Investigaciones Psicológicas (curso de 1915–1916, mas publicado somente em 1982); El tema de nuestro tiempo (1923); ¿Qué es filosofía? (1928–29, curso publicado postumamente em 1957); Kant (1929-31); ¿Qué es conocimiento? (publicado em 1984, refere-se a três cursos entre 1929, 1930 e 1931, que tinham como títulos, respectivamente: “Vida como ejecución (El ser ejecutivo)”, “Sobre la realidad radical” e “¿Qué es la vida?”); La rebelión de las masas (1929); Misión de la Universidad (1930); Ensimismamiento y alteración. Meditación de la técnica (1939). Suas obras completas foram publicadas em Madrid (Editorial Alianza/ Revista de Occidente), em doze volumes, entre 1946-1983. Recentemente, o Editorial Taurus (junto com Santillana Ediciones Generales) e a Fundación José Ortega y Gasset, reeditaram suas obras completas em dez volumes (2004-2010).

Tradução: Prof. Dr. Tommy Akira Goto(Universidade Federal de Uberlândia)

Revisão Técnica: Prof. Dr. Adriano Holanda(Universidade Federal do Paraná)

9 No final desse artigo se dizia: “Continuará”, porém não teve conti-nuação (Nota do Tradutor).

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A Ambiguidade na Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty (2007)

227 Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): 227-228, jul-dez, 2011

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Título: A Ambiguidade na Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty

Autor: Leandro Neves Cardim

Instituição: Universidade de São Paulo (USP)

Programa: Programa de Pós-Graduação em Filosofia (Doutorado)

Banca: Franklin Leopoldo e Silva (Orientador) Débora Cristina Morato Pinto (UFSCar) Eduardo Brandão (USP) Luiz Damon Moutinho (UFPR) Márcio Suzuki (USP)

Defesa: 14 de junho de 2007

Resumo: Este trabalho retoma de alguns tópicos da Fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty. O rastreamento da ambigüidade fecunda da percepção (inerência vital e intenção racional) permite a avaliação precisa dos limites da primeira fase desta filosofia. Ela retoma os métodos clássicos de investigação – explicativo e reflexivo – em uma espécie de oscilação ritmada do interior destes dois pólos. Ao fazer isto, o filósofo se inscreve no interior da tradição que ele procura criticar, herdando, assim, os seus pressupostos dicotômicos permanecendo, portanto, no interior de uma filosofia da consciência que estabelece uma correlação estrita entre o sujeito e o objeto. Na verdade, a prometida relação do interior termina por se revelar uma espécie de justaposição. Mas, uma vez advertidos pelo próprio filósofo de que o livro em questão não é uma psicologia, e sim ontologia, vale a pena retomar alguns tópicos que nos ajudem a vislumbrar aquilo que desde 1945 permanecia válido em relação ao ser: a percepção nos inicia em um estudo de algo que está aquém da relação de conhecimento. São precisamente estes pontos que tentamos matizar com o intuito de retificar minimamente a ótica da filosofia da consciência e chamar a atenção para uma espécie de pensamento que nos ensina certas formulações que em princípio poderiam ser entendidas como simplesmente abstratas, mas que, desde que as aproximemos das experiências concretas, na verdade, não o são. Em outras palavras, as descrições empreendidas por Merleau-Ponty devem ser retomadas e recolocadas no horizonte de uma investigação ontológica que se preocupe com a verdadeira situação do homem, mas também com o sentido que elas guardam para um leitor atual já prevenido da excessiva centralidade do sujeito ou da consciência que predomina na Fenomenologia da percepção.

Palavras-chave: Percepção, Ambigüidade, Fenomenologia, Ontologia, Merleau-Ponty.

Abstract: The present work considers some topics of Maurice Merleau-Ponty’s Phenomenology of perception. The search for the fecund ambiguity of perception (vital inherence and rational intention) contributes to the precise evaluation of the limits of the first moment of that philosophy. It resumes the classical methods of investigation – explicative and reflexive – in a sort of rhythmic oscillation inside those two poles. Doing that, the philosopher turns to be part of the tradition he was to criticize, retaking the dichotomous assumptions of it. Thus, he continues to be inside of a philosophy of consciousness which establishes a strict correlation between subject and object. Actually, the so-called interior relation turns to be a sort of juxtaposition. However, once we are prevented by the author that the book considered is not a work of psychology, but rather an ontology one, it is worth reconsidering some topics that help us understand what since 1945 has been valid to the being: perception takes us

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Leandro N. Cardim

228 Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): 227-228, jul-dez, 2011

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to something that is before the relation of knowledge. That are the points we wanted to consider aiming to correct the view of the philosophy of consciousness and to draw attention to a sort of thinking which inform us of some formulations which at first could be taken merely as abstract ones, but in fact they are not, as long as we get close to concrete experiences. That is to say that the descriptions carried on by Merleau-Ponty must be reconsidered and replaced in an ontological investigation which is concerned with the actual situation of man, but also with sense for a present reader who is aware of the excessive centrality of the subject or the consciousness in the Phenomenology of perception.

Keywords: Perception; Ambiguity; Phenomenology; Ontology; Merleau-Ponty.

Texto Completo: http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2007_doc/doc_leandroCardim_07.pdf

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A Clínica da Urgência Psicológica: Contribuições da Abordagem Centrada na Pessoa e da Teoria do Caos (2003)

229 Revista da Abordagem Gestáltica – XVII(2): 229-231, jul-dez, 2011

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Título: A Clínica da Urgência Psicológica: Contribuições da Abordagem Centrada na Pessoa e da Teoria do Caos

Autor(a): Márcia Alves Tassinari

Instituição: Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Programa: Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Doutorado)

Banca: Élida Sigelmann (Orientadora - UFRJ) Rogério Christiano Buys (Centro de Psicologia da Pessoa) Ana Maria Lopez Calvo Feijoo (UERJ) Vera Engler Cury (PUC-Campinas) Henriette Tognetti Penha Morato (USP)

Defesa: 19 de Dezembro de 2003

Resumo: Este estudo é um desdobramento das questões suscitadas na dissertação de mestrado em relação à fertilidade e potencialidade dos atendimentos em Plantão Psicológico, propondo uma clínica da urgência psicológica fundamentada na Abordagem Centrada na Pessoa e nos novos paradigmas da ciência, especialmente na Teoria do Caos. A inspiração básica surgiu a partir da reflexão em relação aos ruídos no processo psicoterápico, isto é, em relação ao alto índice de absenteísmo e de abandono precoce (até a terceira sessão), entendendo-se essas interferências, de início, como descontinuidade do processo de mudança psicológica. O presente trabalho envolve quatro movimentos. Inicialmente, apresenta-se a nova modalidade de atenção psicológica, através do surgimento, desenvolvimento e aplicação em diferentes contextos do Serviço de Plantão Psicológico. No sentido de buscar as dimensões significativas que permeiam esses recentes trabalhos, entrevistaram-se quatro plantonistas que explicitaram suas principais vivências e aprendizagens significativas em cinco contextos: institucional para adolescentes, jurídico, institucional militar, escolar e clínico. Esses depoimentos foram literalizados e analisados qualitativamente, através de uma das modalidades de análise fenomenológica, objetivando-se esboçar um fio condutor processual. O segundo movimento oferece a fundamentação teórica utilizada nos atendimentos em Plantão Psicológico, a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), através de sua contextualização, evolução, desenvolvimento e inserção no cenário brasileiro. Os principais conceitos que norteiam as atividades da ACP são contemplados com ênfase no postulado central, a tendência Atualizante/Formativa e na condição da consideração positiva incondicional, consideradas balizadores essenciais no acolhimento da urgência psicológica, no momento exato da necessidade. A questão da promoção da saúde é incluída como referencial potente na compreensão do sofrimento humano. Em função da incompletude do paradigma mecanicista e da necessidade de fundamentar a importância do momento inicial do processo de mudança psicológica, introduz-se o terceiro movimento, apresentando-se as principais idéias dos novos paradigmas da ciência. Priorizam-se as propostas da Teoria do Caos em sua intenção de trabalhar com fenômenos complexos que apresentam dependência em relação às condições iniciais. Utilizam-se as ênfases desse paradigma emergente como potente metáfora para compreender de que maneira esse momento inicial pode ser significativo a longo prazo, trazendo alterações de perspectivas, muitas vezes deflagradas em uma única consulta psicológica. O caráter de vanguarda da ACP é explicitado, mostrando-se que ela já estava inserida nesse novo paradigma, especialmente a partir da ampliação da tendência Atualizante para Tendência Formativa, proposta

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Márcia A. Tassinari

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por Carl Rogers no final da década de 70. Outras reflexões a respeito da utilização da Teoria do Caos e da Complexidade em Psicologia são também referendadas. A parte central compõe o quarto movimento, apresentando uma clínica da urgência psicológica como sendo a intenção básica dos atendimentos em Plantão Psicológico. Para tal, são apresentadas outras modalidades de atenção psicológica a curto prazo, com as diferentes denominações e fundamentações teóricas que ocupam-se também de receber pessoas em crise, em momentos de emergência ou urgência. A expressão urgência psicológica foi escolhida para minimizar o viés psicopatologizante, orientando essa clínica para a promoção da saúde em qualquer circunstância. Nesse movimento apresentam-se pesquisas sobre os resultados das psicoterapias de curta e longa duração, explicitando as controvérsias, limitações e possibilidades das mesmas, o que convida a repensar em outras modalidades de atendimento psicológico para além do consultório. A título de conclusão, são esboçadas s principais reflexões que este estudo estimulou, especialmente em relação a inserção da Psicologia nas instituições e comunidades, bem como sugestões para a formação do psicólogo como agente social de mudança.

Palavras-chave:

Abstract: This study unfolds the questions aroused within the master dissertation regarding the fertility and potentiality experienced at the Psychological Emergency Attendance, aiming for its theoretical foundation in the Person-Centered Approach as well as in the new science paradigms, especially Chaos Theory. The basic inspiration comes from consideration on psychotherapy noises, which are high levels of dropouts, absenteeism and psychotherapy interruption (up to the third session). It is understood that these interferences break the psychological change process. This thesis encompasses four movements. It begins with the new psychological attention through the Psychological Emergency Attendance’s start point, development and different contexts applications. Trying to grasp the meaningful dimensions that permeate these recent works, four professionals were interviewed. They expressed their meaningful inner experiences and learning within five contexts: adolescents’ institutional, juridical, military’s institutional, school and clinic. Their interviews were edited and received qualitative treatment through one kind of phenomenological analyses aiming to draw a process line thread. The second movement offers an overview of the Person-Centered Approach (PCA), the theoretical foundation frame of reference, as well as its contextualization, evolution, development and insertion in the Brazilian scenario. The main PCA concepts that inspires all of its applications are presented with a special emphasis on the Actualizing/Formative Tendency and the unconditional positive regard condition, regarded as the core frame in the psychological urgency welcoming. The health promotion issue is included as a powerful reference to understand the human suffering. Due to the mechanicist paradigm insufficiency and also from the urgency to deepen the understanding of the psychological change initial moment, the study unfolds the third movement, presenting the new sciences paradigms main ideas. Here it is stressed the Chaos Theory proposals in its intention to deal with complex phenomena which present dependence on their initials conditions. The emergent paradigm main notions are displayed as potent metaphors to understand how the initial moment can be meaningful in the long term, which may account for perspectives changes even during only one psychological session. The PCA vanguard characteristic is justified specially from the Actualizing extended to the Formative Tendency conception, proposed by the late Carl Rogers during the 70’s. Different proposals using Chaos Theory and Complexity Thought in Psychology are also referred to. The central part of this project constitutes its fourth movement, introducing a psychological urgency clinic as the Psychological Emergency Attendance main goal. To achieve that, it is presented many psychological treatments features with their different names and theoretical bases, since they are also utilized with people under crisis, emergency and urgency complaints. The expression psychological urgency was purposely

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A Clínica da Urgência Psicológica: Contribuições da Abordagem Centrada na Pessoa e da Teoria do Caos (2003)

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chosen to minimize the psychopathological bias, guiding this clinic to the health promotion under any circumstances. Here it is also presented research on long and brief psychotherapy outcome, making explicit their controversies, limitation and possibilities, which is an invitation to address new psychological attendance modalities, beyond the private practice office. As a tentative conclusion from this study, a couple of reflections are drawn, specially regarding the Psychology insertion in institutions and communities, as well as suggestions to the professional training of Psychologists as social change agents.

Keywords:

Texto Completo: http://teses.ufrj.br/IP_D/MarciaAlvesTassinari.pdf http://www.encontroacp.psc.br/teses.htm

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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica

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noRmaS de puBliCação da ReviSta da aBoRdagem geStáltiCa

A REVISTA DA ABoRDAGEM GESTÁlTICA, edita-da pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT), foi criada com o objetivo de ser um veículo de publicação preferencialmente da Abordagem Gestáltica, bem como daquelas abordagens que se fundamentam em bases teórico-científicas e filosó-ficas dentro das perspectivas humanistas e existenciais, além das pautadas na Fenomenologia. As suas diretrizes são definidas pela Editoria e pelo Conselho Editorial, dos quais participam psicólogos, filósofos e profissionais das áreas da saúde e educação.

Assim, sua linha editorial procura privilegiar refle-xões – numa perspectiva multiprofissional e interdisci-plinar – em torno dos seguintes temas: a) Gestalt-terapia e Abordagem Gestáltica; b) Psicologia Humanista e Existencial; c) Psicologias e Psicoterapias de orientação Fenomenológica e Existencial; d) Fenomenologia pura e aplicada; e) Pesquisa Qualitativa e Fenomenológica.

Serão aceitos para apreciação artigos centrados na pesquisa e na produção do conhecimento relativos às abordagens citadas, que remetam à reflexão crítica da atuação do psicólogo ou de outros profissionais que as utilizam no seu exercício profissional. Poderão ser arti-gos teóricos ou empíricos, que envolvam temáticas rela-cionadas à saúde, educação, humanidades, filosofia ou ciências sócio-antropológicas, refletindo assim a pers-pectiva holística da abordagem gestáltica.

1. informações gerais

Os manuscritos serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial para realização de parecer técnico (em número mínimo de dois pareceres por proposta, ou mais, quando necessário). A editoria da revista lançará mão (caso necessário) de especialistas convidados – na qualidade de consultores ad hoc – que poderão sugerir modificações antes de sua publicação.

A editoração da Revista da Abordagem Gestáltica as-segura o anonimato dos autores e dos consultores durante o processo de avaliação. Serão consideradas a atualidade e a relevância do tema, bem como a originalidade, a con-sistência científica e o atendimento às normas éticas.

Os trabalhos deverão ser originais, relacionados à psicologia, filosofia, educação, ciências da saúde e só-cio-antropológicas, e se enquadrarem nas categorias que se seguem:

Relato de pesquisa – relato de investigação concluída ou em andamento, com uso de dados empíricos, meto-

dologia, resultados e discussão dos dados. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.

Estudo teórico – análise de fatos e idéias publicados so-bre um determinado tema. Busca achados controvertidos para crítica e apresenta sua própria interpretação das in-formações. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.

Relato de experiência – estudo de caso, contendo análise de implicações conceituais ou descrição de proce-dimentos ou estratégias de intervenção, incluindo evidên-cia metodologicamente apropriada de avaliação de eficá-cia, de interesse para a atuação de psicólogos em diferen-tes áreas. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.

Estudo monográfico – apresenta trabalho desenvolvi-do em atividade acadêmica pelo autor, como especializa-ção, mestrado ou doutorado. Limitado a 10 laudas.

Ensaio – interpretação original de algum tema que contribua criticamente para o aprofundamento do conhe-cimento. Limitado a 5 laudas.

Resenha – análise de obra recentemente publicada (no máximo há dois anos). Limitada a 5 laudas.

Resenha (textos clássicos) – análise de obra conside-rada relevante para a abordagem, publicada há mais de dez anos. Limitada a 5 laudas.

Ressonância – comentários e/ou réplicas de publi-cações de números anteriores deste periódico. Limitada a 5 laudas.

Perfil – breve biografia de pessoa que tenha contri-buído para o desenvolvimento da abordagem gestáltica, humanista, existencial ou fenomenológica. Limitado a 5 laudas.

Notícias – registro de fatos ou eventos relacionados à comunidade gestáltica. Limitada a 3 laudas.

Resumo de tese e dissertação – conforme apre-sentado na tese/dissertação defendida. Limitado a uma lauda.

2. instruções para publicação

Os manuscritos submetidos à publicação devem ser inéditos e destinarem-se exclusivamente a esta revista, não sendo permitida a sua apresentação simultânea em outro periódico. Todos os trabalhos serão submetidos a uma avaliação “cega”, por – no mínimo – dois pareceris-tas, pares especialistas na temática proposta.

Os manuscritos deverão ser enviados via e-mail ([email protected]), conforme especificações disponíveis no site da revista (www.revistagestalt.com.br). Deverá ser encaminhado também um mini-currículo contendo as se-guintes informações: nome completo do(s) autor(es), afi-

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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica

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liação institucional, títulos e/ou cargos atuais, endereço eletrônico e endereço para correspondência.

Não serão admitidos acréscimos ou alterações após o envio dos manuscritos para o Conselho Editorial, salvo os sugeridos por este.

As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exa-tidão e adequação das Referências Bibliográficas são de exclusiva responsabilidade dos autores.

A publicação dos trabalhos dependerá da observân-cia das normas da Revista da Abordagem Gestáltica e da apreciação do Conselho Editorial, que dispõe de ple-na autoridade para decidir sobre a conveniência da sua aceitação, podendo, inclusive, apresentar sugestões aos autores para as alterações necessárias.

Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os autores deverão apresentar no corpo do trabalho uma de-claração de que foi obtido o consentimento dos sujeitos por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) e/ou da instituição em que o trabalho foi realizado (Comissão de Ética em Pesquisa). Trabalhos sem o cum-primento de tais exigências não serão publicados.

Os autores serão notificados sobre a aceitação ou a re-cusa de seus artigos, os quais, mesmo quando não forem aproveitados, não serão devolvidos.

3. formas de apresentação dos manuscritos

A Revista da Abordagem Gestáltica adota normas de publicação baseadas no Publication Manual of the American Psychological Association (APA) – 5ª edição, 2001.

Os manuscritos deverão ser preferencialmente redi-gidos em português. A critério do Conselho Editorial, também serão aceitos manuscritos redigidos em inglês, francês ou espanhol.

Os trabalhos deverão ser digitados em Programa Word for Windows, em letra Times New Roman, tama-nho 12, espaçamento interlinear de 1,5 e margens de 2,5 cm, em papel formato A4, perfazendo o total máxi-mo de laudas, de acordo com o tipo de publicação dese-jada (ver Informações gerais), observadas as seguintes especificações:

a) Cabeçalho - é recomendado que o título do artigo seja escrito em até doze palavras, refletindo as principais questões de que trata o manuscrito. O título deverá ser redigido em caixa alta, fonte 14, centralizado e em ne-grito. A seguir, devem vir, em itálico, centralizados e em fonte 12, os títulos em inglês e espanhol.

b) Os nomes completos dos autores deverão apa-recer abaixo do título, em fonte 12, letra versalete, com alinhamento à direita, indicando, após as Referências Bibliográficas, em nota explicativa, a titulação dos auto-res, local de atividade e e-mail (se houver).

c) Epígrafe - deverá ser apresentada em letra normal, em espaçamento interlinear simples, fonte 10, com ali-

nhamento à direita. O nome do autor da epígrafe deverá aparecer em itálico, seguido da referência da obra.

d) Resumo e Palavras-chave - deverão ser redigidos em português, inglês e espanhol, em parágrafo único, espaçamento interlinear simples, fonte 10, com até 200 palavras. As palavras-chave (descritores), de três a cinco termos significativos, deverão remeter ao conteúdo fun-damental do trabalho. Para a sua determinação, consultar a lista de Descritores em Ciências da Saúde - elaborada pela Bireme e/ou Medical subject heading – comprehen-sive medline. Todas as palavras deverão ser escritas com iniciais maiúsculas e separadas por ponto e vírgula. Incluir também descritores em inglês (keywords) e espa-nhol (Palabras-clave).

e) Estrutura do manuscrito - os trabalhos referen-tes a pesquisas e relatos de experiência deverão conter introdução, objetivos, metodologia, resultados e conclu-são. O trabalho deverá ser redigido em linguagem clara e objetiva. As palavras estrangeiras e os grifos do autor deverão vir em itálico.

f) Adotar a seguinte padronização de palavras - Gestalt-terapia ou Gestalt-terapia, gestalt-terapeu-ta, Abordagem Gestáltica, Psicologia da Gestalt ou Gestalt-Psychologie. Verificar excesso de espaço entre as palavras.

g) Subtítulos - deverão ser colocados sempre no ali-nhamento da margem esquerda do manuscrito, em ne-grito, apenas com as letras iniciais de cada palavra em maiúsculas.

h) Ilustrações - figuras, quadros, tabelas, desenhos e gráficos deverão ser indicados em números arábicos, com legenda em letras maiúsculas, título em minúscu-las, sem grifo.

i) Nomenclaturas e Abreviaturas - usar somente as oficiais. O uso de abreviaturas e de siglas específicas ao conteúdo do manuscrito deverá ser feito com sua indica-ção entre parênteses na primeira vez em que aparecem no manuscrito, precedida da forma por extenso.

j) Notas de rodapé - deverão ser numeradas em or-dem crescente e restritas ao mínimo indispensável.

l) Citações - deverão ser feitas de acordo com as nor-mas da APA (5ª edição, 2001). Em caso de transcrição in-tegral de um texto com número inferior a quarenta pala-vras, a citação deverá ser incorporada ao texto entre aspas duplas, em itálico, com indicação, após o sobrenome do autor e a data, da(s) página(s) de onde foi retirado. Uma citação literal com quarenta ou mais palavras deverá ser destacada em bloco próprio, começando em nova linha, sem aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo ali-nhado com a primeira linha do parágrafo normal. O ta-manho da fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear 1,5, como no restante do manuscrito. A citação destacada deve ser formatada de modo a deixar uma linha acima e outra abaixo da mesma

m) Referências Bibliográficas - denominação a ser utilizada. Não use Bibliografia. O subtítulo Referências

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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica

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Bibliográficas deverá estar alinhado à esquerda. As refe-rências deverão seguir normas da APA (5ª edição, 2001). A fonte deverá ser formatada em tamanho 12, espaçamen-to interlinear 1,5, sempre em ordem alfabética Deixe um espaço extra entre uma citação e a próxima. Utilize o re-cuo “deslocamento”. Verificar se todas as citações feitas no corpo do manuscrito e nas notas de rodapé aparecem nas Referências Bibliográficas e se o ano da citação no corpo do manuscrito confere com o indicado na lista final.

n) Anexos - usados somente quando indispensáveis à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo de páginas (serão computadas como parte do manuscri-to) e localizados após Referências Bibliográficas.

4. tipos comuns de citação no manuscrito

Citação de artigo de autoria múltipla

a) dois autoresO sobrenome dos autores é explicitado em todas as

citações, usando “e” ou “&” conforme a seguir: “O método proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método foi inicialmente proposto para o estudo da visão (Siqueland & Delucia, 1969)”

b) de três a cinco autoresO sobrenome de todos os autores é explicitado na pri-

meira citação: “Spielberger, Gorsuch e Lushene (1994) verificaram que”. Da segunda citação em diante, só o so-brenome do primeiro autor é explicitado, seguido de “et al.” e o ano: “Spielberger et al. (1994) verificaram que”. Se houver uma terceira citação no mesmo parágrafo, omita o ano: “Spielberg et al. verificaram”

Caso as Referências e a forma abreviada produzam aparente identidade de dois trabalhos em que os co-auto-res diferem, esses são explicitados até que a ambigüidade seja eliminada. Os trabalhos de Hayes, S. C., Brownstein, A. J., Haas, J. R. & Greenway, D. E. (1986) e Hayes, S. C., Brownstein, A. J., Zettle, R. D., Rosenfarb, I. & Korn, Z. (1986) são assim citados: “Hayes, Brownstein, Haas et al. (1986) e Hayes, Brownstein, Zettle et al. (1986).

Na seção de Referências Bibliográficas, os nomes de todos os autores devem ser relacionados.

c) de seis ou mais autoresDesde a primeira citação, só o sobrenome do primei-

ro autor é mencionado, seguido de “et al.”, exceto se esse formato gerar ambiguidade, caso em que a mesma solução indicada no item anterior deve ser utilizada: “Rodrigues et al. (1988).”

Mais uma vez, na seção de Referências Bibliográficas todos os nomes são relacionados.

Citações de trabalho discutido em uma fonte secun-dária

Caso se utilize como fonte um trabalho discutido em outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exem-plo, um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá ser usada a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por Shore, 1982) acrescenta que estes estudantes...”

Na seção de Referências Bibliográficas, informar ape-nas a fonte secundária (no caso Shore, 1982), com o for-mato apropriado.

Citações de obras antigas reeditadas

a) Quando a data do trabalho é desconhecida ou mui-to antiga, citar o nome do autor seguido de “sem data”: “Piaget (sem data) mostrou que...” ou (Piaget, sem data).

b) Em obra cuja data original é desconhecida, mas a data do trabalho lido é conhecida, citar o nome do au-tor seguido de “tradução” ou “versão” e data da tradução ou da versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou (Aristóteles, versão 1931).

c) Quando a data original e a consultada são diferen-tes, mas conhecidas, citar autor, data do original e data da versão consultada: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)” ou (Pavlov, 1904/1980).

Citação de comunicação pessoal

Este tipo de citação deve ser evitada, por não ofere-cer informação recuperável por meios convencionais. Se inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na se-ção de Referências Bibliográficas, com a indicação de “comunicação pessoal”, seguida de dia, mês e ano. Ex.: “C. M. Zannon (comunicação pessoal, 30 de outubro de 1994).”

5. Seção de Referências Bibliográficas

Organize por ordem alfabética dos sobrenomes dos autores. Em casos de referência a múltiplos estudos do mesmo autor, organize pela data de publicação, em ordem cronológica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recen-te. Referências com o mesmo primeiro autor, mas com di-ferentes segundos ou terceiros autores, devem ser organi-zadas por ordem alfabética dos segundos ou terceiros au-tores (ou quartos ou quintos...). Os exemplos abaixo auxi-liam na organização do manuscrito, mas certamente não esgotam as possibilidades de citação. Utilize o Publication Manual of the American Psychological Association (2001, 5ª edição) para suprir possíveis lacunas.

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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica

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Exemplos de tipos comuns de referência

Relatório técnico

Birney, A. J. & Hall, M. M. (1981). Early identification of chil-dren with written language disabilities (relatório n. 81-1502). Washington, DC: National Education Association.

Trabalho apresentado em congresso, mas não publicado

Haidt, J., Dias, M. G. & Koller, S. (1991, fevereiro). Disgust, disre-spect and culture: moral judgement of victimless violations in the USA and Brazil. Trabalho apresentado em Reunião Anual (Annual Meeting) da Society for Cross-Cultural Research, Isla Verde, Puerto Rico.

Trabalho apresentado em congresso com resumo publicado em publicação seriada regular

Tratar como publicação em periódico, acrescen-tando logo após o título a indicação de que se trata de resumo.

Silva, A. A. & Engelmann, A. (1988). Teste de eficácia de um curso para melhorar a capacidade de julgamentos corre-tos de expressões faciais de emoções [Resumo]. Ciência e Cultura, 40 (7, Suplemento), 927.

Trabalho apresentado em congresso com resumo publicado em número especial

Tratar como publicação em livro, informando sobre o evento de acordo com as informações disponíveis em capa.

Todorov, J. C., Souza, D. G. & Bori, C. M. (1992). Escolha e deci-são: A teoria da maximização momentânea [Resumo]. Em Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de co-municações científicas, XXII Reunião Anual de Psicologia (p. 66). Ribeirão Preto: SBP.

Teses ou dissertações não-publicadas

Costa, L. (1989). A família descasada: interação, competên-cia e estilo. Estudo de caso. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília.

Livros

a) primeira edição:

Féres-Carneiro, T. (1983). Família: diagnóstico e terapia. Rio de Janeiro: Zahar.

b) obra reeditada:

Franco, F. de M. (1946). Tratado de educação física dos meninos. Rio de Janeiro: Agir (originalmente publicado em 1790).

Vasconcelos, L. A. (1983). Brincando com histórias infantis: uma contribuição da Análise do Comportamento para o de-senvolvimento de crianças e jovens (2ª ed.). Santo André: ESETec.

Capítulo de livro

Blough, D. S. & Blough, P. (1977). Animal psychophysics. Em W. K. Honig & J. E. Staddon (Orgs.), Handbook of operant behav-ior (p. 514-539). Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall.

Livro traduzido em língua portuguesa

Se a tradução em língua portuguesa de um trabalho em outra língua é usada como fonte, citar a tradução em por-tuguês e indicar ano de publicação do trabalho original.

Salvador, C. C. (1994). Aprendizagem escolar e construção de co-nhecimento. (E. O. Dihel, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas (Trabalho original publicado em 1990).

No texto, citar o ano da publicação original e o ano da tradução: (Salvador, 1990/1994).

Artigo em periódico científico

Informar volume do periódico, em seguida, o número entre parêntesis, sobretudo quando a paginação é reini-ciada a cada número.

Doise, W. (2003). Human rights: common meaning and differ-ences in positioning. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 19(3), 201-210.

Obra no prelo

Não deverão ser indicados ano, volume ou número de páginas até que o artigo esteja publicado. Respeitada a ordem de nomes, é a ultima referência do autor.

Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos sobre a sexualidade do lesado medular. Revista Brasileira de Sexualidade Humana.

Autoria institucional

American Psychiatric Association (1988). DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3a ed. revisada). Washington, DC: Autor.

Artigos consultados na mídia eletrônica

Sanches, M. & Jorge, M.R. (2004). Transtorno Afetivo Bipolar: Um enfoque transcultural, Revista Brasileira de Psiquiat r ia [on l ine]. Vol. 26, supl.3, p. 54-56. Acesso em 05 de julho de 2006, em http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462004000700013&lng=pt&nrm=iso.

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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica

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6. direitos autorais

Artigos publicados na Revista da Abordagem Gestál-tica

Os direitos autorais dos artigos publicados pertencem à Revista da Abordagem Gestáltica. A reprodução total dos artigos dessa revista em outras publicações, ou para quaisquer outros fins, está condicionada à autorização escrita do Editor da Revista da Abordagem Gestáltica. Pessoas interessadas em reproduzir parcialmente os ar-tigos por ela publicados (partes do texto que excederem 500 palavras, tabelas, figuras e outras ilustrações) deve-rão obter permissão escrita dos autores.

Reprodução parcial de outras publicações

Manuscritos submetidos à apreciação que contiverem partes de texto extraídas de outras publicações deverão obedecer aos limites especificados para garantir a origi-nalidade do trabalho submetido. Recomenda-se evitar a reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras publicações.

O manuscrito que contiver reprodução de uma ou mais figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras publicações só será encaminhado para análise, se vier

acompanhado de permissão escrita do detentor do direi-to autoral do trabalho original, para reprodução especi-ficada na Revista da Abordagem Gestáltica. Tal permis-são deve ser endereçada ao autor do trabalho submetido à apreciação.

Em nenhuma circunstância, a Revista da Abordagem Gestáltica e os autores dos trabalhos publicados poderão repassar a outrem os direitos assim obtidos.

7. endereço para encaminhamento

Toda correspondência para a revista deve ser ende-reçada para:

Editor

Revista da Abordagem GestálticaInstituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT)

Rua 1.128 nº 165 - St. MaristaGoiânia-GO CEP: 74.175-130

Comunicações rápidas podem também ser efetuadas por telefone (62) 3941.9798 ou fax (62) 3942.9798 – ou pelo endereço eletrônico: [email protected]. Outras informa-ções podem ser obtidas no site: www.itgt.com.br