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Revista Brasileira de Ciências Sociais Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais http://www.anpocs.org.br/ ISSN 0102-6909 BRASIL 2002 Rogerio Proença Leite CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO: notas sobre a construção social dos lugares na Manguetown Revista Brasileira de Ciências Sociais, Febrero Vol. 17 Num. 49 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais BRASIL pp. 115-134 http://redalyc.uaemex.mx

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Revista Brasileira de Ciências Sociais

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

http://www.anpocs.org.br/

ISSN 0102-6909 BRASIL

2002

Rogerio Proença Leite CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO: notas sobre a construção social dos

lugares na Manguetown Revista Brasileira de Ciências Sociais, Febrero Vol. 17 Num. 49

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais BRASIL

pp. 115-134

http://redalyc.uaemex.mx

Ao comentar as reformas urbanas de Paris,feitas por Haussmann no contexto do bonapartis-mo autoritário pós-1848, Walter Benjamin (1985)lembrava que a intenção de adequar a capitalfrancesa às necessidades de circulação que a cida-de industrial reclamava foi também uma operaçãopolítica. O “embelezamento estratégico” de Parispretendia disciplinar os usos do espaço urbano

através da abertura de grandes e largas avenidasque não apenas dificultavam a construção dasbarricadas operárias como facilitavam a ação dacavalaria de Bonaparte.

Mais de um século depois, as políticas con-temporâneas de “revitalização” do patrimônio reto-mam, em outro contexto e com outras perspecti-vas, o princípio social higienizador de Haussmann,para adequar as cidades às demandas e aos fluxosinternacionais de turismo e consumo urbano. Essesprocessos atuais, longe das idéias haussmanianasde criar uma imagem moderna da Paris do séculoXIX, voltam-se hoje a formas de reapropriação cul-tural das imagens das cidades, objetivando – namaioria das vezes – recriar sentidos e usos dos con-teúdos e materiais do passado, aspectos apontadospor Harvey (1992) e Featherstone (1995) como tí-picos da chamada pós-modernidade.

É, portanto, sobre esses processos contem-porâneos de “revitalização” urbana que recai aanálise desse artigo, tendo como referente empíri-

CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO:notas sobre a construção social doslugares na Manguetown*

Rogerio Proença Leite

* Este artigo é uma versão concisa e modificada departe do quarto capítulo da tese de doutorado Es-paço público e política dos lugares, por mim defen-dida no IFCH/Unicamp, 2001, sob a orientação deAntonio Arantes. A pesquisa contou com financia-mento PICDT/CAPES, FINEP/PRONEX e apoio doCEMI/Unicamp. Uma versão preliminar deste textofoi apresentada no X Encontro de Ciências Sociaisdo Norte e Nordeste, na cidade de Salvador, Bahia.Gostaria de agradecer aos colegas e pareceristasanônimos da RBCS pelas críticas e sugestões à pri-meira versão desse artigo, que foram – em sua gran-de maioria – aceitas e incorporadas ao texto.

RBCS Vol. 17 no 49 junho/2002

co o caso do Recife Antigo. Pretendo argumentarque, apesar dessas atuais intervenções terem umcaráter visivelmente segregador e socialmente as-séptico – aspectos que poderiam concorrer paraum esvaziamento do sentido público desses espa-ços urbanos –, os usos e contra-usos que neles seestruturam concorrem, inversamente, para suareativação como espaços públicos. Com essa hi-pótese, parto da premissa que essa reativação dosusos públicos dos espaços urbanos podem ounão resultar na construção de um espaço público,no sentido de se constituir como um local de dia-lógica interação política e exteriorização dos con-flitos e das discordâncias. Todo espaço urbano éantes uma public property (Gulick, 1998): nele po-dem ser instituídos, ou não, práticas sociais quevenham a caracterizar a dimensão propriamentepolítica dos espaços públicos. A partir de Arendt(1987) e Habermas (1996; 1998), gostaria de suge-rir que um espaço urbano somente se constitui emum espaço público quando nele se conjugam cer-tas configurações espaciais e um conjunto deações. Quando as ações atribuem sentidos de lugare pertencimento a certos espaços urbanos, e, deoutro modo, essas espacialidades incidem igual-mente na construção de sentidos para as ações, osespaços urbanos podem se constituir como espa-ços públicos: locais onde as diferenças se publici-zam e se confrontam politicamente.1

Essa distinção entre espaço urbano e espaçopúblico, que já pude desenvolver em trabalho an-terior (Leite, 2001), parece-me ainda oportuna porduas razões: primeiro, ela evita uma certa sobre-posição conceitual que muitas vezes tem confun-dido a noção de espaço púbico com a de espaçourbano aberto, muito típica dos estudos em arqui-tetura e urbanismo. Segundo, ela anuncia uma di-mensão propriamente sociológica do espaço pú-blico, quando o entendemos a partir dos usos edas ações que lhe atribuem sentidos. Podemos,assim, entender o espaço público como uma cate-goria construída a partir das interfaces entre osconceitos de esfera pública (do qual retira a cate-goria ação) e de espaço urbano (do qual retém asua referência espacial). Embora o espaço públicose constitua, na maioria das vezes, no espaço ur-bano, devemos entendê-lo como algo que ultra-passa a rua; como uma dimensão socioespacial da

vida urbana, caracterizada fundamentalmente pe-las ações que atribuem sentidos a certos espaçosda cidade e são por eles influenciadas. Não sendonecessariamente todo espaço urbano um espaçopúblico, há de se verificar quando um espaço ur-bano pode ser caracterizado como público. A rea-tivação pura e simples dos usos cotidianos de umdeterminado espaço urbano não é, assim, caracte-rística suficiente, embora necessária, para conferira um determinado espaço urbano a característicade espaço público. Os processos de gentrification(enobrecimento)2 reanimam os usos públicos dosespaços urbanos. Mas, a questão fundamental ésaber que tipo de uso público ocorre. Em outraspalavras, em que medida esse uso público podeser caracterizado como construção de espaços pú-blicos, e qual o papel desempenhado pela cons-trução dos lugares nesse processo.

A “revitalização” do Bairro do Recife Antigo

Em 1993, um ano depois de iniciada a Ope-ração Pelourinho,3 em Salvador, a imprensa nacio-nal noticiava que havia chegado a vez do Recife.Seria “revitalizado” naquela cidade exatamenteum Bairro que fora, em 1910, reconstruído segun-do o modelo da Paris de Haussmann. Entre osmeses de abril e maio daquele ano, os jornais di-vulgavam que estava sendo assinado um acordocom a Fundação Roberto Marinho e a empresaAkzo do Brasil (Tintas Ypiranga) para pintar as fa-chadas do Bairro do Recife Antigo. O Projeto Co-res da Cidade, que no mesmo ano também se ini-ciava no Rio de Janeiro, foi um dos primeiros re-sultados práticos da nova etapa de “revitalização”do Bairro. A operacionalização do projeto consis-tia no sistema de parcerias: a Akzo doava as tin-tas, os proprietários arcavam com a mão-de-obra,a prefeitura supervisionava as reformas e garantiaincentivos fiscais aos proprietários que participas-sem do projeto, e a Fundação Roberto Marinho(FRM) assegurava a divulgação das reformas emrede nacional de televisão.4

O local escolhido não poderia ser mais sig-nificativo: elegeram o Bairro do Recife Antigo, ousimplesmente Bairro do Recife, como ponto departida de um amplo processo de resgate da ima-

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gem da cidade. Marco Zero da cidade, o Bairro éuma pequena ilha portuária que foi, no século XVI,uma restinga da cidade de Olinda, em cujo istmose fixaram os primeiros habitantes portugueses. Apequena “lingüeta” de terra foi o núcleo primitivoda cidade do Recife, cujos arrecifes naturais – quelhe deram o nome – formavam um seguro ancora-douro para as embarcações comerciais. Nascendoàs margens de Olinda, então sede da capitania dePernambuco, o Povoado dos Arrecifes cresceucomo um porto de comércio e assim permaneceu,circunscrito à estreita e insalubre faixa de terra, atéa vinda dos holandeses que mudaram substancial-mente a paisagem urbana e ambiental dos Arreci-fes, com a implantação do primeiro plano urbanís-tico do Recife, que originaria a cidade Maurícia(MauritsStadt). Durante o curto período da ocupa-ção, tanto a cidade Maurícia, como o pioneiro Po-voado dos Arrecifes passaram por significativas mu-danças, tendo o último um crescimento do seu nú-cleo urbano ao longo do eixo norte/sul do istmo.São dessa época os conhecidos sobrados magrosdo Recife Antigo, que se verticalizavam estreitos,comprimidos pelo rio e pelo mar. A abertura denova ruas, a construção de casarios e sobrados,praças e fortes consolidam pouco a pouco o pri-meiro movimento da evolução urbana do Recife(Cavalcanti, 1977; Mello, 1933).

Hoje, no entanto, o traçado urbano do anti-go povoado não é mais o das ruas estreitas e cur-vas, onde se apinhavam os sobrados-cortiços. Apaisagem que se vê não é holandesa, mas france-sa. Mais precisamente a paisagem urbana france-sa da belle époque, com duas longas e largas ave-nidas que rasgam o Bairro do mar ao rio. No lu-gar dos sobrados-magros, monumentais prédiosforam erguidos no difuso estilo eclético, modeloda arquitetura liberal francesa do final do séculoXIX (Benevolo, 1989). Depois da ocupação holan-desa, foi a reforma de 1910, baseada na Paris deHaussmann, a mais complexa intervenção urba-nística realizada no Bairro do Recife, cujos resul-tados desenharam parte da sua atual fisionomia(Lubambo, 1991).

A reforma de 1910 não foi um acontecimen-to isolado no contexto da história do urbanismobrasileiro. Seguiu uma tendência que se proliferouem todo país, em busca de uma nova imagem de

cidade moderna, através das grandes reformas ur-banas. A reforma no Recife começou com asobras de modernização do porto, símbolo do pro-gresso econômico e da inserção de Pernambucona economia internacional. Nesse período, a eco-nomia açucareira pernambucana passa por trans-formações importantes com a substituição dos an-tigos engenhos pela usina, delineando a composi-ção das novas elites da economia financeira e ur-bana em Pernambuco (Perruci, 1978).

Sob a responsabilidade da Societé de Cons-truction du Port de Pernambouc, cujas obras fo-ram transferidas depois para a Societé de Cons-truction de Batgnolles (Lubambo, 1991), a reformaconcretizava em Pernambuco o ideário moderni-zante do início do século XX. O plano incluía ater-ros para ampliação da área do porto, construçõesde armazéns e – a mais drástica medida – a mo-dificação do traçado urbano do Bairro, com oalargamento da avenida Marquês de Olinda e acriação das avenidas Rio Branco e do Cais paraampliar o fluxo do tráfego em direção ao porto.Com esse novo traçado, o que havia de arquitetu-ra civil colonial veio abaixo, com as inúmeras de-molições que marcaram a construção da modernapaisagem do Bairro do Recife. Com a reforma,quase todo o bairro foi demolido, arrasando o queainda restava de exemplares da arquitetura colo-nial – inclusive holandesa, para sua reconstruçãoseguindo o padrão haussmanniano das avenidaslargas e retas.

Foi nesse bairro haussmanniano do Brasilque o Plano de Revitalização do Bairro do Recife5

veio a ser colocado em prática a partir de 1993,tendo uma justificativa clara: não se tratava apenasde uma proposta de restauração do patrimônioedificado, mas de uma articulada idéia de inter-venção urbana na forma de um longo empreendi-mento. Afinado com os pressupostos do chamadomarket lead city planning (Vainer, 2000), o planotinha três objetivos principais, tendo como baseoperacional um conjunto de três Setores de Inter-venção: 1. transformar o Bairro do Recife em um“centro metropolitano regional”, tornando-o umpólo de serviços modernos, cultura e lazer; 2. tor-nar o Bairro um “espaço de lazer e diversão”, ob-jetivando criar um “espaço que promova a concen-

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tração de pessoas nas áreas públicas criando umespetáculo urbano”; 3. tornar o Bairro um “centrode atração turística nacional e internacional”.6 Essesobjetivos sinalizavam, desde o início, o quanto aproposta estava voltada ao incremento da econo-mia local, pretendendo tornar o Bairro do Recifeum complexo mix de consumo e entretenimento.De igual modo, a noção de um espaço de “espetá-culo urbano”, que iria caracterizar todo o plano, éum indicador importante da presença de uma polí-tica de gentrification, na medida em que confirmao foco predominantemente econômico das açõesprevistas, bem como o tipo de uso esperado paracada uma delas, a partir de redefinições da noçãode valor cultural (Menezes, 2000).

O termo gentrification (enobrecimento) éaqui usado no mesmo sentido dado pelos autoresHarvey (1992), Featherstone (1995), Zukin (1995)e Smith (1996), que o utilizam para designar inter-venções urbanas como empreendimentos que ele-gem certos espaços da cidade considerados cen-tralidades e os transformam em áreas de investi-mentos públicos e privados, cujas mudanças nossignificados de uma localidade histórica faz do pa-trimônio um segmento do mercado. A expressãocomeçou a ser usada em 1960, nos Estados Uni-dos, para designar um modelo de intervenção ur-bana que se expandia em larga escala em muitascidades americanas, cuja principal característicaera a reabilitação residencial de certos bairros cen-trais das cidades (Smith, 1996). Empreendimentossemelhantes, embora esporádicos, já aconteciamnas décadas de 1930 e 1940 nos Estados Unidos,seguindo um modelo que Neil Smith chama deembourgeoisement, voltado para os novos empre-sários e comerciantes (white collars). O desloca-mento da população negra e operária dos seusbairros tradicionais, como ocorreu em George-town, bairro operário da cidade de Washington(Smith, 1996, p. 37), exemplifica essa tendênciaque surgiu e se alastrou pelos Estados Unidos epela Europa no pós-guerra. O termo gentrifica-tion, portanto, foi inicialmente utilizado comouma linguagem especializada para designar “rea-bilitação residencial”. Como Smith explica, elepróprio fazia, nos anos de 1970, uma distinção en-tre gentrification (aplicada à reabilitação do esto-que arquitetônico já existente) e “redesenvolvi-

mento” (para referir-se às construções novas).Essa diferenciação, como o próprio autor esclare-ce, fazia sentido quando as práticas de gentrifica-tion ainda não eram operadas como renovaçãourbana em larga escala. Hoje, essa distinção,como reconhece Smith, já não atende ao caráterexpansivo do processo: gentrification tanto podereferir-se à reabilitação de casarios antigos comopode englobar construções totalmente novas.

Não deixa de ser curioso, no entanto, que otermo tenha se sedimentado justamente nos anosde 1960, no rastro dos “distúrbios” sociais pós-1968 e da contracultura urbana. Smith faz uma re-ferência quanto à relação entre o uso do termo ea contracultura em Greenwich Village, em NovaYork, mas é David Harvey quem explica essa as-sociação ao comentar os efeitos dos distúrbios ur-banos em Baltimore. Segundo Harvey (1992), foijustamente no contexto das manifestações públi-cas (passeatas, incêndios, saques), depois do as-sassinato de Martin Luter King, que políticos e em-presários começaram a pensar sistematicamenteem formas de renovação urbana. Baltimore repe-tia, pela primeira vez de forma mais metódica, oprincípio haussmaniano de pulverizar manifesta-ções públicas e higienizar a cidade, criando a sen-sação de um local limpo e seguro. Apesar de seruma experiência típica do capitalismo pós-guerra– claramente identificada pela tendência de dispu-ta das cidades pelo mercado internacional –, aspolíticas de gentrification podem ser considera-das sucessoras pós-modernas da experiência fran-cesa bonapartista do final do século XIX. A refor-ma realizada pelo Barão de Haussmann em Paris,com seus quartiers bem demarcados, suas longasavenidas e seus boulevards, fizeram da capitalfrancesa o mais importante modelo de protogen-trification (Smith, 1996). A Baltimore “enobrecida”tentou igualmente se opor às manifestações públi-cas que pareciam tornar suas ruas arenas de guer-ra, através de intervenções urbanas.

No Recife, para viabilizar a implementaçãoda proposta de “revitalização” urbana, foram esta-belecidos alguns “elementos estruturadores”, en-tre os quais se destacavam: “Economia local comfunção central plena”, “Espaço público para reu-nião e espetáculo”, “Manutenção e valorização dopatrimônio ambiental e cultural”, “Recuperação da

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imagem do Bairro”.7 Esses “elementos estruturado-res” abrangiam aspectos centrais e convergentescom as políticas de enobrecimento do urbanismoempresarial: a construção de uma nova imagem dacidade, através da valorização dos usos econômi-cos do patrimônio cultural e da espetacularizaçãodo espaço urbano, como forma de reativar os flu-xos de investimentos para a economia local. Essaimagem, construída através de uma visão que en-tende a cultura na perspectiva dos resultados eco-nômicos, e a cidade como empresa, previa a con-centração de escritórios de grandes empresas ecorporações, reforçando, no Bairro, a “imagem deespaço central e nobre da cidade”.8

O processo de gentrification que reinventouo Bairro do Recife alterou profundamente a suapaisagem urbana, transformando-a numa espéciede “paisagem cívica” depurada (Menezes, 2002) aodeslocar para a esfera do consumo os sentidos tra-dicionais da história e da cultura pública. Recons-truído como nova centralidade, o Bairro teve suamemória – inscrita em seu patrimônio edificado ena vida cotidiana dos moradores mais antigos –,subsumida pelas estratégias de marketing urbano,que equipararam o antigo Povoados dos Arrecifes aum shopping center. Hoje, o Bairro ocupa cada vezmais os espaços das narrativas sobre a singularida-de do local para a cidade do Recife.

No meu ponto de vista é uma coisa que faltava aorecifense, ao pernambucano, que eu vi muito nosul quando viajava. É o orgulho de ser de tal lugar.E hoje nós temos aqui, você pega um turista, trazpro bairro, você vinha pro Recife, trazia pra Olin-da. Não tinha um ponto pra mostrar nossas raízese hoje esse ponto com certeza é o bairro do Reci-fe. Você traz e tem orgulho de mostrar.9

A construção dessa imagem esteve ancorada,desde o início, na idéia de transformação do patri-mônio em mercadoria cultural e teve, como prin-cipais “sujeitos”, os empresários locais associadosao poder público. Em uma reunião que se tornouum marco para a “revitalização” do Bairro, a frase“A arte gera lucros” encerrou um vídeo produzidopela Fundação Roberto Marinho, no qual foramressaltados os bem-sucedidos investimentos priva-dos na revitalização urbana do SoHo, em NovaYork. O vídeo foi peça de abertura do Fórum Bair-

ro do Recife: processo de revitalização e panoramaeconômico,10 uma espécie de convocação geralpara bons negócios na mais cobiçada área de revi-talização do patrimônio cultural da capital pernam-bucana. Na ocasião, o SoHo serviu como exemplode um tipo de empreendimento que soube conju-gar restauração arquitetônica e “revitalização” ur-bana, tornando o patrimônio economicamentesustentado. A utilização quase caricata do velhoSoHo não foi apenas um recurso gratuito da com-petência visual da Rede Globo. Em que pese a suasingularidade, o Plano Revitalização do Bairro doRecife repetiu, a exemplo de outras cidades histó-ricas no Brasil e em outros países, uma tendênciaque tem se proliferado nas duas últimas décadas,cujo resultado mais visível tem sido uma contínuaalteração da paisagem urbana com a transforma-ção de degradados sítios históricos em áreas deentretenimento urbano e consumo cultural. Anti-gas áreas “marginais” das grandes cidades vãoabrigando complexos centros de lazer, com bares,restaurantes, galerias de arte e lojas de artesanato.No Fórum, foram discutidas formas de gestão, as-sim como o caráter típico de empreendimento queiria caracterizar as intervenções urbanas no Bairro.Nas palavras do então secretário de Planejamentodo Município, José Múcio Monteiro:

Eu enxergo o bairro como um shopping que estáfuncionando a praça da Alimentação, eu vejo obairro, vejo a Rua do Bom Jesus que é um absolu-to sucesso, e enxergo a praça de alimentação de umshopping [...] (PCR/URB/ERBR, 1998b, pp. 15-19).

Um dos resultados práticos do Plano foi areforma de parte do seu casario, que transformouo lugar em um agitado ponto de encontro, poronde passaram a circular pessoas que nunca an-tes havia freqüentado o antigo porto. Estrategica-mente direcionados para realçar as fachadas res-tauradas, focos de luz reforçavam a impressão ce-nográfica das ruas, cujo impacto passou a ser umenorme contraste com todo o resto do Bairro. Apartir das 18 horas, o trânsito passou a ser interdi-tado nas principais ruas “revitalizadas” e cavaletesde madeira surgiam, acompanhados de um refor-çado esquema de segurança (pública e privada),que ajudavam a transformar esse trecho da cidade

em um artificial boulevard. Pouco a pouco as ruaseram tomadas por pessoas e as calçadas pelas me-sas dos bares e restaurantes. Estimava-se que, emdias de grandes eventos, mais de 15 mil pessoascirculavam pelas ruas, em busca de lazer e diver-são. A prefeitura passou a manter, com o apoiodos empresários locais, uma intensa programaçãocultural: shows, apresentações de dança, exposi-ções de arte na rua, festivais de seresta. Durantetodo o ano, diversas atividades asseguravam acontinuidade do pólo de animação cultural, inte-grando o Bairro à agenda cultural da cidade. Nocarnaval e nas festividades de São João, uma va-riada e intensa programação passou a manter olocal como uma das mais novas opções para o tu-rista que freqüentava Pernambuco. O desfile deagremiações no Bairro se tornou espetáculo: blo-cos, troças, reisados, maracatus, caboclinhos da-vam o tom cultural do Plano de Revitalização.

Enobrecido, o Bairro do Recife tornou-se nãoapenas um espaço de enorme visibilidade pública:tornou-se igualmente um local de disputa, paraonde distintas pessoas convergiam seus esforços delegitimação simbólica da diferença. Todas as refor-mas empreendidas, tanto no plano urbanísticoquanto na programação de eventos, estiveram vol-tadas para criar um espaço re-localizado da tradi-ção, cujo resultado mais evidente foi a transforma-ção do patrimônio em relíquia (Giddens, 1991). Otombamento do Bairro pelo Instituto do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional – IPHAN, em 1998,veio, nesse sentido, não apenas legitimar o proces-so de gentrification, como também sedimentaruma nova perspectiva de preservação em vigor noBrasil (Leite, 2001b). Atribuindo caráter “simultâ-neo” à estrutura urbana e arquitetônica do Bairro,o IPHAN reconheceu como patrimônio nacionalum sítio urbano eclético, que foi erguido graças àdemolição de um antigo bairro colonial, na amplareforma que ocorreu em 1910, seguindo o modelodas avenidas largas e retilíneas da Paris de Hauss-mann (Benevolo, 1989; Benjamin, 1985). Pulveri-zando antigas concepções de identidade nacional,típicas dos processos constitutivos do Estado-naçãoe das análises sistêmicas sobre a formação das na-cionalidades (Leite, 1998), a justificativa para otombamento destaca, ante a inexistência de umatradição colonial, aspectos que seriam constitutivos

da formação “pluricultural” brasileira. O bairro, tidocomo um “exemplar íntegro da Paris de Hauss-mann” foi considerado, assim, “[...] arquivo vivo eúnico da superposição das várias temporalidadesque dominaram a história e a produção artística noRecife e no Brasil”.11

Cidade, territórios, lugares

Transformações urbanas raramente resultamde um desenvolvimento imanente da cidade. Creioque o oposto também seja verdadeiro: nenhuma ci-dade excessivamente planejada e controlada segueinvariavelmente o modelo que a gerou. Principal-mente como produto cultural, a cidade é sempre oresultado convergente de distintas influências for-mais e cotidianas. A análise de Simmel (1986; 1997)sobre a objetivação do conteúdo espiritual da cul-tura reforça o que estou tentado afirmar. Ele fala deum tipo de objeto cultural que não depende diretae exclusivamente de nenhum produtor, alheio àsdeterminações de um único sujeito anímico.

Seria válida esta interpretação também paraos cenários enobrecidos pelas políticas de gentri-fication, em sua monotonia aparentemente homo-gênea? Parece indiscutível que essa forma de in-tervenção urbana tem contribuído para criar umacerta rotina estética de uma vida pública que,muitas vezes, é difícil se desenvolver, como afir-ma Otília Arantes:

[...] a reabilitação de certos bairros, especialmentedos centros urbanos, não passa de uma verdadei-ra consagração da eternidade da cena – bem po-lida, limpa, enfeitada, transformada ela mesmaem museu (Arantes, 1998, p. 136).

Essa opinião é compartilhada por David Har-vey, para quem a estetização da paisagem urbanapassa a ser a forma predominante de recuperar osentido dos lugares e da tradição no contexto daacumulação flexível e da compressão tempo-espa-ço. A reelaboração das tradições se daria, na visãodo autor, mediante uma estetização romântica dacultura, expressa na forma de museus que reto-mam um passado ilusório e o transformam emmercadoria:

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Na melhor das hipóteses, a tradição histórica é reor-ganizada como cultura de museu, não necessaria-mente de alta arte modernista, mas de história lo-cal, de produção local, do modo como as coisas umdia foram feitas, vendidas, consumidas e integradasnuma vida cotidiana há muito perdida e com fre-qüência romantizada (Harvey, 1992, p. 273).

Harvey reconhece, obviamente, o papel“motivacional da tradição” para os processos iden-titários. Todavia, para o autor que tematizou sobreos efeitos desregulares da compressão tempo-es-paço, estaria cada vez mas improvável a perma-nência de certos aspectos de continuidade (típicados lugares) no “[...] fluxo e efemeridade da acu-mulação flexível” (Harvey, 1992, p. 273).

Creio que não deixam de ter razão as opi-niões que ressaltam a monotonia das paisagensenobrecidas, cujos processos de intervenção pare-cem tornar esses espaços mercadorias equivalen-tes entre si, numa espécie de “mercado da auten-ticidade” pela busca da centralidade e originalida-de dos bens culturais em disputa no contexto daconcorrência “intercidades” (Fortuna, 1997). Énessa direção que Harvey (1992) sugere que aprodução social contemporânea do espaço des-perta um certo caráter defensivo no qual os vín-culos entre lugar e identidade social surgem comouma forma de os indivíduos se situarem neste“mutante mundo-colagem”. O quadro dedutívelda reflexão de Harvey é sugestivo, porém pessi-mista: o que resultaria de paisagens urbanas es-tandardizadas seriam predominantemente lugares-nichos, defensivos e particularistas. Quase umcorrelato ao que Sennett (1998) chamou de “co-munidades destrutivas” para designar as relaçõespúblicas que exacerbam intimidadas e tiranizam avida cotidiana moderna.

Gostaria, entretanto, de levantar a hipótesede que esses lugares – ou “territórios de subjetiva-ção” (Deleuze e Guatarri, 1997) – não resultamnecessariamente em configurações restritivas àvida pública. Ainda que sejam uma forma de com-pensar alguma “sensação de perda”, como desta-cou Jameson (1997) ao afirmar que o passado éreapropriado na forma alterada dos lugares políti-cos da cultura, é possível repensar a construçãodesses lugares no contexto urbano contemporâ-

neo a partir dos usos e contra-usos que se faz dosespaços enobrecidos. Nas áreas que passam porprocessos de gentrification, esses usos podem al-terar a paisagem e imprimir outros sentidos às re-localizações da tradição e aos lugares nos espaçosda cidade. Essas significações, ou contra-sentidos,que diferem daqueles esperados pelas políticasurbanas, contribuem para uma diversificação dosatuais sentidos dos lugares. Essa polissemia doslugares é constantemente – mas não invariavel-mente – subsumida pelas políticas oficiais de pa-trimônio, que estriam os centros históricos como“relíquias” (Giddens, 1991). Certeau, ao atribuir afunção de “curetagem social” a esses empreendi-mentos urbanísticos, destacava que a reabilitaçãodo patrimônio “subtrai a usuários o que apresen-ta a observadores” (Certeau, 1996, p. 195). Essaobservação sugere, à primeira vista, que os bair-ros enobrecidos parecem perder sua potencialida-de como espaço público de dissensão política eeqüidade de participação. Uma questão funda-mental, entretanto, é saber em que medida essa“desapropriação de sujeitos” não correspondetambém a uma reapropriação de outros sujeitos.Se por um lado as práticas de gentrification sepa-ram esses lugares dos que neles vivem – na me-dida em que parecem alienar o patrimônio dosseus usuários através das relações econômicas deconsumo –, por outro, é possível que esse mesmoprocesso amplie as possibilidades interativas (con-flitivas ou não) entre aqueles que neles interagem.

O próprio Certeau oferece uma pista para re-pensar as formas de dissensões sobre os usos doespaço urbano. Ao fazer a distinção entre “estra-tégias” e “táticas”, o autor permite aferir distintasmaneiras de atribuição de sentidos. Por “estraté-gia” entende Certeau um conjunto de práticas quearticulam espaço e poder. Como as “paisagens depoder”, de Sharon Zukin (2000), elas criam de-marcações físicas através das quais o poder se dis-tribui e se consolida:

Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação)das relações de força que se torna possível a par-tir do momento em que um sujeito de querer epoder (uma empresa, um exército, uma institui-ção científica) pode ser isolado. A estratégia pos-tula um lugar suscetível de ser circunscrito como

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algo próprio e ser a base de onde se podem ge-rir as relações com uma exterioridade de alvos eameaças [...] (Certeau, 1994, p. 98).

A “estratégia” como “algo próprio” significauma autonomia ou uma estabilidade espacial so-bre as circunstâncias ou as efemeridades tempo-rais. Ao circunscrever um certo lugar, o qual con-quista para si, a estratégia se afirma como poderespacializado e implica a construção de uma visãototalizante, um panóptipo, ou, para compará-lomais uma vez com Zukin, uma “paisagem de po-der”. Por outro lado, as “táticas” são movimentosheterogêneos e imprevisíveis em espaços que nãolhes são “próprios”:

[...] chamo de tática a ação calculada que é deter-minada pela ausência de um próprio. Então ne-nhuma delimitação de fora lhe fornece a condi-ção de autonomia. A tática não tem por lugar se-não o do outro. [...] a tática é determinada pelaausência de poder assim como a estratégia é or-ganizada pelo postulado de um poder (Certeau,1994, pp. 100-101).

As “trajetórias táticas” são, portanto, percur-sos temporais dos destituídos de poder e de umlugar que lhes seja “próprio”. Elas ocorrem justa-mente no interior dos espaços estratégicos, sub-vertendo sentidos por não serem coerentes comesses espaços. Para manter a comparação com ostermos de Zukin, as “táticas” podem ser entendi-das como o que é “vernacular” (dos sem-poder)no interior das “paisagens de poder”. Para a auto-ra, “[...] a paisagem dos poderosos se opõe clara-mente à chancela dos sem poder – ou seja, àconstrução social que escolhemos chamar de ver-nacular [...]” (Zukin, 2000, p. 84). Uma distinção,porém, subsiste nessa correlação: uma políticavernacular no contexto urbano não se limita àsações no tempo, desprovida de referências espa-ciais. Ao contrário, ela implica uma reapropriaçãoe uma qualificação dos espaços. Quando se fala,por exemplo, em uma arquitetura vernacular, so-bressaem-se os usos alternativos de materiais econcepções disponíveis localmente e que seopõem a outros planos que seriam alheios a umadada realidade.

Adequando essa distinção entre “estratégiase táticas” à problemática do usos políticos do es-paço urbano em processos de gentrification, gos-taria de sugerir um desdobramento do esquemade Certeau, a partir da contribuição de Sharon Zu-kin: diria que as “táticas”, quando associadas à di-mensão espacial do lugar, que a tornam vernacu-lar, constituem-se em um contra-uso capaz nãoapenas de subverter os usos esperados de um es-paço regulado, como também de possibilitar queo espaço que resulta das “estratégias” se cindapara dar origem a diferentes lugares, a partir dademarcação socioespacial da diferença e das re-significações que esses contra-usos realizam.

Nesse sentido, gostaria de analisar, ainda quebrevemente, o caso específico da Rua da Moeda,situada no Bairro do Recife, para sugerir comocertos contra-usos podem contribuir para politizar“taticamente” uma paisagem urbana também poli-tizada “estrategicamente” pela gentrification, paraargumentar que a desapropriação de “sujeitos”não reduz o sentido público do espaço urbano,mas pode representar uma reordenação da sua ló-gica interativa, a partir das apropriações (“táticas”)dos espaços mediante a construção dos lugares.

Rua da Moeda: a construção de um lugar

Nunca houve andar fortuito que conduzissecasualmente o transeunte ao Bairro do Recife.Não se passa pelo Bairro: vai-se a ele. Sua locali-zação no extremo leste da cidade, em uma ilha,quase o desloca dos fluxos rotineiros do andarpelo centro do Recife. É fácil evitar o Bairro, semtranstornos e prejuízos a qualquer itinerário: asvias axiais não impõem um trajeto que obrigueuma passagem pela Bairro, ainda que fugidia aoolhar da velocidade. Quem transita pelo Bairro éporque foi a ele por alguma razão. Das últimaspontes erguidas sobre os rios e mangues avista-seo Bairro. Por elas se alcança a ilha e com um úni-co olhar é possível atravessá-la por uma de suasprincipais avenidas: das margens do Capibaribe sevê o mar. Mais do que um deslocamento, a traves-sia pela antiga ponte do Recife, hoje reformada,induz o pedestre a vislumbrar, ainda à distância,

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quase toda a extensão da ilha, banhada pelo rioCapibaribe. Mas, o percurso pela ponte não per-mite rememorar o passado sem fixar o olhar nopresente: no rio poluído, uma pequena embarca-ção leva um catador de caranguejo, homem domangue, que escava da sujeira restos de vida. AManguetown sobrevive como na canção, cantadaentre guitarras e batuques de Maracatu: “Rios,pontes e overdrives – impressionantes esculturasde lama/mangue, mangue, mangue [...]”.12 NoManguelama, ou na ponte que se ergue sobre ele,a vida soa como uma improvisada e transitória ro-tina diária: como as pontes, está incrustada nomangue, mas não quer com ele se fundir. Por so-bre – ou sob – as esculturas de cimento e ferro, atravessia para o Bairro do Recife anuncia uma pai-sagem feita de espera e persistência.

O processo que deu origem ao pólo Moedaé diametralmente oposto ao do Bom Jesus. Este,local escolhido para ser iniciado o processo de“revitalização” do Bairro, foi detalhadamente pla-nejado. Sendo uma das mais antigas e importan-tes ruas do Bairro, desde a época de Nassau, aRua do Bom Jesus – que deu o nome ao mais im-portante pólo do Bairro – foi o ponto de partidadas reformas. Nela foram restauradas as primeirasedificações que, antes ocupadas por velhas pros-titutas, passaram a abrigar sofisticados bares e res-taurantes. Cavaletes de madeira passaram a cir-cunscrever o pólo Bom Jesus, ordenando o fluxode carros e pessoas. Como um lugar típico deconsumo e lazer, o Bom Jesus tornou-se paradig-mático para o processo de gentrification do Bair-ro: ruas limpas, bem iluminadas, com diversifica-ção de serviços e um eficaz sistema de vigilância.Parte significativa dos recursos públicos e priva-dos foram investidos nesse pólo, tido como cata-lisador de um projeto mais amplo de “revitaliza-ção” urbana de todo o Bairro.13

Dos diferentes usos que se desenvolveramno Bairro do Recife, ergueram-se pelo menos qua-tro espaços de significação e uma zona liminar depassagem: pólo Bom Jesus, pólo Moeda, favela doRato, largo do Marco Zero e a zona de passagemcompreendida pelo eixo entrecruzado de duasgrandes avenidas retilíneas: as avenidas Marquêsde Olinda e Rio Branco. A Rua da Moeda – obje-to desse artigo – nunca existiu inicialmente nos

planos de revitalização. Ela estava circunscrita emuma área mais ampla do pólo Alfândega, este sim,um dos pólos de interesse previstos no planeja-mento estratégico que deu origem ao processo degentrification. O pólo Moeda surgiu de uma re-si-ginificação social de um espaço, pelos própriosagentes que o tornaram realidade, ao contrário doBom Jesus que induziu a presença dos seus usuá-rios pela intervenção urbana realizada. A área dopólo, até o final da última gestão do PFL na pre-feitura do Recife, ao final do ano 2000, não tevenenhuma obra de melhoramento em sua estrutu-ra urbana. Era uma parte do Bairro que permane-ceu como no passado, antes da “revitalização”:edificações deterioradas, iluminação precária, fa-chadas sem pinturas novas. No entanto, exata-mente por isso, tornou-se um espaço ideal para ossentidos que lhe atribuem seus freqüentadores.

Na Rua da Moeda, a sensação não era dife-rente. Era difícil imaginar que, à noite, essa rua setornava um lugar: durante o dia ela nada tinhaque pudesse configurar um espaço praticado.Como outras ruas do Bairro, limitava-se a ser umestacionamento para os inúmeros veículos queocupavam a pequena ilha.

Dizer que a Rua da Moeda era – na ausênciadas pessoas que lhe atribuem sentidos, apenas umespaço urbano – permite visualizar os contrastespráticos das diferenciações conceituais entre espa-ço urbano e espaço público, feitas na introduçãodesse artigo. Sem os seus usuais freqüentadoresnoturnos, a Rua da Moeda apenas potencialmen-te pode ser compreendida como um espaço pú-blico – enquanto categoria sociológica da visibili-dade, diferença e conflito estruturada pela presen-ça de ações que atribuem diferentes sentidos aosespaços. Em trabalho anterior (Leite, 2001), pudesugerir que se entendesse por lugar uma determi-nada demarcação física e/ou simbólica no espaço,cujos usos o qualificam e lhe atribuem sentidos di-ferenciados, orientando ações sociais e sendo porestas delimitado reflexivamente. Um lugar é, as-sim, um espaço de representação, cuja singulari-dade é construída pela “territorialidade subjetiva-da” (Guattari, 1985), mediante práticas sociais eusos semelhantes. A Rua da Moeda, assim comooutras invariáveis espacialidades diurnas do Bair-ro do Recife, era apenas – na ausência desses sen-

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tidos atribuídos – um espaço urbano, como umapublic property (Gulick, 1998). O bar Pina de Co-pacabana, fechado nas primeiras horas do dia, eratambém uma edificação simbólica, mas, sem osusos, perdia parte da sua eficácia. À noite, quan-do outras sociabilidades se desenvolviam na rua,esses espaços se emprenhavam de significados:deixavam de ser meros logradouros públicos parase transformarem em lugares.

O pólo Moeda permaneceu como um elo decontinuidade de certas práticas e sentidos que jáexistiam antes da “revitalização”. Foi no velhobairro portuário, com sua má fama de local aban-donado, perigoso, boêmio e marginal, que se ini-ciou uma das últimas e mais ricas inovações mu-sicais, culturais e comportamentais de Pernambu-co. Refiro-me ao Movimento Manguebeat que,sob a liderança do irreverente Chico Science, mor-to prematuramente em um acidente de automó-vel, renovou a cena musical dos anos de 1990. OMovimento recolocou Pernambuco na dianteiracultural, em um momento em que a cena musicalbrasileira parecia um tanto estagnada entre grupos

de pagode e a chamada axé music. Antropofagi-camente fundindo rock, funk, maracatu e embola-da, o Manguebeat recuperou o discurso sonoroda cidade, da rua, e de suas contradições mais ex-cludentes.14 Ao contrário de fazer uma apologiaufanista da cultura pernambucana, cantava a mi-séria da periferia da manguetown, ao mesmo tem-po em que contribuía para uma nova reapropria-ção da cultura popular ao revelar influências de fi-guras meio esquecidas pelos jovens do Recife,como Selma do Coco, Mestre Salustiano e os pró-prios Maracatus. No início de sua ascendente car-reira, era justamente no Bairro do Recife – localde putas e marginais – onde se apresentavam:

[...] já existia [no Bairro] uma ocupação do pessoal

alternativo, da cena alternativa: Chico Science, o

pessoal das bandas já faziam festas nos cabarés

que existiam: o Adílias, Frank, o Bar do Grego, ti-

nha esse público underground.15

O surgimento do pólo Moeda deveu-se mui-to à iniciativa de Roger de Renoar. Empresário e

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MAPA BAIRRO DO RECIFE DETALHE DO PÓLO MOEDA

REFERÊNCIA CARTOGRÁFICA: MAPA-BASE BAIRRO DO RECIFE/ URB

animador cultural, Roger é uma dessas pessoasque não apenas formam opinião, como tambémcongregam pessoas e tendências em torno deseus projetos. Carismático e inovador, Roger criouno Bairro do Pina (na Praia de Boa Viagem) umasoparia que foi o “mais mangue dos bares recifen-ses” (Teles, 2000, p. 305). A soparia virou pontode encontro dos mangueboys e parada obrigató-ria para o circuito alternativo da noite recifense.Por razões que não cabe aqui pormenorizar, Ro-ger mudou-se para o Bairro do Recife, à procurade um espaço mais amplo que pudesse abrigarseus novos projetos culturais. Sua ida para a Ruada Moeda, onde abriu o famoso Pina de Copaca-bana, mudou a paisagem do local. Com ele, váriosgrupos e pessoas, que antes freqüentavam a sopa-ria, também migraram para o Bairro do Recife,reencontrando um espaço que já retinha enormecarga simbólica, por ter sido um dos primeirospalcos do Movimento Mangue.

A importância de Roger é inegável. Durantea realização da pesquisa, quase todos as pessoasentrevistadas, que exerciam algum cargo da prefei-tura relacionado ao Plano de Revitalização, reco-mendaram que Roger fosse entrevistado, quando oassunto era o pólo Moeda. O local do meu encon-tro com Roger não poderia ter sido mais adequa-do: um pequeno boteco, perto da Rua da Moeda,com poucas mesas e uma radiola de ficha tocandomúsicas que seriam facilmente rotuladas de “bre-ga”. Em uma mesa, três jovens tomavam cerveja.Em outra, uma cena típica do velho bairro: um ma-rinheiro, recém-chegado da Venezuela e ainda tra-jando seu uniforme branco, parecia trocar promes-sas de amor com uma jovem e bonita prostituta,vestida de saia preta e botas longas. Durante a en-trevista, fomos interrompidos muitas vezes, orapelo som que ficava mais alto, ora pelos inúmerosconhecidos que paravam para cumprimentar Ro-ger: desde homens engravatados que pareciam tersaído de um reunião de negócios, até bêbados quecirculavam pelo local. Roger cumprimentava to-dos, sem distinção. O dono do boteco, outro ami-go do entrevistado, talvez notando a dificuldadeque tínhamos em prosseguir a conversa, simples-mente desligou a radiola, sem qualquer protestodos presentes. Em uma longa e agradável conver-sa, Roger revelou parte da história do pólo Moeda.

O Bairro do Recife sempre foi um lugar que, mes-mo antes da revitalização, sempre teve seu char-me. O Frank’s Drinks foi uma coisa que marcouo movimento mangue, o Bar do Grego marcouuma época também, dentro da história [...] as pri-meiras festas de Chico Science foram lá, os pri-meiros shows. Então, era uma coisa que se mistu-rava: a nova galera que tava saindo à procura denovos lugares, e os marinheiros, e as putas, e essacoisa, já não tinha mais zona, os puteiros sobra-vam, já tinha tido declínio então, e coincidiu coma história da revitalização, começou meio que bo-tar para fora a galera, o Francis pegou fogo e fi-cou com essa marca de burguesia aqui. Entãoesse lado foi uma opção muito legal. Eu penseiem vir para o Bairro mais por esse lado [a entre-vista é interrompida por pessoas que vêm cumpri-mentar Roger] Coincidiu que, minha vinda para cácoincidiu também com a história do investimentoque a prefeitura fez, que não é nada boba, depoisque Chico morreu, se passou a olhar para esselado comercial e o lado positivo da história, olado lucrativo da história do Manguebeat.16

O depoimento de Roger é elucidativo de umaspecto: a apropriação do conteúdo simbólicoexistente nas práticas sociais cotidianas (e nãoapenas no passado histórico edificado, via patri-mônio cultural) pelas políticas de gentrification.Em geral, essas políticas investem em áreas carre-gadas de sentido pela história e pela evolução ur-bana dos espaços das cidades. Mas é interessanteperceber que muitas dessas áreas já sinalizavamsua potencialidade pelos usos e sentidos atuais. Oque Roger sugere, ao se referir à apropriação do“lado lucrativo da história do Manguebeat”, podeser, no caso do Bairro do Recife, apenas um as-pecto secundário, haja vista o processo ter sidoiniciado no pólo Bom Jesus, e a partir de umaperspectiva mais voltada ao patrimônio edificadodo que aos usos que o Manguebeat fazia de ou-tras áreas do Bairro. Além disso, o movimento nãodesenvolveu uma associação com um local espe-cífico, mas com a cidade como um todo, a Man-guetown. Contudo, não deixa de ser sugestivo ofato de existir alguma forma anterior de valoriza-ção dessas áreas, fato que pode evidenciar, aomenos, uma possível influência na percepção dosplanejadores sobre a potencialidade comercial dasáreas históricas a serem “revitalizadas”.

CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO 125

Neste caso, haveria um aproximação com ocaso baiano de “revitalização” do Pelourinho, estesim, um exemplo claro de apropriação de uma va-lorização anterior existente, que justificou, pelomenos em parte, a implantação das políticas degentrification. Sabe-se que o Pelourinho foi, antesde sua reforma, um local onde os grupos negrosde Salvador se encontravam. O que muda, nocaso baiano em relação ao do Recife, é que emSalvador a cultura negra é apropriada para legiti-mar a centralidade do Pelourinho, explorando epasteurizando turisticamente a imagem de umanegritude integrada como identidade baiana (Pi-nho, 1998). No caso do Recife, por outro lado, avalorização anterior – que identificava o Bairrocom o Manguebeat – não pôde ser incorporada à“revitalização” exatamente porque o espaço socialdessa identificação era justamente o Bairro contra-enobrecido. Talvez por isso, as manifestações doManguebeat nunca tenham sido utilizadas comojustificativas para as reformas do pólo Bom Jesus,mas associadas ao pólo Moeda, que se mantinhafora do processo de gentrification. Isso não impe-diu, entretanto, que os principais agentes do Pla-no de Revitalização (poderes públicos e iniciativaprivada) usassem estrategicamente a Rua da Moe-da, quando interessava ressaltar a diversidade deeventos oferecidos no Bairro do Recife. Aliás,nada seria mais apropriado para um local que foitombado17 por ser “simultâneo” em sua arquitetu-ra, também erguer uma imagem atual de um es-paço culturalmente diversificado. No fundo, o quediferencia o Pelourinho do Bairro do Recife pare-ce ser o grau de apropriação e de legitimidadebuscado nessas manifestações que já mantinhamrelações identitárias com esses espaços centrais ecom a própria imagem da cidade.

Neste caso, percebe-se que a variável “raça”opera uma distinção fundamental entre a idéia deafro-baianidade e pernambucanidade. Em Pernam-buco não há uma hegemonia negra como na Bahiae a idéia de raça parece diluída entre outras cate-gorias indistintas para uma concepção de identida-de. O critério racial está praticamente ausente naconcepção de pernambucanidade, embora ela sejaconstruída a partir de muitas manifestações cultu-rais negras, como é o caso dos maracatus, cujo sig-nificado social tem uma inequívoca centralidade

para a cultura pernambucana. Obviamente, não es-tou afirmando aqui que a questão racial inexisteem Pernambuco, mas apenas enfatizando que, cu-riosamente, na terra de Gilberto Freyre não existeuma inscrição acentuada da raça no discurso queforja uma idéia de Pernambuco. O que parece mui-to mais evidente é a tentativa de identificar o Esta-do a partir de certos conteúdos tradicionais de cul-tura brasileira autêntica. Durante o carnaval, porexemplo, essa problemática aflora na disputa sim-bólica pela legitimidade do frevo sobre outros rit-mos, e, em particular, sobre a música baiana. Aidéia, portanto, mais afluente para uma concepçãode pernambucanidade está na apologia das “raízes”culturais, da suposta autenticidade das tradições emanifestações da cultura.

Esta talvez tenha sido uma das razões pelasquais a Rua da Moeda obteve uma certa legitimi-dade perante a opinião pública mais geral: o póloadotou em sua variada programação, ao lado debandas de rock e mangue, uma programação queincluía de modo substancial esses valores da cha-mada “cultura popular pernambucana”. Emborahouvesse uma programação oficial de eventos di-ferenciados para a Rua da Moeda, parece claroque a meta não era apenas incentivar a diversida-de, mas uma forma de assegurar as fronteiras e asespecificidades de cada pólo. A fragmentação exis-tente no Bairro não resultava, assim, apenas da es-colha das pessoas que freqüentavam cada um des-ses espaços. A assimetria dos usos foi observadapela prefeitura e incorporada à programação dife-renciada de eventos que ocorriam em cada pólo.A princípio, o fato de haver programações oficiaisdistintas para cada público poderia ser interpreta-do como uma sensata atitude de respeito à dife-rença, não fosse a enorme discrepância que pau-tava o tratamento dispensado aos diferentes pólos.Excetuando o próprio pólo Bom Jesus, o resto doBairro não tinha sido beneficiado por qualquermedida que viesse melhorar a sua infra-estruturaurbana ou o estado de conservação das suas edifi-cações. Havia, contudo, um grande projeto de ur-banização a ser implantado na rua da Moeda, masas características dessas ações estavam voltadaspara o mesmo freqüentador do pólo Bom Jesus,seguindo a lógica de mercado que singulariza aspráticas de gentrification.18

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O pólo Moeda cresceu em torno do bar Pinade Copacabana. Nele estavam os bares voltadospara um público jovem, que formavam o perfilunderground do lugar, chamado muitas vezes de“Berlim Oriental”. Também existiam cavaletesnesse pólo, colocados com o mesmo pretexto deimpedir que algumas áreas de lazer fossem ocu-padas pelos veículos. Existia, contudo, diferençasrelevantes na função desses cavaletes. A maiorianão tinha o mesmo esquema de vigilância doBom Jesus. Havia, na verdade, uma inversão dalógica dessa vigilância, que podia ser observada,principalmente, em dias de eventos no pólo. Aprogramação cultural, como já se disse, diferiapor abrigar as manifestações mais voltadas ao cir-cuito Manguebeat.

No carnaval, quando todas as fronteiras doBairro ficavam mais fluidas e os cavaletes torna-vam-se ineficazes, o RecBeat se mantinha comoum diferencial da Rua da Moeda: rock, funk, ma-racatu, frevo e embolada faziam do Moeda um an-tropofágico espaço-mangue, com apresentaçõesde grupos e artistas como Lia de Itamaracá, Mes-tre Ambrósio, Querosene Jacaré, Faces do Subúr-bio, Mundo Livre S/A, entre outros, além das par-ticipações de Naná Vasconcelos e do irreverentegrupo paulistano Karnak. Diferentemente dasatrações do palco central do largo do Marco Zero,cuja programação tendia ao gosto médio e maisabrangente dos freqüentadores do Bairro, o póloMoeda continuava identificado com o chamadocircuito “alternativo”.

Nas festividades de São João ocorria a mesmadiferenciação. Enquanto o eixo Marquês de Olinda-Rio Branco promovia apresentações de quadrilhase pequenas bandas para que as pessoas dançassemna rua, no pólo Moeda se apresentavam, por exem-plo, Selma do Coco, Mestre Salustiano e a Bandade Pífanos de Caruaru, entre outros. Era nessasocasiões que se observava a inversão no sistema desegurança. Enquanto no Bom Jesus a vigilânciaocorria de dentro para fora, ou seja, ela era direcio-nada para quem não estava no eixo delimitado, noMoeda ocorria o contrário: a vigilância era exerci-da de fora para dentro, sobre os que estavam nointerior do pólo. Os próprios freqüentadores eramconstantemente observados enquanto dançavam ese divertiam, muitas vezes em grupo, fazendo ci-

randas, das quais participava quem desejasse: estra-nhos, conhecidos, amigos, eventuais turistas depassagem pela cidade. As sociabilidades que nopólo Moeda se estruturavam pareciam, em geral,ter pouco vínculo com a dimensão propriamenteeconômica do consumo. As pessoas que o freqüen-tavam pareciam estar ali para “consumi-lo” comosímbolo, para trocar significados, mais, enfim, peloque aquele espaço significava. As diferenças, quese codificavam em cada gesto, roupas e adereços,tornavam mais fluidas as fronteiras simbólicas queseparam as pessoas, permitindo interações múlti-plas. Era comum ver, neste pólo, uma cena quasecinematográfica: marinheiros recém-chegados deoutro país dançavam, à meia luz e ao som de ra-diola de ficha, com prostitutas que se misturavamaos demais freqüentadores, oferecendo um mo-mento suspeito de volúpia, sem tanta cautela e re-ceio. Meninos cheiravam cola, jovens dançavamreggae e andavam em bandos. Mal iluminado esem nenhuma obra de restauração, o pólo Moedaconseguiu também “revitalizar” um espaço do Bair-ro, imprimindo sua própria dinâmica de usos. Osmeninos que eram impedidos de permanecer noBom Jesus sempre ressurgiam no Moeda, sur-preendendo o crédulo transeunte que pensavanão existir menores em situação de rua no cenárioenobrecido. Um dos “pontos de fuga” do Bairro doRecife era exatamente outro pólo que se desenvol-veu à revelia do Plano de Revitalização.

O chamado pólo Moeda foi um caso de ocu-pação espontânea, numa área do Bairro que ain-da não tinha sido “revitalizada”. Seu surgimentoradicaliza o que estou chamando aqui de contra-uso, exatamente porque pode ser compreendidocomo uma resposta às fronteiras “enobrecidas”que demarcavam socioespacialmente o pólo BomJesus. Assim, o pólo Moeda seria um contra-espa-ço: nele, subvertiam-se quase todas as sociabilida-des que não podiam ocorrer em outras áreas doBairro. Da mesma forma como ocorria no Bom Je-sus, as fronteiras do pólo Moeda também circuns-creviam e definiam um estilo de vida que só po-deria ser vivenciado naquele espaço. Dificilmentese via o freqüentador desse pólo na rua do BomJesus, mas a recíproca nem sempre era verdadei-ra, excetuando alguns turistas que desejavam co-nhecer o Bairro como um todo. Às vezes, essas

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pessoas cruzavam as fronteiras, embora a maioriados usuários do Bom Jesus não freqüentasse oMoeda, exatamente porque ela é era antítese doque, em geral, procuravam: segurança para o la-zer, em uma rua bem iluminada e vigiada.

O público da Bom Jesus vem para a Rua da Moe-da. Olha, o público da Bom Jesus pode até fugirde lá, às vezes, pode até vir. Talvez o turista quevai para lá. Mas o público que vai para lá jamaisvem para cá, sem dúvida.19

Em geral, esse fluxo de pessoas do Bom Jesuspara o Moeda ocorria mais em dias de eventos –como a grande festa carnavalesca que passou aacontecer no Bairro –, quando o grande número depessoas que freqüentava todo o Bairro acabava porpulverizar qualquer espacialidade existente, flexibi-lizando as fronteiras que demarcavam as identida-des socioespaciais. Mas, em dias normais, exata-mente quando esses espaços eram ocupados coti-dianamente pelos seus freqüentadores usuais, essafragmentação não apenas era mais nítida comotambém mais difícil de ser superada. Era poucoprovável que qualquer usuário do Bom Jesus, sem-pre bem vestido e portando códigos corporais es-tranhos aos freqüentadores do Moeda, adentrassemo pólo, principalmente no trecho mais segmentadodo bar do Rainha: um pequeno espaço fora dos ca-valetes, mais ainda dentro do pólo Moeda, onde,em torno de alguns pequenos botecos, diferentes“tribos” urbanas se encontravam.

Os estereótipos eram variados: corpos tatua-dos, cabelos grandes, outros curtos e coloridos,cabeças raspadas, estilo rastafari. Bermudão na al-tura do joelho, roupas dos anos de 1960. Óculosescuros com aros coloridos, boné com aba virada.São funkeiros, rockeiros, magueboys, skatistas.Estes últimos, vez ou outra, iam em bando até arua Madre de Deus para fazer suas manobras, sobo olhar da Polícia Militar. O clima era sutilmentehostil a quem quer que não se enquadrasse em al-gum dos perfis dos grupos, embora fosse possíveltransitar (quase) normalmente pelo local. Não ra-ramente, ocorriam batidas policiais que já não sur-preendia seus freqüentadores.

Dizer que não existiam fronteiras no póloMoeda é um erro. A diferença é que essas frontei-

ras tinham outros parâmetros de inclusão e exclu-são, quando comparadas às do Bom Jesus. Quan-do havia o Mercado Mundo Mix no Bairro, eramjustamente os freqüentadores do pólo Moeda quecapitaneavam o evento, embora muitos dos usuá-rios do Bom Jesus também participassem. Algu-mas vezes, o mercado aconteceu no antigo prédioda Alfândega, então denominado “Casarão Pop”,noutras no Armazém 13, na área dos armazénsabandonados do Cais do Porto. Havia, nessas oca-siões, códigos identitários inscritos nas roupas,nos corpos, no comportamento. Embora a princi-pal atividade do Casarão fosse a própria “feira”, naqual de tudo se vendia, as relações que ali se de-senvolviam não poderiam ser reduzidas a um sim-ples ato econômico de consumo. A maioria daspessoas não estava naquele ambiente para pro-priamente comprar alguma coisa. Com um enor-me pé direito e em precário estado de conserva-ção, o Casarão tinha sua paredes pichadas ou gra-fitadas. Inúmeras barracas improvisadas vendiamuma miscelânea de objetos: artesanatos em couro,barro e papel machê, bijuterias, roupas em bati-que, miçangas, caleidoscópios, discos, fantasiasde carnaval, adereços de maracatu e frevo, livrose incensos Hare-Krisna, artigos para decoração elanches, além de um tatuador de plantão.

Sob uma fraca iluminação, que conferia aoprédio um ar de porão, as pessoas andavam deum lado para o outro. Um palco improvisadoservia para apresentações de bandas locais. Erapossível sentir um aroma de incenso e maconhaque perfumava todo o ambiente. De vez emquando, uma patrulha motorizada da polícia es-tacionava seu camburão e alguns homens entra-vam esbaforidos no Casarão, como se quisessem,de qualquer modo, disciplinar o uso daquele lu-gar. Saíam em seguida em silêncio, sob o olharmalicioso e cúmplice de muitos. Ninguém pare-cia se importar com aquela visita repentina. Naentrada (ou o que poderia ser também a saída),uma pista de skate continuava a entoar um ba-que solto, aonde se realizava um áspero balé. Nasaída (ou o que poderia ser igualmente a entra-da), jovens se amontoavam na rua escura, àsmargens do Capibaribe, cuja fedentina invadia asnarinas causando torpor. Ali, aonde as diferenças

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se codificavam em cada gesto e as fronteiras sim-bólicas pareciam se fluidificar, permitindo intera-ções múltiplas, prostitutas se misturavam aos de-mais freqüentadores, oferecendo seus “serviços”por apenas quinze reais. Em um determinadodia, aconteceu vizinho ao Casarão um luxuosocasamento na antiga Igreja Madre de Deus. Nacalçada, mulheres com longos vestidos e homensde terno preto esperavam a noiva, sob o olharatento de fortes seguranças. Na entrada do Casa-rão, garotos sem camisa rodopiavam em seus ba-rulhentos skates. O tênue limiar entre aqueles es-paços parecia se dissipar quando os skatistasavançavam na direção da Igreja e executavammanobras desafiadoras e arriscadas, seguidas deum grito incompreensível, num singular movi-mento de codificação da diferença.

Da mesma forma que o pólo “enobrecido” ti-nha seus ruídos visuais, configurados pelos contra-usos, também no eixo do pólo Moeda havia ruídosde “enobrecimento”, em meio a paisagem contra-enobrecida. O bar Pina de Copacabana tinha, emseu primeiro andar, a Discoteca da Pomba-gira. Su-bindo uma estreita escadaria, chegava-se a um es-paço quase escuro, iluminado por luzes vermelhas,onde casais dançavam salsa, mambo e merengue.Nada mais contra-enobrecido do que esse ambien-te. No entanto, a duas quadras da Pomba-gira, doisdancing bar reuniam exatamente o público quenormalmente freqüentaria o Bom Jesus. A discre-pância entre os ambientes era enorme, e seus fre-qüentadores, completamente diferentes. Em umdeles, instalado em um antigo sobrado de três pa-vimentos, carros de luxo anunciavam, já em suaentrada, que não se tratava mais de um local doMoeda, ainda que estivesse localizado em sua área.Com um rígido sistema de segurança, a danceteriacobrava cara a entrada. Confundido com um repór-ter paulista, graças à desenvoltura do meu infor-mante, entrei no recinto sem dificuldade. Estava re-pleto de gente. No térreo, um grupo de pagodeembalava uma estreita pista de dança, que exigiamuita paciência para atravessá-la. No andar decima, mesas, garçons bem vestidos serviam bebidasàs pressas, casais namoravam. Gente jovem, em ge-ral branca e aparentando uma elevada posição so-cial. No local, havia, entretanto, outro pavimento.

Assim como na Pomba-gira, uma estreita escadariaconduzia o desavisado visitante para uma portaque parecia a de um frigorífico: de metal, com umapequena e circular janela de vidro, através da qualviam-se luzes fortes e muita fumaça branca. Aocontrário do ambiente rústico e underground doPina de Copacabana, o último andar do velho so-brado era um espaço sofisticado: um ambiente fu-turista, com iluminação estroboscópica, música tec-no e gelo seco.

Outra área que também retinha ruídos eno-brecidos era a dos Armazéns 13 e 14. Destinada agrandes eventos, o público que a freqüentava eramais heterogêneo, não havendo cavaletes: o poli-ciamento, mais uma vez, parecia ter como alvo ospróprios freqüentadores. Tanto se podia observaros usuários mais característicos do pólo Moedacomo também freqüentadores de ocasião, que iamem busca do show propriamente dito. Os ruídos“enobrecidos” do pólo Moeda guardavam um con-traste substancial em relação aos ruídos contra-eno-brecidos do Bom Jesus. Estes ocorriam na rua,abertamente, e tinham um sentido contrastivo evi-dente. Os primeiros, excetuando os shows do Ar-mazém 13 e da área externa do Armazém 14, sópermaneciam na rua o tempo necessário das lon-gas filas para adentrar os espaços fechados, ondeficavam confinados e protegidos por fronteiras in-transponíveis para muitos (bolhas de alvenaria).Mais do que ruídos, eles podem ser consideradosextensões, para outros pontos do Bairro, das socia-bilidades que ocorriam no cenário “enobrecido”.

Lugares e espaço público: uma breve (in)conclusão

A inteligibilidade das fronteiras que separa-vam os pólos do Bairro do Recife ultrapassa o fal-so dilema que busca indagar quem surgiu primei-ro, se os usos espacializados ou a programaçãodiferenciada de eventos. Essas variáveis foramconcomitantes: os usos inspiraram e demandarameventos específicos; e estes, por sua vez, contri-buíram para a manutenção das fronteiras e usosdiferenciados. Dessa convergência entre espaço eação, estruturam-se – como já sugeriu AntonioArantes (2000) – manifestações públicas diversas,

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a partir dos significados que as pessoas atribuema certos espaço da cidade:

Os habitantes da cidade deslocam-se e situam-seno espaço urbano. Nesse espaço comum, que écotidianamente trilhado, vão sendo construídascoletivamente as fronteiras simbólicas que sepa-ram, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, numapalavra, ordenam as categorias e os grupos sociaisem suas mútuas relações (Arantes, 2000, p.106)

Existia, no Bairro do Recife, o interesse po-lítico de assegurar essa espacialização dos usosque ordenam relações sociais, como forma degarantir algo maior que apenas o respeito peladiferença. Não “misturar”, embora nem sempresignifique discriminar, passou a ter, no Bairro doRecife, a conotação de separar. A diferença eraadmitida e respeitada, desde que cada uma ti-vesse seu lugar.20 A espacialização segmentadado Bairro “enobrecido” aconteceu, mas não naforma de guetos, mas de lugares: menos rígidosem suas demarcações, mas igualmente marcadospelos sentidos que são atribuídos a certos espa-ços da cidade. Lugares cujas fronteiras não semantiveram tão inflexíveis a ponto de anular aspossibilidades públicas de se estabelecer zonasde contato e negociação, que qualificariam o es-paço urbano do Bairro do Recife como um es-paço público.

No Bairro do Recife, a desapropriação de su-jeitos através de uma “curetagem social” (Certeau,1996) resultou em uma reordenação da lógica inte-rativa da vida pública, a partir das diferentes apro-priações dos lugares pelas práticas e pelas políticascotidianas dos usos do espaço urbano. Esses luga-res, embora representem formas de demarcação so-cioespacial que estriam os espaços da cidade, pre-cisam se contrapor entre si, na afirmação pública doreconhecimento e da sua própria existência e singu-laridade. Esses lugares, assim, além de desejaremser representados, como sugere Martín-Barbero, de-mandam igualmente ser reconhecidos: “[...] tornar-sevisíveis socialmente, em sua diferença” (Martín-Bar-bero, 2000, p. 45). As disputas que incidem sobreessas demarcações socioespaciais urbanas podemresultar tanto em um enfrentamento político maiselaborado quanto na mera contraposição de estilos

de vida, marcadas pelas formas cotidianas de ritua-lizar códigos de conduta. Em ambos os casos, po-dem ser estabelecidas as bases políticas dos usospúblicos dos espaços da cidade, na medida em quepráticas e sociabilidades urbanas que demarcam es-paços mediante condutas identitárias geralmenteevidenciam formas rituais e cotidianas da políticacomo ação simbólica (Leite, 2000).

Redescoberta e reinventada como imagemmoderna, a “Paris” pernambucana (e antiga Mau-ricéia) não eliminou as possibilidades de manifes-tações e discordância. Embora o conjunto de seusespaços tenha sido transformado em uma “paisa-gem de poder” (Zukin, 1995), os contra-usostransformaram um espaço moldado predominan-temente para as práticas econômicas e simbólicasde consumo e lazer em um espaço político de vi-sibilidade pública e contestação. A Rua da Moedafoi um dos lugares que se formou no Bairro doRecife Antigo, entre outros como a própria Rua doBom Jesus (típico lugar de consumo e exclusão,sendo a mais “enobrecida” das ruas), a favela doRato (lugar de refúgio, onde antigos moradores –excluídos dos processos de gentrification – conti-nuaram a residir no Bairro) e o largo do MarcoZero (entre-lugar de encontro, no qual diferentesidentidades se formavam, estabelecendo zonas decontato e conferindo visibilidade às distintas for-mas de inserção social e simbólica no Bairro).21

Se podemos finalizar com alguma indicaçãoconclusiva, a partir do caso da Rua da Moeda, di-ria que os lugares, quando erguidos pelos contra-usos no interior dos processos de gentrification,podem representar formas táticas – espacializadase simbólicas – de criar singularidades, expressardissensões e reivindicar direitos. Direitos de perten-cer à cidade, de estabelecer itinerários próprios, defazer do espaço público contemporâneo, enfim,um legítimo espaço político da diferença. Ao con-trário de significar uma espécie de “privatização”do espaço público – pelo aparente excesso de seg-mentação espacializada de modos de conduta pú-blica –, a construção social dos lugares politiza oespaço urbano (qualificando-o como espaço públi-co), na medida em que cada lugar, para se legiti-mar perante o outro – e a partir do qual se diferen-cia –, precisa igualmente ser reconhecido publica-mente em sua própria singularidade.

Talvez por isso se possa dizer que a lição deArendt continua válida e atual: o homem público,mesmo entrincheirado em seus lugares, “se dá aconhecer”. É na vida pública que as pessoas reafir-mam suas diferenças e legitimam suas visões demundo: o espaço público não se ergue na harmo-nia das falas, mas na comunicabilidade política do“desentendimento” (Rancière, 1996), da qual emer-gem diferentes inteligibilidades sobre fatos iguais, etorna factível a possibilidade democrática. Somen-te no âmbito da vida pública, e nunca na esferaprivada, as pessoas compartilham ou disputamrealidades, de onde aflora a condição humana dapluralidade, base da difícil convivência social e dasrelações de poder:

O poder só é efetivado enquanto a palavra e oato não se divorciam, quando as palavras não sãovazias e os atos não são brutais, quando as pala-vras não são empregadas para velar intençõesmas para revelar realidades [...] o poder passa aexistir entre os homens quando agem juntos, edesaparece no instante em que eles se dispersam(Arendt, 1987, p. 212).

NOTAS

1 Dados os limites naturais desse artigo, essa distinçãoaqui proposta está apenas brevemente apresentada.Maiores considerações podem ser consultadas emLeite (2001).

2 A tradução desse neologismo, derivado do inglêsgentry, é ainda controverso no Brasil, razão pelaqual utilizo aqui o termo original. Silvana Rubino ePedro Maia Soares, tradutores de Sharon Zukin, noBrasil, da coletânea O Espaço da diferença (Campi-nas, Papirus, 2000), organizada por Antonio Aran-tes, adotam a expressão “enobrecimento” para otermo. De outro lado, a tradução brasileira para olivro de David Harvey, The condition of postmoder-nith (Condição pós-moderna, São Paulo, Loyola,1992), optou por utilizar o sofrível termo “gentrifi-cação” para o correspondente em inglês. No entan-to, o tradutor Julio Assis Simões manteve o termooriginal em inglês na sua versão para o livro doMike Featherstone, Consomer culture & postmoder-nism (Cultura de consumo e pós-modenismo, SãoPaulo, Studio Nobel, 1995). Apesar de estar deacordo que o melhor termo em português aindaseja “enobrecimento”, optei por manter o termo

original na língua inglesa por se tratar de uma ex-pressão nova, cujo problema de tradução ainda nãoestá solucionado. Além disso, o termo “enobreci-mento”, embora pareça ser o mais adequado, retémainda uma imprecisão: refere-se ao “nobre” comocategoria de sujeitos de um processo que é em ge-ral, e particularmente no Brasil, relacionado mais auma estratificação social por renda do que por umsistema de status.

3 A “Operação Pelourinho”, como ficou conhecido oambicioso projeto de recuperação de um dos maisexpressivos conjuntos arquitetônicos do período co-lonial brasileiro, foi uma experiência precursora daspráticas de gentrification no Brasil. Situado no cen-tro histórico da cidade de Salvador, capital do Estadoda Bahia, o Pelourinho sofreu uma reforma “relâm-pago” quando em 1992 o governo do Estado abriu li-citação para que empresas privadas realizassem a re-forma em um prazo de 150 dias para a conclusão dasobras (Fernandes et al., 1995, p. 47). Realizada emcurto espaço de tempo, a reforma foi duramente cri-ticada em vários aspectos, a começar pelo fato de tersido executada praticamente à revelia das instânciasmunicipais e federais de preservação.

4 Iniciado no Rio de Janeiro, o Projeto Cores da Cida-de desenvolveu o Projeto Corredor Cultural, que re-cuperou parte das fachadas da rua Sete de Setem-bro, entre 1993 e 1994 (Finguerut, 1995, p. 53).

5 Agência de Desenvolvimento Econômico do Estadode Pernambuco – AD/Diper, Plano de revitalização- Bairro do Recife, Planejamento Urbano e Econo-mia, Recife, 1992, vol.1, p.37.

6 Idem, ibidem.

7 Idem, pp. 37-39.

8 Idem, p. 41.

9 Depoimento de Fernando Andrade, então coorde-nador executivo do Escritório de Revitalização doBairro do Recife. Entrevista concedida ao autor, nacidade do Recife, em 11 de abril de 2000.

10 Realizado no dia 2 de fevereiro de 1998 e promovi-do pela prefeitura da cidade do Recife em parceriacom a Associação dos Empresários do Bairro do Re-cife – ASBAR, o evento reuniu empresários e políti-cos locais. Na ocasião, foi celebrado o novo acordocom o Projeto Cores da Cidade, agora também coma participação do Programa BID/Ministério da Cul-tura, para ampliação e consolidação da “revitaliza-ção” do Bairro. Na ocasião, foi amplamente discuti-da a idéia de transformação do Bairro em um mixque diversificasse as atividades de comércio e servi-

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ços, como num shopping center. (PCR/URB/ERBR,Fórum Bairro do Recife, Recife, mimeo., 1998).

11 PCR/URB/ERBR, Revitalização do Bairro do Recife,Proposta de Tombamento do Núcleo Original da Ci-dade do Recife – “Dentro de Portas”, Recife, 1998.

12 Trecho da música “Rios, Pontes & Overdrives”, deChico Science e Fred 04. Cf. Chico Science & NaçãoZumbi, Da lama ao caos, Sony Music Entertainment.

13 Para uma maior compreensão das especificidadesdas práticas sociais da Rua do Bom Jesus, consultarLeite, 2001; 2002.

14 Para mais detalhes sobre o manguebeat, consultar obom livro do jornalista José Teles, Do frevo ao man-guebeat, São Paulo, Editora 34, 2000.

15 Depoimento de Noé Sérgio, arquiteto da prefeiturada cidade do Recife. Entrevista concedida ao autor,na cidade do Recife, em 13 de abril de 2000.

16 Depoimento de Roger de Renoar, animador culturale então proprietário do bar Pina de Copacabana.Entrevista concedida ao autor, na cidade do Recife,em 14 de abril de 2000.

17 Ministério da Cultura, Portaria n° 263 de 23 de julhode 1998, do Ministro Francisco Weffort, publicadoem Diário Oficial da União em 24 de julho de 1998.

18 A área que compreende a Rua da Moeda está cir-cunscrita ao chamado pólo Alfândega, área que es-taria para “revitalizada” em uma nova etapa do Pro-jeto de revitalização, com recursos do ProgramaMonumenta/BID. Pelo plano, estariam previstasobras de recuperação do antigo prédio da Alfânde-ga, onde seria instalado um shopping cultural. A Ruada Moeda seria transformada em um boulevard, fa-zendo parte do trajeto do corredor cultural que in-terligaria os espaços enobrecidos do Bairro até opólo Bom Jesus. Caso essa nova etapa venha aacontecer, muito provavelmente as sociabilidadesda atual Rua da Moeda desaparecerão ou migrarãopara outra localidade do Bairro.

19 Depoimento de Roger de Renor. Entrevista concedi-da ao autor, na cidade do Recife, em 14 de abril de2000.

20 Nesse sentido, é elucidativa a fala de Fernando An-drade, então coordenador executivo do Escritóriode Revitalização do Bairro do Recife. “[...] no carna-val atual nós fizemos uma [programação] aqui narua do Bom Jesus, fizemos um carnaval na rua daMoeda, esses distintos, lógico. Mas são tipos de pes-soas diferentes, de gostos diferentes. Lá, é um pes-soal mais mangue [...]. O bom do bairro é esse. É

um bairro eclético, é um bairro que tem mais de umpensamento. Então tem lugar para todo tipo de ca-beça. [...] Exatamente sem querer discriminar nin-guém, simplesmente porque se criou um públiconaquela área da Rua da Moeda com uma mentalida-de diferente do público que está aqui [no pólo BomJesus]. Então, nós não queremos é que ele tenha lá,juntar tudo bem, mas se eles estão lá, são pessoasexcelentes, aqui também, mas têm uma cabeça di-ferente daqui. Você não pode misturar, infelizmen-te”. Indagado se esse excesso de espacialização deatividades não resultaria na criação de guetos, Fer-nando Andrade refutou: “Não foi feito para isso, tá?Primeiro, esse pólo Alfândega, pólo Moeda, comochamam, ele foi criado espontaneamente [...] se éespontâneo é do povo, então porque não incenti-var? E eu não acredito que vamos criar guetos den-tro do bairro aqui não. Tanto que o trabalho quenós fazemos com os empresários, donos dos esta-belecimentos, é como um todo. Eu reuni o pessoalda Bom Jesus, da Rua da Moeda, e eu sempre in-centivo que a ABR, a associação de empresários,seja uma associação de todo um bairro. Infelizmen-te ela só trabalha direcionada para o pólo Bom Je-sus”. (Depoimento de Fernando Andrade. Entrevis-ta concedida ao autor, na cidade do Recife, em 11de abril de 2000).

21 Tenho tentado explorar, separadamente, alguns des-ses lugares: no presente artigo, dedico-me à Rua daMoeda e Rua do Bom Jesus; em “Localizando o es-paço público: lugares, política e desentendimento”,a ser publicado em coletânea organizada por Anto-nio Arantes (Ed. da Unicamp), tento analisar as im-plicações das sociabilidades do largo do Marco Zerona construção do espaço público; e, em “Consumomix da tradição”, artigo em preparação para a Re-vista do Condephaat, busco analisar as tensões e es-pecificidades da rua Bom Jesus e da favela do Rato.A análise integral do conjunto desses lugares en-contra-se em Leite (2001).

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CONTRA-USOS E ESPAÇOPÚBLICO: NOTAS SOBRE ACONSTRUÇÃO SOCIAL DOSLUGARES NA MANGUETOWN

Rogerio Proença Leite

Palavras-chaveGentrification; Patrimônio cultural;Espaço público; Lugares; Bairro doRecife

Este artigo analisa as transformaçõesdo espaço público na experiênciaurbana contemporânea, tendo comoreferente empírico o caso do antigoBairro do Recife, em Pernambuco. Ahipótese do trabalho refere-se àpossibilidade dos usos cotidianos epúblicos de esses espaços de patri-mônio contribuírem na qualificaçãode certos espaços urbanos como es-paços públicos. O argumento centralé que os usos e contra-usos dos es-paços de gentrification constituemlugares e que estes qualificam os es-paços urbanos como espaços públi-cos, na medida em que os tornamcentros de disputas práticas e sim-bólicas pelo reconhecimento políti-co e pela visibilidade pública dasdiferenças.

COUNTER-USES AND PUBLICSPACE: NOTES ON THE SO-CIAL CONSTRUCTION OF PLA-CES IN MANGUETOWN

Rogerio Proença Leite

Key wordsGentrification; Public space; Culturalheritage; Places; Recife quarter.

This article analyses the transforma-tions of the public space in the con-temporary urban experience, pre-senting as an empirical reference theold Bairro do Recife (Recife Quar-ter), in Pernambuco, Brazil. Thehypothesis of this work is concer-ned with everyday and public usesof these heritage spaces that couldcontribute to the qualification of cer-tain urban spaces as public spaces.Therefore, the central argument ofthe article is that the uses and coun-ter-uses of gentrification spaces canconstitute places, and that these pla-ces qualify urban spaces as publicones, insofar as they promote thesespace centers as practical andsymbolic disputes for political ack-nowledgment and for the public vi-sibility of differences.

CONTRE-USAGES ET ESPACEPUBLIC: NOTES À PROPOS DELA CONSTRUCTION SOCIALEDES LIEUX À MANGUETOWN

Rogerio Proença Leite

Mots-clésGentrification; Patrimoine culturel;Espace public; Lieux; Quartier deRecife.

Cet article analyse les transforma-tions de l’espace public dans le ca-dre de l’expérience urbaine contem-poraine, ayant pour référence empi-rique le cas de l’ancien Quartier deRecife, dans l’État de Pernambuco,Brésil. L’hypothèse de travail se ré-fère à la possibilité des usages quo-tidiens et publics de ces espaces dupatrimoine de contribuer à la quali-fication de certains espaces urbainsen espaces publics. L’argument cen-tral est que les usages et contre-usa-ges des espaces de gentrificationconstituent des lieux et que ceux-ciqualifient les espaces urbains com-me espaces publics, dans la mesureoù ils deviennent objets de conflitspratiques et symboliques pour la re-connaissance politique et pour la vi-sibilité publique des différences.