revista brasileira de ciÊncias do esporte … · georges vigarello afirma que o perigo, nas formas...

181
ISSN 0101-3289 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS DO ESPORTE Campinas, v. 27, n. 1, p. 7-184, set. 2005

Upload: hoangthuan

Post on 13-Oct-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

ISSN 0101-3289

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS DO ESPORTECampinas, v. 27, n. 1, p. 7-184, set. 2005

Revista Brasileira de Ciências do Esporte (ISSN 0101-3289) é uma publicação oficial do ColégioBrasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), com periodicidade quadrimestral, editada pelo CBCE e

pela editora Autores Associados. Indexada: Sibradid, Sportsearch, Sport Discus, Ulrich’s InternationalPeriodicals, Catálogo Coletivo Nacional de Publicações Seriadas (CCN).

EDITORESCarmen Lúcia Soares ([email protected])Jocimar Daolio ([email protected])

APOIO AOS EDITORESDulce Inês L. dos S. AugustoRomildo Sotério de Magalhães

CONSULTORESPesquisadores Doutores da Educação Física/Ciências do Esporte e Áreas Afins

APOIO FINANCEIRO

APOIO INSTITUCIONALFaculdade de Educação Física – Unicamp

CO-EDIÇÃOCBCE – Editora Autores Associados

Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 7-184, set. 2005

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS DO ESPORTE

CONSELHO EDITORIALAlexandre Fernandez Vaz (Universidade Federal

de Santa Catarina, Brasil)Andreas H. Trebels (Universität Hannover Institut

für Sportwissenschaft, Alemanha)Christopher Rojek (Nottingham Trent University,

Faculty of Humanities, Inglaterra)David W. Hill (University of North Texas,

Department of Kinesiology, Health Promotionand Recreation, EUA)

Eduardo Kokubun (Universidade Estadual Paulista/Rio Claro, Brasil)

Georges Vigarello (Université de Paris V, École desHautes Études en Sciencies Sociales, França)

Go Tani (Universidade de São Paulo, Brasil)Hugo Rodolfo Lovisolo (Universidade Gama Filho

e Universidade Estadual do Rio de Janeiro,Brasil)

Manuela Hasse (Universidade Técnica de Lisboa,Faculdade de Motricidade Humana, Portugal)

Mauro Betti (Universidade Estadual Paulista/Bauru,Brasil)

Pietro Cerveri (Politecnico di Milano, BiomedicalEngineering Department, Itália)

Ricardo Machado Leite de Barros (UniversidadeEstadual de Campinas, Brasil)

Valter Bracht (Universidade Federal do EspíritoSanto, Brasil)

INFORMAÇÕESwww.cbce.org.br

ISSN 0101-3289

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS DO ESPORTECampinas, v. 27, n. 1, p. 7-184, set. 2005

TemáticaDopping, desempenho e vida

EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.

Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901 – CEP 13084-008

Campinas-SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930

e-mail : [email protected]

Catálogo on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial

“Prof. Casemiro dos Reis Filho”

Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor Executivo

Flávio Baldy dos Reis

Coordenadora Editorial

Érica Bombardi

Assistente Editorial

Aline Marques

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, Campinas, Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, 1979.

Quadrimestral ISSN 0101-3289 Co-Edição: Autores Associados

Dopping, desempenho e vidaCDD. 613.7

796

Diagramação e Composição

DPG Ltda.

Revisão

Rodrigo Nascimento

Capa

Criação e leiaute a partir do desenho Grupo deCavaleiros, de Francisco Salviati, séc. XVI

Milton José de Almeida

Arte-final

Wesley Lopes de Magalhães

Impressão e Acabamento

Gráfica Paym

COMERCIALIZAÇÃO E ASSINATURA

Editora Autores Associados Ltda.

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901 – Campinas-SP

CEP 13084-008 – Pabx/Fax: (19) 3289-5930

e-mail : [email protected]

Catálogo on-line : www.autoresassociados.com.br

SUMÁRIO

EDITORIAL 7[Editorial]

ARTIGOS ORIGINAIS[Articles]

DOPING: CONSAGRAÇÃO OU PROFANAÇÃO 9[Doping: consecration or profanation]Méri Rosane Santos da Silva

DOPING, ESPORTE, PERFORMANCE: NOTAS SOBRE OS “LIMITES” DO CORPO 23[Doping, sport, performance: notes on “limits” of body]Alexandre Fernandez Vaz

DOPING NO ESPORTE: UMA ANÁLISE TENDO COMO FOCOOS ATLETAS OLÍMPICOS BRASILEIROS E ALEMÃES 37[Doping in sport: an analysis focused on brazilian and german olympic athletes]Otávio Tavares

O DOPING AO LONGO DO SÉCULO XX NA FRANÇA: REPRESENTAÇÕESDO PURO, DO IMPURO E DO SEGREDO 55[Doping during the XXth century in France: representations of purity, non-purity and secret]Eric Perera e Jacques Gleyse

USO DE ESTERÓIDES ANABÓLICO-ANDROGÊNICOS EACELERADORES METABÓLICOS ENTRE PROFESSORES DEEDUCAÇÃO FÍSICA QUE ATUAM EM ACADEMIAS DE GINÁSTICA 75[The use of anabolic-androgenic steroids and ephedra supplementsamong gym’s physical education teachers]Alexandre Palma e Monique Assis

PREVALÊNCIA DO USO DE SUBSTÂNCIAS QUÍMICAS ENTRE ADOLESCENTES,COM FINALIDADE DE MODELAGEM CORPORAL 93[Prevalence in use of chemical substances among adolescents]Daniel Carreira Filho e José Martins Filho

DOPING NO ESPORTE – PROBLEMATIZAÇÃO ÉTICA 113[Doping in sport – ethical problematization]Frederico Souza da Costa, Marcos A. Balbinotti, Carlos A. Balbinotti,Luciano Santos, Marcos Barbosa e Luciana Juchem

DOPING E MULHERES NOS ESPORTES 123[Doping and women in sports]Fabiano Pries Devide e Sebastião Josué Votre

RISCOS DA BELEZA E DESEJOS DE UM CORPO ARQUITETADO 139[Risks of beauty and disire of na arquitected body]Marina Guzzo

O DESEMPENHO DO HOMEM-MASSA NAS PRÁTICAS CORPORAIS ESPORTIVAS:UMA RELAÇÃO DE AMOR E DE ÓDIO 153[The man-mass performance in the practices of training human body:a relation of “love and hatred”]Rogério Rodrigues

A OBSESSÃO MASCULINA PELO CORPO: MALHADO, FORTE E SARADO 167[The male obsession for the body: body bilders, supermuscular and strong]Maria Elisa Caputo Ferreira, Antônio Paulo André de Castro e Gisele Gomes

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 183[Rules for publication]

7Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 7-8, set. 2005

EDITORIAL

Não foram necessárias muitas décadas para que fosse assistida a uma pro-funda transformação no esporte1. Se, num primeiro momento, esta transformaçãofoi impulsionada pelos nacionalismos decorrentes da Guerra Fria, num segundomomento e não necessariamente posterior, mas paralelamente, o fenômeno daespetacularização foi aquele que contribuiu mais fortemente para uma profundatransformação na qual se inclui a máxima planificação do treinamento com partici-pação constante da área médica e prática planejada de dopagem.

Os últimos trinta anos podem ser considerados como um período em quefoi colocada em cena uma luta antidoping, traduzida, entre outros fatores, pelaexpansão e sofisticação dos controles de uso de inúmeros produtos dopantes bemcomo a promulgação de leis impeditivas de seu uso. O problema que se coloca éque se, inicialmente, as práticas de dopagem eram quase artesanais, hoje, elassofisticaram-se e são mesmo o resultado de máxima racionalização científica, o quepermite que escapem inúmeras vezes aos controles desenvolvidos.

Torna-se imperiosa uma compreensão mais alargada das práticas de dopingno meio esportivo, portanto faz-se necessário agregar às preocupações de ordemmédica e ou fisiológica aquelas que permitam identificar e refletir, por exemplo,sobre suas dimensões históricas, sociais e, sobretudo, como fenômeno coletivo.

Georges Vigarello afirma que o perigo, nas formas mais recentes no que dizrespeito ao doping, é que seu consumo não é mais individual e disperso e simcoletivo e organizado. A transgressão não se revela apenas como um atentado àintegridade do indivíduo, mas constitui-se em prática de especialistas dopadores emedicalização desta ação, recebendo orientações precisas e fazendo parte de re-

1. A elaboração deste editorial baseou-se em discussões acerca do doping em Catherine Louveau,Muriel Augustini, Pascal Duret, Paul Irlenger e Anne Marcellini. Dopage et performance sportive:analyse d’une pratique prohibée. Paris: INSEP-Publications, 1995.

8 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 7-8, set. 2005

des de fornecimento constituídas profissionalmente. Dessa forma, o doping é umfenômeno que concerne à toda a sociedade e não apenas à sociedade esportiva,ele pode ser considerado como um problema de saúde pública2.

O CBCE, como entidade científica, e a RBCE, como prestigiado periódicoacadêmico, nunca dedicaram atenção especial a esse tema e a essa problemática depesquisa. Ao longo de sua história, encontramos na RBCE poucos artigos sobre odoping e este número busca cobrir parte dessa lacuna, oferecendo à comunidadeacadêmica um conjunto de artigos abarcando nas múltiplas faces desse complexofenômeno.

Os Editores

2. Georges Vigarello no livro Du jeu ancien au swhou sportive: la naissance d’un mythe. Paris: Seuil,2001, especialmente o item intitulado le sport dopé, p. 169-188.

9Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

DOPING:CONSAGRAÇÃO OU PROFANAÇÃO

Dra. MÉRI ROSANE SANTOS DA SILVAProfessora Adjunta do Departamento de Educação e Ciência do

Comportamento (Decc) da Universidade Federal do Rio Grande (Furg)Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos da Corporeidade (Nupeco)

E-mail: [email protected]

RESUMO

O presente texto pretende discutir a questão do doping, a partir da perspectiva ética ebioética, identificando aqueles elementos fundamentais para o empreendimento de tal de-bate. Para tanto, na primeira parte deste trabalho, levantar-se-á a discussão a respeito dodoping de um modo geral, elencando os determinantes políticos, sociais e financeiros envolvi-dos nesta questão; em um segundo momento, o enfoque mais específico se dará na questãodas atividades físicas e esportivas, pautadas pela perspectiva do rendimento; e, por fim,identificar-se-á os elementos éticos e bioéticos necessários para o enfrentamento do debatea respeito do doping.

PALAVRAS-CHAVE: Educação física; ética; bioética; doping.

10 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

INTRODUÇÃO

A sociedade vem confrontando-se com denúncias a respeito de procedi-mentos na área da Educação Física que causam desconforto e atentam à concepçãode corpo e de vida humana que a maioria dos grupos sociais defenderam ou sus-tentaram. Essas denúncias referem-se, principalmente, a utilização de saberes eproduções científicas na área da Educação Física que possibilitam a manipulação e aampliação do rendimento corporal causando o aumento do número de morte dejovens, sejam eles atletas em plena atividade esportiva sejam adolescentes que uti-lizaram, inclusive, anabolizantes veterinários para “esculpir” seus corpos. Isso podeser constatado, por exemplo, em reportagens como a denominada “Futuro doesporte”, da Folha de S. Paulo, no suplemento da série Olimpíada 2000, denomi-nado “Como será o doping?”, que diz

o conhecimento científico do final do século 20 já permite que se preveja uma série decaminhos para melhorar o desempenho esportivo. A manipulação genética é certamenteum deles. Genes certos introduzidos em células específicas aumentarão a eficiência delas,por exemplo, na produção de proteínas musculares e no aumento da freqüência dosimpulsos elétricos que comandam as fibras. (FOLHA DE S. PAULO, 2000, p. 6)

Discutir a questão do doping a partir da análise do compromisso ético ebioético da Educação Física é o objetivo deste trabalho e a efetivação desse com-promisso assumirá os seguintes procedimentos: primeiro, levantar-se-á a discussãodo doping, de um modo geral, elencando os determinantes políticos, sociais e fi-nanceiros envolvidos nessa questão; em um segundo momento, o enfoque maisespecífico se dará na questão do esporte e, por fim, identificar-se-á os elementoséticos e bioéticos necessários para o enfrentamento desse debate.

A manipulação corporal, possibilitada através do uso de procedimentos cien-tíficos e sintetizada através do debate a respeito do doping, é uma das demandassociais e políticas que estão colocadas e precisa ser enfrentada de forma consistentee responsável, principalmente, por aqueles que defendem uma Educação Físicacomprometida com um corpo que não é simplesmente biológico, mas uma unida-de em que é possível resgatar o sensível e o existencial da vida humana. Nessesentido, o compromisso seria o de chegar ao que Rubem Alves tanto clama, ouseja, “acreditar que a Educação Física está em paz com o corpo”, que não desejavê-lo apenas como um meio para se chegar a um fim.

DOPING: UM TEMA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

A Educação Física vem sendo questionada pela vinculação com questõescomo exploração financeira, violência física e simbólica, manipulações políticas, eco-

11Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

nômicas e, principalmente, pelo doping. Esse tema além de ter ganho grande espa-ço nos veículos de comunicação torna-se emblemático, pois explicita a relação en-tre ciência e interesses econômicos e políticos, com objetivos que rompem com osprocedimentos morais socialmente constituídos.

Doping refere-se, originalmente, segundo De Rose (s./d.), a um processode adição e sua utilização estaria vinculada ao idioma dos Boers, população sul-africana, para a qual “dop” era a denominação dada a uma infusão estimulante utili-zada em festas religiosas. Na língua inglesa, a palavra surge no final do século XIX,com o objetivo de designar uma mistura de narcóticos ministrada em cavalos. Aindasegundo esse mesmo autor, a primeira substância realmente efetiva de melhoria dacapacidade de rendimento humano foi a anfetamina, criada por bioquímicos ale-mães, em 1938. Posteriormente, após a Segunda Guerra, foi criada a nandrolona,primeiro anabólico esteróide sintético, cujo o objetivo era “reestruturar o sistemamuscular esquelético dos prisioneiros de campos de concentração nazistas”. DeRose (s./d.) explica que o anabólico, por exemplo, nada mais é do que o hormôniosexual masculino, que tem, entre as suas propriedades, a fixação “de proteínas,retendo nitrogênio e água mesmo em organismos debilitados. Com isso há umaumento da massa muscular, estruturada basicamente através das proteínas e,logicamente, no aumento da força”.

Atualmente, o doping é definido pela Declaração Final da Conferência Mun-dial sobre Doping no Esporte, como “o uso de um artifício, substância ou método,potencialmente perigoso para a saúde do atleta e/ou capaz de aumentar suaperformance, ou a presença no corpo do atleta de uma substância ou a constataçãodo uso de um método presente na lista anexa ao Código do Movimento OlímpicoAntidoping”. A partir dessa perspectiva, para De Rose (s./d.) “é considerado dopingqualquer substância, agente ou meio capaz de alterar o desempenho de um atletaem uma competição desportiva”. O autor indica, ainda, que existem as seguintesclasses farmacológicas que são classificadas como doping: estimulantes psicomotores,aminas simpaticomiméticas, estimulantes do sistema nervoso central, narcóticos-analgésicos e esteróides anabólicos.

Além de ser considerado um “artifício ilegal” de melhoria da performancecorporal, outra acusação dirigida ao doping refere-se aos males que causa à saúde.Nesse sentido, segundo De Rose (s./d.), “o uso continuado, em ciclos extensos ecom pequeno intervalo, de doses altas de anabólicos, produz graves danos à saú-de”. Segundo esse autor, as principais conseqüências da utilização de anabólicosesteróides são: aumento do libido, atrofia testicular, dificuldades de ereção, aumen-to da mama, disfunção hepática, tumores benignos e malignos do fígado, aumentoda pressão arterial e do colesterol de baixa densidade, além da diminuição do

12 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

colesterol de alta densidade, o aumento de rupturas de tendão, de fraturas óssea,da agressividade, do comportamento anti-social, entre outros. Além desses proble-mas, no últimos anos, o fisiologista Renato Lotufo identificou o surgimento de cân-cer de mama entre os homens que utilizam de esteróides anabolizantes. SegundoLotufo (1999), “os esteróides sintéticos baixam a produção do hormônio natural. Aqueda na taxa de testosterona endógena provoca maior crescimento nas glândulasmamárias, aumentando as chances de tumores malignos”.

O argumento dos males causados à saúde pela utilização do doping são vá-lidos e até mesmo inquestionáveis científica e socialmente, no entanto, outros ele-mentos não são identificados neste debate e precisam ser explicitados para que estadiscussão se faça de forma consistente e responsável. Esses elementos são os as-pectos econômicos que envolvem a indústria do doping, ou seja, através da análisedo processo de produção e controle da dopagem, constata-se que sua proibição,na verdade, é desejável, não por uma questão de manutenção de uma possível“moralidade”, mas porque os lucros auferidos com a sua criminalização são maissubstanciosos do que a sua liberalização. De outra forma, as vantagens pecuniáriasobtidas pela indústria farmacológica, pelos laboratórios de aplicação de testesantidoping, pelos médicos e “fiscais” do comitê antidoping das organizações espor-tivas são infinitamente maiores se o doping permanecer na ilegalidade, pois umpossível controle social representaria, também, a divisão de recursos, o pagamentode impostos e a consequente responsabilização jurídica e financeira. Nesse caso, aliberação do uso do doping representa uma perda econômica e de poder.

Além disso, pode-se dizer que o pseudo controle do doping nas competiçõesesportivas pode ser mais lucrativo que o seu domínio, ou seja, não há interesse eco-nômico em estabelecer uma política de “moralização” dos jogos desportivos de altonível no que se refere ao doping, pois como afirma a Revista Expresso (1999),

um simples milésimo de segundo entre a conquista de uma medalha de ouro e uma deprata pode significar para um atleta de alta competição o recebimento de milhões dedólares em prêmios e avultadíssimas quantias de dinheiro para os respectivos patrocina-dores. E é por esta razão, absurda e desumana, que milhares de campeões usam o dopingpara atingir níveis de competitividade acima das suas próprias capacidades naturais.

Outra questão econômica e ao mesmo tempo ideológica que permeia autilização do doping é que além da destruição ou do comprometimento perma-nente dos corpos, estabelece-se a quebra do próprio mito do esporte e das ativida-des corporais como ações moralmente boas, modelos de organização e procedi-mento social desejável. Nessa perspectiva, o que está sendo severamente abaladoé a idéia de que o desporto e as atividades corporais são atitudes positivas, moral e

13Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

socialmente respeitáveis e valorizadas. No entendimento de Escobar (1993), os“princípios românticos que animavam o esporte há algumas décadas foram substi-tuídos por outros menos altruístas e de maior afinidade com nossa sociedade deconsumo”.

DOPING E O ESPORTE: O ETERNO DESAFIO

Se a tarefa de debater a questão do doping parece difícil de ser empreendi-da, por outro lado, é preciso considerar que qualquer fundamentação que sustenteessa discussão deve ser permeada pelos conhecimentos da ética e bioética e serreferenciada no respeito irrestrito pela vida humana – expressa pela corporeidade –,não se pautando pela procura ou construção de uma moralidade específica para oesporte.

Como foi analisado anteriormente, os interesses econômicos é que têmdefinido os rumos do esporte contemporâneo e com relação ao doping isso não édiferente. No entanto esses interesses financeiros não envolvem apenas os atletase seus patrocinadores, permeia também e, principalmente, os dirigentes e institui-ções esportivas, já que, segundo Tavares (2002), muitas entidades têm sido criadaspara “controlar” e combater o uso de determinadas substâncias e procedimentosdefinidos como auxílios ilegais ao desempenho humano.

A mais recente destas organizações e, provavelmente, a mais poderosa delas todas éa Wada (World Anti Doping Association). Organizada como uma ONG, a Wada é umainstituição multi-lateral que congrega organizações esportivas, organizações governamen-tais e não-governamentais e órgãos internacionais. Tem estreita ligação com o ComitêOlímpico Internacional (COI), embora formalmente independente, tendo tido suas açõesiniciais financiadas por uma dotação de verba do COI da ordem de 25 milhões de dólares(p. 44).

O envolvimento de tais organismos e instituições com interesses que vãomuito além das questões desportivas fazem com que o debate a respeito do dopingfique comprometido, levando a que esses órgãos se tornem “brandos com as dro-gas”, ou como diz a Revista Expresso, “vários críticos denunciam que o COI, porexemplo, ignorou, por vezes, resultados positivos, receando que manchassem aimagem dos jogos olímpicos”.

Segundo Rouse (1999), “a estrutura está se rompendo, e o doping não éapenas tolerado, mas muitas vezes incentivado”, porque o seu uso pode ser vistocomo uma grande fonte de lucro para os laboratórios e indústrias farmacêuticas,pois são eles que produzem não só as substâncias ilícitas – que se tornam maislucrativas ainda porque são ilegais – mas porque, ao mesmo tempo, são eles que

14 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

dominam as tecnologias dos instrumentos e reagentes que compõem os testesantidoping. Para Tavares (2002), “há, é claro, imensos interesses comerciais emjogo nesta questão, mas pode-se pensar que os grupos farmacêuticos também sãosuficientemente fortes e estão potencialmente interessados em auferir grandes lu-cros com a venda indiscriminada do que hoje é restrito” (p. 46).

Essa situação decorre, fundamentalmente, da “transformação do esporte emum negócio e dos atletas em profissionais”, ou como diz o técnico John Leonard,“patrocinadores não gostam de ver suas marcas associadas a escândalos. Por isso,sempre que pode o Comitê Olímpico evita o escândalo”. Nas Olimpíadas de Atlanta,por exemplo, foram anunciados apenas dois casos comprovados de uso de esteróidesanabólicos. Para o médico Donald Catlin, que supervisionou os testes, outros casosforam engavetados. Segundo ele, “houve vários resultados positivos de esteróide enão posso entender por que não foram divulgados”.

Nas palavras de Tavares (2002), em função “das qualidades educativas histo-ricamente tributadas ao esporte, de seu crescente valor econômico e da transfor-mação das drogas e psicotrópicos em uma questão social controversa, o doping foise tornando cada vez mais uma problemática sensível no campo do esporte” (p. 43).Para esse autor, o doping deve ser entendido como a negação do pretenso “espíritoesportivo” e “tem sido crescentemente tratado pelo prisma da legalidade”. Entre-tanto, Tavares (2002) alerta que o doping tem sido caracterizado a partir de “méto-dos e substâncias presentes em um index proibitório, em última análise está sedizendo que é doping o que é ou for considerado doping pelos órgãos legitima-mente dispostos a declará-lo”. Isso dá uma conotação de arbitrariedade aos argu-mentos que sustentam a rejeição do doping, pois são consideradas ilegais aquiloque determinados organismos entenderem que deve ser proibido.

Contrapondo-se a esta metodologia, a evolução científica na produção deelementos dopantes foi tão grande nos últimos anos que, segundo Hein Verbruggen,“calcula-se que as drogas não detectadas constituam 90% dos casos de doping”, ouseja, a enorme maioria de substâncias dopantes não são detectadas por examesantidoping. Considerando que, como foi dito antes, os mesmos grupos farmacêu-ticos internacionais que dominam as tecnologias de elaboração dos testes antidopingsão que as produzem as substâncias dopantes, basta produzir um esteróide quenão conste na lista.

Além dos interesses econômicos e políticos, Tavares (2002) alerta para ofato que os argumentos que questionam esta prática são bastante frágeis e contra-ditórios, pois para um sistema desportivo que se estabelece na performance e nabusca incessante pela melhoria do desempenho do atleta, o doping pode ser con-siderado “uma estratégia racional”, já que o aumento do rendimento é “uma condi-

15Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

ção intrinsecamente ligada à própria natureza da competição esportiva”. Portanto, ailegalidade do doping é absolutamente arbitrária e contradiz a sua própria lógica.

Por outro lado, no entendimento de Tavares (2002), justificar a proibição dodoping pelos males que ele causa à saúde, também, é um argumento frágil, porque“quanto maior o nível de exigência do esporte de alta competição maiores são osriscos potenciais à saúde dos próprios praticantes”. Para sustentar esta idéia, o autorafirma: “[...] penso ser pouco provável que a grande maioria das substâncias dopantessomadas tenha causado tantos males à saúde de seus usuários quanto o boxe [...] oque é evidente no boxe, também é bastante verdadeiro para um sem-número deoutros esportes” (p. 46). Ainda, segundo Cohen (1999), a causa de contusões quemais cresce é o próprio treinamento, ou seja, “são cada vez mais comuns os atletascujos ossos quebram sem levar pancadas, apenas porque são exigidos demais”. Noatletismo, “75,7% dos praticantes sentiam dor durante o treinamento e 73,3% daslesões aparecem nos treinos, não nas provas”.

Para concluir a discussão desse item é preciso esclarecer que a utilização dedoping não envolve apenas o desporto de alto nível. O comércio de anabolizantesé uma prática recorrente em outros ambientes em que está presente outras ativi-dades corporais e atinge uma parcela significativa da população não atleta. O desejode “construir um corpo escultural”, baseado em um modelo hegemônicode corpo,tem feito com que o uso de anabolizantes seja uma prática bastante regular hoje emdia, inclusive, entre adolescentes. Segundo De Rose (s./d.), “[...] nas academiasamericanas, 80% dos freqüentadores do sexo masculino utilizam-se de anabólicosesteróides, com o único propósito de ter ‘um corpo bonito’, e este tipo de pensa-mento está se alastrando para as escolas secundárias” (p. 88). Outro exemplo foipublicado no Jornal On-line, quando afirma que “de acordo com informações le-vantadas pelo Ministério Público, o comércio desse tipo de produto [anabolizantes]constitui mercado crescente no Brasil, tendo movimentado somas que alcançaramUS$500 milhões em 2000”.

Por tudo isso, conclui-se que para se enfrentar este debate é fundamentalque se amplie os olhares a respeito do tema, com a introdução de saberes deoutras áreas, tais como a ética e bioética, que são campos de conhecimento sociale cientificamente reconhecidos e têm uma produção teórica bastante respeitável

ÉTICA E BIOÉTICA: UM OLHAR SOBRE O DOPING

Para analisar o doping – entendendo-o como uma produção científica que,em muitos espaços, é bastante controversa, pois estaria ferindo os princípios mo-rais que envolvem as atividades corporais socialmente aceitas – é preciso destacar,

16 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

em primeiro lugar, que não se deve limitar o foco do debate apenas na questão dodesporto, porque isso restringe e confina a discussão. Em segundo lugar, é necessá-rio considerarmos que a vida humana deve ser enfocada como o referencial centralde qualquer atividade humana. Como afirma Tavares (2002), a “discussão de fundonestas áreas [moral e da ética] é sobre os limites do que entendemos o humano”,ou seja, a análise das dimensões ontológicas do homem, fundamentando-as namudança da perspectiva de corporeidade que a Educação Física vêm, hegemonica-mente, adotando.

Em terceiro lugar, é preciso conceber que o homem é corpo e não apenastem um corpo. Isso muda completamente o foco de intervenção e discussão sobreas questões que envolvem o doping e os demais conflitos morais. É forçoso partirde um debate ético e bioético que tome como referência uma concepção decorporeidade que não se baseie na visão utilitarista e produtiva do corpo, mas de-finindo que o limite do ser humano é a sua própria integridade e o respeito à suadignidade. Integridade esta que não se limita apenas à esfera biológica, mas às de-mais dimensões humanas, tais como a social, a cultural, a política, a econômica,entre outras.

A ética e a bioética são áreas do conhecimento que, modernamente, têmpor objetivo debater os poderes tecnocientíficos, definindo os deveres daquelesque manipulam e produzem tais tecnologias, em especial, as biotecnologias. Nessesentido, elas não podem ser usadas para legitimar a atividade física ou esportiva,afastando-as das inúmeras críticas que vêm recebendo. Nem tão pouco podem tercomo objetivo explícito ou sub-reptício, a construção de uma ética ou bioéticaesportiva para transformar o esporte em uma atividade moralmente aceitável, oucomo sustenta Bento (1989b): “da reflexão ética espera-se um forte impulso paraque o desporto seja um sistema moralmente bom”. Reduzir a ética e a bioética aum instrumento de legitimação de uma atividade humana, além de ser um equívo-co teórico e científico é um desrespeito a essa área que já se consolidou como umcampo fundamental do conhecimento.

O esporte e as atividades físicas são fenômenos culturais e sociais que, em-bora tenham assumido diferentes conotações e busquem atender diversos objeti-vos, são permeados de contradições e refletem a organização e composição dasociedade de seu tempo. Assim, a centralidade do debate ético e bioético comrelação ao doping não deve ser o de “recuperar os valores do esporte” e das ativi-dades físicas, destruídos pelos interesses econômicos e políticos ou, como preten-de Sergio (1990), constituir “uma ética prospectiva e criadora, que possa dar senti-do ao Desporto”. O objetivo do debate é o de garantir os direitos daqueles quedireta ou indiretamente sofrem as conseqüências destas atividades e buscar os fun-

17Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

damentos que nortearão a ação daqueles que, em nome do esporte e da EducaçãoFísica, interferem na corporeidade humana e no desenvolvimento do ser vivo.

Afora os referenciais colocados anteriormente, outras funções precisam serempreendidas quando a tarefa da Educação Física for a discussão do doping tendocomo foco a ética e a bioética. Para tanto, deve-se assumir o compromisso de ircontra aquilo que Sève (1994) chama de “desintegração antropológica pelo totalismoda rentabilidade” e a “asfixia moral do gênero humano”. Assim, o fundamental é,nas palavras do autor, “inventar em conjunto novas relações entre eficácia social eresponsabilidade ética”.

O estabelecimento desta relação entre eficácia social e responsabilidade éti-ca pressupõe considerar que a atividade científica e principalmente a sua aplicaçãona natureza não é neutra, ao contrário, é permeada de interesses sociais, políticose econômicos. Deve-se considerar, também, alguns indicadores que podem ajudara Educação Física a repensar-se e a tornar-se competente para enfrentar os confli-tos morais gerados por produções como o doping. Para isso, seria necessário:

• não se submeter unicamente aos princípios e pressupostos da racionali-dade cientificista;

• comprometer-se em instrumentalizar a sociedade com um conjunto desaberes que parta da própria corporeidade humana;

• não se restringir a produção de normatizações morais e éticas, de caráteruniversal, pois este empreendimento em outras áreas do conhecimentojá se mostrou ineficaz e limitado;

• assumir o pressuposto de respeito à vida, a partir de sua integridade eintegralidade; e,

• buscar a “sabedoria do corpo”, ou seja, que se descubra os infinitos elegítimos saberes produzidos pelo corpo, bem como ampliar os conheci-mentos a seu respeito, rompendo os limites dos saberes físico-químicos eentendendo o corpo como um espaço de infinitas capacidades expressi-vas e cognitivas.

Nesse sentido, a Educação Física, quando assumir o debate ético e bioético,não deve ter como tarefa básica a definição de normas com relação a utilização dodoping, o disciplinamento de condutas ou a consolidação de controles institucionaisque visem única e exclusivamente a proteção de direitos individuais ou corporativos.A responsabilidade da Educação Física, imbuída dos compromissos com o debateético e bioético, deverá considerar aquilo que Sève (1994) destaca, ou seja, “uma

18 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

real formação ética exige, antes de mais, a sensibilização pessoal para os problemas,o debate pluralista das questões, a experimentação das noções e dos princípiossobre casos concretos” (p. 407). Para isso, a Educação Física teria de empenhar-seem um projeto coletivo e social de discussão sobre a vida, o homem e suas mani-festações corporais, sem assumir a tarefa de estabelecer regras e legitimar controlescorporativos do doping, pois isto seria desvirtuar o sentido da ética e da bioética.

Além disso, Sève (1994) chama atenção para outra questão que deve serconsiderada pela Educação Física: quando uma área do conhecimento passa a tercomo objetivo o controle institucional ou o atendimento de direitos individuais,torna-se uma doutrina, já que visa apenas a gestão e o disciplinamento dos proce-dimentos e ações humanas, sem questioná-los, como exige o debate ético e bioético.Segundo esse mesmo autor, a bioética precisa ser um projeto coletivo, com res-ponsabilidades que devem ser compartilhadas por todos, sendo que a ética e abioética devem constituir-se enquanto “iniciativas transformadoras”, não como “dis-posições regulamentares”. Para concluir, Sève (1994) afirma que, ao assumir essaconcepção bioética, tem-se uma verdadeira “antropoiética”, ou seja, uma ética quese constrói a partir do mundo do homem, “uma ética da pessoa compreendidacomo societária do gênero humano” que, pautada pelas iniciativas civilizatórias, pro-duz um “novo rosto da política. Ela vai da eticidade – à eticização da cidade”. Umaperspectiva de bioética que se pretende voltada exclusivamente para a consolida-ção de regras e para o atendimento de interesses individuais corrompe a ética epassa a ser uma iniciativa protetora do direito.

Outra questão fundamental, que precisa ser enfrentada pela Educação Físicaquando for debater a questão do doping na perspectiva ética e bioética, é areconsideração de certas “verdades” ou pressupostos que consideram a prática deatividades físicas ou desportivas como boas e moralmente inquestionáveis. Essas“verdades” ou pressupostos têm sido desmistificados, principalmente, depois queforam publicizadas várias denúncias de corrupção desses mesmos princípios, ouseja, depois que os famosos “espírito esportivo”, a “ética esportiva”, o “ideal olímpi-co”, o “olimpismo” e o “fair-play”, passaram a ser cotidianamente desconstituídos.

O fundamental, nessa discussão, é que o doping é o resultado de uma práti-ca científica, que é utilizado para criar subterfúgios e melhorar o rendimento indivi-dual, desconsiderando, contudo, as práticas julgadas moralmente aceitas e desejá-veis. Assim, ao somarmos os aspectos morais à falta de fundamentação e consistêncianos argumentos que condenam o doping, fazemos com que o esporte e outrasatividades corporais, vistos numa perspectiva de rendimento, mantenham-se comoações inquestionáveis, permeadas de contradições internas e geradoras de conflitosmorais que contradizem suas idealizações.

19Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Educação Física, assim como outras áreas do conhecimento, teve a pre-tensão de intervir na natureza, em especial a humana, sem levar em conta os des-dobramentos dessa ação. Esse procedimento teve como conseqüência o surgi-mento de conflitos morais bastante complexos e, na Educação Física, aquele queassumiu uma conotação mais evidente, principalmente, nos últimos anos, foi a ques-tão do doping.

Assim, a discussão desse tema na Educação Física precisa ser enfrentada deforma conseqüente e responsável, mas para que isso ocorra será necessário abrir-se para outras áreas do conhecimento que já produziram um aporte teórico arespeito de conflitos morais que envolvem a produção científica humana. Uma dasáreas privilegiadas nesse campo tem sido a ética e, modernamente, a bioética.

No entanto, para fazer o debate ético e bioético a respeito do tema é funda-mental, num primeiro momento, considerar que as atividades corporais, em espe-cial as desportivas ou aquelas que envolvem o rendimento, estão sendo dominadaspor interesses econômicos, o que faz com que a ética e a bioética, segundo Sève(1994), sejam consideradas como um “custo que deve ser diminuído ou mesmoevacuado”. A conseqüência disso é que “vemos multiplicarem-se as faltas graves amais elementar honestidade e mesmo os dramas de segurança negligenciada”. Nessesentido, o autor afirma que “a pilotagem da função do lucro abre assim o mesmoleque de efeitos perversos na biomedicina e no desporto. Ora, no segundo caso,não há qualquer mística cienticista a por em causa”, ou seja, mesmo sob o argu-mento das “poderosas paixões nacionais”, estas não se constituem em “fonte deineticidade” e são “claramente incapazes de explicar as síndromes totalmente novasque correspondem ao preço do tempo, como a escolha do mais rentável”. Sève(1994) finaliza, dizendo:

extraordinária mutação histórica, onde todas as esferas do agir humano, até agora ligadasà sua autonomia – atividades de saúde, de formação ou de lazer, invenção científica ouvida artística – estão a ponto de cair, por sua vez, nas malhas da lei do mais rentável. Ainversão que ela aí desencadeia, como de resto por toda a parte, entre os fins e os meios,as pessoas e as coisas, fomenta assim uma crise geral de sentido: produções simbólicas efinalidades éticas tornam-se, aí, objeto de uma instrumentalização sem limites, meio deuma acumulação financeira sem fim (p. 384).

Assim, o doping é apenas o expoente de um problema mais emblemáticoque é a utilização de um arcabouço de conhecimentos que propiciam não só aconstituição de uma tecnologia do treinamento físico, mas também da utilização de

20 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

descobertas do campo farmacológico para produzir verdadeiros “monstros” huma-nos com uma harmonia corporal totalmente desequilibrada e que, não raramente,tem como efeito colateral não controlável, a morte destes praticantes. SegundoGusdorff (1978),

o recordista é raramente um homem robusto, parece notável antes por sua fragilidade.Os profissionais do esporte não são, como se poderia crer, a encarnação da excelênciacorporal, são flores de estufa, cujo equilíbrio deve ser conservado ao abrigo das influênciasexteriores ( p. 137).

Nesse sentido, a Educação Física tem tido um papel fundamental paraartificialização dos corpos, tornando-os “meio-máquina” e, cada vez mais, depen-dente de tecnologias e mecanismos bioquímicos que os tornam objetos “meio-humanos”. A Educação Física consolida a transformação dos corpos, colocando-osà mercê de uma progressão tecnológica irreversível e suscetível a efeitos colateraisincontroláveis. Haja visto, os casos de uso de doping ou as cargas de treinamento ede exercitação que, muitas vezes, deixam seqüelas para o resto da vida de seuspraticantes, isso quando o efeito não é a morte1.

Para finalizar, é preciso salientar que a discussão a respeito do doping, a partirda perspectiva ética e bioética, não poderá se sustentar se assumir a defesa de umaperspectiva de rendimento mecânico e quantitativo, principalmente, quando istotem por conseqüência o esgotamento e deturpação da corporeidade humana. Naspalavras de Santin (1994), o rendimento e, portanto, os mecanismos artificiais demelhoria da performance humana só serão eticamente aceitáveis quando estive-rem “a serviço do organismo vivo” e quando assumirem “um compromisso com amaneira de viver a vida”. Nesse sentido, o homem deveria ser incentivado a “con-tinuar vivendo dentro do equilíbrio e da normalidade de suas funções vitais e exis-tenciais” e, para tanto, deveria usar livremente a sua capacidade de “rendimentoinventivo e criador”. Remetendo essa análise para a questão específica da doping, orendimento humanizante e humanizador, seria aquele que Santin (1994) denominade qualitativo e vital e que não busca a superação dos limites orgânicos eperformáticos do homem. Assim, o rendimento pode ser humano desde que res-peite o próprio homem e não busque “superá-lo” ou “transcendê-lo”.

1. Ver reportagens da Revista Veja: “O falso forte”, n. 1574, de 25 nov. 1998, p. 78-79; “Homens depeito”, n. 1601, de 9 jun. 1999, p. 84-85; “Força que mata”, n. 1615, de 15 set. 1999, p. 108;“Dose para cavalo”, n. 1661, de 9 ago. 2000, p. 78-79; e, no Jornal Zero Hora, de 5 jan. 2003, amatéria denominada “A moda que mata”, p. 39-40.

21Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

Doping: consecration or profanation

ABSTRACT: This paper aims to discuss doping from an ethical and bio ethical perspective,identifying the main elements that are necessary to this debate. To achieve this objective,the first part of the paper gives a general overview of the topic, highlighting its political,social, and financial issues. Then, it gives a deeper discussion on physical and sportiveactivities, based on the productivity perspective. Finally, the paper identifies the ethical andbio ethical elements that are necessary to face the debate concerning doping.KEY-WORDS: Physical education; ethics; bio ethics; doping.

Doping: consagración o profanación

RESUMEN: El presente texto pretende discutir la cuestión del doping, desde una pers-pectiva ética y bioética, identificando los elementos fundamentales para realizar ese deba-te. Así, en la primera parte de este trabajo, discutimos el doping de manera general,analizando los determinantes políticos, sociales y financieros relacionados a estaproblematica; en segundo termino, centramos nuestra discusión en la cuestión de lasactividades físicas y deportivas desde la perspectiva del rendimiento; finalmente explicitamoslos elementos éticos y bioéticos necesarios para enfrentar el debate asociado al doping.PALABRAS CLAVE: Educación fisica; etica; bioetica; doping.

REFERÊNCIAS

BENTO, J. (Org.). Desporto, ética, sociedade. Lisboa: Universidade do Porto, 1989a.

. “À procura de referências para uma ética do desporto”. In: BENTO, J.(Org.). Desporto, ética, sociedade. Lisboa: Universidade do Porto, 1989b.

CATLIN, D. “Olimpíadas de Atlanta”. Revista Abril On-line. p. 2, 19 fev. 1999.

COHEN, Liberou geral. Revista Abril On-line, p. 1, 19 fev. 1999. Acesso em: 15 mar. 1999.

DE ROSE, E. H. O uso de anabólicos esteróides e suas repercussões na saúde. s. I.: s. ed., s./d.

ESCOBAR, C. O espírito do olimpismo. O correio da Unesco, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, fev.1993.

FOLHA DE S. PAULO. Como será o doping? Série Olimpíada 2000. São Paulo, p. 6, 20 jun.2000.

GUSDORFF, G. A agonia de nossa civilização. São Paulo: Convívio, 1978.

JORNAL ON-LINE. Disponível em: <http://www.terra.com.br>. Acesso em: 09 fev. 2003.

22 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 9-22, set. 2005

LEONARD, J. Revista Abril On-line, p. 2, 19 fev. 1999.

LOTUFO, R. “Homens de peito”. Veja. São Paulo, n. 1601, p. 84-85, 1999.

MCCAFFREY, B. O uso de doping por crianças. Revista Expresso. São Paulo, p. 11, 22 fev.1999.

REVISTA EXPRESSO. Doping, o escândalo encoberto. São Paulo, p. 1-2, 22 fev. 1999.

ROUSE, J. Revista Abril On-line, p. 2, 19 fev. 1999.

SANTIN, S. Educação física : da alegria do lúdico à opressão do rendimento. Porto Alegre:Escola Superior de Teologia (EST)/Escola Superior de Educação Física (Esef) – UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 1994.

. Educação física ética, estética, saúde. Porto Alegre: EST, 1995.

. Textos malditos. Porto Alegre, EST, 2002a.

. Dimensões filosóficas da corporeidade no esporte e qualidade de vida. In:MOREIRA, W. W. e SIMÕES, R. (Org.). Esporte como fator de qualidade de vida. Piracicaba:Unimep, 2002b.

. Filosofia na educação física e no esporte: problemáticas antropológicas,éticas e epistemológicas. In: II SEMINÁRIO DE ÉTICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA, Anais... Fozdo Iguaçu, 2003.

SERGIO, M. “O espírito esportivo: uma questão de ética”. Revista Brasileira de Ciência doEsporte. v. 11, n. 3, p. 201-205, dez. 1990.

SÈVE, L. Para uma crítica da razão bioética. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

TAVARES, O. Doping: argumentos em discussão. Revista Movimento. Porto Alegre, v. 8, n. 1,p. 41-55, jan./abr. 2002.

Recebido: 4 fev. 2005Aprovado: 17 mar. 2005

Endereço para correspondênciaUniversidade Federal do Rio Grande

Centro EsportivoAv. Itália, s/n. Km 8

CEP 96201-900Campus Carreiros

Rio Grande – RS

23Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

DOPING, ESPORTE, PERFORMANCE:NOTAS SOBRE OS “LIMITES” DO CORPO

Dr. ALEXANDRE FERNANDEZ VAZDoutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade de Hannover, Alemanha.

Professor do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa dePós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e SociedadeContemporânea (Centro de Ciências da Educação – CED/Universidade

Federal de Santa Catarina – UFSC/Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq).

E-mail: [email protected]

RESUMO

Trata-se de um ensaio que analisa a questão do doping a partir de três episódios recentesenvolvendo os atletas Javier Sotomayor, Carl Lewis e Maurren Maggi. Utilizo para minhareflexão, não propriamente como fontes, mas como referências, um conjunto de discursos daimprensa sobre os episódios. Procuro entender relações entre o uso de drogas e a busca porrendimento como um complexo expresso pelo esporte, mas presente em outras esferas soci-ais. Observo ainda que o doping, associado à maquinaria do treinamento corporal, acabasendo um problema técnico para o esporte.

PALAVRAS-CHAVE: Doping; treinamento desportivo; drogas.

24 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

O consumo de drogas é visto na sociedade contemporânea como um dosproblemas centrais enfrentados tanto no cotidiano mais trivial, quanto por estrutu-ras de governo, especialmente aquelas do aparato policial, as que detém o poderde violência considerada legal. Nesse mesmo contexto, um debate eventualmentepresente na imprensa, mas sempre escamoteado quando de sua discussão maisampla e no plano da legislação, é aquele que propõe a legalização das chamadasdrogas leves, notadamente a maconha, cujas propriedades terapêuticas, aliás, tam-bém são tema de discussão.

Paralelamente ao submundo do tráfico, há várias drogas que são comerciali-zadas legalmente e sem grande controle na sociedade brasileira, sendo os maioresexemplos as bebidas alcoólicas e o cigarro. Por outro lado, encontramos um cres-cente deslumbramento pelo uso de drogas com efeito psicoterapêutico. Comoaponta Maria Rita Kehl (2001), em tempos contemporâneos o fascínio pela veloci-dade faz com que elas alcancem um status miraculoso: melhor uma pílula que tragaa sensação imediata de felicidade do que o penoso exercício de buscar compreen-der as contradições do eu e por ele enfrentadas em longos processos psicotera-pêuticos.

O uso de drogas na sociedade ocidental contemporânea parece estar for-temente relacionado à procura pela potência cognitiva, mas, especialmente, cor-poral. Ele corresponde ao que Herbert Marcuse (1969) chamou de princípio derendimento (Leistungsprinzip), aquele que governaria a sociedade industrial – e,poderíamos dizer, pós-industrial – e o ser humano unidimensional (Marcuse, 1964),a direção para a qual ele destinaria suas energias pulsionais. As “drogas da felicida-de” são um dispositivo importante nesse quadro, uma vez que temos como exi-gência cotidiana a boa fortuna e o otimismo, condições associadas à exigência desucesso, cujas faltas são atribuídas, via de regra, às “incapacidades” do próprioindivíduo.

Não é diferente com a exigência em ser belo sempre, segundo os padrõestemporariamente vigentes. A beleza aparece como um atributo que é muito me-nos uma dádiva, mas algo a ser conquistado, com esforço e rígida dedicação1, umameta ao alcance de todos – principalmente de todas – que se empenhem para tal,utilizando toda a maquinaria disponível para as transformações corporais e seusrespectivos especialistas : nutricionistas, tatuadores, cirurgiões, massagistas,esteticistas, dentistas, professores de Educação Física etc.

Faz parte desse processo o uso de fármacos que ajudam a diminuir o peso

1. Os trabalhos de Sant’Anna (1995) e Goldenberg (2002, 2004) trazem indicações, resultados eanálises importantes para esta questão.

25Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

pela inibição do apetite ou pelo efeito diurético. Compõem também o quadro oemprego das “drogas de Apolo”, como as nomeou Sabino (2002), que, associadosàs técnicas de treinamento, hipertrofiam os músculos. São os esteróides anaboli-zantes, de fácil acesso, às vezes disfarçados em suplementos alimentares, muitasvezes com funções originalmente terapêuticas e vendidos em farmácias e com fre-qüência traficados em academias de ginástica e musculação.

O uso de anabolizantes com fins de um investimento maciço sobre o corpoconfirma, de certa forma, um movimento na busca da performance e do rendi-mento, seja porque a forma física aumenta as possibilidades de inserção nos merca-dos de trabalho e sexual (Sabino, 2000), ou ainda porque há uma certa esportivizaçãodessas práticas:

No entanto, uma diferença importante precisa ser destacada: o sucesso nestas práti-cas não diz respeito à vitória em uma competição ou à quebra de um recorde, mas aorendimento máximo no que se refere ao “aperfeiçoamento” da forma física. Há como queuma incorporação da performance, limitada ao aspecto somatófilo que pretende fazer al-cançar uma condição comparável a um estado anterior ou ao espetáculo de músculos docolega de treinos (Hansen, Vaz, 2004, p. 138).

O esporte é, de qualquer forma, um modelo para a sociedade contemporâ-nea, uma referência de sucesso, um exemplo do protagonismo do corpo e seurendimento. Como prática amplamente aceita e apoiada pelo Estado, pelo merca-do e pela sociedade civil, ele se faz presente como expressão inequívoca da indús-tria cultural, constituindo, como espetáculo de grande público, fonte de entreteni-mento privilegiada.

É curiosa a fascinação pelo superlativo no espetáculo, presente em outrasesferas mas muito demarcada no esporte. A idéia de recorde é interessante nessequadro, uma vez que sugere a ilimitada ultrapassagem de limites cada vez maisespetaculares – e assim deve ser para que se mostre performances mais e maisextremas e velozes para os sentidos fatigados dos consumidores da indústria cultu-ral, sempre carentes de um estímulo mais forte.

Faz parte dessa aceleração dos resultados esportivos o uso de drogas, con-denada com freqüência em nome do respeito à “ética” e em benefício do uso derecursos “naturais” para a melhoria da performance atlética. O próprio presidenteda superpotência mundial, George Bush, em meio às costumeiras crises bélicas epolíticas, se manifestou sobre o assunto no “Discurso do Estado e da União” emjaneiro de 2004, declarando sua preocupação com o uso de drogas por parte dosesportistas e o mal exemplo que estes ofereceriam aos jovens (Folha de S. Paulo,22 jan. 2004, p. D-2).

26 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

Essa é uma questão bastante controversa se considerarmos que o uso dedrogas de algum tipo parece ser imprescindível para o esporte de alto rendimentoe que nele há pouco do que se poderia chamar de “natural” no que se refere àrelação com o corpo – como se pudéssemos delimitar o que seria natureza “livre”dos condicionantes culturais.

Nas próximas páginas ocupo-me de aspectos da problemática do doping ede algumas de suas implicações no modo como compreendemos o esporte con-temporâneo. Faço isso tomando para a reflexão três episódios exemplares mais oumenos recentes e que envolveram atletas de alto rendimento esportivo. O primei-ro deles é o caso de Javier Sotomayor, ex-atleta cubano, flagrado pelo uso de cocaí-na nos Jogos Panamericanos de 1999; o segundo é o da então campeã de salto emdistância, a brasileira Maurren Maggi, em cujo exame foi constatada a presença declostebol em 2003, durante o Troféu Brasil de Atletismo, pouco antes dos JogosPanamericanos do mesmo ano; o terceiro é o polêmica gerada em torno do casoCarl Lewis, ganhador de muitas medalhas olímpicas, que teria testado positivo emefedrina, pseudoefedrina e fenilpropanolamina nas competições anteriores aos jo-gos olímpicos de 1988, competição em cuja principal estrela, o velocista canadenseBen Johnson, teve a medalha de ouro e o recorde mundial confiscados depois detambém ter testado positivo em estanozolol.

Utilizo para minha reflexão, não propriamente como fontes, mas como refe-rências, um conjunto de discursos da imprensa sobre os três episódios. Faço issoporque não interessa tanto a veracidade desses fatos, “a história como ela de fatofoi”, como criticou Walter Benjamin (1977, p. 253), mas o que eles podem noslevar a pensar, alguns possíveis significados e afinidades eletivas que eles sugerem.

1O EPISÓDIO – SOTOMAYOR, GUERRA FRIA, UMA “DROGA RECREATIVA”

Há seis anos, nos Jogos Panamericanos de Winnipeg, no Canadá, o mundodos esportes, e não só ele, se deparou com um importante caso de identificação dedoping em um atleta famoso. Daquela vez teria sido flagrado o cubando JavierSotomayor, então recordista mundial do salto em altura, tricampeão panamericano,medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992 e duas vezes cam-peão mundial. Sotomayor, segundo o comitê antidopagem, teria consumido cocaí-na e por conta disso teve sua medalha de ouro cassada. Aquele teria sido “[...] omaior escândalo de doping do atletismo desde a suspensão do canadense BenJohnson na Olimpíada de 88” (Folha de S. Paulo, 5 ago. 1999, p. 3-10).

O atleta negou ter utilizado a substância e o Comitê Olímpico Cubano, que

27Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

o apoiou integralmente2, falou em sabotagem contra o país e Sotomayor, em meioa acusações – para muito extemporâneas – de sabotagem por parte da Central deInteligência Norte-Americana, a CIA (Folha de S. Paulo, 18 set. 1999, p. 3-10). Àcomida do atleta teria sido adicionada a substância proibida. Os cubanos se recusa-ram a sansionar Sotomayor (Folha de S. Paulo, 24 ago.1999, p. 3-9).

O caso deu uma espécie de sobrevida à Guerra Fria, arrefecida desde aderrocada do socialismo de caserna. O esporte foi durante aproximadamente qua-renta anos um dos palcos privilegiados dessa guerra com muitas batalhas, que opôsos países do Pacto de Varsóvia àqueles que se agruparam em torno da hoje inchadaOrganização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Os boicotes dos Jogos Olímpi-cos de Moscou, pelos Estados Unidos e muitos de seus aliados, e de Los Angeles,pela extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e os países que dominava,são apenas os exemplos mais visíveis de um combate que ganhou vida nos camposesportivos. É possível dizer que o enorme avanço do esporte de rendimento nasegunda metade desse século esteve fortemente vinculado justamente à importân-cia que ele teve como vetor da disputa entre os dois grandes blocos que dividiramo mundo até bem pouco tempo.

Se Sotomayor consumiu cocaína, o que ele terminantemente negou, é pre-ciso saber que certamente não tinha como objetivo saltar mais, melhorar suaperformance, já que a cocaína não o teria ajudado. O ex-campeão declarou, deforma verossímil, que para saltar 2,30 m – marca que lhe deu o ouro em apenasdois saltos nos Jogos e que, segundo ele, já havia ultrapassado mais de 300 vezes –poderia permanecer insone na noite anterior (Sotomayor..., 2004).

Mesmo assim foi punido com a perda da medalha. A questão sugere umparadoxo interessante. A cocaína é uma droga proibida e largamente consumidaem muitos países. Se o cubano foi punido é porque a estrutura do esporte de alto

2. Esta parte de declaração oficial dos cubanos: “El día 2 de agosto fuimos notificados por el Presidentede la Comisión Médica de la Odepa de que a un atleta nuestro le habían detectado metabolismosde una sustancia que daban el mismo como positivo el cual había alcanzado el día 30 de julio sucuarto título Panamericano.

Quienes conocen a ese atleta, su trayectoria deportiva y habérsele realizado en la misma másde 60 controles doping negativos en competencia y fuera de esta, muchos de ellos sorpresivos porla IAFF y que en el presente año ha tenido más de 8 controles doping, estábamos convencidos desu total inocencia; además, este atleta es todo un caballero del deporte, respetuoso, que consultacada medicamento a utilizar, un digno representante del movimiento deportivo cubano y del mun-do, baluarte e insignia de la lucha que contra el doping se realiza en nuestro país.

Porque en nuestro país la lucha contra el dopaje ha constituido un programa social, educativo,vinculado desde la formación a los hábitos higiénicos de niños, jóvenes, sentando las bases de losprocesos de iniciación deportiva de las cargas tolerables, de la creación de costumbres sanas que norequieran de sustancias estimulantes de ningún género” (Declaración..., 2004).

28 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

rendimento procura construir uma imagem que pretende criar a ilusão de que aspráticas esportivas nada têm a ver com as drogas, ao passo que a convivência comelas – legais ou não – parece ser uma necessidade no alto rendimento dadas asenormes exigências competitivas e o extremo sacrifício somático e psicológico aoqual o indivíduo é submetido. Essa imagem é necessária para que o esporte conti-nue sendo lucrativo, siga como um dos campos de maior visibilidade positiva dasociedade moderna. Por isso, a cocaína, droga que sofre muitas restrições na socie-dade, é também proibida para os atletas, ainda que seu consumo, mesmo que elaporte substâncias estimulantes do sistema nervoso central, pouco possa alterar,para melhor, os resultados esportivos.

O esporte compõe um ambiente que, de forma geral, tende a não tolerardiferenças, por isso o esmero em classificar as competições destinando-as paragrupos específicos, por gênero, opção sexual, idade, paraolímpicos – em váriascategorias diferentes – etc. Por outro lado, faz parte do universo competitivo aprodução da desigualdade, demarcada, especialmente, pelo código vitória/derrota.Além disso, embora o esporte se baseie na igualdade formal de chances, as desi-gualdades estão na base da preparação esportiva, o que leva Eugen König (1996) aquestionar a ilegitimidade do doping: se ele é condenado em nome da igualdade dechances para todos, como conviver com as diferenças gritantes de estrutura para otreinamento corporal presentes em diferentes países?

Parece haver, no entanto, um outro elemento associado à proibição das “dro-gas recreativas” como a cocaína. O sistema esportivo, além de tentar preservar suaimagem mercadológica de pureza, mais do que não tolerar as diferenças, não suportao que não possa ser absolutamente controlado, proscrevendo qualquer tipo de mis-tura, de inexatidão3, de descontrole, típicos do uso de substâncias embriagantes –que, por sua vez, são valorizadas em outras esferas sociais, como a arte e a religião. Érazoável que isso aconteça, visto que o treinamento desportivo é uma das tecnologiasmais extremadas de controle da corporalidade contemporânea.

2O EPISÓDIO – CARL LEWIS

Em 2003 a imprensa noticiou que o ex-velocista norte-americano Carl Lewis,ganhador de várias medalhas olímpicas entre 1984 e 1996, havia sido flagrado com

3. Por isso as polêmicas quanto às identidades de gênero das atletas, como o caso da judoca EdinanciSilva, que passou por cirurgias “corretivas” para ser considerada plenamente mulher para o esportee de vários atletas transexuais. Um outro exemplo dessa preocupação extrema com a exatidãopode ser identificado na procura por delimitação precisa das condições para a obtenção de umrecorde mundial.

29Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

vários outros atletas do Estados Unidos em exames antidoping escamoteados entreos anos 1991 e 2000 (Folha de S. Paulo, 27 abr. 2003, p. D-7).

O que mais chama a atenção no caso de Lewis é a polêmica quanto à legiti-midade do uso das drogas. Por um lado, pelas novas regras da Wada (AgênciaMundial Antidoping) Lewis seria hoje apenas advertido (Folha de S. Paulo, 30 set.2003, p. D-2), já que seus exames teriam apontado níveis permitidos na época(Folha de S. Paulo, 27 abr. 2003, p. D-7), o que teria levado as Federações Norte-americana e Internacional de Atletismo a não puni-lo (Folha de S. Paulo, 1 maio2003, p. D-2, D-3).

Por outro lado, segundo teria dito Jari Cardoso, do Ladetec (Laboratório deDesenvolvimento Tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro), institui-ção brasileira credenciada pelo COI (Comitê Olímpico Internacional), “A legislaçãoatual é que é mais permissiva. Os níveis que foram fixados em Copenhague [pormeio Código Mundial Antidoping, aprovado informalmente em março de 2003]são mais altos. Havia mais restrição naquela época” (Folha de S. Paulo, 27 abr.2003, p. D-7). Nesse contexto, o ex-velocista brasileiro Robson Caetano da Silvafoi lembrado como um dos poucos presentes na prova final dos 100 metros rasosde Seul/1988 que nunca tiveram problemas com o antidoping. Questionado sobreas suspeitas que pairam sobre grandes atletas, o hoje comentarista esportivo detelevisão teria declarado que “É o tipo de coisa que a gente não comenta muito [...].A legislação sempre protegeu os atletas americanos. Talvez eles conseguissem burlara lei por causa dos grandes interesses em jogo”, acredita o brasileiro”. E ainda, paraarrematar, “Não estou com a medalha de campeão olímpico aqui em casa [...] Masmeu bronze brilha como ouro” (Folha de S. Paulo, 20 abr. 2003, p. D-5).

Lewis, de sua parte, reconhece os resultados dos exames, mas diz que rece-beu o mesmo tratamento que todos os outros atletas (Folha de S. Paulo, 24 abr.2003, p. D-1) e que não tinha conhecimento de que a droga ingerida constituíadoping, algo que, segundo ele, era comum na época (Folha de S. Paulo, 23 abr.2003, p. D-4).

Toda essa questão sobre o quanto seria permitido das substâncias encontra-das nos exames a que Carl Lewis foi submetido, a despeito do registro jornalísticoe da propaganda, sugere que o mainstream esportivo considera o uso de drogaslegítimo, desde que dentro dos flutuantes limites que a legislação vai estabelecendo.

Isso faz cair por terra a suposta delimitação entre meios naturais e artificiaiscomo legítimos ou ilegítimos para a o alcance do alto rendimento. Se nisso resideuma boa racionalidade – uma vez que não se pode delimitar o que seria puramentenatural, como dito antes, e nem seria bom, visto que a busca pela “pureza” é umsintoma do totalitarismo – há que se lembrar um pouco do contexto e das conse-

30 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

qüências de o doping ser mais uma das estratégias de tecnologização do corpo,expressão de um tipo de ciência que se pretende neutra, cujo estatuto que outorgaa si mesma não permite que se pergunte pelos fins (König, 1996).

Há um consumo de drogas, por exemplo, em função das lesões e doençasdesenvolvidas pelos “excessos” das competições e principalmente dos treinamen-tos (se é que se pode falar em “excessos” em atividades em que esses são justa-mente a mola propulsora). O treinamento corporal é uma experiência que, corri-queiramente, provoca lesões com diferentes graus de gravidade que, por sua vez,exigem recuperação. Em outras palavras, a adição de fármacos e a submissão àfisioterapia fazem parte tanto da vida de um atleta de alto rendimento quanto deuma pessoa em tratamento médico convencional. Não só para a melhoria da per-formance é que se consomem drogas. O caráter terapêutico, no entanto, pareceser determinante para que se considere legítima a ingestão de substâncias químicas(Hoberman, 1998). O corpo precisa recuperar-se mais rápido da fadiga, é precisotirar as dores, metabolizar melhor e mais velozmente. Quais são os limites entreuma e outra situação?

Além do fascínio pelo superlativo, pelo excesso, pelo desperdício típico doesporte, mas não só dele, há ainda um outro fator a considerar. Trata-se de umainconsistência lógica na condenação do doping, se preserva-se o esporte de altorendimento. Ele supõe a redução do ser humano a um maquinismo passível de sermanipulado, algo que está na teoria do treinamento – calcada, via de regra, naciência tradicional – e que os próprios atletas reconhecem, na medida em quecriam e empregam expressões como “treinar é entregar o corpo” ou “a dor fazparte do meu uniforme”, “não me lembro o último dia em que acordei sem algumtipo de dor”. Enquanto se preparava para os Jogos Olímpicos de Atlanta em 1996,o campeão olímpico de judô Aurélio Miguel afirmava: “Minha Filosofia é a seguinte:sem dor não há ganho. Preciso sofrer muito no treino para chegar à competição eme sentir seguro. Quando não acontece isso, me sinto inseguro. Sem sacrifíciosnão se consegue nada e as adversidades estão em toda parte” (O Estado de SãoPaulo, 1997).

É como naturalidade desqualificada que as teorias do treinamento encaramo ser humano, uma vez que o tratam como mecanismo cego a ser adaptado ademandas contínuas e progressivas de trabalho, como explicam os princípios clássi-cos do treinamento desportivo (Vaz, 1999). O stress sofrido dispara as tentativassomáticas de se adaptar àquilo que o corpo sente como as novas condições às quaisjamais poderá ajustar-se plenamente – volume, intensidade e pausas organizadosmetodologicamente –, uma vez que deve seguir, sempre e progressivamente, nadireção (ou pelo menos na manutenção) do alto rendimento. Se é, não apenas

31Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

possível, mas necessário tratar o corpo como objeto manipulável, por que conde-nar aquele que ingere algum tipo substância química (ilegal) para melhorar aperformance?

O esporte encarna uma crença que nos é cara, importante, fundamental,de que é possível avançar indefinidamente, que o progresso é sempre bom emsi, e que o avanço tecnológico, aquele capaz do mais alto domínio da naturezajamais experimentado, corresponde ao avanço da humanidade como um todo. Épreciso notar que as marcas esportivas não são pensadas apenas como limites doesporte, mas como fronteiras a serem alcançadas – e principalmente superadas –pela humanidade. Os resultados esportivos encarnam a realização particular deuma universalidade da espécie humana sintetizada na figura individual do recordista,portador do rendimento máximo.

3O EPISÓDIO – MAURREN MAGGI, DROGA, BELEZA E PERFORMANCE

Pouco antes dos Jogos Panamericanos de Santo Domingo em 2003, umadas principais atletas brasileiras, esperança de medalha não só para aquele eventomas para as Olimpíadas do ano seguinte, a atleta de salto em distância MaurrenMaggi, foi flagrada em exame antidoping no Troféu Brasil de Atletismo, principalcompetição nacional da modalidade. Segundo se disse, uma pomada cicatrizanteutilizada posteriormente a uma sessão de depilação definitiva teria sido responsávelpela presença de clostebol na amostra de urina. O produto, “[...] em contato como organismo, produziria o metabólito de um esteróide anabólico.” (Folha de S. Pau-lo, 29 jul. 2003, p. D-1). O corpo, objeto convenientemente posto como exteriorao sujeito, foi considerado o agente que em associação com o fármaco produzira ometabólito.

O médico Eduardo De Rose, da comissão médica da Wada, defendeu aatleta com a tese da não intencionalidade, e argumentou em favor de sua participa-ção nos Jogos de Santo Domingo, visto que não havia, até então, condenação daFederação Internacional de Atletismo (Folha de S. Paulo, 30 jun. 2003, p. D-5).Além disso, a defesa da atleta estaria baseada no fato de no Brasil, segundo foi dito,o clostebol – então primeira droga da lista da Wada – só pode ser encontrado emcremes dermatológicos e ginecológicos e também em resultado negativo de exa-me antidoping que a atleta fora submetida duas semanas antes daquele que a afas-tou das pistas (Folha de S. Paulo, 30 jul. 2003, p. D-5).

Há uma questão curiosa no caso de Maurren Maggi. Trata-se de umadiscordância que teria oposto o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, CarlosArthur Nuzman e o médico De Rose. Para o primeiro, a atleta não deveria compe-

32 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

tir nos Jogos de Santo Domingo, uma vez que, embora não estive suspensa, jáhavia informação sobre o resultado do exame. Para o segundo, no entanto, tratar-se-ia de um caso idêntico ao de outra atleta brasileira, Elisângela Adriano, que nosJogos anteriores, de Winnipeg, ganhara a medalha de ouro no arremesso do pesoe depois fora suspensa por um resultado de exame antidoping em competiçãoanterior. O prêmio da atleta não foi confiscado.

Para De Rose, a situação de Maurren é idêntica à de Elisângela. ‘’Ela ainda não foi suspensae, se não for suspensa até o Pan, tem o direito de competir.’’ E se conquistar medalha?‘’Sorte dela. Se competir, é porque não está suspensa. Dessa forma, nada mais natural doque lutar para ganhar uma medalha. E, se ganhar, só a perde se a pegarem em doping noPan’’, afirmou o especialista. (Folha de S. Paulo, 31 jul. 2003, p. D-3).

Conhecida por sua beleza cultivada com vaidade via Embratel, o caso deMaurren traz à tona um elemento muito interessante sobre relação entre esporte eembelezamento, ou o primeiro tomado com vetor para a construção do segundo.Não apenas se diz costumeiramente que a prática esportiva faz aproximar da bele-za, mas as atletas se tornaram também ícones da plasticidade4. Uma das atraçõesdo voleibol de praia feminino, para citar um exemplo eloqüente, são as roupascurtas e coladas ao corpo das jogadoras – vestimenta, aliás, obrigatória.

As formas rijas e harmoniosas e os cuidados com o embelezamento associa-dos ao rendimento magnífico no salto em extensão tornaram a presença de Maurrenuma atração extra nas competições de atletismo, com destaque para as possibilida-des de detalhamento que as câmeras de TV e as máquinas fotográficas são capazesde delimitar. Não deixa de ser irônico que a atleta tenha sido contaminada por umapomada utilizada em um dos rituais do embelezamento contemporâneo, geral-mente celebrados em seu templo específico, o salão de beleza. Multiplamente acos-tumada à violência sobre o corpo, a mulher-atleta, como a que freqüenta os rituaisde depilação de pêlos de variadas origens, expressa um dos momentos importan-tes de uma condição para os critérios de embelezamento. Se ser bela é uma con-quista (Sant’Anna, 1995) e o esporte é um modelo adequado de dever ser para asociedade liberal, extremamente competitiva, é porque a beleza também é umaespécie de competição que coloca em jogo um conjunto de técnicas corporais queencontra nos corpos individuais nada mais do que vetores intercambiáveis para suamaterialização.

4. O tema tem uma de suas origens no famoso projeto cinematográfico de Leni Riefensthal, Olympia,documentário sobre os jogos olímpicos de 1936, cujo subtítulo de uma de suas partes é justamenteFes des Schönes (Festa da beleza). Um interessante estudo sobre a relação entre esporte e belezacorporal foi feito por Guttmann (1996).

33Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dois dos campos de realização mais eficazes e visíveis do progresso do cor-po são as dietas e o esporte. Ambos trabalham com a idéia de corpos idealizados,que em suas metáforas maquinais assemelham-se, não por acaso, às imagens dafisiologia do trabalho do século XIX, tal como as descreveu e interpretou Rabinbach(1992). Não é surpreendente, então, que o uso de drogas faça-se presente comenorme força nesses dois campos, o que só é possível, como dito anteriormente,na medida em que se observa o corpo como uma máquina, quando se reafirma aseparação radical entre sujeito e objeto, o segundo visto como algo a ser dominadoe manipulado pelo primeiro.

Como isso é visto como legítimo na sociedade ocidental, para tanto se de-senvolve um sem-número de técnicas e expedientes: próteses de diferentes tiposou transplantes de órgãos, conhecimentos relacionados às dietas e aos diversostreinamentos corporais, uso de drogas químicas ou protéticas. Essas últimas teriamcomo novidade o fato de serem capazes de não apenas rivalizarem com as primei-ras, mas, ao colonizarem o corpo, atuarem com maior eficiência (Virilio, 1996).

O doping parece basear-se, nesse sentido, na idéia de que o organismohumano é um mecanismo complexo manipulável tecnicamente, e que os compor-tamentos e experiências humanas podem ser “melhorados” para além das aptidõestradicionais, tanto do ponto de vista físico quanto intelectual ou mesmo emocional.Mas essa é a lógica do treinamento corporal, de seus princípios e métodos, quepouco ou nada têm de “naturais”.

A condenação do doping nos faz, então, pensar sobre o próprio esporte esua condição de produto, mas também de modelo para a sociedade contemporâ-nea. Se a droga que condenou Sotomayor – a corporificação política5 – seguramen-te não é usada para a melhoria da performance, uma reflexão sobre o caso sugereque o esporte precisa, a custa de sua própria racionalidade, manter sua busca pelapureza, pelo controle, por aquilo que é fixo e determinável. O caso de Carl Lewis– a representação da maquinaria olímpica norte-americana – espanta pelo reco-nhecimento explícito de que as drogas são necessárias para que o esporte de altorendimento siga adiante, sendo sua utilização um jogo entre o lícito e o ilícito, uma

5. A esportistas cubanos Fidel teria dito, certa vez, que “Nossos atletas têm algo mais do que treina-mento físico. Sotomayor estava dizendo que não há drogas. Eu digo que há uma droga muito im-portante, que é a estamina revolucionária, o orgulho revolucionário, a honra revolucionária. Essa énossa droga” [...] É ela que nos leva a fazer esforços supremos e nos ajuda a conseguir grandesfeitos. Se não fosse assim, como Sotomayor poderia saltar tão alto? Eu observei a altura do salto deSotomayor. É incrível” (Folha de S. Paulo, 5 out. 1999, p. 3-10).

34 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

aposta no que é momentaneamente permitido, deslocando-se o eixo do legítimopara o legal. De forma semelhante, discutiu-se no caso de Maurren Maggi – a sínte-se entre duas performances simbolicamente aparentadas, beleza e alto rendimen-to – se ela deveria ou não ir aos Panamericanos de Santo Domingo, já sabido oresultado do seu exame, ainda que não houvesse, de fato, condenação formal.Ora, a medalha, uma vez alcançada, seria mantida mesmo que se soubesse, comode fato acontecia, do resultado positivo de um teste anterior.

O doping parece ser, sobretudo, uma questão técnica para o esporte de altorendimento. Não parece fácil responder por que é lícito fazer uma cirurgia plásticapara aumentar a beleza, mas não intervir cirúrgica ou quimicamente para aumentara performance esportiva, sobretudo se for considerada a tolerância da violênciacontra o corpo, as agressões somáticas e psicológicas dos treinamentos e competi-ções. Podemos seguir sem resposta, mas seria interessante que nos ocupássemosda pergunta, ou talvez tenhamos que reconhecer que vida humana nem semprepoderá ser defendida como um valor supremo.

Doping, sport, performance: notes on “limits” of body

ABSTRACT: This essay analyses the doping problem taking into account three recent episodesinvolving the athletes Javier Sotomayor, Carl Lewis and Maurren Maggi. In my reflection, I usethe press discourses, not exactly as sources, but as references. I try to understand relationsbetween drug usage and performance as a complex expressed by sport, but present in othersocial spheres. I also observe that doping, associated with the corporal training machine,becomes a technical problem to sport.KEY-WORDS: Doping, sport training, drogues.

Doping, deporte, rendimiento: notas sobre los “límites” del cuerpo

RESUMEN:El ensayo analiza la cuestión del doping a partir de tres episodios recientescon los atletas Javier Sotomayor, Carl Lewis y Maurren Maggi. Utilizo para mi reflexión,no exactamente como fuentes, sino como referencias, una serie de artículos de prensasobre estos episodios. Intento entender la relación entre la adicción de las drogas y labúsqueda de un mayor rendimiento, como algo representado en el deporte, al mismotiempo que presente en otras esferas sociales. Observo que el doping, asociado a la maqui-naria del entrenamiento corporal, al fin y al cabo es un problema técnico del deporte.PALABRAS CLAVES: Doping, entrenamiento deportivo, drogas.

35Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Über den Begriff der Geschichte. In: ______. Iluminationen. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1977, p. 251-261 (Ausgewählte Schriften 1).

COURTINE, J-J. Os Stakhanovistas do narcisismo: body-building e puritanismo ostentatóriona cultura americana do corpo. In: SANT’ANNA, D. B. (Org.). Políticas do corpo: elemen-tos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995, p. 81-114.

DECLARACIÓN DE LA DELEGACIÓN CUBANA. Disponível em: <http://www.granma.cu/sotomayor/esp/005e.html>. Acesso em: 31 nov. 2004.

FOLHA DE S. PAULO. Arquivos de 1999, 2003 e 2004.

GOLDENBERG, M. (Org.): Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpocarioca. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2002. 414 p.

. De perto ninguém é normal : estudos sobre corpo, sexualidade, gênero edesvio na cultura brasileira. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2004. 189 p.

GUTTMANN, A. The erotic in sports. New York: Columbia University, 1996. 256 p.

HANSEN, R.; VAZ, A. F. Treino, culto e embelezamento do corpo: um estudo em acade-mias de ginástica e musculação. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas, v. 26, n.1, p. 135-152, set. 2004.

HOBERMAN, J. The concept of doping and the future of olympic sport. In: ALLISON, L.(Org.). Taking Sport Seriously. Aachen: Meyer & Meyer, 1998, p. 31-52.

KEHL, M. R. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 203 p.

KÖNIG, E. Kritik des Dopings: der Nihilismus des technologischen Sports und die Antiquierheitder Sportethik. In: GEBAUER, G. (Org.). Olympische Spiele – die andere Utopie der Mode-re. Olympia zwischen Kult und Droge. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 223-244.

MARCUSE, H. One-dimensional man : studies on the ideology of advanced industrial society.Boston: Beacon, 1964. 260 p.

. Versuch über die Befreiung. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1969. 134 p.

O ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/jornal/96/05/25/migue25.htm>. Acesso em: 10 set. 1997.

RABINBACH, A. The human motor : energy, fatigue, and the origins of modernity. Berkley/Los Angeles, University of California, 1992.

SABINO, C. Musculação: expansão e manutenção da masculinidade. In: GOLDENBERG,M. (Org.). Os novos desejos : das academias de musculação às agências de encontros. Riode Janeiro/São Paulo: Record, 2000, p. 61-103.

36 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005

. Anabolizantes: drogas de Apolo. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu &vestido : dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro/São Paulo:Record, 2002. p.139-188.

SANT’ANNA, D. B. Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma histó-ria do corpo no Brasil. In: ______. (Org.). Políticas do corpo : elementos para uma históriadas práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995, p. 121-139.

SOTOMAYOR reaciona indignado: “Soy víctima de una maniobra, de una canallada”. Dispo-nível em: <http://www.granma.cu/sotomayor/esp/005e.html>.Acesso em: 31 de nov. de2004.

VAZ, A. F. Treinar o corpo, dominar a natureza: notas para uma análise do esporte a partir dotreinamento corporal. Cadernos Cedes. Campinas, n. 48, p. 89-108, 1999.

VIRILIO, P. A arte do motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. 134 p.

Recebido: 3 fev. 2005Aprovado: 2 mar. 2005

Endereço para correspondênciaAlexandre Fernadez Vaz

MEN/CED/UFSCCP 476 Campus UniversitárioTrindade – Florianópolis – SC

CEP 88040-900

37Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

DOPING NO ESPORTE: UMA ANÁLISETENDO COMO FOCO OS ATLETASOLÍMPICOS BRASILEIROS E ALEMÃES

Prof. Dr. OTÁVIO TAVARESGrupo de Pesquisa em Sociologia das Práticas Corporais e Estudos Olímpicos (GESPCEO)/

Centro de Educação Física e Desportos (CEFD)/Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)E-mail: [email protected]

RESUMO

O uso de doping é uma das questões mais controversas do esporte moderno. Todaviasão raros os estudos centrados nos valores, motivações e atitudes dos atletas a respeitodessa questão. O objetivo deste texto é apresentar uma investigação internacional com-parada entre atletas olímpicos (Sydney, 2000) brasileiros e alemães a respeito do dopingno esporte. Para esta investigação foram utilizadas técnicas quantitativas e qualitativas decoleta de dados. Os resultados indicam que a atitude dos atletas em relação ao doping écondicionada por um processo de mediação entre valores morais, racionalidade instru-mental e valores sociais. Desse modo é possível pensar em uma ressignificação do espor-te moderno a partir dos valores e atitudes de seus praticantes.

PALAVRAS-CHAVE: Doping; atletas; esporte.

38 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

INTRODUÇÃO

Uma das possibilidades de interpretação do esporte moderno é aquela queo entende como um veículo privilegiado para a promoção de uma certa moralidadepública e de padrões de autocontrole. De fato, ante as qualidades educativas, físi-cas, morais e sociais historicamente tributadas ao esporte, de seu crescente valoreconômico e da transformação das drogas e psicotrópicos em uma questão socialcontroversa, o uso de drogas e de determinados procedimentos que aumentem orendimento físico do atleta passou gradualmente a ser considerado imoral e, naesfera do esporte organizado, ilegal.

Apesar disso, nos dias atuais, há no senso comum uma crença tão dissemina-da sobre o uso de drogas no esporte de alto-rendimento que o debate costumaconcentrar-se em “como” e “quando” se dopa em lugar de perguntar-se “quem” sedopa. De modo contraditório a essa percepção, os dados internacionais a respeitode casos positivos de doping indicam que apenas 1% dos testes de controle dedopagem apresentam resultado positivo1. Se o número de casos positivos nos últi-mos jogos olímpicos indica que talvez o uso de doping não é tão intenso, por outrolado, nada indica que ele está restrito a uma proporção de atletas tão pequena.Uma vez que os métodos dopantes parecem ser efetivos, ele continuará sendo umcaminho tentador de melhora da performance. Por outro lado, de acordo com aideologia geral da prática esportiva, seu uso é moralmente errado, ilegal e insalubre.Parece claro que os atletas situam-se então diante de um dilema.

Na verdade, as possibilidades de conhecimento sobre as razões e a exten-são do uso de doping no esporte são bastante complexas. As observações analíticasdo problema são difíceis uma vez que o uso de procedimentos dopantes dificilmen-te é diretamente observável. Como nos lembra Bette (1995, p. 242),

Tão logo um comportamento desviante se inicia a informação se torna controlada ebarreiras de comunicação são erguidas tanto dentro do grupo desviante quanto para olado externo. Atletas que tomam substâncias proibidas, médicos que as prescrevem, trei-nadores que as administram e dirigentes que conduzem seu uso não irão colocar suascarreiras e reputações em risco contando a verdade. Deste modo o comportamentodopante não pode ser examinado com a metodologia tradicional da pesquisa social empírica.

1. Nos Jogos Olímpicos de Atenas (2004) foram realizados aproximadamente 3 mil exames comaproximadamente trinta resultados positivos. Este resultado, maior do que o obtido nos Jogos deSydney (2000) foi interpretado como um efeito do aperfeiçoamento do controle antidopageminternacional. Maiores informações podem ser obtidas em http://www.wada-ama.org/docs/web/communications/publications/reports/athensreport.pdf

39Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

Contrariamente ao que se possa pensar, o uso de doping não pode serfacilmente compreendido e explicado. Explicações focalizadas nos indivíduos geral-mente reduzem o problema a motivações individuais e sensações subjetivas, per-sonificando o uso de drogas como um problema individualizado. Por outro lado,explicações de caráter totalizante, ao privilegiar as noções de sistema, relevam ograu de liberdade dos indivíduos diante das organizações sociais e a noção de sujei-to moral. Assim, estamos quase sempre diante de interpretações que se situam nadicotomia entre autonomia e dominação.

Algumas explicações sociológicas sobre o doping enfocam a cultura, o siste-ma social, as subculturas esportivas, as influências de líderes e treinadores. Lüschen(1984) usou a teoria da anomia de Merton para explicar como um comportamentodesviante usa meios ilícitos para atingir aos objetivos socialmente aceitos. Johansson(1987), propunha que a visão humanística oficial do movimento olímpico tem sidogradual e continuamente por um sistema moderno, realista e orientado para a vitó-ria no qual o doping é aceito. Breivik (1992) fez uso da teoria dos jogos para aanálise do “jogo do doping” que aponta teoricamente para uma tendência de seuuso como uma estratégia racional mesmo quando os valores e objetivos dos atletasnão são direcionados para isso.

Segundo o filósofo alemão Gunter Gebauer (1991), porém, na medida emque as objetivações e valores da competição não são prescritas pelos praticantes, háuma “demanda ética fundamental” para transformar a relação dos atletas da repre-sentação formal para o diálogo, de modo a “ampliar o entendimento da realidadematerial e simbólica do esporte e dos jogos olímpicos” (Gebauer, 1991, p. 470).Todavia, são raros os estudos dedicados a analisar o esporte a partir dos princípios,motivações e atitudes dos atletas. O exame da produção acadêmica internacional2

revela a existência de apenas dois trabalhos que se dedicam a tematizar o atleta, seusvalores, concepções e atitudes a respeito dos valores do esporte em seus múltiplosaspectos (Cagigal, 1975; Czula, 1978)3. Como havia observado anteriormente,

diversos autores têm optado por abordagens de caráter macro-sociológico, sincrônico e/ou diacrônico, limitando suas análises e estudos ao nível das instituições e seus dirigentes,

2. Um levantamento foi conduzido através do sistema de indexação Sport Discus, com o cruzamen-to das palavras-chave “athletes”, “olympic”, “olympism”, “meanings”, “values” e “conceptions”, semrestrições.

3. Minha experiência em acompanhar a literatura nacional e internacional sobre o tema indica que sãorealmente bastante raras investigações sobre as concepções e atitudes dos atletas a respeito deaspectos do esporte de um modo geral, seja ele olímpico ou não. Parece-me que o caráter públicoda atividade atlética dá uma impressão de tal transparência ao fenômeno que cria a idéia (falsa) deque ele é auto-evidente não necessitando ser pesquisado.

40 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

ou confrontando análises situacionais aos fundamentos do Olimpismo conforme propos-tos por Coubertin, reduzindo ao mínimo as abordagens centradas nos atletas, ainda queautores como Constantino (1995), Ren (1995) e Seppanen (1987) reconheçam seremeles a razão de todo o sistema (Tavares, 1998, p. 27).

Isso não é de fato surpreendente quando revisões de literatura a respeito doestágio de desenvolvimento das ciências sociais “do esporte” (Alabarces, 2002;Maguire, 2003) indicam a jovialidade da área, o que sugere que abordagens parti-culares desse tipo ainda estão em processo de constituição.

Em face dessas observações, o objetivo deste texto é apresentar uma inves-tigação internacional comparada sobre as atitudes dos atletas brasileiros e alemãesque participaram dos Jogos Olímpicos de Sydney (2000) com relação ao uso dedoping no esporte. Assim, parece importante que se apresente inicialmente o con-texto teórico-epistemológico e os procedimentos metodológicos que guiaram essainvestigação4.

CONSTRUINDO A TEIA TEÓRICO-METODOLÓGICA DA INVESTIGAÇÃO

Segundo Hardman (2003), o campo dos estudos comparados em esporte eeducação física constitui uma área relativamente nova. Segundo esse autor,

O estudo comparado avançou das narrativas descritivas iniciais do “o que”, através datradição histórico-explicativa formativa, para métodos sistemáticos e compreensivos decoleta de dados na tradição das ciências sociais para revelar o “porque” e o “como” desistemas desenvolvidos e em desenvolvimento.

Obras de referência em pesquisa social comparada como as de Ragin (1987)ou de Oyen (1992) enfatizam que, embora os estudos comparados tenham suasingularidade, eles são baseados nos mesmos princípios usados nas ciências sociaisde um modo geral5. Basicamente o que se desenvolve são as buscas por semelhan-ças e diferenças nos cenários em investigação. As semelhanças, geralmente maisamplas que as diferenças, corroboram hipóteses, ajudam verificar e/ou afinar con-ceitos e teorias e são relacionadas a ligações estruturais. As diferenças, por outrolado, são muito mais difíceis de explicar e em comparações interculturais devem ser

4. Esta investigação, na verdade, é parte dos estudos desenvolvidos para minha tese de doutoramentoapresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho (RJ)e aprovada em fevereiro de 2003.

5. Uma boa revisão dos problemas específicos da pesquisa comparada em confronto com os proble-mas mais gerais das ciências sociais pode ser encontrado em: Oyen (1992, p. 1-18).

41Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

atribuídas a fatores específicos nos diferentes níveis de análise. Contudo, uma vezque dificilmente poderíamos classificar nossos respondentes como representantestípicos de suas culturas é preciso afirmar logo que este estudo não tem por objetivocompreender e explicar como a questão do doping é interpretada em culturasdiversas, mas sim levantar indicadores importantes sobre a atitude de atletas dealto-rendimento sujeitos a dinâmicas socioculturais singulares, assumindo e man-tendo, portanto, a tensão entre indivíduo e sociedade.

Nesse sentido, segundo DaCosta (1999, p. 64),

Em princípio, enquanto a atividade atlética requer controle nas macrorrelações, aidentidade simbólica do homem em seu ambiente pluralístico engloba valores e experiên-cias contingentes em microrrelações, demandando acima de tudo uma nova abordagemdo equilíbrio.

Com efeito, a maioria dos processos e fenômenos é entrelaçada em múlti-plas interdependências, o que indica que em apenas alguns poucos casos é possívelextrair-se uma explicação a partir de uma única teoria. Dessa feita, tentando cons-truir uma imagem produtiva, mas que não quer representar um esquematismo,proponho que os valores conjugados pelos atletas durante a prática esportiva com-petitiva possam ser entendidos como que organizados em círculos concêntricos, oque projeta um modelo de análise articulado entre o micro e macro.

Um primeiro círculo ou nível mais imediato de relações é dado pelas pró-prias modalidades esportivas entendidas como subculturas esportivas formadaspela conjugação singular de suas tradições e valores. Um segundo nível é dadopelo próprio sistema do esporte de alta competição. Embora ele e a ideologiaolímpica possam ser associados, um não se reduz ao outro uma vez que pos-suem distinções. O sistema esportivo de alta competição como um todo é umfenômeno que transborda os jogos olímpicos em direção a outras dimensões doesporte contemporâneo enquanto que a ideologia olímpica, que tem seu locusprivilegiado nos jogos olímpicos e no movimento que gravita em torno dele, étambém uma referência para o esporte de alto nível. Dessa forma, o foco daanálise se dá num sistema de inter-relações que se oferece como um fenômenoa cada quatro anos, mas que mantém um campo de influências relativamenteconstante.

A ideologia olímpica (o olimpismo) constitui-se no terceiro círculo de influên-cias sobre as atitudes dos atletas. Por fim, uma vez que os sujeitos desta pesquisanão podem ser considerados como indivíduos desenraizados, um último nível deinfluências a ser considerado é dado pela cultura num sentido lato.

Assim, tomando como referência a problematização exposta e os pressu-

42 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

postos epistemológicos anteriormente mencionados, esta investigação desenvol-veu-se dentro de um contexto teórico delimitado em primeiro lugar,

a) pelo conceito de modalidade esportiva como uma subcultura a partir doarranjo específico de seus valores técnicos, éticos e estéticos conformeproposto por Hugo Lovisolo (1995);

b) pela teoria de totalização do sistema esportivo de alto nível de KaleviHeinilä (1982);

c) pelo corpus de valores do olimpismo como uma ideologia e uma meta-teoria de prática definida a partir do conceito de ideologia de Paul Ricoeur(1983); e

d) pelas obras de interpretação do habitus de Brasil e Alemanha de Sergio B.Holanda (1995) e Norbert Elias (1997), respectivamente.

Por fim, tendo em vista que os problemas relativos a variância e equivalênciasão sempre críticos em estudos comparados, e que de acordo com Teune (1992,p. 48) “qualquer conjunto de categorias criará desvios nas observações”, a flexibili-dade observacional torna-se um requisito importante. Para esse autor, “em qual-quer evento, as estratégias para a avaliação de propriedades equivalentes têm setornado pragmaticamente flexíveis, adaptando-se ao contexto” (1992, p. 54). Essasconstatações são homólogas àquelas de Hardman. Para esse revisor dos estudoscomparados em esporte e educação física,

os estudos comparados não tentam mais definir uma única metodologia e nenhum méto-do sozinho se desenvolveu como um cânone. […] Abordagens empíricas quantitativasestabelecendo correlações tem sido enriquecidas pelo paradigma qualitativo procurandoobter entendimento e interpretação dos processos e revelar causalidade (2003, p. 73).

Uma vez que este estudo busca construir comparações mais conceituais doque literais, procuramos adotar uma abordagem metodológica que combine técni-cas quantitativas e qualitativas pelo uso de diferentes instrumentos de coleta dedados. O objetivo foi por meio de aproximações sucessivas dar conta dos diversosníveis de influência e relação teoricamente estabelecidos para esse caso. O usocombinado de questionários com escalas de atitude do tipo de Likert e questõesabertas, entrevistas e técnicas de observação etnográfica evidenciam-se como ade-quados às características deste estudo. As conclusões obtidas a partir desse grupoparticular de atletas deve, contudo, ser avaliada em comparação a evidências obti-das de outros casos e populações.

43Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

Exatamente 202 atletas do Brasil 442 da Alemanha tomaram parte nos JogosOlímpicos de Sydney (2000). Por razões metodológicas foram considerados ape-nas os atletas que participaram em esportes que eram comuns aos dois grupos. Onúmero total de atletas investigados foi de 548 (Brasil: n = 184; Alemanha: n=364). Desse universo responderam ao questionário 42 atletas brasileiros e 125atletas alemães. Adicionalmente foram feitas 9 entrevistas com atletas brasileiros e11 entrevistas com atletas alemães.

O USO DO DOPING NA VISÃO DOS ATLETAS6

Brasileiros e alemães declaram níveis bastante altos de rejeição ao dopingcomo uma ajuda justa ao desempenho (92,3% e 98,3%, respectivamente), muitasvezes por meio de uma linguagem bastante forte (“doping suja o esporte” BRA; “odoping destrói o esporte” ALE). O resultado obtido na Alemanha é praticamenteigual aos 97,2% obtido por Müller et al. em 1996 para uma questão sobre a mes-ma temática, revelando a consistência dessa posição para aquela população.

A comparação revela haver uma diferença significativa entre brasileiros e ale-mães (p<0,0005). Considerando que essa atitude está relacionada ao controle docomportamento dos atletas e suas relações mútuas, parece-me que a diferençaencontrada está relacionada a variações no que Norbert Elias chamou de “gradien-te de formalidade-informalidade”7. O nível mais alto de autocoações presente nohabitus alemão, sua necessidade de demonstrar uma atitude pacífica diante do mun-do, seus códigos de comportamento discreto dados mais por negações do queafirmações, explicam o resultado encontrado. Tal interpretação ganha peso quandose considera os problemas causados pela descoberta dos programas de desenvol-vimento de dopagem da antiga Alemanha Oriental (“Desde de 1991 não se ouvefalar muito de doping na Alemanha” ALE).

No caso brasileiro, por sua vez, tal resultado representa uma grande mudan-ça, uma vez que o estudo com os atletas que competiram em Atlanta 1996 (Tavares,1998) revelou que apenas 63,3% dos respondentes rejeitavam o uso de doping.Esse crescimento pode estar relacionado com um aumento das campanhas e ins-trumentos de controle antidoping nacional e internacionalmente e ao enfoque cres-cente no uso de doping como um desvio de comportamento social.

6. As citações apresentadas nesta parte do texto foram retiradas das entrevistas e questionários aplica-dos. Neste trabalho será identificada exclusivamente a nacionalidade do respondente.

7. O gradiente de formalidade/informalidade realmente que se propõe indicar é, sobretudo, a exten-são e o rigor de rituais sociais que ditam o comportamento das pessoas em suas relações mútuas.

44 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

TABELA 1 – PONTOS NEGATIVOS DOS JOGOS OLÍMPICOS DE SYDNEYPARA OS ATLETAS DE BRASIL E ALEMANHA EM PERCENTUAIS DE RESPOSTA

NM – Não mencionado

CATEGORIAS

Doping

Comercialização excessiva

Burocracia/organização

Falta de apoio

Desigualdade de tratamento

Corrupção

Excelência

Terrorismo/política

Outros

Nenhum

ALE

22%

29%

9%

NM

9%

2%

9%

9%

5%

6%

BRA

20%

6%

6%

6%

8%

NM

4%

2%

16%

33%

9 10

A visão construída a partir da opinião a respeito dos pontos negativos dosJogos ganha solidez quando são observados também os elementos que na visãodos respondentes ameaçam mais o futuro da competição.

Observou-se também que as opiniões mais críticas em relação aos Jogosforam encontradas principalmente nos atletas com melhores resultados. Talvez es-sas manifestações críticas indiquem a combinação entre alta capacidade competitiva

8. Observe-se a presença, entre aqueles que citam o doping como um problema, de esportes tradi-cionalmente associados ao uso de drogas como o remo, natação, atletismo, ciclismo e levantamen-to de peso.

9. Foram citados, entre outros elementos, o “preconceito”, o “vandalismo”, o “excesso de diversões”e “a distribuição de preservativos na Vila Olímpica”.

10. Foram citados: “a falta de espaço para a vida particular”, “derrota”, “imprensa”, “violência” e “diversos”.

O doping também é visto como um dos principais pontos negativos dosJogos (Tabela 1). Em um quadro com alguma dispersão de categorias, o “doping”para ambos os grupos e a “comercialização excessiva” para os alemães destacam-secomo os principais pontos negativos citados. É interessante notar também comoparece refletir entre os atletas a percepção generalizada de que o doping é umaprática extensiva no esporte de alto rendimento, o que pode sugerir que a percep-ção do senso comum anteriormente mencionada está correta, uma vez que elesforam gerados por informantes “de dentro” da prática esportiva8.

45Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

e uma atitude positiva em relação à idéia de fair play, tornando-os mais sensíveis àsviolações da ética esportiva que possam vir a ameaçar suas chances de vitória. Ousimplesmente o temor, no caso especialmente dos brasileiros, de que o uso detécnicas químicas para o aumento de desempenho possa atuar em favor dos atletasoriundos de países mais bem dotados de recursos e tecnologia. Como afirmou umrespondente finalista em Sydney: “Antes era por esporte, hoje por dinheiro. Comisso veio também o doping e com isso brasileiro fica atrás”11.

Olhados a partir de uma perspectiva geral que engloba outros elementosavaliados no âmbito do conceito de fair play, este estudo confirma o que havia sidosugerido em investigação anterior a respeito da diferença de atitude entre atletas demodalidades individuais e coletivas (Tavares, 1998, p. 103).

[...] ainda que o respeito as regras seja uma cláusula necessária a própria existência doesporte, diferentes ‘culturas’ de relações entre atletas, árbitros e regras, formadas nastradições dos próprios esportes, parecem produzir efeitos em relação à idéia de fair play.

Além da formação de subculturas esportivas mais ou menos específicas comofator interveniente, também o resultado alcançado em Sydney revelou-se uma va-riável importante. Os resultados por performance mostram que os atletas que ga-nharam medalhas em Sydney têm uma atitude menos positiva que aqueles queobtiveram colocações posteriores em ambos os grupos sendo que no caso daamostra brasileira a diferença é significativa entre os três subgrupos. Como os resul-

11. Não é possível deixar de observar que os resultados brasileiros nos últimos Jogos foram bastantesuperiores aos da época do amadorismo oficial.

TABELA 2 – FATORES QUE MAIS AMEAÇAM O FUTURO DOS JOGOSOLÍMPICOS EM FREQÜÊNCIA E PERCENTUAL DE RESPOSTAS DADAS

Fatores

Doping

Comercialização excessiva

Terrorismo

Nacionalismo exagerado

Excesso de participantes

Excesso de modalidades

Outros

Total

27

10

26

7

2

1

8

81

33,33

12,35

32,10

8,64

2,47

1,23

9,87

100,00

103

74

41

23

9

22

—,

272

37,87

27,21

15,07

8,46

3,31

8,09

—,,

100,00

Brasil Alemanha

N N% %

46 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

tados demonstram, os atletas vencedores não negam o fair play como um princípiomas o valorizam menos. Muitas vezes pode obter-se sutis declarações de apoio e/ou aceitação tácita do uso de doping.

Com relação a anabolizantes e estimulantes, eu fico imaginando que isso possa acon-tecer no meu esporte. Eu não acho que seja uma questão. Não vejo puritanismo. Atletaspodem fazer uso. Eu particularmente nunca fiz uso, como eu te falei, voluntariamente...queum médico tenha me receitado. Eu jamais fiz uso desse tipo de estimulante ou anabolizante.Mas eu acredito que isto possa sim. Porque é um esporte que tem uma carga física violen-ta e eu tive pensando, às vezes a gente procura sempre cotejar os nossos parâmetros comos parâmetros de fora, com atletas de alto-nível, e às vezes a gente fica vendo que muitasvezes a gente está num patamar muito distante (BRA).

Os dados coletados não nos autorizam afirmar que esse resultado confirmapor completo a tese de que a espiral de competição e a supervalorização do sucessosignificam uma nova ética da efetividade da maneira como foi proposta por Heinilä.Na verdade, contrapondo abordagens em busca de mediações, os resultados po-dem ser interpretados como uma demonstração de como a “perspectiva internado praticante” de que nos fala Gebauer (1991) ajuda a definir o jogo para osrespondentes desta pesquisa. Ao contrário da efetivação de uma tendência emdireção a um “mau comum”, que é a conseqüência pessimista que Heinilä aponta(1982, p. 248), a perspectiva interna do praticante, os valores éticos das diversasmodalidades esportivas, a excelência e competitividade compõem uma relaçãocomplexa que é muitas vezes instrumental (“se eu reagir e tentar provocar o adver-sário eu vou me estressar tanto que daqui a pouco eu vou até sair do jogo e meuobjetivo não seria este” BRA), mas que quase sempre está em busca de uma justamedida entre o fair play como valor e a competição como uma experiência essen-cialmente imediata e prática (“Ali é que você briga consigo próprio. Você briga comseus valores morais. É o anjo e o diabinho dentro de você. É difícil lidar com isto”BRA. “Manter a competição apenas dentro da competição” ALE).

Voltando ao exame mais específico das relações entre valores positivos enegativos dos Jogos, notou-se que há uma condenação específica ao seu aspectocomercial. Segundo a maioria dos respondentes, eles “estão deixando de ser umevento esportivo para ser um meio de ganhar dinheiro” (BRA), ecoando críticasque não se suporia que seriam acolhidas pelos atletas. Essas opiniões apresentamaparentemente um paradoxo, uma vez que o esporte já pode ser encarado comouma profissão socialmente aceita. Por outro, a carência de verbas para o desenvol-vimento profissional é uma reclamação sempre constante entre os atletas, especial-mente nas modalidades menos conhecidas, mesmo entre os alemães. Como po-deria ser que alguns atletas reclamassem de uma feição mais comercial para o evento

47Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

que é “a vitrine para todos os esportes” (BRA)? Na realidade, essas atitudes pare-cem indicar o efeito ideológico do olimpismo a que eles estão sujeitos especialmen-te durante os Jogos do que a negação do status de profissão, e por conseqüênciado envolvimento de dinheiro no esporte atual.

O exame da listagem dos pontos positivos dos Jogos na visão dos atletas(Tabela 3) reforça esta interpretação.

A valorização das idéias de confraternização, conhecimento, integração e“espírito olímpico” é basicamente engendrada pelos elementos rituais (as cerimô-nias de abertura e encerramento) e o caráter poliesportivo e multicultural dos Jo-gos, justamente seu diferencial em relação a outras competições esportivas. Isso éo que ajuda a construir ativamente seu acervo de imagens positivas e um julgamen-to moral positivo14.

No campeonato mundial conhecemos atletas de outras nações, porém limitados àque-les que moram no mesmo hotel. Nos Jogos Olimpicos conhecemos atletas do mundointeiro na Vila Olímpica, não simplesmente da própria modalidade esportiva, mas sim detodas as modalidades (ALE).

Por outro lado, outro ponto positivo, porém menos freqüente, diz respeitoà qualidade dos Jogos como expressão da excelência esportiva. Pareceria ilógicoque a excelência não fosse um de seus pontos importantes para atletas de alto nível.

TABELA 3 – PONTOS POSITIVOS DOS JOGOS OLÍMPICOS DE SYDNEYPARA OS ATLETAS DO BRASIL E ALEMANHA EM PERCENTUAIS DE RESPOSTA

12. Foram citados, entre outros elementos, “beleza dos esportes”, a “interação com o público”, “tudo”.

13. Foram citados, entre outros elementos, a “periodicidade”, a “competição, a “divulgação esportiva”ou mesmo “tudo”.

14. Na verdade, outros elementos desta investigação, impossíveis de serem apresentados agora, indicama presença entre os atletas de uma visão da experiência olímpica e dos Jogos que chamei de “onírica”.

Categorias

Conhecimento, confraternização,

integração, “espírito olímpico”

Excelência

Organização

Representar o país

Reconhecimento pessoal

Outros

BRA

46,29%

27,77%

9,25%

9,25%

1,85%

5,55%

ALE

60,16%

16,10%

5,08%

2,54%

0,84%

15,25%12 13

48 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

Uma das razões da alta valorização dos Jogos está relacionada ao fato que os atletaspercebem-se como que uma comunidade diferenciada e superior. Compreende-se então como pontos positivos, mais acentuadamente para os brasileiros mas igual-mente válidos para os alemães, os efeitos benéficos que os Jogos podem exempli-ficar: “a superação dos limites do homem” (BRA), “mostrar que o atleta comdedicação ultrapassa barreiras e que o ser humano quando quer supera qualquerobistaculo [sic]” (BRA). Ou mesmo, o “desenvolvimento das regiões dos paísesonde acontecem os jogos (participação do Greenpeace)” (ALE), “uma super estru-tura que após os Jogos pode ser aproveitada; gerar empregos; incentivo ao esportee saúde...” (BRA), “porque eles são a maior aventura de nossa época” (ALE).

Há, evidentemente, opiniões de caráter oposto (“trata-se somente de su-cesso e dinheiro” ALE), mas é possível dizer que predomina entre os alemães umacrítica de caráter romântico em relação aos Jogos, na qual o doping e a comerciali-zação demasiada aparecem como um sinal de sua degradação e de seus valores.Os brasileiros, por seu turno, embora também assinalem o doping como a principalameaça ao futuro dos Jogos, possuem uma atitude menos romântica (ou mais prag-mática)15. Desse modo, pareceu mais preocupante aos brasileiros um elementonaquele momento contingente como o terrorismo do que a comercialização ex-cessiva16. Não é coincidência, então, que sejam exatamente os alemães que apon-tem com maior ênfase para uma conexão entre a comercialização dos Jogos, asuper valorização da vitória e a conseqüente ocorrência do doping (“Não é possívelcompetir e ganhar no esporte de alto nível sem o uso de drogas. Há muito dinheiroenvolvido nisto”; “O esporte se tornou cada vez mais comercializado. Há pressãopor dinheiro e melhores resultados”). Tal opinião não é entretanto exclusiva dosalemães uma vez que também era encontrável entre os brasileiros (“Hoje nãoexiste mais “o importante é competir” como citava o Barão de Coubertin; o dopingestá sempre presente, a mídia e o dinheiro comanda [sic] o show e privilegia sóalguns” BRA).

De todo o modo, deve ser observado que um dos mais constantes argu-mentos nas análises críticas ao esporte de alto rendimento de um modo geral e aomovimento olímpico contemporâneo, especificamente se situam, de maneira con-

15. Embora o caráter “cordial” (Holanda, 1995) e “semi-tradicional” da sociedade brasileira (DaMatta,2003) tenha produzido efeitos sobre a vinculação entre representação esportiva e nação e sobre asnoções superioridade esportiva e superioridade nacional, no que se refere ao doping, especificamen-te, os traços das sociabilidades distintivas de Brasil e Alemanha não apresentaram efeitos que pudes-sem identificar diferenças importantes.

16. A coleta dos dados foi feita antes dos ataques terroristas de setembro de 2001.

49Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

servadora e estereotipada a meu ver17, na percepção de um exacerbado e quaseexclusivo interesse financeiro dos atletas pela prática esportiva. As análises de auto-res como Bracht (1997) no Brasil, Lenskyj (2000) na América do Norte e Prokop(1971) na Europa, tendem a reduzir a relação do atleta com a prática esportiva deum modo geral e com os jogos olímpicos em particular à lógica das relações capita-listas de produção. Sendo esse argumento verdadeiro, seria de se supor que arenda e/ou sucesso financeiro obtido com a atividade esportiva colocasse-se acimade qualquer valoração de ordem moral e cultural, ou que, pelo menos, produzisseefeitos sobre suas atitudes em relação olimpismo. Os dados empíricos18 parecemcontradizer estas percepções19.

Por fim, observados segundo um plano mais pessoal, exatamente por ser odoping um tema controverso, durante as entrevistas os atletas apresentaram umaatitude defensiva. Questionados sobre a possibilidade de competir e ganhar sem ouso de drogas, as respostas freqüentemente encaminhavam-se para um discursode auto-exclusão. Se há doping, não há no “meu esporte” e/ou “nem seu uso pormim” (“Eu sou a prova viva disso [que é possível ganhar sem o uso de doping] BRA”;“Eu tenho sorte de que em nosso esporte [remo] o doping não seja muito impor-tante” ALE; “Em alguns esportes é muito difícil ganhar sem o uso de drogas. Noremo eu só posso falar por mim” ALE).

Examinada em seu conjunto, a atitude dos atletas por vezes leva a uma situa-ção paradoxal na qual a auto-exclusão combina-se ao sentimento de que o uso dodoping é algo generalizado (“Eu só conheço um atleta limpo no esporte que sou eumesmo” ALE). Esse paradoxo que combina uma visão indulgente ou otimista de suaprópria situação combinada com uma visão pessimista do conjunto na qual está inse-rido (Tabelas 2 e 3). Fenômeno, aliás bastante comum em pesquisas de opinião.

17. Sem nos estendermos demais aqui, penso que tais críticas podem ser consideradas como possuido-ras de um viés conservador, pois parecem pressupor a existência, perdida agora, de uma origempura e desinteressada da prática esportiva moderna que a remuneração, a profissionalização, oaburguesamento e o capitalismo vieram corromper irremediavelmente, o que é anti-histórico.

18. Como pude demonstrar em meu estudo de mestrado, a atitude dos atletas brasileiros presentesaos Jogos Olímpicos de Atlanta em relação aos valores proclamados do olimpismo era positiva masmediada pelos valores da excelência e da competição. Mais especificamente, comprovou-se queessa atitude não era significativamente influenciada por sua condição econômica, o que foi interpre-tado na época como um efeito da transição entre classes econômicas característica entre atletas desucesso recente. Por outro lado, notei uma dimensão afetiva na pratica esportiva, revelada porsignos de linguagem, que mantinha uma relação subjetiva de prazer, emotividade e realização pes-soal com o esporte e com os jogos olímpicos que ia além da dimensão racional do trabalho.

19. O termo “percepções” não é gratuito aqui. Se há algo em comum entre os estudos críticos anterior-mente citados, é a ausência de dados empíricos, situando-se todos no plano da doxa.

50 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

CONCLUSÃO

Os dados não nos autorizam a entender senão que há uma condenaçãomoral ao uso de drogas. Mas, ela corresponderia a uma recusa de fato? Não eraobjetivo deste estudo determinar, quanto ou mesmo como os atletas se dopam.Os dados levantados não permitem fazer esse tipo de inferência.

Pode-se traçar um quadro otimista considerando que os percentuais de re-jeição ao doping são muito maiores do que sua menção como um problema emSydney. Por outro lado, também é possível perspectivar um quadro pessimista umavez que o percentual de menções ao doping como um problema que ameaça ofuturo dos jogos olímpicos é maior do que aquele que o aponta como um proble-ma dos Jogos de 2000.

Quanto às entrevistas, não seria razoável esperar que os atletas que porventurafazem uso de drogas proibidas viessem a por em risco suas carreiras assumindo ouso publicamente, a despeito de toda e qualquer garantia que pudesse ser dada.Porém, se a opinião dos atletas for tomada não apenas como um paradoxo, mastambém como um discurso de autoridade, uma visão de quem está “de dentro”, épossível supor que para uma parcela dos atletas a atitude moral não corresponda auma atitude prática de igual teor. Ou seja, tal como em outras dimensões do fairplay, apesar das restrições de ordem moral e social os atletas podem encontrarrazões válidas para o uso de substâncias dopantes.

Como foi demonstrado, as opiniões e atitudes dos atletas em relação aodoping são produto das mediações que fazem entre valores de origens diversas.Penso que um modelo de mediação a partir de valores em tensão e conciliaçãoexplica com mais precisão os resultados encontrados. Desse modo, esse processode mediação desenvolve-se numa articulação entre um nível macro (valores; siste-mas; controles) e um nível micro (valores; indivíduos; autodeterminismo) que per-passa, em maior ou menor grau, todos os elementos investigados. Assim, é possí-vel dizer que a relação entre os atletas e os valores proclamados do esporte de ummodo geral não é inequívoca, excedendo tanto observações particularistas quantovisões totalizantes.

Por fim, o que se observa é uma dissonância pragmática entre valores mo-rais, determinantes sociais e razões práticas. Isso, em tese, demonstra que a pers-pectiva interna do praticante pode apontar para uma ressignificação dos fundamen-tos morais e sociais do esporte.

51Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

Doping in sport: an analysis focused on brazilianand german olympic athletes

ABSTRACT: Doping is one of the most controversial questions in modern sport. However, thestudies that investigate athlete´s values, motivations and attitudes toward this question arevery rare. The aim of this paper is to present an international comparative research withbrazilian and german olympic athletes (Sydney, 2000) regarding doping in sport. It was usedin the investigation qualitative and quantitative methods of data collection. The results indicatethat athlete´s attitudes toward doping is conditioned with a process of mediation betweenmoral values, instrumental rationality and social values. In this way, it’s possible to propose are-signification of modern sport through values and attitudes of their main social actors.KEY-WORDS: Doping; athletes; sport.

Doping en el deporte: una análisis de losatletas olímpicos de Brasil e Alemania

RESUMEN: El doping es uno de los temas centrales en el deporte moderno. Son escasas lasinvestigaciones sobre los valores y motivaciones que llevan a los atletas al doping. El objetivode este trabajo es presentar una investigación internacional comparativa entre atletas olím-picos de Brasil e Alemania (Sydney, 2000). La encuesta utilizo técnicas cualitativas ycuantitativas. Los datos indican que las actitudes de los atletas se ubican entre valores morales,instrumentales y sociales. Como conclusión es posible pensar en una resignificación del de-porte moderno a partir de los valores y actitudes de sus propios practicantes.PALAVRAS-CLAVES: Doping; atletas; deporte.

REFERÊNCIAS

ALABARCES, Pablo. Treinta años de ciencias sociales y deporte en América Latina: un balan-ce. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL PÓS-GRADUAÇÃO E PES-QUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 26., 2002, Caxambú. Anais... São Paulo: Anpocs, 2002. 1CD-ROM.

BETTE, Karl-Heinrich. Doping: studies in the sociology of deviance. In: _____.; Rütten, A.(Eds.). International sociology of sport: Contemporary Issues. Stuttgart: Verlag StephanieNaglschmid, 1995, p. 241-251.

BRACHT, Valter. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Vitoria: Universidade Federaldo Espírito Santo (Ufes), Centro de Educação Física e Desportos, 1997.

BREIVIK, Gunnar. Doping games. A game theoretical exploration of doping. Int. Rev. for Soc.of Sport, 27(3), 1992, p. 235-253.

52 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

CAGIGAL, Jose M. The pedagogic evaluation of the olympic games: a survey. FIEP Bulletin,45(4), 1975, p. 48-56.

CZULA, Roman. Sport and olympic idealism. International Review of Sport Sociology. 2(13), p.67-79, 1978.

DaCOSTA, Lamartine P. O olimpismo e o equilíbrio do homem. In: Tavares O.; DaCosta,L.P. (Eds.). Estudos olímpicos. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1999. p. 50-69.

DaMATTA, Roberto. Em torno da dialética entre igualdade e hierarquia: notas sobre as ima-gens e representações dos jogos olímpicos e do futebol no Brasil. Antropolítica. Niterói, n.14, p. 17-39, 1 sem. 2003.

ELIAS, Norbert. Os alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

GEBAUER, Gunter. Citius-Altius-Fortius and the problem of sports ethics: a philosopher’sviewpoint. In: LANDRY, F.; LANDRY, M.; YERLÈS, M. (Eds.). Sport… the third milenium.Quebec: Les Presses de l’Université Laval, 1991, p. 467-473.

HARDMAN, Ken. Comparative physical education and sport. In: HAAG, Herbert (Ed.).Directory of Sport Science, 3

ed. Berlin: ICSSPE, 2003. 1 CD-ROM.

HEINILÄ, Kalevi. The totalization process in international sport. Sportwissenschaft. n. 2, p.235-253, 1982.

HOLANDA, Sergio B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

JOHANSSON, M. Doping as a threat against sport and society: the case of Sweden. Int. Rev.for Soc. of Sport, n. 22, p. 83-97, 1987.

LENSKYJ, Helen J. J. Inside the olympic industry; power, politics and activism. Albany: StateUniversity of New York Press, 2000.

LOVISOLO, Hugo. Educação física: a arte da mediação. Rio de Janeiro: Sprint, 1995.

LÜSCHEN, Gunther. Before and after Caracas – drug abuse and doping as deviant behaviorin sport. In: OLIN, K. (Ed.). Contribution of sociology to the study of sport. Jivaskyla: Universityof Jivaskyla Studies in Sport, Physical Education and Health, 18, 1984.

MAGUIRE, Joseph. Sociology of sport. In: HAAG, Herbert (Ed.). Directory of sport science, 3ed. Berlin: ICSSPE, 2003. 1 CD-ROM.

MÜLLER, Norbert; MESSING, Manfred. Fragen der olympishen Bewegung und olympishenSpielen nach Atlanta 1996. Mainz: Forschungsgruppe Olympia/Johannes Gutemberg-Universität Mainz, 1996 [Trabalho não publicado].

OYEN, Else (Ed.). Comparative methodology : theory and practice in international socialresearch. London: Sage Publications, 1992 (Sage studies in international sociology, v. 40).

53Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 37-53, set. 2005

PROKOP, Ulrike. Soziologie der olympischen Spiele. Sport und Kapitalismus. München: Hanser,1971.

RAGIN, Charles. The comparative method : moving beyond qualitative and quantitativestrategies. Berkeley: University of California Press, 1987.

RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

TAVARES, Otávio. Mens fervida in corpore lacertoso? As atitudes dos atletas olímpicos brasilei-ros diante do olimpismo. 138 p. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Programa dePós Graduação em Educação Física, Universidade Gama Filho, 1998.

_______. Esporte, movimento olímpico e democracia. O atleta como mediador. 306 p. Tese(Doutorado em Educação Física) – Programa de Pós Graduação em Educação Física, Uni-versidade Gama Filho, 2003.

TEUNE, H. Comparing countries: lessons learned. In: OYEN, E. (Ed.). Comparativemethodology: theory and practice in international social research. Londres: Sage Publications,1992, p. 38-62 (Sage studies in international sociology, v. 40).

Recebido: 4 fev. 2005Aprovado: 16 mar. 2005

Endereço para correspondênciaRua Renato N. D. Carneiro, 780/306

Ed. DLVitória – ES

CEP 29052-900

55Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

O DOPING AO LONGO DO SÉCULO XXNA FRANÇA: REPRESENTAÇÕES DO PURO,

DO IMPURO E DO SEGREDO

Dndo. ERIC PERERAUnité de Formation et de Recherche des Sciences et Techniques de ActivitésPhysiques et Sportives de Montpellier (UFR-STAPS) Université Montepellier 1

PhD. JACQUES GLEYSEProfessor Titular

L’Institut Universitaire de Formation des Maîtres (UFM) de L’academie de MontpellierJeuneEquipe - 2416 Université Montpellier 1

Génie des procédés symboliques en sport et santéE-mail: [email protected]

Tradução: Marie-Sophie Guieu Camarão Telles RibeiroRevisão técnica: Carmen Lucia Soares

RESUMO

Este artigo trata dos sistemas de representação do doping em quatro importantes periódicosesportivos franceses, durante o século XX. Pureza, impureza e segredo são três conceitosque permitem entender como estes sistemas foram organizados no decorrer do tempo. Oestudo se baseia nos trabalhos antropológicos de Mary Douglas concernentes aos conceitosde poluição, pureza e impureza. O conceito de segredo foi igualmente considerado uma vezque se constitui em um dos elementos decisivos para entender a relação entre os dois prece-dentes.

PALAVRAS-CHAVE: Doping; história do esporte; pureza e impureza; ciclista.

56 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

INTRODUÇÃO

Há pelo menos três décadas que as práticas de dopagem questionam a ativi-dade esportiva de alto nível e, talvez mesmo, na França, a partir de um certo tem-po, aquela de nível regional. Um grande número de autores evidencia o problemaético dessas práticas (Noret, 1990; Laure, 1995; Petitbois, 1998; Jennings, 2000;Schneider, Hong, Butcher, 2004). A comunidade médica, por outro lado, evidenciaa perspectiva sanitária dos atletas como central na definição dos limites dessa prática(Yonnet, 1998; Brissonneau, 2003). Os riscos ligados ao doping são divulgados etratados de modo a alertar os atletas “mal informados” (Ducardonnet, Porte,Boulanger, 1995; Bourgat, 1999; Walder, 1999). Paralelamente, a luta antidopingprocura colocar um ponto final no fenômeno buscando na ciência meios cada vezmais confiáveis de detecção (Houlihan, 1999; Auneau, 2001; Mottram, 2003). To-davia, há milênios e em todos os domínios, o homem procura ultrapassar suaspróprias performances naturais com a ajuda de substâncias artificiais tendo por fina-lidade ir mais rápido, mais longe e por mais tempo; mas o uso de substâncias artifi-ciais pode ter também como objetivo perspectivas rituais como ritos de passageme de iniciação.

De qualquer modo, a história do esporte é recortada freqüentemente pelahistória do doping e alguns autores não hesitam em ilustrá-lo (Mondenard, 2000;Laure, 2004).

Nos dias de hoje o doping permanece numa realidade muito bem ancoradanas mentes e na mídia. Os depoimentos retumbantes, assim como os escândalosmidiáticos desses últimos anos, contribuíram para a sua banalização. O doutor DeLignières, por exemplo, afirma diante das câmeras de televisão, por ocasião doencerramento do Congresso de Medicina do Esporte em 1980, que “70% dosatletas franceses de alto nível se dopam [...]” (Noret, 1990, p.15).

Constata-se que uma real conscientização só tornou-se efetiva há aproxima-damente vinte anos embora a prática do doping exista, provavelmente, desde asprimeiras competições esportivas. Segundo G. Peters (apud N. Midol, 1991, p.125), são somente as substâncias empregadas que variam ao longo do tempo ecujo conteúdo continua a evoluir rapidamente.

Encontramos a principal fonte de nossas informações sobre esse assunto emquatro importantes periódicos esportivos franceses: La vie au grand air, Le miroirdes sports, L’auto e L’équipe. Esses periódicos analisados a partir de 1903 durante arealização do Tour de France cycliste, constituem o essencial de nosso corpus; fo-ram analisadas também, como tema secundário as copas do mundo de futebol e osjogos olímpicos do mesmo período.

57Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

A imprensa do século XX cobre de maneira significativa praticamente todosos eventos esportivos. De fato, os exemplares do periódico L’Auto surgem em1903 e permanecem até 1914; La vie au grand air é publicada e difundida de 1898a 1920; Le miroir des sports cobre o período de 1948 a 1968, e, finalmente L’Équipesurge após a Segunda Guerra Mundial, em 1946, e será consultado até o ano de1998, ano de L’affaire festina ocorrido durante o Tour de France cycliste .

Para a realização deste estudo foram consultados, no total, 582 artigos con-cernentes ao doping e, de um modo geral, as denominadas ajudas “ergo-gênicas”. Noplano teórico, finalmente, a análise dos diferentes artigos baseou-se no tríptico formadopela dualidade entre o puro e o impuro condicionados pelo conceito do segredo.

O puro e o impuro são conceitos utilizados pela antropóloga Douglas (1967)que propõe uma reflexão sobre a sujeira e a poluição como fatos sociais, mostran-do que: “a reflexão sobre a sujeira implica na reflexão sobre a relação da ordem àdesordem, do ser ao não ser, da forma a ausência de forma, da vida à morte”(Douglas, 2001, p. 27). Ela afirma ainda que: “O impuro justifica uma rejeição. Ele éacusação, execração. Como um rótulo que seria colocado numa certa pessoa eque poderia lhe provocar o exílio ou a morte” (Douglas, 1998, p. 9). Esta reflexãorememora a estigmatização relativa aos procedimentos ligados ao doping, quando,nas últimas décadas, um atleta de alto nível é detectado como positivo após o exa-me antidoping. De fato, a pureza ameaçada “desencadeia as paixões dos membrosde qualquer sociedade” (Douglas, 2001, p. 201).

O segredo constitui um terceiro aspecto a ser considerado para apreender omovimento contraditório do “tudo ou nada”, do “puro ou impuro”. Efetivamente, oimpuro é muitas vezes associado, no que concerne ao doping, à noção de segredo.Ele oculta possivelmente o impuro dando-lhe a aparência inversa, mas o segredopode também, como o veremos, transformar o puro em impuro. É através destaambigüidade e desse filtro teórico que analisaremos o fenômeno do doping e, deum modo geral, aquele das denominadas ajudas “ergo-gênicas”.

METODOLOGIA DA CONSTITUIÇÃO DO CORPUS DE ANÁLISE

Para a realização deste estudo tomou-se como referência o método de aná-lise qualitativa clássico de conteúdo. Os temas escolhidos para selecionar os artigosdos periódicos estudados foram os seguintes: a ação de dopar, doping, trapaça,alimentos, nutrição, soigneurs1, treinadores, mistério, venenos, médicos, tratamen-

1. Soigneurs: pessoa que, antes da Segunda Guerra Mundial, mais exatamente no período entre guer-ras, cuidava integralmente dos atletas através de massagens, dietas alimentares, remédios etc.

58 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

tos, fraudes, charge, topette, excitantes... mas, igualmente segredo, puro ou impu-ro, saudável ou doentio.

A ÁGUA PURA COMO MODELO INICIAL

Um artigo publicado no periódico Miroir des sports da quinta-feira de 9 defevereiro de 1922 (p. 90) teve como título “Para dar confiança aos corredores: agarrafa mágica”. Esse texto é muito interessante uma vez que apresenta uma espé-cie de dupla leitura muito típica de todos os artigos escritos e publicados até mais oumenos a Segunda Guerra Mundial. O texto de Géo André descreve algumas cenasdos jogos olímpicos de 1908:

No campo, fui de imediato, surpreendido por todas as precauções tomadas pelosmeus adversários.[ ...] reparei,[...] que os treinadores presentes, dissimulavam sob os rou-pões umas garrafas que apanhavam [...] para dar de beber a seus “potrinhos4”. Não haviadúvida: essas garrafas continham produtos especiais que pareciam dar aos saltadores qua-lidades de elasticidade [...] desconhecidas. Apesar de não ter tomado o conteúdo destasfamosas garrafas mágicas, acabei triunfando sobre todos, menos sobre o vencedor. [aqui,Géo André conta que roubou uma das garrafas mágicas, pois estava certo que elas conti-nham um produto duvidoso]. Fui na farmácia e pedi ao farmacêutico para analisar a minhaágua [...]. A água analisada possuía grande pureza e não havia nela nada de anormal.

Na verdade, a moral dessa história tem por finalidade demonstrar que nãohá: “segredos sensacionais ligados ao treino: a simples lógica e o bom senso, acom-panhados por uma longa prática e por um espírito observador”, são suficientes.

Um sistema mitológico constitui-se no esporte de alto nível valorizando umaprática sã, sem doping, bem como uma imagem de pureza do atleta, semelhante àágua pura. O atleta é associado simbolicamente à sua pureza, à sua transparência.Tudo aquilo que poderia macular essa pureza ou obscurecê-la seria suscetível dealterar o mito.

Mas esse discurso de Géo André tem também por finalidade colocar emevidência um sistema de prescrições, proibindo práticas consideradas moralmente

2. Charge: uma droga forte que visa dopar, de modo violento, um atleta.

3. Topette: cantil de forma achatada usada pelos corredores ciclistas contendo, muitas vezes, umasubstancia estimulante que provoca um súbito bem estar fisico. Nota do tradutor: topette, charge efortifiant são termos utlizados na gíria dos ciclistas franceses e neste artigo, optamos em manter osentido dado por esses atletas, e utilizado pelo autor.

4. Nota do tradutor: Potrinhos: palavra que corresponde à alguém que é “protegido”; é um jogo depalavras oriundo do universo das corridas de cavalo.

59Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

repreensíveis: o uso de produtos dopantes ou estimulantes. “A água pura” é con-frontada com “produtos especiais” criando uma relação de oposição.

A natureza de algum modo é colocada em conflito com a química ou afarmacopéia, o puro ao impuro; vemos claramente, portanto, que é o segredo,antes de tudo, que se apresenta como decisivo para a existência possível da des-confiança. Assim, Géo André, ao revelar o segredo e desnudar o puro, evidencia aajuda “ergo-gênica” como não mais problemática.

O CASO MALLEJAC COMO REVELAÇÃO?

É a dicotomia puro versus impuro, são versus doentio que conduzirá aonascimento de uma verdadeira luta governamental contra o doping a partir dosanos de 1960 e a sua denúncia por toda a mídia na década seguinte. Voltamos aencontrar aqui, claramente, os sistemas de oposições e de proibições evidenciadospor Mary Douglas (1999, 1967). De fato, as proibições e as permissões alimenta-res, nutricionais, mas igualmente comportamentais, representam a metáfora da es-trutura de uma sociedade. Do mesmo modo, as ajudas “ergo-gênicas” quandotransformadas em doping testemunhariam a sociedade esportiva na qual elas seinscrevem. Os conceitos de puro e impuro, nessa visão, podem ser utilizados paraanalisar o espaço social do esporte de alto nível.

Nos primeiros tempos de sua publicação, os periódicos estudados não apre-sentam uma preocupação com o doping e sim em fazer do atleta um modelo depureza, mas isso antes do caso Mallejac, (Miroir des sports, 4 jul. 1955, p. 39), istoé, antes que se constatasse que a opacidade envolvia o comportamento de algunsconcorrentes que se valiam da ajuda de medicamentos.

O artigo publicado no Miroir des sports (4 jul. 1955, p. 39) afirma que: “a‘queda’ de Mallejac recolocou o doping na atualidade”. Falar em recolocação do dopingna atualidade parece um equívoco, o mais adequado seria falar em “colocação dodoping” na atualidade. De fato, se anteriormente o tema do doping era discutidoentre jornalistas (antigos corredores ciclistas na maior parte), corredores ciclistas etreinadores, nada sobre o assunto aparecia no corpus tratado. Os jornalistas esporti-vos não evocavam esses problemas antes de 1955 a não ser, excepcionalmente e namaioria das vezes de modo irônico e jocoso, como se o doping fosse um jogo. Assim,se o segredo do doping existia, ele estava muito bem guardado pela mídia, ao menosentre os periódicos estudados e no corpus analisado. É o desfalecimento de Mallejactão próximo da morte que leva a mídia a revelar o segredo.

A queda de Mallejac conduz a um inquérito sobre “o mal vergonhoso dociclismo, mal protegido por uma verdadeira conspiração do silêncio” (Le miroir des

60 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

sports, 4 jul. 1955, p. 39). A questão seria entender porque os jornalistas esportivose a mídia esportiva decidiram dar foco à sua ruína em plena luz do dia para o grandepúblico. Talvez tenham percebido uma ameaça para o equilíbrio do poder na socie-dade esportiva.

O doutor Dumas, inspirador da luta antidoping no Tour de France (L’Equipe,14 jul. 1959) no artigo “Não há fumaça sem fogo” – afirma estar “decidido a entrarna justiça por tentativa de envenenamento”.

Durante o caso Mallejac, persiste entre os jornalistas e o doutor Dumas aseguinte questão: “quem preparou o topette?” Ora, se os olhares dos jornalistas sedirigem para os soigneurs, como será o caso em outras oportunidades, o discursodo doutor Dumas evoca, por outro lado, “uma conspiração de silêncio entre oscorredores”.

Marcel Bidot descobriu recentemente, num quarto, comprimidos liberados somentecom receita médica e que podem apresentar efeitos terríveis. Quando perguntou a quempertenciam, houve a conspiração do silêncio (L’Équipe, 14 jul. 1959).

Na realidade, em função do modelo teórico de análise que adotamos, oscorredores só podem ser puros. Se eles preservam o segredo, é para manterem-se assim, porém, paradoxalmente, existe uma segunda lógica, extremamente efi-ciente também: a lógica que valoriza a transparência absoluta, portanto, o não se-gredo e até mesmo sua proibição. Assim, todo produto puro poderá tornar-se umproduto impuro se for maculado pelo selo do segredo, exceto no caso de segredomédico. O médico passa a ser então o vetor principal do restabelecimento daordem social.

Logo após o desfalecimento de Mallejac, associado ao uso de anfetaminas,ocorre a morte do dinamarquês Jensen em 1960 (L’Équipe, 30 set. 1960), fato querevela claramente, de um lado, o uso de “Ronicol”, remédio que intensifica a circu-lação sanguínea e, de outro, a periculosidade sanitária dos produtos utilizados. Umtipo de equilíbrio entre o normal e o patológico, o puro e o impuro, aparece e tocaos limites da vida e da morte. O produto que supostamente cura, mata.

A partir de 1964 Le miroir des sports anuncia com toda a clareza que umcontrole antidoping é colocado em cena.

Todavia, outras questões permanecem: a) Porque os periódicos estudadosfalam desse segredo do doping somente em 1955? b) Porque os periódicos acredi-tam-se obrigados à transparência a partir do caso Mallejac, uma vez que essa antesnão era evidente? c) Seria por razões intradiscursivas ou sociais ligadas a uma“episteme” mais ampla?

61Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

ANTES DE 1955

Antes do caso Mallejac, o doping era raramente evocado de maneira explícitapela mídia estudada e mesmo a suspeita não aparecia de forma tão nítida como a partirdessa data chave. Poderíamos mesmo nos perguntar se uma certa tolerância não eraaceita quanto à utilização de produtos estimulantes como, por exemplo, aqueles as-sociados aos fortifiants5. A pureza é, portanto, colocada em primeiro plano nas práti-cas dos corredores, poderíamos dizer mesmo, uma espécie de pureza ascética.

A construção da pureza na alimentação

Os corpos de atletas e corredores quando representados pela mídia glorifi-cam uma alimentação sadia, ajudas curativas aparecem eventualmente, tais como“as pontas de fogo”, isto é, a implantação de agulhas queimadas ao fogo nas zonasinflamadas, o tratamento do mal pelo mal. No início do século XX, notadamenteno periódico La vie au grand air, o tema mais recorrente do mundo ciclista são as“fraudes de todos os gêneros”, como aquelas dos pregos jogados na rua ou detrapaças do tipo: usar de atalhos, alimentar-se fora dos pontos marcados para essefim, entre outros. Um artigo desse respectivo periódico de 1904 é explícito: “Todostrapaceiam nesta corrida” (n. 597).

Os únicos elementos encontrados no início do século concernentes aos auxí-lios “ergo-gênicos” são: uma alimentação sadia como o chá, o champagne, o café, alimonada e a carne vermelha, além de um treino racional (La vie au grand air, 1919).

Porém, como já vimos, elementos de suspeição podem ser identificados emsegundo plano, como uma espécie de grau secundário conforme o artigo de GéoAndré em 1922.

O que se define aqui é, sem dúvida, a pureza do campeão e de tudo aquiloque ele absorve e toca, e não aquilo que é impuro. De um certo modo faz-senecessário delimitar, em primeiro lugar o puro, para mais tarde, eventualmente,pressupor o impuro.

Para pensar o doping deve-se definir o impuro e o puro?

O discurso sobre o doping não pode existir se não como o contraponto deum estado de “pureza natural” (Foucault, 19626) descrito nos primeiros artigos so-bre o esporte.

5. Fortificantes: produtos muito mais brandos e utilizados legalmente que podem ser por exemplo,um caldo de carne e não necessariamente um doping.

6. Ver Foucault (1962), em que trata, analogicamente, acerca da loucura e da razão.

62 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

Não é possível pensar o impuro se não face ao puro. Para a mídia, convém,então, delimitar antes de tudo a pureza, tarefa da maioria dos artigos do início doséculo, ao menos até a Segunda Guerra Mundial. Trata-se, sem dúvida, de erigir ocorredor e o atleta como modelos de pureza.

Antes da Segunda Guerra Mundial, praticamente, nenhum artigo faz alusãoao doping, exceto aquele de L’Auto (27 jul. 1914, p. 5), onde é citado o koto, umabebida a base de coca preconizada para melhorar o rendimento dos atletas nasetapas de montanha, assim como o álcool que ora surge como estimulante, oracomo causador de deficiências. “O álcool é um veneno violento” (L’Auto, 4 ago.1907, p. 3). A água é louvada. Há também uma valorização do chá e do café, sendoque, algumas vezes, são rejeitados por causarem irritações gástricas.

Nos artigos da mesma época não há qualquer alusão a atropina, a estriquininaou a outras substâncias dopantes utilizadas nos cavalos. Porém, sabe-se a partir deoutras fontes (De Mondenard, 1990) que nesse mesmo período essas substânciasforam utilizadas para homens.

Alguns soigneurs são estigmatizados por conhecer “segredos”, esses que al-gumas vezes são levados ao túmulo. Todavia, essa noção de segredo perdida épercebida como lamentável pelos jornalistas que escreveram os artigos.

Um artigo no La vie au grand air (n. 84, p. 41, 1900) faz uma clara alusão à“picada mágica”, cuja receita é conhecida apenas por um soigneur e cujo conteúdoé desconhecido pelo corredor, conforme podemos notar no seguinte trecho:

No exercício de suas funções, o manager possui, de uma certa forma, o papel demédico e a seringa Pravaz não apresenta segredo para ele, se ela, “a seringa”, guarda umpouco do conteúdo para a pele de seu potrinho (La vie au grand air, 84, p.41).

Nesse breve trecho dois elementos merecem destaque: a noção do segre-do, que permite ao corredor permanecer puro apesar de tudo, face à possibilidadeda impureza da seringa, e o fato de o corredor ser chamado de potrinho, nomeque remete às corridas de cavalos e, portanto, a possibilidade de um doping, ou, aomenos, da utilização de produtos impuros oriundos do hipismo.

Os soigneurs, em decorrência dessas práticas são rapidamente estigmatizadose considerados como nocivos aos corredores, tornando-se assim, veículos privilegia-dos da impureza. Pensa-se até mesmo em suprimi-los e substituí-los sistematicamen-te por médicos. Por vezes a suspeição chega a ser mencionada, porém, nenhumaprova é apresentada; fala-se, por exemplo, no L’Auto de 8 de julho de 1907, depreparação, pelos treinadores, de “bebidas reparadoras” sem qualquer precisão.

As anfetaminas chegaram na França, de fato, com os soldados americanosque desembarcaram na Normandia, em 1944, e principalmente com os pilotos da

63Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

Royal Air Force (RAF) durante a batalha da Inglaterra7; contudo, não é possível afir-mar que não houvesse anteriormente outras formas de doping.

E certo é que foi colocado em evidência o papel nefasto dos soigneurs tantono atletismo quanto na Tour de France cycliste; “[...] Isto prova que as fraudesdevem ter sido numerosas, e que a eliminação dos treinadores e sobretudo a dossoigneurs é quase ilusória” (La vie au grand air, 1904, 232, p. 558).

Na verdade, trata-se, no plano simbólico, de pôr a culpa no estrangeiro, o quevem do exterior, e também o mais fraco, afim de não recusar o princípio da pureza,algumas vezes natural como é o caso da metáfora da água pura, mas igualmentesobre a pureza da raça princípio sobre o qual se fundamenta a atividade esportivadesde sua origem. O ser puro é o campeão. Os soigneurs podem ser impuros, oque não altera a simbologia pura do campeão. A raça do campeão, nesse sentido,como aquela do “puro sangue” é evocada muitas vezes, então, como um dos ele-mentos suscetíveis de favorecer a vitória. Quanto mais pura for uma raça, mais elaserá suscetível de produzir campeões. Vemos assim que esse conceito de “purezanatural” ou essencial é o constituinte fundamental do mito esportivo.

Não será mais possível empregar a noção de “raça pura” após a SegundaGuerra Mundial. Nos periódicos estudados de 1898 a 1936, os artigos mencio-nam raças degeneradas como as raças européias que vivem no conforto há muitotempo, e raças selecionadas pela sua audácia, coragem e pela força, tal como a“raça americana”.

Um artigo de La vie au grand air, de 1900, número 84, explica que a “raçaanglo-saxônica” (p. 552) possui qualidades impossíveis de serem encontradas naEuropa, pois “[...] existe a questão do atavismo travando o caminho da vitória paranossa geração de franceses, [enquanto uma] raça jovem está se desenvolvendo noNovo Mundo”. Mais claramente ainda explica-se que é uma raça de pioneiros queprecisou lutar contra imensas dificuldades e conheceu uma seleção natural, apenasos mais fortes sobreviveram. Reencontramos essa teoria ainda em 1920 na escritado célebre doutor Marc Bellin du Coteau:

A raça americana foi gerada por uma seleção natural à moda do Darwinismo: imigran-tes de origem britânica que necessitaram primeiro lutar para se ambientar, depois parasobreviver. Os indivíduos oriundos desta seleção possuem, evidentemente, um potencialenergético superior ao do Europeu estabilizado (La vie au grand air, 412, p.21).

7. Nota do tradutor: pilotos franceses combateram juntos com os pilotos da Royal Air Force (RAF),durante a chamada da Batalha da Inglaterra, a qual precedeu o desembarque na Normandia em1944.

64 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

Essa noção de degenerescência da raça é evocada após o surgimento dasteorias de Darwin e de Galton, principalmente, por numerosos médicos que traba-lhavam no domínio do exercício físico, no decorrer desse período. Essa noção de“raça pura”, purificada ou não-degenerada é, todavia, relativizada desde 1919 poralguns jornalistas, provavelmente após o desenvolvimento do internacionalismo eda guerra de 1914. La vie au grand air, em 1919, número 358, p. 16, explica que:“Não acreditamos no cansaço ou na degradação da raça francesa: nossos atletascorretamente treinados são capazes de rivalizar com os do resto do mundo [...] Asraças latinas são realmente maravilhosas” (L’Auto, 17 de julho de 1907, p. 3).

Mas a purificação ascética pode ser criticada também, assim um artigo de1904, no periódico La vie au grand air, descreve um “craque treinando” e explicaque o principal consiste em uma alimentação bastante sadia, mas, ao fazê-lo, essecraque “[...] sacrifica à sua forma, grande parte dos prazeres da existência” (La vie augrand air, p. 405). Todavia, o atleta cuja raça não é “pura” deve encontrar outrosmeios de purificação. O ascetismo é um meio bem conhecido em todas as religiõesdo mundo e utilizado aqui na “religião do excesso” para retomar a expressão dobarão de Coubertin.

Percebemos que, de qualquer modo, o corredor ciclista é, sem dúvida, esegundo a expressão de Jean-Marie Brohm (1976) “um modelo de comportamen-to” para a mídia esportiva estudada. Portanto, o impuro não pode lhe ser imputadosob pena de desacreditar o modelo.

O segredo

A noção de segredo é um dos elementos fundamentais que permitem en-tender sobre quais bases constrói-se a idéia de doping e, de um modo geral, aquiloque distingue o moralmente aceitável e inaceitável. A noção de segredo é umaconstante nas representações dos treinos. Seus detentores na primeira metade doséculo XX foram, geralmente, os soigneurs ou os treinadores, nunca os médicos.

A noção de segredo, no domínio do esporte, é essencial para permitir atransmutação do puro em impuro, do fortifiant em topette ou em charge.

No início do século, porém, essa noção de segredo não parece necessaria-mente maculada pela impureza uma vez que, na maioria dos casos, trata-se desegredos ligados ao treino.

É o caso do treinador Choppy em 1903. “Choppy, falecido, levou com ele osegredo de seus treinos que guardou a vida toda com muito ciúme” (La vie au grandair, 1903, p. 405).

65Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

Vemos então que, se o segredo faz-se presente, ele não é condenado. Éassociado, de um modo geral, a uma espécie de savoir-faire tradicional e eficaz.Será somente após a Segunda Guerra Mundial que essa lógica oscilará.

Assim, quando os russos participaram pela primeira vez dos jogos olímpicos,em 1952, L’Equipe desvela por trás de sua preparação física um mistério que pode-ria rapidamente tender para a suspeição. Um novo grupo de estrangeiros exige,nesse espaço social, uma definição ainda mais restrita da noção de pureza e umamaior transparência: “Mistério no assunto do treino dos Russos, no campo deOtamini” (L’Equipe, 17 jul. 1952).

Em todos os casos circulavam segredos em torno da preparação dos atle-tas, de sua nutrição, dos grupos de corredores do Tour de France cycliste e dossoigneurs.

A suspeição

Desde antes da Primeira Guerra Mundial o uso de bebidas com produtossuspeitos foi descrito por jornalistas. Durante muito tempo, porém, a evidênciadesse fato não foi constatada, a não ser quando ocorreram erros de dosagem oucrises gravíssimas:

Encontrei Duboc sofrendo com terríveis soluços e náuseas que o deixavam esverdeado,acometido por uma diarréia terrificante e vômitos dolorosos [...] cheirei pessoalmente ocantil que estava a seu lado, e que não me pareceu ter o aroma de chá (L’Auto, 21 de jul.de 1911, p. 1).

É sempre por trás dos produtos não revelados que se esconde o mal. Osegredo cria a suspeita midiática e jornalística: “Certos corredores entregam-se,como se diz, à uma misteriosa alquimia de pequenos frascos destinados a aumentaro ‘teto’ de suas capacidades” (L’Equipe, 26 jul. 1950).

Em relação a esse tema, o único elemento capaz de dar tranqüilidade seria ocontrole médico, pois assim o segredo seria validado por uma garantia ou, pelomenos, tenderia para a segunda lógica explicativa, qual seja, aquela da pureza.

CERTEZAS, REVELAÇÕES E EXCLUSÕES

A certeza do doping

Finalmente chega o tempo de revelação. Não há mais dúvida. Alguns corre-dores ciclistas, talvez até todos estejam doentes, às vezes, gravemente, ou mesmo

66 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

morrerão por causa do doping. A partir desse momento o doping é dramatizadopela mídia.

O abandono de J. Malléjac na décima primeira etapa: Marseille, Avignon, permanecerácomo o Caso do Tour de France, 1955, já que teve por conseqüência, para os organizadores,a abertura de um inquérito sobre o mal vergonhoso do ciclismo, um mal secreto, protegidopor uma [...] conspiração do silêncio (Le miroir des sports, 4 jul. 1955, p. 39).

Nesse momento, uma verdadeira omerta8 mafiosa é revelada. O caso Mallejacabre a caixa de Pandora: “Desde a abertura do inquérito sobre o doping [...] oandamento da corrida, sem dúvida, havia seriamente enfraquecido”(L’Equipe, 21jul. 1955).

A partir do fim dos anos de 1950 podemos constatar que um grande númerode artigos do L’Equipe, intitulados “Não há fumaça sem fogo”, dedicam-se unica-mente, ao doping. O mundo da imprensa esportiva, provavelmente, percebeu anecessidade de continuar a representar o esporte e os atletas como puros. Trata-se, portanto, de estigmatizar os produtos impuros e quem os utiliza, já que o perigomostra-se grande demais para a instituição. Todavia, na perspectiva de Mary Douglas,essa definição do sujo não é tão presente aqui por ela mesma, mas, pelo que definede uma ordem social interna.

O médico, então, transforma-se em protetor antidoping, mantendo um es-tatuto de puro e de seu protetor.

Não há fumaça sem fogo.

A verdadeira dinamite entrou na corrida [...] Em Luchon, o doutor Dumas reuniu osmassagistas-soigneurs de modo a lutar contra a nova ofensiva dos dinamitadores do “Tourde France” [...] O perigo se apresenta ainda maior, pois, novos produtos estão sendo[...]utilizados [...] tais como os derivados da nitroglicerina (L’Equipe, 12 jul. 1958).

A série dos artigos “Não há fumaça sem fogo” prossegue após o caso Mallejac.

A anarquia é completa e total no domínio da “charge” [...] Certos corredores ciclistastomam não importa o que e não importa como. E deve-se admitir que estes citadoscorredores não podem funcionar somente com a água da fonte [...] (L’Equipe, 9 jul. 1959).

8. Nota do tradutor: O autor utiliza a palavra omerta em língua italiana cuja definição é a seguinte:omerta é a lei do silêncio da Mafia Italiana Camorra, cujo primeiro artigo é o de jamais revelar oautor de um delito. Por extensão, é um silêncio que se impõe em todas as comunidades que teminterêsse no assunto (Le petit Larousse Ilustré, 2005).

67Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

Finalmente, nessa transição e a partir do fim dos anos cinqüenta de um modogeral, o jornalista parece admitir que uma charge não-anárquica, e talvez sob con-trole médico, é aceitável na medida em que os corredores “não podem funcionarsó com a água da fonte”. Vemos reaparecer a metáfora da pureza virginal da águada fonte (a pureza humana?) porém, dessa vez, a constatação é totalmente aocontrário, visto que se trata de declarar que essa pureza não permite aos corredo-res funcionarem nas condições normais da corrida. Em outras palavras, o conceitode pureza parece ter oscilado para o lado do “controle médico” e não mais para olado do produto em si que não mais será impuro se for decretado aceitável pelamedicina.

É necessário notar também que a denominação do doping mudou: topettetornou-se o mais transgressor e o mais violento tomando o lugar da charge. Oimportante é que a partir desse momento o doping tornou-se uma certeza para osjornalistas esportivos.

Auxílios não secretos são lícitos?

O doutor Dumas utiliza uma substância que poderia ser considerada comoimpura, mas como, nesse caso, a idéia é de tornar mais “saudável” e de colocar-seao lado da vida do corredor ciclista, até mesmo de sua sobrevivência, o produtonão-secreto retoma o estatuto de puro. Tomado às escondidas seria provavelmen-te impuro. “O Doutor Dumas aplicou-lhe uma injeção de novocaína” (Le miroirdes sports, 5 ago. 1956).

A declaração de um corredor ciclista, dez anos antes, foi suficiente para tor-nar um produto puro, mesmo não sendo sua transparência total, pois não se sabiaqual era esse produto. “Não seria capaz de sair d’Aix se não tivesse mandado queme aplicassem seis injeções no joelho de um produto que sabia que me fazia bem”(L’Equipe, 1 ago. 1946).

Às vezes a metáfora da água pura é transferida para outros produtos coloca-dos explicitamente em evidência, e nesse c/aso o duplo sistema do puro e do não-secreto coincidem e se sobrepõem. O açúcar é visto como um auxilio “ergo-gênico”puro. Sua brancura é muitas vezes destacada além de suas qualidades energéticas.Sistemas místicos profundos parecem, então, organizar os discursos.

Um produto duvidoso pode até ser evidenciado se sua revelação for feitapelo próprio corredor ciclista. A revelação, em si mesma, purifica o produto. “Umveterinário de Saintes lhe propõe um produto sensacional e inofensivo que produzuma “revolução tal no sistema nervoso” que um ciclista qualquer sobe encostashabitualmente inacessíveis para ele” (L’Equipe, 10 jul. 1954).

68 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

A revelação e a exclusão dos “impuros”

A luta contra o “impuro”, seguida da lei do doping, tem seu início. Nenhumsegredo e nenhuma impureza são tolerados desde o momento em que a revelaçãoda evidência de doping for feita.

O pelotão inteiro do Tour de France cycliste é brutalmente suspeito dedopagem. O artigo do qual extraímos um trecho, apresenta em sua conclusão,forte probabilidade do conjunto dos corredores não terem controle sobre os pro-dutos que utilizavam.

Uma atmosfera de escândalo e de suspeição [...]

Espetáculo lamentável em Luchon Carcassone! Corredores à deriva, olhos esbuga-lhados segurando a barriga, muito doentes. Nencini e Assirelli incapazes de se manteremem pé [...] Uma intoxicação alimentar, pretendiam alguns. A “charge”, afirmavam outros(Le miroir des sports, 9 jul. 1962, p. 9).

A partir do momento em que o doping dos corredores é evidenciado, seránecessária a exclusão das “ovelhas negras”.

O problema do doping foi recentemente evocado na imprensa [...] Os organizadoresdo Tour não esperaram que a questão fosse levantada para lutar contra o doping comcerta eficiência [...] Os organizadores do Tour já excluíram, há tempo, as ovelhas negras desua prova (Le miroir des sports, 9 jun. 1960, p. 7).

Tom Simpson vai tornar-se o apologista de um treino puro sem o uso denenhum estimulante. Três anos antes de sua morte por abuso de anfetaminas, ocor-rida na montanha do Ventoux, foi entrevistado inúmeras vezes por L’Equipe e Le miroirdes sports, entrevistas, nas quais, denunciava o doping. Grande número de corredo-res célebres terá o mesmo fim: denúncia do doping e morte por doping. Um dia,apologistas contra o doping, e outro, incriminados pelo seu uso. A continuidadediacrônica do L’equipe e Le miroir des sports é, desse ponto de vista, eloqüente.

HIPÓTESES EXPLICATIVAS

A retomada moderna de um mito relativa ao tema do puro e do impuro

Aquilo que parece ocorrer na “religião do esporte” surge possivelmente deuma retomada contemporânea do mito bíblico fundador. Efetivamente, se o atletaencarna a pureza original e natural, como já vimos, aquilo que se passa no domíniodo esporte de alto nível, nos reaproxima do pecado original e da expulsão do ho-

69Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

mem do Éden por haver mordido a maçã do pecado e do conhecimento. O siste-ma de doping no Tour de France cycliste, em particular, e nas grandes competiçõesinternacionais, em geral, funciona apoiado nesse mesmo modelo mitológico. En-contramos, aliás, essa visão em outros mitos antigos como aquele de Prometeuou de Ícaro.

Todavia, com Mary Douglas, podemos ir além e afirmar que algo mais entraem jogo na lógica do puro e do impuro, na ordem da “poluição” e da “sujeira”. Ocorpo do atleta é de uma pureza encarnada que nada deve macular, tal qual aquelede Adão e Eva no Éden. Esse corpo representa, portanto e sem dúvida, um mitointeiramente oposto ao corpo faustiano, totalmente construído pela cultura e evi-denciado por Michel Onfray (2003) em seu livro Féeries anatomiques. O doping,portanto, representa para a sociedade esportiva a sujeira que define a ordem fun-damental dessa sociedade.

Utopia da comunicação

Uma segunda hipótese permitiria explicar a obstinação demonstrada em re-lação ao segredo do doping esportivo após a Segunda Guerra Mundial ou, ao me-nos, explicar o seu surgimento.

O fato de as anfetaminas serem utilizadas cada vez mais massivamente tem,sem dúvida, um papel, todavia, e, com certeza, o surgimento da Utopia da comuni-cação também o tem, como o explica Philippe Breton. Nesse caso a dinâmicaessencial evocada não é mais a do puro e do impuro como em Mary Douglas, mas,sim, a do segredo.

Após 1944 constatou-se, com efeito, que dois terríveis segredos não foramrevelados ao mundo: o Holocausto e Hiroshima. Como conseqüência surge odesejo de uma transparência absoluta em todos os espaços humanos, uma transpa-rência quase totalitária denominada “utopia da comunicação”. O segredo, ondequer que ele esteja, não é mais aceito. Isso explicaria que o puro pode transformar-se em impuro pelo único fato de não ter sido “comunicado” ao público. Assim, umafarmacopéia é pura se ela for pública e impura se não o for. Uma única exceção vaiao encontro dessa lógica, aquela do segredo médico, a única que permanece acei-tável, pois até mesmo o segredo jurídico é refutado cada vez mais.

O segredo, o puro e o impuro

O primeiro momento no corpus estudado, mais exatamente aquele entre asduas guerras, é marcado pela estigmatização dos homens mais fracos do sistema,vistos ainda como impuros, os soigneurs.

70 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

O segundo momento no corpus estudado, entre os anos de 1955 a 1965,consiste em mostrar nos artigos dos periódicos, a existência do uso de produtos impu-ros, trazidos inicialmente pelos soigneurs. Às vezes, surgem discussões com os médi-cos para saber onde se encontram os limites do puro e do impuro. Porém, nessemesmo momento alguns corredores afirmam serem contra o doping e morrem devi-do ao doping9. Esse acontecimento problematiza a pureza essencial do atleta.

O terceiro momento, em torno dos anos 1965, faz emergir à ação doscorredores ciclistas, uma omerta até de equipes, insuportável para o mundo da“utopia da comunicação”, na qual médicos são, por vezes, implicados. O segredonão é mais admissível qualquer que ele seja.

Finalmente, após a promulgação da lei contra o doping em torno de1964que define ou tenta definir o impuro, os corredores ciclistas resistem, com violên-cia, iniciando uma greve. Não é admissível para eles, serem possivelmente vistoscomo capazes de ingerir produtos impuros uma vez que, na condição de atletas,são o símbolo do puro.

No momento seguinte, entre os anos de 1970 a 1980, os mesmos corredo-res ciclistas que por vezes são apologistas da luta antidoping vêem-se acusados dedopar-se após controles médicos. Suspeita-se, então, de manipulação dos contro-les. Na realidade, trata-se sempre de projetar o erro para o exterior: os atletas,símbolos da pureza original, não podem ser os culpados.

O último momento de nosso corpus, entre os anos de 1980, nos conduz àesta evidência: o puro, o corredor ciclista, o atleta, contém ou ingere o impuro.Portanto é necessário protegê-lo contra ele próprio para que permaneça puro.

Conclusão sobre o sistema fundador

O campeão é símbolo de pureza e de transparência desde a sua origem: eleé o portador do mito da pureza original. Tudo é elaborado, então, para reforçaressa imagem e, ao mesmo tempo, para protegê-la. É por essa razão que os jorna-listas agem de modo a alterar minimamente essa imagem ideal. Porém, o impuroronda esse ícone, por vezes muito perto, como é o caso dos soigneurs ou dosmédicos. Mesmo se um atleta ingerisse um produto impuro, não seria ele, emprimeira instância, considerado assim. Permaneceria protegido ao máximo e todo osistema atuaria para protegê-lo. Poder-se-ia acreditar, por exemplo, que o produtoimpuro teria sido ingerido com a finalidade de tratamento e os jornalistas continua-riam a duvidar pelo tempo mais longo possível.

9. Como por exemplo Tom Simpson.

71Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

Com a finalidade de proteger esse ideal de pureza utilizam-se produtos quemascaram a “sujeira”. Porém, se o fato for realmente comprovado, o campeão nãoé mais campeão uma vez que destruiu o mito e isso é irreversível.

A personagem de Richard Virenque no Guignols de l’info 10 representa umatleta “dopado sem seu pleno consentimento” e expressa com perfeição o sistemamontado para proteger o atleta e mantê-lo como símbolo de pureza.

É, portanto, à uma estrutura esquizofrênica que chegamos. A realidade vivi-da pelos atletas é presa entre dois sistemas de normas contraditórias e incompatí-veis, as quais devem submeter-se de modo imperativo para tornarem-se campeões.É talvez essa dupla opressão que em uma perspectiva antropológica delimita a pu-reza e a impureza, a comunicação e o segredo, a ordem e a desordem, o aceitávele o inaceitável.

Doing during the XXth century in France:reprentations of purity, non-purity and secret

ABSTRACT: This paper deals with the representations of doping in four important journalsduring the XXth century in France. Purity, non-purity and secrets are three concepts witchallow to understand how those system get organized during time. This idea is based on MaryDouglas anthropological work concerning pollution, purity and non-purity. But the concept ofsecret is also one of the decisive elements to understand the relationship between the twoprecedent conceptsKEY-WORDS: Doping; history of sport; purity and non-purity; cyclist.

El doping a lo largo del siclo XX: representaciones del puro, del impuro y del secreto

RESUMEN: Este artículo analiza los sistemas de representación del doping en cuatroperiódicos deportivos franceses, durante el siglo XX. Pureza, impureza y secreto son tresconceptos a partir de los cuales es posible entender como estos sistemas fueron organi-zados a través del tiempo. El estudio toma como base los trabajos antropológicos deMary Douglas, relativos a los conceptos de polución, pureza e impureza. Por su parte elconcepto de secreto es considerado, ya que se constituye en uno de los elementosdecisivos para entender la relación entre los dos precedentes.PALABRAS CLAVE: Doping; historia del deporte; pureza y impureza; ciclista.

10. Guignol de l’info, é um programa apresentado pelo canal Plus de uma emissora de televisão francesa.

72 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

REFERÊNCIAS

AUNEAU, Gérard. Dopage et mouvement sportif. Presses universitaires du sport, 2001.

BOURGAT, Michel. Tout savoir sur le dopage. Favre, 1999.

BRISSONNEAU, Christophe. Entrepreneurs de morale et carrières de déviants dans le dopagesportif. Thèse, 2003.

BROHM, Jean Marie. Sociologie politique du sport. Paris: Delarge, 1976.

DOUGLAS, Mary. If the dogon... Cahiers d’Études Africaines, Paris, t. 7, n. 4, p. 659-672,1967.

. De la souillure. Paris: Maspéro, 1971 (première édition, 1966, Purity andDanger. London: Routledge).

. La pureté du corps. Terrain: carnets du patrimoine ethnologique. Paris, n.31, p. 5-12, 1998.

. Leviticus as literature. London: Oxford University Press, 1999.

. De la souillure: essai sur les notions de pollution et de tabou, la découverte.Baltimore: Penguin, 2001.

. L’anthropologue et la Bible. Paris: Bayard Culture, 2004.

DUCARDONNET, Alain; PORTE, Gérard; BOULANGER, Pascal. Le guide sport santé. Aubinimprimeur, 1995.

FOUCAULT, Michel. L’Histoire de la folie. Paris: Gallimard, 1962.

HOULIHAN, Barrie. Dying to win : doping in sport and the development of anti dopingpolicy. Ed. Conseil de l’Europe, 1999.

JENNINGS, Andrew. La face cachée des jeux olympiques. s. l.: L’Archipel, 2000.

LAURE, Patrick. Le dopage. Paris: PUF, 1995.

. Histoire du dopage et des conduites dopantes : les alchimistes de laperformance. Elipse, 2004.

LE PETIT LAROUSSE ILLUSTRÉ (100. ed.), Paris: Editoria Larousse, 2005, p. 754.

MIDOL, Nancy. Performance et santé. s. l.: Clermont-Fernand, 1991.

MONDWNARD, Jean Pierre de. Dopage : l’imposture des performances. s. l.: Chiron, 2000.

MOTTRAM, David. Drugs in sport. s. l.: Taylor & Francis, 2003 (troisième édition).

NORET, André. Le dopage. s. l.: Vigot, 1990 (deuxième édition).

73Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

ONFRAY, Michel. Féeries anatomiques : généalogie du corps faustien. Paris: Grasset, 2003.

PETIBOIS, Cyril. Des responsables du sport face au dopage. S. l.: L’Harmattan, 1998.

SCHNEIDER, Angela; HONG, Fan; BUTCHER, Robert. Doping in sport : global ethicalissues. Taylor & Francis, 2004.

WADDINGTON, Ivan. Sport, health and drugs : a critical sociology perspective. E. & FNSpon, 2000.

WALDER, Gary, L’Athlète et le dopage. Paris: Vigot, 1999.

YONNET, Paul, Système des sports. Paris: éd. Gallimard, 1998.

Fontes

LA VIE AU GRAND AIR

Microfilm

Bibliothèque Nationale de France (B.N.F.)

Cote: M- 11466

21 artigos

De 1900 Thème: (número 41) à 1920. Lê XV Tour de France (número 18 e 19)

JOURNAL L’AUTO

Bibliothèque I.N.S.E.P. (Paris)

de 1 jul. 1903 a 27 jul. 1914

110 artigos

BUT ET CLUB: LE MIROIR DES SPORTS

B.N.F.

57 artigos

Cote: FOL–JO–3800

Le Miroir des Sports

de 9 fev. 1922 (número 90) a 26 set. 1968

L’EQUIPE

225 artigos

Bibliothèque de Beaubourg

Cote: MICR D-365

L’Equipe

de 30 jul. 1946 a 4 ago. 1998 (p. 4)

74 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 55-74, set. 2005

Recebido: 7 jan. 2005Aprovado: 24 mar 2005

Endereço para correspondênciaJacques Gleyse

L’IUFM de l’Académie de Montpellier2 Place Marcel Godechot

BP 415234092 Montpellier Cedex 5

France

75Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

USO DE ESTERÓIDES ANABÓLICO-ANDROGÊNICOS E ACELERADORESMETABÓLICOS ENTRE PROFESSORESDE EDUCAÇÃO FÍSICA QUE ATUAM

EM ACADEMIAS DE GINÁSTICA

Dr. ALEXANDRE PALMADocente das Universidades Gama Filho e Estácio de Sá

e-mail: [email protected]

Dra. MONIQUE ASSISDocente do Centro Universitário Augusto Motta (UniSuam)

e-mail: [email protected]

RESUMO

Os objetivos do presente estudo foram identificar o quantitativo de professores de educaçãofísica atuantes em academias de ginástica usuários de esteróides anabólico-androgênicos(EAA) e aceleradores metabólicos (AM), bem como, as razões que conduzem os professoresa fazer uso de tais substâncias químicas. Para tanto, foram investigados 305 professorespor meio de um questionário. O levantamento permitiu observar que 38,69% já fez usode AM na vida; 25,57% de EAA; 17,38% das duas drogas; enquanto, 53,44% nunca fezuso essas drogas na vida. Embora não se tenha uma base comparativa, pode-se concluirque os valores de prevalência para uso de AM e EAA em professores de educação físicaparece estar elevado, pois se espera que esses profissionais desencorajem o uso de drogas.

PALAVRAS-CHAVE: Esteróides anabólico-androgênicos; aceleradores metabólicos; professorde educação física; doping.

76 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

INTRODUÇÃO

A cultura corporal do body building fundamenta-se na idéia de beleza e for-ma física como resultados de um esforço físico intenso pelo qual o indivíduo subme-te seu corpo. Parece que o corpo assume um valor relevante perante à sociedade.Segundo Goldenberg et al. (2002), a “cultura da malhação” exige o corpo não sólivre das gorduras, mas que seja firme, musculoso, isento da marca do relaxamento.De fato, a gordura e a flacidez são tomadas como símbolos de indisciplina, de pre-guiça, “da falta de investimento do indivíduo em si mesmo” (p. 31). Contudo, sepor um lado o body building constitui uma das manifestações da cultura da aparên-cia, por outro deve-se ressaltar que ele não é só espetáculo, mas antes, ele é sus-tentado por um mercado, por uma indústria (Sabino, 2002; Sant’Anna, 2002).

É possível, assim, que os esteróides anabólico-androgênicos e os acelerado-res metabólicos façam parte desse leque de ofertas para que os sujeitos possamrapidamente desenvolver a massa muscular e/ou diminuir sua quantidade de gor-dura corporal.

No livro intitulado Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpocarioca, os cientistas sociais debruçaram-se sobre essa questão e trouxeram à tonao que envolve a preocupação com a aparência física. Dentre os trabalhos, é o deSabino (2002) que aborda de modo mais contundente as questões da droga deno-minada “hormônio esteróide anabólico-androgênico” dentro das academias de gi-nástica.

O profissional de Educação Física, por sua vez, tem participado mais sistema-ticamente de programas de promoção da saúde. Como um profissional da saúde,está engajado na prevenção de diferentes doenças e, muitas vezes, é tido comoexemplo ou modelo para seus alunos, situação semelhante que ocorre com osmédicos (Kerr-Corrêa et al., 1999). O imaginário do corpo esbelto, livre de gordu-ra é imediatamente associado à “boa saúde” e concorre para que se esqueça deoutros fatores relacionados à ela.

Parece, também, que o corpo do professor de Educação Física que atua nasacademias de ginástica funciona como uma espécie de “currículo”, pelo qual é pos-sível associar a boa forma corporal à qualidade profissional. Outra questão interes-sante refere-se ao entendimento de que há necessidade do professor ter uma boaforma física, sendo que precisaria suportar, por vezes, o esforço das várias aulas.Essa compreensão, apoiada empiricamente, conduz à reflexão de que tanto o pri-meiro caso, de natureza estética, quanto o segundo, ligado ao condicionamentofísico, poderiam estar associados ao uso de substâncias químicas que favorecem amelhora do desempenho físico e/ou dos padrões estéticos cultuados pela sociedade.

77Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

Nesse sentido, parece interessante investigar até onde os profissionais deEducação Física têm utilizado de esteróides anabólico-androgênicos e aceleradoresmetabólicos, bem como, procurar compreender o que leva os professores ao usode tais substâncias.

Algumas das possíveis conseqüências do uso regular e prolongado dosesteróides anabólico-androgênicos são:

a) efeitos virilizantes, tais como, tom de voz mais grave, aumento dos pêlosfaciais, aumento de secreção das glândulas sebáceas, aumento do tama-nho do clitóris, agressividade etc.;

b)efeitos feminilizantes, como diminuição da testosterona plasmática, atrofiatesticular, ginecomastia, azoospermia etc.;

c) efeitos tóxicos, os quais podem-se destacar as disfunções hepáticas, alte-rações cardiovasculares, irritabilidade, e até câncer, entre outros fatores.(Wilson, 1996; Lise et al., 1999; Chrousos, Margioris, 2003).

Já as substâncias chamadas “aceleradores metabólicos” (Xenadrine, RippedFuel, Thermobuterol etc.), com base em efedrina, têm sido utilizadas para masca-rar a sensação de cansaço e favorecer a perda de gordura corporal (Green et al.,2001). Dentre os efeitos adversos à saúde, Haller et al. (2000) relatou a hiperten-são, as palpitações, a taquicardia, as arritmias, o enfarto do miocárdio, o acidentevascular encefálico e convulsões como efeitos mais comuns.

Desse modo, os objetivos do presente estudo foram: a) identificar o quanti-tativo de professores de Educação Física atuantes em academias de ginástica usuá-rios de esteróides anabólico-androgênicos e aceleradores metabólicos; e, b) iden-tificar as razões que conduzem os professores a fazer uso de tais substâncias químicas.

MATERIAIS E MÉTODOS

Características do estudo

Para o presente estudo foram utilizados dois diferentes métodos de investi-gação, na perspectiva de complementação mútua.

Num primeiro momento foi realizada uma pesquisa de levantamento (survey),cujo desenho seguiu o tipo interseccional (cross-sectional ) segundo descreve Babbie(2001) com o propósito de quantificar o uso das drogas, sua freqüência e fatoresligados à ocupação profissional.

O segundo método caracterizou-se como “análise do discurso” (Minayo,1996) e, por sua natureza qualitativa, propiciou levantar as razões acerca do uso

78 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

das drogas pelos professores de Educação Física, bem como questões referentesao seu trabalho.

Sujeitos

O grupo amostral foi limitado a professores de Educação Física que atuamem academias de ginástica na cidade do Rio de Janeiro, com idades entre 21 a 47anos, sendo 223 (73,11%) do sexo masculino e 82 (26,89%) do feminino.

Para o estudo de base quantitativa, foram selecionadas 15 academias de gi-nástica e distribuídos 400 questionários entre elas. Um total de 305 professoresdevolveram os questionários respondidos, perfazendo assim uma taxa de retornode 76,25%.

O estudo de natureza qualitativa contou com nove usuários de esteróidesanabólico-androgênicos e/ou aceleradores metabólicos. Esses informantes não fi-zeram parte do primeiro grupo amostral e são usuários que declaram abertamentefazer uso das substâncias. A seleção da amostra por tipicidade, desse modo, buscouretratar as razões de uso entre sujeitos com tipo bem característico.

Instrumentos

Para levantamento dos dados quantitativos utilizou-se um questionário anô-nimo com perguntas abertas e fechadas. O instrumento envolveu questões sobre ouso de esteróides anabólico-androgênicos e aceleradores metabólicos, além deoutras associadas à organização e processo do trabalho.

O instrumento foi idealizado especificamente para o presente estudo, em-bora tenha seguido algumas referências para sua construção (Muza et al., 1997;Scivolletto et al., 1999; Kerr-Corrêa et al., 1999; Baus et al., 2002). Além disso, foipreviamente testado entre dez estudantes de Educação Física, que não participa-ram da amostra. Para verificação da reprodutibilidade, um grupo de 26 estudantesrespondeu o questionário por duas vezes, com intervalo de dez dias entre eles. Osresultados asseguraram a reprodutibilidade do instrumento.

Para compreender as razões de uso das substâncias, foram entrevistadosnove professores. A entrevista, semi-estruturada, foi gravada em aparelho casseteda marca Sony e transcrita integralmente para que fosse possível realizar as análises.

Procedimentos

Os questionários foram entregues dentro de um envelope no local de traba-lho do professor, mediante autorização dos gestores e consentimento dos trabalha-dores. Eles foram, então, devolvidos dentro do envelope, de tal modo que tanto o

79Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

pesquisador, quanto quaisquer outros indivíduos não pudessem identificar os infor-mantes.

Todos os sujeitos da amostra receberam, imediatamente antes de responde-rem os questionários, instruções sobre os procedimentos da pesquisa, do anoni-mato e sigilo dos dados pessoais. Os indivíduos, então, concordaram e assinaram otermo de consentimento.

Para os sujeitos que participaram do estudo qualitativo, foi feito inicialmenteo contato com o professor, explicado os procedimentos da pesquisa e após a con-cordância do mesmo efetuado a entrevista.

RESULTADOS

Dados quantitativos

O total de indivíduos investigados apresentou média de idade de 29,91 anos(dp=6,19). Entre os indivíduos do sexo masculino a média de idade foi de 30,19anos (dp=6,16), enquanto que entre as mulheres a média foi de 29,15 anos(dp=6,23).

No que se refere à organização e processo de trabalho, a tabela 1 apresentauma síntese das características do grupo estudado. É importante ressaltar, contudo,que possivelmente os professores de Educação Física trabalhem em mais de um

Características

Modalidades que os professores trabalham *

Musculação

Ginástica

Hidroginástica

Alongamento

Ciclismo indoor

Lutas

Outros

Horas semanais de trabalho

até 15 horas

de 15,1 a 30 horas

acima de 30 horas

n

181

52

33

32

49

40

40

32

95

178

%

42,39

12,18

7,73

7,49

11,48

9,37

9,37

10,49

31,15

58,36

n

152

27

23

12

36

33

20

23

65

135

%

50,17

8,91

7,59

3,96

11,88

10,89

6,60

10,31

29,15

60,54

n

29

25

10

20

13

7

20

9

30

43

%

23,39

20,16

8,06

16,13

10,48

5,65

16,13

10,98

36,59

52,44

TABELA 1. CARACTERÍSTICAS DA ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO DOSPROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA QUE ATUAM EM ACADEMIAS DE GINÁSTICA

GêneroFemininoMasculino

Total

* o número de casos supera o número da amostra porque os informantes podiam escolher várias opções

80 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

Aceleradores metabólicos

Nunca usou

Experimentou

Uso no ano

Uso no mês

Uso semanal

Uso diário

Esteróides anabólico-androgênicos

Nunca usou

Experimentou

Uso no ano

Uso no mês

Uso semanal

Uso diário

43

25

4

3

4

3

72

7

1

1

1

0

local e que por isso essas características podem não refletir integralmente as condi-ções de um só posto de trabalho.

Quanto às repercussões que a ocupação profissional provoca no trabalha-dor, a tabela 2 apresenta alguns dados.

TABELA 3. QUANTIDADE DE PROFESSORES QUE FAZEM USO DEACELERADORES METABÓLICOS E ESTERÓIDES ANABÓLICO-ANDROGÊNICOS

Características

GêneroFemininoMasculino

Total

n % n % n %

187

69

19

17

8

5

227

46

19

9

4

0

61,31

22,62

6,23

5,57

2,62

1,64

74,43

15,08

6,23

2,95

1,31

0,00

144

44

15

14

4

2

155

39

18

8

3

0

64,57

19,73

6,73

6,28

1,79

0,90

69,51

17,49

8,07

3,59

1,35

0,00

52,44

30,49

4,88

3,66

4,88

3,66

87,80

8,54

1,22

1,22

1,22

0,00

A tabela 3 apresenta os dados relativos ao uso de aceleradores metabólicose de esteróides anabólico-androgênicos por professores de educação física atuan-tes em academias de ginástica.

TABELA 2. REPERCUSSÕES DA ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO SOBREOS PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA QUE ATUAM EM ACADEMIAS DE GINÁSTICA

* valores médios.

Características

Queixa de dores

Sim

Não

Percepção subjetiva de esforço

(escala de Borg)*

GêneroFemininoMasculino

Total

n

145,00

160,00

13,53

%

47,54

52,46

-00

n

105,00

118,00

13,54

%

47,09

52,91

-000

n

40,00

42,00

13,51

%

48,78

51,22

-

81Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

Percebe-se que fizeram uso de aceleradores metabólicos na vida 118 pro-fessores (38,69%). O uso dessas substâncias entre os homens foi realizado por 79professores (35,43%), contra 39 (47,56%) entre as mulheres. Esses dados, contu-do, não apresentaram diferenças estatísticas significativas entre os gêneros, a partirdo teste de Qui-quadrado.

O uso na vida de esteróides anabólico-androgênicos foi verificado em 78professores (25,57%), sendo 68 (30,49%) do sexo masculino e 10 (12,20%) dofeminino. O tratamento estatístico, a partir do Qui-quadrado, revelou diferençamuito significativa entre os gêneros para o uso na vida de esteróides anabólico-androgênicos (p<0,01).

Os dados permitiram observar, ainda, que do total investigado 53 professores(17,38%) fizeram uso na vida das duas drogas, sendo 43 (19,28%) do sexo masculi-no e 10 (12,20%) do feminino. Além disso, verificou-se que 163 professores (53,44%)nunca usaram nenhuma dessas drogas durante a vida. Entre os homens, 120 (53,81%)relataram nunca terem feito uso na vida, contra 43 (52,44%) entre as mulheres. Nãofoi verificado, nos dois casos, diferenças estatísticas entre os gêneros.

Nas tabelas 4, 5 e 6 é possível observar os padrões de uso na vida de acele-radores metabólicos, de esteróides anabólico-androgênicos e das duas drogas emfunção das características da ocupação profissional.

TABELA 4. QUANTIDADE DE PROFESSORES QUE FAZEM OU FIZERAM USO DE ACELERA-DORES METABÓLICOS EM FUNÇÃO DA ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO

* o valor percentual foi calculado a partir do número de professores observados por modalidade (Tabela 1).

** o nível de significância foi calculado pelo Qui-quadrado para verificar a diferença estatística de uso entre os professo-

res por modalidade quando confrontado com os valores totais.

*** o nível de significância foi calculado pelo Qui-quadrado para verificar a diferença estatística de uso entre os profes-

sores por carga horária quando confrontado com os valores totais.

Características

GêneroFemininoMasculino

Total

n %* pModalidades**MusculaçãoGinásticaHidroginásticaAlongamentoCiclismo indoorLutasOutrosHoras trabalho***Até 15 h/semDe 15,1 a 30 h/semAcima de 30 h/sem

70191310311421

143173

38,6736,5439,3931,2563,2735,0052,50

43,7532,6341,01

----

< 0,01--

---

54973

2199

92149

35,5333,3330,4325,0058,3327,2745,00

39,1332,3136,30

----

< 0,01--

---

1610

67

105

12

51024

55,1740,0060,0035,0076,9271,4360,00

55,5633,3355,81

----

< 0,05--

---

n p n p%* %*

82 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

TABELA 5. QUANTIDADE DE PROFESSORES QUE FAZEM OU FIZERAM USO DE ESTERÓIDESANABÓLICO-ANDROGÊNICOS EM FUNÇÃO DA ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO

* o valor percentual foi calculado a partir número de professores observados por modalidade (Tabela 1).

** o nível de significância foi calculado através do Qui-quadrado para verificar a diferença estatística de uso entre os

professores por modalidade quando confrontado com os valores totais.

*** o nível de significância foi calculado através do Qui-quadrado para verificar a diferença estatística de uso entre os

professores por carga horária quando confrontado com os valores totais.

Características

GêneroFemininoMasculino

Total

n %* pModalidades **MusculaçãoGinásticaHidroginásticaAlongamentoCiclismo indoorLutasOutrosHoras trabalho ***até 15 h/semde 15,1 a 30 h/semacima de 30 h/sem

569

108

1411

9

72348

30,9417,3130,3025,0028,5727,5022,50

21,8824,2126,97

-------

---

50685

1110

6

51944

32,8922,2234,7841,6730,5630,3030,00

21,7429,2332,59

-------

---

6323313

244

20,6912,0020,0015,0023,0814,2915,00

22,2213,33

9,30

-------

---

n p n p%* %*

A tabela 7 apresenta os dados relativos ao quantitativo de uso de acelerado-res metabólicos, esteróides anabólico-androgênicos e ambos em função das reper-cussões da organização e processo de trabalho sobre os professores de educaçãofísica.

Curioso ainda foram os valores médios da idade de cada grupo identificadono estudo. Considerando todos os professores a média de idade foi de 29,91 anos.Entre os professores que fazem ou fizeram uso na vida de esteróides anabólico-androgênicos a média foi de 28,69 anos. O valor médio da idade entre os professo-res que fazem ou fizeram uso na vida de aceleradores metabólicos foi de 28,91anos. Para os usuários das duas drogas a média foi de 28,84 anos. Por outro lado,nota-se um valor médio aumentado entre aqueles professores que relataram nun-ca terem feito uso de quaisquer das duas drogas (30,87 anos). Esses resultadosapresentam diferenças significativas (p<0,02) quando analisadas por meio da Anova.

UMA ABORDAGEM DA ANÁLISE DO DISCURSO

A análise dos discursos dos professores permitiu observar outras questões.Duas grandes motivações impelem os professores ao uso de aceleradores metabó-

83Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

Características

GêneroFemininoMasculino

Total

n %* p

Modalidades **

Musculação

Ginástica

Hidroginástica

Alongamento

Ciclismo indoor

Lutas

Outros

Horas trabalho ***

até 15 h/sem

de 15,1 a 30 h/sem

acima de 30 h/sem

38

7

7

4

10

6

8

7

16

30

20,99

13,46

21,21

12,50

20,41

15,00

20,00

21,88

24,21

26,97

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

32

4

5

1

7

5

5

5

2

26

21,05

14,81

21,74

8,33

19,44

15,15

25,00

21,74

29,23

32,59

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

6

3

2

3

3

1

3

2

4

4

20,69

12,00

20,00

15,00

23,08

14,29

15,00

22,22

13,33

9,30

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

n p n p%* %*

TABELA 6. QUANTIDADE DE PROFESSORES QUE FAZEM OU FIZERAM USO DE ACELARADORES METABÓLICOS E ESTERÓIDES ANABÓLICO-ANDROGÊNICOS

EM FUNÇÃO DA ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO

* o valor percentual foi calculado a partir do número de professores observados por modalidade (Tabela 1).

** o nível de significância foi calculado pelo Qui-quadrado para verificar a diferença estatística de uso entre os professo-

res por modalidade quando confrontado com os valores totais.

*** o nível de significância foi calculado pelo Qui-quadrado para verificar a diferença estatística de uso entre os profes-

sores por carga horária quando confrontado com os valores totais.

TABELA 7. QUANTITATIVO DE USO DE ACELERADORES METABÓLICOS, ESTERÓIDESANABÓLICO-ANDROGÊNICOS E AMBOS EM FUNÇÃO DAS REPERCUSSÕES DA ORGANI-

ZAÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO SOBRE OS PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA

* Não há diferenças estatísticas significativas para queixa de dores entre os grupos de usuários e o total de professores

investigado.

Características

Queixa de dores entre usuários de aceleradores metabólicos

Sim

Não

Queixa de dores entre usuários de esteróides

Sim

Não

Queixa de dores entre usuários das duas drogas

Sim

Não

GêneroFemininoMasculino

Total

n

62

56

45

33

27

26

%

42,76

35,00

31,03

20,63

18,62

16,25

n

40

39

39

29

21

22

%

38,10

33,05

37,14

24,58

20,00

18,64

n

22

17

6

4

6

4

%

55,00

40,48

15,00

9,52

15,00

9,52

84 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

licos e/ou esteróides anabólico-androgênicos. Uma diz respeito à necessidade dese obter alterações corporais que tragam seus corpos mais perto de um modeloidealizado pela sociedade. O corpo “sarado” funciona como um selo de qualidadedaquele profissional, garantindo-lhe maior valor dentro do mercado. À definiçãomuscular é agregada uma competência técnica. Em outros casos, o professor pre-cisa ter mais do que um corpo “sarado”. No spinning, por exemplo, esse corpo temque estar apto para suportar horas extenuantes de exercícios físicos. Nesse caso, ocoração, mais do que seus músculos bem torneados, assume a posição de seuprincipal atributo pessoal.

As alterações corporais, portanto, ocorrem na direção de aumentar a massamuscular e reduzir a quantidade de gordura corporal, as quais figuram na perspectivada estética e a preocupação com o aumento da resistência ao esforço prolongado,que pode significar uma tolerância para suportar a maior mais-valia imposta pelo tra-balho. Contudo, esses efeitos dependem do tipo de substância química utilizada.

A idéia de corpo-mercadoria aparece na fala a seguir:

O principal currículo do professor é o corpo dele. Você pode ver, se o cara tem umcorpo legal, ele arruma aluno de personal, se dá bem (R.S., 26 anos, sexo masculino,professor de musculação, 4 anos de formado).

Considerado em si como um produto a ser vendido, o corpo pode ser vistocomo fruto da competência técnica do professor, de seu auto-cuidado, bem comosua familiaridade com o “mundo do fitness”, a despeito do seu real conhecimento ebiótipo que lhe permitiu o desenvolvimento corporal dentro do modelo requerido.

Nesse sentido, o aumento da massa muscular reforça essa perspectiva, prin-cipalmente em alguns campos de atuação profissional como o da musculação.

Eu uso esteróides anabólico-androgênicos. Oh, eu uso mesmo porque me ajuda como meu corpo. Eu era muito magrinha, aí passei a tomar e aumentei meu bumbum, minhaperna ficou mais grossa, prá mim foi bom. Para mim, que trabalho com musculação... nãopodia ser muito magrinha, eu tinha que ganhar mais corpo (P.C.F., 25 anos, sexo feminino,professora de musculação, 4 anos de formada).

Sim, eu faço uso de esteróides anabolizantes. Eu uso porque gosto... acho que temque saber usar, fazer o ciclo certo. Eu não tomo demais, assim exagerado. Pô, e me deixacom um corpo que eu quero, sabe? Eu não quero ficar assim fortão. Do jeito que eu estoutá bom, eu uso por isso... Os alunos, sabe... a gente é também um espelho pros alunos(R.S., 26 anos, sexo masculino, professor de musculação, 4 anos de formado).

Outro aspecto relevante nessa marca lingüística refere-se à possibilidade demudanças quanto à redução da quantidade de gordura corporal, visto que a gordu-

85Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

ra borra os contornos que delimitam os limites entre o corpo perfeito e um corpofora dos padrões tanto estéticos como morais.

Faço, faço sim... eu uso Xenadrine, Ripped Fuel, anabolizante eu nunca usei. Eu usomesmo porque preciso manter meu corpo em forma e isso ajuda, né? Eu não uso muitonão. Eu tomo cuidado com a alimentação e malho bastante, mas não posso descuidar, né?(S.T., 25 anos, sexo feminino, professora de ciclismo indoor, 4 anos de formada).

[...] Eu uso prá emagrecer, porque ajuda, né? (M.G., 22 anos, sexo feminino, profes-sora de ciclismo indoor, 1 ano de formada).

Um grande objetivo porém secundário, para o uso de aceleradores meta-bólicos e esteróides anabólico-androgênicos poderia estar relacionado ao condi-cionamento físico, que também pode interferir em sua vida profissional.

O uso dos esteróides anabolizantes tem como efeito o aumento da força.Contudo, até onde pode ser verificado, os professores não utilizam essa droga comesse intuito. Por outro lado, os aceleradores metabólicos estão sendo reconheci-dos como importantes supressores da fadiga.

Eu uso os aceleradores metabólicos. Olha, eu uso por dois motivos. Eu vou confessar[...] Eu uso prá emagrecer, porque ajuda, né? E porque me ajuda prá dar várias aulasseguidas, assim... fazer as aulas com a turma. Tem dias que eu dou três aulas seguidas, umaatrás da outra... e depois vou prá outra academia. (M.G., 22 anos, sexo feminino, profes-sora de ciclismo indoor, 1 ano de formada).

Eu uso, eu uso os aceleradores... Pô, tipo assim, eu preciso agüentar as aulas. Eu doumuitas aulas e eu sou daquele tipo que faz as aulas todas. Eu acho importante fazer...mostra pro aluno que você sabe, que você curte, tem que demonstrar também, né?Então, eu preciso. Tem uns caras que tomam para emagrecer, mas eu não, eu tomo parapoder resistir. Se eu vacilar eu não agüento! (J.P.O., 23 anos, sexo masculino, professor deciclismo indoor, 2 anos de formado).

O corpo, assim, expressa a representação de uma realidade disciplinar emque deve servir como força produtiva. Mais uma vez ele, então, aparece como umproduto a ser comprado e vendido nas relações capitalistas, isto é, uma forçaconsumida para trabalhar por um período de tempo.

DISCUSSÃO

Até onde se pôde verificar, não foi encontrado nenhum estudo acerca da pre-valência de uso de aceleradores metabólicos e/ou esteróides anabólico-androgênicos(EAA) entre professores de educação física. Mesmo fora da categoria profissional, osestudos epidemiológicos sobre o uso dessas drogas no Brasil são escassos.

86 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

Numa revisão sobre EAA no esporte, Silva et al. (2002) cita um estudorealizado em Porto Alegre (RS), com praticantes de musculação em academias deginástica, onde os resultados mostraram que 24,3% dos informantes relataramusar esteróides anabólico-androgênicos. Desse total, 9% foi por indicação deprofessores.

Na Grã-Bretanha, em estudo realizado com 1.667 sujeitos, 9,1% dos ho-mens e 2,3% das mulheres relataram ter feito uso de EAA alguma vez na vida e 6%dos homens e 1,4% das mulheres relataram fazer uso freqüente. Por outro lado, osvalores de uso sobem de modo alarmante (46%) quando os investigadores verifi-cam a prevalência entre os freqüentadores de academias de ginástica (Korkia, Stimson,1997).

Em estudo conduzido nos Estados Unidos por Tanner et al. (1995), foi veri-ficado que dos 6.930 adolescentes participantes da pesquisa, 2,7% havia feito usode EAA (4,0% do sexo masculino e 1,3% do feminino). No mesmo estudo, osautores mostram que a prevalência é mais alta nos jovens desportistas. Outra inves-tigação realizada nos Estados Unidos com 991 estudantes atletas, entretanto, mos-trou que 1,1% relatou ter feito uso de EAA (Green et al., 2001).

As falas revelam um pouco do significado dessa “economia imagética”1. Oethos presente nas academias de ginástica, isto é, a padronização de organização deemoções e instintos que foi culturalmente sistematizada dentro das academias, estáfortemente associado a diferentes produtos, tais como os materiais desportivos, asrevistas especializadas, os produtos farmacêuticos, os suplementos alimentares, eaté o próprio corpo manifesta-se como um produto a ser consumido (Sabino, 2002;Sant’Anna, 2002).

O corpo é, então, objeto de consumo, mas, também apresenta-se comoum símbolo, algo que está associado a um valor (competência, força, beleza, saúde,sensualidade etc.). Nesse sentido, o corpo (e seus acessórios) precisa modificar-sefreqüentemente a cada nova moda. Deleuze (1996) ao propor a idéia de sociedadede controle já indicava que na sociedade contemporânea, mais do que na socieda-de disciplinar identificada por Foucault, o capitalismo é direcionado não para a pro-dução, mas, antes para o produto, isto é, para o mercado e, dessa forma, o marketingassume uma dimensão fundamental. Para tanto, Deleuze (1996) expõe que oscontroles são uma modulação, constantes modificações, que se auto-deformam emudam a cada instante.

1. Expressão utilizada por Sabino (2002) para designar o processo de produção, comercialização econsumo das imagens corporais.

87Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

Em síntese, a utilização dos EAA é para o professor a materialização de umaidéia presente na sociedade atual, uma vez que um determinado padrão de corpoestá na ordem de uma economia de mercado a qual promete sucesso, felicidade,saúde etc.

As alterações corporais decorrentes do uso dos EAA e da prática contínua deexercícios de musculação ainda conduzem a um processo de hierarquização den-tro das salas de musculação. Os “fisiculturistas”, de musculatura bastante acentuada,segundo Sabino (2002), são senhores do “campo”. Possuem mais status e têmmaior capital de competência. Esses, ainda segundo o autor, disputam a legitimida-de de seus discursos e ações com os profissionais formados em Educação Física.Outro grupo presente nas academias é o de “veteranos”, que são indivíduos demassa muscular hipertrofiada sem os exageros do primeiro grupo e que tambémgozam de certo status por possuírem o corpo considerado mais bonito. Assim, abusca do professor de Educação Física por um corpo mais hipertrofiado pode estarrevelando-se como uma postura estratégica, disciplinada e racional em direção auma consolidação dentro do mercado. Não à toa que aparecem nos discursosexpressões como “o principal currículo do professor é o corpo”; “a gente é tam-bém um espelho para os alunos” ou “para mim que trabalho com musculação, nãopodia ser muito magrinha”.

Por outro lado, o uso contínuo e prolongado dessas drogas pode provocardiferentes efeitos adversos. Segundo Silva et al. (2002), alguns estudos têm mostra-do que os EAA são importantes causadores de problemas psicológicos, tais comoirritabilidade, raiva, hostilidade, distração, esquecimento e confusão. Entre os efei-tos graves podem ser verificados comportamentos violentos e anti-sociais.

São comuns os efeitos virilizantes, como o tom de voz mais grave, aumentodos pêlos faciais, aumento de secreção das glândulas sebáceas, aumento do tama-nho do clitóris, agressividade etc., bem como, os efeitos feminilizantes, tais como,diminuição da testosterona plasmática, atrofia testicular, ginecomastia, azoospermiaetc. (Wilson, 1996; Lise et al., 1999; Chrousos, Margioris, 2003).

É possível verificar também outros efeitos, os quais se podem destacar asdisfunções hepáticas, falência renal, aumento do colesterol total e da fração LDL,hipertensão, enfarto do miocárdio, acidente vascular encefálico, câncer, e mesmoSíndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), por compartilhamento de serin-gas, entre outros fatores (Wilson, 1996; Lise et al., 1999; Silva, Danielsky, Czepielewski,2002; Iriart, Andrade, 2002; Chrousos, Margoris, 2003).

Quanto aos aceleradores metabólicos, não foi encontrado nenhum estudosobre a prevalência de uso no Brasil. Estudos internacionais com atletas universitá-rios têm demonstrado que a predominância de uso tem variado.

88 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

A prevalência de uso de aceleradores metabólicos entre 13.914 atletas de18 modalidades desportivas da National Collegiate Athletic Association (NCAA)nos Estados Unidos, segundo Green et al. (2001), está em torno de 3 a 4%. Para ogrupo estudado, o uso está diretamente associado ao aumento do desempenho.

Investigação com 122 atletas de hockey da NCAA demonstrou que mais dametade (58%) relatou que faz ou fez uso de estimulantes (efedrina, pseudoefedrinaou anfetaminas) para aumentar a performance atlética. Desse subtotal, 38% faz oufez uso de efedrina (aceleradores metabólicos). Esse valor corresponde a 22,04%do total de atletas investigados (Bents, Tokish, Goldberg, 2004).

Em estudo conduzido por Kanayama et al. (2001) com 511 praticantes deexercícios em academias de ginástica, foi verificado que 25% relatou uso de efedrinanos últimos três anos. Os autores estimam que, a manter-se esta taxa, 2,8 milhõesde pessoas nos Estados Unidos fizeram uso de efedrina nos três últimos anos.

Os discursos dos professores revelam que o uso de substâncias chamadas“aceleradores metabólicos” (Xenadrine, Ripped Fuel, Thermobuterol etc.), combase em efedrina, tem sido realizado para aumentar o desempenho físico e favore-cer a redução da gordura corporal, o que coincide com os objetivos para utilizaçãodos sujeitos investigados em outras pesquisas (Green et al., 2001; Earnest et al.,2004; Shekelle et al., 2003).

Se por um lado, o motivo do uso de EAA e de aceleradores metabólicosaproximam-se quando se destaca a aparência corporal e tudo que a isso está incor-porado, por outro, distanciam-se quando se trata de aumentar o rendimento físico.Na primeira situação, está manifestada a sociedade de controle. Contudo, o usodos aceleradores metabólicos revela também a concepção moderna de sociedadedisciplinar. O produto farmacológico, nesse caso, é utilizado para permitir que aforça de trabalho possa desempenhar a mais-valia exigida pelo capital. O professor,assim, parece trabalhar mais de acordo com seu impulso biológico do que com umprojeto intelectual (Sant’Anna, 2002).

Por outro lado, Earnest et al. (2004), em estudo para examinar os efeitos dosaceleradores metabólicos sobre o aumento da endurance em 17 ciclistas a partir daconfrontação com o uso de placebo, verificaram que não houve diferenças significa-tivas entre os valores de VO

2máx. e tempo até exaustão, embora esses fossem

ligeiramente maiores para o uso dos aceleradores metabólicos. Os autores concluí-ram, portanto, que a ingestão dessas drogas são insuficientes para provocar mudan-ças positivas no desempenho aeróbio dos ciclistas.

Numa metanálise sobre a eficácia e segurança do uso da efedrina para perdade peso e aumento do desempenho, Shekelle et al. (2003) demonstraram que aefedrina promove uma modesta redução do peso corporal, em comparação ao

89Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

placebo, num curto prazo, enquanto a longo prazo não existem dados para análise.Quanto ao desempenho, os autores consideram que os estudos são insuficientespara comprovar a eficácia.

Alguns efeitos adversos relatados por Haller et al. (2000) foram: aumento dapressão arterial, ocorrência de palpitações, taquicardia, arritmias cardíacas, enfartodo miocárdio, acidente vascular encefálico e convulsões.

Por outro lado, mortes com esportistas têm sido associadas ao uso de efedrina(Charatan, 2003; Vahedi et al., 2000). Segundo Vahedi et al. (2000), a efedrina éresponsável pela vasocontrição arteriolar em conjunto com outros efeitos catecola-minérgicos. Além disso, os autores consideram que a isquemia cardíaca e a rupturado vaso podem estar associadas à utilização da droga.

O valor médio para o esforço físico no trabalho (13,53) expressa um esforçopercebido como “um pouco intenso” (Borg, 2000), o que pode representar umaintensidade relativa entre 40 a 60% ou mesmo o ponto de limiar anaeróbio empessoas destreinadas (ACSM, 1998). Pode-se verificar também o relato de dorassociada ao trabalho, em que quase metade dos professores (47,54%) referia essaqueixa. A exposição demasiada de carga de trabalho físico pode, assim, estar contri-buindo para um aumento de problemas músculo-esqueléticos em professores deEducação Física (Sandmark et al., 1999) e, desse modo, o uso das drogas poderiater a função de atenuar as dores. Contudo, esse fato não pode ser comprovado.

Numa análise antropológica sobre o corpo, Le Breton (2003) elucida algu-mas questões referentes à produção farmacológica. Segundo o autor, há atualmen-te uma extensa oferta de produtos que prometem superar o cansaço, proporcio-nar meios para um esforço prolongado, alcançar seus objetivos corporais, enfim“retificar os erros”. O antropólogo considera que “o usuário tem o sentimento deque possui a eternidade diante dele e de que esse mesmo gesto que o salva naque-le instante é passível de reprodução todas as vezes em que ele tiver necessidade derecuperar o estado desejável” (p. 62). O usuário, assim, em vez de tentar construirpacientemente seu objetivos, busca soluções de urgência.

Talvez, ainda segundo Le Breton (2003), o usuário, e aqui o professor deeducação física, tenha a sensação de que se entregar ao andamento “natural” dascoisas é privar-se dos recursos preciosos disponíveis e, assim, tornar-se menoscompetitivo no plano do trabalho ou da vida cotidiana. Talvez, para ele traçar umcaminho bioquímico seja melhor do que enfrentar as questões inexoráveis da vida.Desse modo, o doping que se manifesta nos esportes competitivos “não passa doaspecto mais visível de uma atitude banal que afeta profundamente milhões deocidentais no próprio nível do exercício do cotidiano em uma existência que tendea se converter em competição permanente” (p. 61).

90 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

The use of anabolic-androgenic steroids and ephedrasupplements among gym’s physical education teachers

ABSTRACT: The objectives of the present study were to identify the prevalence of use ofanabolic-androgenic steroids (AAS) and ephedra supplements (ES) among gym’s physicaleducation teachers, and also to understand why teachers make use of these substances. Inorder to achieve these goals, 305 teachers answered a questionnaire. The results showedthat 38,69% of the sample had already made use of ES, 25,57% of AAS, 17,38% of both;whereas, 53,44% of the sample had never tried any of them. Although, there was no meanto compare these data with other group of non-sportsman, it seems quite high for a groupwhose objectives should be to avoid the consumption of these substances.KEY-WORDS: Anabolic-androgenic steroids; ephedra supplements; physical education teacher;doping.

Uso de esteróides anabólico-androgénicos y aceleradores metabólicosentre profesores de educación física que actuam en academias de gimnasia

RESUMEN: Los objetivos del presente estudio fueron identificar el numero de profesoresde educación física actuantes en academias de gimnasia, que consumen esteroidesanabólico-androgénicos (EAA) y aceleradores metabólicos (AM), así como las razonesque los conducen a hacer uso de tales substancias químicas. Para ello, fueron analizados305 profesores por medio de un cuestionario. Este trabajo permitió observar que 38,69%ya usó AM en su vida; 25,57% de EAA; 17,38% de las dos drogas; por su parte 53,44%nunca consumió esas drogas. Aunque, no se tenga una base de comparación, se puedeconcluir que los valores predominantes para el uso de AM y EAA en profesores deeducación física parecerían ser elevados, ya que se espera que los mismos no recomiendenel uso de drogas.PALABRAS CLAVE: Esteroides anabólico-androgénicos; aceleradores metabólicos;profesores de educación física, doping.

REFERÊNCIAS

ACSM (AMERICAN COLLEGE OF SPORTS MEDICINE). The rocommended quantity andquality of exercise for developing and maintaining cardiorespiratory and muscular fitness, andflexibility in health adults. Medicine & science in sports & exercise. 30(6): 975-991, 1998.

BABBIE, E. Métodos de pesquisas de survey. Belo Horizonte: Universidade Federal de MinasGerais (UFMG), 2001.

BAUS, J.; KUPEK, E.; PIRES, M. Prevalência e fatores de risco relacionados ao uso de drogasentre escolares. Revista de saúde pública. 36(1): 40-46, 2002.

91Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

BENTS, R.T.; TOKISH, J.M.; GOLDBERG, L. Ephedrine, pseudoephedrine, and amphetamineprevalence in college hockey players. The physician and sportsmedicine. 32(9): 30-34, 2004.

BORG, G. Escalas de Borg para a dor e o esforço percebido. São Paulo: Manole, 2000.

CHARATAN. Ephedra supplement may have contributed to sportsman’s death. BMJ. 326:464, 2003.

CHROUSOS, G.P.; MARGIORIS, A.N. Hormônios gonodais e inibidores. In: KATZUNG,B.G. (Org.). Farmacologia : básica & clínica. São Paulo: Guanabara Koogan, 2003, p. 574-589.

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

EARNEST, C. P.; MORSS, G.M.; WYATT, F.; JORDAN, A.N.; COLSON, S.; CHURCH, T.S.;FITZGERALD, Y.; AUTREY, L.; JURCA, R.; LUCIA, A. Effects of a commercial herbal-basedformula on exercise performance in cyclists. Medicine & science in sports & exercise. 36(3):504-509, 2004.

GOLDBERG, M.; RAMOS, M.S. A civilização das formas: o corpo como valor. In: ________.(Org.). Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro:Record, 2002, p. 19-40.

GREEN, G.A.; URYASZ, F.D.; PETR, T.A.; BRAY, C.D. NCAA Study of substance use andabuse habits of college student-athletes. Clinical journal of sport medicine. 11: 51-56, 2001.

HALLER, C.A.; BENOWITZ, N.L. Adverse cardiovascular and central nervous system eventsassociated with dietary supplements containing ephedra alkaloids. New England journal ofmedicine. 343(25): 1833-1838, 2000.

IRIART, J.A.B.; ANDRADE, T.M. Musculação, uso de esteróides anabolizantes e percepçãode risco entre jovens fisiculturistas de um bairro popular de Salvador, Bahia, Brasil. Cadernosde saúde pública. 18(5): 1379-1387, 2002.

KANAYAMA, G.; GRUBER, A.J.; POPE, H.G.; BOROWIECKI, J.J.; HUDSON, J.I. Over-the-counter drug use in gymnasiums: an underrecognized substance abuse problem?Psychotherapy and psychosomatics. 70(3): 137-140, 2001.

KERR-CORRÊA, F.; ANDRADE, A.G.; BASSIT, A.Z.; BOCCUTO, N.M.V.F. Uso de álcool e drogaspor estudantes de medicina da Unesp. Revista Brasileira de Psiquiatria. 21(2): 95-100, 1999.

KORKIA, P.; STIMSON, G.V. Indications of prevalence, practice and effects of anabolic steroiduse in Great Britain. International Journal of Sports Medicine. 18(7): 557-562, 1997.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo : antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.

LISE, M.L.Z.; GAMA E SILVA, T.S.; FERIGOLO, M.; BARROS, H.M.T. O abuso de esteróidesanabólico-androgênicos em atletismo. Revista da Associação Médica Brasileira. 45(4): 364-370, 1999.

92 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 75-92, set. 2005

MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Riode Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1996.

MUZA, G.M.; BETTIOL, H.; MUCCILLO, G.; BARBIERI, M.A. Consumo de substânciaspsicoativas por adolescentes escolares de Ribeirão Preto, SP (Brasil). I – Prevalência do con-sumo por sexo, idade e tipo de substância. Revista de Saúde Pública. 31(1): 21-29, 1997.

SABINO, C. Anabolizantes: Drogas de Apolo. In: GOLDBERG, M. (Org.). Nu & vestido: dezantropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 139-188.

SANDMARK, H.; WIKTORIN, C.; HOGSTEDT, C.; KLENELL-HATSCHEK, E-K; VINGARD,E. Physical work load in physical education teachers. Applied Ergonomics. 30: 435-442, 1999.

SANT’ANNA, D.B. Transformações do corpo: controle de si e uso dos prazeres. In: RAGO,M.; ORLANDI, L.B.L.; VEIGA-NETO, A. (Orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonân-cia nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 99-110.

SCIVOLETTO, S.; TSUJI, R.K.; ABDO, C.H.N.; QUEIRÓZ, S.; ANDRADE, A.G.; GATTAZ,W.F. Relação entre consumo de drogas e comportamento sexual de estudantes de 2º graude São Paulo. Revista Brasileira de Psiquiatria. 21(2): 87-94, 1999.

SHEKELLE, P.G.; HARDY, M.L.; MORTON, S.C.; MAGLIONE, M.; MOJICA, W.A.;SUTTORP, M.J.; RHODES, S.L.; JUNGVIG, L.; GAGNÉ, J. Efficacy and safety of ephedraand ephedrine for weight loss and athletic performance. Jama. 289(12): 1537-1545, 2003.

SILVA, P.R.P.; DANIELSKI, R.; CZEPIELEWSKI, M.A. Esteróides anabolizantes no esporte.Revista Brasileira de Medicina do Esporte. 8(6): 235-243, 2002.

TANNER, S.M.; MILLER, D.W.; ALONGI, C. Anabolic steroid use by adolescents: prevalence,motives, and knowledge of risks. Clin J Sport Med. 5(2): 108-115, 1995.

VAHEDI, K.; DOMIGO, V.; AMARENGO, P.; BOUSSER, M.G. Ischaemic stroke in a sportsmanwho consumed MaHuang extract and creatine monohydrate for body building. Journal NeurolNeurosurg Psychiatry. 68: 112-113, 2000.

WILSON, J.D. Androgênios. In: GOODMAN, G. A. (Org.). As bases farmacológicas daterapêutica. São Paulo: McGraw-Hill, 1996, p. 1068-1081.

Recebido: 3 fev. 2005Avaliado: 12 abr. 2005

Endereço para correpondênciaRua José Veríssimo, 14/101, Méier

Rio de Janeiro – RJCEP 20720-180

93Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

PREVALÊNCIA DO USO DE SUBSTÂNCIASQUÍMICAS ENTRE ADOLESCENTES, COMFINALIDADE DE MODELAGEM CORPORAL

Dndo. DANIEL CARREIRA FILHODoutorando do Programa de Saúde da Criança e do Adolescente –

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)Professor do Curso de Educação Física da UNICSUL/SP

e-mail: [email protected]

Dr. JOSÉ MARTINS FILHOProfessor Titular do Departamento de Pediatria Faculdade de Ciências Médicas (FCM – Unicamp)

Pesquisador do Centro de Investigação em Pediatria (Ciped – Unicamp)Pró-Reitor Acadêmico da Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL/SP)

RESUMO

O estudo do tipo epidemiológico com adolescentes de 14 a 18 anos (n=3699) teve comoobjetivo investigar a prevalência do uso de substâncias químicas com finalidade de modela-gem corporal (em especial dos Esteróides Anabólicos Androgênicos). Foram encontradasdiferenças significantes para gênero e o uso dessas substâncias. Enquanto os participantes dogênero feminino usam com a finalidade de perda de peso corporal (feminino n = 164 -15,17%, masculino n = 84 - 7,38%), os homens fazem uso de medicamentos para o aumen-to da massa muscular (masculino n = 43 - 3,78%, feminino n =10 - 0,93%). Os resultadospermitem afirmar que a utilização de drogas não encontra motivação na prática do esportecompetitivo, não havendo diferenças significantes entre praticantes e não praticantes do espor-te competitivo (X2= 0,04, gl = 1, p<0,05, n= 53).

PALAVRAS-CHAVE: Esteróides anabólicos; atividade física; efeito de drogas.

94 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

INTRODUÇÃO

A utilização de substâncias químicas entre adolescentes, com a finalidade depromover um corpo perfeito, vem recebendo atenção de pesquisadores em diver-sas culturas. São inúmeros os trabalhos que investigam o uso/abuso de substânciasquímicas e sua correlação com uma série de fatores dentre os quais prevalece, paraa maioria desses estudos, a vitória no campo esportivo. As pesquisas recaem, commaior freqüência, sobre o uso dos esteróides anabólicos androgênicos (EAA) empopulação jovem (adolescentes) associado à prática de esportes competitivos oude atividades físicas (fisiculturismo, halterofilismo, levantamento de peso etc.) emacademias.

Estudos como os de Neumark-Sztainer et al., (1999); Kindlundh et al., (1999),que investigaram a associação com questões sociodemográficas e econômicas apon-taram para diferentes níveis de consumo, em função das condições econômicas dapopulação estudada, já que são encontrados usuários nas mais diferentes classessociais. Esses estudos relacionaram características sociodemográficas e o uso desubstâncias químicas com o objetivo de redução do peso e aquisição de massacorporal.

Outros estudos relacionaram o uso de EAA com os principais riscos à saúdedos adolescentes em população praticante de esporte em nível competitivo. Essesestudos consideraram que o resultado no campo esportivo recebe o reforço detécnicas que garantam ou ampliem as possibilidades de sucesso (Midleman, Durant,1996; Wroblewska, 1997; Bahrke et al., 2000).

Outra motivação encontrada em pesquisas sobre o tema é a associação douso de EAA à violência (Dukarm et al., 1996; Pope Jr, Gruber, 1999). Observou-senos estudos que os usuários de tais substâncias acreditavam que a sua virilidade,garra e agressividade aumentavam (especialmente entre os praticantes de esportesde contato físico intenso – combates). A pesquisa de Pope Jr et al. (1999) apontapara o uso entre mulheres como forma de melhor se defenderem de agressõesrecebidas e que optaram pela prática de fisiculturismo e uso de EAA após teremsido vítimas de estupro.

Outros estudos (Scott et al., 1996; Franchini et al., 1998) demonstram o usode outras drogas, no caso ilícitas, entre esportistas de alto nível, que também sãousuários de anabólicos esteróides.

A conclusão comum nos trabalhos é a necessidade do estabelecimento deprogramas específicos voltados para a orientação de jovens e adolescentes com oobjetivo específico de redução desse consumo e, conseqüentemente, dos riscos àsaúde (Goldberg et al., 1996a; Minddleman; Durant, 1996; Elliot; Goldberg 1996;

95Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

Goldberg et al., 1996b; Goldberg et al., 2000; Yesalis, Bahrke, 2000; Ribeiro, 2001;Mackinnon et al., 2001; Cappa et al., 2001).

Em termos nacionais, não foram encontrados trabalhos epidemiológicos queenfoquem o problema do uso de tais substâncias em populações jovens, conformePeluso e tal. (2000), Ribeiro (2001), Manetta, (2000), Da Silva et al. (2002) e Iriartet al. (2002).

Estudos brasileiros (Sabino, 2000; Lise et al., 1999; Iriart, Andrade, 2002),embora centrados na questão do uso/abuso de EAA, foram realizados em popula-ções praticantes de atividades físicas ou esportivas em academias ou esportistas emnível de competição.

Finalmente, em artigo de revisão de literatura, especificamente voltado parao tema de uso de EAA (Bahrke, 2000), são apontados vários estudos que relacio-nam o uso com:

a) fatores demográficos, tais como gênero, idade e nível de escolarização,raça e etnia, nível socioeconômico, características de uso em familiares,localização geográfica e área da cidade;

b)participação acadêmica e esportiva, tais como grau de ensino, performanceacadêmica, participação atlética;

c) fatores pessoais, tais como personalidade e desenvolvimento, imagemcorporal e percepção de saúde, conhecimento e atitudes, conhecimentodas substâncias, comportamento de risco, eventos traumáticos; e

d)outros fatores, tais como uso de substâncias ilícitas – cocaína, maconha,heroína dentre outras.

A partir dos dados obtidos na revisão bibliográfica e considerando a ausênciade dados para população brasileira, em termos epidemiológicos, decidiu-se porrealizar estudo que pudesse estabelecer, em termos iniciais, a prevalência do usode substâncias químicas (em especial os EAA) com finalidade de modelar o corpoentre adolescentes de 14 a 18 anos de ambos os gêneros.

OBJETIVOS

O presente estudo teve por finalidade investigar a prevalência do uso desubstâncias químicas com finalidade de modelagem corporal, em especial dosEsteróides Anabólicos Androgênicos (EAA), entre adolescentes de 14 a 18 anos, dacidade de São Caetano do Sul, e suas relações com:

96 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

a) a prática de atividades físicas e ou esportivas extra-escolares;

b)finalidades do uso;

c) conhecimento sobre os riscos do uso dessas substâncias e,d)diferenças de gênero na adoção do consumo.

METODOLOGIA

O estudo do tipo epidemiológico foi desenvolvido mediante um corte trans-versal da população de ambos os gêneros, com idade compreendida entre 14 e 18anos, que se encontravam regularmente matriculados e freqüentando as escolas deensino fundamental e médio, tanto particulares (n = 14) quanto públicas (n = 15)da cidade de São Caetano do Sul, São Paulo. A cidade foi escolhida por ser a núme-ro um em termos de inclusão social segundo o Atlas de Exclusão Social no Brasil(Pochmann, Amorim, 2003).

A investigação foi realizada em todos os períodos de aula oferecidos (manhã,tarde e noite) num total de sete das vinte e nove escolas do município. Todos osalunos presentes em sala de aula, devidamente autorizados a participarem, foramsubmetidos ao instrumento de pesquisa evitando-se qualquer tipo de discriminaçãoou constrangimento.

Critérios de exclusão

Foram eliminados do estudo todos os participantes que se enquadraram emuma das seguintes condições:

a) faixa etária maior que 18 anos ou menor que 14 anos, com base no anode nascimento (n= 265, 7,17%);

b)equívocos no preenchimento do questionário para os dados sobreano de nascimento e sexo (n= 393, 10,62%);

c) rasuras, duplicidade de respostas ou impossibilidade de identificação dasrespostas (n = 131, 3,54%);

d)alunos que não receberam autorização por parte dos pais ou responsá-veis (n = 465, 12,57%); e

e)alunos que não concordaram em participar do estudo (n = 22, 0,59%)ou ausentes (n = 204, 5,52%).

Instrumento de pesquisa

Os participantes da pesquisa foram submetidos a um questionário de investiga-ção (questões de múltipla escolha) sobre dados pessoais, nível de escolarização dos

97Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

pais ou responsáveis, características da prática esportiva ou de sua rejeição, concep-ções acerca do próprio corpo, uso de medicamentos e técnicas para a modelagemcorporal e conhecimento das conseqüências do uso/abuso dessas substâncias. O ins-trumento de pesquisa foi resultado de estudo piloto realizado em escola da redeestadual da capital paulista com características semelhantes às do município alvo. Osparticipantes do estudo, seus pais ou responsáveis e as instituições de ensino assina-ram voluntariamente o termo de consentimento livre e esclarecido aprovado peloComitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Aaplicação do questionário observou a regulamentação adotada no país para trabalhocom seres humanos. Os participantes tiveram garantido o absoluto sigilo das informa-ções prestadas (documento depositado em urna no espaço da sala de aula).

Análise estatística

Utilizou-se da estatística descritiva dos resultados e do teste Qui-quadradopara a comparação entre as variáveis definidas, com grau de confiabilidade de 95%.

RESULTADOS

Após consulta aos diretores das escolas do município para participação noestudo (n=29) foi obtida a autorização para desenvolvimento da pesquisa em seteescolas (24,24%) sendo três da rede particular e quatro da pública (Tabela I). Aaplicação do instrumento de pesquisa teve início em agosto de 2003 e foi concluídaem novembro do mesmo ano.

Ao final da aplicação do instrumento de pesquisa nas escolas que autoriza-ram a realização e a depuração dos dados de cada aluno, computou-se um total de2.219 questionários válidos, 59,99% do número de alunos matriculados (3.699),que corresponde a 18,64% da população da faixa etária no município, sendo 288(12,98%) alunos de escolas particulares e 1.931 (87,02%) de escolas públicas.

TABELA I – DISTRIBUIÇÃO DAS ESCOLAS EM FUNÇÃO DO TIPODE ADMINISTRAÇÃO E CONDIÇÃO PARTICIPAÇÃO NO ESTUDO

Administração

Particular

%

Pública

%

Total

%

Negada

11,00

37,93

11,00

37,93

22,00

78,86

Realizada

3,00

10,34

4,00

13,79

7,00

24,14

Total

14,00

48,27

15,00

51,72

29,00

100,00

98 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

O instrumento de pesquisa permitiu identificar a insatisfação dos adolescentescom suas características corporais. Observou-se que as mulheres apontam para maiorinteresse de modelagem corporal para os aspectos de excesso de peso corporal, e oshomens para aumento massa muscular, com diferença estatisticamente significante(X2 = 338, gl = 2, P<0,05), sendo que apenas 16,18% alunos declararam não sernecessária qualquer alteração, demonstrando-se satisfeitos com o corpo (Tabela III).

TABELA II – DISTRIBUIÇÃO DOS ALUNOS EM FUNÇÃO DO GÊNERO E IDADE

Gênero

Masculino

%

Feminino

%

Total

%

14 anos

193,00

8,70

233,00

10,50

426,00

19,20

15 anos

280,00

12,62

254,00

11,45

534,00

24,06

16 anos

303,00

13,65

266,00

11,99

569,00

25,64

17 anos

242,00

10,91

227,00

10,23

469,00

21,14

18 anos

120,00

5,41

101,00

4,55

221,00

9,96

19 anos

1.138,00

51,28

1.081,00

48,72

2.219,00

100,00

TABELA III – DISTRIBUIÇÃO DAS MODIFICAÇÕESCORPORAIS DESEJADAS EM FUNÇÃO DO GÊNERO

Alteração desejada

Não faria nada

Reduzir o peso corporal

Aumentar o peso corporal

Aumentar a força

Aumentar a massa muscular

Melhorar a silhueta

Outros

Não declarado

Total

Masculino

178

220

95

181

356

50

40

18

1.138

%

15,64

19,33

8,35

15,91

31,28

4,39

3,51

1,58

100,00

Feminino

181

514

82

47

55

148

44

10

1.081

%

16,74

47,55

7,59

4,35

5,09

13,69

4,07

0,93

100,00

Total

359

734

177

228

411

198

84

28

2.219

%

16,18

33,08

7,98

10,27

18,52

8,92

3,79

1,26

100,00

A distribuição dos alunos em função do gênero e idade (Tabela II) demonstraexistir diferença entre os gêneros (masculino 51,28% e 48,72% feminino), porémnão significante (x2= 8,08, gl= 4, p< 0,05).

O reconhecimento das insatisfações com as características corporais, referi-do pelos adolescentes, foi relacionado com as técnicas ou substâncias químicas queapresentam potencial para a conquista dos objetivos desejados por eles. Obser-vou-se que um total de 61,74% (n= 1.370) dos participantes fez uso de substân-cias ou técnicas para modelagem corporal (Tabela IV). As mulheres apresentam

99Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

nível de adoção de substâncias químicas ou técnicas superiores a dos seus colegashomens: feminino 95,65% (n=1.034) e masculino 59,23% (n=674) (X2= 414,98,gl.= 1, p< 0,05).

Dentre as alternativas apresentadas observou-se que a utilização de técnicaspara perder peso foi indicada por 60,07% (n=1333) dos alunos, sendo que 76,23%(n = 824) dos participantes do gênero feminino declararam ter utilizado tais alter-nativas contrapondo-se a 44,73% (n = 509) entre os homens, com diferença esta-tisticamente significante (x2= 229,31, g.l.= 1, p< 0,05) (Tabela IV).

A alternativa de utilização de remédios para a perda de peso corporal apre-sentou um total de 11,18% (n= 248) sendo que o gênero feminino apresentou15,17% (n = 164) e o gênero masculino 7,38% (n = 84), com diferença estatisti-camente significante (x2= 33,89, g.l.= 1, p< 0,05) (Tabela IV).

A utilização dos esteróides anabólicos androgênicos (EAA) apresentou in-versão em relação às demais técnicas ou substâncias em função do gênero. O totalde usuários dessas substâncias corresponde a 2,39% (n=53) sendo 3,78% (n =43) do gênero masculino e 0,93% (n = 10) do gênero feminino, com diferençaestatisticamente significante (x2= 19,36, g.l. = 1, p<0,05) (Tabela IV).

TABELA IV – DISTRIBUIÇÃO DOS PARTICIPANTES EM FUNÇÃO DO GÊNERO,IDADE, TIPO DE TÉCNICAS OU SUBSTÂNCIAS QUÍMICAS ADOTADAS

Técnicas os substâncias químicas utilizadas

Gênero Idade

14 anos

15 anos

16 anos

17 anos

18 anos

total

%

14 anos

15 anos

16 anos

17 anos

18 anos

total

%

N

193

280

303

242

120

1.138

233

254

266

227

101

1.081

2.219

Técnicas

79,00

124,00

132,00

118,00

56,00

509,00

44,73

166,00

199,00

209,00

174,00

76,00

824,00

76,23

1.333,00

60,07

Remédios

7,00

17,00

33,00

18,00

9,00

84,00

7,38

20,00

38,00

41,00

47,00

18,00

164,00

15,17

248,00

11,18

Anabólicos

4,00

6,00

15,00

12,00

6,00

43,00

3,78

5,00

2,00

0,00

2,00

1,00

10,00

0,93

53,00

2,39

Estéticos

3,00

6,00

15,00

11,00

3,00

38,00

3,34

5,00

7,00

10,00

12,00

2,00

36,00

3,33

74,00

3,33

Não usam

114,00

148,00

160,00

114,00

59,00

595,00

52,28

65,00

54,00

57,00

53,00

25,00

254,00

23,50

849,00

38,26

Total usuários

79,00

132,00

143,00

128,00

61,00

543,00

47,72

168,00

200,00

209,00

174,00

76,00

827,00

76,50

1.370,00

61,74

Mas

culin

oFe

min

ino

Total

Geral

Total

%

100 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

Finalmente, observou-se não haver diferença estatisticamente significanteentre os gêneros para o uso de remédios para a modificação estética com 3,34% (n= 38) para o gênero masculino e 3,33% (n = 36) para o gênero feminino (x2=0,00, g.l.= 1, p< 0,05) (Tabela IV).

Os dados indicaram que apenas 15,86% dos alunos (n= 352) afirmaram terrecebido orientação médica para a adoção de alternativa técnica ou de substânciascom objetivo de modelagem corporal.

O método mais utilizado para o emagrecimento foi a redução de doces erefrigerantes com 46,73% dos alunos (n =1.037), seguido da redução da quanti-dade de refeições com 41,23% (n = 915) (Tabela V), sendo observadas diferençassignificantes para o gênero feminino.

TABELA V – DISTRIBUIÇÃO DOS ALUNOS EM FUNÇÃO DO SEXO E TÉCNICAS PARA EMAGRECIMENTO UTILIZADAS

(*) Os totais por sexo e geral para uso de técnicas para emagrecimento ultrapassam o total de sujeitos da pesquisa em

função da utilização de mais de um método com o mesmo objetivo (detalhada na tabela XV).

Técnicas para emagrecimento utilizadas

Regime sem orientação médica

Regime proposto por revistas, tv, jornais ou amigos

Regime com orientação médica sem medicamentos

Redução da quantidade de refeições

Redução de doces e refrigerantes

Exercícios físicos

Outras alternativas

Totais(*)

Masc.

164

73

143

280

352

343

45

1.400

%

14,41

6,41

12,57

24,60

30,93

30,14

3,95

Fem.

410

392

209

635

685

485

48

2.864

%

37,93

36,26

19,33

58,74

63,37

44,86

4,44

Total

574

465

352

915

1.037

828

93

4.264

%

25,86

20,95

15,86

41,23

46,73

37,31

4,19

Os dados quanto a utilização de medicamentos com objetivo de emagreci-mento apontam para uma maior utilização de regime com orientação médica eremédios 29,90% (n = 148) e, em segundo lugar as fórmulas manipuladas com29,30% (n = 87) (Tabela VI). Observou-se menor porcentagem de participantesque declararam fazer uso de medicamentos para emagrecimento comparado coma utilização de técnicas com a mesma finalidade. No entanto, em termos gerais,observou-se que um total de 11,18% (n= 248 – Tabela IV) adota a alternativamedicamentosa para a perda do peso corporal, porcentagem elevada em termosde saúde pública.

A distribuição do uso de substâncias químicas com a finalidade de aumentode massa muscular (EAA) é apresentada na Tabela VII, observando-se a ausência deutilização pelas mulheres para as substâncias Metenolona e Boldenona sendo aMetandeinona a mais utilizada.

101Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

TABELA VI – DISTRIBUIÇÃO DOS PARTICIPANTES QUE DECLARARAM UTILIZARMEDICAMENTOS COM A FINALIDADE DE REDUÇÃO DE PESO EM FUNÇÃO

DAS ALTERNATIVAS UTILIZADAS E SEXO

Alternativas para perder peso

Regime com orientação médica e remédios

Queimadores de gorduras

Orlistat

Diuréticos

Fórmulas manipuladas

Anfetaminas

Outros

Total de ocorrências

Masc.

55

10

11

19

48

10

24

177

%

31,07

5,64

6,21

10,73

27,11

5,64

13,56

Fem.

96

18

15

68

100

12

19

328

%

29,26

5,48

4,57

20,73

30,48

3,65

5,79

Total

151

28

26

87

148

22

43

505

%

29,90

5,54

5,14

17,22

29,30

4,35

8,51

(*) Os totais por sexo e geral para uso de substâncias químicas com a finalidade de emagrecimento correspondem à

soma dos casos observados e não de sujeitos em função da utilização de mais de um remédio com o mesmo objetivo

por um mesmo sujeito.

(*) (*) (*)

TABELA VII – DISTRIBUIÇÃO DO TIPO DE ANABÓLICOESTERÓIDE UTILIZADO EM FUNÇÃO DO GÊNERO

Tipo de anabólico esteróide utilizado

Nandrolona

Metandienona

Andrastanolona

Testosterona

Stanozolol

Oximetalona

Metenolona

Boldenona

ADE

Outros

Total

Masc.

8

17

13

15

12

7

11

9

11

17

120

%

6,67

14,17

10,83

12,50

10,00

5,83

9,17

7,50

9,17

14,17

100,00

Fem.

2

1

2

1

2

1

0

0

4

6

19

%

10,53

5,26

10,53

5,26

10,53

5,26

0,00

0,00

21,05

31,58

100,00

Total

10

18

15

16

14

8

11

9

15

23

139

%

7,19

12,95

10,79

11,51

10,07

5,76

7,91

6,47

10,79

16,55

100,00

(*) Os totais por gênero e geral para uso de anabólico esteróides com a finalidade de ganho de massa muscular

correspondem à soma dos casos observados e não de sujeitos, em função da utilização de mais de um remédio com

o mesmo objetivo por um mesmo sujeito.

(*) (*) (*)

A última opção oferecida pelo instrumento de pesquisa identifica as substân-cias ou técnicas que apresentam potencial para alteração da silhueta. Observou-seque a cirurgia plástica é a alternativa mais apontada pelos alunos, com 32,67%(Tabela VIII).

A prática de atividades físicas ou esportivas foi estudada, com 53,09% dosalunos declarando não participar dessas práticas além das atividades da Educação

102 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

TABELA VIII – DISTRIBUIÇÃO DAS TÉCNICAS OU REMÉDIOSPARA ALTERAR A SILHUETA EM FUNÇÃO DO GÊNERO

Técnicas e remédios para alterar a silhueta

Toxina botulínica tipo a

Aplicação de enzimas

Lipoaspiração

Cirurgia plástica

Outros

Total de ocorrências

Masc.

9

16

6

21

9

61

%

14,75

26,23

9,84

34,43

14,75

100,00

Fem.

3

10

1

12

14

40

%

7,50

25,00

2,50

30,00

35,00

100,00

Total

12

26

7

33

23

101

%

11,88

25,74

6,94

32,67

22,77

100,00

Física escolar (Tabela IX). Verificou-se que o gênero feminino apresentou maiorporcentagem de não adesão a essas práticas 31,73% do total de alunos (X2=122,65,gl =1, p< 0,05).

TABELA IX – DISTRIBUIÇÃO DOS ALUNOS EM FUNÇÃO DO GÊNERO, EXISTÊNCIA EAUSÊNCIA DA PRÁTICA DE ATIVIDADES FÍSICAS E OU ESPORTIVAS EXTRA-ESCOLARES

Gênero

Masculino

%

Feminino

%

Total

%

Prática

664,00

29,92

377,00

16,99

1.041,00

46,91

Não prática

474,00

21,36

704,00

31,73

1.178,00

53,09

Total

1.138,00

51,28

1.081,00

48,72

2.219,00

100,00

Observou-se também que o nível de conhecimento sobre as conseqüênciasdo uso de substâncias ou técnicas para modelagem corporal apresentado pelosalunos foi muito reduzido tanto entre usuários quanto não usuários de tais procedi-mentos. Os dados das tabelas X e XI demonstram que uma porcentagem muitopequena declara conhecer os prejuízos causados pelo uso/abuso de substânciasquímicas.

Para a avaliação da questão da prática de atividades físicas ou esportivas e suaassociação com o uso de substâncias químicas com o objetivo de modelagem cor-poral, foi necessário identificar se a prática indicada pelos alunos apresentava carac-terísticas que pudessem ser consideradas como coerentes com o processo de trei-namento em nível de rendimento. Os alunos que declararam participar de atividadescom a finalidade de rendimento apresentaram o tempo de duração dessa práticapouco significativa para a conquista da performance em nível competitivo, confor-me dados da tabela XII.

103Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

TABELA X – DISTRIBUIÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA QUE DECLARARAM UTILIZARALGUM TIPO DE SUBSTÂNCIA QUÍMICA COM FINALIDADE DE MODIFICAÇÃO CORPORALE O CONHECIMENTO DOS RESULTADOS DESSA UTILIZAÇÃO EM FUNÇÃO DO GÊNERO

Finalidade

de uso

Emagrecer

%

Massa

muscular

%

Estética

%

Gênero masculino Gênero feminino Total de usuários

usuários

84

43

38

conhece

12,00

14,29

9,00

20,93

2,00

5,26

não

conhece

72,00

85,71

34,00

79,07

36,00

94,74

usuários

164

10

36

conhece

42,00

25,61

2,00

20,00

2,00

5,56

não

conhece

122,00

74,39

8,00

80,00

34,00

94,44

total

248

53

74

conhece

54,00

21,77

11,00

20,75

4,00

5,41

não

conhece

194,00

78,23

42,00

79,25

70,00

94,59

TABELA XI – DISTRIBUIÇÃO DOS ALUNOS QUE DECLARARAM NÃO UTILIZAR SUBSTÂNCIASQUÍMICAS E O CONHECIMENTO DOS RESULTADOS DA UTILIZAÇÃO EM FUNÇÃO DO SEXO

Técnicas ou

substâncias

Remédios para

emagrecer

%

Anabolizantes

%

Remédios

para estética

%

Masculino Feminino Total

conhece

97,00

9,20

106,00

9,68

105,00

9,55

não

conhece

957,00

90,80

989,00

90,32

995,00

90,45

total

1.054,00

100,00

1.095,00

100,00

1.100,00

100,00

conhece

120,00

13,09

158,00

14,75

149,00

14,26

não

conhece

797,00

86,91

913,00

85,25

896,00

85,74

total

917,00

100,00

1.071,00

100,00

1.045,00

100,00

conhece

217,00

11,01

264,00

12,19

254,00

11,84

não

conhece

1.754,00

88,99

1.902,00

87,81

1.891,00

88,16

total

1.971,00

100,00

2.166,00

100,00

2.145,00

100,00

TABELA XII – DISTRIBUIÇÃO DOS PARTICIPANTES EM FUNÇÃO DO GÊNEROE DURAÇÃO SEMANAL DA PRÁTICA COM A FINALIDADE DE COMPETIÇÃO

Gênero

Masculino

%

Feminino

%

Total

%

Σ

Duração da prática em minutos

Até 30’

8,00

2,76

10,00

5,68

18,00

3,86

3,86

Até 60’

33,00

11,38

32,00

18,18

65,00

13,95

17,81

Até 90’

79,00

27,24

36,00

20,45

115,00

24,68

42,49

Até 120’

92,00

31,72

44,00

25,00

136,00

29,18

71,67

+ de 120’

78,00

26,90

54,00

30,68

132,00

28,33

100,00

Total

290,00

100,00

176,00

100,00

466,00

100,00

104 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

Considerando que a prática de atividades físicas ou esportivas com objetivocompetitivo tem sido correlacionada com a decisão pela utilização de técnicas ousubstâncias químicas com a finalidade de alteração corporal, em especial os EAA,estabeleceu-se a relação entre a participação em atividades físicas ou esportivas e ouso de técnicas ou substâncias (Tabela XIII). Observou-se que não há diferençaestatisticamente significativa para as variáveis estudadas (x²= 0,76, gl= 2, p< 0,05).

TABELA XIII – DISTRIBUIÇÃO DO USO DE EAA EM FUNÇÃO DASCARACTERÍSTICAS DA PRÁTICA ESPORTIVA EXTRA -ESCOLAR E SEXO

Gênero

Masculino

%

Feminino

%

Total

%

Compete

14,00

26,42

2,00

3,77

16,00

30,19

Não compete

13,00

24,53

3,00

5,66

16,00

30,19

Não participa

15,00

28,30

5,00

9,43

20,00

37,74

Sem resposta

1,00

1,89

0,00

0,00

1,00

1,89

Total

43,00

81,13

10,00

18,87

53,00

100,00

Características do envolvimento com a prática

DISCUSSÃO

Os dados da literatura apontam para porcentagens de uso/abuso de subs-tâncias químicas, em especial dos esteróides anabólicos androgênicos (EAA), com afinalidade precípua de modelagem corporal, que variam de 4% a 11% entre ho-mens e 0,5% a 2,5% entre mulheres, e a elevação dessas porcentagens para valo-res entre 33% e 62%, respectivamente, quando estudadas amostras com pratican-tes de fisiculturismo ou levantamento de peso (Peluso et al., 2000). A presentepesquisa apontou valores muito próximos aos encontrados em estudos semelhan-tes realizados em várias outras culturas (Bahrke, 2000) enquanto discute a utiliza-ção em função do gênero dos usuários. No presente estudo, 3,7% dos homens (n= 43) e 0,9% das mulheres (N = 10) declarou ter feito uso de EAA em algummomento de suas vidas. Em apenas um dos estudos, realizado por Faigenbaum,em 1998, (Bahrke, 2000) foram encontradas porcentagens muito próximas entreos gêneros (2,8% masculino e 2,6% feminino).

Considerando que os EAA promovem modificações corporais associadas aoaumento da massa muscular, aumento da virilidade, traços de agressividade e tama-nho corporal total, atributos valorizados entre os membros do gênero masculino emnossa sociedade, confirma-se que a utilização está claramente associada a questõescorporais masculinas. Os dados do presente trabalho confirmam essa tendência quandoo objetivo é o aumento da massa muscular (X2 = 19,36, gl = 1, p< 0,001).

105Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

Pode-se afirmar, inicialmente, que as adolescentes encontram-se mais preo-cupadas com outros aspectos corporais que motivaram a adoção de técnicas ousubstâncias químicas que agilizem tais conquistas. Observou-se que, quando o ob-jetivo é a redução do peso corporal, as mulheres apresentam porcentagem deadoção de técnicas e substâncias significativamente superior à dos homens, 76,23%das mulheres contra 44,73% dos homens na utilização de técnicas para emagreci-mento (X2 =229,31, gl =1, p< 0,001) e 15,17% contra 7,38% para uso desubstâncias químicas com a mesma finalidade (X2 = 33,89, gl = 1, p< 0,001).

Os dados da pesquisa permitem afirmar que a busca de corpos perfeitos,tanto masculinos quanto femininos, apresentam-se como resposta dos adolescen-tes às exigências da sociedade que determina formas e cores para cada gênero.

O uso/abuso de substâncias químicas quando associado à idade de início,independente do gênero, aponta para a faixa etária dos 14/15 anos (Bahrke, 2000,Manetta, 2000) como momento inicial da utilização dos EAA. Em apenas um estu-do foram encontradas idades inferiores, atingindo os 10 anos (Gaa et al., 1994). Osdados da presente pesquisa não permitiram identificar idades anteriores aos 14anos, no entanto foram encontrados usuários de EAA, assim como de outras técni-cas ou substâncias, em todas as idades da amostra. A idade do estudo correspondeao momento da vida dos seres humanos que é mais vulnerável ao uso de substân-cias químicas lícitas ou ilícitas, conforme vários estudos brasileiros (Muza, 1997a;Muza, 1997b; Ribeiro, 1998; CarliniI-Contrin, Gazal-Carvalho, Gouveia, 2000;Focchi et al., 2000; Marques, Cruz, 2000 dentre outros).

O uso de substâncias químicas, com as mais diferentes finalidades, vem me-recendo estudos e análise dos mais distintos campos da investigação científica eatinge a sociedade como um todo por meio da mídia. A aproximação dos sereshumanos dessas substâncias atinge, segundo dados apresentados ao público emgeral, proporções alarmantes.

Estudo

Cappa (2001)

Cappa (2001)

Handelsman, Gupta (1997)

Faigenbaum et al. (1998)

Lambert et al. (1998)

Yesalis, Bahrke (2000)

Scott et al. (1996)

Neumark-Sztainer et al. (1999)

Geral

5,4%

2,15%

2,7%

1,44%

2,5%

Masculino

4,4%

4 a 11%

3,2%

2,6%

2,8%

3% a 12%

4,5%

2,3%

Feminino

1,1%

0,5% a 2,5%

1,2%

2,8%

0,7%

1% a 2%

0,8%

0,5%

País

Inglaterra

Pensilvânia

Victoria

Massachusetts

África do sul

Vários

Nebraska

Connecticut

106 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

Mais de 9 milhões de pessoas no Brasil já utilizaram pelo menos uma vez algum tipode droga que não seja álcool ou tabaco. Esse número, que equivale a 19,4% das 47mi-lhões de pessoas entre 12 e 65 anos nas cidades pesquisadas, foi constatado no primeirolevantamento domiciliar sobre o uso de drogas no Brasil, que ouviu 8.589 pessoas (Folhade S. Paulo, 2003).

O senso comum tem atribuído o uso de substâncias químicas aos praticantesde atividades esportivas ou físicas com objetivos competitivos ou aos praticantes deatividades físicas em academias. No presente estudo observou-se que, para os jo-vens estudados, significativa parcela não pratica atividades físicas ou esportivas alémdas aulas de Educação Física escolar. Mesmo entre aqueles que se declaram usuá-rios de substâncias químicas com a finalidade de conquista de modificações corpo-rais, foram encontradas baixas porcentagens dos que praticam tais atividades comfinalidade de rendimento esportivo. Esses usuários não demonstraram dedicar-se apráticas com freqüência e duração que permitam serem considerados como prati-cantes com finalidade de rendimento.

Os dados encontrados na população estudada permitem afirmar que a prá-tica de esportes não se constitui em fator determinante para a adoção de técnicasou uso de substâncias químicas com finalidade de modificação corporal ou amplia-ção das possibilidades de resultados positivos no seio do esporte – tabela XII (X2 =0,04, gl = 1, p< 0,05).

Há uma porcentagem muito elevada de alunos que desconhecem os prejuízosà saúde decorrente da utilização de técnicas ou substâncias químicas com finalidadede modificação corporal. Os dados demonstram que 78,23% dos que se declararamusuários de remédios para emagrecimento, 79,25% dos que se fizeram valer de EAAe 94,59% dos que utilizaram técnicas ou remédios para alteração estética afirmamdesconhecer os prejuízos decorrentes dessa utilização. O mesmo nível é observadoentre os não usuários com 88,99% para drogas de emagrecimento, 87,81% paraEAA e 88,16% para técnicas ou remédios com finalidade estética.

Assim sendo, confirmam-se as preocupações da comunidade científica quantoà imperiosa necessidade de serem implementados programas de orientação volta-dos para os adolescentes com o intuito de estabelecer processos fidedignos deinformação e que não reproduzam os modelos alarmistas divulgados pelas mídias.Os posicionamentos alarmistas ou sensacionalistas, comumente observados quan-do da discussão centrada no uso de drogas, têm se demonstrado ineficientes se-gundo inúmeros autores (Ribeiro, Pergher, Torossian, 1998; Costa, 2001; Coimbra,2001; Noto et al., 2003) e merecem, em virtude do poder de massificação dainformação dos mecanismos de mídia, ser melhor explorados em função de umapolítica de redução de danos.

107Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

A abordagem da questão do consumo de drogas hoje é mal dimensionada em muitosde seus aspectos. A dimensão político-institucional, por exemplo, dispensa enormes volu-mes de recursos para o combate ao tráfico de drogas e minimiza o papel dos programasde atenção primária ao abuso de substâncias: a dimensão educacional ainda convive comidéias sem um mínimo de sustentação e insistem na utilização de técnicas do tipoamedrontamento, com eficácia duvidosa: a dimensão médico-psicológica muitas vezessupervaloriza o poder das drogas e relega o contexto sócio-familiar a um plano menosimportante; e a dimensão social, por sua vez, trata a dependência às drogas ilícitas comoum fenômeno de primeira grandeza, quando de fato o são as dependências do álcool etabaco, duas drogas lícitas (Muza et al., 1997a).

A adoção de programas de orientação que observem o amplo espectro dodesenvolvimento humano, eliminem comportamentos alarmistas, estejam vinculadosao momento da adolescência e considerem as diferenças culturais inerentes a cadacomunidade em específico podem contribuir para a alteração do quadro observado.

CONCLUSÃO

Os resultados da pesquisa reproduzem os achados de outros estudos, emoutros países, sobre o uso de substâncias químicas com finalidade de modelagemcorporal, em especial os EAA (3,7% para os homens e 0,99% para mulheres).

Os dados permitem afirmar que a utilização de técnicas ou substâncias queapresentam potencial possibilidade de modificação corporal não encontra na práti-ca esportiva, com ou sem finalidade de rendimento, sua principal fonte inspiradora.Não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes entre os usuários enão usuários e a prática de atividades competitivas.

Os resultados apontam para diferenças significantes entre os gêneros quantoà utilização de técnicas ou substâncias e as finalidades específicas. As mulheres apre-sentam porcentagens elevadas em relação aos homens para a questão do pesocorporal (76,23% mulheres e 44,73% homens). Já os homens apresentam a ado-ção de tais mecanismos para a aquisição de maior massa muscular (3,78% homense 0,99% mulheres). Esses dados confirmam a existência de modelos corporaismasculinos e femininos e sua relação com as alternativas mais utilizadas.

Comprovando a preocupação apontada, na maioria dos estudos realizados,inclusive para drogas ilícitas, os resultados demonstram haver elevado nível de desco-nhecimento dos riscos à saúde entre os adolescentes estudados quanto ao uso/abusode técnicas ou substâncias químicas com a finalidade de modelagem corporal.

O nível de desconhecimento entre os adolescentes investigados indica haverimperiosa necessidade do estabelecimento de programas voltados à redução dedanos especialmente dirigidos para crianças e jovens de ambos os gêneros.

108 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

Prevalence in use of chemical substances among adolescents

ABSTRACT: This epidemiological study was made with 14 to 18 year-old adolescents(n=3699) and had the objective to investigate the prevalence in the use of chemicalsubstances (specially the Androgenic Anabolic Steroids) to build the body. Significantdifferences were found concerning gender matter and these substances. While the femaleparticipants use more alternatives to lose weight (women - n = 164 15,17%, men - n =84 – 7,38%) the usage of drugs made by men had as main objective the increasing ofmuscle mass (men - n = 43 - 3,78%, women - n =10 - 0,93%). The results allow to statethat the utilization of these drugs does not have its motivation in the practice of competitivesport. Thus, there are no significant differences between those who practice a competitivesport and those who don’t practice it (X2= 0,04, gl = 1, p<0,05, n= 53).KEY-WORDS: Adolescents health; physical activity; drug effects.

Influencia del uso de sustancias químicas entre adolescentes

RESUMEN: El estudio de tipo epidemiológico con adolescentes de 14 a 18 años (n= 3699),tuvo como objetivo investigar la influencia del uso de sustancias químicas (en especial de losEsteroides Anabólicos Androgénicos) destinados a modelar el cuerpo. Han sido encontradasdiferencias significativas en el consumo según cuestiones de género. Al contrario de los parti-cipantes del sexo femenino, que las usan como alternativas para la pérdida de peso corporal(femenino n=164 – 15,17%, masculino n= 84 – 7,38%) los hombres las utilizan con elobjetivo de aumentar la masa muscular (masculino n = 43 – 3,78%, femenino n= 10 –0,93%). Los resultados nos permiten afirmar que su utilización no esta motivada por lapráctica de deportes de rendimiento o competitivos, como afirman algunos de los estudiosencontrados en la revisión bibliográfica (X2= 0,04, gl = 1, p<0,05, n=53).PALABRAS CLAVE: Esteroides anabólicos; actividad física; efectos de drogas.

REFERÊNCIAS

BAHRKE, M. S. et al. J.A. Risk factors associated with anabolic-andrognenic steroid use amongadolescents. Sports medicine, v. 6, n. 29, p. 397-405, 2000.

CAPPA, M. et al. Farmaci ed intregatori nella pratica sportiva: uso ed abuso. Il Punto di vistadel pediatra. Minerva pediátrica, Torino, v. 53, n. 5, p. 397-401, 2001.

CARLINI-CONTRIM, B.; GAZAL-CARVALHO C; GOUVEIA, N. Comportamentos de saúdeentre jovens das redes pública e privada da área metropolitana do estado de São Paulo.Revista de saúde pública, São Paulo, v. 34, n. 6, p. 636-645, 2000.

COIMBRA, C. M. B. Mídia e produção de modos de existência. Psicologia: teoria e pesquisa.Brasília, DF, v. 17, n. 1, p. 1-4, 2001.

109Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

COSTA, B. C. G. Barbárie estética e produção jornalística: a atualidade do conceito de in-dústria cultural. Educação & sociedade. Campinas, v. 22, n. 76, p. 106-120, 2001.

DA SILVA, P. R. P.; DANIELSKI, R.; CZEPIELEWSKI, M. A. Esteróide anabolizantes no espor-te. Revista brasileira de medicina do esporte, v. 8, n. 6, p. 235-243, 2002.

DUKARM, C. P. et al. Illicit substance use, gender, and the risk of violent behavior amongadolescents. Archives of pediatrics & adolescent medicine, Chicago, n.150, p. 797-801,1996.

ELLIOT, D.; GOLDBERG, L. Intervention and prevention of steroid use in adolescents.American journal of sports medicine, v. 24, n. 6, p. S46-S47, 1996.

FOCCHI, G. R. A.; SCIVOLETTO, S. ; MARCOLIN, M. A. Potencial de abuso de drogasdopaminérgicas. Revista brasileira de psiquiatria, São Paulo, v. 23, n. 3, p. 138-141, 2000.

FRANCHINI, F. et al. L’abuso di sostanze anabolizzanti nell’adolescente che fa sport. La pe-diatria medica e chirurgica, Firenze, n. 20, p. 219-221, 1998.

GAA, G. L. et al. Prevalence of anabolic steroids use among Illinois high school studens.Journal atheltic training, v. 3, n. 29, p. 216-222, 1994.

GOLDBERG, L. et al. The adolescents training and learning to avoid steroids (Atlas) preventionprogram. Archives of pediatrics & adolescent medicine, Chicago, n. 150, p. 713-721, 1996a.

. Effects of a multidimensional anabolic steroid prevention intervention. JAMA,Chicago, n. 276, p. 1555-1562, 1996.

. The adolescents training and learning to avoid steroids program. Archivesos pediatrics & adolescent medicine, Chicago, n. 154, p. 332-338, 2000.

IRIART, J. A. B.; ANDRADE, T. M. de. Musculação, uso de esteróides anabolizantes e per-cepção de risco entre jovens fisiculturistas de um bairro popular de Salvador, Bahia, Brasil.Caderno de saúde pública. Rio de Janeiro, v. 18, n. 5, p. 1379-1387, 2002.

KINDLUNDH, A. M. S. et al. Factors associated with adolescent use of doping agentes:anabolic-androgenic steroids. Addiction, Inglaterra, n. 94, p. 543-553, 1999.

LISE, M. L. Z. et al. O abuso de esteróides anabólico-androgênicos em atletismo. Revista daAssociação Médica Brasileira, São Paulo, v. 45, n. 4, p. 364-370, 1999.

MACKINNON, D. P. et al. Mediating mechanisms in a programa to reduce intentions to useanaboli steroids and improve exercise self-efficacy and dietary behavior. Prevention science,v. 2, n. 1, p. 15-28, 2001.

Mais de 9 milhões já usaram alguma droga. Folha de S. Paulo. Cotidiano, p. 11. São Paulo,jun. 2003.

110 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

MANETTA, M. C. di P. Uso abusivo de esteróides anabolizantes androgênicos. Psiquiatria naprática médica, São Paulo, v. 33, n. 4, out./dez. 2000. Disponível em: <www.unifesp.br/dpsiq/polbr/rpm/atu1_04.htm>. Acesso em: 18 mar. 2003.

MARQUES, A. C. P. R.; CRUZ, M. S. O adolescente e o uso de drogas. Revista brasileira depsiquiatria, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 32-36, 2000.

MIDDLEMAN, A. B.; DURANT, R. H. Anabolic steroid use and associated health riskbehaviours. Sports medicine, v. 4, n. 21, p. 251-255, 1996.

MUZA, G. M. et al. Consumo de substâncias psicoativas por adolescentes escolares deRibeirão Preto, SP, Brasil. I – Prevalência do consumo por sexo, idade e tipo de substância.Revista de saúde pública, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 21-29, 1997a.

. Consumo de substâncias psicoativas por adolescentes escolares de Ribei-rão Preto, SP, Brasil. II – Distribuição do consumo por classes sociais. Revista de saúde públi-ca, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 167-170, 1997b.

NEUMARK-SZTAINER, D. et al. Sociodemographic and personal caraceteristics of adoles-centes engaged in weigth loss and weight/muscle gain behaviors: who is doing what? Preventivemedicine, San Diego, n. 28, p. 40-50, 1999.

NOTO, A. R. et al. Drogas e saúde na imprensa brasileira: uma análise de artigos publicadosem jornais e revistas. Cadernos de saúde pública. Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 69-79, 2003.

PELUSO, M. A. M. et al. Alterações psiquiátricas associadas ao uso de anabolizantes. Revistade psiquiatria clínica, São Paulo, v. 27, n. 4, p. 229-236, 2000.

POCHMANN, M.; AMORIM, R. (Org.) Atlas de exclusão social no Brasil. São Paulo, Cortez,2003. 221 p.

POPE JR., H. G.; GRUBER, A. J. Compulsive weight lifting and anabolic drug abuse amongwomen rape victims. Comprehensive psychiatry, Philadelphia, v. 40, n. 4, p. 273-277, 1999.

RIBEIRO, T. W.; PERGHER, N. K.; TOROSSIAN, S. D. Drogas e adolescência: uma análiseda ideologia presente na mídia escrita destinada ao grande público. Revista psicologia: refle-xão e crítica, Porto Alegre, v. 11, n. 3, p. 421-430, 1998.

RIBEIRO, P. C. P. O uso indevido de substâncias: esteróides anabolizantes e energéticos.Adolescência latinoamericana, v. 2, p. 97-101, 2001.

SABINO, C. Musculação: expansão e manutenção da masculinidade. In: Goldenberg, M.(Org.). Os novos desejos. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 188

SCOTT, D. M.; WAGNER, J. C.; BARLOW, T. W. Anabolic steroid use among adolescents inNebraska schools. American journal of health system pharmacy, Bethesda, n. 53, p. 2068-2072, 1996.

111Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 93-111, set. 2005

SIBILA, P. O homem pós-orgânmico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro:Relume Dumará, 2002, p. 228.

YESALIS, C. E.; BAHRKE, M. S. Doping among adolescent athletes. Baillieres best pract res.clin. endocrinol. metab., n.14, v. 1, p. 25-35, 2000.

WROBLEWSKA, A. M. Androgenic-anabolic steroids and body dysmorphia in young men.Psychosomatic research, v. 3, n. 42, p. 225-234, 1997.

Recebido: 16 jan. 2005Avaliado: 17 mar. 2005

Endereço para correspondênciaAv. Regente Feijó, 1295

São Paulo – SPCEP 03342-000

113Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

DOPING NO ESPORTEPROBLEMATIZAÇÃO ÉTICA

Msnd. FREDERICO SOUZA DA COSTAUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

[email protected]

Dr. MARCOS A. BALBINOTTIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Dr. CARLOS A. BALBINOTTIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Msnd. LUCIANO SANTOSUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Msnd. MARCOS BARBOSAUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Msnda. LUCIANA JUCHEMUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

A questão do doping no esporte envolve sérias questões éticas. Usualmente, assume-se comocerto que o uso de drogas proibidas é antiético, especialmente pelo fato de que se buscarecurso não-natural para aumentar a performance, atentando-se contra a honestidade nacompetição, inclusive com riscos para a própria saúde. Este ensaio procura refletir sobre osargumentos que sustentam a posição tradicional, trazendo à cena informações e raciocíniosque acabam por se constituir em verdadeiros paradoxos éticos.

PALAVRAS-CHAVE : Doping; ética; esporte; performance; paradoxos.

114 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

INTRODUÇÃO

O doping no esporte tem merecido atenção especial nos círculos especiali-zados. A Medicina em geral e a medicina esportiva particularmente têm feito muitosprogressos sobre o conhecimento de drogas e suplementos alimentares que sãocapazes de potencializar a performance. Certamente os comitês internacionaisantidoping, World Anti-Doping Agency (Wada) e International Olympic Committee(IOC) por exemplo, que regulam, testam e oferecem informações específicas paraas diversas modalidades esportivas têm assumido uma responsabilidade especialnos processos de controle do uso de drogas por meio de laboratórios credenciados,mas não são, absolutamente, as únicas entidades que investigam a natureza dodoping. O esporte envolve, hoje, relações interdisciplinares complexas e as formas,diríamos, físico-químicas de aumentar drasticamente o desempenho têm chamadoa atenção de diversas áreas. Uma das questões centrais envolvendo o doping écertamente a ética esportiva. O Canadian Centre for Ethics in Sports (CCES) é umadas instituições que tem trabalhado intensamente em razão da evolução das refle-xões sobre o contexto do doping no esporte, sem deixar passar as instigantes aná-lises que tentam ver o fenômeno em pauta a partir de outros ângulos. De fato, odoping pode ser investigado eticamente enquanto ingrediente indesejável nas com-petições esportivas, mas, evidentemente traz consigo um conjunto de pesquisas dealta relevância para o conhecimento científico sobre seus efeitos, não só problemá-ticos para a saúde, mas até mesmo terapêuticos em muitos casos. Trata-se, então,de revisitar as discussões éticas examinando a competência argumentativa das posi-ções antagônicas especialmente com um olhar mais agudo sobre o que podería-mos chamar a visão do senso-comum (VSC).

O DOPING EM SUAS DEFINIÇÕES

De acordo com a Wada, será considerado caso de doping qualquer uso deuma das substâncias e métodos proibidos pelo padrão internacional atualizado des-de que não haja justificativa médica comprovada. Há uma lista de 2005, já divulgadapela Wada, em que todas as explicações são oferecidas, inclusive as que tratam dasnovas drogas incluídas. A idéia básica é a de que os esportistas em geral conheçama lista das drogas e dos métodos a serem evitados, assumindo a co-responsabilidadepelo processo de controle de uso na prática esportiva. Fazem parte da lista desubstâncias: agentes anabólicos, hormônios, diuréticos, entre outros; dos métodosproibidos constam a transferência de oxigênio, doping genético etc. Algumas subs-tâncias são específicas para alguns esportes como, por exemplo, beta-bloqueadores

115Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

para ginástica, algumas para uso em competição como estimulantes, destacando-seo fato de que substâncias de uso muito freqüente como a efedrina ou álcool podemter como atenuante uma justificativa de uso diferente daquele para potencializar aperformance. Isso posto, segue-se, obviamente que cada modalidade estabelecesuas normas punitivas para casos de doping. Esse tem uma história tão antiga quan-to a do esporte. Os chineses e os gregos já conheciam substâncias capazes deaumentar a performance. Mas foi no ciclismo que a morte por doping chamou aatenção dos homens de esporte no século XIX e iniciou a luta moderna pelo con-trole da situação. Historicamente relevante é o fato de que, na década de 1950, adescoberta dos esteróides anabólicos para fins terapêuticos na luta contra a perdade massa em pacientes cancerosos logo se espalhou para usos de doping nos es-portes, iniciando a era da preparação que chamaríamos físico-química de atletas.

A ÉTICA E SUAS PERPLEXIDADES

A ética é uma disciplina de grande tradição filosófica desde suas origens natu-ralistas na obra dos gregos antigos como Aristóteles. Seu objeto, entretanto, emseu sentido mais geral, é de extrema complexidade caso pense-se a ética como ateoria do bem e da conduta. Talvez nenhuma outra disciplina seja tão problemáticaquanto às suas posições, ainda que pareça ser do senso comum que todos desejamo melhor para si e para os outros. A dificuldade extrema, todavia, está nas formasde reconhecer o bem e praticá-lo. Platão (1980) acreditava que havia uma formageral do bem e que aos sábios caberia identificá-la. Mas as complexidades do mun-do contemporâneo tornaram o ideal clássico praticamente utópico. Kant (1989)postulou em sua Crítica da razão prática a possibilidade de uma ética normativa emque cada um saberia conduzir-se pelo bem desde que se sentisse representando omodo de ser do outro em si mesmo. Algo semelhante a forma positiva do provér-bio antigo. “Fazei aos outros o que quereis que vos façam”. De Hobbes (1980),Hume (2000) e Kant, passando por utilitaristas como Mill (1980), analíticos comoMoore (1993), emotivistas como Stevenson (1944), existencialistas como Sartre(1980) ou modernos como Rawls (1989), Habermas (1989) e Charles Hartshorne(1997), todos parecem compartilhar sobre a importância que atribuem às reflexõeséticas como base para um comportamento racional. Problemas morais, porém,como o aborto e a eutanásia, entre outros, de imediato mostram as complexidadesdos debates éticos. Se as dificuldades metaéticas constituem-se em grandes obstá-culos metodológicos para uma disciplina consistente, a ética aplicada parece serbem mais tratável na medida em que os contextos específicos em que se podeavaliá-la oferecem elementos capazes de decidir entre posições alternativas. Dada,

116 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

por exemplo, uma razão de saúde da mãe, o aborto parece ser justificável incon-testavelmente; na ausência de razões, ele é crime contra a natureza. Aprendemoscom a lógica que “João é filósofo e João não é filósofo” “(P& ∼ P)” constitui umacontradição, uma vez que o pensamento racional parece estar todo na dependên-cia de que a consistência não é compatível com as contradições e “Não é verdadeque João seja filósofo e não seja filósofo” “∼ (P& ∼ P)” deve ser assumido, pelo me-nos na tradição aristotélico-freguiana. Da mesma forma, a concepção de racionali-dade que subjaz aos atos parece não aceitar que eles sejam bons e maus ao mesmotempo e dentro das mesmas circunstâncias. A ação ética, então, assim como oargumento dedutivo válido, não convive bem com as contradições. Isso expressa-se, muitas vezes, até nos fundamentos de uma teoria. O conseqüencialismo, porexemplo, representa uma abordagem em duas direções que podem ser conflitan-tes. É o que parece ser o caso da distinção entre conseqüencialismo-ato econseqüencialismo-regra. O primeiro tem seus fundamentos determinados pelosefeitos bons ou maus que os atos provocam, o segundo retira os efeitos bons oumaus que o conjunto de regras éticas podem desencadear se assumido. Muitasvezes, o mesmo fato pode ser bom numa perspectiva e mau na outra. A questãode quem é ponto de referência para determinar-se o que é bom também podegerar inconsistências. Pode ser bom um ato para quem o pratica e mau para osoutros. Em uma visão egoísta, o bem de um pode justificar ações, o que não ocorrenuma perspectiva coletivista.

DOPING E PERPLEXIDADES ÉTICAS

O doping no esporte tem sido tratado, conforme enunciado anteriormente,de maneira consensual, como um ato antiético. Burlar a lei das substâncias e dosmétodos proibidos para vencer a qualquer preço parece caracterizar um compor-tamento injusto com os outros, contrário à comunidade em que se está inserido e,por isso mesmo, eticamente condenável. Que argumentos sustentam esse pontode vista? Há raciocínios alternativos para eles?

O que segue é uma tentativa de trazer à cena um conflito ético baseado noconfronto de argumentos envolvendo as razões morais que cercam o uso do dopingno esporte.

Os argumentos do senso comum sobre o doping

O primeiro argumento (A1) que surge pelo senso comum é o fato de que háuma legislação sobre o esporte proibindo o uso de substâncias e métodos depotencialização da performance, e cabe respeitá-la; o segundo (A2) é que, tendo

117Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

em vista que são elementos não naturais, tornam-se prejudiciais à saúde; o terceiro(A3) é que fazem a competição desigual favorecendo o atleta potencializado; por-tanto, a conclusão (C) é que o doping não pode ser usado sob pretexto legal, físicoe moral e quem o usa comete uma infração ética e deve ser punido por isso.

Contra-argumentos e conflitos

Nesta seção, trataremos de trazer à cena argumentos que circulam de ma-neira informal no contexto do esporte –, com a intenção de explicitar as limitaçõesdos questionamentos contra a droga no esporte ao nível do senso comum, embusca de uma agenda mais bem fundamentada e por um esporte livre desses gran-des problemas. Estaremos, nesse caso, usando algumas considerações do CanadianCentre for Ethics in Sport (CCES), especialmente os textos Ethical rationale forpromoting drug-free sport e Ethical challenges and responsibilities in the production,regulation, prohibition and use of supplements.

Passemos ao exame de A1. Há três questões que envolvem o argumento dalegalidade do uso do doping. A primeira delas diz respeito aos fundamentos desseconjunto de regras normativas. De onde elas surgem? Acredita-se que é necessá-rio, como no caso do uso de drogas em geral, o binômio proibição/punição. Masisso não tem funcionado bem.

O esporte de competição de alto nível é elititsta em relação aos atletas. Elessão encorajados, o tempo inteiro, a fazer avançar sua performance. Sua opção pro-fissional, inclusive, é incompatível com uma vida equilibrada e sem stress. Esseprofissional hoje é, como em inúmeras outras atividades, um trabalhador exposto ainúmeros riscos.

Que tipo de argumento pode sustentar que o doping deve ser controlado ebanido do esporte se ele, em si mesmo, é determinado por leis econômicas etécnicas de altíssima exigência? O calendário, por exemplo, na maioria dos esportesnão respeita as normas mínimas de vida razoavelmente organizada. Se as comuni-dades esportivas são completamente determinadas por subcomunidades econô-micas, publicitárias e políticas (que não respeitam os fundamentos da própria moda-lidade esportiva), em nome de que aparece uma normatização sobre o doping, emgrande parte, externa aos esportistas? Além disso, a existência da legislação pressu-poria alta capacidade de controle, de modo que as ocorrências de doping diminuís-sem sensivelmente. Mas, ao contrário, há evidências de que ele aumenta.

Se a legislação justifica-se como preventiva e purificadora do esporte não pa-rece atingir seus objetivos dessa forma. Além disso, há sérias suspeitas de falta deneutralidade no controle, no qual atletas de grande expressão – de importância po-lítica para seus países –, raramente sofrem o mesmo tipo de investigação e pressão.

118 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

O argumento A2 também constitui-se num argumento problemático. Comojá considerou, anteriormente, o esporte de elite é, em si mesmo, cheio de riscos eproblemas para a saúde. Antes de mais nada, o treinamento, por mais livre dedrogas que seja, representa um esforço de superação com visíveis desgastes físicoscom o passar dos anos. Os atletas envelhecem rapidamente e tentam tirar, dadas asexigências de sua sobrevivência profissional, mais do que permite seu corpo. Ostress físico e mental é realidade no esporte atual. Além disso, não são evidentesnas pesquisas científicas sobre o assunto (ainda bastante limitadas), os efeitos colateraisapregoados ao uso de doses leves. Também, não se tem certeza científica de queos suplementos permitidos não tenham efeitos danosos de maneira semelhante àssubstâncias proibidas, dada uma prática sistemática de usá-los.

É de se considerar que cada modalidade esportiva, especialmente no nívelmais alto, envolve um conjunto de lesões típicas como muitas outras profissões. Ouso de drogas e suplementos poderia ser entendido, com limitações, mais ou me-nos dentro do mesmo quadro.

Seja como for, à pesquisa na área médica, associada à Psicologia e aplicada acada esporte em particular, caberia a grande responsabilidade de determinar comprecisão as questões de custo-benefício no uso de suplementos, drogas e métodosde desenvolvimento da performance. Parece problemático supor resultados físico-químicos sem que haja um trabalho científico mais sólido e de credibilidade indiscu-tível. Leve-se em conta também que, enquanto área interdisciplinar, o esporte tempossibilitado um avanço extraordinário da ciência, num contexto em que inclusivedrogas e suplementos fazem parte do processo.

O pressuposto A3 também pode ser um argumento problematizado. Defato, no âmbito da competição, parece inquestionavelmente injusto que um atletause recursos proibidos e apresente-se com vantagens em relação a seu oponente.Mas isso é o que tem acontecido na situação atual, em que a prescrição e o contro-le têm o presente formato. As formas de burlar as regras quanto ao uso de drogastêm privilegiado, principalmente, os atletas de maior recurso. Eles podem fazercalendários adequados ao seu trabalho físico-químico e até contratar médicos eadvogados especializados nesse contexto. Também é de se registrar que algunsatletas fisicamente limitados podem recompor, por meio de um trabalho físico-químico, condições básicas para competir.

É da natureza do esporte competitivo que mais se perde do que se ganha,ou, ainda, para cada um que ganha, inúmeros outros perdem. O uso de recursos emétodos adicionais não altera, portanto, a essência do prejuízo dos que perdem.Em outras palavras, o esporte competitivo contém ingredientes naturalmente injus-tos na perspectiva da maioria, de modo que A3 não é completamente suficientepara a condenação do uso de drogas e métodos ilícitos.

119Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

Dado o contexto problemático dos argumentos A1, A2 e A3, enquanto sus-tentação de programas de controle de drogas e métodos, a ética do senso comumtambém fica desafiada, não porque seus raciocínios não sejam plausíveis, mas por-que parecem não constituir razões suficientes para avaliar a situação em toda a suacomplexidade. Uma estranheza que se impõe diante dos desafios propostos aosargumentos do senso comum, para o qual o uso de drogas é sempre condenável,é que parece tão óbvio que se deva banir as drogas do esporte. Mas isso é maisresultado de uma moralidade superficial do que propriamente da força profunda deargumentos. E o resultado é o que se vê. Apesar de todos os programas, o uso dodoping prospera. Algo, então, não está bem estabelecido. Alguém pode observar,por exemplo, que o controle é muito problemático na medida em que certas dro-gas novas surgem sem que se possa ter a testagem adequada, coisa que às vezesacontece muito tempo depois.

Sim, mas tais drogas não surgiram do nada. Foram produtos do própriodesenvolvimento científico que interage com o esporte. Em outras palavras, a ciên-cia parece não se deter em seu caminho, ainda que seja a principal responsável pelasofisticação das drogas e seu caráter prematuro em relação aos testes. Uma situa-ção como essa praticamente revela a verdadeira questão. Os interesses que cer-cam a relação droga/controle são completamente repassados por determinaçõeseconômicas, sem que a consistência ética seja priorizada. Ela, de fato, já entra emconflito no esporte de alto rendimento pela simples razão de que, nesse tipo deatividade competitiva, tudo favorece uma visão egocêntrica.

Parece absolutamente natural que o atleta volte-se completamente para simesmo. Ele intuitivamente não pode levar em consideração o bem de seus concor-rentes, dado que o sucesso deles obstaculiza o seu em alguma medida. Nesse con-texto, os atletas que não usam drogas sentem-se, primeiramente, prejudicados pelosque delas se utilizam. De modo que, se há suspeitas de que alguns usem drogas emétodos proibidos, driblando as leis, todos sentem-se pressionados ao mesmo com-portamento uma vez que não encontram outras formas de luta. Exatamente o queleva a isso é a dificuldade ética e legal de um atleta que não usa droga denunciar aqueleque a emprega ilicitamente. Trava-se, portanto, um conflito ético do tipo “se não usodrogas, sou vencido” e “se denuncio os que usam sou condenado”.

DOPING NO ESPORTE: NA DIREÇÃO DE UMA ÉTICA CONSISTENTE

Os conflitos argumentativos sobre doping revelam a necessidade de umareflexão ética maior, que abranja as diversas partes constituintes das comunidadesesportivas. Doping é um ingrediente no interior de uma complexa estrutura de

120 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

interesses interdisciplinares. Não é apenas um fenômeno que diga respeito à atle-tas, modalidades esportivas, agências e laboratórios. Nesse sentido, trata-se de for-mular uma agenda racional mais complexa para a questão do doping no esportecontemporâneo.

Ética e natureza do esporte – em geral e profissional

Trata-se de caracterizar a natureza do esporte profissional de hoje e todosseus ingredientes, especialmente a relação entre ídolos de massa, celebridades es-portivas e marketing, patrocínios etc. Explicitar a função do doping nesse contexto,custo-benefício.

Ética no esporte – ciência e saúde

Aqui, a questão é o estímulo e a divulgação da pesquisa de base científicasobre a relação doping/performance. É preciso que a grande comunidade esportivae os interessados em geral saibam a verdade sobre o tópico/tema, não só emtermos de riscos e efeitos colaterais, mas também sobre o desempenho esportivo.

Ética no esporte – a investigação de modalidades esportivas específicas

Trata-se, nesse ponto, de apoiar e divulgar o trabalho teórico sobre cadamodalidade esportiva e suas formas de desenvolver a preparação físico-química.

Em síntese, para que se tenha um esporte de alto nível ético é preciso evitaro tratamento superficial do tópico, intensificar as relações ciência-esporte e orientarfederações e patrocinadores para a avaliação correta e realista do esporte profissio-nal em suas belezas e conflitos.

Doping in sport – ethical problematical

ABSTRACT: The use of doping in sport gathers many serious issues. Usually, it is assumed thatthe usage of prohibited drugs is anti-ethic, specially for the fact that using a non-naturalresource to improve performance plays against the honesty of competition, and may evencause injuries to the player’s own health. This essay has the objective to be a reflection on thearguments that support the traditional view, bringing about information and reasoning thatmay end up as ethical paradoxes.KEY-WORDS: Doping; ethics; performance; paradoxes.

121Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

Doping en el deporte – un problema ético

RESUMEN: La cuestión del doping en el deporte involucra muchas cuestiones éticas.Generalmente, se asume que el uso de drogas prohibidas es anti-ético, principalmente por-que se las utiliza como un recurso no-natural para mejorar el rendimiento– inclusive conriesgos para la propia salud del atleta –, y en contra de la honestidad que debería existir entoda competición. Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las discusiones quesustentan la opinión tradicional, a partir de informaciones e ideas que terminan por convertirseen verdaderas paradojas éticas.PALABRAS CLAVES: Doping; el ética; performance; paradojas.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, v. l, 1987 (Livro V).

. Organon. Bauru: Edipro, 2004.

BUTCHER, R. Ethical challenges and responsibilities in the production, regulation, prohibitionand use of supplements. Ottawa: Canadian Centre for Ethics in Sport (CCES), 2004.

CCES. Ethical rationale for promoting drug-free sport. Executive summary do Canadian Centrefor Ethics in Sport. Ottawa: Canadian Centre for Ethics in Sport, 1993.

. A guide to developing codes of conduct. Ottawa: Canadian Centre for Ethicsin Sport, 1998.

. Know now : ethical discussion paper on self-testing for drug use. Ottawa:Canadian Centre for Ethics in Sport, 2002.

COTTINGHAM, J. Western philosophy : an anthology. Oxford: Blackwell philosophyanthologies, 1996.

FREGE, G. Begriffsschrift (Conceitografia), eine der arithmetischen nachgebildeteFormelsprache des reinen Denkens. Halle: s. ed., 1879.

HABERMAS, J. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. Estudos avançados,Universidade de São Paulo (USP) - SP, 3 (7) 4 -19, set./dez., 1989.

HARTSHORNE, C. The philosophy of charles hartshorne – library of living philosophers. v.XX. Peru (Illinois): Open Court Publishing Company, 1997.

HOBBES, T. Hobbes. São Paulo: Nova Cultural, 1980 (coleção Os pensadores).

HOLOWCHAK, M.; HOLOWCHAK, A. (Eds.). Philosophy of sport: Critical readings, crucialissues. New Jersey: Prentice Hall, 2002.

122 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 113-122, set. 2005

HUME, D. A treatise of human nature. Oxford: Oxford University Press, 2000.

KANT, I. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70,1989.

MECHIKOFF, R.; ESTES, S. A. History and philosophy of sport and physical education: from theancient greeks to the present. s. l.: Brown & Benchmark Pub, 1993.

MILL, J. S. Mill. São Paulo: Nova Cultural, 1980 (coleção Os pensadores).

MOORE, G. E. Principia ethica. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

PIPE, A.; BEST, T. Drugs, sport and medical practice. Clinical journal of sport medicine, v. 12, n.4. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, Inc., 2002.

PLATÃO. Platão. São Paulo: Nova Cultural, 1980 (coleção Os pensadores).

SARTRE, J-P. Sartre. São Paulo: Nova Cultural, 1980 (coleção Os pensadores).

STEVENSON, C. L. Ethics and language. New Haven: Yale University Press, 1944.

WORLD ANTI-DOPING AGENCY. International standard for testing. s. l., 2003.

. Prohibited list 2005: summary of modifications vis-à-vis 2004 prohibitedlist. s. l., 2004.

. Questions and answers on changes appearing on the Wada 2005 prohibitedlist of substances and methods. s. l., 2004.

. The 2005 monitoring program. s. l., 2004.

. The world anti-doping code : the 2005 prohibited list international standard.s. l., 2004.

Recebido: 2 fev. 2005Aprovado: 30 mar. 2005

Endereço para correspondênciaFrederico Souza da CostaAnita Garibaldi, 2120/710

Boa Vista – Porto Alegre – RSCEP 90480-200

123Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

DOPING E MULHERES NOS ESPORTES

Dr. FABIANO PRIES DEVIDEPrograma de Pós-Graduação em Ciências da Atividade Física

da Universidade Salgado de Oliveira (Universo/RJ)Faculdade de Educação Física do Centro Universitário Augusto Mota (UniSuam/RJ).

Pesquisador do Grupo de Pesquisa de Semiótica do Esporte da Universidade Gama Filho (UGF/RJ).e-mail: [email protected]

Dr. SEBASTIÃO JOSUÉ VOTREPrograma de Pós-Graduação em Educação Física (UGF/RJ)

Pesquisador do Grupo de Pesquisa de Semiótica do Esporte (UGF/RJ).e-mail: [email protected]

RESUMO

O objetivo deste ensaio é discutir o doping no esporte feminino. O texto aborda as barreirasculturais para a inserção das mulheres no esporte, a reserva masculina, a difusão do dopinge as mudanças verificadas no corpo das mulheres atletas. Ao final, apresentamos algumasconsiderações sobre o doping na natação feminina, a partir de entrevistas realizadas comtrês atletas olímpicas do Brasil, participantes dos Jogos Olímpicos de Munique, 1976; Seul,1988; e Sidney, 2000.

PALAVRAS-CHAVE: Doping; mulheres; esporte.

124 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

ASPECTOS CULTURAIS SOBRE A INSERÇÃO DAS MULHERES NO ESPORTE

E A RESERVA MASCULINA

O esporte moderno e contemporâneo unificou um conjunto de valores comoforça, potência, velocidade, vigor físico e busca de limites – características valoriza-das na sociedade e historicamente associadas à imagem da masculinidade –, fazen-do com que o comportamento esportivo prototípico seja definido como um papeldo gênero masculino (Rubio, Simões, 1999).

Esse contexto contribuiu para que as mulheres tenham rompido barreirasde gênero assentadas em pressupostos biológicos que as interpretam como infe-riores aos homens na prática atlética. A estabilidade e permanência de tais barreirasvêm contribuindo para que elas sintam necessidade de transformar o próprio cor-po, de instrumento de trabalho esportivo a instrumento de emancipação, para in-cluir-se no universo da competição esportiva, construída nas bases dos valores docampo em que elas estão em desvantagem. Nesse campo, a expectativa não é queelas se tornem mais femininas, ao contrário dos homens, para os quais o esporte foie tem sido um meio de construção da masculinidade1.

Segundo Hargreaves (2000), a homofobia presente nos esportes prejudi-ca carreiras de homossexuais, sobretudo de mulheres lésbicas, que são alvo deacusações infundadas, tratadas como predadoras, um fator de risco para as atletasheterossexuais, uma marca do desvio e da degeneração. Essa realidade justifica areserva com que as mulheres mais fortes, envolvidas em esportes que implicamforça e velocidade, tentem esconder sua preferência sexual. Ironicamente, con-forme se constata no texto de Hargreaves, os maiores riscos de molestação eassédio sexual nos esportes ocorrem por parte de dirigentes e atletas masculinos,heterossexuais.

Quando, a partir da década de 1960, na Europa, algumas mulheres começa-ram a sobressair no esporte de alto nível, com performance antes nunca vista, areação social de fundo sexista não se fez esperar: várias atletas olímpicas soviéticase alemãs consideradas “masculinas” foram condenadas por seu porte e característi-cas físicas, tendo sua identidade sexual questionada, o que fez com que a mídia, os

1. Neste contexto, homens frágeis e pouco habilidosos ou não envolvidos com os esportes, assimcomo mulheres atletas fogem dos padrões de homem forte e mulher frágil, sendo taxados defeminizados e masculinizadas. A naturalização da fragilidade, graça e delicadeza acaba fazendo comque as mulheres atletas justifiquem o desenvolvimento da estrutura física (contra-hegemônica) emtermos da norma, e insistam em que músculos fortes não implicam lesbianismo, conforme veremosadiante, na análise das entrevistas.

125Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

fisiologistas e dirigentes esportivos renovassem seus interesses sobre as definiçõesbiológicas e sociais da feminilidade.

Da discussão resultaram algumas teses polêmicas, como a que afirmava que,em termos simbólicos, a mulher atleta de alto nível corria o risco de ser ou detornar-se um “homem”, o que fez, inclusive, com que houvesse a demanda peloteste de feminilidade, levantando a suspeita: “se ela for bem sucedida no esporte,ela poderá ser um homem” (Willis, 1994).

No cenário da absoluta maioria dos esportes de alto rendimento, a perfor-mance masculina é a norma através da qual realizam-se comparações e avaliaçõesdos resultados femininos, e geram-se interpretações e rotulações como a definiçãodas mulheres como esportistas de segunda classe, uma vez que nunca serão supe-riores aos homens. Temos um exemplo ilustrativo dessa tendência interpretativaquando a nadadora holandesa Inge de Brujin quebrou o recorde mundial dedezenove anos, nos cem metros borboleta, nadando a distância abaixo dos 57segundos. Alguns atletas e treinadores comentaram que a marca era “fora do co-mum”, “muito perto do impossível” ou “muito rápido para uma mulher”, pondo anadadora sob suspeita de doping (Romero, Romero, 2000).

Mulheres atletas freqüentemente deparam-se com a questão de como ultra-passar o abismo entre as expectativas culturais estereotipadas de sua feminilidade eos requisitos da excelência atlética. Para que isso não se torne mais um obstáculo àconsolidação das mulheres no esporte de alto rendimento, é necessário que serepense o padrão feminil como um terreno de contestação, pois a concepção defeminilidade vai além dos aspectos estéticos do corpo feminino. As expectativasestereotipadas informam e legitimam práticas, atitudes e comportamentos implan-tados no imaginário social, que se consideram adequados às mulheres, criando econsolidando relações de poder desiguais entre os sexos. Aceitar os pressupostosdesse imaginário implica em reconhecer e naturalizar uma série de restrições físicase comportamentais ao acesso das mulheres ao campo do esporte (Messner, 1994).Supõe aceitar, como pacífica, a tese de Fernando Pessoa, segundo a qual as mulhe-res têm a graça, só aos homens cabe a graça e a força, enquanto a Deus cabe aperfeição. Pois se ambos os sexos procuram a perfeição como corpos sujeitos,reflexivos e autores de seu próprio destino (Stoer, Magalhães, Rodrigues, 2004), agraça e a força se desenvolvem e aprimoram com o exercício e o cuidado contínuos.

Para Willis (1994), tal é o poder explicativo e restritivo dos estereótipos im-plantados na cultura ocidental que o sucesso no esporte é interpretado como su-cesso em ser masculino; quando pensamos em mulheres no esporte, a situação écontrária e a associação é perversa, uma vez que a atleta vive uma contradiçãosevera: ser bem sucedida como atleta pode ser falhar como mulher, quando não se

126 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

pode contemplar os papéis socialmente designados para ela, como esposa, donade casa e mãe/educadora.

Essas associações contribuíram para legitimar a atribuição de identidade mas-culina ao esporte, considerando-se os homens mais fortes do que as mulheres, enaturalizando a explicação dos motivos pelos quais o esporte passa a ser um campointerpretado como de domínio masculino, no qual as mulheres, desterritorializadas,têm enfrentado muitas barreiras através da história para conquistar o seu próprioespaço. Acabam sendo questionadas quanto a sua feminilidade, por terem de assu-mir uma postura competitiva, agressiva, de combate, em busca da vitória – valorespouco associados às mulheres, mas valorizados em relação aos homens (Messner,1994; Dunning, Maguire, 1997) –, tendo que lutar contra ideologias culturais,pseudocientíficas e/ou religiosas, que as identificam com a fragilidade. Quando assu-mem compleição atlética, acima ou fora da norma socialmente correta, tendem aser identificadas como portadoras de desvio sexual (Parrat, 1994; Théberge, 1994);portanto, convivem com novos e múltiplos desafios, além da própria violência sim-bólica2 e do abuso sexual3 no esporte.

A IDENTIDADE SEXUAL DAS MULHERES ATLETAS

No início dos anos de 1960, as primeiras feministas estavam criticando ar-duamente a “mística feminina” imposta pela sociedade patriarcal, o que despertou aconsciência para o caráter nefando e injusto do papel inferior atribuído às mulheresna sociedade em geral e no esporte em particular, bem como do papel nefasto dosmédicos e outros profissionais da saúde e dos serviços sociais, que contribuíampara reforçar a ideologia da reserva masculina no esporte e, especificamente, parado mesmo excluir as mulheres.

Os médicos – homens – estavam envolvidos em legitimar poderes e em defi-nir e rotular desvios morais e sexuais. Os psicólogos estavam preocupados com a

2. Um aspecto ilustrativo dessa forma de violência, é a variedade de piadas sexistas que agridem mulheresesportistas e o grande número de mulheres que trabalham gratuitamente para o esporte masculino.

3. O Norwegian Women Project desenvolveu um estudo, Females, elite sports and sexual harassment,com 660 mulheres atletas, representantes de 58 esportes, de 15 a 39 anos, das categorias júnior eda seleção nacional; e outro grupo controle, de 785 meninas e mulheres da mesma idade que nãoeram atletas de elite, que responderam a um questionário sobre abuso sexual no esporte. Osresultados mostraram que 51% das atletas de elite vivenciaram uma ou duas formas de abusosexual, porém em maior freqüência fora do ambiente esportivo; 59% das não atletas tambémsofreram algum tipo de abuso; 28% das atletas tiveram algum abuso sexual no esporte provenientede uma autoridade esportiva ou de outros atletas (Fasting, Brackenridge, Sundgot-Borgen, 2000).

127Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

identidade de papéis sexuais das atletas e alegavam ocorrer um conflito de funçõesentre as mulheres atletas em virtude da incompatibilidade entre esporte e os atributose encargos da feminilidade. Nessa mesma época, o aumento de ginecologistas, aintrodução do contraceptivo oral e o controle hormonal do ciclo menstrual, torna-ram-se tópicos importantes no debate sobre as mulheres e os esportes (Rail, 1990).

Nos XVIII Jogos Olímpicos de Tóquio, 1964, as mulheres corresponderama 13,3% do total de atletas, representando um recorde de 53 países, aumentandoo número de participações no programa olímpico (Welch, Costa, 1994; InternationalOlympic Commitee, 2000, DeFrantz, 1999, 2000). Apesar dessa conquista, asmulheres continuavam a deparar-se com obstáculos no acesso às profissões demais prestígio (Muraro, Puppin, 2001). Araújo (2001) constata que tiveram de cons-truir novas estratégias sob pena de perder os novos espaços – as mulheres eramquestionadas em sua demanda por presença. Tiveram que adquirir habilidade paraligar com algumas categorias cruciais, como política de idéias e política de presença(p. 86), e sobretudo as categorias justiça, diversidade/tolerância, e interesses grupaise individuais. Tolerar a pressão do estereótipo sexista, num certo momento, foi amais difícil urgência.

A preocupação com as características biológico sexuais das participantes seexacerbou a tal ponto que o ano de 1966, durante o campeonato europeu, emBudapeste, a Federação Internacional de Atletismo Amador (FIAA) ordenou quetodas as competidoras desfilassem nuas diante de três médicas mulheres ginecolo-gistas, para serem examinadas visualmente, antes de lhes ser permitido competir.Como se tal não bastasse, no ano seguinte, ao exame visual foi adicionado o testecromossomial (Rail, 1990). Todo esse processo humilhante de verificação de femi-nilidade ocorreu em virtude de uma acusação segunda a qual atletas pseudo-hermafroditas estariam competindo (Welch, Costa, 1994).

Em 1968, na cidade do México, o teste cromossomial e visual foi utilizadopela primeira vez nos XIX Jogos Olímpicos. O chefe da equipe examinadora decla-rou aos repórteres que o exame de quase oitocentas atletas o convenceu de que oesporte as deixava feias, com corpos rígidos e fortes. Nesse mesmo espírito, osrepórteres norte-americanos já tinham rotulado as irmãs russas Irina e Tâmara Press,campeãs olímpicas em 1964, de “irmãos Press”, o que indicava o quanto a entradadas mulheres no esporte de alto-rendimento e no mundo dos músculos masculi-nos incomodava a imprensa e os médicos.

Para piorar a situação insustentável em que se encontravam as mulheres, ocenário esportivo assistiu ao crescimento de fármacos associados ao aumento depotência e resistência, com ênfase para os esteróides anabolizantes, que foramconsiderados ilegais nos Jogos a partir de 1968. Quando uma mulher era flagrada

128 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

com um ou mais indicadores de que poderia estar dopada (diminuição dos seios,engrossamento da voz, crescimento de pêlos, musculatura muito desenvolvida,amenorréia), passava a ser considerada suspeita em termos de orientação e identi-dade sexual. Portanto, além do uso de esteróides, que passou a ser consideradodoping (Rail, 1990), via crescer a restrição social, de fundo moral.

Na década de 1970, com o aumento da visibilidade das lutas e movimentosem prol da emancipação e autonomização das minorias, e especificamente no casofeminino, grupos de mulheres intelectuais e líderes nos diferentes campos da ativi-dade pública começaram a redefinir papéis sociais e de gênero, a exemplo da polí-tica e do trabalho, inclusive no trabalho do esporte de alto rendimento. A força físicae os músculos femininos passaram a ser interpretados como mais aceitáveis com odesenvolvimento do movimento norte-americano do fitness, que favorecia as mu-lheres em algumas modalidades esportivas, nas quais se cultuava a beleza e a juven-tude do corpo feminino. Já os esportes de contato e força – sobretudo os de equi-pes coletivas –, eram associados à celebração da masculinidade e consideradosinadequados, inaceitáveis e forçados ao gênero feminino. Nessa época, de acen-tuada homofobia (Hargreaves, 2000), surgiu o rótulo “masculinizante” (mannish)para os jogos de equipes, interpretados como possíveis identificadores ou causado-res de desvios de gênero na infância e adolescência, podendo ser preditores dolesbianismo entre as praticantes (Rail, 1990).

MUNIQUE, MONTREAL E MOSCOU: A DIFUSÃO DO DOPING NOS JOGOS

OLÍMPICOS

Nos XX Jogos Olímpicos de Munique, 1972, pela primeira vez reuniram-semais de mil atletas mulheres, representantes de 65 países, disputando oito modali-dades (Internacional Olympic Commitee, 2000). Era o início da arrancada femininadefinitiva na participação olímpica, que se firmou na década de 1980, com as mu-danças nas políticas internas do Comitê Olímpico Internacional (COI) acerca doesporte feminino, reflexo dos avanços das mulheres nos redutos masculinos, emdiferentes campos da atividade pública.

Em Munique, as alemãs orientais dominaram as provas de atletismo; as norte-americanas e australianas dividiram as medalhas na piscina; as russas e alemãs asdividiam na ginástica, emergindo nomes que ficariam para a história dos Jogos: anadadora australiana Shane Gould, de 16 anos, tricampeã olímpica; e a russa OlgaKorbut, de 17 anos, campeã nas provas de solo e trave, em que introduziu o saltomortal para trás (Cardoso, 2000).

Um número expressivo de jornalistas e atletas passou a chamar a atenção

129Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

para a mudança drástica na estrutura corporal de muitas atletas alemãs orientaisnos Jogos Olímpicos de Munique, mas apesar de nesse evento os recordes femini-nos estarem sendo quebrados constantemente, e de forma drástica para osparâmetros da época, pouco foi feito para detectar ou prevenir o uso de anaboli-zantes entre as atletas. As competições femininas em Munique tiveram como prin-cipais medalhistas as mulheres dos países socialistas (Costa, 2000)4.

Nos XXI Jogos, em Montreal, 1976, as mulheres participantes alcançaram amarca de 20,7% do total de atletas nos Jogos, disputando os esportes coletivos –basquete e handball e ingressando no remo (Welch, Costa, 1994; InternacionalOlympic Commitee, 2000). Entre os grandes nomes femininos dos Jogos, estava anadadora da Alemanha Oriental Kornelia Ender5 que aos 17 anos era tetra campeãolímpica no Canadá, batendo quatro recordes mundiais. Também ficou gravado, nahistória, no lado mais feminino dos Jogos o nome da pequena Nadia Comaneci6, a“menina nota 10”.

Um aspecto relevante ocorrido na década de 1970 foi o uso indiscriminadode esteróides anabolizantes entre mulheres atletas, sobretudo as européias. As ale-mãs orientais, muito comentadas por sua aparência “masculina”, competiram e bri-lharam em Montreal, 1976, marcados como os “Jogos Anabolizantes” (Costa, 2000),vencendo onze das treze provas olímpicas da natação e nove das quatorze provasdo atletismo, originando as primeiras suspeitas oficiais de dopagem.

As autoridades do esporte de alto rendimento da Alemanha Oriental reagi-ram à suspeita, afirmando que o seu sucesso era resultado de um treinamento

4. No Brasil, praticamente não há literatura relevante sobre doping na natação e mesmo em esportescomo o atletismo, a referência convencional é de natureza jornalística. Mesmo em obras comoÉtica profissional na educação física, organizada pelo professor João Batista Tojal (2004), contam-sepoucas referências a dopagem. O único texto com item específico é Esporte, ética e intervenção nocampo da educação física, de Gomes e Constantino. O Atlas do Esporte no Brasil, organizado porLamartine DaCosta Pereira (2004), contém informações básicas sobre a dopagem e as medidastomadas no Brasil.

5. Kornelia foi “construída” num centro de treinamento de atletas de alto nível, submetendo-se a umprograma científico que a transformou numa das maiores nadadoras de seu tempo com apenas 17anos de idade (Cardoso, 2000). Mas sempre restará a dúvida de saber-se até onde ia o talento dagarota prodígio e onde começava a fraude química dos esteróides anabolizantes, utilizados pelaequipe alemã oriental na década de 1970.

6. Nascida na Romênia, em 1961, Nadia começou a ginástica aos 5 anos, entregue aos treinamentosde Bela Karoli. Foi campeã européia aos 13 anos e em Montreal, enfrentou a melhor safra de atletassoviéticas, como Nelli Kim e Lyudmilla Tourischeva, sendo considerada a atleta mais completa dacompetição. Em Moscou, 1980, retornou para ganhar nas provas de trave de equilíbrio e no solo(Cardoso, 2000).

130 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

esportivo elaborado sob bases científicas, em conjunto com um treinamento compesos, ainda não efetuado em outros países com mulheres atletas porque – supu-nha-se – poderiam causar efeitos fisiológicos e principalmente psicológicos entre asatletas, que viviam numa sociedade que as recriminaria caso obtivessem aquelebiotipo físico pouco feminino (Rail, 1990).

Na década de 1980, os médicos começaram a preocupar-se de forma siste-mática com esportes que pudessem provocar desconforto ou lesões nos seios, eamenorréia em atletas. O Colégio Americano de Medicina Esportiva divulgou suaopinião a favor da participação feminina em modalidades esportivas de longa distân-cia. A mesma opinião médica que até 1960 excluiu mulheres de provas acima de200 metros, em 1984 passou a incluir as mulheres na prova considerada mais durado atletismo: a maratona7.

No cenário mundial, depois da divulgação de um relacionamento homosse-xual da tenista Billie Jean King, o tópico da orientação sexual entre as atletas tornou-se uma discussão aberta para o público. Outra fonte de rejeição abria-se à participa-ção das mulheres, agora centrada na sua orientação sexual. Por outro lado, asmulheres experimentavam outras formas de discriminação bem concretas. Por exem-plo, apesar do maior número de mulheres participando do esporte de alto nível,elas continuavam a ter menos eventos em que poderiam participar e recebiamprêmios menores do que os oferecidos aos homens.

Os XXII Jogos Olímpicos de Moscou, 1980, foram marcados pelo boicotedos Estados Unidos e mais 62 países, contra o regime comunista. O boicote redu-ziu bruscamente o número de participantes nos Jogos de 1980 e, por alguma razãoque está para ser esclarecida, não houve relato de doping nos Jogos de Moscou. Oresultado do boicote de 1980 foi uma divisão das medalhas entre soviéticos e ale-mães orientais. Na natação feminina, construída sobre os pilares do usoindiscriminado do doping, as alemãs orientais venceram 11 das 13 provas, que-brando cinco recordes mundiais e quatro olímpicos, destacando-se Bárbara Krausee Rica Reinish, ambas bicampeãs olímpicas e recordistas mundiais. No atletismo, asmedalhas de ouro foram divididas com as russas.

Parry (1998, p. 12), ao propor uma agenda para discussão sobre a ética daadministração de fármacos, levanta uma série de questões sobre a moral da disputanos jogos olímpicos, ante a desigualdade de oportunidades associada a raça, sexo e

7. Tal decisão ilustra o caráter fisiológico e pontual das decisões médicas quanto ao esporte feminino.Pois, após o ocorrido em 1928 nos 800 metros rasos, retiraram-se as provas femininas maiores que200m do programa de atletismo. No entanto, foi a própria opinião médica que décadas depoissugeriu a inclusão da maratona feminina no programa de atletismo, assim como as demais provasacima dos 200m rasos.

131Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

status sócio-econômico. O debate abre novas perspectivas para a formulação depolíticas globais de inclusão e respeito à diferença, que, levadas a sério, desafiam oCOI sobre como propugnar por justiça num quadro de per si injusto.

O DOPING E AS MUDANÇAS NO PADRÃO CORPORAL DAS MULHERES ATLETAS

NADADORAS

Nos Jogos de Montreal, a divisão do mundo mergulhado na Guerra Friaestava simbolizada no maior palco esportivo mundial, com os Estados Unidos do-minando as provas masculinas e a Alemanha Oriental as femininas (Cardoso, 2000).A Alemanha Oriental destacou-se pelos resultados e pela aparência “masculina” desuas atletas, conforme já dissemos. Suas nadadoras ganharam visibilidade mundialcom os jogos olímpicos e contribuíram para que se modificassem as representa-ções sociais sobre o corpo das atletas de alto rendimento, principalmente da nata-ção e do atletismo. A crítica a um modelo de corpo forte e musculoso, construídoatravés do esporte, começou a tornar-se freqüente e a influenciar o desenvolvi-mento da carreira de algumas atletas, sobretudo em nosso país.

Com efeito, aquelas atletas olímpicas que se despediam das raias das piscinasbrasileiras aconselhavam as futuras promessas a se despirem do medo do precon-ceito. Em entrevista à Revista do Fluminense, Flávia Nadalutti tenta esclarecer àsmulheres que pensam que a natação masculinizava o corpo feminino:

posso aconselhar as moças que estão em início de carreira: o importante é cuidar docorpo, dos músculos e se entregar ao esporte. [...] A Kornélia da Alemanha Oriental [...] éuma moça forte, maciça, mas com um riso lindo. Feminina. Lá dentro, era muito mulher,ao contrário do que deixava transparecer o seu aspecto físico. Na natação, a gente senteaflorar os músculos. Eles se tornam rígidos. Mas quando a gente pára tudo volta ao normal(TAVARES, 1979, p. 4).

A fala de Flávia fundamenta-se na proposta de liberação sem revolução, semquebra das estruturas, e convive com os estereótipos heterossexuais do homem eda mulher branca. Defende a permanência dicotômica masculino/femininonormativizados e naturalizados e, portanto, confirma a tendência, claramentedelineada por Hargreaves (2000), de salientar o papel estabilizado da feminilidadegrácil, leve, apesar dos músculos e da aparência. O corpo que é forte seria indicativode um corpo que se idealiza feminino, apesar da evidência visual e do desempenhoconfigurarem estreita correlação com os padrões masculinos.

Consideramos também indiciadora das tensões no esporte feminino a de-claração da nadadora Maria Elisa Guimarães, que participou de uma propaganda dogoverno, cujo objetivo era incentivar as mulheres para a prática da atividade física:

132 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

Eu fiz uma campanha, promovida pelo governo brasileiro. [...] na televisão, [...] eu vinhanadando... parava de nadar, eu falava: “– Moças também podem participar do esporte. É,o esporte é bom, faça esporte”. [...] Pra mostrar que eu era uma moça, que eu não eranenhuma aberração... [...] Isso, se você for pensar... é absurdo. [...] em 74, 75, [...] al-guém dizendo, avisando pra população, de que moças também podem fazer esporte.(Maria Elisa Guimarães Zannini, Rio de Janeiro, 19 mar. 2001).

Perfeitamente, mais uma vez adequa-se o discurso e enquadra-se as mulhe-res atletas brasileiras como mulheres femininas, e não como “aberrações”, mascu-linizadas, lésbicas, diríamos. Maria Elisa denuncia o que fazia, considera absurdo terque fazer a propaganda com esse tipo de mensagem na década de 1970 –, mas nãoesclarece o que considera “aberração” (uma mulher com físico másculo, como odas alemãs?). O discurso se converte em uma declaração paradoxal, porque nãodenuncia a “aberração” e, sim, destaca o absurdo de defender que “moças tambémpodem praticar esporte”.

Mais tarde, ainda na década de 1980, Patrícia Amorim e sua geração passa-ram pela mesma experiência, acrescida da constatação da diferença entre sua capa-cidade física e a de suas concorrentes européias. A nosso entender, a fala de Patríciaidentifica o caráter conservador da natação brasileira, fiel às normas, contra a ousa-dia dos países que construíam suas atletas através da intervenção química. Temos aíuma das mais plausíveis explicações de por que a natação brasileira, e sul-americananaufragou, perante as atletas chinesas e alemãs, construídas pelo doping.

Eu peguei uma época de doping fortíssimo na Alemanha Oriental. Logo [...] depoisvieram as chinesas! [...] Eu peguei o doping quando o doping não era descoberto ainda.Então, eu nadava com “homens”. Então, dificílimo. Foi uma época muito difícil de conse-guir resultado internacional... (Patrícia Amorim Sihman, Rio de Janeiro, 3 ago. 2001).

Nadar com homens poderia ter sido a alternativa de treinamento de Patrícia,para competir com os “homens” com que nadava nas raias internacionais. O depoi-mento permite inferir que a disputa era injusta e perversa, pois não havia parâme-tros de comparação.

REPRESENTAÇÕES DE ATLETAS OLÍMPICAS SOBRE O DOPING NO ESPORTE

E NA NATAÇÃO FEMININA

A prática do doping como meio de melhoria do desempenho é uma marcapresente no discurso das colaboradoras desse estudo, representantes das geraçõespós-1970. Foi nessa época, especificamente entre os Jogos Olímpicos de Munique(1972) e Montreal (1976) que o doping tornou-se uma preocupação do COI.

133Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

O esporte, principalmente o feminino, explorado por países da Cortina deferro e de economias capitalistas desenvolvidas, auxiliou na construção e na pro-moção de suas potências armamentistas, econômicas e políticas, tendo os corposdas atletas como principal via de conquista (Welch, Costa, 1994; Costa, 2000).Voltar o olhar para o desenvolvimento e o incentivo do esporte feminino foi umaforma de fazer com que um país sobressaísse no cenário mundial8.

Na década de 1970, o uso indiscriminado de esteróides entre as atletas foivisível. Alemãs orientais, marcadas pela aparência masculinizada, competiram emMontreal, 1976, vencendo a maioria das provas olímpicas da natação e do atletis-mo sob suspeita de doping. Mais tarde, investigações constataram que a AlemanhaOriental conduziu um programa de doping sistemático entre 1970 e 1980, tendocomo maiores vítimas as mulheres, que processaram médicos e treinadores pelosefeitos do doping em suas vidas (Hammer, Biehl, 2000).

Vamos repetir o depoimento de Patrícia, na parte que enfatiza o desequilíbriona potência das competidoras: “Então eu nadava com homens. [...] Foi uma épocamuito difícil de conseguir resultado internacional [...]” (grifo meu). O discurso dePatrícia ancora a representação – consensual, mas polêmica – de que as mulheresque se dopam tornam-se mais fortes e têm um desempenho atlético muito melhor,tornam-se “homens”, pois alcançam resultados desproporcionais à capacidade atlé-tica que uma mulher “normal”, como Patrícia, mesmo que exponencial, poderiaatingir; além de modificarem o seus corpos de forma desproporcional ao padrãofeminino, inclusive o atlético.

Na América do Sul, atletas e técnicos trabalhavam com pouco acesso àsinformações sobre a evolução da ciência do treinamento esportivo, em pleno de-senvolvimento nos países da Cortina de ferro e nos países de economia capitalistadesenvolvidas, liderados pelos Estados Unidos. Esse fator, em conjunto com aprofissionalização do esporte e a dopagem, que se tornou uma prática correnteentre os membros de algumas equipes, dificultou o surgimento de resultados inter-nacionais expressivos no esporte feminino individual, especialmente na natação fe-minina, quando nossas nadadoras se tornaram presas fáceis, “vítimas”, como afirmaMaria Elisa Guimarães, do excepcional resultado das alemãs orientais e russas, que,por sua vez, anos mais tarde, foram vítimas dos efeitos colaterais irreversíveis douso indiscriminado dos esteróides anabolizantes.

8. Boutilier et al. (1991), analisando os resultados dos Jogos Olímpicos de Seul, concluíram que osistema de governo pode ser o principal fator para o sucesso olímpico das mulheres, especificamen-te o sistema socialista, que havia promulgado políticas públicas que refletiam o seu compromissoideológico com o esporte feminino.

134 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

Na década de setenta não havia o controle pra utilização dos anabolizantes. [...] Asatletas da Alemanha Oriental, muitas americanas, muitas russas... É, o pessoal da Cortinade Ferro, [...] elas foram vítimas [...] e nós, as sul-americanas que não usávamos, fomosvítimas do bom resultado delas. [...] você não precisa esforço nenhum pra poder pegar asfotos daquela época, e ver que aquelas mulheres, eram absurdamente gigantes! [...] Mus-culaturas desproporcionais ao corpo de uma mulher. [...] Na década de 70, [...] passarama investir muito no atleta... E, essas coisas acabaram acontecendo. (Maria Elisa GuimarãesZannini, Rio de Janeiro, 19 mar. 2001).

Absurdamente gigantes, eis como se afiguravam, para as latino-americanas,e brasileiras em particular, as competidoras anabolizadas. A idéia da proporção, daforma esperada, da massa muscular aceitável, tudo estava sendo desconstruídocomo se uma onda de pós-modernidade, a serviço da indústria esportiva do espe-táculo, tivesse atingido os centros de treinamento em busca de novas fórmulas,contingentes, que eliminassem o valor essencial do desempenho centrado no es-forço individual, na superação dos próprios limites; além da violência física e simbó-lica refletida no corpo de mulheres atletas púberes, vitimizadas pela indústria cultu-ral do esporte de alto rendimento, que lhes trouxe graves reflexos posteriores,como a geração de filhos com má formação, entre outros.

Ainda nos dias atuais, o avanço tecnológico permite que a dopagem ocorra emvárias instâncias em que não pode ser detectada nos exames antidoping. Esse aspec-to, ao lado do profissionalismo no esporte e do peso mercantil dos patrocinadores,tem contribuído para que atletas submetam-se ao uso dessas substâncias atingindomarcas fantásticas, despertando a dúvida, desconfiança, revolta contra injustiça, contraa desigualdade de oportunidades, daquelas atletas que não as administram:

[...] o doping é uma coisa muito séria no esporte [...]. Nas Olimpíadas, eu duvidei de muitacoisa. [...] As pessoas têm muita tecnologia [...]. Coisas que o brasileiro, sabe? [...] ele àsvezes é até melhor... Mas as pessoas usam substâncias ilegais e estão competindo, sabe?[...] numa desigualdade. [...] tem muito doping hoje no esporte. Muito doping. (FabíolaMolina, Rio de Janeiro, 25 mar. 2001).

A idéia da tecnologia no depoimento de Fabíola aponta para um leque deinterpretações possíveis dentre as quais cabe citar os métodos de treinamento, mastambém de anulação dos efeitos das drogas, desenvolvidos nos laboratórios dos cen-tros de pesquisa dos países desenvolvidos, de modo que as substâncias dopantes nãopossam ser detectadas. A atleta aponta precisamente para a desigualdade que se criacomo resultado de condições desproporcionais de competitividade.

Após o fim dos anos de 1960 e início da década de 1970, a natação, umesporte que se profissionalizou, passou pelo dilema do doping tendo os Jogos Olím-picos de Munique e Montreal como palco que conferiu visibilidade às atletas da

135Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

Cortina de ferro, principalmente alemãs orientais e russas, que trouxeram para acena esportiva mundial um novo padrão de corpo atlético feminino resultante dotreinamento esportivo desenvolvido nas piscinas e salas de musculação, e do usode esteróides anabolizantes.

Esse fato fez com que a comunidade médica e a sociedade em geral assistis-se ao surgimento ou ao recrudescimento de uma representação circulante de quea natação, ao contrário do que representou no início do século XX, entre as déca-das de 1970-1990, masculinizava as mulheres (Devide, 2003).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na trajetória de transformações lentas, avanços e recuos, as atletas entrevis-tadas neste ensaio identificam e reconhecem as resistências sociais que foram apre-sentadas às mulheres atletas a partir dos anos de 1970, com o advento do doping.

Ao lado das resistências de raízes biológicas e culturais, centradas na repre-sentação de um corpo feminino forte e masculinizado na segunda metade do sécu-lo XX, imerso no uso indiscriminado do doping, as mulheres também esbarramnas dificuldades de encontrar patrocínios, de conciliar estudos universitários e/oucasamento aos treinamentos, além de se ressentirem de pouco espaço na impren-sa esportiva.

Da discussão anterior depreende-se que se trata de quadro hipercomplexoo que se desenha para as mulheres que fazem carreira no esporte de alto nível,ante as representações restritivas, resultantes da eleição de homens e mulheresbrancas, heterossexuais, como norma e ponto de referência para ações públicas eprivadas. O lugar das diferentes é o lugar do silêncio, da negação da diferença, dasimulação de pertencimento aos grupos majoritários. Trata-se, do ponto de vista degênero, da farsa da inclusão.

Por outro lado, a administração de fármacos modifica a forma e o volume docorpo feminino, atribuindo-lhe características fora do normal, e altera suaperformance, desequilibrando a justiça da disputa entre mulheres que não se dopame aquelas que constroem o seu desempenho sobre as bases do doping. O ideal daigualdade de oportunidades encontra-se quebrado, conforme salientamos ante-riormente, pelas condições oferecidas às atletas pelos países do norte ocidental, aexemplo de Estados Unidos e Europa, contra os africanos e sul-americanos. A nu-trição, a tecnologia de treinamento e as oportunidades para avanço na carreiraatlética configuram-se como desigualdade.

Admitindo-se que seja possível controlar o doping em escala mundial, flagraros que o administram, evitar o seu uso, ainda assim, não se terá alcançado a sonha-

136 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

da – e ingênua – igualdade de oportunidades. Temos evidência de que o dopingfeminino consolidou-se nos países da Cortina de ferro, porque seus mentores des-cobriram o filão que seria a dopagem de suas atletas e a transformação do quadrode medalhas a seu favor, não em busca da igualdade, e sim da visibilidade mundial,interpretando o esporte como uma metáfora da força armamentista, política e eco-nômica de cada país.

Não temos evidência, por outra, de que forma se comportavam os demaispaíses europeus, e da América do Norte. De qualquer modo, cabe enfatizar que osmais ricos, detentores de tecnologias mais avançadas de detecção de talentos, acom-panhamento e aprimoramento de seus atletas, e de nutrição específica, bem comode recursos especiais de natureza bioenergética, produzem e produzirão atletascada vez mais fortes e robustos, mais resistentes e mais altos, com maior velocida-de, flexibilidade e força, enquanto países como o Brasil estarão lutando nos patama-res inferiores. Portanto, além do desafio sobre como controlar e flagrar o uso dedrogas cada vez menos perceptíveis, convivemos com o paradoxo da justiça locali-zada, em oposição à assimetria gigantesca, entre os países que dispõem de recur-sos, tecnologias e nutrientes, e os outros.

Doping and women in sports

ABSTRACT: This essay aims to discuss the doping in feminine sport. The discussion in thiswork tells about the cultural barrier for the participation of women in sports, the malereserve, the diffusion of doping in sport, and the transformations in the body model ofwomen’s athletes. To conclude, we present some assumptions about doping in feminineswimming, from some interviews with three olympic athletes, participants in Munich (1976),Seoul (1988), and Sidney (2000) Modern Olympic Games.KEY-WORDS: Doping; women; sport.

Dopingy mujeres en el deporte

RESUMEN: En este ensayo nos proponemos analizar el doping en el deporte femenino.Hablamos de las barreras culturales que las mujeres tienen que superar en el deporte, lareserva masculina, la difusión del doping y las transformaciones que se han verificado en elcuerpo de las mujeres atletas. Para concluirlo, presentamos algunas proposiciones sobre eldoping en natación femenina. Los datos vienen de tres atletas olímpicas brasileñas, que hanparticipado en los Juegos Olímpicos de Munich, 1976; Seúl, 1988, y Sydney, 2000PALABRAS CLAVES: Doping; mujeres; deporte.

137Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, C. Construindo novas estratégias, buscando novos espaços políticos – as mulherese as demandas por presença. In: MURARO, R. M.; PUPPIN, A. B. Mulher, gênero e socieda-de. Rio de Janeiro: Relume/Dumará, 2001.

BOUTILIER, M. A.; SAN GIOVANNI, L. F. S. Ideology, public policy and female olympicachievement: a cross-national analysis of theseoul olympic games. In: LANDRY, F.; LANDRY,M.; YÉRLES, M. (Eds.). Sport… The third millennium – proceeding of the internationalsymposium. Sainte-Foy: Les Presses de L’Université Laval. p. 397-409, 1991.

CARDOSO, M. Os arquivos das olimpíadas. São Paulo: Panda Books, 2000.

COSTA, D. M. Editions of women olympic competition. Conferência apresentada no FórumOlímpico 2000 : O movimento olímpico em face ao novo milênio. Porto Alegre, Universida-de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mimeo, 2000.

DaCOSTA, L. P. (Org.). Atlas do esporte no Brasil. Rio de Janeiro: Shape, 2004.

DeFRANTZ, A. L. The changing role of women in the olympic games. In: GEORGIADIS, K.(Ed.). Report of the thirty-seventh session of the international olympic academy. Ancient olympia:International Olympic Committee (IOC). p. 69-90, 1999.

. 100th Years of women’s participation in the olympic games and still they came.2nd IOC World Conference on Women and Sport. Paris: International Olympic Committee, 2000.

DEVIDE, F. P. História das mulheres na natação brasileira no século XX: das adequações às repre-sentações sociais. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho. 347p., 2003.

DUNNING, E.; MAGUIRE, J. As relações entre os sexos no esporte. Estudos feministas. Insti-tuto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS)/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Riode Janeiro, v. 5, n. 2, p. 312-348, 1997.

FASTING, K.; BRACKENRIDGE, C.; SUNDGOT-BORGEN, J. Females, elite sports andsexual harassment – the norwegian women project 2000. Norway: Norwegian OlympicCommittee, 2000.

GOMES, M. C.; TURINI, M. Esporte, ética e intervenção no campo da educação física. In:TOJAL, J. B. (Org.). Ética profissional na educação física. Rio de Janeiro: Shape, 2004.

HAMMER, J.; BIEHL, J. The price of glory. Newsweek. New York, May 29, v. CXXXV, n. 22,p. 19, 2000.

HARGREAVES, J. Heroines of sport : the politics of difference and identity. London: Routlege, 2000.

INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE. The promotion of women in the olympic movement:IOC policy and initiatives. Lausanne: Department of International Cooperation/IOC, 2000.

MESSNER, M. Sports and male domination: the female athlete as a contested ideologicalterrain. In: BIRREL, S.; COLE, C. L. (Eds.). Women, sport, and culture. Champaign: HumanKinetics. p. 65-80, 1994.

138 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 123-138, set. 2005

MURARO, R. M.; PUPPIN, A. B. Mulher, gênero e sociedade. Rio de Janeiro: Relume/Dumará, 2001.

PARRAT, C. From the history of women in sport to women’s sport history: a research agen-da. In: COSTA, D. M.; GUTHRIE, S. R. (Eds.). Women and sport. Champaign: Human Kinetics.p. 5-14, 1994.

PARRY, J. Physical education as olympic education. European physical education review. v. 4, n.2, 1998.

RAIL, G. Women’s sport in the post-war period. Thirtieth session of the international olympicacademy: women in the olympic movement. Ancient Olympia: IOC, p. 111-123, 1990.

ROMERO, R. A.; ROMERO, J. A. (Eds.). O que os americanos acham de Inge? Swim it up! Ojornal da natação competitiva. Londrina, v. 4, n. 40, p. 14, 2000.

RUBIO, K.; SIMÕES, A. C. De protagonistas a espectadoras: a conquista do espaço esporti-vo pelas mulheres. Movimento. Porto Alegre, ano V, n. 11, p. 50-56, 1999.

STOER, S. R.; MAGALHÃES, A. M.; RODRIGUES, D. Os lugares da exclusão social. Umdispositivo de diferenciação pedagógica. São Paulo: Cortez, 2004.

TAVARES, M. Pensando a arquitetura. Revista Fluminense, Rio de Janeiro, n. 200, p. 4, nov./dez., 1979.

THÉBERGE, N. Toward a feminist alternative to sport as a male preserve. In: BIRREL, S.; COLE,C. L. (Eds.). Women, sport, and culture. Champaign: Human Kinetics. p. 181-192, 1994.

TOTAL, J. B. A. G.; DaCOSTA, L. P.; BERESFORD, H. Ética profissional na educação física.Rio de Janeiro: Shope, 2004.

WELCH, P.; COSTA, D. M. A century of olympic competition. In: COSTA, D. M.; GUTHRIE,S. R. (Eds.). Women and sport: interdisciplinary perspectives. Champaign: Human Kinetics. p.123-138, 1994.

WILLIS, P. Women in sport ideology. In: BIRREL, S.; COLE, C. L. (Eds.). Women, sport, andculture. Champaign: Human Kinetics. p. 31-45, 1994.

Recebido: 31 jan. 2005

Aprovado: 05 abr. 2005

Endereço para correspondência

Fabiano Pries Devide

Rua Barão da Torre, 445, Apto. 401

Ipanema – Rio de Janeiro – RJ

CEP 22411- 003

139Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

RISCOS DA BELEZA E DESEJOSDE UM CORPO ARQUITETADO

MARINA GUZZODoutoranda em Psicologia Social da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)[email protected]

RESUMO

Este trabalho busca entender o risco no processo de construção do corpo belo, perfeito edesejado. Este desejo de construir um corpo forte e seguro não é novo na humanidade, novassim são as tecnologias que existem hoje para que aconteça essa construção. Anabolizantes,esteróides, suplementos alimentares, técnicas cirúrgicas de correção ou extração de gordu-ra: são infinitas as formas de arquitetar a beleza. Muitas delas, porém, oferecem diversosriscos, desde a possibilidade da não mudança até a morte. É necessária esta reflexão dentroda Educação Física, em que profissionais convivem diariamente com a busca desenfreadapelo corpo ideal dentro de academias, clubes, parques e até mesmo na escola. Como épossível que hoje se arrisque tanto pela beleza do corpo? Como o risco influi na decisãode construir para si um corpo perfeito? Quais são as relações de produtos tecnocientíficose corpo e como eles transformam-se e alteram nossas práticas cotidianas?

PALAVRAS-CHAVE: Corpo; risco; beleza.

140 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

O CORPO ARQUITETADO

No ano de 2004, soube-se pela mídia que três adolescentes do DistritoFederal entraram em coma por injetar anabolizante para cavalos. Um deles faleceudias depois e os sobreviventes contaram que desejavam um corpo mais forte emúsculos maiores com a ajuda da musculação. Nesse mesmo ano a revista Épocadedicou a capa de uma edição ao tema da vaidade e ao desejo da transformação docorpo. Na reportagem destacaram-se casos de implantes, próteses, cirurgias e usode substâncias para aumentar a massa muscular ou diminuir o peso. Histórias comoessas acontecem todos os dias na academias, nos clubes e nos espaços de cuidadoe devoção ao físico que se encontram espalhados pelas cidades.

O desejo de construir um corpo belo e forte não é novo na humanidade,novas sim são as tecnologias que existem hoje para que aconteça essa construção.Anabolizantes, esteróides, suplementos alimentares, técnicas cirúrgicas de corre-ção ou extração de gordura: são infinitas as formas de arquitetar a beleza. Muitasdelas, porém, oferecem diversos riscos, desde a possibilidade da não mudança atéa morte.

Este trabalho tem o objetivo de entender como é possível que hoje se arris-que tanto pela beleza do corpo? Como o risco influi na decisão de construir para sium corpo perfeito Quais são as relações de produtos tecnocientíficos e corpo ecomo transformam-se e alteram nossas práticas cotidianas?

Esses questionamentos surgiram a partir da pesquisa realizada em 2002 e2004 que resultou na dissertação de mestrado intitulada Risco como estética, corpocomo espetáculo, que propõe o corpo do acrobata como uma construção estéticado risco. Também da vontade de situar, dentro da Educação Física, esse debate,pois é o uso de substâncias de risco aliado ao desejo de transformação do corpoque têm definido as práticas corporais, nosso objeto de estudo e atenção.

SOBRE A FIXIDEZ DO CORPO

Pensar o risco é geralmente pensar o movimento. Esse caracterizado comoação de qualquer tipo, envolvendo escolhas que possam gerar conseqüências parao indivíduo que as faz. Essa idéia vem agregada à busca desenfreada pelo novo,trazida pelo modelo capitalista na modernidade tardia. O risco existe sob a pressãodas circunstâncias, na luta pela vida, ambicionando uma maior duração de qualqueruma das fontes de prazer: do tempo, da adrenalina, da queda, da vertigem, dolucro. O maior sucesso está sempre colado ao maior risco: quanto maior a mano-bra, o movimento, maior o que se pode ganhar ou perder.

141Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

A vertigem que nos atrai para o perigo, para o nada, para a morte, para anovidade, pressupõe um corpo que caminha, que se move. O movimento sugereo contrário da fixidez, que seria prontamente traduzida por aquilo que não muda.Não é necessariamente verdadeira essa oposição. A fixidez é sempre momentâ-nea. “É um equilíbrio, ao mesmo tempo precário e perfeito” (Paz, 1988). Bastauma pequena mudança para que se desencadeie uma série de metamorfoses. Cadauma dessas, por sua vez, é um momento de fixidez no qual ocorre outra alteraçãono equilíbrio antes proposto. O risco também é uma alteração de equilíbrio. Elesugere uma lacuna entre a fixidez do cotidiano e a possibilidade de transformaçãode uma situação para melhor ou para pior. Existe sim a possibilidade da positividadedo risco, um exemplo disso é o risco-aventura, os saltos acrobatas ou outras práti-cas corporais que envolvam o uso de aparelhos de segurança para evitar algumacontecimento indesejado.

É a metáfora do devir que se caracteriza no risco, na vontade de tirar a fixidezdo corpo, de alterar, modificar, manipular, controlar e principalmente desejar. Devir,tornar-se aquilo que ainda não é, chegar a ser: hoje existe a idéia de escolher umcorpo.

DO RISCO

Risco é um conceito nômade que orienta múltiplas práticas e recebe conteú-dos diversos segundo os diferentes campos de saber que habita: a ciência política,a economia, a medicina, o direito, a engenharia, a ecologia e o corpo humano. Emsua face positiva, esse conceito supõe que tenhamos roubado o futuro das mãosdos deuses, remetendo-nos ao planejamento e à possibilidade de aventurarmo-nos cultural e cientificamente (Bernstein, 1997), ou seja, com segurança e controleno uso de tecnologias bastante complexas. Porém, sempre existiram práticas quefugiram desse controle, ou que existiram apesar dele. Histórias do corpo em risco,histórias do risco do corpo. Falar de risco de alterações do corpo por meio desubstâncias ou práticas especializadas é contar a história do corpo. É olhar para ahistória por meio dele e antes de tudo problematizar uma prática corporal, umfazer do corpo que envolve não só sentidos para quem escolhe, mas também paraquem consome as várias substâncias oferecidas para essas práticas. Nesse casoespecificamente o corpo serve de suporte e de metáfora para o risco.

O risco, por sua vez, é entendido como um perigo ou ameaça objetiva queé inevitavelmente mediado por processos culturais, históricos e sociais e não podeser conhecido com o isolamento dos mesmos. Mas é uma objetividade elaborada,um produto da construção de uma forma de governo de corpos e de configuração

142 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

da realidade1. O risco passa a ser entendido como estética da existência, é ele oorganizador da experiência da vida contemporânea em domínios variados.

RISCO COMO LINGUAGEM

Algumas coisas antes consideradas arriscadas, hoje não são mais; ao mesmotempo novos riscos surgem, a cada amanhecer, para o ser humano. O significadoda palavra risco mudou: atualmente entrou para a esfera econômica e política, sen-do enfraquecida na sua primeira relação com cálculos técnicos e probabilidades2.Existem muitas versões para a origem da palavra risco. Como discutido por Spink(2001) o primeiro registro da palavra é do século XIV, em castelhano (riesgo), po-rém ainda não possuía a conotação de perigo. Os estudos etimológicos da palavrarisco sugerem que ela tenha origem em resecare (cortar), utilizada para descrevergeografias “cortantes” relacionadas às viagens marinhas, como penhascos submersosque cortavam os navios. Nessa época a navegação era de grande importância paraas atividades comerciais. Também, nesse momento surge o conceito de possibilida-de, ou segundo Spink (2001) a cosmovisão emergente de pensar o futuro comopassível de controle. Risco passou a significar a probabilidade de um evento ocorrerou não, combinado com a magnitude das perdas e ganhos envolvidos na açãorealizada, associada, inicialmente, ao comércio marítimo e a necessidade de seguropara navios e mercadorias. O mar era desconhecido e perigoso e a probabilidadede perder cargas, pessoas (reis, rainhas) era grande e arruinadora.

Desde então o conceito risco fica impregnado de ambigüidade: entre possí-vel e provável e entre positividade e negatividade. Essa indeterminação possibilitaentender risco relacionado aos conceitos de sorte, fortuna, azar, chance que tam-bém expressam o sentido de incerteza sobre resultados esperados.

A concepção de termos como azar e perigo serviram para contextualizar osurgimento da teoria da probabilidade. Pascal e Fermat deram a resolução sobrecomo dividir as apostas quando se interrompe um jogo, que se trata do início daanálise sistematizada de probabilidades.

Bernstein (1997) sugere que a probabilidade surge com um duplo significa-do: a raiz latina é uma combinação de probare (testar, provar ou aprovar) e ilis(capacidade de ser). Para Galileu probabilidade era “quanto do que nos diziam po-deríamos aprovar”. Já na concepção mais moderna de Leibniz (apud Bernstein,

1. Idéia de governamentalidade introduzida por Foucault (1999).

2. Para entender melhor a mudança de definições e dos discursos do risco ver Spink, M. J. Os contornosdo risco na modernidade reflexiva: considerações a partir da psicologia social. Spink (2000a).

143Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

1997), significava “quanta credibilidade poderíamos atribuir às evidências”. Hojeestá relacionada a uma técnica matemática que indica as freqüências dos eventospassados para calcular a probabilidade de ocorrência futura.

A partir da associação o conceito de risco à economia e à política no séculoXIX, os homens aprenderam a ter aversão a ele, pois supuseram que deveríamosfazer as nossas escolhas de acordo com um cálculo. Também o sentido da palavraazar influenciou a progressiva negatividade do risco, ficando esse termo associado auma forma de disciplinariazação do corpo social e, posteriormente, de cada indiví-duo (Spink, 2001).

A idéia de risco originalmente era neutra: uma probabilidade de perdas eganhos. O surgimento da teoria da probabilidade no século XVII transforma-a embase do pensamento científico essencializando a natureza da evidência, do conhe-cimento, da autoridade e da lógica (Douglas, 1992). Cada processo e atividadetinham sua probabilidade de sucesso ou fracasso. Essa idéia influenciou o pensa-mento no mundo moderno.

Como a política e a cultura foram fortemente influenciadas pela ciência epela filosofia, e o pensamento dessas estava influenciado pela probabilidade e idéiade risco, esse conceito rapidamente migrou para esses campos, transformando emperigo. Este termo é aplicado em diferentes contextos que incorporam as diferen-tes ordens morais, unindo aos riscos pessoais as conseqüências dos produtosglobalizados, da ciência e da tecnologia. A linguagem dos riscos configura-se comoum produto da organização da sociedade moderna, associada à aspiração ao con-trole do futuro.

A palavra risco tornou-se um termo forense, utilizado como recurso jurídicopara decisões de guerras, de invasões, de investimentos, de licenças e de outrasesferas dos governos. É por essa lógica desenvolvida por Mary Douglas, que secompreende que risco hoje é entendido como qualquer ação política. Uma vezque ele significa perigo, levar em consideração os perigos envolvidos em açõespolíticas é bastante prudente. Antigamente risco estava associado à possibilidade deperder ou de ganhar; hoje está diretamente ligado à possibilidade de perder. Atual-mente é uma forma de olhar para o futuro e prever o que pode dar errado ou quaissão os perigos que possivelmente encontraremos à frente. Risco é uma forma denegociar ou de colonizar o porvir (Beck, 1998). Eventos que ainda não acontece-ram influenciam fortemente o nosso presente.

O futuro que pode ser colonizado por meio da análise dos riscos traz consi-go a idéia de perigos e ameaças a serem conhecidas e pensadas: quanto maior aameaça, ou como ela é socialmente construída e definida, maior a mudança realiza-da para a prevenção daquele mal no futuro. Novamente volto ao argumento polí-

144 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

tico do risco e baseio-me em Beck (1993) para dizer: quanto mais tentamos colo-nizar o futuro, mais ele tem surpresas a nos oferecer.

Firmam-se como termos-chaves na linguagem dos riscos: os perigos, chances,ganhos, perdas e incertezas que desencadeiam o controle desses riscos como umalinguagem social formatada. Essa linguagem social associou-se ao mundo financeiro,às relações entre profissionais de saúde e seus pacientes e ao mundo dos esportesde aventura, ou das profissões de perigo (como os bombeiros). Segundo Spink,desde que o risco tornou-se objeto de gestão, expressa-se de formas diferentesquando usado em contextos distintos (Spink, 2000, p. 19).

Ainda, segundo a mesma autora, a noção discursiva de risco hoje está rela-cionada a duas tradições: a primeira referente a crescente necessidade de governarpopulações e a segunda herda a positividade da aventura (Spink, 2001).

A primeira noção deriva da necessidade do governo de populações e trazreferências às medidas coletivas destinadas a gerenciar relações espaciais, ou a dis-tribuição das pessoas nos espaços físicos e sociais. Também refere-se ao processode disciplinarização, no qual o próprio corpo é alvo do controle, sendo a educação,especialmente na instituição escolar, a estratégia responsável por ensinar procedi-mentos corretos para os cuidados do corpo, com a higiene, que começa no movi-mento higienista do final do século XIX (Soares, 1994). À saúde pública cabe asestratégias de prevenção de doenças infectocontagiosas, passando pela higiene dolar até a da moral. Mais tarde no século XX, com o aumento da expectativa de vidae da melhoria das condições sociais, a difusão das doenças crônicas, ou dos grandesmales relacionados às práticas como o fumo e o sexo sem preservativo, são defini-dos novos padrões de controles relacionados ao estilo de vida de cada um.

A segunda caracterização, refere-se ao risco como aventura na qual suaspráticas são necessárias para obtenção de ganhos. “Correr riscos”, em todos ossentidos, aparece como forma contemporânea de ser: coragem, adrenalina, medo,movimento. A aventura passa a ser envolvida por aparelhos de segurança, equipa-mentos específicos e constante monitoramento. O ingresso nesse tipo de modali-dade de risco mantém a tradição do fortalecimento do caráter, ou do mito doherói. Nesse sentido o risco é desejado.

A concepção moderna do risco traz a vontade de controle do futuro e daracionalidade humana. Essa noção passa por dois estágios: do cálculo estatístico eda incerteza manufaturada. Por essa concepção entende-se as formas de riscoinescapáveis da vida moderna: todos estamos encarando o desconhecido e riscossuportáveis. Risco se torna outra palavra para “ninguém sabe”. Não podemos esco-lher mais se queremos ou não correr riscos, vivemos com eles, todos os dias.Dessa forma, calcular e geri-los passa a ser um grande negócio e preocupação. Por

145Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

outro lado, a incerteza manufaturada significa que a fonte do maior e novo risco quecorremos pode trazer-nos o benefício do conhecimento. Os experimentos cientí-ficos com o corpo constituem um bom exemplo de incerteza manufaturada. Ele éo cenário no qual muitos riscos podem atuar, e é de grande preocupação do ho-mem pós-moderno o controle de sua saúde e dos riscos de vida que males aocorpo podem causar.

A ciência, assim como a política, tomou o conceito de risco como base paraseu discurso e tornou-se autoridade para falar do que é ou não seguro para nóshumanos. Ela por sua vez apoia-se num uso de riscos para futuros muito distantesde nós, riscos que influenciarão nossos netos, nossos bisnetos. Por exemplo, aclonagem de seres-humanos, o advento da inteligência artificial. Somos obrigados aoptar agora para riscos prováveis em cem, duzentos anos.

A incerteza do presente faz-nos desejar o futuro. As desigualdades sociais, asujeira do planeta, a destruição da natureza, a possibilidade de guerras arrasadoras, ofim da água, o esgotamento do petróleo. São forças que convivem diariamente coma subjetividade humana no século XXI e transformam seus hábitos, seus sonhos, suasformas de cultura. Mudam as ameaças, mudam os medos, mudam os riscos.

O ESTUDO DOS RISCOS DO CORPO

O estudo científico do risco adquire maior expressividade a partir da década de1950 e por isso formam-se conjuntos distintos de repertórios em diferentes áreas deconhecimento: o cálculo de riscos, sua percepção, sua gestão ou gerenciamento esua comunicação (Spink, 2001). Cada uma dessas abordagens inclui um conjunto detécnicas que por sua vez agrega outros repertórios. Por exemplo, o cálculo de riscostraz a quantificação de efeitos adversos, estimativa de probabilidade, magnitude dasconseqüências. A percepção de riscos envolve a relação entre as pessoas e o que elesrepresentam ou não, os comportamentos e ainda a avaliação de novas tecnologias. Agestão dos riscos engloba os seguros, a lei de responsabilização por danos, interven-ção governamental direta e auto-regulação (Menegon, 2003).

O advento das novas tecnologias e o acúmulo de incertezas, complexidadese transparências do corpo levam-nos a pensar que o futuro é uma responsabilidadehumana. O ser humano é o único agenciador do tempo, fundamentado por tecnologiase conhecimentos científicos.

Na área da saúde, o corpo pode ser minuciosamente transparente e translú-cido, visível em sua interioridade orgânica. Novas tecnologias médicas e científicas,objetos cada vez menores (as nanotecnologias) e mais eficazes são capazes deexplorar esse espaço fluido, antes cheio de segredos.

146 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

Cada vez mais o corpo torna-se uma combinação de próteses, enxertos,metais e outros tantos artefatos que modificam sua estrutura química, física e, so-bretudo, estética.

A ciência trabalha para a construção de corpos perfeitos, alinhados, músculo amúsculo, esticados ruga a ruga e controlados quilo a quilo. A tirania do body building(Vaz apud Soares, 1998) invade nossa alimentação, escolhas diárias, metabolismo eaté nossa sexualidade. As descobertas sobre o corpo são acompanhadas por novasdúvidas a seu respeito; nos tornamos cada vez mais alertas aos sinais emitidos por ele,sensíveis a perceber seu funcionamento e as suas transformações.

Nosso corpo não é mais nosso, transformou-se em imagens. Essas nos co-locam diante da valorização do risco no esporte, mercado financeiro, trabalho eespetáculo. Existe aí um crescimento da nossa necessidade de proteção, em espe-cial, da saúde e da integridade do corpo. Há um estímulo ao risco por meio dafragilização do corpo. Mais que nunca, pensamos a realidade em termos de riscos.Vivemos a nos perguntar qual o risco em fumar, em comer carne, em praticar esseou aquele esporte e assistir a um ou outro espetáculo. O corpo é pensado e atra-vessado por diferentes tecnologias. Ele tornou-se virtual, como na idéia de PiéreLévy (1996), “no final das contas, as biotecnologias nos fazem considerar as espé-cies (principalmente a humana) num continuum biológico virtual muito mais vasto eainda inexplorado” (p. 27).

A virtualização corpórea marca uma nova etapa de relação com o corpo. Ossistemas de realidade virtual nos mostram, mais que as imagens, uma presença,parcial, em muitos casos total, dos corpos. Essa virtualização não nos pode tirar aidéia de ação corporal. O que muda nessa nova configuração é o espaço e o tem-po. O corpo virtual é desterritorializado e, por isso, é multiplicado sem limites econtornos. “O corpo abandona o chão e seus pontos de apoio, escala os fluxos edesliza nas interfaces, serve-se apenas de linhas de fuga, se vetoriza” (idem, p. 32).

Nesse sentido, a virtualidade do corpo emprega uma potência de reinvençãocom ou por causa de objetos, forças e mundo. Como nos diz Deleuze (2002) aofalar de Espinosa “não sabemos o que pode um corpo”. Essa declaração de igno-rância chega a ser uma provocação, principalmente por tratar-se do corpo virtualque podemos enxergar das mais diversas formas. Trata-se de dizer das materialida-des indizíveis do corpo.

A imagem da vaidade: a tecnociência na sociedade de risco

O risco é hoje um importante gestor de corpos. Gerenciá-los e prever ofuturo foi exatamente o que determinou a entrada da sociedade no período mo-derno, pois os riscos sempre estiveram presentes na história da humanidade. Vive-

147Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

mos então numa “sociedade dos riscos”, segundo Beck (1993). Risco é, portanto,uma construção estética. Essa tem como pressuposto a configuração de uma socie-dade de riscos, recortada pela sensibilidade humana pelo ponto de vista da verti-gem e da incerteza. Essa estética permite a criação de manifestações do risco comoespetáculo, como ingrediente para vendagem de corpos e vidas, transformando asformas de beleza, potência e humanidades.

A opção pelo foco na estética do risco no corpo surge, nesta pesquisa, a partirde algumas leituras sobre posições teórico-epistemológicas: inspirada principalmentepelo mito do cyborg proposto por Donna Haraway (1991). Ele é um organismocibernético, uma criatura de ficção científica e de realidade social. É o corpo transfor-mado em matéria híbrida: uma mistura de organismo e máquina. Esse novo corpoune-se à nova configuração da realidade transformada pela reprodução cibernética ereestruturada pela influência da mediação eletrônica repleta de riscos.

O mito do cyborg é mencionado como forma de superar algumas das dico-tomias do corpo: homem-máquina, humano-objeto, gênero e sexo. O cyborg é aimagem do híbrido, ou seja, um corpo que comporta elementos, tempos e ordensdiversas. Essa imagem é comparada à figura dos monstros, que podem, segundo aautora, viver como num sonho de um mundo sem os dualismos (idem). O cyborgé uma figura de borda, termo emprestado da ficção científica, e depois misturou-se“a outros tipos de configurações nos quais o mais importante não era o elementomaquínico, mas o informacional” (Galindo, 2003). Essa afirmação relaciona-se como tema tratado neste artigo: o corpo arquitetado, construído que assume uma di-versidade de riscos para ser belo. O importante para esse corpo não é o compo-nente que ele terá que é externo, maquínico, objetal, e sim o que ele passa ainformar tendo em sua carne esses objetos. O corpo arquitetado coloca-se emrisco principalmente quando é indagado em relação ao tempo: podemos perguntarna ação de “construção” do corpo, o que? Onde? Quanto? E temos as respostasrapidamente. Porém em que momento perguntamos quando? A discussão sobreriscos muda. Quando o risco entra em contato com o tempo sabemos que haverátransformações que podem ser definitivas ou não, mas não sabemos, em relaçãoao corpo, que transformações são estas.

As biotecnologias, que são as tecnologias que influenciam direta ou indireta-mente na direção e formação da vida, são incertas e nos colocam num presente noqual não se pode prever o futuro. A possibilidade de erro em relação a uma inter-venção no corpo é irreversível e supõe uma transformação não desejada. Um exem-plo é a aplicação de botox : uma injeção sintética da toxina botulínica que paralisa amusculatura, utilizada na epiderme de mulheres e homens (sim, os homens tam-bém desejam construir um corpo belo) para diminuir rugas e enrijecer a pele. Se

148 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

mal aplicado, o botox pode gerar manchas, protuberâncias no rosto, e mais grave-mente: alterar completamente a expressão facial de alguém. Ou como publicadono jornal Folha de S. Paulo :

A aplicação inadequada de Botox pode não apenas eliminar as rugas mas tambémimpedir o paciente de fechar os olhos. Como conseqüência direta, surge —ou é agrava-do— o distúrbio do olho seco, que causa desconfortos como ardor, presença de muco,coceira, vermelhidão e sensação de corpo estranho na vista. O alerta é do oftalmologistaAndré Borba, coordenador do Ambulatório de Cirurgia Plástica Ocular, Órbita e Vias La-crimais do Hospital das Clínicas (SP) (Folha Online, 1 jul. 2004).

Esses tipos de riscos passam desapercebidos nas milhares de aplicações diá-rias de botox que movimenta R$100 milhões em um ano no Brasil4. O corpo atra-vessado de tecnologias coloca o cyborg como a figura central do desejo humano,mesmo que não consciente.

Os riscos das tecnologias da vaidade fazem-nos pensar num corpo artificial,falso, endurecido pelas impossibilidades de ser o que ele “naturalmente” seria. Orisco envolvido nessa construção passa a ser cotidiano, mesclado na forma de ima-gens, produtos, propagandas, celebridades e até na moda. É um objeto definido,dependente do contexto que é criado e determinado, identificado. A noção derisco não se baseia somente nas experiências científicas ou nas opiniões médicas,ela é construída culturalmente, de modo que em cada contexto social destaca-seum risco e ignora-se outro. Existe então uma construção ideológica que bloqueiaou estimula a eleição do que se espera ganhar ou perder.

No caso do corpo, e especificamente do brasileiro, é esperado perder as gor-duras, rugas, celulites e isso é colocado como prioridade em detrimento ao risco quese corre ao passar por uma intervenção qualquer de modificação corporal.

Essa relação de perdas e ganhos envolvida na busca pela vaidade atropelanossa prudência em relação ao corpo. Essa, em seu sentido estrito, é uma virtude.Não podemos analisá-la sem pensar numa rede de valores e crenças e tratá-lacomo uma forma operativa, ou seja, como o valor nos ajuda a atuar com maior oumenor consciência frente às situações da vida. A prudência é tão discreta que passainadvertida aos nossos olhos. É certo que admiramos as pessoas que tomam deci-sões acertadas na vida, que dão a impressão de jamais equivocar-se, entendem oque está adiante e adiantam-se com êxito em tudo que propõem, conservando acalma em situações difíceis. Esses são os seres prudentes.

4. Folha Online. Caderno Equilíbrio. Dia 03/06/2004.

149Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

PRUDÊNCIA E ÉTICA CORPORAL

A prudência é o valor que ajuda a reflexão e a consideração dos efeitosproduzidos por nossas ações e palavras. A falta dela, ou a impulsividade trará sem-pre conseqüências em todos os níveis. A prudência é aquela virtude que preza pelaintegridade e salvaguarda as aspirações humanas.

A prudência está aliada ao risco, pois implica em escolha, em direcionamentode ação e ponderação do futuro. É a partir dela, dessa virtude moral, que possibilita-mos as formas de ação que constroem o mundo. Ela é o meio para atingir-se o bemhumano, qual seja, e a auto-realização dos sujeitos (naturalmente, “prudência”, aqui,no sentido clássico de prudentia – a recta ratio agibilium).

A prudência aparece, desse modo, como razão prática e sabedoria concernenteàs coisas humanas. É a partir dessa virtude que podemos aplicar o conhecimento darealidade à realização do bem. Ela orienta o homem para o ser, para a perfeição do“fazer a verdade” (Jo 3, 21apud Comte-Sponville, 1995) por meio da variedade queconstitui o mundo. Todas as demais virtudes têm na prudência a matriz.

Mas o que é considerado o bem numa sociedade de risco? Quem é conside-rado prudente no meio da estimulação para ações de risco ou consideradas impru-dentes?

As imprudências podem ser traduzidas em dois tipos de vícios: os manifesta-mente contrários à prudência e aqueles que, embora também oponham-se à ela,guardam certa semelhança. O primeiro tipo inclui os vícios que se afastam dasregras que tornam o agir de acordo com a razão. São vícios que têm como matrizprincipal a luxúria, ou seja, o fato de que a ponderação que caberia à tomada dedecisão e à ação é corrompida pela busca de prazer. Assim, a ação é movida peloímpeto da vontade ou da paixão. Ainda sobre as imprudências, encontramos anegligência que constitui um oposto à prudência devido à falta de solicitude dosujeito que empreende a ação. Trata-se de uma falta de eleição dos meiosconducentes ao fim, o que é peça fundamental e decisiva do agir prudente.

O segundo tipo diz respeito aos vícios que, embora sejam opostos à pru-dência, guardam semelhança com ela por usarem da razão. Esse tipo de vício nasceda avareza, ou seja, da desmedida aspiração por toda a espécie de posse. O primei-ro deles é chamado de “prudência da carne” e traduz-se na aplicação de esforçoscom vistas a um fim que não está ligado ao bem humano: ao contrário, é o bem dacarne que é eleito como fim último da vida.

Ainda no que se refere a esse tipo de vício que apresenta certa semelhançacom a prudência, temos uma outra espécie ainda mais sutil que é a solicitude porcoisas temporais e não por bens espirituais. De três formas esse vício pode apre-

150 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

sentar-se: se tomarmos as coisas temporais como o fim último de nossas ações, senossos esforços forem demasiadamente exagerados ou se tivermos temor exage-rado de não alcançar nossos objetivos.

A imprudência parece, assim, caracterizar a vida do homem moderno.Como proposto por santo Tomás de Aquino (Lauand, 1997) essas várias

visões da imprudência ressaltam a acentuada relação que elas guardam com o mundoconcreto. Assim, a prudência do agir tem como fator condicionante a própria rea-lidade e mesmo uma ação aparentemente prudente pode, em certas circunstân-cias, traduzir-se em imprudência. A prudência constrói-se, nesse sentido, em cadaato humano, não residindo em um mundo das abstrações ideais.

Para Deleuze et al. (1995) a prudência é a condição para que todas as outrasvirtudes aconteçam. Ela nos permite deliberar o que é bom ou ruim para o nossocorpo. Parecida com o bom senso, a prudência age como meio ou instrumentopara que as outras virtudes, como a coragem, se destaquem. É a prudência quedetermina o que é necessário escolher e o que é preciso evitar. Ela nos ajudaria aresgatar uma ética corporal (Sant’Anna, 2001).

É preciso criar uma ética corporal, um novo estatuto no qual as novas tecno-logias, o tráfico de órgãos, a clonagem as transformações genéticas não se transfor-mem em mercadorias de corpos pobres para ricos. Há que se trocar sua brutalida-de material por uma sutileza. E ela vem justamente da atenção do que se passaentre o corpo e seus encontros.

O homem não existe senão por meio das formas corporais pelas quais ele éinserido no mundo. “Alterando essas formas, alteramos também a definição, sem-pre em construção de sua humanidade” (Couto, 2002).

Risks of beauty and desire of an arquitected body

ABSTRACT: This work intend to understand risk in the process of construction of the beautiful,perfect and desired body. This desire of constructing the perfect and strong body is not new forhumanity, but the technologies involved in this process are. All kinds of techniques are usedfor this architecture. Many of them provide a number of risks, from the possibility of notchanging at all until death. This reflections are made necessary in Physical Education area,where the professionals work every day with people and their body. How is it possiblethat people take so much a risk to be beautiful? How does the risk influence the decisionof constructing the perfect body? Which are the relations between technologies and body?KEY-WORDS: Body; risk; beauty.

151Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

Riesgos de belleza y deseo de un cuerpo moldeado

RESUMEN: Este trabajo busca entender el riesgo en el proceso de construcción del cuerpobello, perfecto y deseado. Este deseo de construir un cuerpo fuerte y seguro no es nuevoen la humanidad, aunque sí son nuevas las tecnologías que existen actualmente para queocurra esa construcción. Anabolizantes, esteroides, suplementos alimenticios, técnicasquirúrgicas de corrección o extracción de grasa: las formas de diseñar la belleza son infini-tas. Sin embargo, muchas de ellas poseen diversos riesgos, desde la probabilidad de queno haya cambios hasta incluso la muerte. Esta reflexión es necesaria dentro de la EducaciónFísica, en la cual profesionales conviven diariamente con la búsqueda desenfrenada delcuerpo ideal en gimnasios, clubes, parques y hasta en la escuela. ¿Cómo es posible arriesgarsetanto por la belleza del cuerpo hoy en día? ¿Cómo el riesgo influye en la decisión deconstruir para sí un cuerpo perfecto? ¿Cuáles son las relaciones entre productostecnocientíficos y cómo éstos se transforman y alteran nuestras prácticas cotidianas?PALABRAS CLAVE: Cuerpo; riesgo; belleza.

REFERÊNCIAS

BECK, U. Risk society : towards a new modernity. Cambridge, UK: PolityPress, 1993.(Risikogesellschaft. Frankfut: Suhrkamp, 1986)

. Politics of risk society. In: Franklin, J. (Org.). The politics of risk society.Cambridge: Politic Press, 1998.

BERNSTEIN, R. Contra os deuses – a notável história do risco. São Paulo: Objetiva, 1997.

COMTE-SPONVILLE, A. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes,1995.

COUTO, E. O corpo polifônico. São Paulo: Educ, 2002 (Projeto História, v. 25).

DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

.; GUATTARI, F. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, v. 2, 1995.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DOUGLAS, M. Risk and blame. London: Routledge, 1992.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

GALINDO, D. Sobre cyborgues como figuras de borada. Athenea Digital, n. 4, outono 2003.

HARAWAY, D. A cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the latecentury. In: Simians, cyborgs and women : the reinvention of nature. New York: twentiethRoutledge, 1991, p. 149-181.

152 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 139-152, set. 2005

LAUAND, L. J. Provérbios e educação moral : a filosofia de Tomás de Aquino e a pedagogiado Mathal. São Paulo: Hottopos, 1997.

LÉVY, P. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

LOON, J. Virtual risks in an age of cybernetic reproduction. In: ADAM,B.; BECK, U. ; LOON,J. V. (Eds.). The risk society and beyond critical issues for social theory. Sage Publications.London, 2000.

MENEGON, V. M. A linguagem dos riscos na reprodução humana assistida. Tese (Doutora-do em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2003.

PAZ, O. O monogramático. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

SANT’ANNA, D. (Org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.

. Corpos de passagem. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

SOARES, C. Educação física : raízes européias e Brasil. Campinas: Autores Associados, 1994.

. (Org.). Corpo e história. Campinas: Autores Associados, 1998a.

. Imagens da educação no corpo. Campinas: Autores Associados, 1998b.

. Imagens da retidão: a ginástica e a educação do corpo. In: CARVALHO, Y.M.; RUBIO, K. (Orgs.). Educação física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2001.

SPINK, M. J. Os contornos do risco na modernidade reflexiva: contribuições da psicologiasocial. In: Psicologia e sociedade, São Paulo, v. 12, n.1, 2000a.

.; LIMA, H. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação.In: . (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. São Paulo:Cortez, 2000b.

. Trópico dos discursos sobre riscos: risco aventura como metáfora da mo-dernidade tardia. Cadernos de saúde pública, 2001.

SPINK, P. Pesquisa de campo e psicologia social: uma perspectiva pós-construcionista.In:Psicologia e sociedade, 15(2): 18-42, 2003.

Recebido: 3 fev. 2005Aprovado: 27 mar. 2005

Endereço para correspondênciaRua Piauí, 1080/11

Higienópolis – SPCEP 01241-000

153Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

O DESEMPENHO DO HOMEM-MASSANAS PRÁTICAS CORPORAIS ESPORTIVAS:

UMA RELAÇÃO DE AMOR E DE ÓDIO

Prof. Dr. ROGÉRIO RODRIGUESDocente da Universidade Federal de Itajubá.

e-mail: [email protected]

RESUMO

Na modernidade, o corpo apresenta-se como objeto de fascínio e cuidado. Entretanto,compreendemos que ele é causa de afeto e também de repulsa. Essa relação objetalapresenta-se de maneira ambivalente, ou seja, em nossas práticas corporais estabelece-mos com o corpo uma relação de “amor” e “ódio”. Isso resulta em atuações em que oscuidados com o corpo apresentam-se paradoxalmente, ou seja, todo físico desejado ésimultaneamente o anúncio de um corpo que não é desejado e passível de ser “destruído”.Nas práticas corporais esportivas podemos indicar como se apresenta essa relação de“amoródio” entre o “corpo desejado” e o “corpo imperfeito”.

PALAVRAS-CHAVES: Educação; educação e psicanálise; educação do corpo; educaçãofísica.

154 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

É senso comum que nós, os “modernos”, possuímos um certo fascínio pelas“coisas do corpo” (Descartes, 1974a, p. 144). Entretanto, o que seria esse fascínio?Apresenta-se como um conjunto de cuidados com as “coisas do corpo”, ou seja,temos regimes de condutas centradas em determinadas práticas corporais com asmais diversas finalidades. Tudo parece indicar que a modernidade centra-se emdiversos discursos sobre como devemos proceder na relação corpórea, discursosesses que podemos denominar “dietas corporais”. Entretanto, o que elas seriam?Podemos compreendê-las como um conjunto de condutas com a finalidade deproduzir determinados efeitos, mais propriamente, a construção de “corpos dese-jados”. Contudo, isso não esclarece as razões de como os sujeitos escolhem o tipode corpo que tanto desejam possuir e que devem exaustivamente construir em simesmos.

Podemos partir do senso comum e afirmar que são os sujeitos que esco-lhem o tipo de “corpo desejado”. Em contraposição a essa afirmação, a nossa hipó-tese é de que, efetivamente, são os corpos que escolhem os sujeitos. Como ocor-re essa inversão entre o sujeito e o objeto?

Esse paradoxo na escolha do objeto não se apresenta como uma hipóteseinédita, pois desde os estudos de Karl Marx sobre o fetiche da mercadoria já pode-mos encontrar os mecanismos que operam na inversão entre o sujeito e a coisa, nocaso específico do nosso estudo, entre o sujeito e o “corpo coisa”. Para Marx:

À primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial, imediatamente compreensível.Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho, cheia de sutilezas metafísicas e deargúcias teológicas. [...] A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as caracte-rísticas sociais do trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais epropriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relaçãosocial entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la comorelação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Atravésdessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, compropriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. [...] Uma relação social definida,estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas(Marx, p. 79-81, s./d.).

Portanto, o resultado dessa inversão na escolha do objeto, na qual o “corpocoisa” submete o sujeito, somente poderá ser compreendido no momento emque analisamos o corpo reificado. Nessa relação, o “corpo coisa” assume vida pró-pria e idependente. Assim, ele opera como um “objeto de desejo” do qual o indiví-duo não se consegue desviar e que determina as devidas ordenações e condiçõesde funcionamento do “ser”. Portanto, o sujeito submete-se aos ditames do corpocomo se esse tivesse o pleno comando sobre as condições de vida e uso sobre o

155Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

seu “ser corpo”. Isso acaba por constituir-se num modo de ser que causa no sujeitouma atração estranha que o impulsiona para um tipo de corpo que o obriga asubmeter-se a uma “dieta corporal” com o objetivo de satisfazer em si mesmo aprodução do próprio corpo. Desse modo, podemos afirmar que são esses “corposdesejados” que determinam as regras de funcionamento e sistematizam as práticasentre as “coisas do corpo” e os sujeitos.

O sujeito desconhece as determinações da atração e da escolha de um de-terminado tipo corpóreo, pois seu fascínio está diretamente relacionado àquilo quepodemos denominar como identificações. Ele possui atração por um corpo, noqual encontra as condições de reconhecer a “si mesmo”. No caso corporal, pode-mos afirmar que tais identificações são determinantes não somente nas produçõesde corpos, como também, são responsáveis pelas produções de subjetividades,mais propriamente, de sujeitos. Na produção de identificações, as relações de su-bordinação que se estabelecem são entre coisas, ou seja, tanto o sujeito como ocorpo, ambos estão coisificados. Isso somente se torna possível pelo fato de que otratamento do “corpo coisa” permite uma atuação efetiva para transformá-lo e moldá-lo conforme a satisfação que se busca “em ser”. Já o “sujeito coisa” é aquele quenão se permite viver as indeterminações da vida e exige que tudo seja regrado,inclusive o seu modo de ser sujeito. Temos assim, nessas relações entre corpos esujeitos uma dupla produção, ou seja, o “sujeito coisa” e o “corpo coisa” – umasubordinação direta da vida em relação ao objeto. Nessas subordinações entre osujeito e o corpo coisificado, basicamente, podem-se apresentar dois tipos de sen-timentos, ou seja, de um lado uma atração e fascínio descontrolado e do outro ladouma repulsa e ódio intenso.

Podemos dizer que somos atraídos por um corpo que tanto desejamos e,simultaneamente, possuímos uma completa repulsa por um que, também, tantoodiamos. Entretanto, como seria possível existir para com as “coisas do corpo”sentimentos tão opostos entre si? Torna-se possível a manifestação desse sentimen-to a partir das relações que estabelecemos com os objetos, ou seja, podemos, porum lado, sentir amor por um determinado corpo cobiçado e, por outro lado, po-demos manifestar um ódio pela forma corporal indesejada. Para Freud,

os instintos dos homens pertencem a duas categorias: aqueles que tendem a conservar ea unir – o denominamos “erótico”, completamente no sentido de Eros do Symposionplatônico, o “sexual”, ampliando deliberadamente o conceito popular da sexualidade eaqueles instintos que tendem a destruir e a matar. Estes, compreendemos como “instintosde agressão” ou “de destruição”. [...]. Ora, parece que estes instintos quase nunca podematuar isoladamente, pois sempre aparecem ligados – como dizemos “fusionados” – comcerto componente originário do outro, que modifica seu fim e que em certas circunstân-

156 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

cias é o requisito necessário para que este fim seja alcançado. Assim, o instinto de conser-vação, por exemplo, sem dúvida é de índole erótica, mas é preciso dispor da agressãopara efetuar o seu propósito. Analogamente, o instinto do amor objetal necessita de umcomplemento do instinto de possessão para poder apoderar-se do seu objeto (Freud,1996, p. 3211-3212, tradução livre).

Nessa ambivalência de sentimentos em relação ao mesmo objeto, mais pro-priamente, de “instintos fusionados”, os cuidados corporais apresentam-se comosendo um paradoxo, ou seja, todo corpo desejado é simultaneamente o anúnciode um indesejado. Portanto, as manifestações desses sentimentos caracterizam-sepelo fato de os sujeitos terem que lidar, simultaneamente, com o desejo e a repulsapor um determinado tipo de corpo (amor/ódio).

O amor pelo corpo poderá ser constatado no esforço que os sujeitos fazempara mantê-lo ou conquistá-lo e o ódio manifestar-se-á por todas as técnicas paraafastar-se dele ou destruí-lo. Assim sendo, todos os procedimentos que os sujeitosfazem para cuidar das “coisas do corpo” é algo que em si desdobra-se no “amoródio”,ou seja, todo ato para manter ou construir um determinado tipo de corpo é em si ummodo de anular e destruir outro. Pouco importa se o sujeito realiza uma coisa (amor)ou outra (ódio), pois, em ambos os casos, seja qual for, o fascínio e a repulsa determi-nam os “cuidados com o corpo” e esses serão da mesma intensidade, seja paraconservá-lo ou destruí-lo.

Não podemos deixar de considerar que para muitos o corpo “em si” é porta-dor de algo que não é desejado: a morte. As queixas são de diversas ordens e as maisimprováveis possíveis, coisa do tipo: “não gosto do meu nariz”, “meu cabelo é finodemais”, “como posso perder a barriga”, “preciso emagrecer”, “preciso engordar”,“gostaria de ser mais alto”, enfim, não teríamos como elencar todos os tipos de queixaem relação a ele. Contudo, todas elas anunciam a destruição do corpo, pois: “nariz”,“cabelo”, “barriga”, passam a ser objeto de enfoque para uma transformação, paranão dizer, destruição para que em seu lugar possa surgir o “novo corpo”.

Todas as queixas em relação ao corpo podem ser unificadas por um desejoúnico que deve ser alcançado ou mantido a qualquer custo: a satisfação de encon-trar nele o pleno controle sobre a vida. Para tanto, todo um regime de condutasdeve ser rigorosamente seguido para mantê-lo nas medidas exatas, um modo deiludir-se no governo da vida. Entretanto, o grande “mal estar” que o corpo podepromover é que ele se encontra em permanente degeneração (Freud, 1996), istoé, por mais que desejemos controlá-lo vivo ele não deixa de ser potencialmenteum corpo que poderá “ser” morto. Portanto, por mais que almejemos construirum determinado tipo de corpo, em última instância, ele rompe a submissão e coma morte impõe-se como verdade sua destruição.

157Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

Sobre esse “desgoverno” nada queremos saber. Entretanto, sentimos um“amoródio” que se desdobra em nosso fascínio e repulsa pelas “coisas do corpo”que transparecem nos discursos dos sujeitos como algo perturbador, pois na maio-ria das vezes não se torna possível elaborar qual seria o verdadeiro “mal-estar” queo corpo produz em cada sujeito. Em grande parte, definimos o nosso gosto oudesgosto por ele a partir daquilo que se pode denominar como sendo o “corpoideal”. Nesse ponto, já se apresenta um problema para o sujeito encontrar a satis-fação ou a frustração, ou seja, o que seria um “corpo ideal”?

Vamos analisar essa noção no campo dos esportes, pois nele ocorre todoum investimento com o objetivo de instituir um corpo que apresente resultadospositivos. Sendo assim, compreendemos que no mundo moderno as práticas cor-porais esportivizadas são um campo próprio para essa análise, uma vez que, no usodo tempo livre, os cuidados corpóreos são mais intensos e estão centrados empráticas com o objetivo de uma imediata construção e destruição de corpos com ameta de obter-se um maior rendimento possível em seu uso técnico esportivizado.

Partimos do pressuposto de que para se pensar o “corpo ideal” devemos,primeiramente, analisar as relações que os sujeitos podem e desejam manter comseu próprio corpo. Na análise do “homem-massa” é que podemos encontrar ogosto por determinadas práticas esportivas em toda a sua plenitude, ou seja, essasapresentam-se como algo natural. Elas são assumidas como as preferidas para ouso técnico do corpo, pois mostram-se como o resultado dos “apetites do homem-massa” (Ortega y Gasset, 2002, p. 14). Esses “apetites” seriam uma vontade de“fazer coisas” que impulsionariam o sujeito ao ato e isso seria algo em grande parteincontrolável e que se impõe sobre o indivíduo. Nesse sentido, o sujeito inseridono interior de uma prática de esporte ou na massa possui a mesma metodologia defuncionamento, mais propriamente, o mesmo “regime de condutas”. Praticamenteem todos os lugares os “homens-massa” desejam e fazem as mesmas atividadesesportivas, pois encontram-se submetidos aos seus próprios “apetites”.

A aglomeração na prática do esporte faz com que se facilitem as formaçõesde massas, o que resulta na constituição mais eficiente do “homem-massa”. Naspráticas esportivizadas podemos encontrar um “regime de condutas” que em seuinterior define a afinidade coletiva de todos os que são pertencentes ao agrupa-mento, ou seja, o deleite pelas práticas competitivas de movimento corporal hu-mano tende a ser disseminado em maior número de adeptos proporcionando ascondições necessárias para sua aglomeração em torno do elemento comum atodos, o desejo pelo esporte. Podemos pensar que o gosto por um determinadoesporte é um modo de dissimularmos a nossa relação de “amoródio” pelas coisasdo corpo.

158 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

Os adeptos do esporte vão se aglomerar em lugares em que possam encon-trar um outro que compartilhe de seus sentimentos de gosto por uma determinadatécnica corporal. Diríamos também que o esporte é algo que unifica a todos nomodo de usufruir o uso do tempo livre com os objetivos de produzir, reproduzir, eaté destruir corpos e, porque não dizer, subjetividades. Isso pode ser algo reveladorno sentido da compreensão dos motivos pelos quais o “homem-massa” gosta tantode fazer determinados esportes.

O fato de os sujeitos compartilharem os mesmos gostos e realizarem demodo padronizado os mesmos gestos é algo pertinente às massas, pois em seuinterior reina a igualdade e ela deve ser absoluta e indiscutível. Tal “igualdade jamaisé questionada pela própria massa. Ela é de tão fundamental importância que sepoderia definir o estado da massa como um estado de igualdade absoluta” (Cannetti,1995, p. 28). Não podemos deixar de afirmar que fazer os movimentos corporaisque instituem a igualdade em “ser” é, também, um modo de instituir o gosto pordeterminados gestos que em si são os construtores e destruidores de corpos. En-tretanto, apesar de não ser algo propriamente do campo esportivo não podemosdeixar de citar a reação a esse tipo de educação física que adestra para realizar osmesmo movimentos, ou seja, podemos possuir um certo estranhamento em rela-ção a determinados tipos de uso do corpo, como, por exemplo, no caso do treina-mento europeu, quando demonstrado pela primeira vez por Takashima,

o reformador militar japonês, a alguns samurais de alta patente em 1841, provocou escár-nio; o mestre da artilharia disse que o espetáculo de “homens levantando e manipulandosuas armas todos ao mesmo tempo e com o mesmo movimento parecia que estavam par-ticipando de alguma brincadeira de criança”. Era a reação de guerreiros que lutavam corpoa corpo, para quem lutar era um ato de auto-expressão pelo qual um homem exibia nãoapenas sua coragem, mas também sua individualidade (Keegan, 1995, p. 26).

Podemos compreender que todo tipo de treinamento de uso corporal podeter determinados objetivos, mesmo militares. Portanto, no que se refere ao “ho-mem-massa”, o adestramento do corpo poderá ser tanto para a preparação para aguerra quanto para algum tipo de prática esportiva. O que importa sinalizar é quecorpos são construídos e, simultaneamente, destruídos na formação do sujeito “ho-mem-massa”. Em ambos os casos (guerra/esporte) os sujeitos são submetidos aum conjunto de disciplinas que os preparam para o rigor físico de suas disputas.Sendo assim, na satisfação do “homem-massa”, na submissão ao adestramentofísico das práticas corporais constitui-se o “conteúdo manifesto” da relação de “amo-ródio” pelas coisas do corpo.

O gosto desse homem pelos treinamentos e gestos esportivos repetitivos

159Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

deve ser encontrado em função de algum tipo de prazer obtido nesses tipos depráticas (Freud, 1996). De um modo geral, não podemos deixar de sinalizar que noesporte pode estar submerso o desejo de destruição, ou seja, o sujeito pode en-contrar as condições para uma regressão ao estágio predatório em “ser”. Nessaregressão

que se caracteriza pelas manifestações do temperamento predatório devem ser estasmanifestações todas classificadas sob o título de “proezas”. São em partes simples expres-sões irrefletidas de uma atitude de ferocidade emulativa, em parte atividadesdeliberadamente iniciadas no intuito de obter renome de proeza. [...] Mediante a habilida-de, os esportes se transformam gradualmente, de uma base de combate hostil, em astúciae chicana, sem que seja possível traçar-se uma linha divisória em qualquer ponto. A baseda inclinação para o esporte é uma constituição espiritual arcaica – a posse de uma inclina-ção predatória emulativa em potência relativamente alta. Uma forte propensão para aproeza temerária e para infligir danos é especialmente pronunciada naqueles costumes deuso coloquial especialmente denominados de esportividade (Veblen, 1983, p. 119).

Mesmo considerando que no campo esportivo o “homem-massa” possaretratar a sua agressividade, o que podemos dizer exatamente sobre a constituiçãodo sujeito como o “homem-massa”? Diríamos que esse homem

seria aquele que é feito de pressa, montado simplesmente sobre poucas e pobres abstra-ções [...]. Esse homem-massa é o homem previamente esvaziado de sua própria história,sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “interna-cionais”. Não é um homem, é apenas uma forma de homem constituída por meros idolafori; carece de um “dentro”, de uma intimidade própria, inexorável e inalienável, de um euque não se possa revogar. Eis por que está sempre disposto a fingir que é alguma coisa(Ortega y Gasset, 2002, p. 14).

Esse seria o ponto primordial para analisamos as relações que o “homem-massa” estabelece com o “esporte”, ou seja, podemos compreender o campo dosesportes como um lugar para que os homens possam fingir que são alguma coisa,preferencialmente, um atleta, mais precisamente, um sujeito que construiu/des-truiu um corpo vencedor. Diríamos que o “esporte” proporciona ao sujeito umailusão de que é possível “ser”, pois é muito comum escutarmos afirmações do tipo:“eu sou corredor”, “eu sou nadador”, “eu sou jogador”, enfim, temos uma porçãode “eu” definido como alguma coisa perante a prática de determinados movimen-tos corporais esportivizados. Portanto, no campo do esporte o sujeito encontra ascondições para realizar o desejo por um determinado tipo corpóreo (amor). Entre-tanto, qual foi o destino do ódio para com o corpo que “não é”? Diríamos que todaaversão para com ele pode estar sendo recalcado, pois nada queremos saber sobre

160 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

o mal estar do que “não é”. Fazemos isso para não termos que lidar com o corpoque nos promove um estranhamento. Entretanto, o sintoma é o retorno dorecalcado. No caso do ódio para com o corpo o seu retorno poderá ser realizadoem atuações que causam estranhamento pela falta de cuidado para com as “coisasdo corpo”.

No treinamento corporal esportivo institui-se uma prática de sofrimento eesse somente pode ser submetido a tal regime de condutas pelo fato de constituir-se num modo de manifestar o ódio pelo o corpo que “não é” o “vencedor”. Portan-to, treinar é destruir a forma corporal que se odeia para que em seu lugar possasurgir um “corpo ideal”, mais propriamente, o vencedor. Contudo, por quais moti-vos somos direcionados a “desejar” este ou aquele tipo corpo ou o mesmo senti-mento por um determinado desempenho de movimento corporal humano?

Podemos pensar que os motivos que levam os sujeitos a definirem sua sub-missão a um determinado tipo de corpo sejam o fato de que alguns movimentosnos esportes ou algumas imagens de corpo proporcionam as condições necessáriaspara que possamos “não ser”. Paradoxalmente, o esporte também passa a instituirum modo para que o sujeito identifique-se, ou seja, proporciona as condições ne-cessárias para que ele encontre algo para que possa reconhecer-se enquanto “ser”,no caso específico, o sujeito esportivo.

O que mais desejamos é podermos “ser” e evitar o nosso pleno desapareci-mento enquanto sujeitos no interior das massas. Entretanto, isso é algo contraditó-rio, pois “não ser” nelas é algo que promove um certo fascínio nos sujeitos, masnão é por acaso que as massas formam-se tão rapidamente. Nelas, a igualdadeentre os indivíduos é um momento no qual se pode facilmente dissolver na diferen-ciação de tantos “eus”. Um modo de evitar o desespero e sofrimento de ter quelidar com o “amoródio” em relação às coisas do corpo.

Nas práticas corporais esportivizadas, há sujeitos que por determinados de-sempenhos podem diferenciar-se da massa e passam a ser o “eu” de destaqueesportivo. Essa evidência é proporcionada pelo critério de uma alta performanceno movimento corporal e na eficácia dos resultados obtidos que o indivíduo possaalcançar, sendo que é somente considerada a vitória como o resultado propria-mente pertinente. Podemos ter aqui um processo de identificação entre o “ho-mem-massa” e o melhor praticante de determinados esportes. As marcas de pro-dutos patrocinam aquelas equipes ou aqueles indivíduos que obtiveram os melhoresresultados no campo esportivo. Isso não ocorre por acaso, pois se sabe que o“homem-massa” não deixará de prestar atenção nesse tipo de comportamento dealguma forma consagrado por todos os que fazem parte da massa, portanto, reco-nhecido e passível de ser imitado. Para tanto, o “homem-massa” tem que reconhe-

161Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

cer o movimento corporal esportivizado como sendo algo próprio e, principalmen-te, necessário de ser imitado. Em termos maussianos, temos aqui algo que pode-mos considerar como uma aprendizagem de Educação Física que ocorre, primor-dialmente, entre os sujeitos, por um processo denominado como imitaçãoprestigiosa. Para Marcel Mauss “a criança como o adulto, imita atos que obtiveramêxito e que ela viu serem bem sucedidos em pessoas em quem confia e que têmautoridade sobre ela. O ato impõe-se de fora, do alto, ainda que seja um ato exclu-sivamente biológico e concernente ao corpo” (1974, p. 215). Além da imitaçãoprestigiosa, o sujeito dispõe de um outro fator que interfere diretamente na definiçãodo movimento corporal esportivizado, qual seja, a observação do uso “técnico docorpo” é algo que “em si” possui um processo de alteração no transcorrer do tempo.Portanto,

É fato constante e notório que no campo do esforço físico e desportivo atingem-sehoje performances que superam grandemente as do passado. Não basta que se admirecada uma delas e se reconheça o recorde que bateram, mas é preciso que se tomeconsciência da impressão que sua freqüência nos deixa, convencendo-nos de que o orga-nismo humano de nosso tempo possui capacidade superior às conhecidas anteriormente(Ortega y Gasset, 2002, p. 71).

São essas proezas humanas de exibir suas capacidades de superação queimpelem o “homem-massa” ao “desespero de si”. O “desespero” seria a crença deque é sempre possível superar a “si mesmo”. O único modo que o “homem-massa” pode satisfazer seu desejo de superar-se constantemente é dominar um“saber” próprio sobre seu “ser”. Assim sendo, tem-se uma “vontade de saber”sobre os seus próprios princípios de funcionamento para que possa domesticar-see adestrar o corpo ampliando cada vez mais os resultados de seu uso – a produçãode corpos ditos perfeitos.

Tendo como base a tese maussiana da “imitação prestigiosa” os limites da “su-peração de si” seriam estabelecidos pelo sofisticado uso das técnicas corporais. Nessecaso, teríamos ora “progressos” e ora “regressos” no âmbito das performances do usodas “técnicas corporais”, pois nem sempre conseguimos imitá-las plenamente. Mes-mo que os sujeitos pudessem educar/imitar/adestrar o corpo para reproduzir comexatidão a técnica corporal eficaz e eficiente, como também, inovarem as táticas epreparos psicológicos, o “homem/máquina” teria sempre seus limites estabelecidos.

Essa falta “em ser” o “corpo desejado” somente pode ser ilusoriamente preen-chida com a aquisição de mercadorias que adornam o corpo e, isso, de certa formaacaba por proporcionar ao sujeito a satisfação de possuir uma forma corporal quaseperfeita. O “homem-massa”, por algum motivo, faz a dedução de que possa existir

162 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

alguma relação entre os produtos usados pelo “atleta campeão” e os excelentes resul-tados obtidos nos campeonatos esportivos. A identificação do “homem-massa” quenos interessa analisar é com o “produto corpo”. Assim sendo, podemos compreen-der que o fascínio por determinadas “técnicas de uso de corpo” é na verdade a iden-tificação do “homem-massa” com um determinado tipo de “corpo produto”. Ele pas-sa a ser alvo de consumo, basicamente, para uma dupla finalidade, identificar-se como melhor corpo no sentido de encontrar um porto seguro para o seu próprio “eu” ea crença de que ele pode de alguma forma proporcionar as condições favoráveis paraum melhor desempenho nas práticas corporais esportivizadas.

Uma pergunta fascina o “homem-massa”: como deve proceder para produ-zir o “corpo ideal”? O “homem-massa” não sabe como obtê-lo e busca desenfrea-damente as receitas de como deve proceder nesse “regime de dieta corporal”.Entretanto, uma coisa sabe, como atuação sintomática deve exercitar-se ao pontode suportar o máximo de dor, pois somente assim é que estará efetivamente des-truindo e construindo o seu próprio corpo. Ele possui um sentimento de que so-mente com muita dor e sofrimento é que poderá obter a formação de um determi-nado tipo de corpo que lhe possa proporcionar os resultados esperados.

Esse modo, destrutivo e, paradoxalmente, construtivo de usar o corpo éampliado de forma indefinida até o momento em que sofisticados laboratórios de-senvolvem toda uma tecnologia de conhecimento “químico/mecânico”. Nessemomento, o olhar sobre o “corpo manipulável” passa a ser de outro foco de aten-ção dos treinadores, ou seja, da prática exaustiva de exercícios físicos para a aplicaçãocontrolada de substâncias químicas, mais propriamente, de toda uma farmacologiaque tem como objetivo a ampliação do funcionamento da capacidade muscular.Assim, podemos observar um corte na história do corpo, ou seja, as relações de“amoródio” deixam de ser algo exclusivamente resultado de uma extenuante práti-ca física dolorida e passa para uma fase da aplicação química – metamorfosear ocorpo sem dor –, mas que uma vez bem aplicada não deixará de determinar adestruição/construção de “corpos perfeitos”. Entretanto, não podemos deixar dedestacar que toda a produção desse “corpo desejado” está engajada em seu pró-prio interior o “corpo imperfeito”. Seria como a cada tentativa do sujeito em alcan-çar a construção do “desejado” não deixaria de produzir, repetitivamente, o “im-perfeito”. Para evitar essas desavenças o sujeito investe na constante metamorfosedo corpo com o intuito de poder escapar da “queda” de um estado do “em ser”corporal que lhe desaponta, para não dizer, proporciona a frustração narcisista.

A partir dessa pressuposição da luta do sujeito “em ser” o “corpo desejado”podemos analisar os eventos esportivos, como por exemplo, os jogos olímpicos. Oespaço desse evento – o da apresentação plena dos “corpos desejados” – torna-se

163Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

também o local para a realização dos jogos da paraolimpíada – local para apresen-tação dos “corpos imperfeitos” Não podemos deixar de lembrar na palavra “parao-limpíada” que o elemento de composição “para” é de etimologia grega e significa“ao lado de” (Ferreira, s./d., p. 1041). Portanto, a “olimpíada” e a “paraolimpíada”,representam, simbolicamente, no real a nossa ambivalência de “amoródio” pelocorpo. Nesses eventos, ocorrem de um lado certos exageros do amor pelo corpoque nunca falha e, por outro lado, temos um corpo que “em si” é a falta, sobre aqual nada queremos saber acerca da repulsa por ele. Já que no âmbito do simbóliconão encontramos um modo de amenizar o conflito de “amoródio”, o real – parao-limpíada – acaba sendo, de certo modo, a maneira que tentamos lidar com o “mal-estar” com as “coisas do corpo” – uma tentativa de amenizar o nosso ódio por umcorpo que por algum motivo falha/falta “em ser”. Um modo de atenuar os fantas-mas como o corpo que não corresponde ao objeto de desejo, pois apesar desermos potencialmente “corpos imperfeitos”, eles nunca deixarão de correr, nadar,saltar, lutar, enfim, com um certo esforço eles sempre acabam fazendo tudo – mes-mo de modo adaptado – como aqueles que são os “corpos desejados”.

The man-mass performance in the practices of traininghuman body: a relation of “love and hatred”

ABSTRACT:In modernity, the body is presented as an object of allure and care. However, weunderstand that the same body it’s also an object of repulse. Therefore, in this objectiverelation with the body we present an ambivalent relation in physical practices that is of “love”and of “hatred”. This results in performances where the cares with the body are presented asbeing a paradox, that is, simultaneously the “desired body” is announced as a body that it’snot desired and that can “be destroyed”. In the practices of sports, for determining the “thebody care”, we can indicate the relation of “love and hatred” between the “desired body” andthe “imperfect body”.KEY-WORDS: Education; education and psychoanalysis; body education; physical education.

El desempeño del hombre-masa en el ejercicio de lasprácticas deportivas corporales: una relación de “amor y ódio”

RESUMEN: En las prácticas corporales deportivas, podemos observar como existe una relaciónde “amor-odio” entre el “cuerpo deseado” y el “cuerpo imperfecto”. En la modernidad, elcuerpo se presenta como objeto de encanto y cuidado. Sin embargo, entendemos que elmismo cuerpo que tanto se cuida, es también objeto de repulsión. Esto termina generandosituaciones donde los cuidados del cuerpo se presentan como siendo una paradoja, o

164 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

sea, todo “ cuerpo deseado” es simultáneamente el aviso de un cuerpo que no se deseay que puede “ser destruido”. En la práctica deportiva corporal, que determina “los cuida-dos del cuerpo”, podemos observar como se presenta la relación de “amor-odio” entre“ el cuerpo deseado” y el “cuerpo imperfecto”.PALABRAS-CLAVES: Educación; educación y sicoanálisis; educación del cuerpo; educaciónfísica.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W.; MAX, Horkheimer. Notas e esboços. In: ________. Dialética doesclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

BIANCARELLI, Aureliano. Pele artificial pode revolucionar cirurgia plástica. Folha de S. Paulo,Especial/Corpo, 14 mar. 1999, p. 10.

CANETTI, Elias. Massa e poder. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

DA REPORTAGEM LOCAL. O esporte como negócio. Folha de S. Paulo, Especial/Gênesedo esporte, 27 ago. 2000, p. 14.

DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: AbrilCultural, 1974a. (coleção Os pensadores).

. As paixões da alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo:Abril Cultural, 1974b. (coleção Os pensadores).

. Tratado del hombre. Trad. Guillermo Quintás. Madrid: Editora Nacional, 1980.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 1ª ed. Rio deJaneiro: Editora Nova Fronteira, s./d.

FREUD, Sigmund. Mas alla del principio del placer. 1919-1920 [1920]. In: ________. Obrascompletas Sigmund Freud. v. III. Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid: BibliotecaNueva, 1996.

. El malestar en la cultura. 1929 [1930]. In: ________. Obras completas SigmundFreud. v. III. Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1996.

. El porque de la guerra. 1932 [1933]. In: ________. Obras completas SigmundFreud. v. III. Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1996.

. Psicologia de las masas y analisis del yo. 1920-1921 [1921]. In: ________.Obras completas Sigmund Freud. v. III. Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid:Biblioteca Nueva, 1996.

165Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 153-165, set. 2005

. Lo siniestro. 1919. In: ________. Obras completas Sigmund Freud. v. III.Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1996.

KEEGAN, John. Uma história da guerra. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia dasLetras, 1995.

LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. Trad. Pedro Tamen.São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MARX, Karl. O capital : crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produçãodo capital. v. I. Trad. Reginaldo Sant’ Anna. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, s. d.

MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: ________. Sociologia e antropologia. Trad. MauroW. B. de Almeida. São Paulo: EPU/Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 1974. 2 v.

ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo:Martins Fontes, 2002.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera Ribeiro eLucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

SOKOLOVE, Michael. Muito além dos limites. Carta capital : o doping sem controle. SãoPaulo, ano X, n. 278, p. 34, 18 fev. 2004.

VEBLEN, Thorstein. Sobrevivências modernas da proeza. In: ________. A teoria da classeociosa: um estudo econômico das instituições. Trad. Olívia Krähenbühl. São Paulo: AbrilCultural, 1983.

Recebido:18 jan. 2005Aprovado: 12 abr. 2005

Endereço para correspondênciaUniversidade Federal de Itajubá

Av. BPS, 1303Caixa postal 50

Itajubá – MGCEP 37500-176

167Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

A OBSESSÃO MASCULINA PELO CORPO:MALHADO, FORTE E SARADO

Dra. MARIA ELISA CAPUTO [email protected]

Prof. da Faculdade de Educação Física e Desportos (Faefid)Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Dra. em Educação pela Universidade de São Paulo (USP-SP)Líder do grupo de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico eTecnológico (CNPq) e projeto de iniciação científica: Corpo e diversidade

ANTÔNIO PAULO ANDRÉ DE CASTROGraduando em Educação Física da UFJF. Bolsista de Iniciação Científica

GISELE GOMESGraduanda em Educação Física da UFJF. Bolsista de Iniciação Científica

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo analisar o discurso sobre as representações de corposmasculinos, freqüentadores de academias de ginástica. Mais do que nunca, os homensestão lidando com a mesma e intensa pressão que as mulheres enfrentam há séculos paraadquirir a forma física considerada “perfeita”. Do halterofilismo compulsivo até o uso deesteróides, um número cada vez maior de homens procura satisfazer os padrões que seexigem para os músculos, a pele e os cabelos, o que transcende a linha do interesse normalpara tornar-se obsessão patológica, o que impõe um risco à saúde tão perigoso e mortalquanto os representados pelos distúrbios da alimentação. Esse influi forte e decisivamentenas tendências supermusculares e nos transtornos dismórfico-corporais.

PALAVRAS CHAVES: Educação física; imagem corporal; corpo.

168 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA

Nos últimos anos, a sociedade vem passando por inúmeras modificações, omundo parece estar mudado, os valores alterados, as pessoas diferentes, o estilode vida parece outro. Nesse início do século XXI, fala-se muito em terceiro milê-nio, new age, nova consciência, globalização, qualidade de vida, ecologia, ciberné-tica. Paralelamente, associamos aos costumes, cunhados pela cultura no decorrerdos séculos, as novas descobertas e vivências variadas no campo da sexualidade, dareligião, da moral, da educação, da vida social.

Nas sociedades capitalistas, nas quais as relações definem-se pela produçãoe pelo lucro, o padrão ideal de homem segue os valores determinantes. Nessaperspectiva, o corpo humano é concebido da mesma forma que o corpo social.Essa concepção funcionalista de sociedade faz com que a mesma seja vista, metafo-ricamente, como um corpo estruturado com órgãos, no qual cada um deles de-sempenha uma função social muito precisa.

O corpo é um conjunto complexo que guarda sentimentos, sensações, pensa-mentos os mais diversos, armazena e desvela uma trajetória de vida, conferindo àhistória consistência e densidade. Percebemos que o homem vem demonstrando terdificuldades em “ver e lidar” claramente e sem preconceitos com seu próprio corpo.

O corpo, entendido como conjunto matéria/espírito, não se situa no mundode forma autônoma. Segundo Rodrigues (1975, p. 45):

a cultura dita normas em relação ao corpo; normas a que o indivíduo tenderá, à custa decastigos e recompensas, a se conformar, até o ponto de estes padrões de comportamentose lhe apresentarem como tão naturais quanto o desenvolvimento dos seres vivos.

Assim, a cultura determina aspectos do nosso corpo, tornando-se necessá-rio examinar os modos particulares de como isso processa-se em diferentes socie-dades, levando-se em conta também o papel das imagens sobre nossas percep-ções de corpo e os modos como a construção das identidades depende daconstrução das imagens do corpo.

No decorrer da história da humanidade, a forma como os homens e asmulheres trataram e continuam tratando o corpo revestiu-se e reveste-se de umaquase total irracionalidade. Percebe-se essa, numa certa padronização, estabelecidapor diferentes critérios em diversos momentos da história, assim, em todas as épo-cas, a sociedade determinou e privilegiou um tipo de corpo.

Seria utópico falar de uma sociedade cuja cultura não se inscreva sobre ocorpo, mas é urgente pensar em uma sociedade com padrões corporais flexíveis,que privilegie o corpo-real, corpo-possível, e que esse possa transitar de maneiraconfortável e com vontade pela vida.

169Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

Nosso relacionamento com o corpo é o ponto focal, fulcral, nuclear, quepatenteia nosso “ser no mundo”. Percebe-se que há uma construção cultural docorpo, definida e colocada em prática, em virtude das especificidades culturais decada sociedade, na qual o conjunto de hábitos, costumes, crenças, tradições, quecaracterizam uma cultura, também refere-se ao corpo.

Este artigo visa apresentar e discutir questões relativas ao corpo, àcorporeidade e à diversidade cultural, assuntos estes, comuns às áreas de educa-ção, da saúde e da educação física, entendendo essa última como uma prática socialpedagógica.

O corpo é do ponto de vista científico a instância fundamental para articularconceitos centrais e fornecer as bases para uma teoria pedagógica. A corporeidadeconstitui instância básica de critérios para qualquer discurso pertinente sobre o su-jeito e a consciência histórica. Por isso, o ético-político e as opções solidárias preci-sam ser definidos a partir da corporeidade.

O eixo dessa investigação consiste em pesquisar as representações de corpoe examinar as relações implícitas dentro de um sistema cultural mais abrangente.Para tanto, objetivamos:

• Estudar e refletir à luz da literatura contemporânea, quais são os corposque somos e que nos disseram que temos, inculcados e ensinados, feitosde linguagens, símbolos e imagens, impostas pela mídia;

• Investigar de que maneira a sociedade, a mídia, os meios de comunicaçãoescrita, falada e televisiva nos influenciam para querermos ter tal ou qualcorpo;

• Identificar junto ao público masculino, o discurso sobre o corpo nas aca-demias de ginástica de Juiz de Fora-MG .

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Procurar entender as representações sobre “corporeidade”, “imagem cor-poral” e “motricidade”, nesse atual momento histórico, vem exigindo muito cuida-do e compreensão de alguns axiomas que, até onde temos observado, pertencemaos atributos labirínticos do símbolo. Ou seja, torna-se imperativo acrescentar àanálise do comportamento humano, a interpretação semiótica, dramatúrgica e fe-nomenológica.

Examinadas no contexto da ação simbólica, essas investigações devem serestudadas como transmissoras de códigos culturais que denunciam as percep-ções humanas, bem como a forma de compreensão sobre esse corpo em nosso

170 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

sistema cultural. Esta investigação busca fornecer, essencialmente, uma base fe-cunda para uma incursão teórico-crítica no domínio do conhecimento sobre ocorpo masculino.

É inegável a crescente importância que, nas sociedades modernas, atribui-sea alguns “valores” entre os quais poder, beleza, juventude, riqueza, que estratificamos seres humanos de acordo com princípios pré-estabelecidos culturalmente.

A busca frenética do corpo ideal pelo ser humano, produzido pela mídia edesfilado em revistas, filmes e novelas tem acarretado uma falta de bom senso ecritério, em que o importante é estar dentro dos padrões determinados, indepen-dente das conseqüências. A beleza é buscada e comprada a qualquer preço e aqualquer custo. Assmann (1995, p. 72-73) nos questiona sobre:

quantos corpos, sucessivos e simultâneos, já tivemos? Não é verdade que, num sentidomuito real, temos imensa dificuldade em ser nosso corpo porque já nos inculcaram de milmaneiras que temos tal ou qual corpo? Ou seja, mais do que ser a sua verdadeira e realsubstância, nossos corpos são corpos que nos disseram que temos, corpos inculcados eensinados1,feitos de linguagens, símbolos e imagens. As culturas, as ideologias e as organi-zações sempre inventam um corpo humano adequado e conforme (grifos do autor).

A exemplo, nos dias de hoje, Assmann (1995, p. 73) acrescenta que o corpoparece ajustável ao que precisa e chama a atenção também para os produzidos pelamídia e pelos fãs, sonhados no imaginário das novelas.

[...] o corpo moderno ganhou características inéditas: deixou para trás a rigidez de con-cepções antigas e mais ou menos sacrais. Imaginemos quanta plasticidade, moldeabilidade,elasticidade e maleabilidade se requer para poder preencher as funções de corpo educável,microcosmo dessacralizado e sem mistério, força-de-trabalho ajustada e ajustável, corposestivadores, corpos-garços, corpos-executivos, corpo-capital-humano, corpo-relaçãomercantil, corpo de atleta, corpo escultural, corpo-fetiche, corpo sexo hiper genitalizado,corpos vilipendiados ou glorificados por sua forma ou cor etc. – até culminar no corpo,plenamente “valor de troca”, da engenharia genética e do mercado de órgãos.

Investindo política e economicamente no corpo, a sociedade estabelecea priori critérios de seleção das oportunidades e das pessoas a elas acessantes.

Vivemos a era das imagens e, nesse contexto, estamos experimentando umasaturação de signos no tocante ao corpo ideal. Nessa ciranda de signos, ele fica redu-zido a escravo de si mesmo, o corpo real é desprezado e descartado em prol dodesejado e imaginado. Essa valorização visual impõe-se de forma drástica e direta.

1. Sobre corpos ensinados, ler Denis, (1980).

171Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

Observa-se que a cultura sempre ditou padrões e normas em relação aocorpo. Porém, nos dias atuais, essa situação tem manifestado-se de maneira intensae sem limites. Na realidade vivemos uma ditadura do corpo perfeito, ideal, sobre ocorpo que é realmente possível e viável em uma sociedade com uma miscigenaçãotão variada. A esse respeito, Bruhns (1989, p. 43) acrescenta:

Vivemos dentro de uma tradição cultural na qual nosso corpo sofre uma série derepressões através de preconceitos, normas sociais etc., sofrendo com isso uma rigidezpostural.

A cultura dita normas em relação ao corpo.A mais simples observação em torno de nós poderá demonstrar que o corpo huma-

no é afetado pela religião, pela profissão, pelo grupo familiar, pela classe social e outrosintervenientes sociais e culturais.

Ao corpo se aplicam também crenças e sentimentos que estejam na base da nossavida social.

Podemos então, pôr em evidência a ligação entre a industrialização, o desenvolvi-mento do lazer e o tipo de atividades corporais praticado na nossa civilização atual.

A antropologia que se preocupa em buscar como cada cultura molda a personalidadedos indivíduos, consciente ou incoscientemente, através de suas instituições e modelosque lhes propõe, deve nos interessar muito no plano das nossas preocupações educativas.

Acreditava-se freqüentemente que as mulheres estivessem muito mais insatis-feitas com sua aparência que os homens, mas, na realidade, observa-se que muitoshomens acham-se tão infelizes em relação a ela quanto as mulheres. Além disso, os ho-mens não estão apenas preocupados ou insatisfeitos com sua imagem corporal; po-dem também possuir uma visão distorcida, percebendo a si mesmos diferentes (egeralmente piores) do que realmente são. Existe assim, não raro, um círculo viciosoestabelecido: quanto mais uma pessoa concentra-se em sua aparência corporal, piortende a sentir-se a respeito do que vê – a obsessão alimenta o descontentamento.

A neurose do corpo perfeito constitui, nos dias atuais, uma verdadeira “epi-demia” que assola sociedades industrializadas e desenvolvidas acometendo sobre-tudo, adolescentes e adultos jovens. Quais serão os sintomas dessa epidemia emo-cional? De um modo geral, o pensamento falho e doentio das pessoas portadorasdessas patologias caracteriza-se por uma obsessão pela perfeição corporal. Na rea-lidade, trata-se de uma “epidemia de culto ao corpo”.

Essa “epidemia” multiplica-se numa população patologicamente preocupadacom a perfeição do corpo e que está sendo afetada por alterações psíquicas carac-terizadas por distúrbios na representação pessoal da imagem corporal.

Entenda-se por imagem corporal a forma como um indivíduo percebe-se esente-se em relação ao seu próprio corpo. De acordo com Teves (2002, p. 2):

172 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

uma imagem corporal remete, de algum modo, ao sentido das imagens corporais quecirculam na comunidade e se constroem a partir dos diversos relacionamentos que ali seestabelecem, seja pela proximidade, seja pela distância emocional que aquela imagemproporciona. Ou seja, em qualquer grupo existe sempre uma imagem social do corpo, epor isso mesmo provoca uma tendência à identificação do sujeito com outros integrantesdo grupo, instituindo-se assim imagens corporais para seus membros.

Dentro dos parâmetros deste estudo, buscar entender as representaçõesde corpos masculinos freqüentadores de academias significa contar com a perplexi-dade, com o estranho, com o diferente em relação aos padrões previstos pelo mitoda atividade física e saúde. Significa procurar respostas a questões aparentementeóbvias, mas que, no entanto, são bastante complexas.

METODOLOGIA E ESTRATÉGIAS DE AÇÃO

Atualmente muito se tem discutido a respeito da tomada de decisão do pes-quisador em relação à abordagem metodológica a ser utilizada para o desenvolvi-mento do trabalho. De acordo com Chizzoti (1991, p. 81), “o pesquisador é umativo descobridor do significado das ações e das relações que se ocultam nas estru-turas sociais”.

O critério para seleção das fontes de dados implica, diretamente, a forma comoocorrerá a generalização dos conhecimentos obtidos. Dessa forma, o pesquisador de-verá expor e validar os meios e técnicas adotadas, demonstrando cientificamente osdados colhidos e o conhecimento produzido. Ainda segundo Chizzotti (idem, p. 85),

a pesquisa é uma criação que mobiliza a acuidade inventiva do pesquisador, sua habilidadeartesanal e sua perspicácia para elaborar a metodologia adequada ao campo de pesquisa,aos problemas que ele enfrenta com as pessoas que participam da investigação.

Com essa pesquisa pretendemos analisar os discursos dos freqüentadoresde academias – homens com idades entre 18 e 30 anos, buscando compreenderquais são os sentidos que eles estão produzindo em suas falas sobre seus corpos ea prática de atividade física. Para realizarmos essas análises trabalhamos com o pen-samento de Orlandi que é orientado pela perspectiva européia, Escola Francesa deAnálise do Discurso (AD).

A análise do discurso concebe a linguagem como mediação necessária entreo homem e a realidade natural e social. Nas palavras de Orlandi (2000, p.15),

essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidadequanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. Otrabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana.

173Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

Dessa forma, todo discurso estabelece-se na relação com um anterior eindicando um posterior, não havendo discurso fechado em si mesmo, mas umprocesso discursivo que, ao ser recortado, pode ser analisado de formas diferentes.

Resumidamente podemos dizer que há relações de sentidos que se estabe-lecem entre o que um texto apresenta e aquilo que subtende-se, e entre as idéiasde outros textos. Essas relações de sentido atestam, para Orlandi (1993 p. 46), “aintertextualidade, isto é, a relação de um texto com o outro (existentes, possíveis,ou imaginários)”.

O corpus discursivo foi constituído a partir das discussões sobre corpo ediversidade e sobre as produções teóricas dos sujeitos desta pesquisa: dez homens,praticantes de atividades físicas com idades entre 18 e 30 anos – em diversas acade-mias de ginástica de Juiz de Fora – MG e de entrevistas com os mesmos.

Elas foram elaboradas durante reuniões do grupo de estudos e posteriormen-te submetidas à avaliação de cinco doutores em Educação Física da Faculdade deEducação Física e Desportos (Faefid) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),para validação do instrumento. Após validado, as entrevistas foram gravadas na ínte-gra e transcritas literalmente para posterior análise. Os textos permaneceram abertosàs análises constantes. O que temos como produto do estudo é a compreensão dosprocessos de produção de sentidos e de constituição dos sujeitos em suas posições.

Importa destacar que, nessa metodologia, segundo Orlandi (2000, p. 95) “osentido é história”. Daí a importância de nossa inserção ativa no nosso tempo,porque este é um tempo de história e, enquanto sujeitos que somos, estamosproduzindo em nossos discursos, ideologias, que podem apontar sentidos diferen-tes para a humanidade.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Mais do que denunciar o modo como nossa sociedade supervaloriza o cor-po belo, forte, novo e produtivo, gerando diversas formas de preconceito e dediscriminação praticadas pela sociedade moderna e, com toda certeza, pela socie-dade contemporânea, importa compreender a trama de relações e a correlação deforças que originaram e alimentaram, como ainda os fazem, as mais variadas formasde identificação e de tratamento do corpo.

A partir da revisão da literatura pertinente, observamos os mecanismos utilizadospela sociedade para lidar com o corpo e a diversidade, considerada, no muito das vezes,como desvio dos padrões de normalidade estabelecidos e como tal assumidos.

Após análise das entrevistas realizadas, acreditamos ser possível afirmar que noBrasil, em especial nas regiões Sul e Sudeste, é crescente a obsessão compulsiva pela

174 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

musculatura, o uso e abuso de ingestão de drogas e de esteróides anabolizantes, detatuagens no corpo como parte do ritual de iniciação de jovens que praticam musculaçãoe fisiculturismo. Falas como essa são recorrentes entre os jovens pesquisados:

Os adolescentes e os jovens buscam um corpo dos filmes, da Malhação, buscamessencialmente, chamar atenção. As pessoas querem ficar grandes para chamarem aten-ção, principalmente os homens. É a questão da força, do ser forte. O negócio é destacarno meio do grupo. E quando se é forte destaca-se e chama a atenção. E grande parte damolecada que começa a malhar agora para querer ficar forte, é para se destacar no grupode amigos, das pessoas que estão ao redor dele. E mais em relação ao público masculino,com certeza. Ele quer parecer forte em relação aos outros homens (D. F. 21 anos, estu-dante de Educação Física, fisiculturista) (grifos nossos).

Diante de relatos dessa natureza, foi relevante a análise das múltiplas lingua-gens para ter acesso ao imaginário daqueles jovens, utilizando, além das entrevistas,livros de fisiculturismo com imagens de desportistas, retratos de praticantes do es-porte e desenhos da figura humana, feitos pelos próprios rapazes.

De acordo com Teves (2002, p. 2):

A linguagem enquanto produção de sentidos, não só cristaliza sentidos mas tambémos transforma. Nos discursos estão sempre presentes as noções de sujeito e da situaçãoem que ele se encontra.

Essas noções, enquanto formações imaginárias, constituem as condições de produ-ção do discurso. Nele aparece a imagem que o locutor tem de seu lugar social e do lugarsocial do outro. A imagem que faz de si mesmo nessa relação é construída a partir dasuposição da imagem que o outro faz dele. Nesse jogo de representações se constituemas regras de projeção.

Ao analisarmos as entrevistas procuramos compreender os processos designificação a que aqueles jovens foram e têm sido submetidos ao longo de suasvivências. Notem esse discurso de um deles:

A pessoa que adquire o hábito da musculação, começa a ver resultados, começa aentrar mesmo naquela coisa de seguir uma dieta, seguir um diário de treinamento, umarotina, ela com certeza, vai continuar.

As pessoas que não se adaptam ao tipo de treinamento, à dieta, sai fora da musculação.Agora as pessoas que gostam da atividade física musculação, elas vão continuar para oresto da vida, porque quem ganha não quer perder [referindo-se à massa muscular] (M.O. F., 23 anos, praticante de musculação, grifos nossos).

A musculação, e mais freqüentemente o fisiculturismo, segundo os infor-mantes, exigem um ritual obsessivo a ser seguido sem questionamentos e determi-

175Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

nadas características de personalidade, para que o praticante seja aceito pelo grupoe consiga persistir no esporte, como pode ser observado nessa fala:

Acima de tudo a pessoa tem que ser disciplinada com as suas refeições, e com todoum diário de treinamento que precisa ser preparado com antecedência. Quando a gentevai malhar já vai pensando nos pesos que a gente vai pegar para chegar lá e pegar as cargastudo certinho;

Tem que ser uma pessoa corajosa, porque se ela não for corajosa ela não vai entrarnessa área de esteróides anabolizantes. Porque os riscos são certos, eles existem, a gentetem que saber que a longo prazo, a curto prazo, ele existe. É um risco calculado para ter“esse corpo”. Só que a gente tenta desviar dos riscos com os remédios de proteção eestudos empíricos que a gente tem notícia. Até hoje eu não conheço alguém que estejacom problema muito sério por causa de esteróides anabolizantes. Conheço bastante gen-te que toma já há bastante tempo e não sente nada. Souberam tomar, souberam protegero seu corpo e souberam dar o tempo necessário para limpar o organismo e poder estarentrando de novo com uma dosagem maior da droga (R. E. L., 28 anos, fisiculturista, grifosnossos).

Esses jovens olham-se constantemente no espelho e, apesar de musculo-sos, podem ver-se enfraquecidos ou distantes de seus ideais. A imagem que fazemde si mesmos é constituída a partir da suposição da imagem que o outro faz dele.Nesse jogo de representações constituem-se as regras de projeção. Pelas vias si-nuosas da linguagem em que metáforas e alegorias decifram códigos, faz-se impor-tante analisar a representação da imagem corporal desenhada por C. A. N., umjovem de 19 anos que morreu em Outubro de 2003, em Juiz de Fora, vítima doconsumo excessivo de anabolizantes e cuja representação da imagem corporal sur-ge como alguma coisa estranha: o corpo é exageradamente forte e o rosto retratauma fisionomia animal, os dentes em destaque, punhos cerrados, expressão deagressividade não-dita, o ocultado, o ainda indefinido. Essa imagem/representaçãotem seu fundamento no “transtorno dismórfico corporal”.

Essa foi uma constatação extremamente importante, na medida que vemosconfirmado o perfil desse jovem na música/rap de Gabriel – O pensador, “Retratode um Playboy”, parte II:

Porque eu luto Jiu-Jitsu mas é só por diversão(É isso aí meu “cumpadi” my brother, meu irmão)Se alguma coisa está na moda então eu faço tambémIgualzinho a mim eu conheço mais de cemSe eu faço tudo o que eles fazem então tudo bem.[...]

176 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

Faço só o que os outros fazem e acho isso legalArrumo brigas com a galera e acho sensacionalMe olho no espelho e me acho o tal[...]Sou Playboy, filhinho de papaiEu tenho um pitbull e imito o que ele faz[...]

Esse quadro parece, acentuar-se nos últimos vinte anos, quando passamos aser bombardeados com imagens de corpos “abastecidos” com esteróides, homenscom corpos extremamente musculosos. Os vemos na televisão, na publicidade enos filmes. Segundo Pope et al. (2000, p. 22), ver essas imagens quando se está empleno crescimento leva os adolescentes e homens jovens a desenvolver a crençade que assim é como um homem ideal deveria ver-se. Como conseqüência, pro-duz-se frustração e insegurança por não ver-se suficientemente bem.

Numa outra parte da música/rap de Gabriel – O pensador, citada anterior-mente, constatamos o quanto as representações desse corpo masculino beiram aonarcisismo e confirmam o distúrbio da imagem corporal:

Eu sou muito macho, pelo menos eu achoMacho não vacila, macho arrasaMacho não leva desaforo para casaMacho é isso, não brinca em serviçoMacho é robusto, macho é roliçoMacho é parrudo, macho é pescoçudoMacho é poderoso, macho é tudo!Macho é o que há! E eu gosto muito rapaz!Macho é lindo, macho é demais.[...]Aí é melhor trabalhar... os músculos né?Malhar é melhor do que mulher.

Ao analisarmos as entrevistas, juntamente com a letra da música, apreende-mos os sentidos relacionados à imagem corporal masculina, voltada para o grupo,“a tribo” do mesmo sexo, da mesma idade, como o discurso identificado nessapróxima entrevista:

As meninas em si, não gostam de homens muito fortes. Quando a gente conversa, asminhas amigas perguntam se quero ficar muito grande. Eu respondo que quero crescermais um pouco. Elas falam que ficar excessivamente grande. volumoso e definido, é muitofeio e elas não gostam. Mas, gostamos de cultuar e definir o corpo para sentirmos mais

177Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

fortes. Você já viu os filmes do Schwarzenegger? É isso que queremos. Um corpo esculpi-do e trabalhado (G. H., 23 anos, praticante de musculação, grifos nossos).

Fica evidente nessa e em muitas outras falas, o impacto das novelas, de pro-gramas de TV e dos vídeos musicais entre a população adolescente. Tudo isso influifortemente nessas tendências supermusculares e nos transtornos dismórfico-cor-porais que acometem pessoas com graves perturbações emocionais e que preci-sam de muita ajuda.

Até recentemente, considerava-se de um modo geral que a preocupaçãocom a imagem corporal, a insatisfação com ela e as distorções, afligiam primaria-mente as mulheres. Contudo, durante a última década, está tornando-se óbvio, apartir de muitos estudos, que essas são grandes preocupações para os homenstambém. Eles estão despendendo uma parte surpreendentemente grande de seutempo pensando em sua aparência. Pope et al. (2000, p. 68) citam vários estudosem seu livro: O Complexo de Adônis – a obsessão masculina pelo corpo, em quedemonstram que os homens não apenas despendem muito tempo pensando naaparência, mas muitos deles acham-se insatisfeitos com ela e perturbados com isso.Quando indagados sobre que tipo de físico gostariam de possuir, a maioria esmaga-dora dos homens disse que gostaria de ser bem construído e musculoso, em vezde ser magro ou gordo. Essa mesma preferência é expressa até por meninos de atécinco ou seis anos. Vários desses estudos demonstraram que os homens preferemespecificamente um tipo de corpo altamente musculoso, caracterizado por múscu-los peitorais e braços altamente desenvolvidos, com ombros largos afinando atéuma pequena cintura.

Pessoas com esse transtorno sofrem de idéias contínuas sobre o modo comopercebem a própria aparência corporal. Esses pensamentos persistentes, intrusivos,difíceis de resistir, invadindo a consciência e em geral acompanhados por compulsõesrituais de olhar-se no espelho constantemente, seriam muito semelhantes aos pa-cientes com transtorno obsessivo-compulsivo. Também insistem em dietas baixas emgorduras e ricas em proteínas e hidrato de carbono. Alguns podem chegar a ingerirmais de 4.500 calorias diárias (o normal para uma pessoa é 2.500), e sempre acom-panhado por numerosos e perigosos complementos vitamínicos, hormonais eanabolizantes. Tudo isso é feito com o propósito de aumentar a massa muscular.Portanto, comumente há o risco de abusarem dessas substâncias e esteróidesanabolizantes, mesmo quando alertados quanto aos graves efeitos colaterais.

Essa obsessão de beleza física e perfeição convertem-se em autênticas doençasemocionais, acompanhadas de severa ansiedade, depressão, fobias, atitudes com-pulsivas e repetitivas (olhadas seguidas no espelho) que conduzem ao chamadotranstorno dismórfico corporal.

178 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

Os transtornos dismórfico-corporais e os transtornos alimentares comparti-lham alguns sintomas em comum, tais como, desejar uma imagem corporal perfei-ta e favorecer uma distorção da realidade diante do espelho. Isso ocorre porque,nas últimas décadas, ser fisicamente perfeito tem convertido-se num dos objetivosprincipais (e estupidamente frívolos) das sociedades desenvolvidas. É uma metaimposta por novos modelos de vida, nos quais o aspecto físico parece ser o únicosinônimo válido de êxito, felicidade e, inclusive “saúde”.

O termo dismorfia corporal foi proposto em 1886 pelo italiano Morselli.Embora exista um grande número de pessoas muito preocupadas com sua aparên-cia, para ser diagnosticado de dismorfia, deve haver sofrimento significativo e umareiterada obsessão com alguma parte do corpo que impeça uma vida normal. Quan-do esse quadro todo fixa-se na questão muscular, havendo uma busca obsessivapara uma silhueta perfeita, o transtorno se chama vigorexia ou transtorno dismórficomuscular (Pope, Phlillips, Olivardia, 2000, p. 28).

A busca de um corpo perfeito e musculoso a qualquer preço deve ser tratadacomo uma patologia. A vigorexia ou síndrome de Adônis, é um transtorno emocio-nal, assim denominado pelo psiquiatra americano Harrison G. Pope da Faculdade deMedicina de Harvard, Massachusetts. Os estudos de Pope foram publicados na revis-ta Psychosomatic Medicine e no livro The Adonis complex, traduzido por SérgioTeixeira e Publicado pela Editora Campus (2000). Esses estudos constaram da obser-vação de adeptos à musculação e comprovaram que entre mais de 9 milhões denorte-americanos que freqüentam regularmente academias de ginástica, cerca de ummilhão poderiam estar acometidos por este transtorno emocional.

Todavia, apesar de ser clinicamente caracterizada, a vigorexia não está incluí-da nas classificações tradicionais de transtornos psicológicos ou psiquiátricos (CID. 10e DSM. IV), embora possa ser considerada uma espécie de dismorfia corporal, jáque a vigorexia também é conhecida por esse nome.

No entanto, não pretendemos generalizar e nem afirmar que todos os pra-ticantes de musculação e de fisiculturismo sejam vigoréxicos. Os exercícios orienta-dos, com indicação médica ou terapêutica, recreativos ou de condicionamentocontinuam sendo objeto de estudo de profissionais, tanto da medicina, psiquiatriae, principalmente da Educação Física.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que nunca, os homens estão lidando com a mesma e intensa pres-são que as mulheres enfrentam há séculos para adquirir a forma física perfeita. Dohalterofilismo compulsivo até o uso de esteróides, dos implantes de cabelo até a

179Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

cirurgia plástica, um número cada vez maior de homens procura satisfazer os pa-drões que se exigem para os músculos, a pele e os cabelos, o que transcende alinha do interesse normal para tornar-se obsessão patológica, o que impõe umrisco à saúde tão perigoso e mortal quanto os representados pelos distúrbios daalimentação nas mulheres e adolescentes.

É possível constatar que essa secreta crise da obsessão corporal masculinaaflige milhões de pessoas no mundo todo. Esse problema é potencializado quandofatores biológicos e psicológicos combinam-se com as poderosas e irreais mensa-gens da sociedade moderna e da mídia que dão ênfase ao corpo masculino ideal,cada vez mais perfeito e não raro inatingível.

Ao questionar-se sobre o porquê da insatisfação muscular e outras preocu-pações com a aparência do corpo, que estão se tornando tão comuns entre oshomens modernos, Pope et al. (2000, p. 30) analisa que nossos avós não pareciamse preocupar se pareciam musculosos e nem faziam flexões ou exercícios abdomi-nais e, muito menos, iam às academias de ginástica para malhar, nem tampouco,preocupavam-se com seu percentual de gordura corporal.

Fato é, que nossos avôs raramente eram expostos às imagens dos“supermachos” – ao contrário dos jovens pesquisados: C. A. N., D. F., M. O. F., R.E. L. ou G. H., e tantos outros rapazes de nossa época, que os viam/vêm todos osdias. Na sociedade moderna, essas imagens estão confinadas às paredes das acade-mias – estão por toda parte. Os homens mais masculinos dos anos de 1930, 1940e 1950 – John Wayne, Clark Gable, Gregory Peck – parecem magros e fracos emcomparação aos modernos heróis musculosos do cinema de ação – ArnoldSchwarzenegger, Sylvester Stalone ou Jean Claude Van Damme. Hoje, enquantocresce, desde menino, um homem jovem é sujeito a milhares e milhares dessasimagens de supermachos. Cada uma delas está ligada ao sucesso – social, financeiroe sexual. Mas essas imagens têm tornado-se progressivamente mais magras e maismusculosas. E dessa forma, cada vez mais distantes do que qualquer homem co-mum consegue atingir. E assim a sociedade e a mídia pregam uma perturbadora einsistente mensagem dupla e perversa: a auto-estima de um homem deve basear-se principalmente em sua aparência, embora pelos padrões das imagens dossupermachos modernos, praticamente nenhum homem consiga atingi-la.

Torna-se compreensível, portanto, que muitos jovens modernos sintam-seinfelizes com o que vêem no espelho. E não é de surpreender que entre eles umnúmero cada vez maior de situações graves como a de C. A. N., cuja vida foiextirpada por estas tendências. Crescendo nos anos de 1970 e 1980, ele comotantos outros, vem absorvendo toda a corrente de imagens de “supermachos” damídia moderna.

180 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

Vários jovens entrevistados nos descreveram como assistiam/assistem aosfilmes de Sylvester Stalone e Arnold Schwarzenegger, e que, desde crianças, fanta-siavam que um dia seriam iguais aos heróis dos filmes em que eles atuam. Deacordo com Pope et al. (2000, p. 32), “gradualmente, a aparência do corpo tor-nou-se a base dominante – e por fim a única base – da auto-estima”.

Tal constatação é motivo de preocupação por parte de profissionais da áreada Educação Física, já que situações como as pesquisadas são recorrentes e caso seperca um pouco de musculatura ou aumente a gordura corporal é sinônimo devergonha e humilhação. Para adolescentes e rapazes de nossa época um corpo“malhado, forte e sarado” torna-se tão importante que, a cada dia, levam maisjovens, quando não à morte, ao quase completo isolamento social e, não raro, àdeteriorização de relacionamentos com pessoas que lhes são caras.

É necessário reconhecer a gravidade da situação. É preciso que, principal-mente nós, profissionais de Educação Física, atentemos para essa nova realidadeque salta aos nossos olhos no cotidiano das academias. A partir da constatação dequalquer desses distúrbios da imagem corporal (especialmente distúrbio dismórficocorporal ou distúrbio alimentar) devemos estar preparados para trabalhar em con-junto com outros profissionais – psicólogos, psiquiatras, nutricionistas – para tentarminimizar os danos para essa população jovem que aí está, buscando desesperada-mente, o corpo “perfeito, malhado, forte, sarado”.

The male obsession for the body:body bilders, supermuscular and strong

ABSTRACT:The present study aims to analyze the discourse about representation ofmale bodies, frequenting gyms. More than ever, men are dealing with the same andintense pressure that women deal for centuries to obtain the physical shape considered“perfect”. From the compulsive weightlifting to the steroids use, an increasing number ofmen are trying to satisfy the required patterns for the muscles, skin, and hair. Whattranscend the normal interest line to the pathologic obsession, and what inflict a healthrisk so dangerous and mortal than the ones represented by the eating disorder? Thisscene influence trongly and decisively the supermuscular tendencies and on the bodydisphormic disorder.KEY-WORDS: Physical education; body image; body.

181Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

La obsesión masculina por el cuerpo: trabajado, fuerte y robusto

RESUMEN: En éste estudio tenemos como objetivo analizar el discurso sobre lasrepresentaciones de los cuerpos masculinos frecuentadores de academias de gimnasia.En la actualidad, es normal el hecho que los hombres están lidiando con la misma eintensa presión que las mujeres enfrentaban hace siglos para adquirir la forma física consi-derada “perfecta”. Desde la halterofilia compulsiva, hasta el uso de esteroides, un númerocada vez más grande de hombres busca satisfacer los padrones exigidos para los múscu-los, la piel y los cabellos. Ello trasciende la línea de interés normal para transformarse enuna obsesión patológica que impone un riesgo a la salud, tan peligrosa y mortal como losrepresentados por el desorden de la alimentación. Ese cuadro influye fuerte y decisiva-mente en las tendencias supermusculares y en los trastornos dismórficos corporales.PALABRAS CLAVES: Educación física; imagen corporal; cuerpo.

REFERÊNCIAS

ASSMANN, H. Paradigmas educacionais e corporeidade. 3. ed. Piracicaba: Editora da Uni-versidade Metodista de Piracicaba (Unimep), 1995.

. Reencantar a educação : rumo a uma sociedade aprendente. 2. ed.Petrópolis: Vozes, 1998.

BRUHNS, H. Conversando sobre o corpo. 2ª ed. Campinas: Papirus,1989.

CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1991.

DENIS, D. El cuerpo enseñado. Barcelona: Paidós, 1980.

ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1993.

. Interpretação : autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis:Vozes, 1996.

. Análise do discurso – princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2000.

POPE, H. G. URL. Disponível em: <http://gballone.sites.uol.com.br/alimentar/vigorexia.html >.Acesso em: 10 out. 2003.

; PHILLIPS, K. A.; OLIVARDIA, R. O complexo de Adônis: a obsessão mas-culina pelo corpo. Trad. de Sérgio Teixeira. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

RODRIGUES, J. C. Tabu do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Achiamé,1975.

182 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 167-182, set. 2005

TEVES, N. A imagem corporal como fator de ressocialização de meninos de rua. In: 9ºCONGRESSO DE EDUCAÇÃO FÍSICA E CIÊNCIAS DO DESPORTO DOS PAÍSES DELÍNGUA PORTUGUESA. Anais... São Luiz: Universidade Federal do Maranhão (UFMA),nov. 2002.

Recebido: 4 fev. 2005Avaliado: 6 abril. 2005

Endereço para correspondenciaRua Pe. Frederico, 180

Sta CatarinaJuiz de Fora – MG

CEP 36036-150

183Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 183-184, set. 2005

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

1. A Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), instância de difusão daprodução acadêmica dos pesquisadores da área de conhecimento circunscrita aocampo de intervenção da Educação Física/Ciências do Esporte, é editada sob res-ponsabilidade institucional do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE),possuindo periodicidade quadrimestral.

2. Os textos (artigos, ensaios e resenhas) a ela encaminhados para publica-ção devem ser originais, inéditos e redigidos em português, espanhol ou inglês,sendo o seu encaminhamento não simultâneo a outro periódico, condição para asua aceitação.

3. Os textos devem ser encaminhados para publicação em disquete de 3 ½acompanhado de uma via impressa em papel A4, digitadas em editor de textoWord for Windows (para PC), fonte Times New Roman, tamanho 12. O tamanhomáximo para artigos e ensaios (sem contar o resumo) é de 35 mil caracteres (con-tando espaços) e para a resenha é de 17 mil caracteres (contando espaços). Cadaresumo que acompanhar o texto deve ter, no máximo, 790 caracteres (contandoespaços). Para as palavras-chave, consultar as bases de dados: Lilacs, Medline, SportDiscus, Eric, Scielo.

4. O texto deverá conter: a) título do trabalho em português, inglês e espa-nhol; b) nome do(s) autor(es); c) resumo em português, inglês e espanhol, bemcomo palavras-chave nas três línguas; d) referências bibliográficas apresentadas con-forme as normas da ABNT, NBR 6.023/2002 e NBR 14.724/2002; e) citações noartigo conforme NBR 10.520/2001. Havendo ilustrações, estas devem ser apre-sentadas ou no interior do texto, no local adequado, ou em folhas separadas dotexto com indicação dos locais nos quais devem ser inseridas. Devem ainda ser

184 Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 1, p. 183-184, set. 2005

numeradas, tituladas e apresentar as fontes que lhes correspondem. Sempre quepossível, deverão ser confeccionadas para sua reprodução direta. As imagens de-vem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF).

5. Os textos serão submetidos ao Conselho Editorial ou a pareceristas adhoc, que os apreciarão observando o sistema de duplo-cego. Os textos analisadosreceberão um dos pareceres seguintes: a) aceito para publicação; b) recusado parapublicação; c) reformulação. Caso um texto receba um parecer “aceito para publi-cação” e outro “recusado para publicação”, será encaminhado a um terceiroparecerista que definirá a posição final sobre o mesmo. O texto que receber umparecer “reformulação” e outro “recusado para publicação” não será aceito parapublicação pelo editor. O texto que receber um parecer “reformulação” e outro“aceito para publicação”, ou ainda, dois pareceres “reformulação”, será encaminha-do ao autor para que providencie as alterações solicitadas pelos pareceristas.

6. Ao autor principal de texto publicado serão fornecidos cinco exemplaresda revista no caso de artigos e ensaios e três exemplares no caso de resenhas. Arevista não se obriga a devolver os originais das colaborações enviadas. Os textosassinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

7. Endereço para envio de trabalhos:

Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE)Faculdade de Educação Física da UnicampCaixa Postal 6134Campinas, SP13083-851E-mail: [email protected]