revista asas da palavra benedito nunes pag 64 a 216

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III. Conversas comBenedito Nunes

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O roteiro dos livrosde um sábio paraense*

Lúcio Flávio Pinto

Foto: Elza Lima

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Os livros continuam sendo uma forma indispensável de conhecimento,ainda a melhor. É uma fonte de prazeres insuspeitados pelos que, nariz empinadoe desdém ensaiado, desprezam-nos, em referência aos ícones do futuro, osaparelhos eletrônicos de armazenamento de informações. Numa de suas muitaspesquisas, Bruno Bettelheim notou crianças que reconstituíam as histórias delivros infantis por suas belas ilustrações. O enredo estava substancialmente ali,mas não o prazer do texto, a voragem da narrativa, o mistério da história. Avisualização, nesses casos, é um complemento - fundamental, é claro, mascomplemento. Quem lê viaja, recria, revoluciona - e quem não lê mal fala, malouve, mal vê, como insiste a propaganda inconvincente dos livreiros.

Os jovens são os menos convencidos, os mais inconvencidos, paraemprestar uma expressão que Lewis Carrol assinaria, o Carrol da muito vistaAlice no país das maravilhas, em tela cinematográfica, raramente lida no textodeslumbrante. Mais do que os jovens em geral, os que chegam agora àUniversidade, vitoriosos nesse decatalo chamado de vestibular, têm seus motivospara desconfiar dos in folios. Foram treinados para o reflexo condicionado do xis,das quadrículas em branco, da resposta por impulso elétrico, não por reflexão,não pela ruminância do pensar, que faz as delícias de quem pensa. Livro, alémde dar cultura, dá prazer, um prazer tão deslocado desses fanzines modernos quefaz, de quem é capaz de apreciá-lo, membro de uma confraria secreta. Os quegostam de livros de verdade, entretanto, não querem ser únicos. Querem é alargaras fronteiras desse prazer pessoal, estendê-lo ao maior número possível depessoas.

Eis a razão deste pequeno livro que a Universidade Federal do Pará aceitoueditar. Será fácil de ler, mas quem lê-lo talvez tenha uma sensação semelhante àque tive quando, depois de ter passado pelo “Nome da Rosa”, li o diário mínimoque Umberto Eco, escreveu à margem do romance medieval. O menor era omelhor, contingência compulsória para os que não querem ser apenas “maisum”.

Benedito Nunes dá aos calouros que chegam à Universidade apossibilidade, por essa apurada seleção de livros, de se tornarem acadêmicossem segundos sentidos, depreciativos. Teoricamente, ao campus protegido pelomuro universitário chegaram os melhores. Na realidade, na relação com esteinventário de leituras é que será medida a qualidade desse título. Títulos é fácilganhar, ou comprar. Conquistar é outra coisa.

O que Benedito Nunes pretendeu, ao responder ao questionário que lhefiz, foi prevenir-nos contra o triste fim profetizado por Ray Bradbury para umasociedade sem livros, inculta e feia, triste e vazia. Quem receber este livrinhoprecioso poderá, ao sair da Universidade, medir seu grau de civilidade, no melhore imorredouro significado que os greco-romanos lhe deram, pelos livros destaseleção que tiveram lido, não como se tivessem baixado um taxímetro sobre suamente, mas como se a elevassem ao nível realmente humano da nossa vida: oda dúvida que questiona e da busca que responde.

Alguns sábios foram sábios sem terem lido muitos livros, como Kant,cuja biblioteca abrigava apenas uns 300 exemplares, pequena mesmo para os

* Entrevista concedida ao jor-nalista Lúcio Flávio Pinto, queescreveu a apresentação, publi-cada no jornal A Província doPará, Segundo Caderno, 16/05/1991. Republicação: Belém:Editora da Universidade Fede-ral do Pará. Incluído em NU-NES, Benedito. Do Marajó aoarquivo: um breve panorama dacultura no Pará. OrganizaçãoVictor Sales Pinheiro. Belém:EdUFPA. (no prelo)

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padrões da época. Mas leram para valer e não como atletas de orelhas de livro,espécime de larga difusão no mercado. Benedito José Viana da Costa Nunes,o Bené da Rua Estrela, é desses sábios que leram muito e lêem bem. Talveznenhum paraense tenha lido tanto quanto ele, não para guardar para si o queaprendeu. Na acolhedora casa que abriga Bené, Maria Silvia, Angelita, umbeagle que já teve seu retrato publicado no prestigioso “Jornal do Brasil”, egatos variados, sempre há um lugar para um amigo não anunciado que, bemacomodado, em algumas dezenas de minutos aprenderá mais com a prosaendiabrada do Bené, os comentários apropriados de Maria Silvia e aspontuações refinadas de Angelita do que em anos em bancos escolares. Benésabe porque sabe. Não precisa demonstrar, nem esbanjar. É um sábio dequilometragem in folios insuperável. Cabe-lhe um título que tem se desgastadona aplicação sem mérito: é mestre.

O depoimento que Benedito Nunes me deu, provocado por um rústicoquestionário, é a melhor bibliografia que um jornal brasileiro provavelmente jápublicou. Deveria sair no “Bandeira 3”, abrindo uma série que ficou apenas naprotofonia porque o jornal morreu no número zero, antes de chegar ao númeroum. Mas sai em A Província do Pará, engrandecendo o jornal e despejandosobre cada um de nós réstias de luz geradas na central de conhecimentos queBené carrega na cabeça, democraticamente acessível aos que querem saber mais.A nostalgia do mestre que ele diz ter, autodidata confesso, nós não temos. Afinal,Benedito Nunes é nosso grande mestre.

A desenvoltura de Benedito na análise da filosofia do alemão Heideggertransfere-se para a prosa poética de Guimarães Rosa e se estende à música,erudita ou popular, sem perder em profundidade e graça, características quegeralmente se excluem nos intelectuais brasileiros, às vezes sérios, mas cacetes,enfadonhos. Bené cresceu entre livros, que lhe ficaram como o diálogo quenunca teve com o pai, falecido muito cedo. O livro é o seu paraíso e por issonão precisa de fichas para lembrar o que o acompanha, um catálogo na memória.É um privilégio tê-lo a mão numa cidade que cresceu fechando livrarias e abrindolocadoras de vídeos, forma mais sofisticada e inodora de cumprir a gélida profeciade Ray Bradbury no “Farenheit 451”. Se depender de Benedito Nunes, sábio, omelhor de todos nós, esta será sempre apenas uma ameaça.

Qual o primeiro livro que se lembra de ter lido?Dizem que aprendi a ler com quatro anos de idade. Mas com certeza minha

primeira leitura deu-se um pouco mais tarde. O livro foi-me presenteado por ummendigo já idoso, barba branca, que às quartas-feiras, pela manhã, vinha buscarsua esmola certa que lhe proporcionavam minhas tias. Achavam-no parecido coma tradicional imagem de São José Carpinteiro, reverenciado no oratório dacatolicíssima família. Nesse dia, depois de sentar-se na escada de madeira novestíbulo da casa, como costumava fazer, o velho retirou de sua tosca sacola umpequeno livro, capa dura, de cor esverdeada, visivelmente restaurado, conformedenunciava a tira de pano grudada à lombada: A Caçada da Onça, de MonteiroLobato. Era para o menino da casa. Mas só pude folhear o volume após o tratamentoprofilático a álcool a que o submeteram as tias prudentes, receosas dos possíveis

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germes escondidos entre as páginas. Lembro-me ainda da gravura central sobreduas dessas páginas abertas: os heróicos caçadores do sítio do Pica Pau Amarelo,Pedrinho à frente, rebocando a onça já morta.

Qual o primeiro livro que lhe causou grande impacto?O primeiro de impacto, que me precipitou num mundo estranho de nomes

ressoando diferentemente dos comuns, de seres extraordinários, de imagensmentais pregnantes, duradouras, foi a Odisseia de Homero, publicado pela AtenaEditora de São Paulo, em tradução de meu tio, Carlos Alberto Nunes, nummetro longo, inabitual, para imitir o ritmo do original grego.

Os primeiros livros que você leu eram de biblioteca da família? Eraboa?

Esse tio, fixado em São Paulo, que muito mais tarde traduziria Shakespeare,Goethe, Platão e Virgílio para o português, mandava-me muitos livros, quasetodos de presente: Poesias Completas de Gonçalves Dias (2 vols., Ed. Garnier),David Balfour, de Robert Louis Stevenson, Os Irmãos Karmazov e Os Possessos, deDostoievski, Teatro de Lope de Veja, Os Diálogos do Limbo, de Santayana, e tantosoutros, que vieram chegando, ano após ano, por via marítima, em pacotes doCorreio - dos pequenos volumes de nietzsche da coleção Tor, em espanhol,como Genealogia da Moral, O Crepúsculo dos

Ídolos, O Anti-Cristo, até o encadernados de certo porte, Guide to Philosophy,de Joad, O Retorno do Nativo, de Thomas Hardy. Mas os primeiros livros, antesdesses, e excetuando Os Argonautas, de Gustav Schwab, que me mandou umirmão de duas amigas de minhas tias, o Prof. Francisco Paulo do NascimentoMendes, eram da estante de casa, alta, de madeira amarela envernizada, cincoprateleiras, com discretos ornamentos florais gravados, e um gavetão na parteinferior. Pertencera a meu pai, que não conheci. Estava abarrotada de Machadode Assis, José de Alencar, Eça de Queiroz, Shakespeare em volumes portuguesesavulsos da Lelo, capa de pano com a efígie do dramaturgo, Monteiro Lobatopara adultos, Urupês inclusive, Joaquim Nabuco (Minha Formação), Oliveira Viana(Evolução do Povo Brasileiro, Populações Meridionais do Brasil), Lima Barreto quaseintegral; Taunay, Afrânio Peixoto (o romance Fruta do Mato), Dante (A DivinaComédia, em tradução do Barão de Vila da Barca) e de outros autores prestigiososna década de 20, quando foram comprados, como Assis Cintra, Oliveira Lima,Antônio Torres, Mário Pinto Serva e Alberto Torres.Criei-me à sombra dessaestante, seção belenense da biblioteca de família; a outra, que a completava, erade meu tio, em São Paulo.

Alguém orientou-o nas primeiras leituras? Que orientação lhe deu?Tive e não tive um primeiro orientador. Os livros da estante amarela eram,

de qualquer modo, a materialização simbólica da voz paterna suprimida pelamorte, que não lhe suprimiu a presença. Ou, se quiserem, a autoridade, para ofilho póstumo que fui. Vista a questão desse ângulo, a primeira orientação veiodo pai, louvado seja Freud. Mas como os livros estavam ali à minha escolha,gradualmente vencida a resistência materna (havia-os “fortes”, perigosos,

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anticlericais, etc.), e como jamais me veio dele, do pai, qualquer indicaçãoexpressa em sentido contrário, a orientação se fez ao acaso, em parte devido àminha curiosidade, talvez estimulada por aquela resistência, em parte porque,filho único, menino solitário, descobri na leitura o meio de me divertir sozinho.Autodidata nato, sempre fui nostálgico de um mestre. Depois da professoraprimária, minha tia, tive muitos mestres, sem, até hoje, fixar-me em nenhum.Mas isso é matéria para outra história.

Quero apenas acrescentar que na época de formação, da infância para ajuventude, os meus sucessivos mestres também foram amigos, quase sempremuito mais velhos do que eu: Augusto Serra, fundador do Colégio Modernoonde fiz o Ginásio, homem de superior cultura literária e matemática, que mefranqueou a Biblioteca do estabelecimento, da qual me veio a revelação dosclássicos franceses e ingleses (Molière, Racine, Corneille, la Buryère, LaRochefoucauld, Swift, Walter Scott); meu primo Ribamar de Moura, inteligênciapura e nobre caráter, a quem devo o empurrão definitivo para a Filosofia (elerepartia com os dois irmãos, Silvio e Levy Hall de Moura, a propriedade daCrítica da Razão Pura, de Kant, e de O Mundo como Vontade e Representação, deSchopenhauer em francês, belos volumes encadernados que freqüenteiassiduamente); Cécil Meira, a quem devo o empréstimo de uma versão resumidado Wilhelm Meister, de Goethe, e Orlando Bitar (deu-me, antes das ObrasCompletas de Virgílio, uma Eneida traduzida em prosa para o português, queainda tenho esperança de recuperar das mãos arrependidas daquele queindevidamente a retém). Como esquecer a gravura de Jean Valjean ajudando apequena Cossete a carregar um balde d’água que parecia bem maior do que ela,na mágica edição gigante ilustrada de Les Miserables, de Victor Hugo, que OrlandoBitar, meu professor de latim, no Moderno, não hesitou em confiar aos meusquatorze anos de calças curtas?

Cedo entrei, assim, no circuito bibliográfico infinito, o único verdadeiromoto perpétuo que conheço. Pela leitura de um só livro, pode-se chegar a todosos outros, com tempo e disposição. Quase sempre, os amigos ajudando, obtive,na hora certa, aqueles de que precisava, movido por uma espécie de “faro” oude “senso frontal”, até hoje em pleno funcionamento. Ainda nos tempos doModerno, socorreu-me Anunciada Chaves, na lista dos mestres-amigos, com oseu suntuoso Daudet (Tartarin de Tarascon) e com alguns volumes de Molière,capa vermelha de pano, cheirando a naftalina, letras douradas na lombada. ArturCésar Ferreira Reis, meu professor de História das Américas, que deslumbrounossa turma falando-nos dos aztecas, emprestou-me Casa Grande & Senzala.Aos 19 anos, recebi de Paulo Mendes, o Chico Mendes, uma avultada provisãode Goethe, Kierkegaard, Rilke, Kafka, Sartre, Paul-Louis Landsberg, que alentouo sopro do primeiro longo ensaio que escrevi, A Morte de Ivan Ilicht, publicadono Suplemento Literário da Folha do Norte, fundado e dirigido por HaroldoMaranhão. Antes, muito antes disso, já se me abrira a grande mina da bibliotecade Haroldo, que crescia nos altos da Folha, acima do lugar onde ficava a dovelho Maranhão. Entre nós travara-se uma singular relação de amizade: éramosdois viciados em literatura, que às vezes liam os mesmos livros, e que seexercitavam, ele aos 14 e eu aos 13, imitando A Barca de Gleire, de Lobato e

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Godofredo Rangel, nos labores da epistolografia: escrevíamos cartas em queresumíamos, um para o outro, s obras lidas durante a semana.

Com quantos anos você comprou o seu primeiro livro? Qual era?Como os livros minassem ao meu redor, somente aos 14 anos, por

incontinência de apetite, comecei a comprar, com o parco dinheiro fornecidopelas tias, a obras custosas da Editora Vecchi, exibida nos balcões da atulhadae simpática Livraria Vitória, de propriedade do Raimundo Saraiva de Freitas,distribuidor de romances em fascículos, última aparição dos Folhetins paraassinaturas. Ainda guardo as duas primeiras compras: Chamfort, Caracteres eAnedotas; Benjamin Franklin, Breviário do Homem de Bem, vols. 7 e 8 da Coleçãode pequeno formato Os Grandes Pensadores.

De seus livros escolares, qual o que marcou ou dele você ainda selembra?

Dos livros escolares retive na memória a forma e a cor das capas, algumasgravuras e certas frases, principalmente aquelas da Lição de coisas, de Felix PedroPantoja, que era a Quinta-essência da Física de Aristóteles diluída em catecismo(“Qual a diferença entre objeto natural e objeto artificial? O objeto natural éfeito pela mão de Deus, o objeto artificial é feito pela mão do homem”). Omesmo método do Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã, que estudava às quintas-feiras, de tarde, na Igreja da Santíssima Trindade (“Sois Cristão? Sim, sou Cristão.Fazei o sinal da Cruz. Que é ser Cristão?” etc., etc.). Para mim, os melhoreslivros sempre foram os extra-escolares. Nos anos de instrução religiosa, tambémrezava pelo catecismo de Dona Benta, porta-voz do pensamento liberal, céptico,altamente político, no sentido da afirmação de uma consciência pública de caráterético, de Monteiro Lobato: História do Mundo para Crianças, Dom Quixote de LaMancha, Robinson Crusoé, Robin Hood. Dom Quixote trazia gravuras de GustavDoré. Só algumas cenas dos filmes Kurosawa me trouxeram cenas tãocomoventes quanto a da imagem de Sancho Pança que, rosto contra focinho,chora, abraçado, num gesto de despedida, ao burro que vai abandonar.

Quantos livros tem atualmente na sua biblioteca? Qual é o “forte”dela? Quais os livros mais valiosos nela existente? Quanto tempo levoupara formá-la? Como ela funciona? É aberta à consulta? Quem cuidadela?

Não posso precisar-lhe quantos livros tenho. O último catálogo que tenteiorganizar data de meus vinte anos.Convencido de que era uma prática sorvedourade tempo, deixei, desde então, de contabilizar minha biblioteca. Trato delasozinho, seu forte é Filosofia e Literatura quase em partes iguais. Só umaconcessão à burocracia: procuro manter, a duras penas, um registro deempréstimos; saídas não são raras para estudantes e colegas. Algumas,infelizmente, tornam-se atestados de óbito: inúmeras as reposições que tenhofeito. Pelo que disse até aqui, já se adivinhou quanto tempo levei para juntaresses livros, que somados aos anos de Maria Sylvia e Angelita, ocupam mais de

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quatro compartimentos da casa. Tem a biblioteca mais do que a minha idade,porque surgiu antes de mim. Sou seu funcionário único, e até agora pudecontrolá-la impecavelmente. É certo que lhe impus uma ordem pessoal; seionde encontrar cada livro de acordo com o assunto (História da Filosofia,Filosofia da Ciência, Religião, Psicologia, Crítica Literária, Romances Brasileiros,Romances Estrangeiros, Poesia e assim por diante). Não trago a biblioteca namemória. Ela é, de certo modo, a minha memória, feita de perdas, lembranças erecuperações. Gostaria de recuperar alguns dos meus antigos hóspedes, comocertas obras da Coleção Terramarear (Mowgli, o menino lobo, Jacala, o crocodilo,de Kipling; Tarzan, o Rei das Selvas, de Edgard Rice Burroughs; Pinochio, de Colodi)ou a Poesia de Manuel Bandeira editada pela Casa do Estudante do Brasil. Nãosofro da obsessão de querer renovar o alumbramento da primeira leitura, emborapersista a nostalgia da experiência passada. Cada qual tem o paraíso perdidoque merece. O meu é livresco. Se fosse rico compraria a Bibliothèque de laPlèiade inteira, todos os volumes da Coleção Budé e dos clássicos Loeb; tambémcolecionaria edições de Shakespeare assim como os novos-ricos colecionamsantos barrocos. Mas longe estou do tradicional bibliófilo, com o gosto de ediçõesraras, à busca de obras finamente encadernadas ou de luxo. No entanto, o livro,instrumento de trabalho para riscar e anotar, adquire a meus olhos identidadefísica, com a sua capa, o cheiro do papel, o formato, a posição da estante. Nesseponto pareço-me com D. Pedro II, para quem cada livro era um estimulante dossentidos da vista, do tato e do olfato. Assim é que os guardo na memória, catálogoúnico, compulsado onde quer que esteja.

Os mais valiosos são os que melhor me servem, me ajudam, meacompanham: Fragmente der Vorsokratiker, de Hermann Diels; Kant completo,13 vols., na Edição de 1921 da Academia de Berlim; Fichte, também completo,em 6 vols., Edição de 1911; Schopenhauer, idem, em 6 vols. Reclam; História daFilosofia, de Uberweg, 4 volumes, Berlim, 1906; Suma Teológica, 16 vols. Latim/Francês, 1853 (presente de Chico Mendes); La Philosophie de la Nature, de J-Del.de Sales, Paris, 1804, 10 vols. (obtido numa troca com Machado Coelho); oslivros de poesia (Pound, Dylan Thomas, Cummings, etc.) que pertenceram aMário Faustino.

Se tem filhos: eles gostam de ler? Se não tem filhos, parentes?Os filhos únicos, adotivos, nossos gatos e cachorros, dóceis e inteligentes,

não se interessam por essas coisas. Mas os meus primos, que cresceram namesma casa onde nasci e me criei, gostam de ler; tivemos a mesma professoraprimária, nossa tia de verdade, e não a postiça das escolas de hoje, e quecontribuiu para isso.

Quais os dez livros mais importantes na sua vida?Prefiro mencionar textos, como livros ou partes de livros que estão

estranhados à minha vida pessoal: 1- Apologia de Sócrates (Platão); 2 - El sentimientotrágico de la vida, de Miguel de Unamuno; 3- José e seus Irmãos, de Thomas Mann;4 - A Morte de Ivan Ilicht, de Leon Tolstoi; 5 - Kant, Crítica da Razão Pura; 6 -Proust, La Recherche du Temps Perdu; 7 - Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas;

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8 - Os Poemas elegíacos de Carlos Drummond de Andrade (em A Rosa do Povoe Claro Enigma); 9 - A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector; 10 - Ser e Tempo,de Heidegger.

Que livros são essenciais para um leitor?Teria que escrever um livro sobre os livros como resposta a esta pergunta.

Na impossibilidade de fazê-lo agora, apresento-lhe algo simples, não no gênerode Ce qu’ il faut lire dans la vie, obra de autor francês que encontrei, quandocursava o ginásio, na biblioteca dos irmãos Viana (Garibaldi, Camilo, Raimundoe Antonio Pedro), por eles herdada do pai, Prof. Josino. O que adiante se vai leré uma lista com as seguintes especificações e utilidades: a) - sujeita a muitosacréscimos sem que dela possa ser suprimido; b) - vai do séc. VIII a . C. aoinício do séc. XX d.c., até por volta de 1903; c) - não serve para o Vestibular; d)- pode denominar-se “o que é preciso ler à margem do ensino universitárioenquanto se estuda na Universidade e depois”, e) - enumera os livros e autoresque podem ser recolhidos numa Arca salvadora, em caso de Dilúvio antilivresco,precipitado pelo eventual e possível agigantamento, como maremoto de certaduração, da onda de estupidez intelectual, estética e ética, que já castiga o País.

Upanishada e Bhagavad-Gita; Ramayena; clássicos chineses, Taote-Kinginclusive; textos budistas e zenbudistas; Hesiodo, Teogonia; Homero, Ilíada eOdisséia; tragédias gregas & Ésquilo, Sófocles, Eurípedes); Heródoto, História;Tucídides, A Guerra do Peloponeso; Obras de Platão, como Apologia de Sócrates eOs Diálogos Banquete, Phedro, Phedrão, A República, O Sofista e Parmênides;Aristóteles, Organum, Poética, Ética a Nicômaco; Virgílio, Eneida; Ovídio, AsMetamorfoses; Horácio, Odes; fontes do estoicismo e do ceptismo (Marco-Aurélio,Epicteto e Sexto-Empírico); De Rerum Natura, de Lucrécio; Petrônio, Satiricon;Apuleio, Asno de Ouro; Luciano de Samosata, Diálogos. Eclesiastes e Cântico dosCânticos: Os Evangelhos (inclusive os Apócrifos); Livros dp Pseudo-DionísioAeropagita; As Confissões, de Sto. Agostinho; Abelardo, História de minhascalmidades; Tristão e Isolda; O ciclo do Rei Artur; Tomás de Aquino, Suma Teológica;I Fioretti, de São Francisco de Assis; Dante, A Divina Comédia; Eckardt, Sermões;Poesias, de François Villon; Nicolau de Cusa, De docta ignorantia; Boccacio,Decameron; Rabelais, Garantua e Pantagruel; Les Essais, de Monteigne; Shakespeare,Tragédias e Comédias; Camões, Os Lusíadas e Sonetos; Fernão Mendes Pinto, AsPeregrinações; São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo; Cervantes, Dom Quixotede La Mancha; Calderon de la Barca, La Vida es sueño; Descartes, Discours de laMéthode e Meditações Metafísicas; Pascal, Les Pensées; Spinoza, Ética; Molière, LeTartuffe, Le Medicin malgré lui, Le Malade imaginaire; Racine, Phédre, Esther,Andromaque, Britanicus; La Rochefoucauld, Maximes; La Bruyère, Les Characteres.

Locke, Essay concerning the Human Understanding e Segundo Tratado sobre oGoverno; Montesquieu, O Espírito das Leis; Hume, Tratado sobre a anatureza humana;Berkeley, Diálogo entre Hylas e Filonous; Leibniz, Monadologia; William Blake, OsLivros proféticos (principalmente O Casamento o Céu com o Inferno); Rousseau,Ensaio sobre a origem da desigualdade, Les Confessions e Les Revêries d’un promeneursolitaire; Voltaire, Contos Filosóficos (sem esquecer L’Ingenu e Candide); Diderot,Jacques le Fataliste e Suplemento à viagem de Bougainville; Goethe, Wilhelm Meister e o

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Fausto (1º e 2º); Schiller, Poesia ingênua e Poesia Sentimental e as Cartas sobre aEducação Estética; Correspondência Schiller/Goethe; Kant, A Crítica da RazãoPura, Filosofia da História do Ponto de vista Cosmopolita e Crítica do Juízo; Richardson,Tom Jones; Novalis, Hinos à Noite; Holderlin, Elegias e Hinos; Kleist, A Marquezad’O; Buchner, Woyzzek e A Morte de Danton; Heinrich Heine, Livro das Canções;As Mil e Uma Noites.

Chateaubriand, Atala e Mèmoires d’Outre-tombe; Sterne, Sentimental Journey eTristram Shandy; Odes, de Shelley e Keats; Coleridge, Biografia Literária; Leopardi,Cantos; Hegel, A Fenomelogia do Espírito e Lições de Estética; Karl Marx, O Capitale 18 Brumario; Schopenhauer, O mundo como vontade e representação; Kierkegaard,Migalhas Filosóficas e o Tratado do Desespero; Balzac, A Comédia Humana; Stendhal,O Vermelho e o Negro e Crônica Italianas; Victor Hugo, Les Contemplations, NotreDame de Paris, Les Misérables; Michelet, A Revolução Francesa; Tocqueville, O AntigoRegime e a Revolução Francesa; Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros; José deAlencar, O Guarani, Iracema e As Minas de Prata; Almeida Garret, Viagens naminha Terra; Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, História da Origem e doEstabelecimento da Inquisição em Portugal; Dickens, David Copperfield, Pickwick Papers;Emily Brontè, O Morro dos Ventos Uivantes; Charlotte Brontè, Jane Eyre, JaneAusten, Pride and Prejudice; Baudelaire, Les Fleurs du Mal; Rimbaud, Les Iluminations;Verlaine, Romances sans Paroles; Mallarmé, Poesias; Edgar Allan Poe, ContosExtraordinários; Emily Dickson, Poems; Lautréaumont, Chants de Maldoror; OmarKayyan, Rubayat.

Samuel Butler, The way of all flesh; Robert Loouis Stevenson, The TreasureIsland; Thomas Hardy, Judas o Obscuro; Flaubert, L’Education Sentimentale, TroisContes; Jules Verne, Viagem à Lua; Joseph Conrad, Nostromo; Lewis Carroll, Aliceno País das Maravilhas; Camilo Castelo Branco, O Amor de Perdição; Machado deAssis, Memórias Póstumas de Braz Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, JoaquimNabuco, Minha Formação; Ruy Barbosa, Contra o Militarismo; Euclides da Cunha,Os Sertões; Tolstoi, Guerra e Paz e A Morte de Ivan Ilich; Dostoievski, Crime eCastigo, Os Irmãos Karamazov, Os Possessos, O Idiota; Chekov, Contos, As Três Irmãs;Ibsen, Solners, O Construtor; Strindberg, O Sonho; Thoreau, Walden e DesobediênciaCivil; Walt Whitmann, Leaves of Grass; Kipling, O Livro da Jangal; Henry James,A volta do parafuso; Mark Tawain, Huckleberry Finn; Eça de Queiroz, A Cidade eas Serras, O Primo Basílio;

Bergson, Les Données Immédiates de la conscience; Nietzsche, Assim falavaZaratustra; Husserl, Investigações Lógicas; Freud, Interpretação dos Sonhos; Proust,La Recherche du Temps Perdu; Valéry, Poesias e Variétés; André Gide, Os MoedeirosFalsos; Le Fils Prodigue; Gorki, Minhas Universidades; Apollinaire, Alcools eCalligrames; Eliot, The Waste Land; Joyce, Dubliners, Ulisses; Pound, The Cantos;Jorge Guillen, Cântico; Rilke, Elegias de Duino e Sonetos e Orfeu; Trakl, Poemas;Lorca, Romancero Gitano; Fernando Pessoa, Guardador de Rebanhos, (AlbertoCaeiro), Odes (Ricardo Reis), Grandes Odes (Àlvaro de Campos); Heidegger, Sere Tempo; Jacob Wassermann, Processo, América, O Castelo, A Colônia Penitenciária;H.O. Lawrence, O Homem que morreu, A Serpente Emplumada; Virginia Wolf, AsOndas e Orlando; Hermann Broch, Os Sonâmbulos; Musil, O Homem sem Qualidades;Oswald de Andrade, Poesia Paubrasil; Mário de Andrade, Macunaíma; Poesias de

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Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Manuel Bandeira;Karantzakis, Ascese, Salvatores Dei.

Que livro causou-lhe a maior decepção?O Baudelaire, de Jean-Paul Sartre, que culpa Baudelaire por ter sido

Baudelaire.

Dos livros que escreveu, qual o que mais lhe agrada? Qual o menossatisfatório?

O que me agradou, dando-me prazer quando o escrevi, foi O Tempo naNarrativa. O menos satisfatório é ainda um dos primeiros, Introdução à Filosofiada Arte, que deverá ser revisto e ampliado nos próximos anos.

Que livros sobre a Amazônia devem constar de uma boa biblioteca?Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica; Bates, Um Naturalista no

Rio Amazonas; Gastão Cruls, A Hiléia Amazônica; todos os que Eidorfe Moreiraescreveu sobre o assunto; Curt Nimuendaju, Os Apinayé; Edson Soares Diniz,Os índios Macuxi de Roraima; Frederico Barata, Análise estilística da cerâmica deSantarém; Armando Mendes, Viabilidade Econômica da Amazônia e O Mato e oMito; Lúcio Flávio Pinto, Carajás, o Ataque ao coração da Amazônia e Jari (asrelações entre o Estado e as multinacionais na Amazônia); Vicente Salles, ONegro no Pará. Ainda: O Coronel sangrando, de Inglês de Sousa; O Turista Aprendiz,de Mário de Andrade; Moronguetá, de Nunes Pereira; Antônio Brandão deAmorim, Lendas em Nheengatu em português; o ciclo ficcional de Dalcídio Jurandir,começando por Chove nos campos de Cachoeira; Batuque, de Bruno de Menezes. Emais: a poesia de Rui Barata (Anjo dos Abismos, A Linha Imaginária); a obrapoética de Paulo Plínio Abreu; O Homem e sua hora, de Mário Faustino; Verdevago mundo, de Banedicto Monteiro; Galvês o Imperador do Acre, de Márcio Souza;Cabelos no Coração, de Haroldo Maranhão; 60/38, de Max Martins. Lembramostambém Luis Bacellar, Sol de feira; Elcio Farias, Romanceiro; Jorge Tufic, Poesiareunida; Paes Loureiro, Cantares Amazônicos; Age de Carvalho, Ror; Sérgio Wax,Trinta e três experimentos e uma Suíte; Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente.

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Em 1929, a avenida Gentil Bittencourt nem era calçada. No trecho entre o Cemitérioda Soledade e a Presidente Pernambuco, três cortiços ocupavam grandes terrenos. Em outubrodaquele ano de crack na Bolsa de Nova Iorque, morria o bancário Benedito Nunes. Emnovembro, nascia o futuro professor Benedito Nunes Filho. Não conheceu o pai. Mas dariaao mundo reflexões profundas em várias áreas do conhecimento.

“Nasci em Batista Campos. Morava na Gentil, entre Serzedelo e PresidentePernambuco. Sabe qual é o trecho? É só se localizar pelo Cemitério da Soledadee pela caixa d’água. Os cortiços - que chamávamos estâncias - eram habitadosmais por lavadeiras e empregadas domésticas. Minha infância foi realmentetranquila. Eu era protegido!...”.

Neste espaço que faz questão de tão bem localizar, Benedito Nunes se dividia entreos livros - aprendeu a ler aos quatro anos, em casa mesmo, onde funcionava a EscolaSagrado Coração de Jesus, de uma tia - e as brincadeiras na rua, com os colegas pobres quemoravam nos cortiços.

“Brincávamos de papagaio, peteca, danças de roda, pião, polícia e ladrão...”O senhor era bom? “Em peteca talvez fosse um pouco melhor. Em papagaio euera um pouco... um pouco... amarrado”, lembra entre risos um dos ganhadores, nasemana passada, do “Prêmio Multicultural Estadão”, que lhe rendeu dupla satisfação: tera obra escolhida por três mil pessoas ligadas à cultura, em todo o país, e usufruir do prêmiode trinta mil reais. “Eu tinha um primo que me trazia os papagaios já com cerol nalinha. Aí eu dava os laços. Muitos adultos gostavam de papagaio. Era muitodivertido...”

Ele estudou com a tia até o quinto ano, quando se submeteu a exame de admissão noColégio Moderno. Já então navegava de Monteiro Lobato - “o primeiro livro que li delefoi “As caçadas de Pedrinho’” - a clássicos da literatura universal. “Meu paitinha montado uma grande biblioteca. Eu lia Shakespeare, Machado de Assis,

* Entrevista concedida aojornalista Edson Coelho.Transcrição do jornal O Li-beral, 19/04/98. Cad. Cartaz,p. 4-5.1 Filósofo e jornalista.

Encontro com Benedito Nunes*

Por Edson Coelho1

Ao lado: Em Rennes,outono de 1996

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Eça de Queiroz... Pode-se dizer que eu era uma criança metida a besta... Penaque muitos daqueles livros, entre os quais exemplares raros, foram extraviados:emprestávamos e não devolviam...”.

É com sabor de conversa que, nesta entrevista, Benedito Nunes relembra as primeirasaventuras literárias e os companheiros de geração; “a França inteira de braços cruzados”,pouco antes de eclodir a Revolução de Maio de 68; a experiência de dar aula nos EUA e naFrança; os desafios do homem para o próximo milênio; como levou para a clínica umacadela recém-atropelada, em frente ao Bosque (“depois ela teve seis filhotes e hoje é fazendeira”)e de como não gosta de futebol nem acredita em ET’s...

P: Como surgiu o hábito pela leitura?O primeiro grande estímulo, o determinante, foram os livros herdados de

meu pai. E eu tinha também um tio, Carlos Alberto Nunes, que me mandavamuita coisa de São Paulo... Meus pais passaram a lua de mel lá. Minha mãe,Maria de Belém Viana, ficou deslumbrada com São Paulo.

P: O senhor estudou até o quinto ano no colégio da tia. E depois?Em 1940, entrei no Colégio Moderno. Ao concluir os estudos no Moderno,

estava tudo combinado com meus tios que eu iria a São Paulo , estudar filosofia.Mas um deles, que era banqueiro - ou tinha uma casa bancária - faliu e acabeiestudando Direito na Faculdade de Direito do Pará. Quando entrei para aFaculdade, comecei a lecionar filosofia no Moderno. Formei-me em 1952, anodo meu casamento com a Maria Sylvia.

Nossa dedicação ao teatro - a Maria Sylvia, sobretudo, dirigia - rendeuuma viagem à França. Ela montou a tragédia “Édipo Rei”, de Sófocles. Fomoscom a peça participar de um festival universitário em Santos. Ela ganhou ofestival e o prêmio da viagem: em navio, de primeira classe. Eu - que era apenas“o marido da professora” - tive que conseguir dinheiro junto ao Capes parapoder viajar. Passamos seis meses na França. Fizemos vários cursos. Ela tinhadireito a estágios e a frequentar vários teatros, inclusive nos ensaios. Íamos amuseus... Estudei com o professor Paul Ricouer, na Sorbonne.

P: E os escritos?Eu já assinava artigos no Suplemento Literário do Estado de São Paulo.

E também fazia uma crônica do Pará: resenhas sobre autores paraenses comoEidorfe Moreira, Dalcídio Jurandir... Quando estava na França eu tambémescrevia. Enviei vários artigos sobre um grande livro do Sartre, “Crítica da RazãoDialética”.

P: Quando o senhor conheceu o Mário Faustino?Em 48. Durante a primeira e única reunião da Associação Brasileira de

Escritores, convocada por Haroldo Maranhão. Mário estava interessadíssimono Jorge de Lima (depois fez uma revisão enorme da obra de Lima). Tenhoalguns livros que foram de Mário em que ele anotara exaustivamente, páginapor página, todos, todos os sonetos de Jorge de Lima. Pouco antes, a Folha doNorte instituíra o concurso Embaixador da Juventude, cujo prêmio era uma

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viagem ao Rio de Janeiro. A votação era com cupons, publicados diariamentenos jornais. Eu representava o Moderno, Mário o Paes de Carvalho. Votarammais em mim e ganhei o concurso. Eu e Mário desenvolvemos uma amizade tãoprofunda que costumávamos visitar a casa um do outro sem aviso prévio...

P: Por essa época o senhor chegou a escrever poesia...(Risos) É, publiquei muita besteira naquela época... Coisas sem valor

nenhum. O Haroldo dirigiu um suplemento excelente na Folha do Norte. Todospublicávamos - Max Martins, Alonso Rocha, Paulo Mendes, Paulo Plínio Abreu,Ruy Barata. Era um suplemento local, mas de amplitude nacional: CarlosDrummond de Andrade e Cecília Meireles, por exemplo, escreviam especialmentepara ele. Eram ideias modernas. (O modernismo aqui repercutiu duas vezes: ageração de Bruno de Menezes, num primeiro momento, e a nossa. Entre nós, areação era principalmente ao parnasianismo.)

Aliás, antes, o Haroldo também fundara um jornal de colégio - O Colegial- que circulava em todos as escolas e em que cheguei a publicar muita besteira.

P: Nas reuniões literárias dessa época havia aquele espírito irreverente, farrista?Tinha bebida alcoólica?

Não. Nessa época - tínhamos 17, 18 anos - bebíamos mais era café comleite. Depois - em 51, 52 - houve mais frequentação ao copo, mas sempre muitomoderada.

P: Cerveja, vinho...?Uísque.

P: Quando o senhor começou a viajar? Morou fora de Belém?Morei fora algumas vezes, mas sempre por temporadas. Por dois semestres

dei aulas nos Estados Unidos: um na universidade de Vanderbilt, que fica emNashville, Estado do Tenessee, e outra em Austin, no Texas. Em ambos fuiprofessor convidado de Literatura Brasileira. Na França, também por duas vezes.A primeira, em 67, 68, como lecteur, que é um professor que não pertence aoquadro e é nomeado para coadjuvar uma função.

P: Na França dos anos 20 e 30 moraram alguns dos maiores escritores deste século.E no século passado havia aquelas reuniões em tarvernas, das quais inclusive o Rimbaudparticipava. Havia uma curiosidade intelectual de frequentar esses lugares, reviver aqueleclima romântico de literatura?

O clima já não existe. Acabou há muito tempo. Mas muitos lugares foramconservados, preservados vários referenciais históricos.

P: O senhor viveu em Paris os momentos de tensão e da própria eclosão da Revoluçãode Maio. Conheceu o Fernando Henrique Cardoso, que também estava em Paris nestaépoca?

Não. Mas ouvia-se falar muito dele entre os exilados. Era uma espécie detrunfo: “Fernando Henrique vai estar em tal lugar”, “Fernando Henrique falouisso e aquilo”, dizia-se dele na época.

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P: E as lembranças marcantes da Revolução?Era a época dos estados gerais dos Estudantes. Havia muitas assembleias

estudantis, com representação paritária entre estudantes, professores...

P: O senhor se envolveu de alguma forma? Participou de reuniões, passeatas...Não. Eu preparava uma tese para a Sorbonne e não tinha tempo. Uma vez

fomos a um subúrbio de Paris, assistir à montagem de “O rei da Vela”, de Oswaldde Andrade, dirigida por Zé Celso Martinez Correa. Na volta - retornamos pelasvias normais, de metrô - percebemos um movimento inusitado na cidade. Nodia seguinte já começavam as passeatas. Seguiram-se as greves. Houve momentosde tensão, mas, de certa forma, foi bom porque conheci Paris sob um aspectoinédito. As pessoas nas ruas com os braços cruzados. A cidade inteira de braçoscruzados. Bancos, Correios, tudo fechado. Na ocasião, todos estavam à esquerda.Faziam-se passeatas enormes, que geralmente acabavam em confronto com apolícia. Uma vez, na volta de um restaurante em que encontráramos um amigoprofessor italiano, presenciamos um confronto: de um lado, os policiais: comviseiras, cacetetes e um tipo especial de fuzil, com cano largo onde punham asbombas de gás lacrimogêneo. De outro, estudantes, professores... Não se mexiam.Um defronte do outro. O confronto acabou em violência generalizada.

Os manifestantes também quiseram recompor as barricadas, uma tradiçãoem Paris. Eles serravam as árvores, que bloqueavam os bulevares... Tambémusavam coquetéis Molotov. Foi nesta época que de Paris mudei-me para Rennes,onde permaneci um ano lecionando - como lecteur - literatura brasileira e estética.

Na volta ao Brasil, já anos depois, lecionei filosofia da linguagem e estéticano Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, em São Paulo. Hoje doumuitas conferências: no Rio de Janeiro, São Paulo, São Luís, Porto Alegre, BeloHorizonte e também no exterior.

P: O senhor ainda dá aula?Aposentei-me da UFPA em 1992. O motivo principal foi a ameaça do

Fernando Collor de acabar com a aposentaria por tempo de serviço. Além dasconferências, oriento teses de mestrado em Letras, na UFPA, e, de vez emquando, leciono a disciplina teoria da crítica.

A AMAZÔNIA, SEUS ESCRITORESP: Como o senhor avaliaria o imaginário, o homem amazônico?O imaginário amazônico é muito difundido e difuso. Está no

“Macunaíma”, de Mário de Andrade. Está também em outro grande escritorparaense, José Veríssimo, do princípio do século. Ele é mais conhecido comocrítico - é autor de uma das melhores histórias da literatura brasileira - mastambém escreveu contos, foi etnólogo, publicou lendas amazônicas, escreveusobre pesca, fundou um colégio em Belém e contribuiu para a fundação domuseu Goeldi. O problema é que a literatura dessa época era laudatória, comgrandes discursos, aquele sonetos...

Sabes quantos discursos se fizeram na morte do Carlos Gomes? (Houve umgrande féretro em Belém, mas afinal ele foi enterrado em São Paulo. Em Belém,

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foi um acontecimento. Uma verdadeira procissão saiu da casa onde ele morreu,na Quintino com Tiradentes. Participavam autoridades, representantes de colégios,religiosos, bispos, associações, entidades. A primeira parada foi no Cemitério daSoledade. Depois o corpo seguiu até onde hoje fica a Feira do Açaí.) Pois bem:foram feitos nada menos que 40 discursos, fora os sonetos. É demais, não é?

P: O que ter nascido entre tantos rios e florestas moldou em nossa personalidade?Quando os portugueses aqui chegaram, a população era indígena. Teve

um camarada que participava daquela famosa expedição do Pedro Teixeira quedisse que havia tanto índio que não podia cair uma agulha no chão. De formaque muito do que os portugueses aprenderam e adotaram por aqui tem raizindígena: as técnicas de conseguir alimentação, caça, pesca, culinária, construçãode casa. Esta característica acabou preponderante em nosso imaginário. Depoisela foi abafada, e hoje retorna apenas nas danças dramáticas, pássaros e rituaisdos encantados.

P: O amazônida seria mais lento, mais agitado, mais hospitaleiro - como situá-lo emrelação ao resto do Brasil?

É meio perigoso abordar isso superficialmente, porque vamos acabarchegando à tese da preguiça. Por ter uma relação maior com a natureza e ter umritmo normal ao respeitar a sua natureza interior, os índios não tinham a mesmanoção de trabalho, as mesmas tensões. Hoje isso está tudo muito misturado.

P: Com poucas palavras: o que é o homem amazônico?Ele existe? Tudo é muito diversificado: o ribeirinho, o citadino. Lamento

muito é a perda da linguagem. Talvez isso fosse um pouco do amazônida: umcerto modo de falar.

P: Que escritores se destacam na apreensão e expressão desse homem amazônida?No passado, José Veríssimo e Inglês de Souza - o dos contos e romances,

ali pela década de 40 do século passado. No presente, Dalcídio Jurandir (prefirofalar só dos que já morreram. Os outros são muito próximos, muitos são meusamigos). Dalcídio fez o romance de Belém, e também o urbano, o rural. Seuromance “Belém do Grão Pará” é muito belo. É o grande retrato de Belém daépoca: tudo que perdemos está ali: todo, completo.

P: E Haroldo Maranhão?Não quero falar dos vivos, mas o Haroldo é um grande amigo e também um

escritor de grande envergadura. É um grande escritor - domina o conto, a crônica ea grande narrativa romanesca, de que “Cabelos no Coração” é um exemplo.

P: Ele seria o maior prosador, hoje, do Pará?Eu acho que sim.

P: E outros, como Benedicto Monteiro?Não quero falar dos que estão vivos.

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P: E Ruy Barata?É um poeta que tem muitas dimensões. Ele consegue transcender a simples

realidade de escritor amazônico. E é um cruzamento de vários poetas, massempre firme em sua individualidade (isso é muito importante: que o poeta nãose isole dos outros). Inclusive quando ele publicou “A linha imaginária” fez umabrincadeira: colocou como endereço da editora o da minha casa.

P: Quem mais transcendeu o que se pode chamar de um “regionalismo” entre aspas?José Veríssmo, Inglês de Souza, Dalcídio Jurandir, Bruno de Menezes,

Ruy Barata, Haroldo Maranhão, Max Martins, Paulo Plínio Abreu, Age deCarvalho, Mário Faustino...

P: Mário seria o maior entre os poetas?Todos são diferentes, únicos. O traço que distingue Mário dos outros é

que ele teve uma preocupação muito grande com a natureza da poesia. Umapreocupação crítica. Uniu as duas coisas: poesia e crítica. Foi um esplêndidopoeta-crítico, que morreu muito novo.

Talvez por isso sempre há a expectativa pelo lançamento das obrascompletas dele. Eu e a professora Maria Eugênia Boaventura, da Unicamp,estamos organizando essa obra - que incluirá suas mais de cem crônicas, toda apoesia, os artigos, contos, poesia traduzida, cartas, iconografia. A idéia é lançaro primeiro volume ainda este ano. Depois se decidirá a que intervalos serãolançados os outros. Devem ser cinco ou seis volumes.

P: Mário foi o autor mais importante que o Brasil perdeu precocemente?Não se pode esquecer de Castro Alves, Álvares de Azevedo e outros

românticos. Eles todos morreram tão cedo. Mas eu incluiria os “Sete sonetos deAmor e Morte”, de Mário, entre os poemas essenciais da literatura brasileira.

P: O senhor conhece a nova poesia paraense? Antônio Moura, Reivaldo Vinas...Comecei a ler o Antônio Moura. Ele é muito bom, me surpreendeu. O

Reivaldo também tem coisas boas. Há também o Benilton Cruz, poeta de grandevalor em quem votei para o Prêmio Nestlé.

P: E o Age de Carvalho?Este é um poeta de alta qualidade, e que se renova sempre. Os últimos

poemas que ele está escrevendo são completamente diferentes do que já fez.

P: Drummond é o grande poeta brasileiro?É um dos grandes. Poesia é uma linguagem múltipla, muito diversificada.

P: Esse século - Fernando Pessoa, Lorca, Eliot, Yeats, Maiakovski - foi bom paraa poesia?

Até há bem pouco tempo foi. Hoje as condições não são muito propícias.Mas o século passado também foi excelente. Basta lembrar de Rimbaud eBaudelaire.

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P: Quem influenciou mais a literatura deste século, Freud ou Marx?A influência foi sempre indireta. Eu diria que influenciou mais a crítica.

A criação foi influenciada, mas num plano interpretativo. Os autores assimilarama psicanálise e a adequaram à própria sensibilidade. Não houve um processodoutrinário. Aí podem-se citar Fernando Pessoa e Clarice Lispector.

P:Fernando Pessoa é o grande poeta deste século que menos deve a Mallarmé?Ele estava mais ligado a Baudelaire, Rimbaud, ao surreal. Nunca houve

poeta mais cético...

P: Machado de Assis ou Guimarães Rosa? Drummond ou João Cabral?Todos.

P:Cinema é arte - no sentido de ter produzido grandes obras numa comparação como que se produziu na poesia, por exemplo?

É arte, mas que desloca o sentido da grande contemplação estética. Eudiria que é arte no sentido de que pode atingir grandes níveis de pensamento.Fellini pensa. Bergman pensa (especialmente de “O sétimo selo”). Kurosawa,que fundiu Shakespeare à tradição japonesa, uma maravilha. Orson Welles euaprecio, mas não tenho com ele, digamos, muita afinidade.

DESAFIOS DO TERCEIRO MILÊNIOP: O mundo está caminhando para uma virtualização? As pessoas vão pensar

diferente, ter ritmos diferentes?A cultura eletrônica, se você me permite essa expressão, é penosa porque

de certa forma passa ao largo de uma multidão de analfabetos: por mais queeles se iniciem nela, continuarão analfabetos. Então há duas mentalidades: ados que vivem essa transformação e a dos que são alheios a ela. O ideal seriaunir os dois tipos.

Virtualização? Acho que há transformações, mas não sei se vão determinarmudanças tão profundas de comportamento. Mas há outras relações, outraslinguagens. O e-mail, por exemplo: não se escrevem mais cartas. E há as conversaspor computador: conversa na ausência de pessoas.

Mas a mais triste é a “virtualização” paradoxal do conhecimento. O homemnunca teve tanto conhecimento de seus direitos - e nós vemos essa penúria doestado de direito em toda parte. Nunca teve tanto senso de igualdade - e vemostanta forma brutal de opressão. O caso do Brasil é bem significativo...

Quanto ao livro e o computador, sou um homem livresco. Não vejo o fimdo livro. Acho que ele vai ser complementado, até colocado em outros planos.O que é para um cego, por exemplo, apenas ouvir “Os irmãos Karamazov”? Éoutra forma de vivenciar a literatura...

Também disseram que o vídeo ia acabar com o cinema - e, só num bairroem Paris, há 40 salas de projeção. O CD nos permite ter uma orquestra dentrode casa...

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Quanto a mim, o computador é uma máquina de escrever mais potente. Eleme permite, com recursos práticos, escrever mais rápido. Hoje escrevo muito mais.Quanto à Internet, só mexi quando o técnico veio ensinar. Nunca voltei a ela...

P: Como o senhor vê a globalização?Até agora ela tem sido inevitável. Mas há muito palavrório quando se diz

que ela é o futuro da humanidade. Ela é um incidente grave, certamente, daatual fase da economia mundial, envolvendo produção e consumo. É, de certaforma, igual a mercado, domínio planetário da técnica. Mas não é o futuro. Issoseria pôr em xeque as ideias de cidadania universal. Acho que a globalizaçãopode ser positiva se afastarmos a dominação do mercado. Quando se fala emglobalização, fala-se em dominação, não necessariamente de países, mas decompanhias sobre países. Esqueceram que nosso passado intelectual e históriconão é só liberalismo. Ele inclui, por exemplo, o Socialismo Utópico, que Marxquis ridicularizar.

P: O socialismo está sepultado?O comunismo sim. Mas o socialismo pode renascer. Admito a ideia de

uma sociedade igualitária, conservando as diferenças de cor, religião e raça,mas resguardando a igualdade de direito e sem miséria. Não acredito noutrotipo de globalização, que é a comunista - um estado providencial, orientando,normatizando politicamente. No fundo ainda é o problema do Kant, quandofalava da maioridade intelectual do homem.

Acredito que se possa fazer a junção de socialismo com democracia.

P: Que grandes desafios o terceiro milênio reserva para o homem?O desafio do pensamento, principalmente. Como sintetizar o que já se

conhece, o que já se sabe? Como restabelecer um pensamento reflexivo dianteda automação e da automatização dos meios? Enfim, permanece a velha questãodos iluministas: como melhorar o homem?

Eu diria que as grandes conquistas de nossa cultura - letrada e científica -seriam a copernicana (o homem sabe que não é mais o centro do universo) afreudiana (a consciência não é tudo) a darwiniana (que reforça isso) e a filosóficaheideggeriana (você não tem a verdade). O grande trauma do homem é terperdido a relação que tinha com o Absoluto e não poder preencher isso.

Como dar satisfação a esse sentido de sagrado? (Certamente não será pormeio dessas pequenas religiões que proliferam e que têm um vínculo direto como problema social...)

P: O senhor acredita em Deus?No Deus cristão, você quer dizer. Acho que existem outras possibilidades

de conceituar Deus, fora do cristianismo. Em relação ao Deus judaico-cristão,sou agnóstico: o que acha que não tem razões nem para acreditar nem paradesacreditar...

Heidegger defendeu que, se houver uma nova atitude perante o ser, diantedo que existe, haverá também uma nova idéia de Deus: seria “o último deus”.

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P: E os principais desafios do Brasil?Tudo que a revolução de 30 não conseguiu resolver. Tivemos um momento

bom, de relaxamento (alívio) mental no período do Juscelino. O ano que nãodeveria acabar... Quando parecia que ia recomeçar, veio o golpe (essa experiênciafoi muito traumatizante). Agora, na fase do neoliberalismo, ou seja lá o que sechame, continuam os mesmos problemas fundamentais: de carência, deanalfabetismo, de miséria, de população desvalida, de criança desamparada.Enfim, coisas que se um brasileiro for pensar duas vezes, e tiver dinheiro, semanda do país.

BICHOS, ET’S E FUTEBOLP: O que faz para se divertir?Cinema, música clássica e leitura.

P: Relê muito?Sim, e os livros mais variados possíveis.

P: O que lê por puro prazer?Poesia.

P: Quais os poetas mais visitados atualmente?Rimbaud, Antonio Machado...

P: O senhor gosta de futebol?Não. Realmente nisso não me identifico com os demais brasileiros: não

tenho o menor interesse por futebol.

P: Nem na Copa do Mundo?O último interesse que tive foi na Copa de 70, aquela seleção com Pelé.

Depois a coisa se mercantilizou muito. Esses times de hoje - como se diziaantigamente - são muito frouxos.

P: Acredita em extraterrestres?Não acredito.

P: Crê que o universo inteiro só é habitado pelo homem?Não é matéria de crença - que pode haver, muito bem. Mas crer que haja,

não. É uma questão de possibilidade, e não de crença.

P: Quantos livros o senhor publicou?Doze ou treze. “O Mundo de Clarice Lispector”, “Introdução à Filosofia

da Arte”, “Filosofia Contemporânea”, “Farias Brito”, “O dorso do tigre”, “JoãoCabral de Melo Neto”, “Oswald Canibal”, “Leitura de Clarice Lispector”,“Passagem para o poético”, “Tempo na Narrativa”, uma nova versão de“Filosofia contemporânea”, uma reedição da “Filosofia da arte”, “No tempo do

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niilismo e outros ensaios”, “O drama da linguagem”, mais os que fiz com outrosautores ou organizei.

P: Qual vai ser o próximo?Será uma coletânea de ensaios sobre filosofia e literatura. Sai nos primeiros

dias de maio e será lançado na Bienal do Livro de São Paulo.

P: Que conselho daria aos novos escritores?Se já são escritores não precisam de conselhos. Se ainda não são, leiam,

leiam, leiam, escrevam, escrevam, escrevam.

P: Quantas línguas o senhor fala?Bem o francês, menos bem o inglês, entendo e leio bem o alemão e o

espanhol dá pro gasto.

P: O senhor gosta de bichos...Sim, muito.

P: É verdade que internou numa clínica uma cadela que encontrou atropelada?Sim, a Amaralina. Estava jogada contra o muro do Bosque Rodrigues

Alves. Passou uma semana na clínica. Estava grávida, teve seis filhotes e hoje éfazendeira perto de Santo Antônio do Tauá. Aqui em casa temos uma gata, aGigi, e uma cachorra, a Martinha.

– A Martinha ficou convencida desde que apareceu no Jornal do Brasil ecobra cachê para dar entrevista - diz Maria Sylvia, mulher do professor Benedito.

– É isso aí - concorda Bené.

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Nesta edição especial, o Mão Livre traz uma entrevista com o professor efilósofo paraense Benedito Nunes, pensador brasileiro, com diversos ensaiospublicados sobre filosofia, arte e literatura. Este ano, Bené, como é chamadopelos amigos, foi um dos ganhadores do Prêmio Estadão Cultural, promovidoanualmente pelo jornal O Estado de São Paulo.

Com Benedito Nunes, o Mão Livre fez uma entrevista diferente: convidouprofissionais ligados à arte para que fizessem as perguntas.

Entre os temas presentes nas questões formuladas a Benedito Nunesestão a produção artística e a crítica em Belém, a política cultural, o pensamentofilosófico na Amazônia, o tempo e a Internet.

Mão Livre: Como relacionamo-nos com o tempo mínimo-infinito, quandoa velocidade da vida nos remete a um futuro afobado e nos tora a preciosidadedo átimo, do momento, do presente. Nós temos o tempo ou estaremos sempresubjugados a ele? (Maria da Conceição Loureiro, produtora cultural e professora)

BN: Podemos pensar o tempo tanto sob o aspecto do futuro quanto dopassado e do presente. Mas o tempo mesmo não é qualquer desses aspectosisoladamente. Se o fosse, teríamos três tempos em vez de um só, mesmo porquehá um presente do passado (quando pela memória você se lembra dedeterminado instante de sua própria vida que já foi), um presente do futuro(quando você, pela imaginação, está na expectativa do que vai acontecer), umpassado do presente (oito horas em relação a nove horas da manhã de hoje),um futuro passado (quando você, relatando acontecimentos já sucedidos,ordena-os uns depois dos outros). Vide, a esse respeito, a magnífica descriçãode Santo Agostinho no livro XI de sua “Confissões”.

A filosofia nossa de cada dia

* Entrevista publicada noBoletim Cultural da revistaMão Livre, 1998.

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Um futuro não é menos futuro por ser afobado. É certo que vivemossempre para diante, e raros são aqueles que fruem o presente como tal, emestado puro, pois que o presente também está se dividindo entre passado efuturo. Felizmente! Sem essa divisão, o tempo seria um rio em que estaríamosmergulhados ou uma corda tensa puxando-nos para a frente. Graças a essa divisãoé que há experiência vivida do tempo e de nós mesmos, e que consiste numacontínua relação do presente com o passado na expectativa do futuro. Foi o queBérgson chamou a duração real. Só quem alcança a duração real pode voltar-separa o átimo e encontrá-lo numa experiência excepcional, como os artistas quandocriam, escritores quando escrevem, místicos quando rezam.

Mão Livre: Qual a função do regionalismo na literatura e na filosofia?(Márcia Mendes, jornalista e produtora cultural)

BN: Regionalismo é um termo histórico-literário datado, prevalecenteem fins do século XIX, profuso na América Latina, mas raro na Europa. Significa,principalmente na narrativa, de modo particular na ficção romanesca, demarcar,pelos limites de uma região geográfica, com suas características distintivas, atemática, os personagens, as situações e a linguagem de uma obra literária. Emgeral, esses aspectos se articulam no regionalismo, cuja marca histórica,entretanto, ficou sendo, entre nós, o realismo (descrição de costumes) e onaturalismo (primado dos instintos primários, da hereditariedade, dos traçosraciais etc.), como no romance “A Bagaceira”, de José Américo de Almeida ou,em dose mínima, em “Menino de engenho”, de José Lins do Rego. Por aí se vêque o regionalismo nasce com uma filosofia: obedece a uma ideia de natureza.Diz-se dessa ideias que é o pressuposto filosófico do regionalismo, provenientedo século XIX e que integrou tanto o romantismo quanto o realismo.

Mas regionalismo não é uma rubrica filosófica. A Filosofia nunca é regionalno sentido acima. Não se conhece obra filosófica propriamente dita que sejaregionalista.

Acho que convém distinguir entre regionalismo e regional. A literaturapode ter regionalidade sem que, forçosamente, seja regionalista. A filosofia estáacima das regiões; ela reside na amplitude das questões que levanta: amplitudeuniversal. Certa literatura, como a de Guimarães Rosa, que aproveita matériaregional abundante, constitui uma espécie de supra-regionalismo. Quando alguémescrevesse sobre a visão amazônica do mundo estaria aplicando um conceitofilosófico (visão do mundo = Weltanschauung) para tirar o sumo das lendas, crençase comportamentos do homem amazônico, no intuito de configurar um conjuntode pensamentos, idéias e atitudes.

Mão Livre: O senhor ainda vê legitimidade na “pintura” como meio deexpressão artística contemporânea? Qual seria seu papel no próximo século?

BN: Por que não? A pergunta é o resultado de uma ideia linear sobre aevolução das artes, de acordo com o ponto de vista do vanguardismo estético.O que nela está implícito é uma linha evolutiva só, que passa pelo “quadro” e

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que o conduz ao acabamento da pintura. Mas há outras espécies de superfíciese o quadro mesmo tem mostrado enorme vitalidade, sem ainda ter-se tornadoobsoleto. O que, talvez, tenha caído na obsolescência é um certo gênero derepresentação pictórica.

Mão Livre: O segmento cultural tem se ressentido da ausência dosrepresentantes do pensamento intelectual paraense testemunhando odesenvolvimento e os resultados de seu processo criativo. Esse distanciamentonão vem dificultar o reconhecimento da nossa produção artística contemporâneae a tão necessária formulação de um pensamento crítico em relação a ela, porparte dessa intelectualidade formadora de opinião? (Berna Reale, Tâmara Saree Tadeu Lobato / Galeria Theodoro Braga)

BN: Sem dúvida. O artista estaria sozinho, numa relação entre ele e oque faz, sem mediador. Isso é carência. Por quê? Porque sempre, em todos ostempos, a obra chega ao público através de um pensamento outro, que não é opensamento do artista. Um outro de compreensão, seja aprovadora seja deoposição, que ajuda a formar ideia sobre o produzido. Em outros meios, apresença da crítica se manifesta, ainda que esporadicamente. Entre nós, nemisso. Ora, não se trata apenas da falta de ressonância do que se faz. O que se faznão encontra um pensamento exterior que venha ao seu encontro para confirmá-lo ou denegá-lo. Esse pensamento exterior integra a vida da arte, compõe o seuperfil histórico. As obras se produzem, são expostas e em torno delas não hápalavras. Elas ficam sem vida, destituídas de história. Ao artista falta o seuoutro; em torno dele não se forma a comunidade de diálogo que o transporta aofuturo.

Mão Livre: O senhor, há alguns anos, declarou em um jornal de grandecirculação que a geração atual estaria mais propícia, por causa de sua culturavisual preponderante sobre o conhecimento da escrita e/ou contato com a leitura,a produzir mais cineastas e videastas que escritores. Como o senhor pensa essaquestão hoje? A retomada do cinema nacional pode ser uma resposta a esta suaanálise? Neste prisma, qual seria a influência da Internet na produção da cultura,no Brasil e no mundo? (Jorane Castro, cineasta)

BN: Pensava, naquela entrevista, especialmente nos fotógrafos. Entrenós, há mais fotógrafos do que pintores de qualidade. É verdade que nossaliteratura de hoje – poesia e prosa – não é tão boa quanto a das décadas de 50 e70. A cultura visual tem subido muito; nosso cinema comprova isso. Mas aInternet ainda é um melting pot.O paraíso da comunicação ou da parolagem, doblábláblá? Em parte. Por outro lado, o intercruzamento das mais dísparesinformações; um vasto mercado não ruidoso de tudo, o etéreo mural, o muralmóvel da publicidade pessoal, interpessoal. Há sites para tudo. Solitários e ansiososde todo mundo, uni-vos, imaterialmente, descorporificados! Não sei o que possasair disso.

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Mão Livre: Se se concebe com Habermas que “a identidade de umasociedade é determinada em termos normativos e depende de seus valoresculturais, os quais podem mudar em consequência de um processo educativo”,podemos também admitir que os órgãos públicos têm uma função catalisadoranesse esforço simultâneo de sedimentação e transformação das implicaçõesnormativas próprias da consciência intersubjetiva de uma dada sociedade. Comoconsidera, face à justeza deste postulado teórico-filosófico e Habermas, asrealizações daquilo que deveria corresponder à chamada “políticas cultural”desenvolvida pelos nossos órgãos públicos competentes? (Andréa Feijó. Artistaplástica)

BN: Desconfio de toda política cultural. Por trás dela está o Estado,definindo a cultura e determinando a sua política por essa definição. Pode tambémse dar o contrário: a política sobredetermina a cultura e, já assimsobredeterminada, o Estado a define. Isso tanto acontece no Estado forte quantono Estado liberal. Mesmo neste, de mansinho, o Estado toma conta da cultura– o que quer dizer que a domestica para seus fins.

Mão Livre: Na 24ª Bienal de São Paulo, Cildo Meireles reapresenta “Desviopara o vermelho”, um monocromo tridimensional em que o espectador penetrana pintura. Adriana Varejão, por sua vez, toma como referência o quadro dePedro Américo, “Tiradentes esquartejado”, e através de um processo sofisticadoque envolve o tridimensional e o bidimensional, constrói a sua instalação. Comoo senhor observa esse diálogo entre uma arte tradicional como pintura e ainstalação em que o elemento motriz é a ideia? (Marisa Mokarzel, arte-educadorae mestre em Crítica da Arte)

BN: Acho que a instalação assinala a tecnificação da arte em seu graumáximo. A ação da técnica moderna avançada se distingue por amar seus efeitosem grande ou pequena escala; diz-se que a técnica é o efeito de instalarproduzindo ou de produzir instalando. A “instalação” em arte tem semelhançacom a instalação técnica. Independentemente disso, o conjunto técnico-instalatório pode aproveitar as outras artes – aproveitar “servindo-se” delas,desintegrando-as para reintegrá-las em seus conjuntos. Mas, nesse caso, talvezo reintegrado não subsista em sua essência; a pintura deixa de ser pintura. Aoreintegrar-se, ela se torna como que uma “citação” do que houve e que terá sidoesquartejado como Tiradentes o foi.

Mão Livre: Sua obra é respeitada em nível nacional e internacional e, noentanto, o senhor sempre manteve em Belém a sua base de trabalho e a suaresidência. Há praticidade nessa opção? Seria Belém uma segura reclusão dosaborrecimentos da academia? Por outro lado, essa opção teria alguma motivaçãointelectual ou sentimental? Qual seria? É possível fazer filosofia sob o calor deBelém do Pará? (Fábio Castro, professor universitário)

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BN: Começo pela segunda pergunta. Peço-lhe para substituir “Belém”por “minha casa em Belém”. Essa casa talvez possa ser considerada um lugarde voluntária reclusão dentro mesmo de Belém. Não gosto da cidade tal comoela é hoje: movimentada, barulhenta, com permanentes pontos de “insolaçãosonora” e arquitetonicamente feia, modernosa, mas no fundo e no extenso, umpobre e enorme subúrbio virado para o centro. Não mais a cidade das mangueiras,as prediletas vítimas da fúria arborescida do paraense e da Prefeitura.

Para trabalhar, nada melhor do que a residência acima identificada. Ondepoderia encontrar no Rio, em São Paulo ou em Paris um lugar tão grande ecômodo que pudesse abrigar tantos livros? Houve, portanto, praticidade na opção.Mas se morasse numa dessas três cidades, talvez não tivesse tido necessidadede acumular tantos livros. A escolha atendeu a circunstâncias múltiplas. Houve,em 60, uma tentativa para emigrar. Não deu certo. Pouco me importei com oinsucesso. Depois disso, a casa criou raízes, como se expressaria o ArmandoMendes, e essas raízes me entrelaçaram. Gosto, sim, de sair de vez em quando,de afastar-me do meio, para sempre voltar, não tanto a Belém como ao meuabrigo ou, se quiser, nicho ecológico. Compreendi, desde cedo, que se podepensar e escrever em qualquer lugar, aqui ou ali, desde que se tenha – diriaantigamente – papel, lápis e caneta ou, como digo hoje, um bom e traiçoeirocomputador. Um dia esteve entre nós Anatol Rosenfeld, que me visitou, entrouno gabinete onde trabalho e tomou um susto. “Como o senhor pode trabalharcom esse calor?” Se o calor hoje atuasse, da maneira direta, a Filosofia iriatranspirar, como transpirava eu, de encharcar camisa e paletó quando, na décadade 50, dava aulas a uma da tarde. Mas havendo ar refrigerado... .

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A memória é sempre atual, pois a qualquer momentopodemos evocá-la. É vivida no eterno presente; aberta àdialética da lembrança e do esquecimento; alimenta-se delembranças vagas, telescópicas, globais e flutuantes; e criasentimento de pertencimento e identidade, etc (CláudioMagalhães, Caderno Virtual de Turismo, v. 3, 2005)

Menina ainda, conheci Benedito Nunes na casa de meus pais, Celina eMachado Coelho. O tempo passou e acabamos também nos tornando amigos;por vezes ia até a Estrela – rua onde ele mora – , outras, vinha ele na Vinte eCinco de Setembro – rua onde morei – , mas em nenhum momento precisávamosviver um na casa do outro para que nossa carinhosa amizade se tornasse cadavez mais próxima e sólida.

Sempre admirei o profundo conhecimento filosófico, crítico e literário deBenedito, suas inúmeras leituras tanto em português como em línguasestrangeiras. Benedito é, a meu ver, uma biblioteca viva.

Agora, conversando com Benedito, lembro-me, como se hoje fosse, quandoele foi meu professor num curso de Especialização na Universidade Federal doPará; suas aulas e seus comentários acerca dos assuntos tratados encantavam atodos. Nos falava de Jakobson; as funções da linguagem, e recordando estesmomentos não posso esquecer de citar JAPIASSÚ para quem “a memória pode serentendida como a capacidade de relacionar um evento atual com um evento passadodo mesmo tipo, portanto como uma capacidade de evocar o passado através dopresente (Dicionário básico de filosofia,1996, 178).

Mas, voltando ao Benedito, reitero o que já dissera antes: ele tem o domde se expressar com precisão e profundidade; as palavras ditas ou escritas poreste conhecedor do mundo e das coisas, sempre têm uma propriedade singular,

Ao lado:Em 1949, na frente dacasa da Gentil: Rita eAlonso Rocha; BeneditoNunes e sua tia Joana;os primos. À janela: tiade Benedito.

* Entrevista concedida à pro-fessora e amiga Rosa Assis,em 2009.** Doutora em Língua Portu-guesa. Professora da UNAMA-Universidade da Amazônia.

A outra vereda*

Rosa Assis**

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e isso sempre me encantou, independentemente do assunto tratado, por exemplo:do filosófico ao familiar. É um admirável prosador; gosta de conversar e darboas risadas.

Recentemente conversamos, primeiro por telefone, e depois pessoalmente,quando entre risos e recordações lembramos de coisas várias, caminhando orapor vias do erudito, ora do familiar, sem perder aquele sabor de infância gustável.Na ocasião, eu disse ao Benezinho que gostaria muito de documentar aquiloque ouvira ele me falar a respeito de si mesmo, com muita descontração, poisquando saí de lá pensei nos ensinamentos de Pollak:.

Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança,que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio notempo cronológico. Pode ser, por exemplo, um lugar de férias na infância, quepermaneceu muito forte na memória da pessoa, muito marcante,independentemente da data real em que a vivência se deu. (Estudos históricos,nº 3, Memória POLLAK e outros, 1992, 202).

e no que um dia lera em Drummond: “que riqueza, viver no tempo e fora dele”(Boitempo & A falta que ama, 1968, p. 48).

Tudo isso junto foi o estímulo para transcrever o que a memória afetivade Benedito armazenou e depois ele mesmo escreveu para esta nossa publicação,numa espécie de entrevista lúdica. Ora, puxar pela memória é fazer uma pesquisacronológica real, ir ao âmago de alguém para saber como foi o ontem, o que elefazia, como se sentia, e mais e mais; no caso do entrevistado, quanto lemos odito, logo percebemos que ele vive também a euforia do passado, tanto quefacilmente de suas palavras escritas visualizamos imagens, ouvimos sons. São,portanto quadros vivos, porque vividos, que nos aparecem como se estivessemem uma exposição; é uma espécie de olhar por meio de palavras. Pode tambémo leitor formar a sua leitura visual e auditiva como se estivesse em frente deuma tela de cinema, vendo o ‘trem’ passar, por exemplo. A visão de Japiassubem se enquadra no que afirmamos:

A memória pode ser entendida como a capacidade de relacionar um eventoatual com um evento passado do mesmo tipo, portanto como uma capacidadede evocar o passado através do presente. (JAPIASSÚ, 1996, 178).

Por tudo isso e muito mais é que disse recentemente a jornalista AdrianaKlautau, ao me entrevistar sobre o amigo Benedito, que para mim ele é: sapiência-sabedoria. E lembrei também que a memória dele é muito presente, basta elefazer uma pequena pausa, fechar os olhos que imediatamente afloram aslembranças-aulas de assuntos mais variados.

A memória, como se sabe, é algo tão forte, que muitos escritores se valeramdela para não apenas registrar, mas reviver, acordar, recordar, enfim, recomeçar oque deixaram apenas armazenado, jamais escondido num baú, ou mesmo guardadoa sete chaves, facilmente localizadas numa torre, na casa de parentes, de amigos,nos bancos escolares, em férias curtas ou longas. A memória é capaz de fluir

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rapidamente, basta um estímulo, tanto que um ah!, expresso por qualquer pessoa,nos traz à tona um ontem, que passa a ser, proustianamente, um hoje.

Ecléa Bosi, em Memória e Sociedade (1995, p.68) lembra Stern cujoexcerto citado se ajusta a este caminho que estamos percorrendo:

A função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que émais apropriada a ele. O material indiferente é descartado, o desagradável,alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida, otrivial é elevado à hierarquia do insólito; e no fim formou-se um quadro total,novo, sem o menor desejo consciente de falsificá-lo.” (William Stern)

Em 1974, nas livrarias do Rio de Janeiro, (foi lá inicialmente queencontrei) aparece o Baú de Ossos, de Pedro Nava, título dos mais sugestivos,pois a lexia baú, metaforicamente, significa guardiã de um passado, conceitoenfatizado por Drummond, conforme excerto a seguir:

Pedro Nava surpreende, assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina oleitor, com memórias da infância, a que deu o título de Baú de Ossos. Seusguardados nada têm de fúnebre. Do baú salta a multidão antiga dos vivos poiseste médico tem o dom estético de, pela escrita, ressuscitar os mortos.(Drummond, Baú de surpresas, 1999)

Assim, num jogo de memória verbo-visual-sonoro, cujo estímulo simplesé: eu começo e tu terminas..., traçamos esta conversa que não tem cunho filosóficoe nem de crítica literária, é tão somente ‘a outra vereda’, a da memória, pois estasabe, senão vejamos.

Memória: do latim memÒrîa, memória, relembrar; período alcançado pelalembrança; época, recordação narrada, relação1.

Benezinho,

1. A casa das tias....era risonha e franca... Com três quartos intercomunicantes, de portasabertas, um comprido corredor, faltava intimidade que eu mesmo haveriade criar.

2. O Bibi...foi designação específica dos parentes Leal, moradores da Cidade Velha, ondeeu e mamãe passávamos o fim de semana. Lá, Dona Miloca preparavahomeopatia para as doenças leves.

3. A primeira leitura...foi a Caçada de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Esse livro me foi presenteadopor um mendigo, a quem as tias davam semanalmente esmolas. Só pude lê-lodepois de longamente desinfetado pela comissão doméstica de higiene.

Em matéria de leitura estava confinado entre Homero e Shakespeare, ambostraduzidos pelo meu tio Carlos Alberto Nunes, durante anos meu principalfornecedor de livros.

1 Dicionário etimológico dalíngua portuguesa, José Pe-dro Machado, Editorial Con-fluência, Portugal e Livros,Horizontes, Lisboa, 1957)

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4. O rapaz no Colégio Moderno...foi presidente do grêmio cívico, devia ser antipático e exibido. Aproveitou emgrau máximo, a parte em francês da Biblioteca do Colégio Moderno. Eraamigo do Serrão, o Augusto Serra, diretor do Colégio Moderno, com quemconversava longas horas. Seja dito, a bem da verdade, que teve uma vaga gratuitapra estudar nesse mesmo colégio.

5. O estudante universitário...com Mário Faustino e Orlando Costa, dirigi revistas literárias. Fase das grandesdescobertas intelectuais, como a Filosofia da Existência e a participação política,assinando manifestos e frequentando o “Café Central” sob a liderança deFrancisco Paulo Mendes.

6. As férias tão somente: as do menino...lembro-me só de um período passado em Salvaterra. Com medo do tifo, quepor lá grassava, e de bois, que vedavam a passagem dos barrancos.

7. A casa da Estrela...quando nos instalamos na Estrela, o Marco ainda era um distante subúrbio,com o trem de Bragança apitando por volta das nove horas da noite. Hoje,apesar de grande, a casa tem livros em todos os cômodos.

8. O teu escritório...por causa de seu formato, o escritório, num dos extremos da casa, é chamadode torre...

9. O primeiro estudo publicado...foi sobre Clarice Lispector. Saiu em Manaus por obra e graça de Arthur CésarFerreira Reis, numa edição do Governo do Estado do Amazonas, do qual ele,meu professor no Colégio Moderno de Belém, tinha sido organizador...

10. Os amigos...os grandes amigos vieram cedo. O primeiro foi Haroldo Maranhão, com queminiciei uma “fase acadêmica”. Tivemos uma academia dos novos. Na épocaconheci Max Martins, de frequência semanal em minha casa.

11. Tempos do Marahu...foram tempos paradisíacos, que pouco duraram. Lá tivemos ilustres visitantescomo Loparic e Foucault.

12. E, agora, Bené?... 80 anos!E agora, aos 80 anos, é preciso, recomeçar a tentativa de viver.

Parabéns, Benezinho

Ao lado:Benedito, com sua mãe,Maria de Belém Nunes

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IV. Crônicas sobreBenedito Nunes

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Foto: Elza Lima

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* Doutora em Letras. Pesqui-sadora e professora da Uni-versidade da Amazônia –UNAMA. Autora, entre outros,de A palavra divina na surdez dorio Babel. EDUFPA,2008

O admirável em sua contínua, ininterrupta, excessiva capacidade de pensar,de seu pendor a verter-se reflexivamente sobre a condição humana, sobre existirtomado em conjugação verbal infinita, aberta ao universal, seja qual for amanifestação de ser, o admirável de sua inquietação por inquirir, espreitar, melhorse diga, desafiar as orlas do abismo de nós mesmos – irrevogáveis e pendidosao mistério - é que a travessia à plena ou frágil revelação possível, o risco detanto especular e depois aflorar com respostas apenas plausíveis, não resultou,na origem, de escolha pré-concebida, projeto prévio ou deliberada opção, frutoda liberdade, ainda que frágil, de ir por aqui ou por ali porque assim foi decidido.Diríamos, evocando o universo grego, tão interrogado e afeito ao pensamentode Benedito Nunes, que tudo se deu por eleição dos deuses, das musas, pelosbons votos de uma benfazeja moira, dirigindo o pensador às lides reflexivas, àconstância desse encargo, as deidades atuantes, seja em seus míticos circuitosintemporais de outrora, seja aqui, no plano da vasta e plena ideação de nossofilósofo.

Seu afã filosófico ascende, acende-se pouco a pouco, propagando clarõespor todas as direções do conhecimento, como se em decorrência, caso não dosdeuses, de predisposição arraigada em alguma genética sem registro factual,lastro sanguíneo, disposição de nascença, o talhe de sua vida desenhado dessejeito, porque sim, assim há de ser, assim se faça e ponto. Desse modo se dispõemseus primeiros assomos, tão precoces, rumo à floração progressiva de suaconsciência filosófica, à montagem de sua máquina mental dada a remoer eburilar pensares e saberes, pessoais e ou de outros, todos inteligências do mesmotope e, que nem ele, a viver de pensar e a pensar como apelo vital de viver.

Multimodo, profuso, inquieto

Amarílis Tupiassú*

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Poder-se-á, portanto, neste esboço de apresentação, retrato a traços largos,inferir, demarcar os entornos biográficos do homem marcado por signos demaravilha, seus primeiros frutos nascidos de acordo firmado nessas aras doinvisível, do insondável, de onde irrompeu a ordem muda de votar-se ao ofíciodeleitoso de estudar, algo como se fado ou sina, ou herança sem registrooficializado em página cartorial, os bens, as herdades humorosas e floridas queBenedito Nunes multiplica por esforço seu sempre a mais, lida de exclusivaresponsabilidade sua, seu basto de estudo, cuja germinação e colheita ele asseguracom rega persistente, cultivo diuturno, as floradas de ciência cuidadas comzelo, muito polimento, luz, calor medido, as flores aconchegadas em ambientaçãopropícia à multiplicação e potencialização da dotação com que o pensador foiagraciado por natureza, o dom de instigar-se à reflexão e à montagem dos livrosque nos oferta.

É o que se percebe quando se frui, usufrui da obra, isto é, do conjunto delivros, dos ensaios filosóficos, da crítica de arte, da prosa curta e de sua prosaalentada, dos papeis avulsos, anotações para encontros, fóruns, seminários,simpósios, mesas, congressos, discussões científicas, filosóficas, artísticas, oseventos a que dedica grande parte de seu tempo. Flanando pelas galerias à florda pele e subterrâneas dessa mina, encontram-se sentidos latentes,silenciosamente falantes, a partir dos quais se deduz, infere-se e afere-se lucideztamanha, quando o autor, em carne e osso, parece passar furtivo, difundidopelos interstícios, pelas entrelinhas de seus livros. É quando se extrai, da massade saber expresso, o eco de sua voz multímoda, sua concepção e circuito devida incomum, a inteligência incomum, incomum força de vontade, inquietaçãovibrante, a confiança no saber, motor de mudança, a constância, a vastacuriosidade, o prazer de especular, estes os timbres de sua fala proferida e grafada.Suas atividades, quais sejam, por vias diretas ou transversais vão sempre firmarsobre o sujeito de estudo o olhar percuciente, paciente, dardejante, olho teimosode fera mundiando a presa, assim o dirá o linguajar amazônico, para mencionar ofitar, o labutar insistente, teimoso, arrimo da reflexão investida de rigor e cuidado,o olhar varando a pauta a observar, esse rigor e teimosia a base sólida de suaescrita, de seu modo de filosofar, o olho ávido a internar-se pela maranhadesafiadora de ser, existir, olho posto a recuperar as razões, os desvios, aspassagens centrais e vicinais da existência, seus princípios, meios, fins, esses osembates, os motins de Benedito Nunes.

O sumoso fruto dessa inteligência, da sabedoria - sem concessões aofátuo, ao fácil – é o que se colhe quando se apruma e se finca a mente no soloesclarecido de sua obra que teima em puxar os fios da (a)ventura ( ou desventura)de ser e tecer a folha-mirante decidida a vislumbrar e enfocar o ido, o sendo e ovir a ser. Essa é a obstinação, a tenacidade, desde seus primeiros escritos, BeneditoNunes só um estudante e já dado à investigação, tarefa que, desde aí, eleva, opensador a tatear, perscrutar, averiguar do verso ao reverso do acontecimento,da contingência de ser, transladando-se o investigador da pele aos ossos, doaparente, sensível, ao que circunscreve a essência, essa sua assídua, talvez

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obsessiva ocupação, acolhida e desempenhada, não como obrigação fatigante esim como acridoce ofício, ação que compraz, absorve, domina, com alegria,comprazimento, o sorriso esparso pela escrita maturada em paciente ir e vir atéatingir no alvo o horizonte a depurar, sem açodamentos nem pressas, em novoscursos de ir e vir, voltear, cercar o território demarcado, observá-lo de perto ede longe, tirar a distância, escavá-lo raiz adentro, rama, folhagem acima, devassá-lo em escala mais alta, profunda, ampla e diversa possível. Sobre esse ponto,consulte as notas biográficas e bibliográficas apensas a este número de Asas daPalavra. São atestados, comprovantes de competência.

É gostoso deparar e seguir no encalço, no rastro dessa alegria. O leitorpara, sorri, também exulta, sente-se recompensado, quando Benedito Nunesalça a público o pendão de seu entendimento. E, se qual ao acaso natural davida afirmou-se a origem de investimento no saber, seu texto patenteia o quantoo assinalado se instrumentaliza às viragens de conhecer. Bendito vai a elas, nãosó como o bricoleur que passa a mão, manuseia à sorte a aparelhagem, os utensíliosao alcance imediato. É evidente que, se alguma vez, lança mão das livresdescobertas ocasionais, excede, ultrapassa qualquer sorte de bricolage, quandotoma distância, mede, elege seus portos, seu campo de ação, à precisão de afiar,limar, lustrar seus instrumentos, a bússola, o quadrante, as faces da rosa-dos-ventos. Então avalia outros demais olhares, debruça-se, com refinada acuidade,sobre os aparatos alheios, as notas de outras navegações, daqui, dali, de ontem,de agora, os dados que decifra, esmiúça e, se for certo o gozo, os saboreia comevidente prazer. Assim se aferra ao armazenamento de provisões às longasparagens da exploração, assentes as lupas intelectivas sobre todas as linhascartografadas, mesmo sobre as difusas. Ele preza a tudo, a tudo considera eassim apetrechado embrenha-se no manacial de saberes, de outros escritos, outrossolos apinhados de preciosidade, que palmilha e de onde dá saltos à lavra deassinatura própria mescla de singularidade, sedução, beleza.

É desse jeito, a passes de agudeza e alegria, de pressas, sim, mas acompassos serenos, entre vagares e deleites, vagares e ócios, muita flanérie, muitostesouros achados, que Benedito-leitor/ Benedito-escrivão levanta âncoras paramais uma investida. Desse jeito aporta às margens de acolher e encantar o leitorbeneditamente voltado aos veios de suas páginas. Desse jeito é que marcha oscholar, o atento hermeneuta e escoliasta, o multímodo sábio à eleição eacolhimento de pomos pelos hortos onde faz paradas para nutrir, cevar suabasta sabedoria, rigorosamente talhada a moldes humanistas, o filósofo presoàs acepções classicamente contemporâneas de saber.

Cabe acentuar que seu modelo de pensar já rareia nestes tempos deexagerada especialização, no mais das vezes redutora, sobretudo quando ocorresubmetida à requintadíssima e fabulosa tecnologia atual, bem-vinda, apesar deacabrunhante dada a sua quase misteriosa maneira de fazer-se real, terra-a-terra,para além do credível, potente, a imperar em todos os campos e correr célere ainusitado grau de onisciência, onipresença, uma tecnologia em excesso, nadasaudável no formar e automatizar mentes sujeitas a percepções horizontais de

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entendimento, mais nocivo ainda se tangido pela pressa que tende a desabar emvã superficialidade. Benedito Nunes, o homem espelhado na obra, joga naquietação, embebe-se de acalmia para alcançar o fundo do lago da sabedoria,em sortidas rigidamente presas à verticalidade, aos amplos, difusos, profundosleitos da cogitação. É tão compensador seguir com ele, imerso em calmaria,imbuído de suas circunavegações serenas. Circunavegar sem sofreguidão, inspiraroutros climas, novos ares, porto a porto, aportar as altas galas do saber, esta ésua marca, sua divisa.

É o que se pode depreender da obra, ela por si a desenhar o perfil doscholar que, enquanto esquadrinha horizontes, recorta e imprime, sob a pautacentral, finíssima malha autobiográfica , nem sempre flagrante, mas inscrita natessitura da escrita. Quer-se dizer da pletora de inteligência que as entrelinhasbalbuciam. Um texto tão cuidado e de tal monta há de retratar o alto quilate do

Foto: Elza Lima

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mentor. Benedito institui-se definitivamente como homem de pensar, cujo acervoautoral conduz a lavrados e lavradores de prol, daqui e dali, d’outrora, como,aliás, sói ocorrer na história dos pensadores excessivos e excepcionais.

Em outras palavras: a produção de Benedito Nunes desenha-se entre halosde inquietação presa a extensa expectativa de saber, algo que revela umapaisagem bahktianamente ou polifonicamente enformada, orquestral, ecoante,dialogante. É como se borda essa obra, coando e escoando a sabedoria dostempos, veio de vária escrita, conjugados de vozes, redes correlacionadas. Assimse inscreve essa obra, sem pressa, sem açodamentos, sem afogadilhos, semdescurar do que é eixo e do que se impõe como conexões.

Essas são as cartadas de mestre, deixar-se vogar livre e seduzido, protegidode qualquer facilitário, entregue de corpo e alma à tarefa de vigiar, assediar edominar a floresta compacta a averiguar, o acervo universal da humanidade,sem esse assédio, mero legado mortiço, grafia sem fundo, o vazio, se sobre afolha não mergulhasse ardente e prazenteira a rara acuidade. Desfiar e montar aescrita tersa, elegante, sedutora, esse é, em síntese, um senhal de Benedito, onome ajustado à ação bendita. Imerso na tarefa pacienciosa, de fato calma,ciosa e lenta de juntar os frutos e sorver de manso o sumo concentrado àespeculação e produção de idéias, assim segue o esquadrinhador, afinandoespéculos, refinando-se, interrogando, concluindo, incursionando os aléns detodos nós, e chegando com respostas provisórias, não importa, que assim há deser, respostas, contudo, que iluminam o precário. Benedito faz questão de afirmar-se em contínua revisão. Enfia, desata, torna remontar o novelo de sua autoria.Desconfiado, ausculta as vozes de sua própria escritura, sabedor de que o saberjamais é matéria finda, pronta, selada. Diz de um de seus livros: “O menossatisfatório [dentre meus livros] é ainda [por enquanto] um dos primeiros,Introdução à filosofia da arte, que deverá ser revisto e ampliado nos próximos anos”(In: Um roteiro dos livros de um sábio paraense. Belém: Jornal “A Província do Pará”- Entrevista a Lúcio Flávio Pinto, 26/05/91).

Há tanto o hermeneuta parece ter-se rendido ao cumprimento de umajura – a mesma do também raro Haroldo Maranhão – Nula dies sine linea -ditada à necessidade vital, diária, de escrever, o que inclui contínuo pensar ementar. É a notícia que escapa implícita de entre as linhas visíveis dos livros esegue ao leitor detido sobre essa profusa cogitação sobre ser e fazer-se o ser,humano ou não. Dobrar-se sobre as fugidias esferas da existência (in)finita,inquirir é o nem sempre leve fado a que intransigente se vota, por inteiro BeneditoJosé Vianna da Costa Nunes. Assim seguro e apercebido, abastecido, aparelhadoele segue à acolhida e reconhecimento, à alegria, ao júbilo do leitor, certamentemais lúcido, certamente recompensado, farto de saber, indubitavelmentefascinado.

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Foto: acervo Lilia Chaves

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Em um fim de tarde dos anos 70, a sessão de cineclube no auditório doCurso de Odontologia da UFPa estava vazia. O filme a ser projetado era umdesses que podia usar o hoje vulgarizado apelido de clássico. Benedito Nunes,um dos poucos presentes, definiu a situação englobando a gênese da preferênciado público: “Cinema é sempre a sobremesa. Anunciam um programa que temtanta coisa e no fim se alerta que também tem um cineminha”.

Faço um flash-back e vejo Benedito ensinando História para a minha turma,no Colégio Moderno, época em que a garotada comentava o “Sansão e Dalila”de Cecil B. De Mille, o sucesso dos cinemas comerciais nesse ano. Abrindo umparêntese na sua exposição sobre o Brasil de ontem, Benedito chamou o filmede abacaxi e citou “um leão empalhado” a lutar com o Sansão Victor Mature.Certamente era o modo mais simples de resumir o que a crítica comentava nosjornais.

Seria um absurdo conhecer uma pessoa culta como o Benedito que nãoadmirasse a arte dos Lumiére. Em 1955 ele estava ao lado de Orlando Costa naluta para manter o Cine Clube “Os Espectadores”, o primeiro de Belém. Assessões eram realizadas no auditório da Sociedade Artística Internacional (SAI)e as prévias dos filmes, feitas para os apresentadores, eram na garagem de minhacasa, perdão, no Cine Bandeirante. Um pouco antes dessa batalha pelo melhorcinema, lembro da polêmica em torno do filme “O Boulevard do Crime”(LesEnfants du Paradis) de Marcel Carné, exibido por apenas dois dias no cinemaOlímpia. Escreveu em “A Província do Pará” um crítico de ocasião que se diziaAdelina Lisboa Coimbra (logo se descobriu quem era). Mencionava entre outrasopiniões desagradáveis (pois o filme chegou até a ser considerado o melhor doséculo XX pelos franceses, anos depois): “... Não queremos dizer que o filmeseja mau. É bom. Mas daí ao aplauso sem restrições vai um bom passo”.

* Crítico de cinema. Presi-dente honorário da Associa-ção de Críticos de Cinema doPará.

Benedito Nunes e o cinema

Pedro Veriano*

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Respondeu Benedito em feitio de carta: “D. Adelina: Depois de ler a sua crônicasobre “O Boulevard do Crime”(...) não dominei a tentação de escrever-lhe sejaquem a senhora for, homem ou mulher.De qualquer maneira eu me dirijo àsenhora, D. Adelina Lisboa Coimbra, que resolveu gastar seu precioso tempoescrevendo uma crônica de cinema para não dizer nada. Tanto a sua crônicacomo a sua pessoa estão para mim no gênero neutro.”

Em outro flashback vejo Benedito estudante, quando o conheci em 1947,aluno de meu irmão (a matéria era Química), também no Colégio Moderno.Nessa época o meio estudantil vibrava com o concurso “Embaixadores daJuventude Brasileira”, uma promoção do “O Globo Juvenil”. Aqui em Belémos cupons para se votar nos candidatos dos colégios eram publicados em “AFolha do Norte”. Mas eu recebia “O Globo Juvenil” direto do Rio deJaneiro,enviado por meu tio. Por isso eu votava de duas formas, ou seja, comcupons do “Globo” e da “Folha”.. Benedito e Eva Andersen ganharam. OsSerras (Augusto e Oswaldo), donos do Moderno, sorriam para as paredes.Tivemos, de fato, bons embaixadores.

Voltando ao meu fio de meada, depois do Cine Clube Os Espectadoressurgiu o Centro de Estudos Cinematográficos da então jovem UFPA. Seusidealizadores teriam que ser os professores da Faculdade de Filosofia: OrlandoCosta e Benedito Nunes (tinha também a mão de Francisco Paulo Mendes,outra inteligência que abraçava o cinema com muito carinho). O Centro poucose manifestou, mas chegou a fazer um programa de filmes japoneses que não seconhecia por aqui. Foi a vez de se ver, por exemplo, “Trono Manchado deSangue”, o Macbeth de Kurosawa, e pelo menos uma obra-prima de Mizoguchi:“Os Amantes Crucificados”.

Antes mesmo de surgir o Cine Clube APCC (1997-1986), Benedito, suamulher Maria Sylvia, a cunhada Angelita Silva, e o amigo Chico Mendes,frequentavam o Bandeirante quando por lá surgia uma dessas raridadescinematográficas que eu caçava nas distribuidoras específicas. As sessões docineclube, na AABB, no auditório de Odontologia e no Grêmio Português,seguiram sem solução de continuidade. As nossas conversas sobre cinemainternacional eram alimentadas pelo que Benedito e Maria Sylvia viam no exterior.Foi por esse tempo que começaram as listas de melhores. Não só dos melhoresfilmes exibidos em um ano, mas de todos os anos. A primeira, eu lembro, foieditada pelo Acyr Castro, mas sem aferição qualitativa. Ele pedia “os filmesque você levaria para uma ilha deserta”. Não sei quem respondeu, copiando oque já tinham dito no âmbito da literatura, ou seja, que seriam filmes sobresalvamento, ou como sair o mais depressa possível da tal ilha. Mas não demoroua surgir a primeira relação dos melhores com as bênçãos cineclubinas.A últimadessas listas foi em 2000 quando se pediu, em ordem hierárquica, os filmesmais importantes do século. É claro que cada um tinha o seu grupo. No deBenedito cabia a obra do indiano Satyajit Ray, especialmente “Pather Panchali”que eu só fui conhecer mais tarde, na TV de assinatura com o nome de “Cançãoda Estrada”.

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Em uma apresentação no Grêmio Português do filme de BernardoBertolucci “O Conformista”, Benedito fez uma alusão ao Mito da Caverna dePlatão na sequência final. Quem pensou nisso e não se manifestou antes uniu aspeças de uma análise imprescindível à compreensão de um dos bons filmes doperíodo. Aliás, Benedito e Maria Sylvia haviam visto na Europa os primeirosfilmes desse diretor, coisas que só chegariam à Belém neste século.

Volto ao recurso do flashback e vejo uma aula de Filosofia do curso cientificodo Moderno. Lá estava Benedito Nunes e não faltava espaço para citar cinema,afinal um modo de se comunicar com uma platéia pouco atenta (o curso visavaciências ditas exatas e poucos alunos achavam necessário conhecer Sócrates ouPlatão). Nesse período já se delineava o filme introspectivo segundo MichelangeloAntonioni (conhecido como “o cineasta da incomunicabilidade”) ou o mais quesucedeu ao movimento neo-realista na Europa.

Outro ponto de encontro de quem dimensionava corretamente o cinemaera a sessão “Cinema de Arte” que passava das matinais de sábado do Olímpiapara as 6as. feiras à noite (22,30) no Cine Palácio. Nesse período Maria Sylviaproduziu um curta-metragem de animação dirigido por Sandra Coelho de Souzachamado “Manosolfa”. O lançamento teve ares de premiére tipo Hollywood,com os autores presentes. Em paralelo discutia-se a obra de Joseph Losey, ostrabalhos de Alain Resnais, o embrião da “nouvelle vague” e as novas tendênciasdo cinema mundial. Entre os exemplos considerados acadêmicos eu não esqueçocomo Benedito e Maria Sylvia comentaram, maravilhados, o “La Strada”(AEstrada da Vida) de Fellini, que viram bem cedo, fora de Belém. Tudo o quedisseram constatei emocionado ao ver o filme. Fellini era uma descoberta, emais tarde concordaríamos que “I Vitelloni” (Os Boas Vidas) era melhor doque “Amarcord”, a versão posterior, a cores, das memórias desse autor (memóriaspor ele desmentidas com o humor que acompanhou quase toda a sua obra)..

Uma das muitas pesquisas de Benedito abordou as crônicas que o poetaMario Faustino, seu amigo e também professor do Colégio Moderno no meutempo de estudante (e minha turma), escreveu sobre os filmes exibidos noscinemas da cidade. Mário manteve uma coluna no jornal “A Folha do Norte”,entre 1948/49, dando cotações expressas em números de 0 a 3.

Cinema não foi a sobremesa para o hoje octagenário. Por isso, certamente,alguns cineastas quando nos visitavam perguntavam por alguns intelectuais dacidade, citando especialmente Benedito Nunes. Não se tratava de um “colega”que fazia filmes, mas de um crítico a merecer o respeito do autor.

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Benedito Nunes:sedutor convite ao banquete filosófico

Ângela Maroja*

Foto: Elza Lima

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No Campus da Universidade Federal do Pará, recebi minha primeira aulasobre o pensamento de Kant. No calor daquela tarde de 1976, o Benezinhoestava particularmente emocionado. A turma era boa, com gente interessada eatenta ...

Se, de fato, há muito da guerra no amor, aquela aula marcou a data deminha rendição à filosofia. Quando o Bené referiu-se à terceira questão kantianacom os olhos brilhantes de comoção (ele tem olhos claros, cor de tacacá), e avoz, naturalmente, baixa, entrecortada e vacilante, não resisti! Mais ou menos,como há séculos atrás, Alcebíades diante de Sócrates.

Haverá, entretanto, quem atribua os detalhes deste relato às fantasias deuma Mnemosyne deslumbrada pelos encantos de Eros. Pedirei, então, que oentendimento me perdoe, já que sob seu sisudo trabalho, a imaginação tecesempre, e livremente, novas Formas, segundo uma obscura, mas legítimalegalidade.

Haverá, ainda, quem diga que tudo isso é retórica, e que a retórica nãoenobrece o filósofo, nem o pensamento filosófico. Aos partidários da secura doconceito, eu direi, apenas: Até hoje não conheci um filósofo como BeneditoNunes.

O Benedito Nunes une duas raras qualidades que dificilmente andamjuntas: o rigor argumentativo e conceitual, aliado a uma profunda erudiçãofilosófica, mas não exclusivamente filosófica. Para a alegria de Nietzsche, oBené adestra, cotidianamente, seus ouvidos à música, e com muita precisão écapaz de distinguir, já nos primeiros acordes, indicando seu intérprete, umQuarteto de Beethoven. O Benezinho também ama a poesia como Heidegger aamou. E se encanta com os Sonhos de Kurosawa, ou com a Nouvelle Vaguerefletida por Goddard.

Os textos do Bené são textos de filosofia, e não de literatura. São textosgenuinamente filosóficos, densos e consistentes, o que não impede, porém, queo conteúdo apresente-se, muitas vezes, articulado em uma bela linguagem, dignade um texto literário. (Um pouco à maneira do velho Platão).

Nunca se esquivando de convidar sempre novos discípulos para apartilha do banquete filosófico, seu telefone, sua casa, sua biblioteca, estãosempre abertos aos interessados, num gesto de simplicidade exemplar e sedutoragenerosidade, típicos do Benezinho. Comumente, as conversas têm lugar emseu gabinete de trabalho construído como uma espécie de torre de pedra dedois andares, anexada ao lado direito dos jardins da casa.

Mas, como todo bom mortal que se preza, o Benezinho tem lá, também,suas fraquezas: ele é tarado por chocolate, e todos os dias anuncia a decisão delargar o cigarro para sempre.

(Ele cumpriu a promessa!)

Belém, 8 de março de 2009

Texto publicado na Revista PRAvaLER, Rio de Janeiro, ANO II, 1990,no. 14., sem o acréscimo final entre parênteses.

* Professora da Universida-de Federal do Pará - Departa-mento de Filosofia.

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Do mais básico ao mais elaborado, três princípiosorientaram o crescimento inicial do ciberespaço: ainterconexão, a criação de comunidades virtuais e ainteligência coletiva.

Pierre Lévy

Sempre tive o ensimesmamento como traço. É o que pode explicar olongo período que passei sem me aproximar do professor Benedito Nunes. Eu oadmirava de longe. Na correria da vida, querendo deter o tempo que intentavaescapar entre os meus dedos, lia alguns textos escritos por ele, especialmentesobre Clarice Lispector, a escritora que então começava a me empolgar. Apuravaos ouvidos quando Benedito era assunto nas cercanias. Percorria as matériasdos jornais. Retinha na memória os comentários elogiosos que meu pai HermínioPessôa fazia a respeito daquele quase vizinho da “Estrella” – eu morei na paralelatravessa Mauriti. Calada e atenta, algumas vezes testemunhei diálogos entreBenedito e Hermínio, enquanto o papai, no linho branco amassado pelo ofício,segurava o “guidon” de um velho mas reluzente “Oldsmobile”, apinhado defilhos, caronas e amostras grátis de medicamentos. Depois conheci a professoraTherezinha Gueiros e a educação pública nos tornou amigas. Conversamos muitoe, pelas suas palavras reflexas e plenas de filosofia, eu soube mais da trajetóriade Benedito na Universidade Federal do Pará: seu comportamento inquisitivo,o rigor estético, a permanente busca intelectual. Foi crescendo minha afeiçãopelo mestre. Mas eu continuava pequena no meu canto e ainda sem a ousadiade chegar perto dele. Vinha de um mundo prático e real com mais números emáquinas do que letras e flores. Até que o Centro de Cultura e Formação Cristã

* Engenheira, analista de siste-mas de informação e escritora.

A presença de Benedito Nunesno ciberespaço

Maria Stella Faciola Pessôa Guimarães*

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começou a oferecer aos sábados e domingos cursos livres de Filosofia e deLiteratura com Benedito Nunes. Quebrou-se o gelo. A distância acabou. Nãoperdi mais nenhuma sessão depois da primeira palestra que assisti naquelaagradável área em Ananindeua, pertinho de Belém. Eu era, finalmente, alunade Benedito Nunes! Ganhei luz. Como sou internauta de todas as horas, logocomecei uma pesquisa: trilhar os meandros do ciberespaço para apreender oque ele registra sobre o pensamento e a obra de Benedito.

Louvo a expressão que Lucia Santaella usou para definir ciberespaço: “éum espaço feito de circuitos informacionais navegáveis”, como está em seulivro “Navegar no ciberespaço – O perfil cognitivo do leitor imersivo”. Ociberespaço pode ser facilmente entendido pela internet, de uso cotidiano etrivial, instalada em nossos dias depois de diferentes estágios de ascendimentocultural e tecnológico, desde seu primeiro uso nos centros de pesquisas militaresdos Estados Unidos. O “boom” da internet foi deliberado principalmente pelacriação da “World Wide Web”, ou simplesmente “web”, ou ainda “www”. Trata-se de uma grande teia de alcance mundial baseada em sistema de hipertexto –permite que as pessoas, através de seus computadores, fiquem conectadas parabuscar informações, fazer encadeamentos e associações, conforme seusinteresses. Nem Penélope conseguiria imaginar, nem tecer ou muito menosdesmanchar, essa trama contemporânea que os internautas percorrem em altavelocidade de comunicação – a banda larga está aí eliminando tempos edistâncias. Salta-se entusiasticamente de ceca em meca, de “link” em “link”,com escolhas e “zapping” próprios. Amplia-se a esfera da presença do ser. Asmáquinas e suas informações digitais que compõem a rede enciclopédicabeneficiam-se umas das outras nessa integração, especialmente com o adventodos mecanismos de buscas na internet. Tudo parece estar no leque da “web”.Tal dimensão, cada vez mais homérica, exige sofisticação para que se ache comrapidez o que se quer, daí o esmero no invento de buscadores de informaçãoque evoluem mais refinados. As associações são facilitadas. Termos especiais,como capilaridade e rizomas, são usados em tom metafórico. “O Gosto” deMontesquieu fica melhor entendido quando internautas experimentam, nociberespaço, “o prazer de abarcar todo o conteúdo de uma ideia geral” e o de“comparar, associar e separar ideias” porque esses são “prazeres inerentes ànatureza da alma”. “O que suscita em nós uma grande ideia é quando alguémdiz uma coisa que nos leva a pensar num grande número de outras coisas”. Ociberespaço, em seu apelo permanente à nossa imaginação – o que nos impele acriar–, pode servir como exemplo de que a evolução biológica do ser humano éinseparável da evolução tecnológica, quando sabemos que a mente é tipicamentereconstrutiva ou “autopoiética” – como diz Humberto Maturana em “Cognição,Ciência e Vida Cotidiana” e “A Árvore do Conhecimento – as bases biológicasda compreensão humana”.

Penso que ninguém vislumbrou tão bem o ciberespaço, a internet, a “web”,seus “sites” e bibliotecas digitais como Jorge Luis Borges em “Ficções”: “Saibaque os poetas como os cegos / Podem ver na escuridão”, canta Chico Buarque deHollanda. “A Biblioteca de Babel”, que o escritor argentino confunde com o próprio

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universo, é uma imagem fantástica destes tempos de cibercultura. Cada galeriahexagonal daquele devaneio privilegiado de quem podia enxergar no escuro écomo uma espécie de colmeia, com enxame e acumulações, ou tal qual um símbologeométrico do carbono, elemento de número atômico 6, cristalino, capaz deconstituir cadeias e formar compostos. Isso não é a “web”?! Os hexágonos deBorges eram intermináveis e interligados, com circulação de ar e luz incessantemas insuficiente, dispostos de tal forma que suas galerias estavam cobertas delivros. Hexágonos sobre hexágonos, de cada um veem-se os inferiores e ossuperiores, infinitamente. O que dizer dos espelhos borgeanos que duplicam asaparências? E das peregrinações em busca dos livros, dos catálogos e até docatálogo dos catálogos? “Talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeitoque a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará:iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos,inútil, incorruptível, secreta”. A Biblioteca perdurará eternamente.

As bibliotecas digitais da “web” neste terceiro milênio tecem loas e loas aBenedito Nunes: teses e dissertações de mestrado e doutorado, “sites” nacionaise estrangeiros, “blogs”, textos assinados em jornais e revistas, trabalhos emcongressos e vários encontros, notícias, entrevistas, referências feitas por outrosintelectuais, homenagens, resenhas, sinopses das livrarias, premiações,fotografias, indicações abundantes nas listas geradas pelo “Google” etc. Labirintoinfindável! Mesmo que, nos moldes de Borges, um catálogo dos catálogosreferente à presença de Benedito Nunes no ciberespaço seja sempre inconcluso,sei que há trabalhos importantes em andamento – como o projeto de LiliaSilvestre Chaves – que visam a digitalizar acervos e reunir, em um “site”catalisador e dinâmico, o que está espalhado nos meios digitais e disperso narede mundial, para então facilitar a consulta dos estudiosos. Fernando Pessoaentendia muito bem dessa navegação: “Sou o Descobridor da Natureza / Sou oArgonauta das sensações verdadeiras. / Trago ao Universo um novo Universo /Porque trago ao Universo ele-próprio”.

Quanto às pesquisas que realizo na internet e cujos resultados estoucolecionando, em computador pessoal, como recortes digitais sobre BeneditoNunes, já ocupam dimensão incompatível com os limites deste espaço físico deimpressão. No entanto, quero aproveitar o preito da Universidade da Amazônia.Como tributo aos 80 anos do professor, apresento duas fontes que localizei nainternet para ilustrar e exemplificar sua presença marcante no ciberespaço: jornal“Folha de S. Paulo” e revista “Colóquio / Letras”. Aqui escrevo com luva brancae deixo para Benedito Nunes o sinete da minha gratidão. Fica, sobretudo, umpresente aos leitores, sejam extrovertidos ou ensimesmados, mas sempre eternosaprendizes e ávidos de desvendar conhecimentos. O ciberespaço pode ser, emcada “link”, um aliado importante na escolha reflexiva dos caminhos e palavrasque enlacem passado, presente e futuro.

PESQUISA NO JORNAL “FOLHA DE S. PAULO”

O jornal “Folha de S. Paulo” mantém em versão digital, para consulta dosinternautas assinantes, suas edições diárias desde 1994. Em pesquisa que realizei

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nesse acervo no final de 2007, através do uso de mecanismos eletrônicos debuscas da própria “Folha” – hoje marchetada no portal da UOL / Universo OnLine–, garimpei 14 arquivos digitais. São geralmente análises de obras. Essestextos assinados por Benedito Nunes estão todos relacionados a seguir comseus títulos, respectivas datas de publicação e, sobretudo, transcrições depequenos trechos, que escolhi com o claro intuito de aguçar o interesse dosleitores para que intentem obter os artigos completos circulados no jornal paulistaem preciosas edições já replicadas no mundo digital.

ELOGIO HUMANISTA DA VELHICE (12/03/1995) – Abordagemsobre o livro “Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos” de Ecléa Bosi,publicado pela Companhia das Letras, que analisa, conforme a chamada dojornal, o “papel do velho como fonte de tradições e detentor da memóriacoletiva”.

“Memória e Sociedade”, pela adesão afetiva de sua escrita à situação dosdepoentes, alcança o vulto de uma apologia da velhice para nossa época. E épor aí que o livro recorta a tradição humanística.As apologias da velhice, que procedem das fontes romano-antiga e renascentistada tradição humanística, são aplicações do regime da sabedoria estóica e epicuristaà última etapa da vida humana. Confrontam, a exemplo do diálogo ciceroniano“De Senectute” e de certas páginas de Montaigne, as vantagens e desvantagensdo período de decrepitude física. E fazem, repetindo Platão no início de “ARepública”, o elogio da idade avançada, pela aptidão para rememorar o passadocom que a favorece o seu estado de inatividade. “O fruto da velhice, venhorepetindo, é a lembrança...”, resume Catão no diálogo de Cícero.[...]Consequentemente, unindo “o começo ao fim”, o passado ao presente, a narraçãorememorativa torna-se recuperação do tempo perdido: o velho se reconheceriacomo velho, recobrando sua identidade individual e social menosprezada. Mas,assim, o dom da memória amadurecida, que frutifica em narrativa, é o mesmoda revivescência proustiana, suspensiva da dissipação do tempo. E, por isso,rebela-se a lembrança dos velhos contra o presente, repondo as coisas “em seuslugares antigos”.

SÓCRATES BAILARINO E CONSTRUTOR (13/09/1996) – Densoscomentários a respeito de “Eupalinos ou O Arquiteto”, do escritor francês PaulValéry, livro publicado pela Editora 34.

A insistente desconfiança de Valéry em relação à filosofia parece ter afinado nelea mentalidade do filósofo, apta a passar de uma questão a todas as outras. Aotratar da arte, ou particularmente da literatura e da poesia, o filósofo já sedefrontava com os problemas mais gerais do pensamento – o ato de conhecer,a linguagem, o Eu, a relação entre alma e corpo, o sono e o sonho, a simulação,a sinceridade, as regras morais–, que também faziam parte da experiência dopoeta, subjugado à cadência das ideias, ao ritmo do sentido, flama ou claridade,como a “cintilação serena” do céu, ilusório disfarce do devir ao qual vãmente seopõe o cruel Zenão de Eléia, de “Le Cimetière Marin”. Uma longa hesitaçãoentre som e sentido – foi o que, resguardado embora por outra metáfora da

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claridade, o “lumen naturale” do intelecto, podia dizer da poesia, sempre quepassava o seu encanto, o irmão filosófico siamês do poeta.[...]De análoga maneira, no conhecimento, a experiência, por nós inengendrada,fornece ao ato de pensamento os materiais sobre que edifica os conceitos teóricos.Ambas espécies de construção, a cognoscitiva e a artística, pressupõem alinguagem. Os conceitos se traduzem em outros conceitos. E as formas,intraduzíveis, acenam e gesticulam. Na dança, as mãos falam e os pés escrevem.Na arquitetura, há edifícios que cantam e outros que simplesmente falam. Sócratespoderia tê-los construído, se tivesse suspeitado que a linguagem já secretamenteedificara, pela força de suas metáforas, a ideia do belo universal e abstrato.

A VOZ INAUDÍVEL DE DEUS (30/03/1997) – Benedito analisa o livro“Ascese – Os Salvadores de Deus” do escritor grego Nikos Kazantzákis –interpreta as relações do humano com o divino–, cujo prefácio é de José PauloPaes, editado pela Ática.

“Somente isto constitui a dignidade humana: viver e morrer corajosamente, semaceitar nenhuma recompensa”, confessa Kazantzákis no penúltimo capítulo desua autobiografia. Assim o êxtase desse místico ativo, sem igreja, se dá, na paragemda ação, contemplando o abismo de encontro ao qual a dignidade humana seequilibra, agônica, numa trágica dança de resistência à sedução do além-mundo– também dança sacrificial de aceitação da vida–, que o “Assim Falava Zaratustra”,por ele traduzido, lhe ensinou a heroicamente dançar.[...]“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – umacorda por sobre um abismo”, assim começa a primeira pregação do Zaratustrade Nietzsche. Mas o abismo do poeta grego já é, em consonância com a primeirateologia negativa – que foi helenística–, um dos nomes de Deus. E o super-homem, nem extra-humano, nem acima do humano, seria, na visão transindividualde Kazantzákis, herdada de Nietzsche, em vez do homem em sua generalidade,objeto do humanismo tradicional, a sofrida paixão que o devora, exaltada porum Saint-Exupéry depois de Gide.

ANTONIO CANDIDO – UM PACTO DE GENEROSIDADE COM OLEITOR (19/07/1998) – Benedito participa do caderno dominical “Mais!” emque o jornal homenageia o professor Candido, escrevendo nessa edição ao ladode expoentes intelectuais como Alain Touraine, Celso Lafer, Haroldo de Campos,José Miguel Wisnik, Leyla Perrone-Moisés, Luiz Costa Lima, Lygia FagundesTelles, Silviano Santiago e Walnice Nogueira Galvão, entre outros.

[...] no professor, a coragem se combina com a paciência; a liga das duasconforma-lhe a ciência, pacientemente vivida e coerentemente exercida, de quetenho sido um dos muitos beneficiários desde a juventude. Passei a respeitá-lo,diante da justeza de suas intervenções, no 2º Congresso de Crítica e HistóriaLiterária, de Assis, em 1961. Foi quando o conheci pessoalmente e aprendi aadmirá-lo. Mas só muito depois, na década de 70, lecionando no IEL (daUniversidade Estadual de Campinas), pela primeira vez a seu convite, descobrio quanto o humor tempera aquela liga moral e intelectual da coragem na gentil

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paciência, da ciência na coerência, política inclusive.[...]Não posso esquecer como, principalmente em dois momentos delicados, oprofessor me assistiu com paciência e ciência bem-humoradas. Tolerou minhasdelongas na entrega dos dois livros, “Introdução à Filosofia da Arte” e “FilosofiaContemporânea”, que me solicitara a escrever para a coleção “Buriti”, poucoantes do golpe de 64. Em 67, decidira, sob a pressão dos duros tempos, instalar-me no estrangeiro. No seu gabinete da antiga faculdade da rua Maria Antônia,onde estive, grafou num meu caderno, envelhecido hoje, indicação de fontespara os estudos da antropofagia modernista que eu iniciaria na França. Reúnoessas lembranças, de cor, como tributo aos 80 anos de Antonio Candido.

NÓS SOMOS UM DIÁLOGO (13/08/1998) – Ensaio sobre a obra “Verdadee Método”, editada pela Vozes, escrita pelo filósofo alemão Hans-GeorgGadamer, que foi aluno de Heidegger.

Compreendemos o outro quando com ele falamos; uma ferramenta quando autilizamos; os acontecimentos cotidianos quando nos atingem; o ambiente ou omundo em que vivemos. Compreender é uma atitude mais primária do que oexercício do conhecimento científico, a teoria no sentido estrito. Por ser primária,é curial, e por ser curial, inapercebida. Podemos compreender sem conhecercientificamente, mas não podemos conhecer cientificamente sem antes termoscompreendido a coisa de que se trata. Daí dizer-se que a compreensão é adesiva,envolvendo, como diz Gadamer, uma relação de pertença ao que nos rodeia.[...]A linguagem que o filósofo considera é a que, como suporte da experiênciahumana, extravasa a ciência da linguagem, resvalando do método para a verdadeda pertença ao mundo, ao tempo e à história. A experiência humana não élinguística e sim linguajeira (“spraclich”): o falar dos textos, das obras de arte, oentender-se e o desentender-se uns com os outros, a imensa, penetranteconversação humana e a sua tradutibilidade de universo linguístico para universolinguístico. Parece que estamos a ouvir a ressonância do ensinamento de Heideggerextraído de Hölderlin: nós somos um diálogo.

O MUNDO DE CABEÇA PARA BAIXO (14/11/1998) – Análise dohistoriador espanhol José Antonio Maravall, através do seu livro “A Cultura doBarroco”, editado pela associação Edusp / Imprensa Oficial.

Depois da morfologia de Wölflin, já se poderia afirmar a existência de um estilobarroco, oposto ao clássico, ambos correspondendo a distintos modos devisualidade plástica. Com Werner Weisbach, o barroco se estendeu como estiloartístico ao movimento de Contra-Reforma, preponderantemente jesuítico, quelhe foi correlato do ponto de vista cultural. Extrapolada, então, do espaço dasigrejas ao espaço circundante, dos templos à corte, da paisagem ao vestuário,dos palácios aos jardins e parques, das festas aos préstitos triunfais, mediante oviés da cultura, a mesma arte do Setecentos passou a ser concebida como estilode vida, a serviço de Deus ou da Igreja, em benefício do fortalecimento dodogma, da autoridade eclesiástica e do poder real.[...]

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Todos os caprichos são admitidos, todas as novidades toleradas, contanto quenão passem do palco à sociedade. Os bufões têm a palavra livre, a toda hora,diante dos reis. E o mundo mesmo é uma bufoneria que, “de cabeça para baixo”,se assemelha a um teatro, se não a um labirinto, de difícil saída, onde, com asguerras de religião e depois delas, imperam a crueldade e a violência. Só poderiaser pessimista, com a tônica da melancolia, sintoma de desencanto e atestação dafugacidade de tudo, dos azares da fortuna, irmã gêmea do jogo, o ânimo dessemundo revirado, que passara a conhecer as leis galileanas do movimento, penhortanto de eterna mudança quanto da caducidade e do declínio.

A INVENÇÃO MACHADIANA (10/07/1999) – Abordagem a respeito deum dos livros de Alfredo Bosi sobre a obra de Machado de Assis: “O Enigmado Olhar”, editado pela Ática.

O olhar do ficcionista sente pensando e pensa sentindo. Nesses sentir e pensar,mutuamente entrelaçados, ele se distancia dos objetos de que a visão o aproxima.A proximidade do olhar garante o conhecimento de um dado contorno humano:a sociedade, as ações individuais e os motivos a que obedecem. Mas só recolhidono âmbito da imaginação, que o distancia desse contorno em que se acha incluído,ganha o olhar do ficcionista a percuciente lucidez de um foco reflexivo acesosobre uma “persona” – a pessoa feita personagem ou a personagem tradutívelem pessoa.[...]Certamente, Pascal como Leopardi, Schopenhauer como Stendhal contribuempara a gênese desse olhar, mas aliados a La Rochefoucauld, La Bruyère, ManuelBernardes, Matias Aires, Vauvenargues, Helvetius e Adam Smith. O exempláriodesses modos de pensamento, em apêndice no final do livro, nos oferece, numaescala nuançada, os tons, entretons e timbres de um pensamento cético ajustadoàs artimanhas do humor, que teriam convergido no foco do olhar machadiano– não espelho de luz difusa, mas lente analítica do real.

TRÁGICA DIALÉTICA DA LEMBRANÇA (25/07/1999) – Benedito escrevesobre os poemas de Salvatore Quasimodo – um dos três grandes líricos italianosdo século XX, ao lado de Eugenio Montale e Giuseppe Ungaretti – editadospela Record.

A voz histórica ativa de Platão, fundadora de uma das fortes tradições dopensamento ocidental, nos diz que conhecer é lembrar; toda coisa só se tornaconhecida por meio do acesso reminiscente, a que nos eleva o amor premidopelo desejo, a uma ideia universal, organizadora da experiência e a ela sobreposta,permitindo-nos identificar o que não é idêntico no diverso e mutável curso darealidade empírica perceptiva. Mas só os poetas, a que Platão vedou entrada emsua “República”, mostrariam o lado inverso letal do conhecimento: ao reviver, alembrança celebra a morte do objeto do amor; a reminiscência escava o túmulodaquilo que se ama. Quando surge, a ideia universal se erige em lápide funéreado real empírico, conforme outra voz, a de Quasimodo, nos diz emcontraposição ao platonismo: “Não tenho mais lembranças, nem as desejo; /toda memória se remonta à morte, / a vida não se acaba. Cada dia / é nosso...”.

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TRÊS QUESTÕES SOBRE NIETZSCHE (06/08/2000) – Ao lado de RobertoRomano, Benedito Nunes dá respostas a três perguntas formuladas pelo caderno“Mais!” a respeito de Nietzsche: Qual a importância de sua obra para a filosofiaocidental? Qual seu principal legado para o século 20? Vive-se hoje em umaépoca nietzschiana?

São tantos os legados que é impossível apontar um principal. Pela primeira vez afilosofia recebeu um legado não-filosófico – ou antifilosófico. Pela primeira veza filosofia se fez por via “destrutiva”. E pela primeira vez a filosofia passou a seraturdida pela linguagem filosófico-poética. E por que não dizer que o pensamentonietzschiano foi o primeiro a consagrar a união nupcial da filosofia com a poesia?

O HUMANISMO ATEU DE NIELS LYHNE (10/02/2001) – O personagemdo escritor dinamarquês Jens Peter Jacobsen no romance editado pela Cosac &Naify é comentado por Benedito que evidencia semelhanças com algumas figurasda literatura de Dostoiévski.

Por certos aspectos biográficos de seu personagem, “Niels Lyhne”, de Jens PeterJacobsen, livro de cabeceira de Rainer Maria Rilke, tem quase tudo de um“Bildungsroman” (romance de formação): a relação decisiva com amigos, osentrechoques amorosos, os ganhos ou perdas de conhecimento e afeição, traçamaí o perfil de uma vida em busca de si mesma. Segundo escreve Otto MariaCarpeaux, no ensaio que dedicou ao autor dinamarquês, esse perfil é nuançado,como atestam as grandes cenas de amor, de despedida e de morte que recortama narrativa.[...]Nos romances de formação que nos oferecem a saga do nascimento do artistaou do poeta, como no “Retrato do Artista Quando Jovem”, de Joyce, no“Doutor Fausto”, de Thomas Mann, no “Wilhelm Meister”, de Goethe, e mesmonesse defectivo “Niels Lyhne”, nuançado dentro do gênero, a meta poéticaprepondera. Nas quatro obras, o conhecimento orienta a conduta ética, amboscondicionados à criação artística e operando uma mudança na atitude religiosados personagens, da qual resulta uma crítica ou uma rejeição do cristianismo.Wilhelm Meister tenderia para o universalismo religioso, Stephan abandonaria afé católica, o doutor Fausto tornar-se-ia um místico panteísta. Niels Lyhne, poetacomo aqueles três, adotou porém uma aguda forma de ateísmo, que o aproximade outra família romanesca, aquela a que pertencem certas personagens deDostoiévski, como Stravoguin e Kirilov, em “Os Demônios”, e Ivan e Dimitri,em “Os Irmãos Karamazov”.

LINHAS DA INQUIETAÇÃO (01/09/2002) – Análise de “Cartas a Suvórin”(Anton Tchekhov / Edusp) e “Cartas – Volume 2” (Carl Gustav Jung / EditoraVozes), obras publicadas simultaneamente e, conforme o chamado desse artigo,que “estabelecem um contraste fértil entre o ceticismo elegante do escritor russoe as preocupações teológicas do psicólogo suíço”.

Quanto mais, atualmente, vai se tornando corriqueiro, em detrimento da carta,do velho gênero epistolar, mediado pelo serviço de correios e telégrafos, o uso

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da ultra-rápida correspondência eletrônica do fax e do computador, mais vemaumentando o interesse tanto documental quanto literário pela missiva escrita,como estilo de comunicação agora em franco envelhecimento. São recentesexemplos entre nós desse interesse duas coletâneas de cartas – as de Carl GustavJung (1875-1961) a vários consulentes e as de Anton Tchekhov (1860-1904) aseu editor Aleksei Suvórin–, equivalentes em densidade informativa, mas diferindona matéria e no estilo.

O ESQUECIMENTO DA FALA (08/02/2003) – Grande autoridade em MartinHeidegger, Benedito Nunes escreve sobre o “Dicionário Heidegger”, de MichaelInwood, publicado por Jorge Zahar Editor.

Para um filósofo como Heidegger, que faz da palavra a emergência sonora dosentido, ao mesmo tempo “poiesis” e “logos”, fala recuperada na linguagem,voz falada na escrita, pensamento enquanto caminho que avança dos objetos àcoisa, do ente ao ser, retraindo-se à objetificação dos signos – para um filósofo,enfim, que pensa poeticamente e para quem, portanto, se torna mínima a diferençaentre pensar e poetar, a língua se reveste de importância fundamental. Umpensamento desse tipo, gerador de um vocabulário próprio, só pode admitir,em tácito acordo com o nosso poeta Drummond, que, mesmo sem nasceremamarradas, as palavras subsistem em estado de dicionário. A filosofiaheideggeriana vive nesse estado.[...]A recapitulação do uso de “Dasein”, desde o seu significado pé no chão noalemão corrente até o seu enriquecimento nocional quando decomposta na forma“Da-sein” (aquele que busca o ser, atende a seu apelo, a ele se abrindo), é a maiscompleta possível. Mas o verbete assinalado é um dos poucos, senão o único,que ficou sem nenhuma tradução, fugindo, portanto, da regra de duplas entradasestabelecida pela coordenadora. Mas a vantagem dessa transgressão foi nossa:ao assim proceder, a coordenadora restabeleceu a dança heideggeriana das palavrase a luta agonística do filósofo com e contra elas, em vez de fixá-la numa sópalavra: a “pre-sença” de sua versão completa, já citada, de “Ser e Tempo”.

A VIA-CRÚCIS DA ESTRELA (16/10/2005) – Ensaísta de destaque entre oscríticos de Clarice Lispector, Benedito aqui desenvolve sua análise sobre doisnovos livros a respeito da vasta obra da escritora brasileira nascida na Ucrânia:“Outros Escritos” (organização de Teresa Montero e Licia Manzo, compublicação pela Rocco) e “Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos” (VilmaArêas / Companhia das Letras).

É de sua “Via-Crúcis” que Clarice salta para “A Paixão Segundo G.H.”, e desta,depois do aflitivo purgatório intelectualista de “Uma Aprendizagem”, para “AHora da Estrela”, final de uma trajetória pela pedregosa via de “Água Viva” – ocaminho da escrita como “um emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, corese palavras”.Mas esse final de trajetória traz uma reviravolta. A narrativa estelar une os fiosextremos da vida de uma mulher, desvalida nordestina e pobre no Rio de Janeiro,Macabéa, à sua morte anônima na rua. Formam os fios dessa personagem um“auto-retrato” da escritora, revelador de seu trabalho de criação, tecidos no

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rústico tear da pobreza brasileira, de modo que “A Hora da Estrela” é também“uma verdadeira radiografia centrada na pobreza urbana”.Aí Clarice, como diz o narrador de “A Hora da Estrela”, estaria “mudando demodo de escrever”. Violenta a linguagem para poder falar dessa “raça anãteimosa”, semelhantemente à atitude de Graciliano Ramos em “Vidas Secas”para dar voz a Fabiano.

ODISSEIA (21/05/2006) – Através da sessão dominical “Biblioteca Básica”,parte do caderno “Mais!”, Benedito Nunes declara a importância de Homero nasua formação intelectual.

A “Odisseia” de Homero foi importante em minha formação tanto literáriaquanto filosoficamente. Literariamente porque coloca em foco o tema da viagem,do retorno, que se expandiu e vem de Homero até Joyce. Filosoficamente porqueo ensino da filosofia, em primeiro lugar da filosofia grega, é inseparável doconhecimento de Homero. É uma fonte mitológica e um modo de pensar omundo. O mito da viagem é encontrado em Joyce, em “Ulisses”, e também emGuimarães Rosa – seus personagens estão sempre se movimentando, sempreem viagem. Esse núcleo da “Odisseia” é muito importante até hoje.

Além desses 14 relacionados, há outro texto assinado por Benedito Nunesna “Folha” que é facilmente obtido na internet, apesar de ter sido escrito antesdo período que engloba arquivos já digitalizados pelo próprio jornal. Trata-seda avaliação crítica do romance “Estorvo” escrito por Chico Buarque deHollanda. Pode ser encontrada no site oficial do artista com a data de 03/08/1991.

[...] o passado do narrador se anula, seu futuro é a expectativa do pior, e aprocura de si mesmo, um movimento inconsequente, marcha voluntária para osuicídio-assassinato. Outra particularidade formal desse relato, em correspondênciacom o andamento ágil, lesto, frenético, é a causalidade do imaginário, anulandoa causalidade natural. Em vários momentos, o narrador não sabe (e o leitor comele) se conta o que lhe aconteceu ou aquilo que imagina ter-lhe acontecido.Sonhamos a nossa realidade ou realizamos os nossos sonhos? De qualquer forma,a realidade, muito nossa – de uma época, de uma geração, de um país – queEstorvo configura, é a realidade de um sonho mau, de um demorado pesadelo.

Há outros resultados da minha pesquisa na “Folha de S. Paulo” que sãotextos com referências feitas a Benedito Nunes, tanto na abordagem especializadade sua obra por outros estudiosos identificados no jornal, como no formato denotícias acerca do professor paraense e de sua trajetória intelectual visível noBrasil e no exterior. Assim, localizei no site paulista mais 49 registros digitais,datados entre 30/01/1994 e 05/05/2007, todos agora também residentes, naíntegra, em computador pessoal onde prossigo essas investigações encantatóriassobre a presença de Benedito Nunes no ciberespaço.

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Quanto à análise direta de sua obra por renomados professores e escritores,chamo a atenção para dois ensaios.

PENSAMENTO MUNDIFICADO (27/09/1998) – Fábio Lucas comenta osensaios de Benedito reunidos no livro “Crivo de Papel” publicado pela Ática.

“Crivo de Papel” reproduz o que há de mais denso e constante na obra deBenedito Nunes. O ponto de partida, seminal, é a filosofia. A outra face dovasto campo de interesse do crítico constitui a literatura. A preocupação maisenvolvente de Benedito Nunes é, na filosofia, a obra de Heidegger, da qual temsido, no Brasil, um dos mais autorizados analistas. No campo literário, ocupa-seprimordialmente de Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, semdescurar Fernando Pessoa, que lhe oferece sínteses adequadas e epígrafes àsindagações filosóficas. E agrega, ainda, ao “Crivo de Papel”, penetrante e oportunobalanço da historiografia literária brasileira. Outros estudos se organizam nointerior da obra, como a visão de Sócrates, sob a vigilância de Valéry, a investigaçãoda música entre as artes e a exploração de temas como a história, a ética, otempo e a poesia.[...]Que dizer da especulação filosófica de Benedito Nunes? Além de apontar a criseda filosofia, como o faz especificamente em “A Filosofia e o Milênio”, tem-se asensação de transitar num labirinto. Louvem-se a beleza da exposição e acontribuição à estética, em especial nas questões sobre a natureza da arte, quandoaborda o pensamento de Kant e Heidegger. No mais, são trabalhos maisexpositivos do que conclusivos, na linha de Heidegger, para quem “o mundonão é, mas se mundifica”.

O TRABALHO DA HERMENÊUTICA (11/03/2000) – Franklin Leopoldo eSilva analisa o livro de Benedito denominado “Hermenêutica e Poesia – OPensamento Poético”, na ocasião veiculado pela editora da Universidade Federalde Minas Gerais.

Compreender Heidegger talvez tenha de ser, sempre, retomar a tarefa decontornar o caráter inesgotável de uma meditação que, recusando as enunciaçõespropositivas, assume o trabalho de interpretar as impossibilidades que opensamento metafísico construiu para si próprio e que de alguma maneirapermitiram que as realizações culturais da história do Ocidente ocorressem comoatividades periféricas esquecidas do seu centro. Acompanhar Heidegger, inserir-se em seu modo de pensar, é assumir a negatividade implícita na memóriametafísica e tentar vislumbrar as paisagens que ela recalcou nos extremos de umpassado que é origem fundante e esquecida.O livro de Benedito Nunes assume com coragem e serenidade essa tarefa depensar a distância na ambiguidade de suas implicações, para compreender osignificado mais íntimo dos laços que separam e aproximam poesia e filosofia.Atingimos primeiramente esse processo constitutivo de revelação e ocultamento,quando nos damos conta da indigência contida nas ideias de “filosofia da arte”ou “da literatura”, na medida em que conotam a possibilidade de absorção daarte pela reflexão filosófica.

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Quanto à menção feita a Benedito nas análises de obras desenvolvidaspor outros autores na “Folha”, também posso destacar os trechos de algumasmatérias exibidas nas edições dos jornais impressos que, com o avanço dastecnologias da informação neste terceiro milênio, estão agora propagadas emformato digital pela internet.OS DEMÔNIOS CULTURAIS DE LLOSA (27/11/1994) – Milton Hatoumassina texto sobre Mario Vargas Llosa.

Na sua obra ficcional Vargas Llosa usou e desenvolveu a montagem de diálogospresente no “Madame Bovary”, na famosa cena do comício agrícola de Yonville;uma ousadia que “consiste em intercalar partes de um diálogo a partes de outroentre os mesmos personagens, em situações temporal e espacialmente distintas”,como apontou Benedito Nunes ao analisar a ilusão da simultaneidade nosromances “Madame Bovary” e “A Casa Verde” (“O Tempo na Narrativa”,editora Ática).

O PURGATÓRIO DE SOFIA (09/08/1996) – Luiz Paulo Labriola escreve arespeito de Jostein Gaarder.

[...] a narrativa padece de outros problemas de verossimilhança. Conforme lembraBenedito Nunes, em sua “Introdução à Filosofia da Arte”’ (Ática, pág. 40), umtexto literário não pode, a rigor, ser tomado como “completamente real (...)nem como uma cabal ilusão”.

MANEIRAS DE LER POESIA (14/02/1997) – Leyla Perrone-Moisés elaborafascinante resenha sobre “Leitura de poesia”, livro da Ática que tem a participaçãode Benedito, na companhia de Alcides Villaça, Alfredo Bosi, Fábio de SouzaAndrade, João Luiz Tafetá, Jorge Koshiyama, José Miguel Wisnik e MuriloMarcondes de Moura.

Benedito Nunes, leitor de Mário Faustino, está, a meu ver, na categoria “hors-concours”. Um fino crítico como é Benedito Nunes, lendo um poema belíssimocomo “Juventude” de Mário Faustino é algo que coloca a poesia e a críticabrasileiras no seu mais alto patamar. O crítico se desincumbe da difícil tarefa demostrar a particularidade de um poema cujo tema não poderia ser mais geral:amor e morte, tempo e eternidade. Ao mesmo tempo que usa, discretamente,seu vasto arsenal filosófico, procede a uma leitura musical do poema, ressaltandosua “avassaladora sonoridade”, seu “efeito encantatório” por iteração,paronomásia e ritmo ondulatório. O poema de Mário Faustino se revela, assim,como próximo da essência da poesia lírica: “ação celebratória” ou, no conceitode Valéry, desenvolvimento de uma exclamação face à maravilha de haver mundoe vida.

AS DONZELAS VÃO À GUERRA (02/08/1998) – Em entrevista concedidaa Marcos Roberto Flamínio Peres, a professora Walnice Nogueira Galvão fazalusão a Benedito.

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[...] eu me lembrei de que fui membro da comissão julgadora da Prêmio Nestléde Literatura. De fato havia muitas obras regionalistas, o que achei curiosíssimo,além de muitas cópias de Borges e Cortázar, mas não acho que haja influênciado “realismo mágico”, como o de García Márquez.Um fato curioso foi constatado pelo professor Benedito Nunes, que tambémfazia parte da comissão: talvez porque os textos fossem escritos diretamente nocomputador, as obras literárias se impregnaram da linguagem da informática.Termos como “acessar”, “deletar” eram muito comuns nos romances queconcorriam.

A INTROSPECÇÃO DE EVALDO COUTINHO (22/07/2001) – Matériaacerca dos 90 anos desse filósofo e crítico de arte desenvolvida por MarcosEnrique Lopes.

Essas ideias estão dispostas nos cinco volumes de “A Ordem Fisionômica”, abase de sua ontologia. O professor e escritor paraense Benedito Nunes encontranela o que chama de tanatologia, ressaltando que, em sua essência, “alcançou umritmo sintático, um fraseado aliciante, que seduz o leitor por sua clareza e riquezavocabular, de cunho metafórico”. Lembra, ainda, a leitura “esplêndida” que nostraz de “O Sofista”, de Platão, ou o paralelo que Wittgenstein lança sobre osolipsismo como tese. “Ele é correto, só que mostra o que não pode ser visto, oque não pode ser dito”. Quer dizer, faz diferença entre o dizer e o mostrar,porque “as coisas que não podemos dizer é melhor calar, pois quando a linguagemfilosófica ou poética se cala, ela está mostrando algo que não pode dizerinteiramente”. E é isso que a arte e a literatura fazem. Para Nunes, não se trata deum simples esteta, um mero professor de filosofia, “mas de um verdadeirofilósofo”.

UMA MEDIDA CONCRETA (14/09/2003) – O caderno especial “Mais!”apresenta entrevista de Haroldo de Campos feita por José Marcio Rego, na qualo autor de “Metalinguagem e Outras Metas” faz um balanço da crítica literáriabrasileira.

O Benedito Nunes e o Gerd Bornheim [morto em 2002] são dois casos que têmcertos pontos de contato, de filósofos que fazem crítica e a fazem muito bem.Com muitas armas de conhecimento e sensibilidade. O Gerd tem sido, sobretudo,um crítico de teatro, além dos livros importantes que tem publicado no campofilosófico, desde a tese de livre-docência. Ele tem escrito muito sobre teatro, éespecialista em Brecht, talvez o nosso mais notável especialista em Brecht. E oBenedito Nunes, que também, em certo aspecto, é um heideggeriano. Beneditojá se dedicou mais a outros aspectos literários. À Clarice Lispector, por exemplo,da qual, parece, é um dos mais argutos estudiosos. Ao João Cabral, ao GuimarãesRosa... Enfim, é uma pessoa que tem se dedicado, ao lado de sua formação defilósofo, ao estudo literário, o que é raro no ambiente brasileiro.

O SINISTRO E SEUS DUPLOS (02/07/2005) – Manuel da Costa Pinto analisaa coletânea de contos de Haroldo Maranhão – “Feias, Quase Cabeludas” –selecionada por Benedito e publicada pela Planeta.

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Nos 40 e 50, o escritor Haroldo Maranhão formou, com o filósofo BeneditoNunes e com o poeta Mário Faustino, uma tríade de intelectuais cujas trajetóriassão marcantes na vida cultural brasileira. Tendo como epicentro Belém do Paráe, mais especificamente, o suplemento literário criado por Maranhão na “Folhado Norte”, em 1946, a história desse grupo serve, por si só, para derrubarpolaridades que opõem centro e periferia, ou caricaturas em que os Estadosdistantes dos grandes polos urbanos estão vocacionados para uma concepçãoprovinciana de mundo e, no caso da literatura, para o regionalismo.

Sobre as notícias constantes do acervo digital da “Folha” disponibilizadona internet – no caderno “Ilustrada” ou no caderno “Mais!”–, cabe aqui aindapinçar parte do que está lá registrado como passos da trajetória de Benedito:prefácio e comentários para livros de Mário Faustino; participação em encontrorealizado por Adauto Novaes; análise de livros de João Cabral de Melo Neto;presença em fortuna crítica de Guimarães Rosa; apresentação em colóquio sobreHeidegger; referência em entrevista de Nádia Battella Gotlib sobre ClariceLispector; participação em encontro de críticos e poetas; membro do júri doPrêmio Nestlé de Literatura; presença em evento sobre Blaise Cendrars paradiscutir a “utopialândia”; destaque no 2º Colóquio Latino-Americano de Estética;presença no documentário de Pedro Bial sobre Guimarães Rosa; recebimentodo Prêmio Guimarães Rosa de Literatura; inclusão no livro de conversas comfilósofos brasileiros da Editora 34, ao lado de nomes como, por exemplo, BentoPrado Jr, Gerd Bornheim, José Arthur Giannotti, Leandro Konder, MarilenaChauí e Miguel Reale; convidado pelo caderno “Mais!” para compor o grupoque escolheu a personagem de preferência dos admiradores da literatura brasileira;crítico citado em entrevista do poeta Age de Carvalho; matéria sobre a mortede Haroldo Maranhão; citação por João Cezar Castro Rocha como estudioso daobra de Oswald de Andrade; referência em comentários sobre obra de EricoVeríssimo; nome incluído entre os comentaristas da edição de “Cadernos deLiteratura Brasileira” sobre Clarice Lispector; referência em análise de AdrianoSchwartz relativa a “Mário Faustino – Uma Biografia” escrito pela paraenseLilia Silvestre Chaves; participação na 3ª edição da FLIP em Paraty; presençaem São Paulo para encontro a respeito de Sartre; elaboração de texto sobreClarice Lispector para o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.

PESQUISA NA REVISTA “COLÓQUIO / LETRAS”

De acordo com informações disponíveis em seu site oficial na internet,a Fundação Calouste Gulbenkian, com sede em Lisboa, é uma instituiçãoportuguesa de direito privado e utilidade pública, cujos fins estatutários são aArte, a Beneficência, a Ciência e a Educação. Desde 1971, a Fundação edita arevista “Colóquio / Letras”.

Nota de Abertura (1971): “Colóquio / Letras” vem preencher uma lacuna quese tornava sensível: será, em Portugal, a única revista especificamente literária –com textos de poesia e de ficção, mas, na maior parte, destinada ao estudo demodo não puramente erudito, não polêmico, não meramente divulgativo, antesserenamente reflexivo, problemático, ensaístico.

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[...]De caráter vincadamente ensaístico e admitindo uma grande pluralidade de pontosde vista, incluindo quer artigos de investigação quer leituras críticas da atualidadeeditorial, a “Colóquio / Letras” publica inéditos de poesia e ficção de autorescontemporâneos, consagrados e jovens, traduções de poesia e partes de espóliosliterários de autores do passado, procurando levar a uma revalorização de escritoresesquecidos e pouco estudados. Dedica-se quase em exclusivo às literaturas de línguaportuguesa, o que abrange não só a nossa mas também a brasileira, as africanas deexpressão portuguesa e a galega (tendo esta sido matéria de dois números publicadosem 1996). Conta com um vastíssimo número de colaboradores, tanto portuguesescomo estrangeiros estudiosos das referidas áreas.

Em pesquisa que efetuei na “web” em 2008, pude coligir 37 artigosassinados por Benedito Nunes na “Colóquio / Letras”, que os denominou de“recensão crítica” – uma espécie de resenha ou de apreciação de um livro. Forneçoa seguir a relação dessas resenhas, por ordem cronológica (mês e ano depublicação), e faço para algumas, a título de exemplos, a transcrição de trechosdos ensaios do professor paraense editados na importante revista de Portugal.

“CÓDIGO DE MINAS & POESIA ANTERIOR”, DE AFFONSO ÁVILA(09/1971).

De resto, à estrutura desses poemas pertencem, conjuntamente, os respectivostítulos e as citações históricas, geográficas, literárias e jornalísticas que osacompanham em epígrafe, como elementos de contrastação irônica. Até mesmodevido ao aspecto compedioso e tratadístico que emprestam à obra, o efeito detais citações, que o trocadilho e o “non-sense” de certas passagens dos textospoéticos reforçam, é um por vezes compenetrado e grave humor, a definir oparentesco do poeta, já ligado a João Cabral de Melo Neto pelo controle racionalda composição, com Carlos Drummond de Andrade, a quem dedica “Códigode Minas”. Estendendo a si próprio esse humor, Affonso Ávila, que mineiro é,descodifica-se ao decifrar o “Código de Minas”: “eu em texto de minas / eu emtemplo de minas / eu em tempo de minas”.

“OS CONDENADOS”, DE OSWALD DE ANDRADE (12/1971).Para os círculos literários ligados ao Modernismo, ainda na fase de procura estética,o romance de Oswald de Andrade constitui surpreendente revelação deoriginalidade criadora. Subdividido em planos descontínuos que enquadram a ação,misto de análise psicológica e drama passional, na moldura de episódios isolados,ao sabor de um ritmo entrecortado, que varia conforme a dimensão desses episódios– alguns até lembrando improvisadas anotações de diário–, “Os Condenados”impressionaram há 42 anos atrás justamente devido a esse processo de construçãosincopada da narrativa, que Oswald de Andrade utilizaria, de maneira plena, em“Memórias Sentimentais de João Miramar” (1924) e “Serafim Ponte Grande”(1933), duas pedras de toque da atualidade literária brasileira, desvinculadas daTrilogia, e que formam, no dizer de Antonio Candido, um “par-ímpar”.

“BLAISE CENDRARS NO BRASIL E OS MODERNISTAS”, DE ARACYAMARAL (03/1972).

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Verdadeiramente pioneira, a monografia de Aracy Amaral “Blaise Cendrars noBrasil e os Modernistas” permite-nos avaliar o papel mediador exercido pelopoeta de “La Prose du Transsibérien” – que veio a São Paulo em 1924 a convitede Paulo Prado, por sugestão de Oswald de Andrade – entre aquelas vanguardasestrangeiras, sobretudo a cubista e a futurista, associadas no “esprit nouveau” deApollinaire, e a vanguarda dos rebeldes da Semana de Arte Moderna.

“HISTÓRIA E IDEOLOGIA”, DE FRANCISCO IGLÉSIAS (05/1972).“SAUDADES DO CARNAVAL”, DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR (05/1973).“H’ERA”, DE MAX MARTINS (07/1973).

A sondagem verbal está catalizada por referenciais genésicos que, tomando porbase a analogia entre “carne” e “verbo”, entre “eros” e “logos”, latente à poesia deMax, estendem às coisas exteriores os signos duma representação erótica do mundo.[...]A carência interior e exterior assumida, “aguando o sémen da linguagem”, e porisso sem poupar amor e verbo, redunda, sob o prisma do erotismo, numa“explicação órfica da Terra”, que é, conforme escreveu Mallarmé a Verlaine, “leseul devoir du poète et le jeu littéraire par excellence...”. Vem dessa origem edesse compromisso a inabstraível presença da poesia de Max Martins no conjuntoda poesia brasileira atual.

“VERDE VAGOMUNDO”, DE BENEDICTO MONTEIRO (07/1973).Se em “Verde Vagomundo” a história, como processo social e político, entrama-se à história como poesia e é por esta interpretada, se neste romance a ficçãotoma pé na realidade e a ela se volta reflexivamente para compreendê-la, deve-se isso ao estratagema da forma romanesca. Desdobrado nos múltiplos relatosindividuais dos personagens, nos registros das manchetes radiofônicas, nasanotações dum diário e nas peças do inquérito militar, que se distribuemalternativamente, alimentando a narração geral, em primeira pessoa e da autoriado Major, “Verde Vagomundo” consegue manter entre os planos do real e doimaginário um regime oscilante de aproximação e distanciamento.

“A TRANSGRESSÃO DO TEXTO”, DE MÁRIO CHAMIE (09/1973).Para concluir, há um pequeno reparo reivindicativo. O ensaísta ilustrou o discursomonológico com o “Dom Casmurro” de Machado de Assis, que estaria privadodos três níveis de interlocução – do autor em diálogo com o texto, do texto emdiálogo com o leitor e do contexto em diálogo com o texto – que caracterizamo discurso dialógico. Mas se Chamie examinar à luz desses critérios as “MemóriasPóstumas de Braz Cubas” – romance no qual o personagem defunto, pseudo-autor dum diálogo com o próprio texto, se dirige ao leitor dentro dum contextoparodístico – verá que Machado de Assis se antecipou, de certa maneira, à escritadialógica de transgressão.

“MARCA REGISTRADA”, DE ARMANDO FREITAS FILHO (03/1974).“ÁGUA VIVA”, DE CLARICE LISPECTOR (05/1974).“POESIA E FILOSOFIA NA OBRA DE FERNANDO PESSOA” (07/1974).

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Possíveis modos de ser e de compreender o mundo, os Outros que FernandoPessoa projetou fora de si, no espaço imaginário dum diálogo – “dum teatro semdrama” ou “dum drama sem teatro”, no dizer de Álvaro de Campos–, nada maisforam, à semelhança do autor que os criou e que deles se fez ator – e nisso está aironia trágica do desdobramento – senão o disfarce da realidade insondável eprofunda, máscara sobre máscaras, modelando os indivíduos e a eles estranha.“Tudo o que é profundo gosta de mascarar-se”, reza o aforismo de Nietzsche quepode servir de intróito à poesia da metafísica em crise de Fernando Pessoa.

“CIDADE CALABOUÇO”, DE RUI MOURÃO (09/1974).“UMA VIA DE VER AS COISAS”, DE DORA FERREIRA DA SILVA (01/1975).

Elegíaco, o primeiro poema de “Aqui” (“Vespertino”) é um lamento para anossa época de ocaso, época que apagou a lembrança consoladora de Sião, esubstituiu o “repentir chrétien” pela leitura dos jornais, em que Hegel viu a oraçãoquotidiana do homem moderno: “Aqui estou, nascida no ocaso / quando aslágrimas se apagam, e os rios / Leio o jornal, mão crispada na página.” Nadicção contida desse poema, prosaica no melhor sentido – a prosa do mundo –e que sabe, como a de Carlos Drummond de Andrade, retirar aquilo que éexemplar daquilo que é comum, afluem, imagens de nossa carência, os mitos eas mistificações da época.

“A METÁFORA DO CORPO NO ROMANCE NATURALISTA”, DESONIA BRAYNER (01/1975).“GRANDES CONTEMPORÂNEOS”, DE MANUEL ANTUNES (03/1975).“A METAMORFOSE DO SILÊNCIO”, DE LUIZ COSTA LIMA (03/1975).

Enquanto para Jakobson a análise literária é o instrumento capaz de concretizaros elementos todos do eixo de seleção que se projetam sobre o eixo dacomunicação, e assim de explicitar o sentido implícito à forma explícita, paraCosta Lima, o poema, como texto literário, mantém-se na tensão, condicionadapelos dois eixos que não se recobrem, entre o pleno das significações emergentese o vazio submerso que o discurso integra.

“O TEMPO E OUTROS REMORSOS”, DE ALCIDES VILLAÇA (07/1975).“O CONVIDADO”, DE MURILO RUBIÃO (11/1975).“CONFISSÕES DE RALFO (UMA AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA)”, DESÉRGIO SANT’ANNA (01/1976).“O CARRO DOS MILAGRES”, DE BENEDICTO MONTEIRO (07/1976).

As sete narrativas aqui reunidas nascem da atitude explícita do relato oral, queconsiste na transmissão contínua de acontecimentos singulares extraídos daexperiência comum, e que é a célula matriz do gênero literário denominado“conto”. Mas aquela que mais exemplarmente condensa as possibilidades líricas,épicas e dramáticas da forma do relato oral é a do conto-título do volume, “OCarro dos Milagres” – caso ocorrido durante o Círio, a procissão que marca oinício, cada ano, no segundo domingo de Outubro, da festividade de NossaSenhora de Nazaré, em Belém, cujos motivos lendários, transpostos de Portugal,rebrotaram no Brasil numa manifestação coletiva de piedade popular,secularmente difundida por todo o Estado do Pará. Com a sua carga orgiástica

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difusa, seus tradicionais carros alegóricos que precedem o andor da Santa (aBerlinda) – um dos quais o dos Milagres–, o Círio, ocasião de verdadeira“transumância” (assim o qualificou Eidorfe Moreira, no primeiro ensaiosociológico que se escreveu a respeito), atrai, do interior do Estado, devotos,romeiros e pagadores de promessas transportando ex-votos.

“OBRAS EM PROSA”, DE FERNANDO PESSOA (01/1977).“A ESTÉTICA DE LÉVI-STRAUSS”, DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR(03/1977).“DISTÂNCIA”, DE LIBERTO CRUZ (07/1977).“XADREZ DE ESTRELAS. PERCURSO TEXTUAL (1949-74)”, DEHAROLDO DE CAMPOS (07/1977).

Tentar separar a trajetória poética de Haroldo de Campos dos rumos doConcretismo seria tão absurdo como pretender estudar os rumos de AndréBreton independentemente da trajetória do Surrealismo. Entretanto, o poeta de“Xadrez de Estrelas” filtrou, de modo peculiar, o “realismo absoluto” (o poemaexistindo “espacialmente” como objeto, em sua materialidade de signo, eequivalendo ao processo de sua estruturação) e o “anti-historicismo” (tendênciaa valorizar o novo como medida “histórica” da invenção poética irruptiva),incorporados à teoria e à prática do Concretismo, firmadas a partir doreconhecimento da existência de uma crise do verso na modernidade e da viragemliterária que representou “Un Coup de Dés” de Mallarmé para superá-la.

“A HORA DA ESTRELA”, DE CLARICE LISPECTOR (11/1978).“A HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA”, DE WILSON MARTINS(01/1980).“SIGNANTIA QUASI COELUM / SIGNÂNCIA QUASE CÉU”, DEHAROLDO DE CAMPOS (01/1981).“CANTO EM SI E OUTROS CANTOS”, DE REYNALDO VALINHOALVAREZ (05/1981).“VOO DE GALINHA”, DE HAROLDO MARANHÃO (01/1982).

Não há, neste livro, retratos do corpo inteiro, mas perfis: o maníaco de “MinhaSenhora”, os semiloucos e párias de “Os Scaff, Pai e Filho”, a matrona edípicade “O Pai de Cassiano, a Mãe, o Cassiano”. Os gestos ou o simples movimento,como no equívoco e fatal mergulho da moça de “O Salto”, resumem o cursode uma ação implícita.

“IMPRESSÕES DE VIAGEM. CPC, VANGUARDA E DESBUNDE: 1960/70”, DE HELOÍSA BUARQUE DE HOLANDA (07/1982).“REFLEXÕES SOBRE A VAIDADE DOS HOMENS E CARTA SOBRE AFORTUNA”, DE MATIAS AIRES (09/1982).

Os estudos introdutórios de que se acha munida a presente edição críticaproporcionam-nos essa leitura renovada de uma obra que, estampando o espíritode dois períodos, estampa, antes de tudo, ao encontro do pensamento moralconflitivo de nossa época, prevenido contra os disfarces das paixões, a permanenteinquietação humana.

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“EM LIBERDADE”, DE SILVIANO SANTIAGO (09/1982).Ensina-nos a história literária que Graciliano Ramos começou a narrar a suaexperiência de preso político sem processo entre 1936 e 1937, somente em1946, quase dez anos depois de finda. A morte surpreendeu-o antes de haveriniciado o capítulo final, precisamente aquele que na obra póstuma, “Memóriasdo Cárcere”, dada a lume em 1953, na forma em que a deixara o romancista,descreveria a volta à liberdade.

“CLARICE LISPECTOR OU O NAUFRÁGIO DA INTROSPECÇÃO”(11/1982).

Creio que a morte da autora abriu uma terceira fase de recepção à sua obra,condicionada às peculiaridades de dois livros, “A Hora da Estrela”, que precedeude meses o passamento de Clarice Lispector em 1977, e “Um Sopro de Vida”,publicado postumamente. O primeiro não mais exibe o rótulo de “romance”,ainda conservado em “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” (1969),nem o de “ficção”, como em “Água Viva” (1973) – e o segundo, concluído namesma data, traz o subtítulo de “Pulsações”. Por uma sorte de efeito retroativo,ambos permitem desvendar certas articulações da obra inteira de que fazemparte, dentro de um singular processo criador, centrado na experiência interior,na sondagem dos estados da consciência individual, que principia em “Perto doCoração Selvagem”.

“MANUEL BANDEIRA PRÉ-MODERNISTA”, DE JOAQUIM-FRANCISCO COELHO (09/1983).“O TETRANETO DEL-REI”, DE HAROLDO MARANHÃO (01/1984).

Não bastaria portanto dizer que o Torto, identificado a Camões pela comumlesão orbital, sai das câmaras femininas de Lisboa. Ele também se evade daspáginas dos “Lusíadas” e percorre, em suas andanças, sobre folhas de livros aserem escritos no futuro, inclusive “Grande Sertão: Veredas”, uma florestabibliográfica tropical, antropofagisticamente enxertada, entre tantas referências ecitações diretas ou alusivas, com versos de Mário Faustino, Camões, CarlosDrummond de Andrade e Fernando Pessoa.

“DEDO-DURO”, DE JOÃO ANTÔNIO (05/1984).“JOÃO CABRAL: FILOSOFIA E POESIA” (07/2000).

Nunca são diretas mas transversais as relações entre poesia e filosofia. Porém,se o poeta é eminentemente crítico como João Cabral, se, para ele, emcontraposição a todo o êxtase, a toda a inspiração, e portanto contra o vezopara o irracional, o vago e o místico, o poema nasce de um movimento deascese, capaz de criá-lo enquanto “trabalho de arte”; se esse mesmo críticopoeta ou poeta crítico escreve “Psicologia da Composição” (1947) – na verdadeuma filosofia da composição, se não uma fenomenologia do poema–,tematizando, como permanente acompanhamento da obra, a ascese que depurapacientemente a linguagem até neutralizar nela o sujeito como Eu, para assegurarà mesma linguagem a comunicabilidade por meio da forma construída, entãomuito prosperam as relações transversais entre poesia e filosofia.

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* Professora da Universida-de da Amazônia (UNAMA) /Membro da Academia Paraen-se de Letras

Doutoranda em Ciências daLinguagem / Autora de MadreMariana Alcoforado: o Hábito daSolidão, Além da Tapeçaria e dosVéus: mistérios de Lígia FagundesTelles; Quincas Borba, de Macha-do de Assis: romance e estudo crítico,entre outros.

Agraciada com os prêmios “Sa-muel Mac Dowell” (Governo doEstado do Pará e AcademiaParaense de Letras), CulturalCEJUP, Carlos Nascimento, en-tre outros.1. HARVEY, Paul. DicionárioOxfor de Literatura Clássica (Gre-ga e Latina). Tradução: Márioda Gama Kury. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1987.2. TELLES JÚNIOR, Goffre-do. Aristóteles: Arte Retórica e ArtePoética. Rio de Janeiro: Tecno-print S.A, 1991.

“... o bosque de oliveiras de Academe,retiro de Platão, lá onde o pássaro ático

faz ouvir seus gorgeios por todo o Verão.”(Milton, P.R., IV, versos 244 e segs.)1

Nas cercanias de Atenas havia um jardim. Um jardim chamado Academo,em honra ao personagem da Mitologia Grega que, segundo a tradição, ajudou aCástor e Pólideuces a encontrar sua irmã Helena, raptada por Teseus.

Foi nesse jardim, cercado por um bosque sagrado e dedicado à deusaPalas Atena, que Platão (Atenas : ? 427 – 347 a.C.) fundou, por volta de 387a.C., sua escola – a Antiga Academia.

Nesse espaço havia alojamentos, refeitórios e salas de leitura, onde Platãoe seus discípulos discutiam Matemática, Astronomia, Política, Poesia, Música,Filosofia... Sua intenção era formar homens de princípios elevados, preparadospara exercer as mais destacadas atividades daquela época.

Entre esses alunos de Platão estava aquele que foi seu maior discípulopor mais de 20 anos: Aristóteles (Macedônia, Estagira: 384 – 322 a.C.).

Diziam os contemporâneos desses dois filósofos que Platão chamavaAristóteles de “o Ledor”, “ o Entendimento”, “o Espírito”. O estagirita eraconsiderado, pois, o Nous (a “Inteligência”) da Academia.

Declararam, ainda, esses contemporâneos que “Platão, ao verificar, certodia, que Aristóteles não se encontrava na Academia”, proferiu as seguintespalavras: “A Inteligência está ausente.” (“Como é sabido, Aristóteles ouviu,por cerca de vinte anos, as lições de Platão, na Academia de Atenas.”)2

Benedito Nunes:a inteligência presente

Nelly Cecília Paiva Barreto da Rocha*

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Essas palavras de Platão, proferidas há mais de vinte e três séculos, podem– perfeitamente – ser repetidas nesta primeira década do século XXI, em umjardim localizado na Travessa da Estrela, em aprazível residência: a casa deBenedito e Maria Sylvia Nunes.

Nesse jardim, envolvido por samambaias que não são apenas “demetro”, mas ‘quilométricas’ – habitualmente – reúne-se o casal e alguns amigos.Diletos amigos. Amigos que se reúnem para conversar, ouvir música, aprender...aprender... aprender... (Há alguns anos, encontrar-se-ia, também, nesse espaçoa Angelita Silva, irmã de Maria Sylvia).

Ensinar / aprender nesse jardim, em salas de aula e em auditórios deuniversidades do Brasil e do exterior é, pois, uma realidade no cotidiano doProfessor Benedito Nunes. Uma realidade que eu tive o privilégio de usufruircomo sua aluna em cursos de Pós-Graduação e ouvinte atenta em Congressosliterários realizados Brasil afora. (Fui sua aluna e muito aprendi). De MariaSylvia, fui colega no Curso de Extensão sobre o Teatro de Gil Vicente, ministradopelo Professor Francisco Paulo do Nascimento Mendes.

Maria Sylvia, professora de História do Espetáculo na UFPa, dirigia peçasteatrais – premiados espetáculos no Brasil e além fronteiras; Benedito Nunesproferia – e profere – conferências em várias universidades do Brasil e do exterior.E escreve livros – notáveis obras. Obras que se atemporalizarão.

Hoje, constato quão necessário se faz voltar no Tempo para escrever esteartigo na revista Asas da Palavra, da Universidade da Amazônia (UNAMA).

Volto no Tempo, para lembrar, por exemplo, que Benedito e Maria Sylviase fizeram presentes na minha vida e na de Octavio Avertano Rocha (que era oassistente do Professor Benedito Nunes na disciplina Filosofia, na antigaFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras) quando foram os escolhidos parapadrinhos da primogênita Nelly Miriam (e, logo depois, foram os padrinhos “adhoc” de Ana Cecília e Isadora Octavia.).

Entretanto, nem é preciso voltar no Tempo para metonimicamente dizer:Benedito Nunes: a Inteligência presente.

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Convidado pelo Magnífico Reitor da Universidade Federal do Pará,Professor Cristovam Wanderley Picanço Diniz para dizer algumas palavras sobreo Professor BENEDITO JOSÉ VIANNA DA COSTA NUNES nesta ocasiãoem que recebe o Título de Professor Emérito da Universidade Federal do Pará,achei que seria interessante, pelo menos para mim, falar de três momentos emque tive a oportunidade de conviver mais de perto com esse ilustre professor,momentos esses importantes para a minha carreira acadêmica.

O primeiro momento ocorreu em 1953 quando fui seu aluno no ColégioEstadual “Paes de Carvalho” (CEPC), na disciplina História do Brasil, cursandoo então 3º Científico. Muito embora jovem (pois se encontrava no início de suacarreira de professor), o que mais me impressionou, bem como a meus demaiscolegas, era a clareza e a profundidade de suas aulas, uma vez que ele não selimitava apenas a descrever cronologicamente os fatos históricos mais relevantesda história de nosso país. Ele os correlacionava através de uma visão que hojese denomina sociológica. E, mais ainda, quando fosse pertinente, BeneditoNunes fazia uma incursão filosófica nessa correlação.

Hoje, refletindo sobre aquelas aulas e as demais (e de mesmo nível)recebidas de outros professores no velho casarão da Praça da Bandeira,compreendo a razão pela qual, pelo menos nos últimos 50 anos, uma boa parteda elite política, profissional e empresarial que contribuiu para o desenvolvimentodo Pará, estudou e/ou ensinou naquele casarão. Por outro lado, há outrosmembros dessa elite, que também engrandeceram o nosso Estado, embora nãohajam passado pelo CEPC, estudaram e ensinaram em Colégios particulares,cujo ensino era tão bom quanto o do CEPC. E por que havia esse equilíbrio?Por causa de uma lei mercadológica e hoje renegada: o bom ensino públicoinduz o bom ensino privado

* Publicado originalmenteno livro Benedictus, homena-gem da UFPA por ocasião datitulação de Professor Eméri-to em novembro de 1998.1 Professor Titular Aposen-tado do Departamento de Fí-sica da Universidade Federaldo Pará - UFPA.

Benedito Nunes,o professor*

José Maria Bassalo1

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O segundo momento em que convivi com o Professor Benedito Nunesocorreu em 1958, na casa do Professor Machado Coelho, meu sogro. Nessacasa, todas as noites, reuniam-se intelectuais: advogados, médicos, engenheiros,poetas, pintores, literatos, antropólogos, jornalistas, professores, escritores,músicos etc. (mas nem todos ao mesmo tempo), obviamente, para conversarsobre os mais variados temas. Quando essas conversas versavam sobre literatura,a discussão se tornava calorosa, principalmente entre meu sogro e seu amigo ecompadre, o professor Francisco Paulo do Nascimento Mendes, ambos literatos.Quando havia um impasse na discussão, eles apelavam para o Professor BeneditoNunes para saber quem estava com a razão. Com um sorriso, o nossohomenageado de hoje encerrava a discussão, dizendo que ambos tinham razão,apenas os enfoques é que eram diferentes. Ele, Professor Benedito Nunes, quasesempre tinha um outro enfoque, contudo só o usava quando os ânimosestivessem serenados.

As conversas e discussões que ouvi na varanda do Machado Coelho (comoeram conhecidas aquelas reuniões) por quase 40 anos, mostraram a importânciada interdisciplinaridade na formação intelectual de qualquer pessoa. Por exemplo,por várias vezes, vi que a interpretação de um quadro ou de uma peça literáriadependia de outros conhecimentos, além dos de pintura ou de literatura e,principalmente, de História e de Filosofia.

Sobre essa interdisciplinaridade, recordo-me de um fato muito marcanteem minha vida. Em 1959, alguns intelectuais que frequentavam a varanda e,sob a liderança de meu sogro, Benedito Nunes e Paulo Mendes promoveram,por intermédio da Aliança Francesa, curso sobre Pintura FrancesaContemporânea. Uma das palestras desse curso foi proferida pelo saudosoengenheiro e matemático Rui da Silveira Brito (um dos frequentadores davaranda), e que abordou o tema Matemática e Pintura. Depois de falar daimportância dos princípios matemáticos, da perspectiva usada pelo pintor italianoPiero Della Francesca, na Idade Média, concluiu sua exposição dizendo que aTopologia talvez tenha influenciado a Pintura Abstrata. Para ilustrar essaafirmação, observou que entes topológicos, como, por exemplo, a fita de Möbiuse a garrafa de Klein, poderiam ser vistas como “pinturas abstratas”.

A interdisciplinaridade voltou a ser o objeto principal de meu terceiromomento de convivência com o Professor Benedito Nunes. Com efeito, de 1980a 1982, os Departamentos de Filosofia e de Física da UFPA realizaram umasérie de seminários, coordenados e dirigidos pelo Professor Benedito Nunes,nos quais se discutiu uma série de temas dessas duas disciplinas. Por exemplo,recordo-me que, além de discutirmos temas puramente filosóficos e físicos,discutimos, também, assuntos nos quais havia uma relação dialética entre Ciênciae Filosofia, tais como: o processo cognitivo da ciência; a intuição criadora; ciênciae ideologia; ciência, tecnologia e desenvolvimento, dentre outros.

Muito embora a filosofia fosse motivo de conversas entre mim, minhamulher Célia, meu sogro, meus cunhados e concunhados, além dos varandeiros,foram aqueles seminários que me alertaram para a importância da Filosofia no

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entendimento da Física. Assim, com o conhecimento dessa disciplina que adquiriparticipando das discussões sérias ocorridas nos seminários referidos acima,passei então a aprofundar as leituras dos principais filósofos da ciência de nossoséculo: Gaston, Bachelard, Karl Popper, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend,Maurice Merleau-Ponty (professor de Benedito Nunes), Mário Bunge, ImreLakatos, Gerald Holton, Alan Musgrave, David Bohm, Jacob Bronowski e outros.Essas leituras me foram bastante importantes na elaboração dos cinco tomosde minhas Crônicas da Física. (Nesta oportunidade, quero destacar que meuprimeiro contato com Popper foi através da leitura que fiz de seu famoso livroA Lógica da Pesquisa Científica (Editora Cultrix e EDUSP, 1975), e que mefoi indicado, em 1976, por meu concunhado, o literato Pedro Pinho de Assis,nas conversas da varanda.)

Na conclusão desta homenagem ao Professor Benedito Nunes mencionomais um exemplo da interdisciplinaridade que demarcou (no sentido popperiano)o meu convívio com esse estimado amigo. O momento está registrado no livroA Crise do Pensamento, publicado pela Universidade Federal do Pará e aFundação Rômulo Maiorana (EDUFPA, 1994), que reúne as palestras proferidasno Ciclo de Preleções: A Crise do Pensamento patrocinadas e realizadas no Núcleode Arte da UFPA, em junho de 1993, e organizadas por Professor BeneditoNunes. Em duas dessas preleções, o Professor Benedito Nunes e eu discutimos,respectivamente, os aspectos filosóficos e físicos do tempo.

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A travessa da Estrelae o metonímia Ben(e)dito

Paulo Nunes1

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O complexo mundo do pensamento tem sua lógica própria. Para adentrarnele, precisamos de um longo tempo preparatório, parcimônia, pois que nossaslimitações aumentam a necessidade de cultivar a paciência, sentimento tãonecessário quanto fôssemos adentrar numa cápsula daquelas que transporta –metáforas? – argonautas ao abismal espaço. Imagino – imago – que se chegandoao território do inimaginável, pensamos que a Terra é azul, um “blue”cantocantado, e que a Lua está tão próxima das nossas mãos quanto as teclas deuma máquina Remington, hoje bibelô na mesinha de centro da sala. Poder desuprema posse? Ilusão? A viagem, como toda caminhada valorosa, é complexa,duradoura, inconclusa e contém obstáculos. Há algo de “religare” no universodo pensamento. Trilhamos vias sacras, “estandebairizamo-nos” nas estações, afim de nos abeberarmos das palavras, palavras que contêm um caudal mágico,mais ou menos como dissera Cecília Meireles, certa feita: “Palavra, Oh! Palavra,que estranha potência a vossa!...” Faço todo este rodeio, intróito preparativo, eo leitor já desconfia do motivo. Quero tratar, na cerimônia celebrativa, observadorà distância que sou, sobre uma personalidade que habita – sacerdote privilegiado?– o mundo do “logos”. Transformei a desvantagem em vantagem aparente.Explico-me: não tenho intimidade com esta pessoa, sequer sou seu amigo.Frequentador da travessa da Estrela? Não sou (embora lá tenha sido recebidodurante três vezes: uma para entregar um volume de Márcia Marques de Moraissobre Guimarães Rosa, no qual o professor é citado; outras duas, quando JosseFares, Josebel Akel Fares e eu fomos conversar com o escritor Haroldo Maranhãodurante o lançamento de “nosso” Texto e Pretexto, em que o autor de Voo deGalinha é estudado; houve ainda a gravação do documentário sobre MaxMartins, “Fazer como os Pássaros...”, dirigido por Abdias Pinheiro, que temroteiro de texto da Josse).

Pois bem, por menor que possa parecer, nossa experiência tem mostradoque toda cidade tem seus nomes emblemáticos; ícones que se transformam emrepresentantes do mundo das palavras, das artes, enfim, da cultura. Não somosdiferentes, Belém também tem seus ícones. E um deles chama-se Benedito Nunes.Quase sempre, quando apresentamos trabalhos em encontros de literatura, háalguém que exclama: “Ah! São de Belém... a terra do Benedito [Nunes]?” Ora,tal manifestação é um modo de dizer que uma pessoa, graças à proeza de seutrabalho - pensamentos e escritos -, é verbo encarnado, como eu poderia dizer,uma metonímia2 de nós todos. Assim, não é exagero dizer-se aqui que, de certomodo, Benedito Nunes é um metonímia de Belém.

Conheci nosso metonímia (pessoalmente, digo) quando, “ borracho” -eu,muito jovem ainda, iniciara o curso de Letras na Universidade Federal doPará, início dos anos 80. No auditório do então Centro de Letras (hojecuriosamente este espaço chama-se Francisco Paulo Mendes, nome de um amigopessoal do mestre da Travessa da Estrela), uma palestra sobre Guimarães Rosa.Novatos, eu e Elaine Oliveira (e mais um significativo número de estudantes),hoje minha colega de magistério na Unama, escutávamos magnetizados o quefalava o mestre, e a plateia, silenciosamente, apre(e)ndia. Confesso a vocês quenão entendi meio quilo das toneladas de “alimento” que o professor Beneditorepartia fraternalmente conosco naquela ceia. Saí dali – falo evidentemente tão

1 Professor da Universidadeda Amazônia, Belém-PA, ape-sar do Nunes que traz no so-brenome, Paulo não é paren-te do intelectual homenagea-do nesta crônica; o Paulo lei-tor de Dalcídio amadureceuacerca de algumas artimanhasconstrutivas de romancistasmarajoaras nos estudos deBenedito Nunes.

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somente por mim - com um misto de curiosidade e semi-humilhação. O assuntoda preleção era nada menos que Guimarães Rosa, então uma leitura um tantorala feita no meu segundo grau; assunto que me tantalizara olhos e ouvidos(coisa que se intensificou bastante quando a rede Globo levou ao ar a série comToni Ramos e Bruna Lombardi). Mas, sem desviar caminhos, voltemos aoprofessor Benedito. Naquele dia, pensava eu: como um homem fisicamente tãopequenininho podia saber com tanto sabor? Tamanho é documento? Quandoeu “crescer”, quero ao menos apertar sua mão... Eu expressara (ingenuamente?)esse desejo em sala de aula. Ruy Barata, nosso professor de Literatura Brasileira,sarcasticamente, me gozava: “Paulo, irmãozinho, este sobrenome... Queres tevaler da fama do Benedito, hein?” Eu olhava atônito para o Ruy e me limitavaa sorrir. O que fazer?Afinal, calouro, não tinha ainda a malícia necessária paralidar com os jogos de linguagem do Paranatinga. A fábula da raposa e as uvas.

2 Segundo a versão eletrôni-ca do Dicionário Houaiss deLíngua Portuguesa, metoní-mia é “figura de retórica queconsiste no uso de uma pala-vra fora do seu contexto se-mântico normal, por ter umasignificação que tenha relaçãoobjetiva, de contiguidade,material ou conceitual, com oconteúdo ou o referente oca-sionalmente pensado [Não setrata de relação comparativa,como no caso da metáfora.]”

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Como eu disse, não participo do círculo de amigos (em Belém há algunsreconhecidos discípulos dele) do professor Benedito (talvez por isso sejaincongruente eu chamá-lo aqui de “Bené”), mas há alguns fatos que gostariade lembrar nesta quase crônica de registros. Ao promovermos um encontrosobre literatura paraense no colégio Deodoro de Mendonça, em 1983, fui,aos poucos, me aproximando de ancho “magro poeta” Max Martins;inicialmente na SUCAM (então um prédio colonial na avenida Nazaré coma Rui Barbosa) e depois ali na Casa da Linguagem. A Casa, braço da FundaçãoCurro Velho, é, como sabemos, espaço mágico reservado à expressão verbalque o Estado mantém na avenida Nazaré com a Assis de Vasconcelos. E,vez ou outra, o Max falava de seus amigos, dentre eles, o ilustre morador daTravessa da Estrela. A fala de Max era de uma expressão franciscana,compassada, mas f luente e verdadeira , e, sobretudo, substancial ,consubstancial. Porque em Belém, o observador atento perceberá em umaou duas reuniões, há quem queira demonstrar intimidade com BeneditoNunes, tratando o mestre simplesmente como “Bené”. Há os que podemfazê-lo, mas há os que não deveriam “forçar a barra”, afinal tal gesto chegaa transpirar esnobismo quando não uma demonstração de falsa intimidadecom o filósofo e crítico literário. É como que se ao enunciar “hoje estivecom o Bené”, se concretizasse uma sentença valorativa, espécie de escaladaprogressiva na trajetória intelectual do enunciador. Bem, mas eu dizia quealgumas de minhas conversas com o Max Martins, traziam à baila as figurade Benedito e Maria Sylvia Nunes.

Sei que, perdoem-me, cometo rodeio retórico. Trasladando-me em tornode meu próprio eixo? Corro o risco de perder-me na floresta das palavras?Em suma, é preciso enfatizar, antes, sobre o valor de “adido intelectual deBelém” que o professor do antigo Centro de Filosofia da UFPa goza fora denossos amazônicos limites territoriais. E uma demonstração concreta dissose deu quando meu querido Audemaro Taranto Goulart me disse, em BeloHorizonte: “Paulo, você precisa explorar mais em seu texto O Tempo naNarrativa3, do Benedito!” É bem verdade, que em minha graduação, após aexperiência reveladora da conferência aqui aludida, tive contato com umcapítulo de Passagem para o Poético: filosofia e poesia em Heidegger.Aquela leitura foi, na realidade, uma forma mais didática de me fazercompreender sobre a força da palavra poética. Confesso, entretanto, que asleituras reiterativas e mais significativas que fiz de nosso filósofo foram osdois textos sobre Dalcídio Jurandir. Um primeiro, que me gentilmente cedidopelo amigo Silvio Holanda (professor do Instituto de Letras da UFPa), foi aresenha sobre Belém do Grão-Pará, publicada no Estado de S.Paulo, em1960.E um segundo, que foi publicado na revista Asas da Palavra sobreDalcídio Jurandir, editado pela Unama em 2004, estudo que muito me auxiliouna interpretação do romance urbano de Dalcídio. Tirei proveito também deuma conferência do professor Benedito durante o Encontro Nacional dosEstudantes de Letras, que se realizara em Belém, campus da UFPa, em 1995,se não me falha a memória. Foi naquele ENEL que o filósofo paraense

3 Maria das Neves PenhaObadia me ajudou muito nes-te particular. Aproveito paraagradecer a ela publicamente.

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noticiara a respeito – já relatei isso noutro texto – da conversa que ele tiveracom Dalcídio Jurandir, logo após a publicação de Grande Sertão: Veredas,de Guimarães Rosa. Segundo Nunes, Jurandir ficara atônito com o que lera,e assim o ficcionista paraense perguntava: “Bené, o que um romancista podefazer depois da publicação deste romance do Rosa?...”. Tal revelação teveum gosto especial para mim, porque além de demonstrar que estávamosdiante de um Dalcídio exigente leitor, tínhamos no autor de Marajó umhomem afinado com as novidades do romance de seu tempo. Outro trabalhode Benedito Nunes que me causou contentamento foi o Crônica de duasCidades, escrito em parceria com Milton Hatoum, publicado pela SECULT-Pa. O livro, como se sabe, trata de Belém e Manaus como capitais culturaisda América Latina, obra que se transformou numa jóia preciosa de quetambém lancei mão para escrever minha tese em Belo Horizonte. A ediçãoda SECULT-Pa é caprichada e nos faz confirmar o fato de quanto o Brasilrepublicano – além das grandes distâncias geográficas, é claro! – isolou,ainda mais, a Amazônia do restante do Brasil. Na Unama estive umas duasou três vezes com o professor. Uma em que ele fora homenageado no FórumParaense de Letras, e noutro, quando o homenageado, noutra versão doencontro, foi prestigiar Max Martins.

Pois bem, eis uma rápida declaração pessoal da importância destafigura emblemática, que muito provavelmente demarca a nossa – paraense– vida cultural em duas fases, antes e depois dele. Benedito Nunes é, portanto,um marco. Mais que territorial, um marco simbólico das terras do Grão-Pará, por vezes tão amesquinhado, pela incompetência e vaidade excessiva.Uma terra feminina, mariana, teimosa, que resiste graças a algumas de suasfilhas. E filhos.

Santa Maria de Belém do Grão-Pará, ano de 2009.

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Não me surpreendeu a brilhante atuação de Benedito Nunes no movimentocultural do País. Meu aluno no curso secundário do Colégio Moderno – já lá sevai meio século – revelava uma inteligência acima do comum, um gosto peloslivros raro de encontrar-se em tão pouca idade, um vivo interesse pelos aspectosmais nobres da existência humana.

Oscilando entre a filosofia e a literatura desde o início de sua produçãointelectual, tem conservado essa dupla característica ao longo de toda a suafértil atividade mental, o que lhe valeu uma posição especial na crítica literária,acentuada, particularmente, em seus belos estudos sobre Mário Faustino eClarice Lispector, nos quais a abordagem filosófica acompanha a análise da artede escrever. Essa duplicidade de inteligência, característica da obra de BeneditoNunes, muito tem influído, sem dúvida, para a posição singular que ocupa naliteratura brasileira. Desde “O Dorso do Tigre” até “O Crivo de Papel”, seutrabalho, sempre original e fecundo, o tem distinguido na cultura nacional, semter precisado, para isso, de integrar-se ao eixo Rio – São Paulo. Nascido emBelém e aí fixado, tem cultivado, dentro da amplitude do seu pensamento, ascaracterísticas não só amazônicas como, até mesmo, paraenses, no modo deviver e produzir.

Isso lhe valeu, de certo, uma posição personalíssima no ambiente culturalbrasileiro e muito tem contribuído para o prestígio de que goza nos meiosintelectuais do País, tornando-o detentor de várias distinções significativas,inclusive, recentemente, o Prêmio Multicultural Estadão, para cuja conquistafoi o seu nome indicado por três mil pessoas numa ampla manifestação da opiniãopública, que soube captar a singularidade da sua posição nas letras brasileiras.

A proximidade entre filosofia e literatura reflete-se, também, na atividadepedagógica do autor de “Crivo de Papel”, tornando-o o verdadeiro organizadordos cursos de filosofia da Universidade Federal do Pará, para os quais atraiuestudantes que, sem o seu toque especial, não teriam despertado para tão sutilatividade intelectual.

A maior alegria que o professor pode experimentar é ver-se ultrapassadoem saber, competência e capacidade por seus discípulos. Essa a inefável sensaçãoque experimento ao percorrer as páginas assinadas por Benedito Nunes.

* Publicado originalmente nolivro Benedictus , homena-gem da UFPA por ocasião datitulação de professor eméri-to em novembro de 1998.1- Professora titular de Histó-ria do Brasil da UniversidadeFederal do Pará, e sua ex-pró-reitora, foi, por muitos anos,presidente do Conselho Esta-dual de Cultura, cargo em quese notabilizou pela entusiásti-ca e intransigente defesa daMemória paraense. Era mem-bro também do Instituto His-tórico e da Academia de Le-tras do Pará. Faleceu em 16 deagosto de 2006, em Belém.

Uma posição singular*

Maria Annunciada Ramos Chaves1

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V. Estudos sobre aobra de Benedito Nunes

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Ao apresentar Benedito Nunes, antes de sua conferência3 denominada“Crítica literária no Brasil, ontem e hoje” (2000), Flávio Aguiar divide em trêsmomentos a obra do professor paraense: 1. os escritos de fundamentação, porexemplo, Passagem para o poético (1986); 2. os de interpretação, como os estudosde O dorso do tigre (1969) e No tempo do niilismo e outros ensaios (1993); 3. os deedição, a publicação dos poemas de Mário Faustino (1985) e a edição crítica deA paixão segundo G. H. (1996), de Clarice Lispector.

Conquanto Aguiar declare que tal divisão não pode ser entendida de modoestanque, é preciso salientar o risco em que toda classificação incorre. No caso,a obra de Nunes dificilmente se deixa enfaixar de modo a pertencer a esta ouàquela linha. O que se percebe, por certo, são nuances de uma escritura que, aonão aceitar a estéril generalização, realiza-se como invenção e expressão emdiferentes momentos no espaço da crítica.

Basta assinalar que a sua práxis de interpretação nasceu no solo literário,em cuja fonte a filosofia – a Filosofia Hermenêutica, importante lembrar – incidecomo linguagem, no reconhecimento da literatura como “experiência do possível”.(NUNES, 1993, p.199 – grifo do autor)

Assim, o diálogo literatura e filosofia se institui como campo de suainstrumentação e perpassa seu discurso crítico de modo a compor um fio aoqual seu raciocínio se prende. Nas suas palavras:

Não sou um duplo, crítico literário por um lado e filósofo por outro. Constituoum tipo híbrido, mestiço das duas espécies. Literatura e filosofia são hoje, paramim, aquela união convertida em tema reflexivo único, ambas domínios emconflito, embora inseparáveis, intercomunicantes. (NUNES, 2005, p.289)

Ao lado: Clarice Lispector,reprodução.

Reflexôes acerca da críticade Benedito Nunes1

Jucimara Tarricone2

1 O presente ensaio é, comligeiras modificações, uma par-te da minha tese de doutoradodenominada Hermenêutica e crí-tica: o pensamento e a obra de Bene-dito Nunes.2 Professora-assistente da Uni-versidade Católica de Santos.Doutora em Teoria Literária eLiteratura Comparada pela Uni-versidade de São Paulo.3 O texto da conferência e desua respectiva apresentação éuma das exposições perten-centes a Rumos da crítica (2000),resultado de um ciclo de pa-lestras que constituiu o pro-grama Rumos da Literatura eda Crítica do Itaú Cultural, ocor-rida em 1999.

148 da palavra

Diante dessa posição, talvez seja pertinente perguntar o que isso representa,qual o lugar e a importância que ocupa tal analítica dentro do quadro instávelem que se desenvolveu a crítica literária brasileira. O adjetivo instável, valedizer, não possui um qualificativo negativo; antes, revela a natureza complexado tema, merecedor de diversas e, por vezes, polêmicas exegeses.

Por outro lado, pode-se indagar, de acordo com Costa Lima (2000, p.17),se um crítico, ou a crítica literária em si, tem lugar definido, já que, como eleconstata, esta é apenas um horizonte de que “seus praticantes tão-só estãopróximos ou distantes”. Em poucas linhas:

O crítico não é aquele que, por força de uma instrumentação técnica, “mostra”aos leigos o que eles por si não saberiam ver, senão aquele que usa de umainstrumentação, só às vezes técnica, para tornar visível a presença de umapropriedade que, em tese, seria a todos acessível.

O crítico, pois, é aquele que, ao ler a obra literária, compartilha com outrosleitores sua experiência de leitura do texto. De fato – e não é novidade –, são asdiferentes formas de ler o fenômeno literário que propiciam as diversas interpretaçõestextuais. Basta recordar a atualidade da assertiva de Merleau-Ponty (1989) de que sóencontramos nos textos aquilo que colocamos neles. Ou o vaticínio de Paul de Man(1988): a literatura, por sua própria natureza, condena o crítico a certa cegueira e só lhepermite poucos vislumbres.

Ao descortinar as camadas da linguagem, ao investigar o possível sentidoque se produz em cada dobra, o crítico concretiza sua prática do discurso literáriopela leitura. Prática esta também teórica, posto que a ação de interpretar envolveprincípios e conceitos. Da mesma forma, a crítica e a teoria não se isolam dahistória literária; são tênues as fronteiras dessas vertentes que se interpenetrame não podem ser vistas separadamente.

Interessa-me aqui tão-somente mostrar que a questão acerca da leitura – e,portanto, desta como instância crítica – perpassa grande parte dos ensaios de BeneditoNunes. Se a dialogação literatura e filosofia é a marca de tal leitura-crítica, é preciso,no entanto, esclarecer quais os princípios e os limites desse intento.

I. A tensão entre a escrita dos escritores e a leitura dos críticos

Em “Ética e leitura”, um dos títulos de Crivo de papel (1998), por exemplo,Nunes põe em cena esse assunto ao afirmar que a “prática da leitura seria umadestramento reflexivo, um exercício de conhecimento do mundo, de nós mesmose dos outros”. (NUNES, 1998, p.175) Essa mesma idéia, aliás, é a que respondeà reflexão de George Steiner (1988) se não valeria a pena dispensar a crítica edeixar vir à tona as “reais presenças” das obras literárias:

Mas como reconhecer essas presenças reais (...), se muitos de nós se omitem aodever principal, suporte da ética da literatura, de transmitir aos nossos estudanteso prazer da leitura dos textos: prazer que, adestrando reflexiva e criticamente amente e o coração de quem o experimenta, prolonga-se em descoberta de nósmesmos e do mundo? (NUNES, 1999a, p.20)

da palavra 149

Na esteira de Ricoeur (1990), de quem absorve o conceito de texto, o atode ler, para Nunes, é o movimento especular em que o leitor, ao compreender otexto, compreende-se a si próprio. Nesta mobilização, a hermenêutica que aobra do discurso (seja poesia, seja prosa) nos oferece é a da experiência domundo do texto, ou do texto transformado em mundo, caracterizado por umareferência outra, distante da subjetividade do autor.

O crítico-leitor, ao apreender a obra, projeta no seu discurso a práticadessa linguagem, ponto de encontro da literatura e da filosofia, pois opensamento, ao demandar essa linguagem, já se interpretou nela. Comointerpretantes-leitores pode-se dizer que “a literatura pensa, não apenas nosentido (...) de extrair a Filosofia implícita de certas obras literárias (...), mas,também, no sentido do efeito anagógico, conversor, propiciado pelo ato de sualeitura”. (NUNES, 2005, p.303-4)

Sob este ângulo, é possível encontrar, em Nunes, o testemunho de umaleitura primeva, advinda de imediato do embate com a obra literária, comoquando descreve sua reação ao episódio da morte de Diadorim (ROSA, 1986,p.529-0):

Até hoje, depois de tantos anos da primeira leitura de Grande Sertão: Veredas, nãoposso deixar de emocionar-me nesta passagem. Compartilho o sofrimento dooutro para quem nenhuma consolação, humanamente falando, é possível. Ecompreendo a ação do romance, compreendendo-me (juízo) através dela, emminha condição de sujeito, fadado ao sofrimento. O movimento completou-sefora do livro, a experiência (estética) do conflito prolongada na experiência devida do leitor (Katharsis). (NUNES, 1998, p.184)

Compreender a obra é, assim, tentar alcançar a singularidade de sualinguagem, perceber que esta é capaz de se abrir em múltiplos sentidos, cujainterpretação pode transformar o texto em um objeto de juízo estético ou reflexivo.

Por certo, sua leitura crítica não se limita à experiência estética, já que épróprio desta trabalhar sem conceitos. Há, sim, em um primeiro momento, paradizer como Coleridge4, uma “suspensão da descrença” (willing suspension ofdisbelief). Ou seja, o receptor é enlaçado pelo texto que apresenta algo diferenteda sua expectativa. Ao aceitar capturar-se por inusitados meandros textuais,passa a incorporar essa nova experiência e amplia seu repertório de conhecimento.

Entretanto, tal conhecimento, advindo do apelo estético, é apenas umareação do receptor, um comportamento manifestado diante de um estímulo e,portanto, ainda não é de fato algo a respeito do qual se possa estabelecer leis.

Em que momento, então, há a passagem da experiência estética à críticapropriamente dita? Para Benedito Nunes, é quando ocorre uma tensão entre otexto e o leitor, tensão esta avivada por uma escritura inovadora, criativa, nolimite extremo que exige do crítico-leitor um novo olhar interpretativo, reflexivo:

Se a experiência do crítico reside na leitura que faz da obra, a experiência doescritor deriva de sua escrita. De uma e de outra experiência, concordante oudiscordantemente, derivam mudanças, ora pacíficas, ora conflitivas, da literatura.

4 Cf. COLERIDGE, S. T. Bio-graphia literaria or biographicalsketches of my literary life and opi-nions. London, New York: J. M.Dent, 1956, p.168-9.

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Os momentos literários mais fecundos, aqueles que fazem história, talvez sejamos de maior tensão entre a escrita dos escritores e a leitura dos críticos. (NUNES,2000, p.54)

A resposta a essa passagem, todavia, ainda não esclarece de todo estaproblemática. Como prerrogativa inicial, há de se esclarecer a relação entre aEstética e a Crítica e de como a leitura de Nunes a respeito delas desemboca naproblemática da confrontação filosófica e artística. Ou antes, deve-se deixarclaro que o crítico paraense se refere à experiência estética em uma dimensãoontológica, da qual se esboça a leitura hermenêutica empreendida por ele.

Sem me ater a um arrazoado excessivo, é necessário pontuar, entretanto,essas questões sem perder de vista a contribuição do pensamento de BeneditoNunes para caracterizá-las. Isto porque, ao acompanhar suas reflexões, estar-se-á à procura de melhor apreender seus passos.

II. Considerações a respeito da Estética

Em um artigo de 2006, Mario Perniola delineia o conceito de horizonteestético como aquele composto por quatro tipos de investigação – o belo, aarte, o conhecimento sensível e a educação – e defende que tal horizonte émarcado por um dinamismo constante, manifestado por conflitos abertos etranspassado por tensões e atritos.

Sob este prisma, a situação estética contemporânea pode ser caracterizadapor duas vertentes opostas: uma, mais expansiva, é descrita como “a viragemcultural da estética” (p.108 – grifo do autor), por meio da qual esta é identificadacom o estudo da cultura. Nessa linha, Perniola destaca o trabalho da estéticacultural de Jakob Burckhardt, do historiador Georg Mosse, dos sociólogosPlessner e Gehlen, de Umberto Eco, de Watsuji, de Pierre Bourdieu, entre outros.

Em uma segunda tendência, de fragmentação, há uma “desconstrução daestética”, em que as suas concepções fundamentais perdem sua natureza deunidade e são “inseparáveis das línguas” (p.115) nas quais são expressas. Comoexemplo, o autor italiano cita o Vocabulaire Européen des Philosophes. Dictionnairedes Intraduisibles (2004), dirigido por Bárbara Cassin, inspirado no Vocabuláriodas Instituições Indo-Européias (1995), de Émile Benveniste.

No livro A estética do século XX (1998), Mario Perniola já havia apresentadocinco conceitos essenciais no núcleo dos quais se pode traçar contribuiçõesmais expressivas a esta disciplina: “a vida e a forma”, remetidos a Kant; “oconhecimento e a ação”, referidos a Hegel; e o “sentir”, aludido a Nietzsche.Para ele, a estética se move contemporaneamente em decorrência dessescontributos, ainda que haja a expansão e a fragmentação do seu horizonte acimaaludido.

A referência a Mario Perniola tem como finalidade mostrar que, de formamodelar, a preocupação com a Estética excede os limites de tempo e de espaçoe se torna um interesse teórico em não poucos pensadores.

A contribuição de Benedito Nunes acerca desse assunto tem sido a deconsiderar a Estética como Hermenêutica e, portanto, circunscrita em um campo

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reflexivo de enfrentamento e de aproximação com a experiência histórica ecientífica. Entendida como filosófica, a Estética “não pode interpretar a arte,sem interpretar-se de acordo com os pressupostos que lhe fornece o todo dacultura de que faz parte”. (NUNES, 1993, p.60)

Nesse sentido, o caminho que Nunes tem privilegiado é o do grupohermenêutico do pensamento contemporâneo, erigido por Heidegger e acrescidopor Hans George Gadamer e Paul Ricoeur.

Aliás, como explica Benedito Nunes (1975a, p.211), o questionamentoda Estética, como um lugar pertinente ao saber ocidental,

é hoje um questionamento essencial paralelamente ao da própria Metafísica.Questionar a estética é de fato questionar a primazia gnoseológica do sujeitoimplantado com o moderno regime do saber, sob a vigência do cogito cartesiano.Seria também questionar os conceitos fundamentais e correlatos de matéria,forma, eidos, substância, e até mesmo o de tekne. (grifos do autor)

Para o professor paraense, em uma noção mais ampla, o pensamentoestético compreende duas espécies. A primeira, a Estética, é definida como umdomínio discursivo, por excelência especulativo, que pesquisa o fenômeno daarte em suas implicações gerais, cuja autonomia “não é outra senão a da própriaindagação filosófica, levando para essa esfera o teor problematizante dareflexividade que a caracteriza”. (NUNES, 1978, p.85)

A segunda, a Crítica, é um discurso hermenêutico e analítico, que interpretaas produções artísticas em particular. Sua prática é legitimada por métodos queutiliza, exigidos que são pelo caráter contingente das obras.

Como complementa Cesare Segre (1974, p.45-6), o estudioso da Estéticaé capaz de escalar livremente a Torre de Babel da Arte; já o crítico se vê forçadoa reconstruir, pedaço por pedaço, o complexo fenômeno artístico.

Segundo Nunes, os dois discursos se integram: o crítico ao buscarfundamentos no discurso da Estética e este ao utilizá-lo como meio deespeculação teórica. O primeiro adentra o campo da Estética quando generalizasobre o Belo ou a natureza da Arte; ao passo que o Filósofo da Arte, ao consideraras propriedades singulares de uma obra, torna-se crítico.

Essa inter-relação acontece “sem prejuízo do alcance excedentário daFilosofia”, da qual a Estética é uma extensão. Ao assentar o foco reflexivosobre o fenômeno artístico, a Filosofia “desata, em função dele, a cadeia dasquestões gnosiológicas e ontológicas fundamentais”. (NUNES, 1978, p.86)

Desse modo, as diferentes perspectivas com relação ao poético garantemà crítica uma natureza cujo princípio é, mais do que estabelecer regras, serentendida como um instrumento para o pensar. Mesmo sem uma posturanormativa, o crítico, todavia, pode utilizar-se de conceitos. Tais conceitos,porém, são destituídos de um traço regulador do objeto:

Na crítica de arte e de literatura, o conceito se torna a ferramenta para o pensar;algo, por definição, plástico e modificável de acordo com o objeto singular queanalisa, com sua posição no espaço e no tempo. Nesse sentido, poder-se-ia mesmo

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dizer que a crítica, porque sabe que nunca está pronta para ser aplicada, apresentatão-só o limite a que cada crítico aspira. Não há propriamente críticos, mas simaqueles que se aproximam, ora mais, ora menos, do horizonte do pensar que osjustifica. (COSTA LIMA, 2000, p.17)

O pensar que justifica a crítica de Benedito Nunes está no senso deacuidade de sua função crítica. Isto é, da sua consciência em querer ultrapassara experiência estética suscitada pela obra.

Para ele, sob o efeito de encanto que lhe proporcionou a “suspensão”,após a percepção estética, ocorre uma Katharsis, na acepção de Jauss (1979,p.81): aquela que libera o “espectador dos interesses práticos e das implicaçõesde seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si no prazer do outro,para a liberdade estética de sua capacidade de julgar”.

A experiência estética a que Nunes se refere liga-se a uma dimensãoontológica; isto é, são estéticas, como a de Sartre e a de Merleau-Ponty, aindaque com sensíveis diferenças, que “integram a experiência estética à estruturada subjetividade humana, e realçam, sobretudo a de Merleau-Ponty, o papel queas obras de arte, particularmente as literárias e pictóricas, desempenham nodesvendamento do real”. (NUNES, 1993, p.61)

Na citação acima, o realce da estética merleau-pontyana tem uma razãoparticular: é que, a partir da obra Signes (1960), o filósofo francês muda de umaperspectiva fenomenológica para uma investigação ontológica.

Para Merleau-Ponty, a ontologia é concebida como região pré-reflexiva,“selvagem e bruta, de onde emergem as categorias reflexivas”. A filosofianecessita regressar às origens da própria reflexão e desvendar seu solo anterior àtarefa reflexiva e responsável por ela. “Essa região é o ‘logos do mundo estético’,isto é, do mundo sensível, unidade indivisa do corpo e das coisas, unidade quedesconhece a ruptura reflexiva entre sujeito e objeto”. (CHAUÍ In: MERLEAU-PONTY, 1989, p.VIII) No entanto, as reflexões nascidas nessa região carregamum dinamismo e um simbolismo próprios, que progridem historicamente econstituem a região do “logos do mundo cultural”, ou seja, “da prática inter-humana mediada pelo trabalho e, portanto, pelas relações sociais e pelas coisasaí produzidas”. (idem)

As ideias e conceitos que Merleau-Ponty desenvolve a respeito dadimensão ontológica da Arte e da palavra poética tem, para Nunes, um significadopreciso: é um dos embasamentos reflexivos que ele incorpora ao seu discursopara aproximar a descrição filosófica do dizer poético. Para o autor de Le visibleet l’invisible (1964), a existência da obra de arte ocorre como uma maneira de verou de dizer o mundo. A experiência estética que se inicia, provocada por essaobra de arte, suspende a realidade, mas depois a ela faz voltar; volta essa, noentanto, já transformada pela vista e pela linguagem do mundo.

É preciso esclarecer, entretanto, que a experiência estética não ocorreapenas na recepção da obra de arte. O autor do texto também é capaz de ir alémdos limites da escritura. Ou melhor, trabalhar de tal forma a linguagem a pontode romper com as fronteiras da sua própria exigência pessoal.

da palavra 153

De tal ruptura da linguagem, do desconforto/tensão que ela gera, aexperiência estética pode provocar uma nova visão ao crítico: ao aceitar o desafio,ele se reconhece no jogo da linguagem5, que a obra lhe proporciona.

É somente nesse impasse que há a passagem da experiência estética para acrítica. De qual crítica? Daquela que torna presente uma nova dimensão da poíesis,que sabe distanciar-se do discurso da arte, para não se confundir com ele.

III. Considerações a respeito da Crítica

Em um sentido amplo, a característica da crítica contemporânea6 revela-se como um novo gênero análogo à obra que analisa, isto é, um discurso críticotão poético-ficcional quanto o texto que lhe serviu como base de exame. Emresposta a uma literatura que se interroga enquanto linguagem, que possui em sia metalinguagem, a crítica torna-se, ela mesma, inventiva.

Nesta perspectiva, Gerd Bornheim (2000, p.44) vislumbra o paradoxoem que essa vive: se a obra de arte já não se reduz à condição de um objeto, àmercê de um resultado analítico, o exercício crítico torna-se autônomo, “aconcorrer de certo modo com a criatividade da própria arte”. Se a literatura põeem questão o seu sentido e a sua forma, a investigação já não pode operarapenas como função avaliativa, julgadora, mas ser também, leitura e escrita.

Por outro lado, é interessante lembrar que Afrânio Coutinho (1978, p.92)questiona esta posição, pois, para ele, a crítica é uma

atividade reflexiva, a matéria-prima sobre que atua é a literatura, o fenômenoliterário, expresso pelos diversos gêneros. Por isso que ela incide sua miradaindagadora sobre os gêneros, deduziu-se abusivamente que ela é também gênero.Como se a ciência que estuda as flores com elas se confundisse. A crítica literáriatem por meta o estudo da literatura, dos gêneros, mas não é um deles.

Ao propor uma autonomia do ato crítico, defende um método científico,de rigor reflexivo e intelectual na produção crítica.

Já Luiz Costa Lima (1980, p.113-114) indica uma ênfase na relação obra/leitor como estímulo para um imergir na historicidade do objeto literário, poispleiteia a “não-transparência entre experiência estética e juízo sobre o poético”.Isto é, visa ao desenvolvimento de uma atividade crítica capaz de mostrar alógica de um objeto experimentado como estético, sem recorrer a um discursode cunho científico ou ficcional:

A única maneira, em síntese, que encontro de justificar a função do crítico consisteem convertê-la em função crítica, qualquer que seja o meio, universitário oujornalístico, onde se exerça. E isso contra os irracionalismos, seja o dos cientistas(...) seja o dos humanistas, que parecem pensar que, mais do que ideia, o homemé emoção. Contra eles, porque ambos terminam por justificar os regimes “desegurança” e as ditaduras “benfeitoras”.

De qualquer forma, os posicionamentos divergentes sobre a crítica, aquiapenas esboçados, apontam para as diferentes abordagens que ela suscita.

5 A expressão “jogo da lin-guagem” refere-se ao termousado por Wittgenstein nasInvestigações filosóficas. ColeçãoPensadores. Trad. José CarlosBruni. São Paulo: Nova Cultu-ral,1989.6 O adjetivo contemporâneo,ou melhor, o conceito de con-temporaneidade, tem suscita-do impasses e polêmicas. Noentanto, parece-me que JoãoAlexandre Barbosa (1990, p.68)responde bem a esta questãoao discutir a evolução da críti-ca literária não em um senti-do cronológico, como indi-cado por Alceu AmorosoLima (1959), nem como a sín-tese realizada por Wilson Mar-tins (2002), mas como marca-da pela tensão entre análiseformal e interpretação histó-rica.

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Benedito Nunes escreveu, especialmente, sobre o período dos anos 50, tantono texto “Ocaso da literatura ou falência da crítica?” (1999a) quanto em “Críticaliterária no Brasil, ontem e hoje” (2000), e citou, como exemplo, o SegundoCongresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em 1961, realizado pelaFaculdade de Filosofia e Letras de Assis, palco de exposições das diferentescorrentes que vigoravam entre nós.

Como lembrou o professor paraense, a década de 50 é um

novo momento de tensão entre a leitura crítica (...) enriquecida com a atividadede poetas-críticos – Mário Faustino, Décio Pignatari, Augusto de Campos,Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Mário Chamie – e a escrita dos escritores,abalada e fecundada com a publicação de Grande sertão: veredas (1956), deGuimarães Rosa, Duas águas (1956), de João Cabral de Melo Neto, e Laços defamília (1960), de Clarice Lispector. (2000, p.61)

Da mesma forma, João Alexandre Barbosa (1990, p.69), no texto “Formae história na crítica brasileira de 1870-1950”, situou este período como deruptura, localizado, segundo ele,

na transferência do eixo interpretativo para o eixo analítico (...) correlata à própriaevolução verificada na criação de uma literatura, seja na ficção, seja na poesia, quecriava a necessidade de uma tal ruptura. Neste sentido, há extrema coerência naquiloque se produz e publica no Brasil nos anos cinquenta; de um lado, por exemplo,estão as obras de João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto que passam aexigir da crítica, tanto na prosa da ficção quanto na poesia (e é do mesmo ano, 1956,o aparecimento de Grande sertão: veredas e Duas águas) mecanismos de apreensãomais refinados analiticamente para que a interpretação possa ser mais do quetautológica; e, de outro, está a defesa e ilustração de uma crítica sob a influência querdo close reading – técnica de esmiuçamento textual fornecida pelo New Criticismanglo-americano – quer, da estilística, seja a de origem germânica, em que sobressaemos ensaios de Leo Spitzer, Vossler ou Auerbach, seja a espanhola de Dámaso Alonso,Amado Alonso ou Carlos Bousoño.

Sem dúvida, esta década fundamentou a fase áurea da nossa crítica,veiculada, principalmente, pelo jornal, meio de que se serviu o exercício reflexivodesde as primeiras manifestações nos oitocentos.

A crítica jornalística, na qual, como se sabe, Nunes se iniciou, permiterevisitar as variadas linhas de recepção que marcaram e, ainda hoje, marcam, aleitura dos textos literários. São tendências modelares de uma tradição analíticaque, grosso modo, podem ser divididas em: a) ensaios, cuja relação com o literárioé mais cientificista, preso a normas; b) outras que operam com uma visão maiscriativa, ao privilegiar um olhar mais acurado para a natureza do poético e nabusca de uma linguagem investigativa própria; e c) críticas que tentam alcançarum discurso único, nem cientificista nem ficcionista.

É nesse sentido que caminham obras pontuais sobre o ofício crítico,caracterizadas por retratarem diferentes olhares literários. Da mesma forma,pode-se falar em métodos de interpretação que implicam, como afirma JoãoAlexandre Barbosa (1980, p.20), “rigor na disposição do aprendizado crítico

da palavra 155

inserto em sua análise, não surgindo a todo o momento, como os andaimes nãosurgem para sempre nos edifícios terminados”. Métodos como “filtrosfotográficos” (SEGRE, 1974, p.17) cuja função pode ser a de acentuar ou a deatenuar o objeto fotografado.

Com relação a esse tema, aliás, Haroldo de Campos, em texto sobre LuizCosta Lima7, observou que a importância de se compreender o que é a crítica,por parte do leitor, e deste conseguir discernir sobre a escolha teórica do autore do uso de seus métodos, torna o ato de ler mais favorável, “uma vez que aeleição do método (da meta-linguagem) não é inocente, mas, ao invés, afeta orecorte e a interpretação das produções literárias que constituem a linguagem-objeto submetida ao crivo do analista”.

Para Benedito Nunes (2000, p.62), seja qual for a atividade judicativa, amaneira do fazer crítico se move sempre filosoficamente: “não há crítica semperspectiva filosófica: a compreensão literária, ato do sujeito, implica uma formasingular de conhecimento, logicamente escudado e constituído pelo métodopróprio de que se utiliza”.

A tarefa hermenêutica a que se propõe tem como principal atividade umadinâmica de interpretação cujo deslocamento se apresenta na confluência entreaquilo que a obra revela e a nossa apreensão do seu sentido. Neste caminho, ométodo hermenêutico fundamenta-se no transitar dessa dualidade, possívelapenas na “abertura” da obra à profundidade interpretativa, isto é, “abertura”do sujeito manifestada pela inquietude da arte, razão do movimento e doencontro hermenêutico.

A leitura do crítico seria, então, um caminho entre o ressaltar do gêneropoético, sem que a sua própria escritura se transforme em poética, e um modode pensar a respeito da obra, sem ser uma análise cientificista. Por isso, CostaLima (2000, p.17) afirma que o crítico não tem um lugar definido.

O leitor, portanto, ao buscar as análises produzidas, procuraria saber comoo crítico fundamentou sua investigação e não, simplesmente, saber o que elecompreendeu de certos textos. Desse modo, o receptor tem sua criticidadedesenvolvida e pode, ocasionalmente, contrapor ou ir além do juízo do analista.

Se na leitura que Benedito Nunes empreende do poético aparece o uso deimagens8, isto não significa que a sua escritura se torne poética. Há de se tercuidado: a imagem não é característica intrínseca do poético9, assim como, definiro que é poético ou não, como vimos, depende da maneira como cada épocaconsidera e valoriza a arte10.

No passado, a estética “pré-existia à ação criadora e impunha-se a ela, aopasso que agora as inquietações estéticas são por assim dizer compostasjuntamente com a elaboração da obra.” (BORNHEIM, 1993, p.54) Istoexpressa que a linguagem da arte, unida à criação estética, exige do críticoprofundas mudanças para que ele possa acompanhar os processos dedesenvolvimento pelos quais passou a composição artística.

Acompanhar não significa romper a divisa entre a crítica e a obra de arte.Acompanhar significa, para Benedito Nunes (2005, p.305), deixar que a artefale, não a crítica, pois “quando a Filosofia e as Ciências se calam, é sempre apoesia que diz a última palavra”.

7 CAMPOS, Haroldo. “O lu-gar de Luiz Costa Lima”. In:LIMA, Luiz Costa. Vida e mi-mesis . São Paulo: Ed.34,p.9-13.8 A palavra “imagem” substi-tui, por vezes, o termo “metá-fora” quando se quer destacaro seu aspecto “plástico”. Cf.CARONE, Modesto. Metáforae montagem. São Paulo: Perspec-tiva, 1974, p.12.9 Embora “a tal ponto a ima-gem está hoje introjetada napalavra poética que a meramenção do tema – palavra eimagem – parece conduzir opensamento inexoravelmentepara a poesia” (SANTAELLA& NÖTH, 1998, p.71); o nossodiscurso verbal, independen-te do poético, é permeado deimagens. Cf. SANTAELLA,Lúcia & NÖTH, Winfried.Imagem – cognição, semiótica, mí-dia . São Paulo: Iluminuras,1998.10 Para Leyla Perrone-Moisés(1978, p.65-6): “a fronteira en-tre a obra poética e a obra crí-tica continua estável até nos-sos dias. Isto porque a distin-ção entre os dois tipos de obraé mais do que uma simplesdistinção genérica. A críticanão é nem literatura, nem não-literatura; é uma espécie deparaliteratura, quase diríamosuma pária-literatura”.

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Como crítico hermenêutico, como autor que traz no seu discurso uma relaçãodialogal com o modus operandi da Filosofia Hermenêutica, Nunes (1993, p.198)reconhece que deve evitar duas falácias: a primeira, “é a falácia da transposiçãode uma dada filosofia, aplicada, de maneira absorvente, ao entendimento dotexto literário que passa a ilustrá-la”. A segunda, achar que as diversasmetodologias que existem para análise dos textos literários dão conta da leiturado objeto literário:

Linguística, Sociologia, História, Psicologia ou Psicanálise – qualquer desses camposmetodológicos pode ser requerido para a compreensão da obra, e nenhumdeles, por mais que necessário seja, é suficiente no cumprimento desse fim. Aexigência filosófica de verdade impõe, dessa forma, como princípio do discursodo método, em caráter permanente, a cauta admissão das ciências humanas, emestado de simpósio: cada qual é capaz de iluminar a obra, e nenhuma, por si só,traz a completa chave de sua decifração. Filosoficamente, o objeto literáriopermanece inesgotável.

Sua crítica, portanto, advinda da tensão provocada pela linguagem literária,empenha-se na construção de um discurso reflexivo que, ao pôr em relevo oliterário, ao pensar acerca dele, abre-se para a discussão. Tanto quanto a sualeitura da obra literária, a leitura suscitada pela sua crítica leva o leitor a umquestionar do texto artístico, do texto crítico, em um “exercício de conhecimentodo mundo, de nós mesmos e dos outros”. (NUNES, 1998, p.175)

IV. O intérprete hermenêutico

O texto de Nunes – “O trabalho da interpretação e a figura do intérpretena literatura” (1986) – permite apresentar sucintamente algumas de suas reflexõessobre a atividade de crítico.

Com o objetivo de comentar a exposição de Alfredo Bosi, denominada“A interpretação da obra literária” (1986), ocorrida na 2ª Bienal Nestlé deLiteratura11, Nunes parte de uma questão primeira e essencial: por que interpretar?Esta pergunta, no entanto, nos diz ele, transporta-nos para um problema maior:a relação opaca entre significação e linguagem; isto é, o contato indireto earbitrário que, como se sabe, ocorre entre palavra e coisa.

A interpretação surge, assim, como resposta imprescindível “à contingênciado caráter simbólico da linguagem”. (NUNES, 1986, p.74) Coextensiva a estepreceito, a Hermenêutica, como exegese textual, move-se na busca de aclarar opossível sentido atado à escrita.

Conforme Benedito Nunes, para que haja uma boa análise literária é precisoque o intérprete se movimente dentro do círculo hermenêutico, com base emuma leitura prospectiva que o faça apreender retrospectivamente o processoformativo da obra.

Neste sentido, descreve a problemática que se desenha ao adotar esteângulo de análise: 1. o confronto do intérprete com o texto, desdobrado em trêsquestões: técnica, histórica e estética e 2. a completude dessa prática, isto é, averificação da correspondência significativa interna da obra à característicahistórica da qual deriva e na qual se reintroduz como produto cultural.

11 Cf. PROENÇA FILHO,Domício (org.). Literatura bra-sileira: ensaios – criação, in-terpretação e leitura do textoliterário. Vol.II. 2ª Bienal Nes-tlé de Literatura Brasileira. SãoPaulo: Norte, 1986.

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A questão técnica refere-se ao procedimento hermenêutico dainterpretação, o deslocamento da parte para o todo e do todo para a parte. Paraque isto se efetue, no entanto, é preciso que o crítico já tenha uma pré-compreensão do texto. À medida que a interpretação se torna mais profunda, aconcepção prévia, advinda da primeira leitura, altera-se. Isto porque, a“tendência da interpretação é aliviar as projeções do próprio intérprete para queele se conforme àquilo que Gadamer chama de a ‘coisa’ do texto – a ‘coisa’ queo texto pode dizer, em diferentes situações, para diferentes leitores-intérpretes”.(NUNES, 1986, p.96)

É no diálogo estabelecido entre o hermeneuta e o texto, no intercursodialético tal qual a lógica da pergunta e da resposta gadameriana12, que o trabalhointerpretativo delineia sua forma: o intérprete questiona o texto, mas é por eletambém questionado.

Como expôs Foucault, em Nietzsche, Freud e Marx (1967), na hermenêuticamoderna, fundada por estes autores13, o ato interpretativo, ao envolver o própriointérprete, tende a alongar-se ilimitadamente, à ausência de um fundamentoúltimo. Em razão disto, o intérprete, ao realizar esse ato, ao mesmo tempo emque interpreta o texto, se interpreta.

Na poesia de João Cabral de Melo Neto, por exemplo, Nunes nos lembraque as palavras “pedra”, “secura”, “deserto”, temáticas integrantes da poéticacabralina, oferecem uma probabilidade de primeira leitura, já que o trabalhointerpretativo tenta rastrear esses temas a fim de ajustar, em um embate dialógico,as imagens, as analogias, os enunciados lógicos à perspectiva do lirismo de Cabral.Contudo, a interrogação do texto só acontece se houver um vínculo deste como hermeneuta capaz de determinar a interpelação. No poeta pernambucano, emparticular, e em outros autores do modernismo, em geral, o crítico Nunes apontaesse liame em razão da nova construção do fazer literário impresso por eles, oque exigiu uma posição também inovadora da crítica.

A prática de uma compreensão antecipada supõe observar que, apesar dadistância temporal, o sentido preliminar de um texto encontra-se presente nelepróprio, como veículo transmissor da tradição, como fonte de elemento comumdo discurso e do experimento linguístico da representação da fala fixada naescrita, o que desencadeia uma leitura comparativa à situação atual.

A essa questão histórica do exercício interpretativo, o professor paraenseexemplifica-a ao comentar a tragédia Édipo Rei, de Sófocles: “o sentido do textoé sempre o mesmo, pois que a ele retorno pela leitura, e sempre diferente, poisque se desencobre ao encontro de minha situação, nos limites da perspectivacultural e histórica que ela me impõe, e que me possibilita compreendê-lo”.(NUNES, 1986, p.78)

Neste contexto, a compreensão é produtiva, porquanto imponho àdialética da pergunta e da resposta, em favor de minha própria historicidade, ainterpretação como meio de descobrir o sentido do texto. Todavia, a ligação daobra ao hermeneuta não se abre apenas mediante a consciência histórica. Parauma abertura do caminho hermenêutico é necessário ressalvar a questão estética,correspondente à questão histórica, mas sem um grau de primazia de uma em

12 Cf. GADAMER, Hans-G.Verdade e Método. 4ª ed. Trad.Flávio Paulo Meurer. Rio deJaneiro: Vozes, 2002, p.544-556.13 Benedito Nunes, em Crivode papel (1998, p.88), ao comen-tar este texto de Foucault,acrescenta o filósofo Heide-gger ao lado de Nietzsche,Freud e Marx, já que em Seinund Zeit (1927) a questão dainterpretação aparece como oproblema maior do pensa-mento.

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14 Cf. “Meu caminho na críti-ca” (2005, p.300), por exem-plo.

relação à outra. A função estética, de cunho perceptual ou sensível, mobiliza osplanos imaginativos e conceituais, que garantem o ingresso e o transporte dosentido nas obras literárias.

A experiência estética, segundo Jauss (1979, p.46), não nasce dacompreensão e interpretação do significado de uma obra ou pela reorganizaçãodo objetivo de seu autor. A experiência primeira de uma obra de arte efetua-sena reciprocidade com seu efeito estético: o fruir desinteressado suscita um novointeresse, que reprojeta a imaginação e movimenta a compreensão dos textos.Tal resultado possibilita ao receptor/intérprete observar a significação do mundoe da realidade circunscrita pela interpretação.

Neste aspecto, a relevância estética é a “relevância da forma como formasimbólica e o assinalamento do modo de existência da obra literária comodiscurso ficcional. A prática interpretativa não pode desaperceber-se do caráterficto daquilo que compreende”. (NUNES, 1986, p.79)

Essa prática, envolta em uma completude cognoscitiva, anteriormentereferida, aponta para a incongruência que parece existir entre o objeto ficcionaldo discurso literário e a suposta ligação com o real de suas enunciações.

No debate a esta questão, Benedito Nunes acompanha as reflexõesdesenvolvidas por Ricoeur em “A função Hermenêutica do Distanciamento”,constante de Interpretação e Ideologias. (1990, p.43-59)

Aliás, embora Nunes reconheça ter com Heidegger maior afinidade14, écom o filósofo francês que o arcabouço do crítico literário se faz mais próximo.

No ensaio referido acima, Ricoeur propõe encontrar uma solução para aantinomia defendida por Gadamer entre distanciamento alienante e experiênciade pertença, discutidas nas três esferas da experiência hermenêutica, em Wahrheitund Methode (1960): estética, histórica e da linguagem.

Por distanciamento alienante entende-se a postura com base na qual éplausível a objetivação que impera nas ciências do espírito ou ciências humanas.Tal distanciamento, no entanto, ao se determinar o estatuto científico das ciênciasé, ao mesmo tempo, a destruição da relação essencial que nos faz pertencer eparticipar da realidade histórica da qual pretendemos construir em objeto. Nestesentido, ocorre a escolha subjacente ao título gadameriano, Verdade e Método: ou“praticamos a atitude metodológica, mas perdemos a densidade ontológica darealidade estudada, ou então praticamos a atitude de verdade, e somos forçadosa renunciar à objetividade das ciências humanas”. (RICOEUR, 1990, p.43)

Ricoeur recusa esta alternativa e propõe ultrapassá-la ao introduzir a ideiade texto; para ele, uma noção positiva e produtora do distanciamento. O textose define, dessa forma, como um paradigma do distanciamento na comunicaçãoe revelador da própria historicidade da experiência humana, isto é, umacomunicação na e pela distância.

Sob este enfoque, cinco critérios, conjuntamente, constituem atextualidade: a efetuação da linguagem como discurso; a efetuação do discursocomo obra estruturada; a relação da fala com a escrita no discurso e nas obrasde discurso; a obra de discurso como projeção de um mundo; e o discurso e aobra de discurso como mediação da compreensão de si. (Cf. RICOEUR,1990, p.44)

da palavra 159

Benedito Nunes compartilha dessas mesmas características formadorasdos pressupostos da hermenêutica ricoeuriana. Porém, ao afirmar que BeneditoNunes se inscreve como intérprete hermenêutico, cumpre esclarecer quais asimplicações desta atitude nas suas análises. Ou melhor: como se realiza a sualeitura hermenêutica?

V. O procedimento crítico

Especificamente na reflexão já citada “O trabalho da interpretação e afigura do intérprete na literatura” (1986), Benedito Nunes centra a exposiçãona dimensão referencial da obra de ficção e de poesia, interessado em que estáem responder o problema, antes referido, da relação significativa interna entre aobra e o real.

O discurso tem a pretensão de representar o real; a escrita tenta distanciar-se dele ou desrealizá-lo. Pelo discurso, a linguagem projeta a forma de ummundo; pela escrita, a enunciação do discurso introduz-se no aspecto fictíciode representação. Contudo, não há discurso “de tal forma fictício que não vá aoencontro da realidade, embora em outro nível, mais fundamental que aqueleque atinge o discurso descritivo, constatativo, didático, que chamamos delinguagem ordinária”. (RICOEUR, 1990, p.56)

É no jogo dialético entre discurso e escrita no processo de estruturaçãoda obra, que os textos literários efetuam uma nova espécie de referencialidadecapaz de apontar para o ser-no-mundo inscrito diante do texto.

Deste modo, interpretar uma obra é descortinar o mundo a que ela serefere, o mundo que se abre por meio da linguagem para os mecanismos geraisda existência humana, “tais como a tonalidade afetiva ou disposição anímica, aapropriação projetiva do mundo e a intersubjetividade”. (NUNES, 1986, p. 81)

Tais mecanismos possibilitam a circulação da vida cultural e histórica notexto; circulação de mundo projetado na obra, do qual o leitor interage, postoque o texto só se transforma em obra no intercâmbio com este.

Estas breves observações retomam o limiar da pergunta formulada noitem anterior: como Nunes realiza a sua leitura hermenêutica? Realiza-a quandoprocura a verdade da obra15 impressa como ficção; quando examina seu modusoperandi, o seu como, revelador dessa verdade.

Realiza-a quando traduz para o discurso reflexivo o discurso dos textosliterários, os sinais de natureza humana que eles carregam, manifestações denós próprios e do mundo.

Esta tradução transforma o hermeneuta em “copartícipe da criação poéticae do conhecimento teórico, a meio caminho das ciências humanas e da poesia –se é que ele também não está entre a poesia e a filosofia”. (NUNES, 1986, p.81)

Poesia e Filosofia são os dois campos em que se move, como já se assinalou,a crítica literária de Benedito Nunes. Crítica esta que perfaz, pelo ensaio, pelomergulho além da superfície textual, o caminho hermenêutico. Tal caminhoaspira percorrer o duplo trabalho da hermenêutica pretendida por Ricoeur (1990,

15 Cf. BENJAMIN, Walter.“Les affinités électives” deGoethe. In: Oeuvres I – Mythe etviolence. Paris: Les Lettres Nou-velles, Denoël, 1971, p.161-260.

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p.43): desdobrar a dinâmica interna do texto e restaurar o poder de a obra seprojetar para fora na representação de um mundo habitado por nós.

VI. Literatura e Filosofia

A questão que Nunes se coloca diante dessas disciplinas abrange, antesde tudo, um repensar sobre o lugar da Literatura e da Filosofia dentro das CiênciasHumanas. Tal debate já se iniciara desde a crise da metafísica – colocada emfoco pela primeira vez na Crítica da Razão Pura (1781), de Kant, – e do“aparecimento da Literatura” como linguagem singular, a qual se refere Foucaultem Les mots et les choses (1966), ao comentar a organização das ciências humanas.

De fato, o que as aproxima é que, ambas, são obras de linguagem. Existem,portanto, apenas no modo operativo e poético, na acepção da palavra gregapoiesis. No entanto, como obras de linguagem colocadas em ação, possibilitamdistinguir o real para além do fenômeno imediato, empírico.

Na prática de leitura de Benedito Nunes, essas linguagens seintercomunicam e se enobrecem mutuamente: ingressa o poético na filosofia eingressa o filosófico na poesia, mas sem igualar-se, sem perderem seus traçosintrínsecos. Pode-se dizer que os limites entre a filosofia e a literatura são porosos,mas a filosofia não tem a última palavra.

Esse intercâmbio, não obstante, tem precedentes históricos e culturaisque remontam à Antiguidade, marcados por confrontos e polêmicas. No texto“Filosofia e Literatura”, constante em No tempo do niilismo e outros ensaios (1993),por exemplo, Nunes rememora a tradição desse diálogo, o que seria ociosorecapitular aqui.

No entanto, é preciso ressaltar a importância da Fenomenologia, em que,segundo ele, os laços da Filosofia e da Literatura se estreitam com mais vigor,em razão da intencionalidade que, ao deslocar a Filosofia para o campo daexistência individual, também a deslocou para o da experiência literária eartística.

Dessa intencionalidade, ou da natureza que dela derivou, é marcante nopensamento do crítico paraense a chamada prática meditante em Heidegger; afunção desrealizante da consciência em Sartre; e a experiência perceptiva domundo em Merleau-Ponty.

De qualquer modo, a poesia põe em relevo o tom indagador, no momentomesmo que a filosofia também caminha em direção ao poético. É desta formaque, lembra Nunes (1999a), autores como Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke,Paul Valéry buscam, no registro filosófico, a investigação do sentido da linguagem.Igualmente, filósofos como Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Gaston Bachelard,Michel Foucault, Paul Ricoeur aprendem, com os poetas, os limites da palavrae a aporia do discurso.

Se, nessa ligação recíproca, a Filosofia utiliza a obra literária como talobjeto de sua indagação, a obra literária, por outro lado, “reverte sobre a Filosofia,da qual, ela, obra, se faz, como poética, a instância concreta, reveladora (oudesveladora) das originariamente abstratas indagações filosóficas”. (NUNES,2005, p.295)

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A Literatura sugere um método; a Filosofia pode corroborá-lo ou não,assim como a obra estudada igualmente pode oferecer uma luz ao filosófico:

A literatura é objeto de conhecimento filosófico porque é uma forma simbólica,porque há um domínio do simbólico, a que se atém o pensamento – ponto deconvergência e de divergência da filosofia com a linguagem: o domínio do sentidodas proposições, tal como especificado por Gilles Deleuze, em sua Logique duSens”. (NUNES, 2002, p.204)

Neste sentido, uma possível Ciência da Literatura só poderia serestabelecida quando da “competência” da Filosofia em lidar diretamente com opoético, da poiesis, da Dichtung intrínseca às formações verbais.

Por certo, o diálogo da Literatura com a Filosofia só se efetua no plano daCrítica, no entendimento interpretativo das obras. A Filosofia responsável poresse diálogo é a Filosofia Hermenêutica, a qual, por sua vez, “já opera com anoção de texto, que toma por pressuposto”. (NUNES, 1993, p.197)

Todavia, nesse caminho, há de se evitar o risco da dependência da obra àperspectiva hermenêutica do método filosófico, ou do risco, segundo Wellek &Warren (2003, p.138), de se converter o texto literário em um “tratado filosófico”.

Para Nunes (2002), refletir filosoficamente é assentar o foco dainterpretação em um interesse interdisciplinar, uma vez que a filosofia secompreende como um discurso sobre outros discursos, para os quais tambémcolabora com as suas considerações. A abordagem filosófica de uma obra literária,entendida como forma, pode ser investigada, assim, sob três ângulos: a) alinguagem; b) as vinculações da obra com as linhas do pensamento histórico-filosófico; c) “a instância de questionamento que a forma representa, em função deideias problemáticas, isto é, de ideias que são problemas do e para o pensamento”.(p.205, grifos do autor)

VII. Um exemplo de leitura crítica

Estes aspectos foram estudados, por exemplo, em Grande sertão: veredas,de Guimarães Rosa, em texto apresentado na conferência Literatura-Filosofia,no II Encontro Nacional de Professores de Literatura na Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, em 1975, – publicado, depois, no Caderno 28 daPUC/RJ, em 1976. O mesmo ensaio consta do livro Teoria da literatura em suasfontes, vol.1, com organização de Luiz Costa Lima – cuja primeira edição é de1975 – e serviu também como ilustração em “Meu caminho na crítica” (2005),quando Nunes se referiu ao romance roseano.

Ao seguir sucessivamente as três perspectivas citadas acima, BeneditoNunes mostrou que é possível ler a obra de Rosa, ao mesmo tempo, comoLiteratura e como Filosofia – relações que se enfatizam pela História. Tal História(e a temporalidade nela grafada) é revelada pelas formas de linguagem, as “formassimples” – examinadas por André Jolles –, anteriores à “história da literatura,mas nela incidindo, na medida em que serviram de suporte ao desenvolvimentodas eruditas”. (NUNES, 2002, p.206) A Lenda, a Saga, o Mito e a adivinhação

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16 Cf. BENJAMIN, Walter.“Les affinités électives” deGoethe. In: Oeuvres I – Mythe etviolence. Paris: Les Lettres Nou-velles, Denoël, 1971, p.161-260.

(Charada ou Enigma), o Caso e a Sentença, o Conto e o Memorial são criados,fabricados e interpretados pela cultura. Não obstante, “tudo o que é criado,fabricado e interpretado é denominado pela linguagem” (p.206) – linguagemque, segundo Heidegger, é o alicerce da historicidade.

No “romance polimórfico” de Guimarães Rosa, encontramos na forma ocaso, a adivinha ou enigma e a sentença. Presentes no tecido narrativo, pontuam“dúvidas” filosóficas, como o mito do pacto com o Demônio, “que cria, entrepergunta e resposta, um objeto de conhecimento absoluto”. (p.208) Esse mitomodula a textura épica do romance, “do ciclo de aventuras narradas” e é“indissociável da indagação sobre a existência do Demônio, do mal em si, e deseu oposto, Deus – contraponto a que incessantemente se retorna”. (p.210)

Na urdidura da narração, os elementos épicos e míticos da linguagemencontram pontos de articulação com “determinadas linhas do pensamentohistórico-filosófico”. (p.212) Desse diálogo, a reflexividade da narração, dodiscurso, entretece metáforas, “que são topoi do pensamento”, disseminadasem um discurso pontuado por traços conceituais de Heráclito, Agostinho, Plotinoe a tradição hermética. Todavia,

nem uma das linhas do pensamento histórico-filosófico – a neoplatônica, aagostiniana, a heraclitiana, e até mesmo a gnóstica, que nos pode sugerir a ideiada alma absoluta -, nem uma dessas linhas, que se entrançam à reflexividadetensa, enfaixa a perspectiva do narrador e do romance, reaberta a cada passopelo dinamismo e pela mutabilidade da própria narração. (p.213)

A reflexão de Riobaldo, além dos topoi, introduz um terceiro termo, oSertão-Mundo, meio dos opostos extremos – Deus e o Diabo –, que os unecomo faces complementares de uma mesma “realidade problemática”. (p.214)

Para Nunes, essa “realidade problemática”, o Sertão como espaço errático,no qual o homem se perde e se acha, “corresponde ao repetido motivo, quealenta a reflexão, do viver perigoso”. (p.214)

Na experiência/processo de leitura, caminhamos do epos ao mito; este,subordinado à indagação reflexiva que o “neutralizou”, nos leva a um ethos,“inquietação ética ou ética da inquietação”.

Nesse ponto, a filosofia é chamada “a nos servir de guia”, termo que WalterBenjamin usou quando da ponderação sobre as Afinidades Eletivas, de Goethe16.Filosofia como “instância de questionamento”, como abertura à questão do tempo,no qual a existência adquire densidade em seu ethos da inquietude:

Os três tempos – o passado, o presente e o futuro – formam um só tempo quese distende, um só processo de temporalização, que conflui com o processo daprópria narrativa. As carências do narrar – e a sua forçosa necessidade –, ascarências desse contar dificultoso de Riobaldo, se desdizendo, depondo em falso,procurando o essencial e encontrando o acidental, dando o verdadeiro comoplausível; todo esse contar ansioso do narrador em busca de si mesmo, que écontudo a única maneira que lhe permite ver e saber, alcançar a matéria vertente naretaguarda dos fatos, dar formato à vida, reunir e coligir o possível e o impossível,retraçar a ação e compreendê-la; toda essa penúria e toda essa força do narrardepende do tempo como movimento da existência finita em seu cuidado e emsua inquietude. (p.216)

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O entrelaçamento do ethos e do mito, no romance, engendra uma encenaçãopoética da narrativa humana, conduzida pela temporalidade como travessia daexistência.

Segundo Nunes, é pela temporalidade, na “instância questionante doromance”, que há o encontro entre Literatura e Filosofia. Pela “verdaderomanesca”, o drama da cultura ou do pensamento pode ser revisto em trêsmomentos: a discriminação da literatura pela filosofia platônica; a estéticamoderna, de Kant a Hegel, ao situar o artístico ou o poético ao lado da filosofia;e o embaraço que Nietzsche pressentiu quanto a saber se “a filosofia é uma arteou uma ciência”.

Com a linguagem, vista como primeiro plano da reflexão, a filosofia tendea perguntar-se se ela não é certa espécie de literatura. Ou melhor: ao deparar-secom a literatura, a filosofia caminha “ao encontro de si mesma, a fim de nãosomente interrogá-la, mas também, refletindo sobre um objeto que passa a refleti-la, interrogar-se diante e dentro dela”. (p.217)

Esse exemplo de crítica, assim como essas breves reflexões, servem comopequenas ilustrações para ratificar que, para Benedito Nunes (1998, p.1975), aexperiência de leitura, “particular e momentânea”, torna-se, em última instância,um aprendizado da “experiência da vida, geral e cumulativa”.

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O Filósofo da poesia

Lilia Silvestre Chaves*

A correspondência é a forma utópica da conversa,porque anula o presente e faz do futuro o único lugar

possível do diálogo.

Ricardo Piglia

Benedito Nunes foi, uma vez, poeta. Hoje considera as suas incursões napoesia como “pecadilhos juvenis”. Mas sempre se interessou pela filosofia epela crítica literária e, como crítico, dedicou talvez a maior parte de sua vida acomentar e a divulgar a obra daquele que foi um de seus mais fraternais amigos,confidente e correspondente, Mário Faustino, o poeta da poesia, como uma vezo próprio Benedito Nunes o chamou. Corresponderam-se a vida inteira, quandodistantes, em cidades diferentes.

Ao contrário do amigo, Benedito Nunes sempre cuidou de guardartodas as cartas que lhe escreveu Mário Faustino, cartas em que a vida étransformada em texto, original, autobiográfico, fragmentado, secreto. Talvezessa correspondência seja o mais vivo documento sobre a vida e a arte deMário Faustino, documento que permitiu ao filósofo-crítico, comointerlocutor privilegiado, uma compreensão ainda maior da obra do poeta.As cartas de Mário Faustino retomam assuntos comuns entre ele e o “Bené”(como o chamava), referem-se a leituras, a pessoas e a um mundocompartilhado e, apesar de ouvirmos somente a voz de Mário Faustino –com o silêncio de permeio assinalado pelo espaço e pelo tempo que as cartastestemunham –, é possível reconstituir as falas do amigo por entre as linhasperdidas, com o auxílio sempre pronto da imaginação, tendo como guiareferências e retomadas dos textos das próprias cartas. Esse início decorrespondência será a conversa realizada agora por nós (no cruzamentocom outros textos), em um futuro que o poeta não viveu e que é presente

* Professora da UniversidadeFederal do Pará - UFPA. Dou-tora em Literatura; autora, en-tre outros, do livro Mário Faus-tino: uma biografia. Belém: Se-cult; IAP; API, 2004.

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agora. As cartas de Mário Faustino anulam o passado vivido por Mário eBenedito e fazem do presente-agora (como predisse Piglia, citado na epígrafedeste texto) o único lugar possível do diálogo.

Mário Faustino mostra-se como palavra íntima na primeira carta que estácolecionada no arquivo, datada de 1950, e que, por alguma coincidência com aorigem do autor, foi escrita em Teresina, cidade natal de Mário Faustino. “EsteNorte é mesmo o tal”, escrevia ele. De férias, na Chapada do Corisco, entre osmais cultos e poliglotas arigós, Mário, com 20 anos incompletos, de férias, inicia,para nós, leitores de hoje, as perguntas sem respostas de suas cartas. As respostas,cabe a nós supor ou inventar.

Benedito Nunes desdobrou uma a uma as três cartas, que lhe mandaraMário Faustino de Teresina, entre dezembro de 1950 e fevereiro de 1951, eque iniciaram a correspondência entre os dois amigos: as duas primeiras erammanuscritas; a terceira, datilografada. Observou com cuidado aquela letraque ele viu mudar tanto com o passar dos anos, virou as folhas, olhou aassinatura. Releu a primeira das cartas, em que o amigo contava suas férias.Nessa temporada, Mário aprendera a dirigir, e guiar pela cidade era o seumaior divertimento, além dos passeios matinais a cavalo e das leituras que oabsorviam. A despeito da vida interiorana, Mário Faustino sentia-se bemnaquela terra em que, para sua surpresa e satisfação, encontrara “gente culta,inteligente, moderna e de espírito à beça [...]. Por aqui tem gente da classe doMendes ou do Bitar” (27 dez. 1950).1 Daquele Nordeste, entre “os mais cultose poliglotas arigós”, ele discorre, entusiasmado, sobre Meridiano, a revistinhados novos de lá, sobre os poetas e intelectuais de Teresina. “Tem muita genteestudiosa por toda parte, até no Piauí!!!”, escrevia, no seu estilo epistolarescrito-oral.

Mário, quando deixou A Província, passou a trabalhar como secretário naFolha do Norte, por influência de Haroldo Maranhão, neto do proprietário dojornal (Paulo Maranhão), “cuja redação chefiou, remodelando inteiramente afeição do velho jornal paraense, e onde, com interrupções resultantes de viagens,trabalhou durante sete anos” (MARANHÃO, 1966). Mário Faustino logoconquistou o pai de Haroldo, que era gerente, e chegou, pouco tempo depois, achefe de redação, cargo que ocupou por vários anos. Antes disso, já colaboravano suplemento literário do jornal (que Haroldo Maranhão criara em 1946 e quetinha inicialmente o título de Suplemento Artes-Literatura e, mais tarde, passoua se chamar Artes-Letras), publicando contos, traduções de poesia (do francês edo inglês) e seus primeiros poemas.

O episódio tratado aqui neste artigo mais profundamente2 revela o primeirocomentário crítico feito por Benedito Nunes dos poemas iniciais de MárioFaustino, nesse começo de 1951. E só nos é possível saber do desdobramentodessa crítica por meio das cartas de Mário, que, por sua vez, provocam umaleitura mais atenta e interpretativa de alguns artigos dos números 163, 164 e165 dos Suplementos dedicados às Artes e às Letras, publicados nas edições dedomingo da Folha do Norte.

Depois de tanto tempo – quase cinquenta anos passados –, Benedito Nuneslembra-se ainda perfeitamente da reportagem e do artigo crítico que provocou,sem querer, o primeiro desentendimento (talvez o único) entre ele e Mário

1 Orlando Bitar era professorda Faculdade de Direito e fa-lava várias línguas.2 Esse episódio da vida dosdois amigos (Benedito Nunese Mário Faustino) já foi pormim tratado mais superficial-mente no livro Mário Fausti-no: uma biografia (2004) e emum ensaio, “O filósofo e opoeta”, ainda inédito. O pre-sente artigo – “O filósofo dapoesia” – deverá fazer partede um capítulo da biografiade Benedito Nunes, objetivode minha pesquisa atual, emfase de elaboração.

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Faustino. “Foi tudo uma ideia do Ruy Barata”, conta, divertindo-se com alembrança. Quando, no final de 1950, Haroldo Maranhão, responsável peloSuplemento da Folha do Norte, viajou de férias para Fortaleza, deixou dois númerosprontos para serem editados e nomeou Ruy Barata para substituí-lo naorganização dos exemplares. A reportagem prevista para o número 163, de 24de dezembro, era uma antologia de dez poetas paraenses, todos pertencentes ànova geração de intelectuais que frequentava o Café Central, todos colaboradoresdo Suplemento.

Ruy Barata, brincalhão, sem que ninguém soubesse do plano, combinoucom o Bené que este escreveria um artigo crítico sobre a antologia e assinariacom um pseudônimo, como se fosse um crítico de fora comentando a poesiada terra. E assim foi feito. Uma semana depois, o Suplemento Arte-Letrasde 31 de dezembro de 1950 publicou uma curiosa carta de um tal Sr. JoãoAfonso ao redator do Jornal, dizendo-se crítico literário de passagem pelacidade e que, tendo lido a antologia do domingo anterior, tomava a liberdadede mandar para o jornal algumas observações que lhe sugerira a leitura:

De passagem por esta cidade, domingo último, quando foi publicada noSuplemento Literário uma antologia de poetas paraenses que li e achei muitointeressante, tomo a liberdade de mandar-lhe, juntamente com esta, algumasobservações que essa leitura me sugeriu. Não tenho pretensões de fazer críticae mesmo os meus afazeres que são inúmeros não me deixam tempo paradedicar-me ao trabalho contínuo e severo que a literatura exige. Mas penseique seria bom mostrar, escrevendo essas notas, a impressão que causou numapessoa, que não vive radicada aqui, a coletânea organizada por v.s. Poderiadirigir-lhe o que escrevi, em caráter particular; entretanto atendendo à missãoque desempenham os Suplementos Literários, que é de divulgação eesclarecimentos, não hesito em pedir-lhe que receba minhas notas para dar-lhes publicidade no Suplemento ou até mesmo no corpo do jornal.Atenciosamente. João Afonso (J.A.).3

E o crítico, em seguida, passava a comentar, um a um, todos os dez poetas.Parece que Benedito Nunes e Ruy Barata quiseram dar uma “sacudidela”

nos leitores do Suplemento cuja missão, dizia o crítico de passagem, é a dedivulgação e esclarecimentos. E conseguiram.

O artigo causou um alvoroço inesperado e, tomando dimensões queultrapassaram a simples brincadeira, provocou indignação entre os poetascriticados, indo atingir o diretor do Suplemento (um dos poetas) no seu descansona praia, onde Mário Faustino também se encontrava por alguns dias. HaroldoMaranhão, tendo concluído que o artigo era de autoria do Francisco PauloMendes, escreveu, imediatamente, um artigo combatendo o que ele chamavade “a crítica mordaz” do tal João Afonso, a ser publicado no Suplemento, àguisa de resposta.

O autor da “crítica mordaz” de 1951 sorriu. A memória aveluda as arestase revela o que há de cômico ou doce nas situações mais difíceis do passado.Onde estaria o exemplar do jornal em que foi publicada a crítica? BeneditoNunes foi buscar a sua coleção de Suplementos da Folha, arquivados

3 Todas as citações do artigoque Benedito Nunes escreveusob o pseudônimo João Afon-so (Dez poetas paraenses, 1950)serão seguidas das iniciais J.A.entre parênteses.

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cuidadosamente no armário de canto da Bicom, a “Biblioteca complementar”(junto aos suplementos do Jornal do Brasil, aos três exemplares da revista Nortee a outros jornais esparsos, revistas e pastas contendo artigos variados).

Pegou primeiro o Suplemento n.o 163, publicado na véspera do Natal de1950. A antologia ocupava as quatro páginas do Suplemento, com fotos dospoetas, organizados pelo nome, em ordem alfabética, além de algumas notasbiográficas e dos poemas de cada um (uma coluna para cada poeta, três colunasem cada página, o Ruy Barata sozinho na quarta página) e o título: “Dez poetasparaenses”, seleção e notas de Ruy Guilherme Barata.

Figura 1. Cabeçalho do Suplemento e o tema do número especial (24.dez.1950).

Passou os olhos pelos retratos dos amigos longínquos, tanto pelo tempoda juventude fixado pela fotografia, quanto pelo tempo transcorrido, reveladona usura do papel do jornal machucado, velho. Os poemas selecionados peloRuy Barata, por sua vez, também fixam uma época de afirmação maior oumenor de cada um, o início do caminho de alguns talentos poéticos, o rumoainda não encontrado de escritores que se consagrariam, mais tarde, na prosaou no ensaio filosófico, como seria o seu caso pessoal.

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Procurou o Suplemento n.º 164, do domingo seguinte, dedicado àAntologia de sete contistas paraenses (a segunda reportagem prevista porHaroldo Maranhão, antes de viajar): na metade inferior da primeira página (comcontinuação na 2ª página), lá estava o artigo que assinara com um nome fictício.Benedito Nunes percorreu-o com o olhar.

Figura 6: comentário crítico de J. Afonso sobre os poemas dos Dez poetas paraenses (31.dez.1950).

O João Afonso inicia seus comentários pelos poemas do sr. Floriano Jayme,sem nenhuma condescendência: “Nunca a Esfinge formulou perguntas quefossem mais difíceis do que os poemas do sr. Floriano Jayme”, dizia, ironicamente.

Não é a dificuldade natural que se encontra diante de um verso cujo hermetismoreconhecido traduz algo que sentimos e que não podemos exprimir. Não é umadificuldade poética, digamos assim: ela é uma dificuldade material. [...] A primeiraimpressão que se tem dessa poesia é que ela é apenas mistificação. [...] Parece-meque ele está possuído pela necessidade louca de encontrar a poesia, seja a quepreço for, mesmo com sacrifício da própria poesia (J.A.).

No artigo crítico de João Afonso, talvez a única brincadeira a que sepermitiu Benedito Nunes nesses anos de Suplemento, o ensaísta, não sem ironia,expõe suas ideias extremamente sérias a respeito da poesia e do poeta em geral:

O poeta não é como o selvagem de Rousseau. Ele não vive em estado denatureza, porque a natureza com que ele trata, não é esta que nos cerca. Asinvocações, os vocativos que qualquer um de nós atirasse ao Sol, esperando queele nos devolvesse versos, não constituem poesia. [é preciso que haja] trocasentre a realidade objetiva e a subjetiva até [que o poeta consiga] subjugá-la numcampo seu, onde ela se manifesta de modo a ser captada de maneira poética –nem completamente objetiva, nem completamente subjetiva, mas uma fusãoorgânica de duas realidades – isto é, simbólica. Assim o poeta cria um mundoque é seu, cuja base ontológica é a palavra, que fundiu dois mundos aparentementeincompatíveis (J.A.).

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O crítico transita de um poeta para outro, interligando-os por algum traçode estilo poético que os une ou distingue. Segue criticando os poemas de HaroldoMaranhão, em que, segundo ele, o encadeamento das imagens, artificial emecânico faz com que as palavras soem abafadamente e o dizer poético sejaquase nulo, com exceção de alguns achados, como o verso “Nossa memória: oazul amanhecendo”, do poema “Breve apelo”.4

O disfarce de Benedito Nunes confundiu os leitores do Suplemento e,principalmente, os poetas que participavam da antologia. Uma das razões daconfusão foi justamente o pseudônimo escolhido. João Affonso (com dois “ff ”)era o nome do avô de Francisco Paulo Mendes, o intelectual em torno do qualtodos eles se reuniam e que os influenciava de uma forma ou de outra. Econfundiu mais ainda o poeta Mário Faustino, que, em suas cartas – por causado pseudônimo e da semelhança de trechos da crítica com o texto do artigo deFrancisco Paulo Mendes publicado no Suplemento em 1948 –, discute e refutaos argumentos da crítica recebida.

O assunto do João Afonso vem à baila na segunda carta vinda de Teresina,de 29 de janeiro de 1951, e é mencionado na seguinte, de 16 de fevereiro de1951, essa última datilografada em tinta azul, no papel timbrado da firma J. V.Silva & Cia., de “Theresina - Piauhy”, timbre que Mário teve o cuidado deriscar com o lápis ágil que usou para fazer algumas correções e para assinar.Ele explica que recebera uma carta de Mendes desvendando o mistério:

Já sabia – pelo Mendes – que não era ele e, sim, tu, o J. Affonso [...] Pensava quefosse o Mendes: as opiniões do J. A. são tão semelhantes às dele! Mas é natural:uma verdade se parece com outra – são uma só – e tuas opiniões, como as dele,são verdadeiras (29 jan. 1951).

Talvez essas palavras tenham ferido o orgulho do crítico confundido, apesarde Mário acrescentar no parágrafo seguinte:

Embora todo esse negócio do Suplemento, sobretudo por eu me achardesajeitadamente no meio, me parecesse a coisa chata que iniciou 1951, fiqueisatisfeito por saber-te o João Afonso. Sabes que gosto das coisas bem feitas, e oteu artigo está muito bem escrito (29 jan. 1951).

Pensativo, Benedito Nunes comparou os originais das cartas de MárioFaustino com as cópias datilografadas pela estagiária de um projeto de publicaçãodas obras completas do poeta.5 Na época em que lhe pediram cópia das cartas,ao revisar essas cópias para atender ao pedido de escrever algumas notasexplicativas e, inclusive e sobretudo, para dar a sua permissão à publicaçãodesses escritos tão íntimos, ele pensara que talvez devesse omitir certos trechos– um dos quais seria a discussão provocada por esse episódio do J. Afonso.“Não publicar”, escreveu Benedito Nunes ao lado do primeiro parágrafo daterceira carta, em que Mário Faustino escrevera, em 16 de fevereiro de 1951:“Recebi ontem tua última carta e foi com grande tristeza que reconheci terprovocado, involuntariamente, o primeiro incidente de nossa já antiga amizade.A respeito, quero, antes de encerrar tudo, dizer-te algumas coisas, que vounumerar, com licença do Cléo” (Cléo Bernardo, da turma do Café Central,

4 Essa memória do poeta dajuventude, o autor de Tetrane-to Del Rey vai abandonar. Se-guindo outra via de escrita, oautor esquece ou renega seusprimeiros escritos, uma espé-cie de amnésia desejada, naspáginas abandonadas de poe-sia.5 Em 1996, uma pesquisadorada UNICAMP veio a Belémprocurar o professor Benedi-to Nunes. Trazia na mala umprojeto para publicar a obracompleta de Mário Faustino.Benedito Nunes abriu seusarquivos a Maria Eugênia Boa-ventura, que estendeu suaspesquisas aos arquivos da Bi-blioteca Pública e aos dos jor-nais paraenses. O projeto com-preendia a publicação da obracompleta de Mário Faustino,em vários volumes.

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costumava numerar tudo, e Mário Faustino não perdeu a oportunidade de fazeruma piada, de introduzir um riso na carta que ia ficando cada vez mais tensa).

O guardião do arquivo de Mário Faustino defrontava-se com o conceitode privacidade no contexto contemporâneo das publicações de biografia, emque a vida não é mais propriedade privada: quase nada é possível ocultar nouniverso social (WERNECK, 1996, p. 181). Nem mesmo um pequenodesentendimento íntimo tocando ao mesmo tempo a evolução poética de Márioe a sua própria originalidade na crítica de poesia. Quando, algum tempo depois,diante daquela negativa escrita, eu perguntei se poderia revelar as vozes dessacarta um pouco mais exaltada que o normal da correspondência que trocavam,Benedito Nunes acabou permitindo. Sabia que nem Mário, nem ele poderiammais estar sozinhos, deixados em paz. As palavras conflagradas de MárioFaustino teriam de encontrar a paz exatamente na leitura dos seus textos e narevelação do homem como um todo. Sabia também do valor da leitura dessestrechos em que Mário Faustino, sem o saber, ilumina (e esclarece), neste diálogorealizado no tempo futuro em que o amigo crítico sobreviveu ao poeta, umdocumento importante sobre a poesia paraense do início da década de 50 doséculo XX. Não é demais repetir as palavras de Mário Faustino: “fiquei satisfeitopor saber-te o João Afonso. Sabes que gosto das coisas bem feitas, e o teu artigoestá muito bem escrito” (29 jan. 1951).

Justamente, quanto à poética de Mário Faustino, em particular, por maisque pareça citar as opiniões emitidas por Francisco Paulo Mendes, na sua“Primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino” (1948), o crítico que usouo pseudônimo de João Afonso já esboçou com segurança - mesmo que tenhasido por trás de uma máscara – suas ideias sobre os primeiros passos de umpoeta de cuja obra, mais tarde, seria o maior e mais fiel divulgador. Foi essa,portanto, a primeira vez que Benedito Nunes escreveu sobre Mário Faustino.Tinham-se passado dois anos desde o dia em que Mário chegara ao Café Centralcom a folha datilografada do seu primeiro poema, que entregou, triunfalmente,a Francisco Paulo Mendes e que lhe valeu o seguinte elogio (situando Mário, de18 anos, como um dos poetas de mais força entre os que haviam aparecidoultimamente no Brasil):

[Um jovem poeta surge] de modo quase inacreditável, pela perfeição e realizaçãode seus poemas, com certas qualidades de expressão e de forma que somentepossuem os poetas já de todo completos. Há, principalmente na sua poética –além do equilíbrio e da ordem que ela reflete das tendências últimas da poesiacontemporânea, e que o fazem [...] um dos seus representantes mais autênticosem nosso meio – um vocabulário moderno e belíssimo (MENDES, 1948).

Os poemas que a antologia dos dez poetas paraenses trouxe foram osmesmos do início de 1948, o primeiro e o segundo “Motivo da rosa”, os dois“Poemas do anjo” e “Elegia” (“Ela existia misteriosa e oculta”), escrita em 6 demarço de 1948 e publicada no Suplemento em setembro de 1949. Nas palavrasde Benedito-João Afonso, que se mostra surpreso pela qualidade da técnicapoética, foi por essa razão que o poeta “conseguiu revalorizar” de maneiraextremamente pessoal “dois temas que foram a consagração de muitos poetasnotáveis e a tábua de salvação de um sem número de medíocres: o Anjo e a

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Rosa”. Sem ter talvez consciência de que suas palavras repetiam algumas dasideias de Paulo Mendes expressas no ensaio saído dois anos antes, sobre osprimeiros poemas de Mário Faustino, o crítico “de fora” discorre confiantemente:

O Sr. Mário Faustino parece ter encontrado o seu mundo particular, mas é forade dúvida que não tomou as devidas providências para nele se fixar em caráterdefinitivo. É, segundo os dados biográficos, um rapaz de apenas vinte anos que,para surpresa nossa, pode dispor de uma técnica que os bons poetas só usamaos quarenta. Daí a razão por que conseguiu revalorizar, imprimindo um cunhopessoalíssimo de tratamento, dois temas que foram a consagração e muitos poetasnotáveis e a tábua de salvação de um sem número de medíocres: o anjo e a rosa.Essa maestria no tratamento poético, a posse em que ele se encontra dos segredosda técnica poética, são as suas perigosas virtudes. Porque o virtuosismo é umaqualidade absorvente, que o poeta que a detém, pensa poder criar unicamente àssuas expensas e, em consequência, opera-se uma confusão de conceitos – entretécnica e substância poética – em virtude da qual a primeira é tida como equivalenteda segunda. Daí dizermos que o seu universo poético é vacilante. Vacila sob opeso duma grande beleza ainda não inteiramente possuída. Uma beleza insincera,que ele captou por meio de sua técnica, de sua habilidade para o verso e que nãoencontra uma base espiritual – enfim, uma beleza sem mundo, que tem apenas aida que lhe dá o poder mágico da palavra (J.A.).

Depois ataca a si mesmo, ao Benedito Nunes poeta, para despistar osleitores: “Os achados [poéticos] puramente casuais não representam umaconquista definitiva na vida do poeta. É o que nos sugere a poesia do sr. BeneditoNunes. Aqui e ali um e outro achado, que ele não soube aproveitar, mostrando-se quase que inteiramente desprovido do manejo da técnica do verso”. A MaxMartins coube uma alusão à foto escolhida: “Numa das fotografias aparece o sr.Max Martins acendendo um cigarro. Eis um motivo que ele não deixaria deaproveitar. A sua poesia tem o cotidiano como matéria prima”, e, então, comentao “profundo sentimento de viver que lateja [nos] poemas [de Max]”. PauloPlínio, cuja vocação poética, segundo o crítico, “incorporou a vida em si mesma:quer dizer que se fez vida”, teve sua poesia elogiada: “Gostaria de transcreveraqui todos os seus poemas”. A ironia dirigiu-se mais acentuadamente a RuyBarata, poeta muito conhecido em Belém, que, com os seus trinta anos de poesiae experiências poéticas mais decisivas, teria criado para si, nas palavras do ferinoJoão Afonso, uma antologia dentro da Antologia. O resultado da crítica quesurpreendeu os poetas da antologia agravou-se pela ironia do escritor que dizentregar-se ao “ritmo irregular dos seus cochilos” (J.A.), sugerindo que os poemasda antologia provocaram-lhe sono. Obedecendo à ordem do “movimentopreguiçoso do olhar, num dia de domingo” (J.A.), o crítico João Afonso acabacomentando todos os poetas, como se fosse guiado pelas impressões de leiturareavivadas no momento da escrita.

Largando a leitura dos Suplementos, Benedito retoma a terceira cartaenviada de Teresina por Mário Faustino que parece responder a uma carta irritadasua (de Benedito), perdida, mas totalmente recuperável nas entrelinhas do textode Mário: “Fiquei boquiaberto ao saber da verdade, tamanha era a semelhança

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do J. A. com o Mendes: até o pseudônimo, se não me engano, é o nome tanto deum primo dele como de seu avô materno”, tenta explicar Mário Faustino, “entãoescrevi-te, ainda dominado pela surpresa”. Pelo que se depreende dessa respostade Mário, Benedito Nunes respondera aborrecido aos comentários de 29 dejaneiro, pois o poeta tratou de escrever para Belém, entre atacando e defendendo-se das acusações aparentemente veladas do Bené: “Salvo engano (não guardocópias de cartas) escrevi ‘... tamanha foi a semelhança entre as tuas opiniões eas que o Mendes costuma expressar’...” (16 fev. 1951).

Uma carta oferece a possibilidade de o autor manifestar-se a si mesmo eao seu interlocutor. Nessa última carta de Mário Faustino, que trata quaseinteiramente do assunto, podemos, claramente, ouvir o diálogo entre Mário eBenedito. Em nenhum outro momento da correspondência que se desenrolaentre eles, Benedito Nunes esteve tão presente nas retomadas de frases, naspalavras reescritas do que na carta-resposta de Mário Faustino. E, por outrolado, a carta provocou de tal forma a presença de Mário, que o crítico, ao recebê-la, pode certamente sentir o olhar do amigo pesando sobre ele. Toda a carta e oepisódio referido estão impregnados do humor faustiniano, apesar da crescenteveemência de suas palavras. Mário Faustino faz marcha a ré, volta às suasintenções, revendo suas certezas: “quando escrevi ‘... enfim uma verdade separece sempre com outra e o que dizes é a expressão da verdade’, até te puxei osaco, não achas?”. As frases são postas em questão e retomadas ainda em umlongo post scriptum, do qual destaco um trecho:

P.S. Ia-me esquecendo de sublinhar, para teu uso, algumas expressões de tuacarta com as quais eu poderia ofender-me: – “...percebi a maldade”. Será possível?– “...está escondida a maldade”. Será possível? [...] – “...ora, Mário, afinal és opoeta das Rosas”. Está mais do que claro que esqueceste de colocar a palavraainda entre as palavras afinal e és. É a pura verdade, mas são coisas que não sedizem a amigos. – “... que não se escrevem certas coisas impunemente, mesmoestando no Piauí”. Então tu achas que, se eu estivesse no Pará, deixaria de dizê-lo, hein? Em poucas palavras: “Mário, és um covarde”.[...]Será que traduzi bem as intenções que tiveste ao escrever aquelas tantas coisas? Setraduzi, estamos quites. Se não traduzi, se interpretei mal, por aí podes concluir[...] o grande número de significados que as palavras podem revestir sobretudoà luz de um pouco de má vontade, de vaidade ofendida, etc... etc... (16 fev.1951).

O que essa polêmica mostra de mais importante – tanto nos diálogostravados pelas cartas, quanto nos que se deram no jornal entre a antologia dospoemas e os artigos críticos – é a influência que Francisco Paulo Mendes exerciano meio literário, nas ideias e no estilo de cada um dos membros do grupo doCentral Café, principalmente nos mais jovens, a ponto de todos acabarem porcopiar suas ideias, espelharem-se em seu estilo. “Não é verdade que eu tenhame ofendido com isso” – diz, hoje, docemente, o filósofo, a propósito dasmenções que Mário fizera na carta de tantos anos atrás, repetindo-lhe as palavrasescritas – “nunca me importei quando o Eli, o Machado e outros que tais diziamque nós todos éramos apenas uns papéis-carbono do Mendes. Nós éramos,

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mesmo!” (16 fev. 1951). Levantando os olhos da carta de Faustino, BeneditoNunes acrescenta, por sua vez: “o Mendes habituara-se tanto a essa espécie dedominação, que, em relação ao Mário, no momento em que este, contrariando avontade do mais velho, decidiu partir para os Estados Unidos, a amizadediferenciada que havia entre eles se quebrou” (NUNES, 2000).

A brincadeira no jornal custou a Mário e a Benedito alguns momentos deirritação e talvez de orgulho ferido, mas forneceu motivo para muitas risadasposteriores, animando e enriquecendo o Suplemento dominical da Folha, naquelavirada de ano. No Suplemento n.º 165, de 14 de janeiro (não houve suplementono primeiro domingo de 1951), Benedito Nunes assina o artigo Consideraçõessobre A peste (1951, p. 4) e inclui, entre parênteses, abaixo de sua assinatura, opseudônimo J. Afonso, revelando sutilmente que o artigo anterior era de suaautoria:

Figura 7: Ensaio sobre o romance A peste, de Camus, assinado por Benedito Nunes e, entreparênteses, o pseudônimo que o crítico usara na crítica à antologia dos Dez poetas paraenses (14.jan.1951).

E o assunto não se detém aí. Alguém usou do mesmo estratagema pararesponder ao Sr. João Afonso. No mesmo número do Suplemento, outro críticode passagem por Belém contra-ataca, na primeira página, com outro artigo demesmo título dos dois anteriores, assinado desta vez por Acrísio de Alencar.

Figura 8: Artigo assinado por Acrísio de Alencar, em resposta à crítica do Sr. J. Afonso (14.jan.1951).

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Acrísio de Alencar (Haroldo Maranhão?) assim se apresentava: “Permitao grande suplemento literário de nossa terra que um jovem do interior venhasumariar suas impressões acerca de um assunto muito palpitante, suscitado naedição de 31 de dezembro por um viajante ilustre, a quem, parece, melhoragradou o nome suposto para o patrocínio de suas opiniões”.

Há, ainda, nesse número do Suplemento, uma réplica de Floriano Jaimerespondendo ao artigo de J. Afonso:

Figura 9: Artigo assinado por Floriano Jayme, um dos poetas da antologia (14.jan.1951).

Esse episódio revela a força e a importância do Suplemento – local, masde amplitude nacional – naquele pequeno mundo da cidade provinciana, emque os leitores, na sua maioria, eram os próprios colaboradores do jornal,compostos pelos dois grupos que atuavam na vida intelectual da terra: a geraçãovelha (do final dos anos 30) e a nova (a turma do Café Central), que seentrechocavam, uma desdenhando de certa maneira da outra. Como um camponeutro, o “Suplemento Literário de a Folha traduziria, durante cinco anos, oespírito comum do grupo maior, afinado pela leitura dos mesmos poetas,ficcionistas e filósofos e pela admiração votada aos mesmos artistas” (NUNES,2001, p. 16). Da parte desses jovens que se denominavam “os novos” havia umdesconhecimento quase voluntário da antiga geração de escritores de Belém:“desse grupo antigo, nós só respeitávamos o Bruno de Menezes”, confessaBenedito Nunes (2000). Foi justamente Bruno de Menezes, poeta responsávelpela inovação da poesia paraense, com o longo poema-ritmo “Batuque” (1931),que, em entrevista ao Suplemento Literário da Folha do Norte sobre a literaturano Pará, publicada com o titulo de Posição e destino da Literatura Paraense,escreveu: “É uma farsa muito vazia de sentido falar-se em ‘Geração Moderna’do nosso estado”. Mas, “se moderno quer dizer da hora presente”, poderiam serlembrados os nomes “de um Ruy Guilherme Barata, um Paulo Plínio de Abreu,um Benedito Nunes, ou os de Haroldo Maranhão, Jurandir Bezerra, Max Martins,embora ainda presos aos complexos liricamente emotivos”. Quanto a escritores,

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teatrólogos, ensaístas, pensadores em geral, Bruno cita “valores distintos comoum Francisco Mendes, um Cécil Meira, um Raimundo Moura, um Cléo Bernardo”(1947, p. 2). Na mesma reportagem, Romeu Mariz, também membro daAcademia Paraense de Letras, dá o seu depoimento: “há, na atualidade, dois outrês elementos, dos novíssimos, alçando voos promissores, belos voos, podendo-se apontar entre eles, Haroldo Maranhão, Geogenor Franco e Mário Faustino,parecendo-me que desse filão áureo não virão outras gemas de prol” (1947, p.2). Esses depoimentos revelam que os acadêmicos não deixavam de valorizaros novos escritores da terra.

Apesar de dois anos mais novo que Benedito Nunes, Vicente Sales faziaparte do grupo dos antigos (como os literatos da geração anterior eram chamadospela turma entusiasta do Central). Diziam-se membros da “Academia do peixefrito” e frequentavam uma outra espécie de “salão”, bastante popular. Reuniam-se pelas madrugadas no Café Manduca, no Barbinha ou nos arredores do mercadodo Ver-o-Peso, para comer o peixe frito que dava nome ao grupo. “Eram velhos”,conclui Vicente Salles, “era o Pinagé, o Bruno, o Jacques Flores, o De CamposRibeiro, o Geogenor Franco”. Para o historiador, naquela época, a cidade tinhaum ar de decadência: “aquele ar do já teve que até hoje muitas pessoas ficamlamentando esse passado perdido”. Sua lembrança fixou os sérios problemasurbanos que Belém conheceu, “problemas da luz, da água, dos transportes. Umaluz muito... [...] no pique do consumo, você não enxergava para ler... a luz apagava,os bondes paravam...”. Segundo ele, só é possível considerar aquele tempo comouma fase de efervescência cultural a partir do Suplemento: “Eu lembro inclusiveque o Levi Hal de Moura publicou grande parte do seu livro, da visão marxistada História do Pará (Esquema da evolução da sociedade paraense), em capítulos,no Suplemento da Folha. A última página trazia sempre um poema chocante,bom”, conta Vicente Sales. Segundo ele, fundamental nessa geração foi aliderança de Haroldo Maranhão, como jornalista, “porque ele mantinha contatocom a geração anterior dos ‘velhos’ e o elo era o ‘Suplemento’” (SALES, 2002).O Suplemento da Folha do Norte não somente unia a geração antiga e a nova dosintelectuais de Belém, como também trazia para o Norte os textos dos artistasconsagrados do Sul do país.

Além das reuniões nos bares e cafés, dos suplementos literários dos jornais,revistas também congregaram as ideias da época, inserindo a província nomovimento mais amplo da modernidade nacional. Encorajados pelo sucesso doSuplemento Arte-Letras e pela facilidade de impressão oferecida pelo jornal,Haroldo Maranhão, Mário Faustino e Benedito Nunes tiveram a ideia de fundar(ainda em 1948) a revista literária – Encontro –, que morreu ao nascer. Nesseúnico número, Mário publicou o seu trágico conto “Nigel”.

Dessa época, existe uma fotografia de Mário Faustino com os amigos, emuma festa, no terraço da casa do Sr. Mascarenhas (avô de Mário) na antiga SãoJerônimo.

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Figura 10: fotografia tirada em uma reunião na casa do avô de Mário Faustino, reunindo amigos,poetas e críticos.

Em primeiro plano, Francisco Paulo Mendes mantém-se alheio ao acenodo fotógrafo. Atrás, de pé, da esquerda para a direita, Beckmann, um vizinho deMário, Benedito Nunes atrás de Maria Sylvia e ao lado de Mário Faustino, quepousa o braço em suas costas, o gesto eterno da amizade (revelando que oprimeiro – e único – desentendimento entre os amigos já havia sido esquecido).Do outro lado de Mário Faustino, sentado, Ruy, Paulo André e Norma Barata.Na outra extremidade, Raimundo Moura, cujo olhar, divertido, parece não sedesviar do de Francisco Paulo Mendes. A presença das mulheres e da criança(Maria Sylvia, que namorava Benedito Nunes, Norma, casada com Ruy Baratae Paulo André, seu filho, futuro compositor e parceiro do pai) marca o início dofim dessa fase despreocupada em que Mário ainda morava em Belém.

Benedito Nunes, Mário Faustino, Ruy Barata, Francisco Paulo Mendespertenciam ao grupo de amigos (do qual fazia parte a maioria dos dez poetasparaenses da antologia), que se encontravam amiúde no Café Central, local quetestemunhou o surgimento de vários poetas, alguns dos quais ultrapassaram oslimites da província. Ali quase todos acabavam escrevendo poesia, por influênciade Francisco Paulo do Nascimento Mendes, crítico de literatura e de arte, ensaístae professor de Literatura Portuguesa e História da Arte na Universidade doPará. Por causa disso, Mendes ganhou o epíteto de “fazedor de poetas”. MasFrancisco Paulo Mendes foi, na verdade, um fazedor de escritores, dos maisvariados gêneros, pois também iniciou e encorajou críticos e prosadores. HaroldoMaranhão, por exemplo, enveredou pela prosa de contos e romances, e BeneditoNunes prosseguiu no rumo do texto ensaístico, dos estudos filosóficos e críticos.

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Hoje, tranquilamente, Benedito Nunes se define:

Não sou nem poeta nem ficcionista. Exceto os pecadilhos juvenis de algunsversos, contos e dois capítulos de romance, João Severo, imitação de Omenino de Engenho, de José Lins do Rego, escrevo, de preferência, ensaiosliterários e filosóficos, quando não comentários a livros publicados,especialmente de poesia (NUNES, 2007).

Eu, então, acrescento, relembrando o epíteto dado por ele a Mário Faustino:Benedito Nunes é um filósofo da poesia.

REFERÊNCIAS

CHAVES, Lilia Silvestre. Mário Faustino: uma biografia. Belém: SECULT; IAP;APL, 2004.

CHAVES, Lilia Silvestre. O filósofo e o poeta. No prelo.

JAYME, Floriano. Ainda sobre dez poetas paraenses. Folha do Norte, Belém, 14jan. 1951. Suplemento Arte-Letras, n. 165, p. 4.

MENDES, Francisco Paulo. Primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino.Folha do Norte, Belém, 1948, p. 1 e 3.

MARANHÃO, Haroldo. O poeta e sua vida. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 9jul. 1966.

MARANHÃO, Haroldo (sob o pseudônimo de Acrísio Alencar). Dez poetasparaenses, Folha do Norte, Belém, 14 jan. 1951. Suplemento Artes-Letras, n.165, p. 1 e 3.

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NUNES, Benedito. Da caneta ao computador ou entre filosofia e literatura.2007.

NUNES, Benedito. O amigo Chico fazedor de poetas. In: ______ (Org.). Belém:SECULT, 2001. p. 15-24.

NUNES, Benedito. Entrevista. 2000. Inédita.

NUNES, Benedito. Considerações sobre A peste. Folha do Norte, Belém, 14 jan.1951, p. 4.

NUNES, Benedito (sob o pseudônimo de João Afonso). Dez poetas paraenses.Folha do Norte, Belém, 31 dez. 1950. Suplemento Arte-Letras, n.164, p. 1 e 3.

SALES. Entrevista, 2002. Inédita.

WERNECK. O homem encadernado. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.

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Mário Faustino e Benedito Nunes. (Acervo Lilia Chaves)

186 da palavra

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Apoiado em um sentido humanístico de formação acadêmica, aberta e decontornos fluidos, o ensaísmo de Benedito Nunes contribuiu para a elucidaçãocrítica de nomes importantes da cultura brasileira, como Farias Brito, João Cabralde Melo Neto, Clarice Lispector, Oswald de Andrade, etc. Em relação aGuimarães Rosa, o professor paraense também trouxe uma interpretação original,cujos contornos se desenham entre a dimensão imagético-poética e o nívelconceitual das especulações filosóficas, planos esses articulados por umaconstante interpelação da própria linguagem, à luz de pensadores como Heideggere Sartre.

A produção bibliográfica nunesiana conta com aproximadamente vinte eseis artigos e cinco capítulos de livros. Os textos publicados em jornais e revistasdatam do período que vai de 1957 a 2007, perfazendo cinco décadas de umaprodução ensaística relevante para os estudos rosianos no Brasil e no exterior.Publicados em revistas brasileiras e estrangeiras ou nos mais importantessuplementos literários nacionais, tais textos abordam, sob diversas perspectivas,temas como a tradução, o menino, o amor, a viagem, etc., com base no estudointerpretativo de diversas obras rosianas como Sagarana, Grande sertão: veredas,Corpo de Baile, Tutaméia, entre outras.

Sintetizar tais textos, cuja dimensão material supera, em muito, o artigodos nossos dias, levando em consideração sua base teórico-crítica, é uma tarefaque aqui não é possível, contudo salientemos suas linhas de força, centradas emtemas fundamentais como a concepção erótica da vida e as relações entre poesiae filosofia. No ensaio “O amor na obra de Guimarães Rosa” (1964), republicadoem O dorso do tigre, considerando as obras Grande sertão: veredas, Corpo de Baile ePrimeiras Estórias, o crítico postularia a tese da centralidade do amor, no que dizrespeito à cosmovisão rosiana:

Contribuição de Benedito Nunesà bibliografia rosiana

Sílvio Holanda, Aldo José Barbosa,Loíde Leão dos Santos, Marcellus da Silva Vital,Johann Raphael Gomes Guimarães

* Pesquisadores daUniversidade Federaldo Pará – UFPA.

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O tema do amor ocupa, na obra essencialmente poética de Guimarães Rosa,uma posição privilegiada. Em Grande Sertão: Veredas, onde aparece entrelaçadocom o problema da existência do Demônio e da natureza do Mal, atingeextrema complexidade e envolve diversos aspectos que compõem toda umaidéia erótica da vida.1

As três espécies de amor existentes na obra rosiana poderiam serrepresentadas por Otacília (o enlevo), Diadorim (a dúbia paixão pelo amigo), eNhorinhá (volúpia). Embora os tipos de amor sejam qualitativamente diversos,ocorre uma interpenetração entre eles. Sem recorrer à interpretação alegorizantedos trabalhos de Heloisa Araujo, o professor paraense buscará mostrar que atemati-zação do amor, na obra rosiana, remonta ao platonismo, porém, numaperspectiva mística heterodoxa, “que se harmoniza com a tradição hermética ealquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que expri-me, emlinguagem mítico-poética, situada no extremo limite do profano com o sagrado,a conversão do amor humano em amor divino, do erótico em místico.”2

A visão erótica da vida, em Guimarães Rosa, segundo Benedito Nunes,permitiria a aproximação entre o profano e o sagrado. Assim, de Nhorinhá aOtacília, há uma como uma ascensão, partindo da explosão erótica de Nhorinháà imagem angelical de Otacília, objeto ideal, à semelhança do mundo inteligívelde Platão. O platonismo está subjacente a essa idéia de amor, uma vez que sepode falar numa espécie de conversão do carnal em espiritual. Em GuimarãesRosa, assim, o amor carnal gera o espiritual e nele se transforma. Taltransformação vincula-se a um misticismo de teor platônico, próximo da teologiacristã, sendo o amor concebido, simultaneamente, como força ascendente edescendente.

Assim, o amor espiritual se apresenta como uma transfiguração do amorfísico, transfiguração essa operada pela força impessoal e universal de Eros.Assim, pode-se ler os textos de Corpo de Baile e o Grande sertão: veredas à luz daconcepção erótica rosiana, destacando-se a energia corporal não-pecaminosa ea “ausência de degradação e de malícia nas prostitutas, que nem sempre sãofiguras secundárias, cir-cunstanciais”3. A mulher, nesse contexto, independentede sua idade, mobiliza um fogo, capaz de perdurar até a velhice. Para exemplificaressa idéia o crítico se vale de “A estória de Lélio e Lina”.

Benedito Nunes ocupar-se-ia da tradução francesa de Guimarães Rosa emartigo publicado no suplemento literário de O Estado de São Paulo, em 14 desetembro de 1963. Lembrando a tradução de fragmentos do Finnegans Wake pelosirmãos Campos, define o ato tradutório como interpretativo como interpretativo:

Desse ponto de vista, a tradução é um ato inter-pretativo, ao mesmo tempocrítico e inventivo, que se processa orientado pelo parti pris estilístico da obra.Não importa que termos e expressões determinados sejam inconvertíveis, desdeque se respeite o fluxo de sentido, a propensão da forma, a direção da linguagem.Se o tradutor passa à categoria de intérprete e, superada a preocupação com aliteralidade, resta-lhe o caminho da versão livre, sua liberdade para inventar, nãopodendo transgredir a ordem infusa do original, nem os limites que a sua próprialíngua lhe impõe, será, como toda li-berdade, consciência da necessidade.4

1 NUNES, Benedito. O dorso dotigre. 2. ed. São Paulo: Perspec-tiva, 1976. p. 143.2 Idem, ibidem, p. 145.3 Idem, ibidem, p. 148.4 NUNES, Benedito. O dorso dotigre. 2. ed. São Paulo: Perspec-tiva, 1976. p. 200.

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Com base nessa concepção de tradução, o crítico faz diversos reparos àtradução de J. J. Villard, publicada em 1960, pelas Éditions du Seuil, a quemrepreende pela falta de força poética dos textos, o que lhes impõe, “na forma deuma prosa bem urdida, um ponto de vista estilístico estranho ao autor, que nãocorresponde à con-cepção-do-mundo que é a dele.”5

Em 1967, ao se ocupar de “Cara-de-bronze” em “A viagem do Grivo”, oestudioso, retomando aspectos já evidenciados em trabalhos anteriores, defineeste conto como uma síntese da poética rosiana: “Tematização do motivo daviagem, estrutura poli-mórfica, horizonte mítico-lendário são, pois, os aspectosmarcantes que fazem desse conto uma composição exemplar, verdadeira sínteseda concepção-do-mundo de Guimarães Rosa, onde certas possibilidades extremasde sua técnica de ficcionista se concretizam.

Em outros trabalhos, dedicar-se-ia o ensaísta a outras obras como Tutaméiae às implicações filosóficas de Grande sertão: veredas. Sobre esse último aspecto,em A matéria vertente (1983), ponderou:

Uma abordagem filosófica de Grande Sertão: Ve-redas, como a que tentamosfazer aqui, recai dentro do problema mais geral das relações entre filosofia eliteratura. § O que pode a filosofia conhecer da literatura? Tudo quanto interessaà elucidação do poético, inerente à lingua-gem, e portanto, tudo quanto se refereà simbolização do real nesse domínio. Essa resposta, num trabalho anterior,baseou-se na idéia de que não há um método filosófico específico para a análiseliterária, em concorrência com os da Teoria da Literatura, que assentam, contudo,em pres-supostos filosóficos, quaisquer que sejam os campos científicos de quese originam.6

Grande parte dos trabalhos aqui referidos foi republicada em livrosorganizados pelo autor ou por outrem: O dorso do tigre (1969 e 1976), Teoria daLiteratura em suas fontes (2. ed., 1983), Seminário de ficção mineira II (1983), O livrodo seminário (1983), Guimarães Rosa (1991), Crivo de papel (1998), Veredas no sertãorosiano (2007). Como se trata de livros muito conhecidos e debatidos pela críticaespecializada, propõe-se uma breve referência ao primeiro texto rosiano escritopor professor Benedito Nunes em 1957: “Primeira notícia sobre Grande sertão:veredas”, estampado no Jornal do Brasil, de 10 de fevereiro de 1957.

O artigo de 1957, lido em confronto com a tradição crítica que se formouem torno de Guimarães Rosa na última década, põe em foco o vínculo entreGuimarães Rosa e Mário de Andrade. Além disso, discutem-se a linguagem, oprocesso narrativo, o problema do gênero, entre outros aspectos.

Para estabelecer a peculiaridade da linguagem rosiana, Benedito Nunescita um trecho de Euclides da Cunha:

Estiram se então planuras vastas. Galgando as pelos taludes, que as soerguemdando lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos, topam se, a centenas demetros, extensas áreas ampliando se, boleadas, pelos quadrantes, numaprolongação indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais,expandida em chapadões ondulantes – grandes tablados onde campeia asociedade rude dos vaqueiros...7

5 Idem, ibidem, p. 200-201.6 NUNES, Benedito. A maté-ria vertente. In: — et al. Semi-nário de ficção mineira II. BeloHorizonte: Conselho Estadu-al de Cultura, 1983. p. 9.7 CUNHA, Euclides da. OsSertões. Ed. Crítica. São Paulo:Brasiliense, 1985. p. 34.

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O texto rosiano apresenta-nos em uma “nar-ração inteiriça” e oscila,abandonando-se a língua culta, entre dialeto regio-nal e criação arbitrária. Ainovação introduzida pelo autor mineiro se justifica esteticamente pela“necessidade irrecorrível, exigida pela natureza do próprio romance, cuja tra-ma,situações e personagens demandavam forma especial de tratamento.”8

No que diz respeito à técnica narrativa, Benedito Nunes apoia-se noconceito de discurso livre para explicar a autonomia do narrador em relação aoromancista

Ele não é, entretanto, o narrador controlado pelo romancista que, em geral,quando adota este recurso de fa-zer com que o personagem exponha osacontecimentos ou as próprias idéias, não desaparece atrás de sua criação e comela não se confunde. Mas, nesse romance, o autor quis se enredar num problemadificílimo de técnica. Como permitir que Riobaldo falasse, num discurso livre,ele mesmo contando a sua história, sem desfigurar-se a condição humana dosertanejo, inculto, mas extremamente sensível, ligado ao mundo pelo constantepelejar, com um código moral diferente do nosso, sem dúvida e, ainda, com seulinguajar próprio, limitado, regional? 9

A relação Mário de Andrade vs. Guimarães Rosa – depois retomada porMary Daniel e outros intérpretes – é um dos eixos do artigo de 1957. O linguajardo sertão se transforma em linguagem artística, em estilo, resolvendo o problemado regionalismo, debatido desde a recepção crítica primeira de Sagarana.

Sob esse, aspecto, o processo de Guimarães Rosa não é novo. Mário de Andradeem Macunaíma fez, guardadas as proporções, o mesmo, for-jando uma línguaque reuniu várias moda-lidades linguísticas existentes no país; en-trosou os termosde origem indígena aos de origem africana, alterou a sintaxe, deu vi-gor literárioàs expressões familiares e de gíria.10

Assim, relacionando, de modo original, a linguagem ao tema, às situaçõese aos personagens, fazendo desta “instrumento psicológico”, cuja intensidadegarante a unidade da obra e o seu “poder expressivo que confina com a poesia”.

Não se limitando a uma gesta do sertão, Grande sertão: veredas ultrapassa oâmbito regional, pois no drama do sertanejo ou do jagunço, “irrompem os grandesproblemas humanos – seja a luta do homem contra natureza que o estimula e oabate ao mesmo tempo, seja o ímpeto do jagunço que se põe em armas paradefender uma causa indefinível, adota a lei da guerra menos pela rudeza de seuespírito do que pela necessidade de viver e de realizar o seu destino.”11

Antecipando tanto leituras sociológicas quanto esotéricas da obra-primarosiana, Benedito Nunes postula uma interpretação “espiritual” da terra e dopovo que nela vive. Os fatores mesológicos, sociais e históricos, na mesmalinha do conceito de reversibilidade de Antonio Candido, tomam a forma de umproblema mais amplo (O Diabo existe ou não? O que leva o homem à crueldadee à violência?). Ademais, o crítico refere a presença, no texto, de “expressõesacordes com a tradição do misticismo – tanto no oriente como no ocidente”.Entre essas, cite-se: “Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente,

8 NUNES, Benedito. Primei-ra notícia sobre Grande Sertão:Veredas. Jornal do Brasil, Rio deJaneiro, 10 fev. 1957.9 Idem, ibidem.10 NUNES, Benedito. Primei-ra notícia sobre Grande sertão:veredas. Jornal do Brasil, Rio deJaneiro, 10 fev. 1957.11 Idem, ibidem.

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de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas não são deverdade” (GSV, 1956, § 146).

Em consonância com a crítica estilística, dominante na década de 1950,o estudioso aponta a saturação de elementos pitorescos na linguagem de Grandesertão: veredas, a fim de defender um estilo afim do poético, dada a sua peculiarconfiguração rítmica, algo que Oswaldino Marques já fizera para o obra atéentão publicada por Guimarães Rosa:

Mas quase sempre o estilo é extremamente poético. A prosa tem ritmo: é célereou lenta conforme a situação exige. [...] Mas raras são as mudanças do léxico eda sintaxe que não correspondam a uma contorsão necessária, para dilatar opoder expressivo da linguagem. E assim, carregada de expressividade, essalinguagem é de um modo geral eficiente. Ela serve de veículo emocional.Transmite-nos o con-teúdo de uma vida diferente da nossa, põe-nos em contatocom a substância humana outros indivíduos, afetados por condi-ções que nãoconhecemos. Mas devido mesmo à comunicação emotiva que se estabe-lece,participamos de seus problemas, de suas lutas, alegrias e aflições.12

Ao lado das deficiências, entre elas o abuso de desarticulações sintáticas,contrações e elipses, o crítico salienta, no livro tumultuoso e imenso, episódios hojeconsagrados pela crítica brasileira e estrangeira: o amor de Riobaldo porDiadorim, a morte dos cavalos assassinados pelos cangaceiros, o encontro datropa de jagunços com os catrumanos, as lembranças tumultuosas de Riobaldo,os últimos combates entre os dois bandos que dividiam o domínio dos “gerais”e a descoberta de que Dia-dorim é mulher e não homem.

Como se viu, o artigo de 1957, lançado às páginas do Jornal do Brasil, ondejá atuava Mário Faustino, embora datado e ligado a circunstâncias diversas,insere-se na tradição crítica rosiana, tanto pelas vias abriu, como a aproximaçãocom Mário de Andrade, quanto pela retomada de perspectivas já em consolidação,como a via da crítica estilística de um Oswaldino Marques e de um CavalcantiProença. A esse primeiro trabalho, viria somar-se um conjunto de textos que,malgrado a modéstia de nosso homenageado, mudaram definitivamente a leituracrítica do maior romancista brasileiro do século XX.

REFERÊNCIAS

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NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. Revista do Livro, Rio deJaneiro, v. 7, n. 26, p. 39-62, set. 1964.

12 NUNES, Benedito. Primei-ra notícia sobre Grande sertão:veredas. Jornal do Brasil, Rio deJaneiro, 10 fev. 1957.

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NUNES, Benedito. Guimarães Rosa e tradução. Leitura, Rio de Janeiro, v. 24, n.94-95, p. 40-2, maio-jun. 1965.

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NUNES, Benedito. A Viagem. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário, SãoPaulo, v. 10, n. 509, p. 6, 24 dez. 1966.

NUNES, Benedito. A viagem do Grivo. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário,São Paulo, 10 de jun. 1967. p. 3.

NUNES, Benedito. A viagem do Grivo. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário,São Paulo, 17 de jun. 1967. p. 5.

NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. Minas Gerais. SuplementoLiterário, Belo Horizonte, v. 2, n. 65, p. 7, 25 nov. 1967.

NUNES, Benedito. Interpretação de Tutaméia. O Estado de São Paulo. SuplementoLiterário, v. 11, n. 543, 2 set. 1967.

NUNES, Benedito. Guimarães Rosa em novembro. Minas Gerais. SuplementoLiterário, Belo Horizonte, v. 3, n. 117, p.1, 23 nov. 1968.

NUNES, Benedito. A Rosa o que é de Rosa. O Estado de São Paulo. SuplementoLiterário, v. 13, n. 619, p. 6, 22 mar. 1969.

NUNES, Benedito. Aspetti della prosa brasiliana contemporanea. Aut Aut,Milano, n. 109-110, p. 116-123, Gennaio-Marzo 1969.

NUNES, Benedito. Gênese e estrutura. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário,São Paulo, v. 13, n. 642, 20 nov. 1971.

NUNES, Benedito. A viagem do Grivo. Minas Gerais. Suplemento Literário, BeloHorizonte, v. 9, n. 398, p. 4-5, 6 abr. 1974.

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NUNES, Benedito. O mito em Grande sertão: veredas. Scripta. Belo Horizonte, v.2, n. 3, p. 33-40, 2.º sem. 1998.

da palavra 193

NUNES, Benedito. O mito em Grande sertão: veredas. Moara. Belém, n. 14, p. 9-19, jul./dez. 2000.

NUNES, Benedito. O autor quase de cor: rememorações filosóficas e literárias.Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, ns. 20-21, p. 236-244, dez. 2006.

NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa Asas da Palavra, Belém,v. 10, n. 22, p. 71-85, 2007.

LIVROSNUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969. 278 p.

NUNES, Benedito. O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. 279 p.

NUNES, Benedito. Prefácio. In: ALBERGARIA, Consuelo. Bruxo da linguagemno Grande Sertão: leitura dos elementos esotéricos na obra de Guimarães Rosa.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977. p. 13-15.

NUNES, Benedito. Literatura e filosofia. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria daLiteratura em suas fontes. 2.. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. v. 1, p.188-207.

NUNES, Benedito. A matéria vertente. In: — et al. Seminário de ficção mineira II.Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura, 1983. p. 9-39.

NUNES, Benedito. O romance. In: O livro do seminário; Bienal Nestlé de LiteraturaBrasileira. São Paulo: LR Editores, 1983. p. 43-70.

NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: COUTINHO,Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1991. p. 144-169.

NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: ROSA, JoãoGuimarães. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 1, p. 112-141.

NUNES, Benedito. De Sagarana a Grande Sertão: Veredas. In: Crivo de papel. SãoPaulo: Ática, 1998. p. 247-262

NUNES, Benedito. Bichos, plantas e malucos no sertão rosiano. In: SECCHIN,Antônio Carlos et alii. Veredas no sertão rosiano. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p.19-28.

OUTROS AUTORESCUNHA, Euclides da. Os Sertões. Ed. Crítica. São Paulo: Brasiliense, 1985. 728 p.

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“combinar o mais acurado localismoao mais autêntico senso universalista”

Benedito Nunes, Do Marajó ao arquivo

“nuestra tradición es toda la cultura occidental”Jorge Luis Borges, El escritor argentino y la tradición

Na resenha que escreveu sobre a primeira obra de Benedito Nunes, Omundo de Clarice Lispector (Ed. Governo do Estado do Amazonas, 1966), VilémFlusser aponta a ironia presente na sua apresentação, que a define como “umacontribuição à cultura regional da Amazônia”.

A ironia identificada pelo filósofo tcheco-brasileiro estaria na contradiçãoque a idéia de cultura regional apresentava à verdadeira universalidade do conjuntode ensaios de Benedito Nunes, os quais Flusser inscreve, ao lado da ficção deClarice Lispector, na “conversação geral que se desenvolve no Ocidente”, sendo “provada maturidade e da universalidade do pensamento brasileiro”. Por se tratar de “umacontribuição para a temática fundamental da nossa cultura”, continua Flusser, o livrode Benedito Nunes merece “não apenas uma distribuição ampla no Brasil, mastambém traduções para outras línguas.”1

A questão subjacente à observação de Flusser é a de que, embora a origemde Benedito Nunes seja a Amazônia, o seu valor intelectual não se limita demodo algum às fronteiras regionais. Da mesma forma, com esta noção universalistade cultura, Benedito Nunes se aproxima dos seus conterrâneos, estudando edialogando com a cultura desenvolvida “no” Pará, mas que não se restringe a sersimplesmente paraense. Com efeito, Benedito Nunes não se refere à “literaturaamazônica”, mas à “literatura da Amazônia”, a fim de sublinhar a procedência da

* Escrito como prefácio aolivro NUNES, Benedito. DoMarajó ao arquivo: um breve pano-rama da cultura no Pará. Organi-zação Victor Sales Pinheiro.Belém: EDUFPA (no prelo).1 FLUSSER, Vilém. O mundode Clarice Lispector, de BeneditoNunes. Publicada no jornal OEstado de São Paulo, em 23 dejunho de 1968.

O universalismode Benedito Nunes*

Victor Sales Pinheiro

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arte literária sem recair nos localismos de qualquer perspectiva regionalista(Benedito Nunes ensina o caminho de volta – entrevista a José Castello). Interessa-lhe osautores que se inspiram na “região ou na cor local como meio de passagem ao universal”(Meus poemas favoritos, ontem e hoje), sendo este o critério de aferição do valor deuma obra de temática regional.

Próximo de uma enciclopédia pela extensão do horizonte cultural do autor,este livro recolhe praticamente toda a produção de Benedito Nunes, ao longode mais de 50 anos, sobre autores e temas que compõem a cultura no Pará, daqual ele não só é um dos mais argutos estudiosos como um dos mais reconhecidosprotagonistas. Os escritos deste volume são marcados pela diversidade deformatos de que se reveste o gênero ensaístico, constante de estudosmonográficos, crônicas, conferências, entrevistas, apresentações, prefácios eorelhas de livros. “Gênero essencialmente flexível” - como mostrou AlexandreEulalio no seu premiado estudo O ensaio literário no Brasil-, o ensaio é marcadopor uma elasticidade que concede ao pensamento mover-se em peças curtas oucomposições longas, “dentro de um campo que compreende tanto a erudiçãopura quanto o apontamento ligeiro do fait divers”2.

Filósofo que encontra na estética o eixo central de suas reflexões, é,sobretudo, no âmbito da crítica literária que Benedito Nunes se concentra - oque justifica a predominância de estudos voltados à poesia e à prosa paraensesneste livro.

Mas a resenha crítica de Benedito Nunes, mesmo numa breve orelha delivro, não permanece um comentário acessório da obra estudada, antes a tomacomo início de uma reflexão que ganha contornos próprios, não raroultrapassando os liames de uma apresentação para alcançar uma exploraçãofilosófica autônoma, ainda que sintética, de sua camada mais densa, a que originaa dimensão poética do homem. Na apresentação do livro Infância Vegetal, dePaulo Vieira, Benedito Nunes revela o pendor reflexivo de sua crítica literária:

“Toda poesia autêntica, legítima, como esta, leva-nos a indagar sobre a essência do poético. Oque é, afinal, isso que constitui a poesia? A força da rememoração da palavra, a presença, feitaverbo, dos arcanos?”

Tema fundamental de seu pensamento, a que dedicou a sua obra de maiorfôlego, Passagem para o poético – poesia e filosofia em Heidegger (Ática, 1986), a essênciado poético é perseguida em vários escritos do presente volume. Concisaselaborações filosóficas despontam de seus textos curtos; uma definição de poesia,na orelha escrita para o livro Arquitetura dos ossos, de Age de Carvalho:

“Se as palavras (...) desencadeiam, entre som e sentido, o ‘poder de silêncio’, que concentram,como apelo capaz de revelar o mundo ao homem e o homem a si mesmo – então quem empregaas palavras desse modo não-instrumental se faz poeta, porque cria da linguagem e na linguagemum espaço inter-subjetivo de conhecimento e de encontro dialogal”.

Com uma profunda indagação metafísica principia a apresentação do livro Hong-Kong de Antônio Moura:

2 EULALIO, Alexandre. O en-saio l iterário no Brasil . Em:______. Escritos. OrganizaçãoBerta Waldman e Luiz Dantas.São Paulo: EdUNICAMP;EdUNESP, 1992. p.11 e 13.

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“Até que ponto a lírica suporta o ‘desaparecimento elocutório do poeta’, a supressão do sopropessoal de sua frase, de respiração expressiva do verso?”

Uma articulação da ação da poesia consta na apresentação de E todas as orquestrasacenderam a lua, de Lilia Chaves:

“O efeito da leitura de poesia se dá por espelhamento. A poesia nos reflete quando o seufingimento nos torna reflexivos.”

De fato, o traço distintivo da fisionomia intelectual de Benedito Nunes é aconvergência do crítico literário e do filósofo, harmonicamente afinados na polifoniade seus escritos. Como ele explica no ensaio de autobiografia intelectual que abreeste volume, Da caneta ao computador ou entre literatura e filosofia, considera-se

“um crítico na acepção mais ampla que acompanha o uso da palavra Crítica emKant. (...) Ser crítico literário seria poder estabelecer as condições preliminares da existência dotexto literário, sem esquecer a existência do texto filosófico com o qual aquele se confronta”.

Porém não é só com a tradição filosófica que a crítica de Benedito Nunesdialoga. Reiteradas vezes, ele lembra que nenhum poeta anda sozinho, que poeta éser de companhia, pois “a poesia brota da poesia, o princípio de um poeta está em outrospoetas” (O nativismo de Paes Loureiro); por isso, na compreensão dos literatosparaenses, interessa-lhe relacioná-los às fontes da tradição local, nacional eocidental que os animam, ligando, por exemplo, Dalcídio Jurandir a ÉricoVeríssimo e Proust, Haroldo Maranhão a Mario de Andrade e Rabelais, BenedictoMonteiro a Inglês de Souza, Bruno de Menezes a Jorge de Lima e Mallarmé,Paulo Plínio Abreu a Augusto Frederico Schmidt e Rilke, Ruy Barata a Baudelairee Homero, Mário Faustino a Cecília Meireles e Ezra Pound, Max Martins aDrummond e Dylan Thomas, Paes Loureiro a Bruno de Menezes e Maiakovski,Vicente Cecim a Nietzsche, Age de Carvalho a Max Martins e Rimbaud, AntonioMoura a João Cabral e Laforgue, Paulo Vieira a Mário Faustino. Leitor de Eliot,Benedito Nunes sabe do grande crítico e poeta inglês que:

“No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, his appreciationis the appreciation of his relation to the dead poets and artists. You cannot value him alone; youmust set him, for contrast and comparasion, among the dead”.3

Não se pode julgar um poeta isoladamente, mas deve-se incluí-lo no seioda tradição que alimenta a sua experiência literária individual. De fato, a obra deBenedito Nunes ratifica o juízo de Eliot: “Honest criticism and sensitive appreciationis directed not upon the poet but upon the poetry”4.

Ao costurar a cadeia de influxos da tradição literária paraense, incluindo-a no contexto maior da literatura brasileira, esta já dimensionada na experiêncialiterária ocidental, o universalismo de Benedito Nunes sobressai como o traçodistintivo de sua obra, que abarca, portanto, a teoria e a história literárias, semprejuízo da já referida elaboração filosófica de um pensamento poético que tornehermeneuticamente fecundo o diálogo entre Literatura e Filosofia5. Deste modo,o crítico assume “a relevância histórico-cultural” que lhe cabe, porque

3 ELIOT, T.S. Tradition and theindividual talent. Em:____ Se-lected essays. Londres: Faber andFaber, 1999, p.15.4 ELIOT, T.S. Tradition and theindividual talent. Em:____ Se-lected essays. Londres: Faber andFaber, 1999, p.17.5 Cf. NUNES, Benedito. Her-menêutica e poesia – o pensamentopoético. Organização e apresen-tação Maria José Campos. BeloHorizonte: Ed.UFMG, 1999 eNUNES, Benedito. Poética dopensamento. Em:______ Crivo dePapel. São Paulo: Ática, 1998.

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“julgar uma obra individual é, antes de mais nada, assinalar-lhe a posição no conjunto de queparticipa. (...) E o que a crítica julga, em cada caso, no ciclo de civilização a que pertence a experiêncialiterária, representada, refletida ou modificada pela obra, é, afinal, toda a literatura” 6.

Além de problematizar a essência do poético, o que lhe concede dignidadefilosófica, e avaliar a experiência literária individual contextualizando-a natradição a que pertence, o que lhe dá alcance teórico e histórico, a relevânciacultural da crítica de Benedito Nunes envolve, ainda, dois aspectos fundamentais:uma fértil interação intelectual com os escritores paraenses e uma participação,ao lado da literatura estudada, na compreensão da realidade amazônica.

A crítica de Benedito Nunes, iniciada na década de 50 e estabelecida nade 60, nasce consciente da sua função constitutiva da literatura como “um pólode tensão com a escrita dos escritores”, como ele a define em Crítica literária no Brasil,ontem e hoje7. Ela sempre se orientou, portanto, no sentido de cumprir o importantepapel cultural que desempenha “como teoria da literatura, não um elemento menor edispensável em sua prática”, para dizer com Northrop Frye8. No Brasil, a década de50, foi, segundo Afrânio Coutinho, “o momento em que se adquire a consciênciaexata do papel relevante da crítica em meio à criação literária”, como “atividade reflexivade análise e julgamento”, “detentora de uma posição específica no quadro da literatura”9.

O contato que Benedito Nunes desde jovem estabeleceu com HaroldoMaranhão, Max Martins, Mário Faustino e Ruy Barata, testemunha um profícuodiálogo entre literatura e crítica, e remonta aos seus primeiros escritos comocrítico, neste livro representados pelo ensaio O anjo e a linha, de 1952, sobre osegundo livro de Ruy Barata, A linha imaginária. Em 1948, aos 18 anos, BeneditoNunes publicou um ensaio denominado Posição e destino da literatura paraense10,afirmando a identidade da nova geração de intelectuais, poetas e escritores, que seformava no seio do Suplemento Literário da Folha do Norte, dirigido por HaroldoMaranhão. No final de 1950, sob o pseudônimo de João Afonso, Benedito Nunesescreverá a primeira crítica sobre os seus amigos poetas, intitulada Dez poetasparaenses11, dentre eles Ruy Barata, Max Martins, Mário Faustino e HaroldoMaranhão (que, à época, como Benedito Nunes, escrevia poesias). Esses autorespertencem tanto à biografia quanto à bibliografia de Benedito Nunes, que osestudou e divulgou, organizando, prefaciando, resenhando os seus livros, muitosdos quais interveio partejando as idéias que os originaram. Por isso, um textocomo Max-Martins, mestre-aprendiz, assim como O nativismo de Paes Loureiro,constituem importantes capítulos da história intelectual paraense, protagonizadae pensada por Benedito Nunes. Na seção Lembranças, as crônicas de BeneditoNunes ajudam a reconstruir aspectos do passado de uma das gerações deintelectuais paraenses mais férteis do século 20, através de micro-relatosmemorialísticos que sublinham momentos da vida de Benedito Nunes ao ladode, por exemplo, Francisco Paulo Mendes, Haroldo Maranhão, Mário Faustino,Max Martins, Alonso Rocha, Jurandir Bezerra, Anunciada Chaves e ArthuzCezar Ferreira Reis.

Como se lerá em Francisco Paulo Mendes, para além da crítica literária, o grupode amigos de que Benedito Nunes fazia parte, reunidos em torno do SuplementoLiterário da Folhe do Norte, teve de Francisco Paulo Mendes uma de suas

6 NUNES, Benedito. Conceitode forma e estrutura literária.Em:_____. A Clave do poético.Organização e apresentaçãoVictor Sales Pinheiro. São Pau-lo: Cia das Letras, 2009. (noprelo)7 NUNES, Benedito. Críticaliterária no Brasil, ontem e hoje.Em:_____. A Clave do poético.Organização e apresentaçãoVictor Sales Pinheiro. São Pau-lo: Cia das Letras, 2009. (noprelo)8 FRYE, Northrop. O caminhocritico. São Paulo: Perspectiva,1973. p.12.9 COUTINHO, Afrânio. Acrítica literária no Brasil – 1. Em:_____. Crítica e Poética. 2ª ed.Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira. 1980. p. 83.10 NUNES, Benedito, Posiçãoe destino da literatura paraense.Belém: Suplemento Literárioda Folha do Norte, n.60, 01/01/48.11 NUNES, Benedito (sob opseudônimo de João Afonso).Dez poetas paraenses. Belém: Su-plemento Literário da Folhado Norte n. 164, de 31/12/1950.

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influências mais marcantes, pela atenção que o grande professor concedia àliteratura, elevada à dimensão de reveladora da realidade mais profunda dohomem, individual e socialmente considerado. Como lembra Benedito Nunesna crônica Devoção à poesia, para o professor Mendes, “a literatura era poesia, e apoesia maneira de sentir e pensar, como descobrimento da vida na linguagem”. Esta forçapensante da literatura influi decisivamente na interpretação de Benedito Nunesda realidade amazônica, refletida e absorvida pela literatura que a desvela. Defato, como mostra Paul Ricoeur, uma das fontes principais do pensamentohermenêutico de Benedito Nunes,

“a ficção é o caminho privilegiado da descrição da realidade, e a linguagem poética é aquela que,por excelência, opera aquilo que Aristóteles, refletindo sobre a tragédia, chamava de mimesis.A tragédia, com efeito, só imita a realidade, porque a recria através de um mythus, de uma‘fábula’, que atinge sua mais profunda essência.”12

Assim, considerando o modo próprio de pensamento da ficção - “odistanciar-se da realidade imediata, que a nega para recuperá-la esteticamente”13 -, a análisede Benedito Nunes de Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro, é emblemáticasob dois aspectos centrais de sua crítica a autores paraenses, a atenção à“incorporação literária de aspectos da realidade amazônica” e a universalidade buscadana literatura regional. Benedito Nunes nota que neste romance “a história, comoprocesso social e político, entrama-se à história como poesia e é por esta interpretada”, pois“a ficção toma pé na realidade e a ela se volta reflexivamente para compreendê-la”. Aoatingir a essência profunda da realidade, a que se refere Ricoeur, a narrativa deBenedicto Monteiro eleva-se à dimensão mítica, por plasmar a essência da vidae do tempo da cidade de Alenquer, “espécie de microcosmo do interior da Amazônia”aberto à universalidade do macrocosmo que o envolve e condiciona. Segundo BeneditoNunes, nesta composição épica, a cidade se reveste de uma “função exemplarista”,proporcional à força arquetípica que alcança um dos personagens principais doromance, o caboclo Miguel,

“homem enraizado à terra, e através de cuja visão, indissociável das peculiaridades da fala local,descobrimos os elementos da Natureza, da cultura e do trabalho, qualificados numa perspectivapenetrante que os desveste (às vezes tão-só pela força poética da nomeação, da repetição e daenumeração) da viciosa retórica que lhe impôs um paisagista serôdio, para realçar a invasorapresença das coisas e a dureza da condição humana”. (Recensão crítica de Verde Vagomundo,de Benedicto Monteiro)

Na análise da literatura regional, importa-lhe as obras que, como VerdeVagomundo, souberam romper “com as limitações do regionalismo”, integrando, “numanarrativa universalmente representativa, o mais característico e o mais peculiar tantodo meio físico e cultural quanto do estado das relações humanas, inclusive sociaise políticas”. Esta universalidade, continua Benedito Nunes, torna uma obra“representativa do regional na medida em que o vincula ao nacional e ao mundial, e auniversalidade concreta dos vários contextos – lingüísticos, sociológicos, religiosos, políticos”.(Recensão crítica de Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro)

12 RICOEUR, Paul. A funçãohermenêutica do distanciamento.Em: _____. Hermenêutica e ideo-logias. Organização, tradução eapresentação Hilton Japiassu.Petrópolis: Vozes, 2008. p.66-6713 NUNES, Benedito. Macha-do de Assis e a filosofia. Em:______. No tempo do niilismo eoutros ensaios. São Paulo, Ática,1993. p.131

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No âmbito do debate sobre o movimento regionalista da literaturamoderna brasileira, Benedito Nunes acolheu a noção de transregional com queAntonio Candido caracterizou a universalidade da obra de Guimarães Rosa, quetranscende a região14, “graças à incorporação em valores universais de humanidade”, o que“transforma a nossa realidade particular brasileira em substância universal”15. Desde osprimeiros e seminais ensaios de O Dorso do Tigre, a camada metafísica e mitopoéticada obra de Guimarães Rosa será um dos temas mais estudados por BeneditoNunes16, que, com esta mesma noção filosófica de universalidade transregional, seaproxima da literatura regional da Amazônia.

No importante ensaio Literatura e cultura de 1900 a 1945 – panorama paraestrangeiro, Antonio Candido nota que “a literatura contribuiu com eficácia maiordo que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemasbrasileiros”17; e que “a dialética do localismo e do cosmopolitismo” inspirou acadência “da nossa vida espiritual”, “por meio da tensão entre o dado local (que seapresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (quese apresentam como forma de expressão)”18. Segundo Benedito Nunes, o sucesso dasíntese, superadora do antagonismo dialético do regional e do universal, operadapor Benedicto Monteiro reside na linguagem adotada pelo personagem arquetípicode Verde Vagomundo, Miguel.

“Nele, o modo de ser e o modo de falar acham-se enraizados, com a visão das coisas correspondentes,a uma forma de sentir e valorizar a existência pelo ato de narrá-lo oralmente, de transformá-lo em matéria de múltiplas histórias contadas que se entrelaçam.” (Resenha crítica de O Carrodos Milagres, de Benedicto Monteiro)

Descerrando o mundo nativo amazônico, o personagem Miguel, por ter – naesteira do jagunço Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas - o “seu modo de ser radicadona linguagem”, atinge altitude arquetípica, para Benedito Nunes, sem recair numa“súmula abstrata do homem da Amazônia, como paradigma de caboclo”, recorrentedeturpação do autêntico universalismo. Antonio Candido mostra, em A literaturae a formação do homem, que “o regionalismo estabelece uma curiosa tensão entre tema elinguagem”, contorcendo o autor que se abastece da experiência local, porém aexprime numa linguagem dela distanciada. Pois, se, por um lado, “o tema rústicoo direciona para uma linguagem inculta e cheia de peculiaridades locais”, poroutro, “a convenção normal da literatura, baseada no postulado dainteligibilidade” o retém numa “linguagem culta e mesmo acadêmica”, que lhedissolve a vivência local na generalidade das fórmulas abstratas19.

Como os de Benedicto Monteiro, os romances de Dalcídio Jurandirtambém operam a coerente síntese do regional e universal, pautado no equilíbrio deuma linguagem que absorveu as tendências linguísticas populares sem recair naideológica dualidade de notação da fala, que objetifica o exótico e reforça o caráterdistanciado e projetado que o estereotipa - procedimento comum no primeiroregionalismo brasileiro, como nota Antonio Candido20. Segundo Benedito Nunes,um romance como Passagem dos inocentes, de Dalcídio Jurandir, requalifica a narrativapela linguagem, pela “adesão da voz de quem narra à fala dos personagens, o que leva aum grau máximo de aproximação o ato de narrar e a maneira de ver e sentir o mundo”(Dalcídio Jurandir : as oscilações de um ciclo romanesco)

14 CANDIDO, Antonio. Notasde crítica literária – Sagarana -1946. Em: _____. Textos de in-tervenção. Seleção, apresentaçãoe notas de Vinicius Dantas. SãoPaulo: Ed.34, 2002. p.183-189.15 CANDIDO, Antonio. NoGrande sertão - 1956. Em:_____. Textos de intervenção. Se-leção, apresentação e notas deVinicius Dantas. São Paulo:Ed.34, 2002. p.190,192.16 Cf. NUNES, Benedito, Odorso do tigre. São Paulo: Pers-pectiva, 1969 (3ª ed.; Ed.34,2009, no prelo); ________Literatura e Filosofia - GrandeSertão: veredas (em: LIMA, LuizCosta. (org.) A teoria da literatu-ra em suas fontes. Vol.1. 3ª ed.Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2002. pp. 199-219);________. A matéria vertente(em: Seminário de Ficção mi-neira II. Conselho Estadual deCultura de Minas Gerais. BeloHorizonte, 1983. pp. 09-28.);________ O mito em GrandeSertão: Veredas (em: Scripta –Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e doCentro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC/Minas.Belo Horizonte, vol.2, nº 3,p.33-40, 2ºsem., 1998.); e______ De Sagarana a GrandeSertão: veredas (em: ______ Cri-vo de papel. São Paulo: Ática,1998. Pp.-247-262.)17 CANDIDO, Antonio. Litera-tura e cultura de 1900 a 1945. Em:_____ Literatura e sociedade. 9ªed. rev. Rio de Janeiro: Ourosobre azul, 2006. p.139-140.18 CANDIDO, Antonio. Litera-tura e cultura de 1900 a 1945. Em:_____ Literatura e sociedade. 9ªed. rev. Rio de Janeiro: Ourosobre azul, 2006. p.117.19 CANDIDO, Antonio. A lite-ratura e a formação do homem. Em:_____. Textos de intervenção. Se-leção, apresentação e notas deVinicius Dantas. São Paulo:Ed.34, 2002. p.87.20 CANDIDO, Antonio. A lite-ratura e a formação do homem. Em:_____. Textos de intervenção. Se-leção, apresentação e notas deVinicius Dantas. São Paulo:Ed.34, 2002. p.89.

da palavra 201

Esteticamente impactado por Grande Sertão: Veredas, que despertou neleas mais recônditas potencialidades de sua linguagem, Dalcídio Jurandir exploravivamente o “imaginário linguístico da região”, investindo na autenticidade dafala dos personagens, pelo uso de termos locais ou regionais e expressões coloquiais,metamorfoseando a língua em respeito à “realidade humana, social epoliticamente à qual se ata”. (Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco).Filosoficamente consciente de que “a linguagem é um modo de ser, de sentir, de agir”,na primeira resenha que escreveu sobre Belém do Grão Pará, de Dalcídio Jurandir,publicada em 1961 no jornal O Estado de São Paulo, Benedito Nunes reforça opoder da linguagem de transfundir, mais do que a estilização folclórica da culturaregional, o modo de ser belenense:

“Mas a recriação poética de Belém, quer como paisagem, quer como meio social– os dois aspectos formando uma só realidade – para exprimir o que ela tem detípico, de característico, de concreta universalidade, baseia-se no aproveitamento daspeculiaridades linguísticas regionais. Os modismos, locuções e vocabulários privativosde consumo local, além da forma sintática que a fala nortista adotaespontaneamente, permitiram, melhor do que outros aspectos mais estabilizados emais conhecidos da cultura regional, já em estado de folclore, penetrar na psicologia dopovo e na sua maneira de interpretar a vida.” (Belém do Pará)

Benedito Nunes também considera universal o nativismo de Paes Loureiro,que sorveu a substância do regional para esculpir na linguagem poética “umavisão amazônica do mundo”. Herdeiro da primeira geração modernista paraense,liderada por Bruno de Menezes, Paes Loureiro explora o imaginário amazônicolocal para elevá-lo poeticamente à dimensão perene do mito, exprimindo ouniversal humano da cultura nativa, desvelando a humanidade da várzea e da floresta.Mas, para tanto, o poeta precisou enraizar a sua linguagem nesta seiva local quea nutre, “a partir do uso regional da língua portuguesa, aproveitando-lhe o sumodas peculiaridades léxicas”. (O nativismo de Paes Loureiro)

Se não é o critério localista que concede valor às obras literárias, tampoucoserá o critério nacionalista que o originou, sob risco de restringir a liberdade estéticade imaginação do autor a uma temática pré-estabelecida, seja a região ou a naçãoque o cerca, o beco que não sai do beco e se contenta com o beco, como dizia Mário deAndrade. Além de transregional, o universalismo de Benedito Nunes aponta tambémpara o transnacional, noção com que conclui a extensa e erudita monografiaHistoriografia literária do Brasil21. Com efeito, Machado de Assis soube arrematar,com o refinamento que lhe é peculiar, o debate oitocentista em torno da críticaromântica, no célebre ensaio Instinto de Nacionalidade, que permanece um dosmanifestos maiores da inteligência universalista brasileira. Diz Machado de Assis:

“Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmentealimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tãoabsolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimentoíntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotosno tempo e no espaço.”22

21 NUNES, Benedito. Histori-ografia literária do Brasil. Em:______. Crivo de papel. São Pau-lo: Ática, 1998, p.245-622 ASSIS, Machado. Instinto denacionalidade – Notícia da atualliteratura brasileira, 1873. Em:COUTINHO, Afrânio (org.)Caminhos do pensamento crítico.Vol.I. Rio de Janeiro: Ed. Ame-ricana, Prolivro, 1974. p.345.

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Historiador, teórico e crítico literário, Benedito Nunes compreende que aquestão da identidade literária nacional, mesmo que formalmente superada aproblematização da independência e da autonomia da literatura brasileira,permanece nas ramificações historiográficas que resultaram de seu “campometafórico”:

“Tal ‘campo metafórico’ espraiada no Indianismo, no Regionalismo e em outras variantes,localistas e particularistas, do nacional, pertence ao conjunto simbólico e valorativo de alcanceideológico e político chamado Cultura Brasileira, com o qual confina a Historiografia literária,mas que a própria Historiografia literária contribuiu para formar.” 23

Desse modo, a Historiografia literária de Benedito Nunes, consciente dopapel intelectual que desempenha no contexto da formulação da noção deCultura Brasileira, tronco de que se divisa a Paraense, seguirá a exigência deMachado de Assis, e não exigirá dos autores paraenses temas locais, regionaisou nacionais, antes valorizará o alcance universal dos autores que souberam, aexemplo de Ruy Barata, Mário Faustino e Max Martins, elaborar poeticamentetemas perenes, como o amor e a morte, a partir do diálogo com a tradição culturaldo ocidente.

Na mesma direção transnacionalista, Jorge Luis Borges lembra, no lúcidoensaio El escritor argentino y la tradición, que não há camelos no Alcorão; a ausênciade “cor local” no livro árabe por excelência não o torna menos autêntico, comoShakespeare não se distanciou de seu espírito inglês por compor Hamlet, um temadinamarquês, ou Macbeth, um tema escocês. O que diz Borges do caráterrestringente do nacionalismo argentino vale para caracterizar a transnacionalidadeda historiografia literária de Benedito Nunes:

“los nacionalistas simulan venerar las capacidades de la mente argentina pero quieren limitar elejercicio poético de esa mente a algunos pobres temas locales, como si los argentinos solo pudiéramoshablar de orillas y estancias y no del universo.”24

Borges reivindica o direito dos argentinos, dos sul-americanos em geral,de herdar toda a cultura ocidental, posto que ela lhes pertence; sem nenhumaimposição nacional empobrecedora, devem pensar que o seu patrimônio é o universo eensaiar todos os temas. Estudioso do ideário estético modernista, tanto do brasileirocomo do paraense, Benedito Nunes acrescentaria ainda: devemos devorarcanibalmente a cultura ocidental, digerir-lhe todos os temas e abrasileirá-los pela“originalidade nativa” que os torna também nossos25, como fez Paes Loureiro,que, “no estilo da antropofagia oswaldiana”, “digeriu o universal humano dacultura nativa” (O nativismo de Paes Loureiro). Este regime de assimilação devorativada cultura européia equalizou, segundo Benedito Nunes, a dialética do particulare do universal na literatura brasileira, prescrevendo o debate nacionalista, e oregionalista por extensão, de afirmação dos temas e modos expressivos locaisem detrimento daqueles legados pela cultura ocidental26.

É com este espírito universal, antropofágico, que Ruy Barata procederá, em ONativo do Câncer, ao repoetizar o regional, ligando a mitologia amazônica à grega(Apresentação de Antilogia), como Paes Loureiro, que o segue, numa “revivescência

23 NUNES, Benedito. Histori-ografia literária do Brasil. Em:______. Crivo de papel. São Pau-lo: Ática, 1998, p.24624 BORGES, Jorge Luis. El es-critor argentino y la tradición. Em:______ Discusión (1932), Obrascompletas I. Buenos Aires: Eme-cé Editores, 2008. p.321.25 NUNES, Benedito. Histori-ografia literária do Brasil. Em:______. Crivo de papel. São Pau-lo: Ática, 1998, p.243.26 NUNES, Benedito. Histori-ografia literária do Brasil. Em:______. Crivo de papel. São Pau-lo: Ática, 1998, p.243. Cf.______. Oswald canibal. SãoPaulo: Perspectiva, 1979.

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da tradição clássica”, em que figuras míticas, cristãs e pagãs, misturam-se comicamiabas e iaras, metáforas homéricas e virgilianas (O nativismo de Paes Loureiro),recurso poético anteriormente adotado por Mário Faustino (cf. A obra poética e acrítica de Mário Faustino). Universal também é Max Martins, na leitura de BeneditoNunes, ao elaborar uma erótica poética, que absorve aspectos do pensamentoerótico grego-platônico e oriental-budista, no que têm de comum, a noção dearte erótica como êxtase, passagem para além do objeto desejado, “tentativa de domação dotempo, eternização do instante” (Max Martins, mestre-aprendiz). É canibalesca a criaçãoliterária de Haroldo Maranhão, cujo romance O tetraneto del-rei figura o personagemTorto, que percorre “uma floresta bibliográfica tropical, antropofagisticamenteenxertada, (...) com versos de Mário Faustino, Camões, Carlos Drummond deAndrade e Fernando Pessoa.” (Recensão crítica de O Tetraneto del-Rei).

A abertura filosófica do pensamento de Benedito Nunes permite-lhe umaaproximação consistente de literaturas originadas do diálogo com outrasdisciplinas, como a de Mário Faustino, poeta e crítico literário, e HaroldoMaranhão, prosador e historiador. Para interpretá-las, o crítico precisa recolocá-las novamente no interior do diálogo que as originou, articulando a poesia e acrítica de Mário Faustino e a forma de narrativa ficcional que absorve a história,na literatura de Haroldo Maranhão.

O estudo dos romances de Haroldo Maranhão exigiu do crítico umaconsideração filosófica sobre o tema do entrecruzamento da História e da Ficção- a que Benedito Nunes já dedicara o ensaio Narrativa histórica e narrativa ficcional27,estudo relacionado ao seu notável livro O tempo na narrativa (Ática, 1988). Emromances como O tetraneto del-Rei e Cabelos no coração a história é “o suporte real”da ficção que sobre ela incide, recriando-a, dando-lhe “carne, copo e alma” “naconcretude da ação ficta desenrolada” (História e ficção). No caso específico deO tetraneto del-Rei, “verdadeira sátira menipéia”, gênero de Luciano e de Petrônio,de Swift e de Rabelais, o efeito cômico reside na parodística mimese verbal doestilo da escrita quinhentista, desconstruído e transformado a fim de suscitarexatamente “o foco de estranhamento do discurso narrativo, de que derivam, a um sótempo, o alcance satírico da obra e o caráter do largo espaço literário que elacria”. (Recensão crítica de O Tetraneto del-Rei). A base hermenêutica do pensamentode Benedito Nunes, que faz da sua crítica literária um “conhecimento interpretativodas obras”28, o conduz, renovadamente, à reflexão sobre as relações entre formade pensamento e forma de linguagem, para perceber o modo como a literatura relaciona-se com outras formas expressivas de ideias, estabelecendo constante conexãointerdisciplinar com as ciências humanas e com os estudos humanísticos29.

Com efeito, desde os seus primeiros estudos sobre a cultura no Pará, queremontam ao final da década de 50, Benedito Nunes nunca se limitou à análisedo fenômeno literário, mas a estendeu às outras produções culturais e a incluiuno contexto maior da vida intelectual do Estado. Como porta-voz da cultura noPará no cenário intelectual brasileiro, na nota Panorama cultural: 1959, da seçãoCrônica de Belém, com que estreou no jornal O Estado de São Paulo, BeneditoNunes observa o conjunto das produções culturais de sua cidade, registrando umaatenção sinóptica e panorâmica às diversas modalidades intelectuais e artísticas -jornalismo, literatura, pintura, teatro, cinema, antropologia, arqueologia, direito

27 Cf. NUNES, Benedito. Nar-rativa histórica e narrativa ficcio-nal. Em: ______. Ensaios filo-sóficos. Organização e apresen-tação Victor Sales Pinheiro. SãoPaulo: Martins Fontes, 2010.(no prelo)28 NUNES, Benedito. Literatu-ra e Filosofia. Em: _____. Notempo do niilismo e outros ensaios.São Paulo: Ática, 1993. p. 197.29 Cf. NUNES, Benedito. Pro-legômenos a uma crítica da razãoestética. Em: ______. A clave dopoético. Organização e apresen-tação Victor Sales Pinheiro.São Paulo: Cia das letras, 2009(no prelo)

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e história –, como o fará, sucessivamente, em diversas ocasiões, culminando noensaio verdadeiramente enciclopédico Do Marajó ao arquivo: um breve panoramada cultura no Pará, cujo título inspira o do presente livro. Ainda na seção Crônicade Belém, como crítico literário, Benedito Nunes analisa os livros de DalcídioJurandir e Max Martins, e como humanista de interesse difuso, estuda as pesquisasarqueológicas de Evans, Megger e Hilbert sobre a cerâmica marajoara e ageografia filosófica de Eidorfe Moreira. A partir de então, Benedito Nunesestabelecerá um profícuo diálogo, mediante a prática da interdisciplinaridade,com intelectuais diversos, principalmente com os estudiosos das ciênciashumanas, como o historiador Aldrin Figueiredo, com quem assina o ensaio Luzese sombras do iluminismo paraense; na crônica Pará, capital Belém a interlocução écom Vicente Salles, Roberto Santos, Fábio Castro, Eidorfe Moreira, AugustoMeira Filho e Ernesto Cruz.

Como se lerá no ensaio Universidade e regionalismo, em que Benedito Nunesreflete sobre a crise da universidade, a prática da interdisciplinaridade apresenta-secomo reação teórica à crise epistemológica no interior das ciências, consoante a“época da suspeita”, de que fala Ricoeur, “suspeita do conhecimento totalizadorabrangente”. Se “nenhuma ciência constitui mais um universo isolado deconhecimento”, essa prática é

“o confronto dialogal, crítico e interpretativo, (...), entre disciplinas, cujas fronteiras movediças,instáveis, convidam ao debate de conceitos, no esforço de entrosá-los teoricamente para melhorcompreendê-las e para melhor aproveitar-lhes os benefícios da aplicação prática que geram.”(Universidade e regionalismo)

Consciente não só da necessidade mas da fertilidade de tal atitudeintelectual, o ensaio de Benedito Nunes sobre o pensamento de Armando DiasMendes, em À margem do livro, atesta a consistência e a eficácia deste “diálogocrítico e interpretativo das ciências humanas” e o enraizamento dos dois pensadores naregião Amazônica, pensada a partir da diversidade e universalidade doconhecimento científico e filosófico. Neste texto, a questão ecológica, articulada,inicialmente, no contexto geopolítico-econômico do desenvolvimento regionalpor Armando Dias Mendes, é refletida na sua dimensão filosófica por BeneditoNunes, a partir da questão ontológica da técnica, esquecimento do ser resultanteno poder devastador da Terra, tal como proposta por Heidegger. A “conversa”é intermediada pelo pensamento de Hans Jonas, cujo princípio responsabilidade,pautado na dimensão ecológica, aproxima e interliga o problema ontológico e oproblema do desenvolvimento, acrescentando-lhes a problemática ética, comumaos dois pensadores. O esforço intelectual de Armando Dias Mendes de articularum pensamento econômico-ecumênico coerente que supere os recorrentessimplismos do desenvolvimento sustentável é retribuído por Benedito Nunes comum comentário filosófico penetrante, que aponta os impasses do biocentrismo edo antropocentrismo, e sublinha o valor e o alcance do humanismo ecológico de seuinterlocutor.

No diálogo que Benedito Nunes entretém com os intelectuais paraenses,ele marca a sua posição de filósofo, atento aos fundamentos epistemológicos das

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ciências humanas. Interessa-lhe ressaltar as diferenças cognitivas das disciplinas,o alcance de cada olhar sobre o objeto estudado. Assim, sabe que um antropólogocultural como Raymundo Heraldo Maués, “fronteiriço das ciências humanas”entre o historiador e o sociólogo, não considera os fenômenos puros, estudando areligião sob o foco sociológico e político do conflito grupal, no que se distancia do filósofofenomenólogo que busca definir a essência do religioso (Apresentação de Uma outrainvenção da Amazônia). No caso da análise da geografia filosófica de Eidorfe Moreira,Benedito Nunes aponta para uma possível contradição epistemológica, porperceber o influxo de certa tendência romântico-idealista no seio do seu realismometodológico, uma vez que o pensador geógrafo encara “o amor e o sentimentopátrio como forças telúricas” e admite “uma correspondência objetiva entre osestados de ânimo e os aspectos da paisagem”. (Uma concepção geográfica da vida).Na nota crítica à edição das obras completas de Eidorfe Moreira, BeneditoNunes retoma essa resenha, acrescentado, ainda, a capacidade do ensaísta “deelevar mesmo os temas locais, particulares, a um plano de universalidade culturale histórica”, infenso ao “prurido localista da pesquisa universitária de rotina nocampo das ciências humanas”, que se voltam diretamente à “realidade concreta”,esquecendo-se de relacioná-la ao “universal dos conceitos” (Nota crítica à obrareunida de Eidorfe Moreira).

No contexto da reflexão universalista de Benedito Nunes, esse “pruridolocalista”, de que exemplarmente se esquivou Eidorfe Moreira, é a perspectivaregionalista, presente também na formulação do pensamento teórico, enquanto“tendência que consagra o regional e não o universal, como medida de valor do conhecimento,da arte e da literatura” (Universidade e regionalismo). O conjunto de ensaios sobre acultura no Pará enfeixados neste livro demonstra a coerência da crítica culturale literária de Benedito Nunes, pautados na superação universalista da dialéticado localismo e do cosmopolitismo.

Além desta dimensão filosófica e literária, desde o início de sua intervençãointelectual no jornal A província do Pará, em 1957, a questão da condição dacultura no Pará é relacionada à questão econômica de sua subsistência e suaintegração no contexto da sociedade. O diagnóstico cultural de Benedito Nunes,no final da década de 50, sobre a atividade intelectual na Amazônia demonstrauma impressionante atualidade:

“Falta-nos vitalidade cultural, simplesmente porque nos falta vitalidade econômica.O trabalho intelectual puro, em nosso meio mais do que no resto do país, nãopode representar atividade profissional efetiva, garantida economicamente e nãopode alcançar também, significação social. A literatura e a arte são quase proibitivasentre nós. E os que se dedicam a elas, parecem escarnecer da miséria coletiva,distanciando-se da maioria, que tolera essas ocupações inusitadas a título decapricho individualista e ócio domingueiro.” (Inventário e Planejamento)

Não só o isolamento social e a falta de estrutura econômica condizente,também a desagregação dos intelectuais entre si é apontada por Benedito Nunescomo óbice ao desenvolvimento da cultura letrada na Amazônia.

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“Estão [nossos literatos e artistas] isolados, disseminados, cada qual sonhandocom seu talento, numa existência solipsista a que falta diálogo, a comunicação, adivergência, a união e a guerra fraterna. (...) Vivem todos extrativamente, dacolheita rala, ao Deus-dará, improvisando e adivinhando. (...) As tentativasfrustradas, a desesperança, a certeza prévia do esforço, as ideias, o talento e acoragem serão sacrificados pela vida vegetativa, adormecem a sensibilidade eretardam a inteligência. A desagregação não é aqui um acidente, mas quase umimperativo.” (Inventário e Planejamento)

O insulamento social, fator de marginalismo e efemeridade das atividadesculturais na Amazônia, é marcado por um amadorismo que obsta oreconhecimento de que

“a verdadeira consciência artística precisa de cultura autêntica para desenvolver-se. O talento, como dote pessoal, não basta. É preciso adubá-lo com ideias,reforçá-lo com o indispensável apoio de subsídios culturais onímodos” (Inventárioe Planejamento)

Neste texto Inventário e planejamento, de 1957, a articulação do sentidouniversal da cultura já norteia a reflexão de Benedito Nunes:

“Ele [o intelectual] precisa medir-se com as exigências de sua época, pôr-se emdia com o movimento geral das ideias, com os problemas sociais, filosóficos,estéticos e mesmo científicos. Essa atualização é imprescindível para que a suaatividade tenha um sentido universal. Atualização e tradição não se opõem, masse completam. Atualização significa renovar e recriar, sob novas formas, o quede melhor nos legou a tradição e o que o passado tem de imperecível.” (Inventárioe Planejamento)

A atitude de Benedito Nunes, porém, nada tem de derrotista. O seudiagnóstico cultural ganha ainda mais consistência se pensarmos que elecolaborou ativamente para transformar esse quadro, na intensa atividade deformação que desenvolve como professor e escritor, num esforço pessoal detransmitir uma cultura universal, sobretudo literária e filosófica, compartilhandoa erudição que persegue de forma autodidata, desde jovem. A sua militânciacultural direcionou-se também para a consolidação de um ambiente universitário queformalizasse a atividade intelectual, assegurando-lhe “vida objetiva”, à parte dosindivíduos que constituem as instituições. (Panorama cultural: 1959). Em 1955, BeneditoNunes será um dos fundadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras daUniversidade do Pará (Cf. Anuário de literatura brasileira – Pará), posteriormentefederalizada também sob sua iniciativa, em 1974, ano da fundação do Curso deFilosofia da Universidade Federal do Pará.

Em todas as intervenções culturais de Benedito Nunes pode-se notar osentido universalista que o inspira. No manifesto, substancialmente redigidopor Benedito Nunes, do Norte Teatro Escola, grupo amador de autodidatasfundado em 1957, desponta a inclinação transregional e transnacional, anteriormentereferida:

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“O fato de sermos provincianos no sentido geográfico não nos obriga a que o sejamos também nosentido cultural. Daí porque pretendemos ligar o nosso teatro ao de todas as épocas e ao de todosos povos (...). Não somos teatro regional e não nos julgamos acorrentados pelo dever estrito delevar à cena os textos de autores locais ou mesmo nacionais, (...) Bairrismo e nacionalismo sãoincompatíveis com a arte. Distinguimos apenas entre os bons e o maus autores.”30

Assim, o Norte Teatro Escola, liderado por Maria Sylvia Nunes e AngelitaSilva, encenará tanto João Cabral de Melo Neto quanto Sófocles, destacando-senos dois Festivais Nacionais de Teatros de Estudantes de que participou (cf. FranciscoPaulo Mendes, para além da crítica literária). Para elevar o nível da cultura teatrallocal, o Grupo era também uma Escola, que almejava formar intelectualmente osinteressados, não só atores, autores ou diretores, mas o público em geral, pelanecessidade premente de dar ao teatro a sua “verdadeira função”: “um meio de educara sensibilidade e de afirmar a inteligência, para que a primeira se torne mais receptiva e asegunda mais esclarecida”, “incompatível com o mau gosto, a improvisação”, dos que ovêem como mera “distração”31. Em 1963, na gestão do reitor José Silveira Neto, doNorte Teatro Escola surgirá a Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará,liderada por Maria Sylvia Nunes, uma de suas fundadoras e mais atuantesprofessoras e coordenada, até 1967, por Benedito Nunes.

A questão da universidade, correlata à da universalidade do conhecimento científicoe filosófico, pode ser considerada o tema que catalisa as intervenções culturais deBenedito Nunes selecionadas no presente livro. Em 1959, recém fundada aFaculdade de Filosofia da Universidade do Pará, ele ponderava que “ainda nãose compreendeu a significação pedagógica da Universidade, que, entre nós, pouco tem deuniversal e nada de sua amplitude educacional.” Os intelectuais que a compõempraticam, segundo ele,

“um extrativismo mental deliqüescente, que não os predispõe sequer a explorar,de maneira autêntica, os motivos regionais, abundantes e quase que inteiramenteinaproveitados, nem os capacita para vôos altos e universais.” (Panoramacultural: 1959)

Quase 50 anos depois, em 2007, no discurso Universidade e IdentidadeBrasileira, Benedito Nunes lembra, mais uma vez, que

“A Universidade Federal do Pará é uma universidade regional. Regional mas nãoregionalista. O regionalismo, que tornaria particularidades sociais e culturais domeio normativas e reguladoras, como a fala, o canto ou o vestuário, é umademarcação social e cultural limitadora, oposta ao âmbito universal a que aUniversidade pertence pela sua própria natureza.” (Universidade e Identidade Brasileira)

No Discurso do quinto aniversário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras daUniversidade do Pará, em 1960, Benedito Nunes ressalta que a Faculdade deFilosofia, é responsável pela formação filosófica da cultura, consoante “o espíritouniversitário” de investigação permanente, de inquietação dialética, deinsatisfação intelectual e congregação dos saberes. É através desse “espíritofilosófico” que a Universidade “tornar-se-á verdadeiramente universal” e terá“existência cultural”.

30 Manifesto Por um Teatro Es-cola no Pará, assinado por Be-nedito Nunes, Maria SylviaNunes, Angelita Silva, Marga-rida Schivazappa, CandidoMarinho Rocha, Claudio deSousa Barradas, Acyr Castro,Rui Barata, Lindanor Celina,Durval Machado, AdelinaCruz, Francisco Paulo Men-des, Loris Pereira, Wilson Pena,Alice Teles, Maria Helena Co-elho e Silvia Mara Brasil. Be-lém: Suplemento Dominical Le-tras e Artes do jornal A provínciado Pará, 10/03/1957.31 Manifesto Por um Teatro Es-cola no Pará. Belém: SuplementoDominical Letras e Artes do jor-nal A província do Pará, 10/03/1957.

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A universalidade atingida na Universidade pelo “espírito filosófico” é aque a insere na tradição cultural que lhe dá historicidade e lhe revela o carátersempre problemático da cultura, pois “os problemas filosóficos são, certamente, osproblemas eternos do homem; mas eles se refletem no espelho temporal de umaépoca.” Para Benedito Nunes, sem o conhecimento dessa tradição filosófica, aUniversidade não alcança a sua função de “escola do pensamento”, pois precisamosconhecer a tradição filosófica viva “para não perdermos a continuidade da própria elaboraçãofilosófica, que somente pode prosseguir hoje por aquilo que se pensou e concebeu ontem.”(Discurso pronunciado na sessão comemorativa do quinto aniversário da Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras da Universidade do Pará - 1960)

O espírito filosófico anima a Universidade, dando-lhe existência culturalpela “densidade existencial iniludível” da Filosofia, vivida pelos universitários numaatitude integradora de teoria e prática, que recupera o seu sentido original,vigorante entre os gregos, de

“investigação dinâmica e não disciplina estática, o eros do conhecimento, opensamento em atividade desdobrando as suas possibilidades conceptuais, edistendido, num esforço de assimilação, por sobre a trama da realidade natural ehumana.” (Discurso pronunciado na sessão comemorativa do quinto aniversário da Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Pará - 1960)

Assim, repudiando a superficialidade do funcionalismo pedagógico,“ornamental” e “vagamente educativo” do caráter e da inteligência dosestudantes, Benedito Nunes defende um autêntico humanismo universitário,segundo o qual a Filosofia torna-se cultura, enquanto “empenho em compreendera realidade e dar um sentido e direção à vida”.

“Fator ativo de cultura, a filosofia proporciona uma concepção das coisas, douniverso, do homem. Sem essa concepção, que provém do empenho conscientee crítico do homem para compreender a si mesmo e o universo, para expressare retificar as idéias e os valores que circulam na sociedade, para plasmar umasabedoria total diante da história e da vida, sem uma concepção semelhante, nãohá cultura.” (Discurso pronunciado na sessão comemorativa do quinto aniversário da Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Pará - 1960)

Mas uma reflexão sobre a Universidade, sabe o filósofo Benedito Nunes,não pode ser separada do contexto maior da crise da cultura, tema recorrenteem sua obra32. Em Universidade e regionalismo, conferência de 1999, o desafio daUniversidade Federal do Pará é pensada em quatro eixos, indissociavelmenteligados: o histórico (o surgimento da intelligentsia paraense), o epistemológico (a járeferida “a era da suspeita”), o institucional (os problemas político-econômicos) eo cultural (a massificação da sociedade pela indústria cultural). Neste últimoaspecto, o impasse da universidade é saber como reagir ao “controleuniformizador da opinião pública”, à “didática da superficialidade” engendradapela indústria cultural, massificadora da sociedade com seus “esquemas simplificadoresde conhecimento e a retórica de estilo publicitário”, que “põem em cheque tanto acultura erudita e a cultura popular” (Universidade e regionalismo). Se não há

32 Os seus ensaios sobre acultura foram reunidos emNUNES, Benedito. Modernismo,estética e cultura. Organização eapresentação Victor Sales Pi-nheiro. São Paulo: Ed.34. (noprelo)

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antídotos ao “cerco dos mídia”, Benedito Nunes reforça a importância da práticada interdisciplinaridade, como já visto, e de um programa consistente depublicações, pensadas a partir do espírito filosófico que recupere a força pedagógicada instituição universitária, ideia reiterada no recente discurso Universidade eIdentidade Brasileira, de 2007.

O humanismo de Benedito Nunes, tal como expresso no citado Discursode 1960, pelo alcance da noção de “espírito filosófico” nele elaborado, é umideal formativo, uma reação, no plano filosófico, à perpetuação das “paideias ocidentaissem efetividade”, que, como ele articula em Introdução à crise da cultura,

“subjazem no vazio ético da sociedade de consumo; entre a anomia permissiva e o conformismohedonístico do indivíduo massificado – intervalo onde os autoritarismos se reforçam e que osmeios técnicos de informação e comunicação ritualizam”33.

Desse modo, reagindo à ideologia do igualitarismo, mola propulsora damassificação educacional, Benedito Nunes, no discurso Quase um plano de aula,de 1998, insurge-se contra “o novo didatismo”, que muitas vezes disfarça a incompetênciae nega o elitismo próprio às Universidades:

“...pugnei contra o populismo reinante, a contrafação interna da democracia(quando não se tem democracia na sociedade, tenta-se recuperá-la intramuros)...Não pode a instituição universitária abdicar da escolha seletiva dos melhores;nesse sentido ela é elitista e sê-lo-á enquanto subsistir como Universidade.” (Quaseum plano de aula)

Outro ponto recorrente nas intervenções culturais de Benedito Nunes é anecessidade da prática vital da leitura na Universidade, pois sem ela “a instituiçãouniversitária perde a sua alma” (Universidade e regionalismo). Benedito Nunes nota,ainda, no recente discurso Universidade e Identidade Brasileira, de 2007, que aquestão da leitura está ligada ao programa editorial que atesta a “vida intelectualde uma Universidade”, que “pulsa, sobretudo, nas suas publicações, livros erevistas.” Como coordenador da edição da obra completa de Platão, traduzidapor Carlos Alberto Nunes, Benedito Nunes reforça, no discurso Quase um planode aula, de 1998, a necessidade de a Universidade Federal do Pará mantê-lasempre acessível, promovendo a sua constante reedição.

A importância de editoração de uma obra como a de Platão é extremamentesignificativa para Benedito Nunes no contexto da “sobrevivência de obras mestrasdo pensamento Ocidental e de sua cultura”, como sublinhará no Discurso dasessão comemorativa dos 40 anos do curso de Biblioteconomia da UFPA, de 2005. AUniversidade e sua Biblioteca devem reagir ao sempre iminente risco doesquecimento, do apagamento da História da nossa cultura, universal, nacionale regional. Não é, entretanto, só sobre os ombros das instituições que repousa aresponsabilidade de preservação do passado de uma cultura, cabe também aoFilósofo lembrá-lo e pensá-lo.

A presente antologia de Benedito Nunes, olhada em sua inteireza, constituiuma efetiva contribuição à reflexão sobre a cultura no Pará, e ganha também

33 NUNES, Benedito. Introdu-ção à crise da cultura. Em:______. No tempo do niilismo eoutros ensaios. São Paulo: Ática,1993. p.177

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uma dimensão de registro histórico do pensador sobre a sua realidade cultural.Se a cidade de Belém está “sob a ameaça de perder a sua própria identidadehistórica e cultural” - como adverte Benedito Nunes em Pará, capital Belém -, o“risco do apagamento dos ícones que guardam a sua memória” é extensivotambém ao seu patrimônio imaterial, literário, artístico e intelectual, igualmenteneutralizado pela indústria cultural. Com esta antologia, o filósofo BeneditoNunes, uma das inteligências universais brasileiras, relembra o vínculo daFilosofia com a Memória e a História numa época de exacerbadas rupturas com opassado, conservando um patrimônio cultural a não ser olvidado, mas estudadoe valorizado:

“Diante da diversidade das culturas, em nossa época de fastígio da ciência,como forma de conhecimento sob dominância tecnológica - época, também,de exacerbação das rupturas com o passado e de valorização ideológica dofuturo, como dimensão privilegiada do tempo – a Filosofia assume, entre outrasfunções modestas, o encargo hermenêutico de intérprete das heranças culturaise das modalidades de consciência histórica. (...) Tal como a poesia, de que seaproxima, a Filosofia tende hoje a lembrar o que não deve ser esquecido.”34

34 NUNES, Benedito. Filosofiae memória. Em: _____. Ensaiosfilosóficos. Organização e apre-sentação Victor Sales Pinhei-ro. São Paulo: Martins Fontes,2010. (no prelo)

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Talvez a presença do “vasto mundo verde”2, o arquipélago das águasamazônicas, há muito tempo aparentemente sem história e tempo, sensibilizoua disponibilidade do filósofo Benedito Nunes à escolha da questão ontológicado ser-no-mundo em Martin Heidegger. A ontologia e a metafísica estavam devolta no século XX. Depois do Idealismo Alemão com Kant, Fichte, Hegel; asegunda metade do século XIX - diante do desenvolvimento acelerado dasociedade moderna: tecnologia, metrópoles e ritmos “desnaturalizados” àpercepção humana (a questão da velocidade) - valorizou duas questões principaispara a vida moderna e pós-moderna: a historicidade e a temporalidade.

A respeito da primeira questão, encontramos a proposta de Wilhelm Dilthey(1833-1911) em vista à fundamentação das ciências humanas, diante dacientificidade das exatas, chamada também a ciência da razão histórica ou aconstrução do mundo histórico nas ciências humanas. Para a segunda proposta,a do conceito do tempo psicológico, encontramos a proposta de Henri Bergson(1859-1941): “duração” (“durée”). As duas tendências surgem de forma bemmarcante nos meados do século XX na Filosofia da Existência, no Marxismo daEscola de Frankfurt e, numa grande expressão filosófica, no pensamento deMartin Heidegger3.

A imprescindível temporalidade funda a subjetividade, constata BeneditoNunes, “o eu sou, o quem do Dasein [ser-aí], como ser-no-mundo” (NUNES1993: 11). E, depois de uma longa caminhada, atravessando toda a história dafilosofia e da arte, concluiu a sua Introdução á Filosofia da Arte (1962) com apergunta: “Abstração é deshumanização?” —·um balanço caracterizado peloprefixo “de” ou “des” — decomposição da realidade, destruição estética efilosófica, desvendamento do “Ser-aí” (“Dasein”), desconstrução dasubjetividade, depuração dos próprios sentimentos, desinteresse humano,

Da Floresta Negra aoVerdevagomundo –O Pensamento de Heideggerem Benedito Nunes1

Gunter Karl Pressler*

* Professor da UFPA

1 Trata-se da atualização dapalestra intitulada “OPensamento de Heideggerem Benedito Nunes” que foiproferida durante oColóquio “Alemanha naAmazônia”, no Núcleo deArte da UFPA, 26 denovembro 1998.

2 Gilberto Gil no seupronunciamentocomoMinistro de Cultura, emMacapá (AP), no dia 28 deabril de 2008. O início dafala: “Hoje estamos dandoum passo decisivo a fim deimpulsionar e ampliar aprodução e o acesso àcultura na Região Norte.Apenas juntos podemosromper com o jogoexcludente que, de um lado,priva o Norte do Brasil e,de outro, priva o Brasil doNorte. Uma região quecarrega não só umabiodiversidade rica eexuberante, mas umasemiodiversidade tambémrica e exuberante, precisazelar não só pela preservaçãode seu ambiente, mas pelapreservação de suas culturas.Das 180 línguas faladaspelos povos indígenas hojeno Brasil, cerca de 140 seconcentram na Região Norte.E pensar que há 500 anos, àsvésperas da conquista, ospovos indígenas do paísfalavam cerca de 1200línguas. Ou seja, de lá paracá, tivemos uma redução de85%. Isso é muito grave, éum crime. E o crimecultural pode ser tão danosoe irreversível quanto o crimeambiental. Sabemos que,quando morre uma língua,morre também uma cultura.Devemos todos passar acompreender a gravidadedessa situação e a nosempenhar pela valorizaçãoda extraordinária diversidadecultural que pulsa na regiãoNorte“ (grifado por mim).

3 Sobre a particularidade daobra Ser e Tempo, B.Nunesalerta o leitor: “esse livro,que se propunha a investigaro mais antigo dos problemasfilosóficos, pareciacompartilhar da tendênciapara o retorno à especulaçãometafísica que empolgououtros pensadores na décadade 20” (NUNES, 1992: 9).

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dessacralização e desumanização da arte, desgaste da presença da obra de arte,devastação da terra — um balanço que procura uma compreensão crítica doniilismo ativo; desembocando no pensamento do seu filósofo de escolha, MartinHeidegger, o filósofo da Floresta Negra, da terra escura e firme.

Heidegger levantou na década de 1930 aquela questão da temporalidadecom sua obra prima, mas inacabada: Ser e Tempo (1927) de uma maneira diferentede filosofar e marcante para toda a filosofia posterior. E, neste momento e nestaparticularidade, encontramos a sedução de pensar, explica Nunes: não estivesob o efeito do “encantamento mimético, produzido pelo vigor de invençõesverbais que atuam com a força de uma revelação misteriosófica para iniciados”(NUNES 1993: 7). A analítica do “Dasein” o desafiou; a prática meditantecristalizada como “passagem para o poético” (1986) seduziu o historiador dafilosofia e da estética e o crítico literário para “um novo tempo e para uma novaHistória: um pós-niilismo” (NUNES, 1993: 15).

Entretanto, a década de 1960 foi decisiva para a formação do pensamentode Benedito Nunes, gerou a sua Filosofia Contemporânea (1967) e fundamentou oseu estudo exemplar e significativo para toda crítica literária no Brasil, a suaabordagem filosófico-literária da obra de Clarice Lispector (1966 e 1973).O fascínio do fragmento, do inacabado, de certa contradição da obra Ser e Tempoque “voltando ao problema-mor da tradição filosófica, rejeitado ou neutralizadopelas correntes modernas, esse fragmento de uma obra segmentada revolveu aespeculação metafísica a que aparentava retornar” (NUNES 1992: 9), permaneceaté hoje. “O fenômeno primordial da temporalidade”, nessa investigação deHeidegger, reconhece Nunes, é “a questão do sentido do ser em geral” (NUNES1992: 10, grifo no original) e, com isso, seu gancho e a empolgação.

Benedito Nunes tornou-se o pensador de Heidegger no Brasil - na suaforma particular da apropriação crítica e autônoma. Ele não estudou filosofiana Alemanha (como pensei no primeiro momento), estudou em Paris com PaulRicoeur e Maurice Merleau-Ponty, fenomenólogos importantes do pensamentofrancês deste século. Isso sugeria uma leitura do pensamento heideggeriano pelarecepção deles, sabendo que A Carta sobre o Humanismo, de Heidegger, de 1946,influenciou significativamente a filosofia francesa do pós-guerra; influenciou eenganou no mesmo instante como Jürgen Habermas constata na sua crítica aJacques Derrida: “O homem como o ser para a morte, já viveu sempre em relaçãoao seu fim natural. Mas agora trata-se do fim da auto-compreensão humanística:na apatridade do niilismo não é o homem que vadia cego, mas a essência dohomem [...] Heidegger preparou a finalização de uma época que talvez no sentidohistórico-ôntico nunca termina” (HABERMAS 1985: 191).

Não pretendo comprovar se a influência de Heidegger em Nunes ocorreuatravés dos franceses ou não, apesar do fascínio do ponto de vista da teoria darecepção que é o meu campo de pesquisa: a formação da intelectualidadebrasileira (o pensamento de W.Benjamin no Brasil). No primeiro momento,sempre me coloco como leitor ingênuo no sentido de Hans Robert Jauss quefala dos três passos da leitura: “uma primeira leitura de percepção estética”, aleitura crítica de “interpretação retrospectiva” e a terceira leitura, “a histórica”

4 J.Amado apud Paulo Nunes2001: 67. D.Jurandir mesmocaracteriza seu estilo assim: “Eume fixo muito na linguagem,nos vagares da narrativa, noritmo lento das cenas”(Jurandir, 1996: 29).

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(JAUSS 1983: 305s), percebo que Nunes conduz o leitor brasileiro para oconhecimento histórico e sistemático de Heidegger; nesse instante, ele éhistoriador do pensamento de Heidegger em que o ápice é visto no livro Passagempara o Poético (1986). Uma aplicação desse pensamento, encontramos no campoda literatura brasileira, uma interpretação filosófica da estrutura narrativa acercado tempo: os livros sobre Clarice Lispector, no qual se vê originalidade do filósofoe crítico literário.

Benedito Nunes mergulha profundamente nas “Experiências do Tempo”(NUNES, 1992), como intitulou sua exposição para o ciclo de conferências“Tempo e História, Caminhos da Memória, Trilhos do Futuro”, em São Paulo,em 1992. Uma abordagem do tempo formada pela leitura de Heidegger e deoutros, um desdobramento ontológico que inclui passagens difíceis, bastantedifíceis pela abstração do visível, pela paradoxalidade e pela tautologia do assunto.O que aparece como tautologia tem uma consistência que conquista no sentidodo alemão “begreifen”, uma variação do verbo “greifen” (“pegar”; substantivo“Griff ”, “alça”, “ligado à mão”, “tocar”, “anfassen”). De outro lado, Nunesconsegue transmitir um assunto tão complexo e abstrato para o iniciante (oiniciante não só entendido como aluno da graduação universitário, mas também“iniciante” mais entendido como aquele profissional, professor e pesquisadorque, depois de longas viagens e passando por aperfeiçoamentos da formaçãoacadêmica, alcança, digamos assim, a instância socrática: fazer uma perguntasimples, compreender a questão a partir do início).

Introduzindo o tema tempo, Nunes cita o romance A Montanha Mágica, deThomas Mann, ilustrando essa questão do tempo na música. Tempo é matériaprima na música como elemento da narrativa. “É mais fácil compreender asligações do tempo com a música, por ser esta basicamente articulada segundomedidas temporais (ritmo, compasso e andamento ou velocidade), do que com asformas narrativas, nas quais se apresenta quase sempre de modo implícito”(NUNES 1988: 6). Jorge Amado, por exemplo, usa a metáfora do rio, do ritmolento e constante para caracterizar a maneira de narrar de Dalcídio Jurandir: “esseromance lembra-me certas músicas de órgão, lentas e profundas”4 e Paulo Nunesachou a expressão feliz e prometida, “Aquonarrativa” para a narrativa dalcidiana.No romance Chove nos Campos da Cachoeira, o tempo não é função determinada naestruturação da narrativa, o tempo é a narrativa, a narrativa é o tempo.

Entretanto, Benedito Nunes oferece no seu livro O Tempo na Narrativa(1988) uma leitura didática no melhor sentido. Didática como transmissãode um conteúdo complexo - não como transmissão de um significado de umhorizonte já limitado. Viajar no espaço e no tempo do pensamento humanonecessita, de vez em quando, parar e voltar à origem - não no sentido nostálgico,mas no sentido de (re)ligar-se as suas raízes e à origem da questão, como dizDavid Daiches: “Não tem a menor significação aprender uma série de respostas,quando não se conhece quais são as perguntas, a quem atender” (DAICHES,1967: 8).

E nesse sentido, Benedito Nunes é mestre. Ele sabe e sempre se faz ouvintee leitor (“guerreiro da lida”, usando uma expressão da poetisa bragantina Leila

5 J.G.Merquior 1980: 20. Asreferências dessa dicotomiaencontram-se em F.Strich,R.Jakobson e V.Zirmúnski.Prazer distinguia a magia“homeopática”: “confusão desemelhanças com causalidade,de magia ‘contagiosa’: confusãode contigüidade comcausalidade”.

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Nascimento, 1998: 15). Depois de uma abordagem crítica (crítica entendidacomo construtiva, como falar bem sobre uma obra, porque vale a pena levantaruma determinada questão a partir de uma determinada obra; criticar não é falarmal), após enfocar a questão do tempo e da temporalidade na obra de ClariceLispector, ele volta - digo isso com todo cuidado (lembro-me bem quando useia palavra “resgate” numa pergunta ao Benedito Nunes depois de uma palestrasobre Dalcídio Jurandir); Nunes volta ou retoma, então, à origem da sua terra-água, divulgando a obra desse autor exemplar (2006). A consciência individuale a sondagem introspectiva que Nunes detecta com grande mestria em ClariceLispector caracterizam o enfoque ontológico como sondagem existencial, o quetambém encontramos em Dalcídio Jurandir, pensamos no primeiro romance do“Ciclo do Extremo Norte”, Chove nos Campos de Cachoeira (escrito 1929, publicado1941). A sondagem existencial é mais de uma sondagem individual de Eutanázio,é a sondagem existencial de um grupo de seres humanos: os ribeirinhos dointerior do Pará, o amazônida, os habitantes da ilha de Marajó. Mas no modo deapreensão artística de Dalcídio Jurandir, reconheço a ligação dialética entre ocoletivo e o individual: o coletivo é o individual, concretiza-se no indivíduocomo indivíduo social e, com isso, depende do social que é uma questão dopoder econômico e político; o abandono do interior pelo dono do interior quevive na cidade grande, na metrópole.

O grito na obra de C.Lispector é o grito do vazio, no sentido existencial:o herói moderno/a heroína moderna até pós-moderna, “esvaziamento do sujeito”(1989: 156), diz Nunes; o herói perdido, a heroína perdida no vazio da existência,no absurdo, compreendida com a filosofia da existência de Jean Paul Sartre eAlbert Camus, não no sentido do “Dasein”, do “Ser-aí” de Heidegger. O gritona obra de Dalcídio Jurandir é diferente, é o grito existencial diante do vazio doabandono, do abandono do ribeirinho, o grito de um sujeito saindo da “existênciainautêntica, de Heidegger, mergulhada no anonimato coletivo” (NUNES 1969:131); o grito do absurdo existencial diante da pobreza produzida ali no interior(lembramos no final do romance: o Doutor Lustosa que compra toda terra emtorno da vila de Cachoeira; “ao vencedor as batatas”). O grito do absurdo diante,ou melhor, no meio do cheio, da presença, da fertilidade e da rica naturezapoetizada na imagem da Irene, “Irene ou o princípio do mundo”, oquestionamento:

Sim, como veio tão bela! Perdera aquela brutalidade, aquele riso, aquele desleixo.Veio calma na sua marcha para a maternidade. Eutanázio abriu mais os olhos.Ninguém ficou na saleta.Desejou passar a mão naquele ventre que crescia vagaroso como a enchente,com a chuva que estava caindo sobre os campos. Desejaria beijá-lo. Estava vendoali a Criação, a Gênesis, a Vida. Havia nela qualquer coisa de satisfeito, deprofundamente calmo e de inocente. Não dava mostra nenhuma de sofrimento,nem de queixa, nem de ostentação. Era como a terra no inverno. Seu ventrerecebeu o amor como uma terra. Como a terra dos campos de Cachoeira recebiaas grandes chuvas. Por isso ela já humilhava-o de maneira diferente (JURANDIR,1998: 399).

da palavra 215

O “fracasso da linguagem” de que fala Benedito Nunes em ClariceLispector não se encontra em Dalcídio Jurandir. O narrador é diferente, não éum narrador na primeira pessoa que envolve o leitor e si mesmo nummetadiscurso sobre a existência e sobre o meio desta expressão: a linguagem.“Fracasso” entendida no sentido filosófico, alerta Nunes, “de acordo com aconotação que lhe emprestam as concepções existenciais” (NUNES, 1969: 137).Nunes fala desse fracasso da linguagem dentro do tópico do “jogo dalinguagem” e destaca que esse jogo analisado na obra de Lispector recebe umadireção oposto em Guimarães Rosa que

apresenta um estilo de acréscimo: palavras novas, riqueza semântica, exploraçãodos veios arcaicos da língua, invenção de modalidades sintáticas etc. Assim oexigem a diversidade humana, a pletora do mundo, a generosidade da Natureza,a exaltação da realidade sensível no romancista de Grande Sertão: Veredas” [...]Guimarães Rosa alcança a transcendência através da afirmação do mundo, comtodas as suas pompas, com todas as suas contradições, religiosas, metafísicas eéticas” (NUNES 1969: 138).

Essa transcendência “assemelha-se mais a uma trans-descendência [emC.Lispector]. É uma espécie de mergulho nas potências obscuras da vida, atravésda negação do mundo” (l.c.) - e a narrativa de Dalcídio Jurandir? Eu me arriscoconstatar uma trans-descendência diferente, no meio do caminho entre Lispectore Rosa. O “fracasso” em Jurandir é o “fracasso” total da sociabilidade dalinguagem (“com perfeição e criatividade solitária ela se faz igual à próprianatureza; ela é vida, expressão das realidades externas e internas e não se dissolvenas coisas” (NUNES, 1969: 97)). O “fracasso” é o fracasso ainda mais dasociabilidade do próprio ser humano diante das condições inumanas do seuser-aí (“Dasein”).

Pode ser que nessa comparação entre Lispector, Rosa e Jurandirencontremos a diferença histórica: a década de trinta, na literatura brasileirafalamos da segunda geração dos Modernistas; Jurandir e Lispector estréiam nomeio da Segunda Guerra Mundial, Guimarães Rosa logo depois da guerra. Asegunda vez que a humanidade recebeu um golpe fatal e calou-se. A década detrinta caracteriza-se como um tempo de grandes mudanças sociais, políticas eculturais ainda num clima de grande esperança, mas uma esperança já atingidaem intelectuais sensíveis como Walter Benjamin que se concretiza commelancolia: a primeira frase do livro Chove nos Campos da Cachoeira expressaessa melancolia: “Voltou muito cansado. Os campos o levaram para longe. Ocaroço de tucumã o levara também, aquele caroço que soubera escolher entremuitos no tanque embaixo do chalé. Quando voltou já era tarde” (JURANDIR,1998: 117).

Depois da Segunda Guerra Mundial não tem mais melancolia. JoséGuilherme Merquior distingue as diferenças no uso da figura predominante daModernidade: a alegoria. A Modernidade no século XX sofre uma “metamorfoseda semiose literária [...] uma mudança dentro do mesmo regime semiótico”da alegoria que emerge “um outro tipo de alegoria” (MERQUIOR, 1980: 20).