revista apócrifa - online - primeira edição

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Primeira edição da Revista Apócrifa a título excepcional presente na íntegra nesta versão on-line. A Revista é composta por três secções: Dispersos de Poesia, Dispersos de Prosa e Tema. Contamos com as contribuições de António Albata, Carlos Manso, João Vicente, José Pedro Veiga, Ramalho o Benemérito, Tito e Vasco Macedo

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Page 1: Revista Apócrifa - Online - Primeira Edição

1APÓCRIFA

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1

Janeiro 2014

APÓCRIFA

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Quando um amigo nebuloso anuiu que seria uma boa ideia convoquei para minha casa seres pouco feéricos

Sentados à mesa tinham numa mão uma garrafa de vinho uma outra vazia uma outra vazia tinham numa mão um livro de poesia por ler uma outra vazia tinham todos numa mão pensado na morte e esse sentimento tinham-no agarrado com força examinando-o quando no fundo tinham estado examinando a outra mão que estava vazia a outra mão que estava vazia a mão que sempre estivera vazia

Leu-se poesia entenda-se erguemos as mãos sofregamente vazias ostentando o seu abandono o seu sinal de pertença o seu sinal de pertença à mesa em que nos sentámos

Uma vez selado o pacto dessa assombrosa revelação soubemos então que não havia palavra para a mesa e assim chamamos-lhe colectivo

3prefácio

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dispersos

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7

meu rumor de manhãs rarefeitas minha cor de leito de luz trespassado minha curva idêntica de silêncio a cada esquina. uma nova rua sedenta dos teus passos. um frio de espinha a crescer no teu seio o arfar insurrecto do estilhaço. do estilhaço.

minha permanência da distância carne branca em flor de sangue condensado olho retorcido a perder nos sulcos a linha que corta a fronte e o crente. não temas mais a força de um sol postiço sobre a rajada de um verso.

a minha palavra comeu do mel da podridão entreaberta a minha palavra comeu do mel da podridão entreaberta para secar de vez a saliva inane. ainda ouço os reflexos de prata cosidos entre os meus dentes mas calo-os com a chacina limpa

da língua.

CHACINA

João Vicente

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8

refreia a deriva com o dobrar contínuo dos olhos. // a mão que te estendi e que por si só furou os céus mais fundos até os picos dos pinheiros bravos os cumes inteiros de um ocidente vulcânico os cumes inteiros de um ocidente vulcânico essa mão aguarda a fé rebusca agora no perfume dos órgãos nas manhãs mais sombrias onde jazem perdidos pela estrada os corpos esventrados dos peregrinos essa mão que te cingiu a volta contínua aos rins dilacerados a volta contínua aos rins dilacerados a sucção dos frutos feita romance e nós dois só nós no meio da podridão feitos fendas inacabadas com tremores amargurados e esgares vítreos (somos a iconoclastia dos lagos). (somos a iconoclastia dos lagos).

a mão que te criou cristal cantante de aurora foi decepada (com três golpes inteiros cumpriu-se o rápido serviço) e hoje quem a tem sobre a cabeceira vela-a em silêncios insones vela-a em silêncios insones criou-a e deu-lhe uma morada.

João Vicente

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é como uma porta que teimaem abrir e diz:sou-te um pênduloou o teu fecho daninho éclaira romper com um zumbido de dentesa menina dos olhos do avesso.um escape puro das janelasum escape puro das janelasestáticas no escavar urinário das nuvens.admira-as. como pendem escancaradasmas desculpa julguei que fossemapenas os teus sonhos.

comprei-os ontemainda pendentes mornos nos dedos da manhã habitual:o retrato lânguido do semicerradoo retrato lânguido do semicerradoo gosto seco a sangue mordidolabial sou a minhacabeça pulsante em segredo ao frio doazulejo. dois dedos de cigarroali do vizinho e numa hora máuma sonolência de divãuns pés para o tecto da covauns pés para o tecto da covae uma comichão de sorrisopara não aparentar de menos o cínico.

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0!

ora digao molhado do colchãoem sussurros de esponjaque tudo isto é falso. e agora jácai uma tempestade no meio macilento das pernassem significância. rompeu-se da própria carneo sentido. da rendinha amarelada das cuequinhas juveniso sentido. da rendinha amarelada das cuequinhas juvenisdesprende-se o arrepio de um grande século inteiro debaixode um comboio sem paragem nem reverberação.

incendeiam-lhes as casase os pardais fogem pelas veiasporque lhes dão o nome. e oferecem-lhesos dedos esmigalhados de uma prisão.

um absurdo não tem maior nome que o teu.um absurdo não tem maior nome que o teu.e sobra tudo. sobra tudo.

João Vicente

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1!

as guinadas dos carros perseguem-meaterrorizado, sôfrego, paranóicoatravesso as ruas olhando em todas as direcçõesnão vão os edifícios estoirare libertar de vez os fantasmas que encerram

tenho as entranhas em chamastento vomitar-me mas não consigotento vomitar-me mas não consigoabro a boca como se um falo enorme a preenchesseponho, tiro os dedosmas não consigo vomitar-me

as guinadas dos carros perseguem-mechegaram e estão prontos para me mataros seus passos são os ponteiros do relógioque aguardam há demasiado tempoque aguardam há demasiado tempopor me revelarem algum segredo

tenho as entranhas em chamasporque me tenho em minhas entranhasa narrativa muda que escrevo nas paredescom o sangue de anjos mortospelas minhas emboscadas

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2!

do outro lado da seberecuso a entregar-me ao julgamento dos carneirose se rondo as maternidadesé porque anseio por ter o sangue das suas crias entre os dentes

já me cansei de uivaro uivo assusta-os mas cedo se reagrupam e se julgam mais fortesquando reagrupados os carneiros são ainda mais nojentosquando reagrupados os carneiros são ainda mais nojentosbem como vêem a sua possibilidade de se reproduzir aumentada

ver a arrumação com que afectam o espaçover o cuidado com que ornamentam as suas casasfaz-me meditar, em silêncio, na minha solidãosobre porque amam tanto as suas prisões

pela noite calada entro pela porta das traseirasentro pelos seus quartos e uivo desalmadoentro pelos seus quartos e uivo desalmadoprontamente fogem prontamente lhes dinamito as casas

mas uma vez destruída a sua prisãoos para sempre cárceres apontam-me de novo o dedo acusatórioe chamam-me de louco, sádico, psicopata e criminosoporque assim se diz poeta no seu dialecto.

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3!

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4!

hojecontudopara grande revolta minhaa chamaa forçaa loucuratudo aquilo que era bravo e silvestre em titudo aquilo que era bravo e silvestre em titudo aquilo que sempre me apaixonou por me fazer sentirtãopequenohumanofrágiltudo isso ao invés de escangalhar o mundose virou contra tise virou contra tise virou contra o teu corpo

duas lágrimassó duas lágrimas na tua facee só uma certezaque toda a beleza é convulsivae demasiado grandíloquapara poder existir entre os homenspara poder existir entre os homenssem ser evanescentenem que pela sua autodestruição

como um poemaque quando floresce morrecomo uma agave

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5!

todos os diaso crepúsculo assenta sobre os telhados dos prédiose ministra a lição muda das revoluções da terra

todos os dias incluindo feriadosas sombras trabalham o uivo trepadorà passagem dos automóveise a polícia ensaia o sorriso expectantee a polícia ensaia o sorriso expectantena antecâmara dos partos

todos os dias a toda a hora palavras inocentesinterrogadas brutalmente à vista de todose as abóbadas da língua estalando uma vez mais:a um desvio semântico da derrocada(as metáforas dançam provocantescomo adagascomo adagassobre a calva da paciência)

todos os diaso gato preto a tingir a noite de alarmee a noite a estender com aprumoa toalha florida de candeeiros insonesna procura de todos os diasdo verso secreto doado à luzdo verso secreto doado à luzpela desenvoltura das folhas

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ao mesmo tempotodos os diasexpande-se incontrolável o cerco de dentro para foravivo como um palácio a latejar de discórdia

e porém todos os diasà hora de desviar as cabeçasmuito longe na esquina cega dos presídiosmuito longe na esquina cega dos presídiosergue-se do mar uma taça de fôlego

as igrejas no seu rigoroso cabimentoforçadas a assistir ao milagreda apostasia

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7!

despojado de um lírio que arda à hora certacercado de invólucros de palavras acerbase com um braço de fome atravessado na gargantao homem calcinado deposita a fé na posse primeira: as mãos

maravilhado descobreque é sem esforço que bailam contra o ar tisnadoque é sem esforço que bailam contra o ar tisnadopelos novelos de fumo da impaciênciaque é límpido o despontar impante dos dedosa metáfora evidente impondo a sua hastee dir-se-ia bela a conspiração que urdem com a luznão fosse o silvo do chicote atravessar de súbitoa raiz do medo: a mão cede ao punhoo ovo estilhaçao ovo estilhaçaseiva púbere escorrendo pela face.

ah mas a fome trincando a ferrugem do corpoe o corpo fraco gritando rouco à turba: degolaios culpados (quem, meu senhor?) os dedosesses já coalhando sobre a mesa tingida de umpoema de braços abertos fertilizado pelosangue arrastando nomes quesangue arrastando nomes queesfolados e vivos dizem umpoema rugindo nasantecâmaras deDeus

(…)

TENTATIVA

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8!

já só pânico a mão rasurapara escrever mais opaco

mas a onda da memória levanta-segrotesca corola de unhas dentadasmenstruosae alaga as mãos a folha as horas o braçoatravessado de gangrena...atravessado de gangrena...

até que ao fundo se erguemiraculadoum lírio de sanguemas o homemsemdedos

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Poderia talvez sentar-meE tentar escrever um poema,Imaginar uma floresta misteriosa,Densa, suave e escurecida,Onde sobre a água estagnadaDe um pequeno charcoFlores várias vivazes e coloridasFlores várias vivazes e coloridasClamam a Primavera com encanto de fonteE fervor de profecia.

Mas sou novo, tão novo;Na minha Primavera o charcoÉ violentado com o movimento de pés amputados;A minha alegria esmorece como um pacienteQue se contorce numa maca;Que se contorce numa maca;As minhas mãos são trémulas;E os cafés e os cigarros e os livrosQue não tenho já paciência de ler...

Mas sou novo, tão novo...

Então tento relancear as cores,Intrincados brocados do quePoderia ser. Nunca nada eu tive.Poderia ser. Nunca nada eu tive.Poderia talvez. Poderia, sim, e tentoMas logo tudo rasgo e no lixo deito,Túmulo de resíduos de quimioterapia.

Desisto. Prefiro hibernarPor entre os tijolos.

NO I.P.O.

TITO

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0!!

Quando morrer quero uma lápide pálidaInscrita pela mão do meu vizinho dizendo'Nenhum Homem soube quem eras,Passaste por nós como um fantasmaQue dizia bom-dia e boa-tarde e boa-noite,Incapaz de falar sobre o tempo.Deixaste-nos aquilo que sempre deste: nada.Deixaste-nos aquilo que sempre deste: nada.Avança-o agora na última morada.’

TITO

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1!!

Adão acordouDo seu sono mais profundo.A sua solidãoEra pesada.Ao seu lado, viu,Bênção do seu corpoGerada, mais belaGerada, mais belaQue uma canção.Rejubilou, dos céusSoube a ternuraQue o acompanhava.Ergueu os braços,Prostrou-se peranteAquela que o viaAquela que o viaMais perfeito.

Dos olhosDe EvaApenas se ouviuNão.

TITO

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2!!

Que há de novo no eterno renovável?A máquina faz-nos os diasNutrindo-nos como uma mãe,Sem aprendizagem, apenas na acção

A infalibilidade do fazer puro.Assim o foi noutros tempos,Sem circuitos, sem faíscasSem circuitos, sem faíscasNos labirintos de cobre

Mas na madeira áspera,Ou a pedra rude,O seu fogo servil era e servil

Se propagou ao cobre.Assim, no devir das coisas na natureza,Nada de novo debaixo do sol.Nada de novo debaixo do sol.

TITO

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3!!

Eu sou charles manson dizem os peritos de charles manson que alguns doidos dizem que charles manson é um génio.

Dizem que ele é um génio por ter aproveitado o que melhor havia num sistema (a sua juventude promessa de sonho e renovação) (a sua juventude promessa de sonho e renovação) e tê-la corrompido ao extremo ao ponto de mostrar a falibilidade do seu sistema moral e repressivo com o grotesco, o sadismo e a loucura de assassinatos a sangue frio sem nenhuma humanidade

Também eu desta arte pós-moderna e liberta desta arte pós-moderna e liberta aproveito do que dizem ser o melhor (a ausência de critérios rígidos e estritos para que o artista possa explorar todo o campo do sensível) usando frases desconexas e que não preenchem as linhas até ao fim para fingir poemas totalmente anti-poéticos poemas literalmente de merda.

Meus caros Meus caros aqui está vossa filha aquela que acarinharam e alimentaram com cereais apanhada na capa do jornal a esfaquear uma pessoa sem dó nem piedade.

carloS manSo

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dispersos

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7!!

Recentemente, não importa quando, tive de assistir, não importa por quê, a uma série de conferências, não importa onde. E ainda não me refiz do trauma, que aliás já previa. Durante anos e anos, jurei a pés juntos que preferia espetar um garfo em cada olho, ou pegar fogo ao meu próprio cabelo, a ter de comparecer nestes conciliábulos chatos em que oradores emolientes debitam palpites, horas a fio, empoleirados num estrado; mas a virtude é um hábito que se cultiva e, decidido a ser uma pessoa melhor, que lêlê Peixoto e Mãe e sabe as cores do Ecoponto, dispus-me a tudo com uma candura sem igual, uma paciência beneditina – e um caderninho para ra-biscar desenhinhos quando o tédio atacasse.

Aqueles que, por exigência profissional ou propensão masoquista, fre-quentam estas estopadas não se espantarão se disser que grande parte do tempo foi dedicada a “pensar Portugal”. Aqueles que, por sorte ou lucidez, não as frequentam devem evitar imaginá-las como os congéneres televisivos (tipo Prós & Contras) que também se dedicam a “pensar Portugal”. Aqui não havia sanfona de abertura, à laia de genérico, nem reportagens de rua, ilus-tradas com imagens de sapatos anónimos a calcorrearem a calçada da Baixa; não havia gráficos com queijinhos coloridos e setinhas empinadas, documentando a “tendência de declínio do país”; havia, isso sim, cinquenta marmelos amontoados num auditório esconso, a escutar uma ladainha capaz de adormecer um chihuahua hiperactivo.

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8!!

Quando o essencial é enfadonho, é inevitável que se preste atenção ao

acessório. Ao séquito de senhores fleumáticos que se acotovela na primeira

fila, de sobrolho severo e introspectivo, aplaudindo com afinco tudo o que

se passa; à luminária que gasta dois terços da sua intervenção a cumprimen-

tar todos os presentes, desde o reitor ao cábula, improvisando depois umas

conclusões apressadas no pouco tempo que lhe resta; e ao orador folião, que

tenta arrancar sorrisos a uma plateia contrafeita e aparenta subverter a si-

sudez institucional sem na verdade a subverter. Poetas de domingo, esses,

também não faltam: fronte compungida, citações em barda, parábolas e

metáforas, aquele relambório fátuo do estilo “rasgar os horizontes do pos-

sível”, “construir novos futuros”, “dar uma nova esperança em tempos de

desesperança”.

E, se uns miram o futuro, outros viram-se para o passado. Com a absurda

empáfia do herdeiro falido que gaba o brasão de família depois de ter estoi-

rado a fortuna do avô, há quem exalte os “Descobrimentos”, o tempo em que

“demos mundos ao mundo”, e apele a que nos orgulhemos “das nossas

gentes”; com o pessimismo suspicaz de quem gosta de mostrar que não vai em

cantigas (todos os portugueses são pessimistas, pelo menos até irem para o

Governo), há quem relembre a sentença daquele sábio que, entre afazeres

eruditoseruditos como a degola dos bárbaros da Ibéria, terá dito que éramos um

povo que “nem se governa, nem se deixa governar” (e daí?).

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E há a plateia. Felizmente, as intervenções da plateia são elevadas e es-

clarecedoras; infelizmente, só são elevadas ao nível dos decibéis e só são es-

clarecedoras quanto à razão por que aqueles seres buliçosos não foram con-

vidados como oradores. As boas prestações, que são as más (as boas não se

prestam à caricatura, logo são inúteis), dividem-se em vários géneros. Há o

sujeito que, por antipatia da plateia, é apupado mal pronuncia três pala-

vras; e há o que, por insegurança, se embrulha nelas mal começa a falar,

gaguejando uma melopeia aflitiva até que lhe cortem o pio. Há o que inter-

rompe os outros para se queixar de que está a ser interrompido; e há o que

gosta de escandalizar com opiniões categóricas, uma característica de quem

(penso, logo hesito) nunca pensou muito sobre os assuntos. E há, Deo gra-

tias, o sujeito facundo que adora ter público e nunca tem público. Não é in-

vulgar que este último se marimbe para o tema e manifeste umas opiniões

esdrúxulas sobre algo que não vem a propósito; como julga ter descoberto

uma verdade incómoda e aguarda há anos para a revelar, aproveita para

meter umas buchas. Ele planeou dizer aquilo e di-lo – pronto.

E dirá bem? A verdade é que, saturado de paleio, já nem oiço. E só des-

perto do transe quando o moderador se ergue. Agradece aos presentes, dá por

finda a sessão e todos aplaudem – não sei se de júbilo, não sei se de alívio.

JOSÉ PEDRO VEIGA

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0!!!

«O pior dos crimes é produzir vinho mau,

engarrafá-lo, e dar de beber aos amigos.»

Aquilino Ribeiro

De uma maneira geral, é possível afirmar que, sem abuso metafórico, a apreensão de uma terra implica que nos disponibilizemos a fazer prova daquilo que ela tem para oferecer.

De que venha já palmilhado da Beira Alta, visitando Trancoso,Sernancelhe,Sernancelhe, ou Penedono antes de inflectir para norte em Viseu, ou que numa ascensão contínua tenha largado de Aveiro ou Coimbra para se quali-ficar em pleno através do Vouga e do Caramulo, acumula-se uma cor-nucópia de experiências enriquecedoras para o bom gosto, reconfortantes para a alma, sugestivas para o intelecto, e gratamente pecaminosas para o palato. Desde o vinho do Varosa, que se afasta da Nave para ir namorar o Douro, à gravidade megalítica das Terras do Demo, passando pelo perfume termal de São Pedro do Sul, o viajante preenche-se de satisfação carnal, e transborda cada vez mais de empatia pelo interior rural que apenas vem ao seu conhecimento quando algum record de bolo-rei ou hortaliças é batido em horário nobre.

Em terras de Castro Daire, tal receituário não é excepção; simplesmente os motivos são absolutamente inversos.

Excêntrica aos caminhos dos migrantes bem-aventurados, esta é uma zona que a História pouco rezou por falta de qualidades, e sobre qual toda a cartografia insiste em não fazer transparecer mais que uma mancha de gi-estas. As vagas referências ao património, decididamente generosas, enun-ciam apenas um miserando conjunto de ruínas frequentadas por não mais que os rebanhos de Outono.

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1!!!

Empoleirada na vertente da margem direita do Rio Paiva, esta é uma po-voação situada no sopé sul da Serra do Montemuro, qual presépio medieval toscamente martelado, que guarda a estrada para Lamego, e mantém ao largo os progressos da civilização e da cultura.

Toda a vila se encontra inteiramente despojada dos atributos que até re-centemente lhe conferiam a personalidade beiroa e honrada, para a qual tanto se esforçaram os anais da portugalidade em proteger.

A malha medieval do povoado antigo foi entaipada a cimento e tijolo, e o pequeno quadril de estreitas e as casas apinhadas deixados ao esclarecido critério dos ladrões de cobre, dos veículos agrícolas, e do alcoolismo endémico da região.

A praça central foi magnificamente forrada na glória da laje de estação de serviço. E como o esplendor calvo desse pavimento destoava da respectiva coroa, viu-se também o corredor de sóbrios e outrora respeitáveis edifícios das sociedades comerciais do século XIX, com seus azulejos ocres e janelas em vitral, ser impiedosamente demolidos, porventura por inquietar a integ-ridade invertebrada dos novos consumidores. Em sua substituição er-gueu-se, em nome da modernização dos equipamentos comerciais e de alguns pares de luvas, uma fiada de grotescas edificações em tijolo e inox, incompreensivelmente dotadas de tectos bávaros e tiroleses.

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O esforço empreendido na despersonalização e embrutecimento foi ver-dadeiramente notável, e digno das mais sentidas apoteoses que a providên-cia municipal pode gradar ao betão armado e ao vinho barato, no seu papel de recondução da justa proporção das coisas ao binómio panem et circenses. Castro Daire subtraiu-se voluntariamente ao esclarecimento e ao bom senso. Não habita o domínio do progresso e da modernidade, e diluiu com gasóleo todas as ideias-força que lhe conferiam ânimo e desígnio vital. Os novos pelourinhos são as rotundas-fonte, os cães de louça, os enfartes e o co-lesterol. Torquemada teria inveja de tão completo processo de incineração.

Nesta terra que do nome aparentemente herdou todos os defeitos da bar-bárie labrega dos desnudados celtas, o viajante que, na sua ignorância ou infortúnio, tenha eleito esta paragem para atender a uma merecida pausa de estradista sazonal e ingénuo, será fatalmente recebido por uma derroca-da de sucessivos atentados ao direito que a cada um assiste de se temperar com o agradável e o belo. Vê arrebatado o bucolismo piedoso com que conde-scendera ao interior, e fará cair por terra as boas intenções que tenha a esforço desenterrado nas suas concepções suburbanas. Nada mais lhe restará senão meter uma mudança a baixo e subir rapidamente a rotação no sentido de se precipitar na auto-estrada, tentando ainda escapar à voracidade fei-rante do trânsito local, movido a mau bagaço e concepções simplistas do código da estrada.

Não há nada que o faça permanecer em Castro Daire a não ser as mais ur-gentes necessidades fisiológicas. É, em suma, um estábulo.

E choram as parras.

raMALHO, O BENEMÉRITO

2!!!

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tema

pro meteu

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7

a semente do teu dia germinou impura.trouxe um vento mornona queda e agorasó resta o carpir das borboletasna ânsia primeva da noite.

eclodiu o monstrode entre o ventre dos lírios.de entre o ventre dos lírios.nos olhos uma tempestade de linho um suor oblíquo sem rosto.

por fim desceu a aurora mais curvaa beijar com a língua silenciosao grumo adormecido da terra.

e nósda carne líquida das trevasda carne líquida das trevasnós derramamos o ser nossoo abraço nulodo grito húmido das pedras.

ELEGIA DOS DEUSES

João Vicente

5!!!

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7

não me recordo do espantodos nossos olhos felinos e corsáriosrecordo-me apenas dos tesourosque julgámos por herança nossos

não me recordo do álcoolque em nossas veias destilavarecordo-me antes das promessasrecordo-me antes das promessasque conquistamos em arruaçada e fulgor

não me recordo das víscerasdos nossos corpos esventrados e ensanguentadosrecordo-me antes do que nos foi roubado das víscerase partiu manhã seguinte

venho por este meio manifestar o meu lutopelo atelier onde as alquimias cimentavam as maquettespelo atelier onde as alquimias cimentavam as maquettespelo adolescente onde os pêlos púbicos cerravam paliçadase pelo olhar de morte da mulhero astro submergido e extintoas cinzas de prometheusneste poema

urna

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7

uma coisa, prometeu, é o fogofrasear ensandecido que beija os cantosmais desabrigados das cavernasa hipnose e o gumemortalha dançarina em ciclo fértil

tudo bem nada contra muito obrigado etc

mas outra coisa, prometeu, émas outra coisa, prometeu, évalha-me deusa esperançao cuspo incensado dos profetasque empurramos montanha acimacom zelo de cão perdoadopara vermos tão surpresosa gravidade cumprir-se novamentea gravidade cumprir-se novamente

há um bolor que floresce na sombra das miragense quanto a isto, prometeu, não há fogo que nos valha

assim, é nas horas mais inadiáveis da noiteque escalamos sôfregos o promontóriona adequada posição do réptil- impulsionados pela parte mais propriamenteincendiada do crânio -incendiada do crânio -e uma vez chegadosà vista de luzidia pele divinapreparamos loucos o saltoque assim como assim, prometeu,ainda há muita gente com fome

7!!!

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7

TITO

8!!!

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foto grafia

secção de

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FOTOGRAFIAS DE CÉSar RodrigueS

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7

A Apócrifa é uma publicação trimestral gratuita.*

Os seus autores pretendem dar a conheceruma produção diversificada de material literáriopróprio e original, quer em prosa quer em poesia.

*Para além da produção escrita dos autoresPara além da produção escrita dos autores

do Colectivo Pré-Contemporâneo, a Apócrifa contacom a colaboração regular de autores convidados.

*Em cada edição, a Apócrifa

terá uma secção subordinada a um tema específico.*

A A Apócrifa pretende ser veículo da expressão literáriasem formalismos, escolas ou moldes teóricos.

A Apócrifa não pretende autenticar uma perspectiva, um ideal ou uma mundividência.

*A Apócrifa é literatura.

epílogo7!!!!

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