revista a faculd direit a universidade sÃo judas tadeu

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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Revista Eletrônica | www.usjt.br/revistadireito ISSN: 2358-6990 | Classificação Qualis B2 9 ANO 7

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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DAUNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

Revista Eletrônica | www.usjt.br/revistadireito

ISSN: 2358-6990 | Classificação Qualis B2

nº 9ANO 7

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Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEUReitoraMônica Orcioli

ChancelerOzires Silva

FACULDADE DE DIREITO

EditoresDaniel Clayton MoretiFabio Vieira FigueiredoMarcelo Tadeu ComettiPaulo Vitor Sanches LiraSérgio Pereira Braga

Equipe EditorialCarlos Lopes TeixeiraFernanda Gonçalves CostaLuara Grande Zanon

DiagramaçãoThiago Frotscher

Correspondência e ContatoUniversidade São Judas Tadeu Rua Taquari, 546 – Mooca São Paulo/SP – CEP: 03166-000

[email protected]

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Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu

CONSELHO EDITORIAL

Adriano de Assis Ferreira Universidade São Judas Tadeu – SP

Ângela Vidal Gandra da Silva Martins Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP

Antonio Jorge Pereira Júnior Universidade de Fortaleza – UNIFOR – CE

Antonio Roberto Sanches Júnior Universidade São Judas Tadeu – SP

Camila Capuccio Centro Universitário Una – MG

Cristian Kiefer da Silva Centro Universitário Una – MG e PUC/MG

Daniel Clayton Moreti Universidade São Judas Tadeu e Faculdade Damásio – SP

Débora Gozzo Universidade São Judas Tadeu – SP

Edvaldo Brito Universidade Federal da Bahia – UFBA

Érika Louise Bastos Calazans Sociedade Educacional de Santa Catarina – SOCIESC

Fábio Siebeneichler Andrade Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS

Fábio Vieira Figueiredo Universidade São Judas Tadeu – SP

Fernando Herren Aguillar Centro Universitário de Brasília – UNICEUB – DF

Ingo H. Sarlet Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS

Ísis de Jesus Garcia Sociedade Educacional de Santa Catarina – SOCIESC

Ives Gandra da Silva Martins Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP

José Eduardo Campos de Oliveira Faria Universidade de São Paulo – USP

Josiane Becker Universidade Estácio de Sá – PR

Juliano Ralo Monteiro Universidade Federal do Amazonas – AM

Lucas Moraes Martins Centro Universitário Una – MG

Luís Domingos Silva Morais Universidade de Lisboa

Marcelo Tadeu Cometti Universidade São Judas Tadeu – SP

Umberto Celli Jr. Universidade de São Paulo – USP

Venceslau Tavares Costa Filho Universidade de Pernambuco – UPE

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Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu

SUMÁRIO

VOLTAR PARA CAPA NÚMERO 09 04

43

25

0605

61

76

92

107

118

133

NOTA DOS EDITORES

A RECUPERAÇÃO JUDICIAL É UM MEIO DE LIQUIDAÇÃO DISFARÇADA DE ATIVOS?ARAÚJO, Leonardo Barros Corrêa de. NUNES, Thiago Silva de Souza.

A GOVERNANÇA NA SOCIEDADE EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL: UMA ANÁLISE EMPÍRICA DA IMPLEMENTAÇÃO DE REARRANJOS COMO MEIO DE RECUPERAÇÃOBROLLO, Gustavo Deucher. CHAVES, João Leandro Pereira.

COMPLIANCE ANTIDISCRIMINATÓRIO E MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NO AMBIENTE DE TRABALHOCALDAS, Camilo Onoda. ANDRADE, Nayara Correia de.

O DIREITO A EXISTÊNCIA E SUA INTERLOCUÇÃO DO ELO ENTRE O CIDADÃO E O ESTADO: UMA LEITURA DA APATRIDIACORREA, Marina Aparecida Pimenta da Cruz. ALMEIDA, Valquíria.

A SATISFAÇÃO DE CRÉDITOS POR EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O PERÍODO DE FISCALIZAÇÃO JUDICIALNUNES, Frederico Augusto Cavalheiro e Carmelo.

RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ADMINISTRADORES DE BANCOS SUJEITOS A REGIMES ESPECIAISNUNES, Thiago Silva de Souza.

MELHORES EMPREGOS? UMA ANÁLISE DO TRABALHO INTERMITENTE SOB A PERSPECTIVA DA AGENDA NACIONAL DE TRABALHO DECENTESCODRO, Catharina Lopes. MARTINS, Juliane Caravieri.

A PRODUÇÃO NORMATIVA NO PODER JUDICIÁRIO: ENTRE O POSITIVISMO E O REALISMOSOUZA, Cecilia Priscila de. ALELUIA, Erick Calheiros.

A IMPUNIDADE IMPERA NA ESFERA EMPRESARIAL? UMA ANÁLISE CASUÍSTICA DA APLICAÇÃO DOS ARTIGOS 64 E 65 DA LEI DE RECUPERAÇÃO E FALÊNCIAVIDAL, Marina Coelho Reverendo.

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Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu

É com imenso orgulho e alegria que a revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas chega a edição de número 9. Nesta oportunidade, apresentamos temática predominantemente empresarial e societária, sem prejuízo de outros temas de diferentes ramos do Direito. Reunimos com muito esmero artigos de elevada relevância no âmbito jurídico atual de nossa sociedade.

Cumpre destacar que o incentivo à pesquisa científica jurídica de excelência está no DNA do grupo Ânima e da equipe editorial da EBRADI, razão pela qual possuímos como um de nossos propósitos a difusão democrática e notável da educação em nosso país.

Inauguramos esta edição com artigo desenvolvido pela Mestre em Direito pela PUC-SP, Marina Coelho Reverendo Vidal, em que apresenta uma análise casuística da aplicação dos artigos 64 e 65 da Lei de Recuperação e Falência, verificando com que frequência os interessados buscam se socorrer dos remédios previstos em tais artigos que visam a manutenção dos devedores ou seus administradores na condução da atividade empresarial, quem são as partes que pedem a sua aplicação, com que frequência há o acolhimento de tais, bem como soluções utilizadas nos casos concretos analisados. De tal sorte, propõe-se a análise da impunidade na esfera empresarial.

O segundo artigo aborda um tema muito interessante, trazendo à baila temática de Direito Tributário. O artigo desenvolvido pela Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, Cecilia Priscila de Souza e Erick Calheiros Aleluia, Mestrando em Direito Tributário pela mesma Universidade, propõe a análise da produção normativa dos órgãos do Poder Judiciário em ações que apresentam conflito entre normas jurídicas tributárias e princípios constitucionais, bem como a necessidade da utilização do direito como instrumento para consecução dos fins previstos na Carta Magna.

Por conseguinte, em artigo elaborado por Frederico Augusto Cavalheiro e Carmelo Nunes, Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP, analisaremos o comportamento das empresas após a aprovação do plano de recuperação judicial, uma vez iniciado o período de supervisão e comparando com a tramitação em varas especializadas e comuns, tomando por base dados disponíveis no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de modo a tornar clara a efetidade ou não das varas especializadas.

O quarto tema, de autoria de Thiago Silva de Souza Nunes, Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP, possui como objetivo a análise da responsabilidade civil inerente aos administradores de bancos sujeitos a regimes especiais, para tanto, aborda-se a evolução legislativa do pensamento doutrinário e jurisprudencial, os respectivos mecanismos de intervenção do Banco Central até a efetiva consolidação do posicionamento majoritário atual.

Os Editores

NOTA DOS EDITORES

NÚMERO 09 05

Em seguida, apresentamos artigo desenvolvido por Leonardo Barros Corrêa de Araújo, Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP e Thiago Silva de Souza Nunes, Mestrando pela mesma instituição, que visa investigar a eficácia da Lei de Recuperação e Falência, com ênfase na fase de liquidação de ativos para retomada da saúde financeira da empresa.

O sexto tema aqui relacionado trata da importante temática do chamado compliance antidiscriminatório e a mediação de conflitos no ambiente de trabalho. Referido mecanismo busca a redução de condutas preconceituosas ou discriminatórias durante práticas laborais. De autoria do Doutor em Direito pela USP, Camilo Onoda Caldas e Nayara Correia de Andrade, Mestranda em Direito pela Escola Paulista de Direito.

Trazendo aos estudos temática de Direito Internacional, apresentamos artigo desenvolvido pela Doutoranda e Mestre em Direito pela PUC-MG, Marina Aparecida Pimenta da Cruz Correa e Valquíria Almeida, Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-MG, em que analisam o fenômeno da apatridia, suas principais causas, consequências e os mecanismos de Direito Internacional que tratam sobre a questão.

O oitavo artigo apresenta análise da efetiva implementação de rearranjos na governança das sociedades em recuperação judicial, tomando a Capital do Estado de São Paulo como base para a verificação dos indicadores, as restrições impostas à condução da atividade durante o processo recuperacional, as razões pelas quais uma empresa é levada à crise, bem como os meios entendidos como hábeis ao efetivo soerguimento. De autoria dos Mestrandos em Direito Comercial pela PUC-SP: Gustavo Deucher Brollo e João Leandro Pereira Chaves.

De autoria da Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Juliane Caravieri Martins e Catharina Lopes Scodro, Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, o último artigo traz aos estudos importante conteúdo do Direito do Trabalho: o chamado trabalho intermitente. Considerando que a Agenda Nacional de Trabalho Decente, instituída pela OIT, prevê como prioridade para a efetivação do trabalho decente a geração de “mais e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento”, há discussão sobre eventual prejudicialidade trazida com a Reforma Trabalhista, de modo que seu estudo se mostra de grande relevância.

Como não poderia deixar de ser, registramnossos agradecimentos aos professores que, de alguma maneira, contribuíram para que a revista aqui apresentada fosse formada.

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Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu

NÚMERO 09 06

A RECUPERAÇÃO JUDICIAL É UM MEIO DE LIQUIDAÇÃO DISFARÇADA DE ATIVOS?Leonardo Barros Corrêa de AraújoMestrando em Direito Comercial pela PUC/SP. Especialista (LL.M.) em Direito Societário pelo Insper/SP. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – Faculdade de Direito do Recife.

Thiago Silva de Souza NunesMestrando em Direito Comercial pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. Propósitos da Recuperação Judicial e da Falência: a Questão da Liquidação de Ativos

3. Liquidação de Ativos na Recuperação Judicial

4. Hipótese

5. Análise Empírica5.1 População 15.2 População 2

6. Conclusão

Referências Bibliográficas

Anexos

Notações

RESUMOEste trabalho tem por objeto analisar a efetividade da Lei 11.101/2005, em especial, a importância da liquidação de ativos para a consecução do restabelecimento saúde financeira da empresa recuperanda. Para tanto, tomar-se-á por base a 2ª Fase do Observatório de Insolvência – Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência – NEPI da PUC/SP e da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ, na qual se analisará as empresas em recuperação judicial no período de 01 de setembro de 2013 a 01 de junho de 2016. Assim, o artigo em questão terá enfoque bibliográfico, documental e exploratória, buscando responder se recuperação judicial é, em verdade, um meio de liquidação disfarçada de ativos ou uma apenas uma grande moratória.

PALAVRAS-CHAVE

Recuperação Judicial. Liquidação. Ativos. Efetividade.

ABSTRACTThis work aims to analyze the effectiveness of Law 11.101 / 2005, in particular, the importance of liquidating assets to achieve the restoration of the recovering company’s financial health. To this end, the 2nd Phase of the Insolvency Observatory – Insolvency Proceedings Study Center – NEPI of PUC / SP and the Brazilian Association of Jurimetry – ABJ will be based, in which companies undergoing judicial reorganization will be analyzed. period from September 1, 2013 to June 1, 2016. Thus, the article in question will have a bibliographic, documentary and exploratory focus, seeking to answer whether judicial recovery is, in fact, a means of liquidation disguised as assets or just a large one. moratorium.

KEYWORDS

Judicial recovery. Sale off. Active. Effectiveness.

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NÚMERO 09 07

A Lei nº 11.101/05 (“LRF”) busca empreender mecanismos que possam sanear a situação econômica, preservando-se a empresa como organismo vivo, com o que se

preservaria também a produção, mantendo-se os empregos e, com o giro empresarial voltando à normalidade, propiciando-se o pagamento de todos os credores.

Ocorre que nem toda empresa merece ou deve ser recuperada. A reorganização de atividades econômicas é custosa. Alguém há de pagar pela recuperação, seja na forma de investimentos no negócio em crise, seja na de perdas parciais ou totais de crédito. Em última análise, como os principais agentes econômicos acabam repassando aos seus respectivos preços as taxas de riscos associados à recuperação judicial ou extrajudicial do devedor, o ônus da reorganização das empresas no Brasil recai na sociedade brasileira como um todo. O crédito bancário e os produtos e serviços oferecidos e consumidos ficam mais caros porque parte dos juros e preços se destina a socializar os efeitos da recuperação das empresas.

Mas se é a sociedade brasileira como um todo que arca, em última instância, com os custos da recuperação das empresas, é necessário que o Judiciário seja criterioso ao definir quais merecem ser recuperadas. Não se pode erigir a recuperação das empresas a um valor absoluto. Não é qualquer empresa que deve ser salva a qualquer custo. Em muitos casos – na expressiva maioria deles –, se a crise não encontrou uma solução de mercado, o melhor para todos poderia ser a falência, com a realocação em outras atividades econômicas produtivas dos recursos materiais e humanos anteriormente empregados na da falida.

Em outros termos, somente as empresas viáveis devem ser objeto de recuperação judicial ou extrajudicial.

Nesse viés, a 2ª Fase do Observatório de Insolvência – Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência – NEPI da PUC/SP e da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ (“2ª Fase do Observatório”), em análise jurimétrica das empresas em recuperação judicial no período de 01 de setembro de 2013 a 01 de junho de 2016, identificou que 172 empresas tiveram o plano homologado por assembleia de credores, das quais apenas 31 tiveram o acompanhamento de fiscalização judicial de 2 anos encerrado sem decretação em falência, conforme se extrai da tabela 41:

1. Introdução

Tabela 41: Desfechos da fase de acompanhamento do plano de recuperação judicial

Desfecho final da recuperação Nº %% – apenas

recuperações finalizadas

Encerramento da recuperação devido à falência (não cumprimento do plano) 42 24,7% 57,5%

Encerramento da recuperação judicial sem falência 31 18,2% 42,4%

Fase de acompanhamento ainda em curso 97 57,1%

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Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu

NÚMERO 09 08

Ocorre que a termo a quo da fiscalização judicial das empresas recuperandas começa a contar a partir da decisão de concessão da recuperação judicial, o que, face ao longo trâmite processual, em grande parcela dos processos ultrapassa-se o período da lei, questão essa igualmente verificada pela 2ª Fase do Observatório, que concluiu que o tempo até o encerramento da recuperação judicial sem a falência de nenhuma recuperanda é de aproximadamente 3 anos:

A recuperação judicial é meio de liquidação disfarçada de ativos?

Tentar-se-á, neste trabalho, testar tal hipótese, fazendo uso das informações colhidas pela 2ª Fase do Observatório, por meio de análise empírica de 2 conjuntos distintos de processos de recuperação judicial: (i) um formado por aqueles que tiveram o seu encerramento decretado, sem convolação em falência; e (ii) outro composto pelos que ainda estão em curso; para ambos, fora escolhido o período de 01 de setembro de 2013 a 01 de junho de 2016, conforme recorte metodológico proposto pela própria 2ª Fase do Observatório.

É importante destacar, no entanto, como bem se observará, que não se trata de questionamento de fácil aferimento, e que, aliás, desdobra-se em várias outras perguntas, principalmente quando considerado o espaço amostral. Parece-nos que uma resposta definitiva ainda não será possível, haja vista as peculiaridades de cada caso e, ainda, a relevância da análise do que acontece depois do encerramento da recuperação judicial – algo de difícil acompanhamento.

Mesmo assim, não se pode descurar da importância temática e das conclusões, mesmo que primevas, que de per si conduzem reflexões necessárias sobre o sistema proposto pela LRF.

2. Propósitos da Recuperação Judicial e da Falência: a Questão da Liquidação de Ativos

A recuperação judicial tem como propósitos (ou objetivos) declarados, nos termos do art. 47 da LRF, (i) viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, (ii) permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores e

Tabela 43: Tempos medianos até os desfechos da fase de acompanhamento (encerramento da recuperação judicial ou convolação em falência durante a fase de acompanhamento).

Desfecho Tempo Médio

Varas Comuns

Faliu cumprindo o plano 1,55

Fim da recuperação judicial 2,99

RJ não finalizada 2,97

Varas Especializadas

Faliu cumprindo o plano 1,92

Fim da recuperação judicial 2,93

RJ não finalizada 3,68

Para tanto, de posse das informações acima mencionadas, surgem vários questionamentos, dos quais, para fins deste trabalho, delimitam-se as dúvidas no tocante à efetividade da LRF, em especial a um suposto desvirtuamento da recuperação judicial, especialmente em detrimento do instituto da falência.

Repisa-se que o instituto da recuperação judicial não é meio de benemerência ou caridade a premiar o empresário despreparado, imprudente, desidioso – posto que afronta e restringe os direitos dos credores, aumenta os custos –, e sim mecanismo estatal a beneficiar um conjunto de fatores que extrapolam a esfera da empresa, dos sócios e administradores. Assim, questiona-se:

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(iii) promover a preservação da empresa01, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Já a falência, por sua vez, conforme estabelecido no art. 75 da LRF, objetiva (i) promover o afastamento do devedor de suas atividades e (ii) preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa.

Enquanto a recuperação judicial teria, dentre outras finalidades, como a proteção de interesses de credores e coletividade, a intenção de propiciar meios de soerguimento ao devedor02, a falência seria um meio de preservação dos ativos daquela empresa em dificuldade. Não se objetivaria na falência, portanto, recuperar o empresário, retirá-lo da situação de crise, mas sim promover o seu afastamento da titularidade da empresa e, assim, salvaguardar o patrimônio utilizado para o desenvolvimento da atividade empresarial, possibilitando também a satisfação das dívidas não pagas.

De todo modo, tanto na recuperação judicial, quanto na falência, busca-se preservar a empresa03.

Esse objetivo é facilmente identificado no âmbito recuperacional, conforme, inclusive, declarado expressamente pelo art. 47 da LRF.

Já na falência, tem-se que, ao “preservar e otimizar” os ativos (inerentes à atividade empresarial), estar-se-ia também preservando a própria empresa, mediante a transferência de sua titularidade para um terceiro04.

Enquanto mecanismo calcado também na liquidação de ativos05 (contemplado no âmbito de um propósito maior, de preservação da empresa06), se, na falência, houver alienação (especialmente em bloco) de ativos organizados para o desenvolvimento de atividade econômica, assegurar-se-á

também a preservação da empresa07, que passará a ser exercida por pessoa diversa do empresário falido08.

Isso revela, por outro lado, que o processo falimentar não se preocupa com o soerguimento do empresário em crise, necessariamente09 – e sim com o acautelamento da empresa –, o que é fundamento peculiar à recuperação judicial. E essa é uma distinção fundamental dos institutos.

Esclareça-se, nesta oportunidade, que não se confunde empresário com empresa, tampouco os diversos possíveis perfis desta (funcional, objetivo etc.), de acordo com a classificação proposta por Asquini10. O que releva notar, para a discussão aqui proposta, é que, não obstante a doutrina insistir que a LRF busca preservar a empresa – sem indicar, expressamente, qual seria a distinção entre a recuperação judicial e a falência quanto à forma dessa preservação –, partimos do pressuposto de que os objetivos calcados no art. 47 de referida lei precisam endereçar alguma preocupação acerca da preservação do empresário como tal – isto é, como exercente ou titular da empresa.

Ainda que a recuperação judicial abarque a possibilidade de alienação de ativos (em separado ou inseridos em unidades produtivas isoladas – UPIs), como forma de rentabilizar e fornecer recursos necessários à recuperanda para satisfação de suas obrigações11, essas hipóteses têm o propósito de permitir a continuidade da atividade12 (ainda que parcialmente) pelo devedor , e não a liquidação de todos os bens que compõem o patrimônio da recuperanda, com a realocação da titularidade da empresa13.

Essa liquidação (com fundamento de realocação mais eficiente) faz parte do processo falimentar, que, como visto, objetiva preservar os ativos, mediante a sua transferência a terceiros – o que pode levar à continuidade da empresa por meio outros que não o empresário falido14. Mesmo na hipótese

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de alienação conjunta de ativos (art. 141 da LRF) – como em uma transferência de estabelecimento, por exemplo –, na falência não há preocupação com a manutenção, pós-liquidação, de patrimônio necessário à realização de atividade empresarial pelo devedor; aliás, a falência tem como um de seus propósitos o afastamento do empresário de suas atividades15.

Na recuperação judicial, por outro lado, tendo em vista o seu pilar de viabilização da superação da crise econômico-financeira do devedor, busca-se, ainda que por meio de alguma alienação de ativo16, oferecer meios ao empresário de continuar em operação17 – do contrário, se se buscasse, meramente, criar um ambiente favorável à liquidação de ativos, sem qualquer ressalva, não haveria diferença nas essências da recuperação judicial e da falência.

E aqui é importante fazer um esclarecimento semântico: liquidação é o ato ou o efeito de liquidar, que, por sua vez, significa tornar algo “líquido” financeiramente, isto é, converter em dinheiro18. Ao liquidar um ativo, portanto, busca-se auferir o valor devido em contrapartida à transferência daquele bem.

Não à toa os artigos 139, 140 e seguintes da LRF confirmam a falência como um processo ainda com marcante caráter liquidatório – mesmo que esse processo de liquidação faça parte de um pretexto de preservação empresarial –, ao disporem acerca da realização dos ativos da empresa como etapa necessária àquele processo19.

Percorridos os objetivos (e os pontos de interseção) dos institutos da recuperação judicial e da falência, passa-se a discorrer brevemente sobre a liquidação de ativos no processo recuperacional, antes de adentrarmos a (re)colocação do problema desta pesquisa.

3. Liquidação de Ativos na Recuperação Judicial

Impende destacar que a LRF trata-se de um regramento genérico, apresentando uma normativa apenas essencial, deixando espaços para soluções atípicas, desde que respeitados os ditames mínimos previstos a impedir que determinada categoria de créditos monopolize os recursos do devedor em prejuízo dos demais, não descurando, outrossim, em garantir a devida publicidade, proporcionalidade e segurança para os credores.

A LRF carreia em sua essência o objetivo de maximização das possibilidades de satisfação dos credores. Traz no seu bojo, ampliação do rol de alternativas para viabilizar o soerguimento da empresa, e, assim, conservar empregos, produção, circulação de capitais e satisfação do crédito.

Nessa esteira, imperioso frisar que os caminhos elencados pela assembleia de credores pelo qual o empresário deva trilhar devem ser flexíveis, respeitando as condições de mercado sem desprezar os interesses econômicos que pululam a empresa devedora, evidenciando o equilíbrio ideal a ser pautado no plano de recuperação.

Sob mesmo prisma destaca Marcelo Barbosa Sacramone:Nada impede, assim, que, além dos meios dispostos pelo art. 50, a recuperanda proponha meios diversos e que atendam melhor à sua necessidade, cumule vários dos meios propostos ou apresente uma combinação entre vários outros. Esses meios de recuperação judicial, entretanto, não poderão violar a Lei ou implicar tratamento diferenciado dos credores com condições semelhantes de crédito dentro da mesma classe22.

No entanto, por premissa de essência da LRF, a alienação de ativos na recuperação judicial será, em princípio, parcial, posto que, se a razão de ser da lei, insculpida no art. 47, é a superação

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da situação de crise econômico-financeira do devedor, com a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, a redução de patrimônio não pode reduzir a empresa à falta de operação, sob pena de desvirtuamento do instituto.

Nesse espeque, como bem já destacado alhures, a liquidação de ativos vem a ser mecanismo seguro de retomada de solvabilidade e/ou equilíbrio de contas a viabilizar a retomada produtiva, organizacional e de perspectiva de crédito frente ao mercado e instituições financeiras, fazendo da alienação de ativos verdadeira estratégia ao cumprimento de um plano de recuperação judicial.

O art. 50 da LRF traz algumas das hipóteses de alienação de ativos nos incisos:

II – cisão da sociedade empresária;

II – constituição de subsidiária integral;

III – alteração do controle societário;

VII – trespasse do estabelecimento;

IX – dação em pagamento de bens;

X – constituição de sociedade de credores;

XI – venda parcial dos bens;

XVI – constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.

Recorda-se que a partir da distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor só poderá alienar ou comprometer os bens mediante autorização judicial ou por anuências dos credores frente ao plano de recuperação judicial. Assim, a perda da autonomia de gestão empresarial conduz à assembleia de credores o poder de atribuir destino a forma de recuperação a ser homologada.

4. Hipótese

A hipótese motivadora deste trabalho – e que endereçou a análise empírica de determinados processos de recuperação judicial, em capítulo adiante, com base nos números apresentados pela 2ª Fase do Observatório de Insolvência – Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência – NEPI da PUC/SP e da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ (“2ª Fase do Observatório”) – pode ser resumida ao seguinte questionamento: o instituto da recuperação judicial está sendo utilizado como meio de liquidação disfarçada de ativos?

A problemática que se coloca tem fundamento na suspeita de que a LRF (ou o seu uso desvirtuado) teria criado incentivos para a implementação de verdadeiros processos liquidatórios, e não necessariamente recuperacionais. Ou seja: sob o manto de uma recuperação judicial, promover-se, na realidade, alienações dos ativos, sem necessariamente haver qualquer propósito de soerguimento ou de preservação das atividades pelo devedor.

Nesse sentido, aliás:

O dispositivo legal, por meio da imposição do objetivo da preservação da atividade à recuperação judicial, impede, além disso, que o instituto da recuperação judicial seja utilizado pelos agentes econômicos em detrimento dos objetivos para os quais foi concebido. Seu desvirtuamento poderia ocorrer nas hipóteses em que o devedor procura a recuperação judicial para garantir a transferência patrimonial sem sucessão em detrimento dos credores extraconcursais ou com prejuízo da continuidade da atividade, com a extinção de todos os postos de trabalho etc. (SACRAMONE, 2018b, p. 191)

Sabe-se que é possível – e, em certos casos, até mesmo recomendável – a venda de ativos no âmbito de uma recuperação

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judicial, conforme inclusive previsto na LRF. Isso já foi comentado em capítulo anterior, neste mesmo trabalho.

Igualmente, não se duvida que um dos propósitos da recuperação judicial seja preservar a atividade empresarial, inclusive mediante a implementação de (mais) eficiente realocação dos recursos.

O que se questiona é: até que ponto a liquidação de ativos faz parte do processo recuperacional e a partir de quando pode evidenciar um desvirtuamento de tal instituto?

Não se trata aqui, apenas, de contrapor a recuperação judicial à falência, quanto à questão de liquidação dos ativos – que, como visto, manifesta-se de forma diversa em referidos institutos – mas reconhecer que pode haver, sim, deturpação do processo recuperacional; e isto não como uma forma de se livrar, necessariamente, do processo falimentar, mas, talvez, de tentar revestir sob manto de legalidade (acobertado pelo sistema da recuperação prevista na LRF) a mera transferência de patrimônio sem sucessão e com direcionamento a determinados credores, em prejuízo daqueles que não se sujeitam à concursalidade21.

Uma possível consequência nefasta desse também possível desvirtuamento, imagina-se, estaria relacionado aos créditos tributários, os quais não se sujeitam à recuperação judicial. Veja-se que o produto das alienações de ativos realizadas no âmbito do processo recuperacional não aproveitarão necessariamente ao Estado, enquanto credor das dívidas tributárias da recuperanda.

Assim, alienados – disfarçadamente – os ativos, e destinados os frutos dessas alienações ao pagamento dos créditos concursais, ter-se-ia (como uma possibilidade) o possível seguinte cenário: (i) o plano estaria cumprido (pois adimplidas as obrigações

conforme fluxo de pagamentos), (ii) a recuperação judicial seria, então, encerrada, nos termos do art. 63 da LRF, após o decurso do período de fiscalização, (iii) uma empresa economicamente inviável, e sem qualquer operação remanescente (haja vista ter se desfeito de seus estabelecimentos), seria considerada como recuperada, e (iv) por não ter mantido qualquer parte relevante de seus ativos, a fim de se manter em operação, consequentemente tal empresa não voltaria a pagar qualquer tributo, imputando ao fisco prejuízo quase que definitivo.

Diante de um cenário de crise, questiona-se se essas flexibilidades na LRF criam incentivos à propositura de planos de recuperação judicial que, na verdade, têm como principal propósito blindar ativos e viabilizar a sua transferência, sem nenhum intento de viabilizar a continuidade das atividades – pelo devedor – ou o próprio soerguimento da recuperanda. Evita-se também a falência – que, pelos termos da LRF, deveria ser o destino da empresa em crise que não seja viável e que, por isso, não mereça usufruir do processo recuperacional – e, principalmente, (i) direciona-se o pagamento a apenas parte dos credores, mediante privilegiamento indevido, e (ii) obtém-se, para os ativos liquidados, afastamento da sucessão (também em prejuízo do interesse de terceiros, que se tornariam credores do adquirente e dele poderiam cobrar seus créditos).

Todos esses elementos, inseridos no contexto exposto acima, podem estimular a organização de um plano de liquidação (disfarçada) dos ativos dentro do sistema da recuperação judicial, como forma de privilegiar determinados credores, aproveitando-se das particularidades daquele processo?

Entendemos que tal problemática se torna relevante na medida em que, ao se permitir a aproximação da recuperação judicial de uma solução liquidatória, passa-se, então, a admitir a manutenção de empresas inviáveis no sistema econômico,

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para as quais não deveria ter sido concedido o benefício recuperacional22. Sobretudo porque isso denotaria deturpação dos propósitos da legislação de recuperação de empresas e falência brasileira é que esse (possível) cenário é preocupante.

Outro ponto importante de ser anotado é que o art. 61 da LRF prevê que a recuperanda permanecerá em recuperação judicial até o cumprimento das obrigações que se vencerem em até 2 (dois) anos contados da sua concessão, mediante homologação do plano. Esse prazo de 2 (dois) anos é também conhecido como “período de fiscalização”. O art. 63 da mesma lei determina o encerramento da recuperação judicial no caso de, ultrapassado o período de fiscalização, tenham sido cumpridas as obrigações, conforme previsto no art. 61.

Apesar de, conforme atestado pela 2ª Fase do Observatório, percentual significativo das recuperações judiciais não serem encerradas dentro do prazo estabelecido no art. 61 da LRF, tem-se que 42,9% delas de fato são encerradas – seja com convolação em falência ou não.

Mas será que a mera ultrapassagem do período de fiscalização, sem descumprimento do plano, significa que a empresa de fato se recuperou? Será que o processamento da recuperação judicial, nos moldes da LRF, confere instrumentos seguros para se atestar que esse fenômeno (do encerramento com base no decurso do período de fiscalização) acarreta a recuperação da empresa?

Esses questionamentos também se aproveitam para a hipótese do presente artigo. Buscou-se analisar processos de recuperação judicial que tiveram seu encerramento decretado, conforme indicado pela 2ª Fase do Observatório, a fim de identificar se houve liquidação de ativos no âmbito daqueles processos (isto é, no curso da recuperação judicial), por inciativa

das próprias recuperandas. Isto é: os planos de recuperação judicial, naqueles casos em que o judiciário decretou o encerramento da excepcionalidade recuperacional, foram meros mecanismos de legitimação de estratégias liquidatórias?

De igual modo, analisamos aqueles processos que não foram encerrados, os quais se encontram em um limbo. Será que, nesses processos, as estratégias de recuperação judicial consistem, na verdade, em soluções meramente liquidatórias? E, assim, diante das eventuais dificuldades de alienar ativos, no âmbito do processo recuperacional, tais recuperações acabem permanecendo em curso por mais tempo que o devido, em função de estarem apoiadas em propostas liquidatórias que não alcançam êxito?

O instituto da recuperação judicial vem sendo utilizado como meio de liquidação disfarçada de ativos?

5. Análise Empírica

Como já antecipado, parágrafos antes, elegemos como base de análise, para o teste da hipótese deste artigo, 2 conjuntos de processos: (i) aqueles que tiveram seu encerramento decretado após o término do período de fiscalização; e (ii) aqueles cuja fase de acompanhamento permanece em curso. O objetivo é verificar se, tanto em um conjunto, quanto no outro, foram promovidas estratégias de liquidação e ativos.

De acordo com a 2ª Fase do Observatório, dos 172 processos analisados, 31 foram os encerrados após o decurso do período de fiscalização, sem decretação de falência (“População 1”), e 97 ainda estão em andamento (“População 2”). Ambos os conjuntos, somados, resultam em 75,3% (setenta e cinco vírgula três por cento) de todos os processos; isso significa que só desconsideramos desta análise aqueles que foram encerrados

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em função de descumprimento do plano e que, portanto, não servirão ao teste da hipótese de utilização do instituto da recuperação judicial como meio de liquidação disfarçada de ativos (por inciativa, ressalte-se, das próprias recuperandas).

Quanto à População 1, apenas 12 são digitais; já quanto à População 2, 71 consistem em autos digitalizados (dos quais um não pode ser analisado, por problemas técnicos, passando a base a 70 processos). Desse modo, nossa análise, por questões de ordem prática, foi restrita aos autos que puderam ser consultados eletronicamente.

Assim, considerando se tratar de uma base de dados acessada equivalente a 64,84% da soma das Populações 1 e 2, as conclusões obtidas servirão para fornecer alguns indícios importantes, que poderão, eventualmente, servir como ponto de partida para confirmação da hipótese aqui trabalhada.

5.1 População 1

Quanto à População 1, dos 12 processos analisados (análise feita até 21/10/2019), em apenas 1 foi verificada a ocorrência d e a l g u m t i p o d e a l i e n a ç ã o d e a t i v o s :

Processo nºHouve liquidação

de ativos?A liquidação

foi relevante?0016271-95.2011.8.26.0100 Sim Sim

0047633-52.2010.8.26.0100 Não -

0050926-59.2012.8.26.0100 Não -

0057547-38.2013.8.26.0100 Não -

1000283-63.2014.8.26.0568 Não -

1125903-97.2015.8.26.0100 Não -

0051560-89.2011.8.26.0100 Não -

4004399-75.2013.8.26.0510 Não -

1085973-43.2013.8.26.0100 Não -

0000731-65.2011.8.26.0695 Não -

0008645-88.2012.8.26.0100 Não -

1002851-64.2015.8.26.0100 Não -

É interessante registrar que em alguns casos até se tentou realizar liquidações, mas as intenções foram frustradas.

Como forma de ilustrar o resultado que foi resumido na tabela acima, comentar-se-á alguns dos processos que compõem a base de dados analisada:

No processo de nº 4004399-75.2013.8.26.0510 (TH BUSCHINELLI & CIA LTDA.), o plano de recuperação judicial fora aditado para prever a criação de uma UPI (avaliada em R$ 14,5 milhões) e a venda de um imóvel (avaliado em R$ 1,5 milhões). A recuperação judicial até chegou a ter seu encerramento decretado pelo juízo de primeira instância, mas, em razão de recurso de apelação apresentado e provido, a decisão fora revertida, e o aditamento (comentado acima) restou homologado, de forma que o processo recuperacional permanece em andamento. Entretanto, inobstante as publicações de editais

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para as alienações da UPI e do imóvel, não foram encontradas evidências nos autos de concretização dessas vendas (as quais ainda podem ocorrer, é claro).

O processo de nº 0051560-89.2011.8.26.0100 (TRENDS ENGENHARIA E INFRAESTRUTURA LTDA. e GTT SERVIÇOS E PARTICIPAÇÕES LTDA,) também não se encontra encerrado em definitivo. A decisão de encerramento foi revertida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em virtude do inadimplemento do plano, como apontado pela administradora judicial. Nesse caso, a recuperanda requereu a convocação de assembleia geral de credores para deliberar sobre a alienação de 2 UPIs, cuja utilidade, inclusive, foi questionada pela administradora judicial. Na mesma manifestação, aliás, tal administradora apontou a necessidade de apresentação de valuations dessas UPIs, “para que os credores tenham conhecimento da real expectativa de entrada de valores, assim como para que a venda de UPI não importe em liquidação disfarçada das Recuperandas, eis que, no sentir da Administração Judicial, é isso que parece”. Os laudos de avaliação foram apresentados pela recuperanda (R$ 7,2 milhões e R$ 13 milhões) e, pelo que visualizamos dos autos, não se tem notícia de alguma alienação.

No processo de nº 1085973-43.2013.8.26.0100 (MANGELS INDUSTRIAL S.A.), havia previsões no plano consolidado de alienações de ativos e criações de UPIs, mas a recuperação judicial foi encerrada sem que houvesse qualquer tipo de liquidação.

Outro processo que foi encerrado sem qualquer alienação de ativo foi o de nº 0000731-65.2011.8.26.0695 (INDÚSTRIAS RAYMOUND’S LTDA.).

A recuperação judicial nº 0008645-88.2012.8.26.0100 (CENTRO AUTOMOTIVO AVARI DE CAMPOS LTDA.) é mais

um caso interessante: a recuperanda apresentou proposta de aditamento ao plano, indicando a existência de proposta para aquisição da totalidade das quotas de sua emissão, cujos recursos seriam utilizados para pagamento dos créditos concursais. O aditivo fora aprovado em assembleia geral de credores, todos os créditos previstos no plano foram quitados, e a recuperação judicial teve seu encerramento determinado pelo judiciário. Todavia, não há qualquer evidência de que as quotas de emissão da recuperanda foram mesmo transferidas ao terceiro proponente. Aliás, em consulta à base de dados da junta comercial do Estado de São Paulo, foi possível identificar que nenhuma alteração de contrato social formalizando transferência de titularidade de quotas foi arquivada, e que, inclusive, a sociedade foi dissolvida, por deliberação de seus sócios originais, poucos meses depois do encerramento da recuperação judicial. Desde então, o CNPJ da (ex)recuperanda encontra-se baixado.

Já no processo nº 1002851-64.2015.8.26.0100 (ALUMINI ENGENHARIA S/A) – que também está encerrado, por determinação do juízo recuperacional –, o plano contemplava a possibilidade de realizações de leilões para alienar ativos. Porém, pelo que se pôde atestar dos autos, não houve vendas de bens a terceiros. No curso da recuperação judicial, um dos credores apontou que a recuperanda estava a tentar promover tais leilões sem que houvesse prévia aprovação em assembleia geral, o que, depois de noticiado nos autos, motivou a desistência dessas intenções pela própria recuperanda. Pouco depois, apresentou-se, formalmente, pedido de realização de certames para promover alienações de ativos, o que foi deferido pelo juízo recuperacional, mas não chegou a ser implementado.

Por fim, dos 12 processos analisados, resta anotar que o de nº 0016271-95.2011.8.26.0100 (ESTABELECIMENTOS

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DE MODAS MARIE CLAIRE LTDA.) foi o único em que se verificou a ocorrência de alienação de ativos. Nesse caso, bens imóveis foram vendidos em leilão, por preço equivalente a algo em torno de 80% da avaliação, e o produto arrecadado foi importante ao pagamento das obrigações estabelecidas no plano de recuperação judicial. Como se tratou de venda de imóveis – e não de estabelecimentos – é necessário confirmar se há atividade remanescente, pós-encerramento do processo recuperacional; e essa informação, contudo, não foi possível de ser obtida nos próprios autos. Uma possível forma de checagem dessa informação, “extra-processualmente”, é a análise do fluxo de pagamentos de tributos. Em análise preliminar, de planilha fornecida pela ABJ com os valores recolhidos ao fisco, verificou-se que a recuperanda, de 2015 até 2018, não teria quitado nada de tributo estadual e, de igual modo, também estaria sem recolher tributos federais. Duas conclusões podem ser extraídas: (i) está em operação, mas, deliberadamente, permanece sem incorrer em despesas tributárias; ou (ii) os imóveis eram, na verdade, parcela substancial e necessária ao desenvolvimento de suas atividades, que restou prejudicado e, por isso, impediu a retomada de pagamento de tributos.

5.2 População 2

Já quanto à População 2, conforme tabela anexa, dos 70 processos analisados (análise feita até 28/11/2019), em apenas 15 (isto é, 21,4%) fora detectada alguma liquidação de ativo. Dessas 15, somente em 4 (5,7% da População 2 inteira) as liquidações operadas tiveram alguma relevância (liquidações representativas de 13%, 22%, 26% e 72%, respectivamente, do valor total da dívida na recuperação). Veja-se, abaixo, os gráficos:

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6. Conclusão

Apesar de a hipótese deste artigo ser reforçada por uma desconfiança generalizada, que decorre não só da praxe recuperacional, mas da própria doutrina, como referenciado nos parágrafos antecedentes, a pesquisa feita – com base em populações extraídas da 2ª Fase do Observatório –, não foi possível identificar evidências concretas de que a recuperação judicial vem sendo utilizada como um meio de liquidação disfarçada de ativos.

Afinal, o percentuais encontrados não são relevantes o suficiente para confirmar a hipótese. Veja-se que, para a População 2, por exemplo, em apenas pouco mais de 20% dos processos houve alguma liquidação de ativos; e, nesses 20%, somente 4% do total de processos avaliados registraram liquidações importantes (frente à dívida total).

Já dos processos da População 1, em apenas 1 houve alienação de ativos.

Com base nessas constatações, pode-se inferir haver indícios da inexistência de uma correlação necessária entre o encerramento da recuperação judicial, na forma do art. 63 da LRF, ou a permanência no limbo (isto é, ainda em fase de acompanhamento), e a construção de planos e estratégias meramente liquidatórios.

Parece-nos, ainda, haver alguma espécie de incongruência da legislação, que acaba gerando planos de recuperação judicial demasiadamente longos, com obrigações de fácil cumprimento nos primeiros meses, e os quais podem, ainda, ser aditados repetidamente (e acarretar novações), de modo que o período de efetiva fiscalização (e, por consequência, adimplemento) torna-se muito menor do que o, talvez, pretendido pela LRF.

Mas essa é apenas uma outra hipótese.

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Referências Bibliográficas

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Processo nº Houve liquidação de ativos?

A liquidação foi relevante? Por quê?

4017647-26.2013.8.26.0602 Sim Não Dívida é de mais de R$ 13 milhões (liquidação representativa de 2%)

4013934-52.2013.8.26.0114 Não

4003009-40.2013.8.26.0132 Não

4002124-26.2013.8.26.0132 Sim Não

Venda de imóvel por R$ 450 mil (81% da avaliação); Venda de imóvel por R$ 642 mil (50% da avaliação); Venda de imóvel

por R$ 476 mil (50% da avaliação); Venda de carro por R$ 66 mil (79% da avaliação); VALOR: R$ 1,6 milhões (liquidação

representativas de 3% do débito)

4000115-91.2013.8.26.0132 Sim Não Venda de máquina por R$ 5 mil

0001213-22.2015.8.26.0291 Não

0001920-16.2010.8.26.0048 Não

1009067-89.2014.8.26.0451 Sim Sim imóveis vendidos pelo total de R$ 1,7 milhões (60% do avaliado), correspondentes a 13% da dívida

1008559-93.2014.8.26.0597 Não

1008155-13.2014.8.26.0348 Não

1014944-89.2014.8.26.0554 Não

1006635-35.2014.8.26.0019 Sim SimVenda de estabelecimento e estoques por R$ 5,8 milhões

(dívida de R$ 26 milhões: alienação representativa de 22% da dívida)

1003315-41.2014.8.26.0224 Não

1013569-56.2014.8.26.0068 Não

Anexos

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Processo nº Houve liquidação de ativos?

A liquidação foi relevante? Por quê?

1000741-88.2014.8.26.0533 Não

1003138-19.2014.8.26.0114 Não

1001234-17.2014.8.26.0161 Não

1048147-46.2014.8.26.0100 Sim Não Alienação de bens móveis por aproximadamente R$ 70 mil

1115582-37.2014.8.26.0100 Não

1106266-34.2013.8.26.0100 Não

1092334-08.2015.8.26.0100 Sim Não Bens móveis que estavam sendo depreciados (valor histórico de R$ 200 mil)

1001967-69.2014.8.26.0100 Não

0031947-20.2010.8.26.0100 Não

0031250-96.2010.8.26.0100 Não

0019224-32.2011.8.26.0100 Não

0018768-48.2012.8.26.0100 Não

0081248-62.2012.8.26.0100 Não

0074374-61.2012.8.26.0100 Não

0057970-95.2013.8.26.0100 Não

0003676-30.2012.8.26.0100 Não

0023761-08.2010.8.26.0100 Não

0014790-29.2013.8.26.0100 Não

0055671-48.2013.8.26.0100 Não

0014297-52.2013.8.26.0100 Não

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Processo nº Houve liquidação de ativos?

A liquidação foi relevante? Por quê?

0016095-59.2013.8.26.0161 Não

4016918-97.2013.8.26.0602 Não

1003083-28.2015.8.26.0019 Não

4002285-67.2013.8.26.0348 Não

4000520-35.2013.8.26.0292 Não

4000088-29.2013.8.26.0320 Não

0000547-55.2014.8.26.0291 Não

1002425-58.2014.8.26.0271 Não

1002294-48.2014.8.26.0606 Não

1008394-40.2014.8.26.0405 Não

1002108-03.2015.8.26.0408 Sim Não fl. 4081 – 4699/4702 – 4855/4858, venda de veículos sucateados. Valores obtidos não representam 2% da dívida

1007494-13.2014.8.26.0161 Não

1012014-62.2014.8.26.0566 Sim Sim Houve venda de UPI por R$16.250.092,07. Representando 72%

1011666-95.2014.8.26.0161 Não

1012178-66.2014.8.26.0068 Não

1000544-25.2014.8.26.0278 Não

1001156-81.2014.8.26.0077 Não

1000153-96.2015.8.26.0549, Sim Não Leilão de ativos(veículos) que equivalem a 3,5% da dívida, e impedem a atividade comercial

1002755-19.2013.8.26.0068 Sim Não Venda de imóvel por R$780.000,00 abatendo 13% da dívida

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Processo nº Houve liquidação de ativos?

A liquidação foi relevante? Por quê?

1116227-62.2014.8.26.0100 Sim Sim Venda de imóvel por 81% do valor avaliado (R$6.400.000,00); Venda de UPI por R$3.000.000,00. Dívida de R$11.384.206,00

1115526-04.2014.8.26.0100 Sim Não Venda de UPI por R$900.000,00, dívida de R$74.000.000,00

1025824-13.2015.8.26.0100 Não

1010468-75.2015.8.26.0100 Sim Não

1005882-29.2014.8.26.0100 Não

0024997-87.2013.8.26.0100 Não

0021834-70.2011.8.26.0100, Sim Não Alienação de imóvel de R$3.000.000,00, porém não corresponde nem a 1% da dívida

0018939-68.2013.8.26.0100 Não

0017921-80.2011.8.26.0100 Não

0080751-48.2012.8.26.0100 Não

0059549-78.2013.8.26.0100 Não

0053902-05.2013.8.26.0100 Não

0050746-09.2013.8.26.0100 Não

0015390-50.2013.8.26.0100 Não Sim Há leilão de UPI no valor de R$14.000.000,00 em 16/12/19. Dívida de R$7.500.000,00

0005461-61.2011.8.26.0100 Não

0014361-62.2013.8.26.0100 Não

0003676-30.2012.8.26.0100 Não

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Notações01. “Em vista do posicionamento aqui adotado acerca da concepção da companhia

sob a ótica organizativa, conforme acima detalhado, cabe dizer que o intuito da preservação da empresa estaria vinculado ao resguardo de uma organização, que abrange inúmeros interesses e cujo fundamento de existência refere-se exatamente ao respeito a esses mesmos interesses. Em outras palavras, a preservação da empresa é alcançada por meio de respeito, equilíbrio e integração entre os interesses por ela influenciados.” (NEDER CEREZETTI, 2012, p. 214-215)

02. “Se, eventualmente, um empresário ou sociedade empresária entra em crise, com a momentânea alteração do curso de seus negócios, trazendo-lhe problemas de natureza econômica, financeira ou técnica, é razoável que a ordem jurídica lhe proporcione anteparos, visando não somente a sua estrutura jurídica ou econômica nem apenas o binômio credor-devedor, mas, sobretudo, a sua função social.” (PACHECO, 2013, p. 143)

03. “A entrada em vigor da Lei de Recuperação e Falência, portanto, representou uma ruptura do modelo tradicional dos procedimentos concursais brasileiros. Afastou-se o legislador da previsão de apenas um instrumento de liquidação de ativos cumulado com a possibilidade de se conceder um benefício concordatário ao devedor, passando a admitir e incentivar mecanismos especificamente destinados à recuperação empresarial” (NEDER CEREZETTI, 2012, p. 204-205.)04. “Caracterizada como atividade, a preservação da empresa também é

objetivada na falência. O art. 75 determina que a falência visa preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos. Além da possibilidade de continuação provisória das atividades do falido (art. 99, XI), a alienação em conjunto dos bens preferencialmente, objetivo da falência, permitirá a preservação da atividade, que passará a ser exercida não mais pelo empresário falido, mas pelos adquirentes dos bens, em condições mais eficientes.” (SACRAMONE, 2018b, p. 191)

05. “Nessa situação de inviabilidade da condução da atividade econômica conforme plano de recuperação judicial, a falência poderá ser economicamente mais eficiente à proteção de todos os interesses. A atividade econômica poderá ser preservada por meio de sua transferência a outro empresário que a desenvolva de forma mais eficiente. A liquidação dos ativos na falência permitiria a diverso empresário adquirir o conjunto de ativos para desempenhar a atividade, com a melhor alocação dos diversos fatores de produção. Se inadequada a atividade à demanda do mercado, mesmo a liquidação separada dos ativos permitirá melhor alocação dos recursos escassos, simplesmente por meio do aproveitamento dos bens úteis em finalidade diversa e que melhor os aproveite.” (SACRAMONE, 2018a)

06. “O corolário do chamado princípio da preservação da empresa deve ser a continuidade da atividade empresarial viável, seja nas mãos dos seus sócios, seja sob o controle de novos empresários, inclusive mediante a alienação de negócios, unidades, bens e/ou ativos do devedor em recuperação judicial”. (PAIVA, 2015, p. 269)

07. “Com o afastamento do devedor, procura-se assegurar a conservação dos bens e otimizar sua utilização produtiva para sua liquidação. A alienação em conjunto da maior quantidade dos bens produtivos, por outro lado, permitirá que o adquirente continue a desenvolver a atividade por meio do estabelecimento empresarial adquirido, a partir de então com maior eficiência, o que asseguraria a preservação da atividade empresarial e garantiria sua função social.” (SACRAMONE, 2018b, p. 306)

08. “Com certa liberalidade, pode-se dizer que a falência é uma ‘grande execução’, processo no qual são arrecadados todos os bens do devedor para formar a ‘massa falida’, de um lado; de outro lado, faz-se o ordenamento de todos os débitos do falido, encontrando-se o valor devido, para formação do ‘quadro-geral’ de credores, que é elaborado classificando-se os créditos para serem pagos na ordem que a lei determina. Na sequência, transforma-se a ‘massa falida’ em dinheiro e rateia-se o resultado aos componentes do ‘quadro-geral de credores’, na ordem legal. (...) Sem embargo da grande ‘execução’, mencionada no item 5 acima, o legislador, pelo menos formalmente, pretendeu trazer com esta Lei uma nova forma de abordagem da falência, de tal maneira que, logo no primeiro artigo do capítulo destinado à falência, declara sua pretensão de preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens da empresa cuja falência foi declarada. Para tanto, o legislador lançou mão de alguns métodos, que serão examinados à medida que forem sendo vistos os respectivos artigos. De qualquer forma, desde logo observe-se (art. 140, I) a previsão para que a empresa seja vendida em bloco, de tal forma que se mantenha íntegra a unidade produtiva, afastando-se a sucessão tributária e trabalhista, com o que será preservada a possibilidade de continuação da atividade produtiva. Portanto, dentro do espírito da nova lei, que pretende recuperar a empresa, preservando-a, na falência a mesma busca existe, agora por preservação não mais da empresa, que é dissolvida pela falência (art. 1.044 do Código Civil), e sim da atividade produtiva.” (BEZERRA FILHO, 2011, p. 187-188)

09. “Esse o espírito que preside a nova Lei com a recuperação, judicial ou extrajudicial; agora a organização empresária é repensada, remodelada e, sua continuidade, sob mesma ou outra administração, é entendida como resgate ou manutenção da atividade econômica que pode durar, exeqüível sem custos sociais acentuados. Manter empregos, estimular a atividade econômica, fomentar a produção de bens e serviços, devem ser destacados como elementos informadores da análise mediante a qual se proporá, ou não, a reorganização, ou seja, a recuperação de empresas em crise.” (SATIRO, 2007, p. 221)

10. ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, v. 35, n. 104, p. 109-126, 1996.

11. “A necessidade de obter recursos financeiros poderá justificar, entretanto, uma pretensão de alienação de parte dos seus ativos.” (SACRAMONE, 2018b, p. 285)

12. “Em primeiro lugar, a recuperação judicial ou extrajudicial, medidas que possibilitam ao devedor empresário a chance de se reorganizar para cumprir, em parte que seja, suas obrigações. Na recuperação judicial ou

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na homologação judicial da recuperação extrajudicial, todos os credores se submetem ao plano aprovado pela maioria, em função do qual se pode, por exemplo, estabelecer a remissão parcial de dívidas ou a prorrogação dos prazos de pagamento.” (COELHO, 2016)

13. Apesar de não explicitar, de forma induvidosa, tal noção, Eduardo Secchi Munhoz dá a entender que não haveria problema na alienação de todo o estabelecimento da recuperanda, como forma de quitar suas dívidas: “O fim da sucessão das obrigações do devedor nas alienações realizadas no âmbito de processo de recuperação ou de falência permite a transferência da empresa para um novo empresário, obtendo-se dessa forma recursos que podem ser utilizados para o pagamento das obrigações do devedor, inclusive as trabalhistas e tributárias. (...) Daí se pode extrair a primeira conclusão quanto ao sentido e ao alcance de filial e unidade produtiva isolada, para o fim de afastar a sucessão tributária na alienação ocorrida em processo de recuperação judicial: o bem objeto da alienação judicial não pode ser singular ou isolado, mas é preciso que se trate de um conjunto (complexo) de bens, organizados de forma a permitir a exploração de uma determinada atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. É preciso que aos bens objeto da alienação esteja ligada uma atividade empresarial que possa continuar a ser desenvolvida, a partir da exploração desses mesmos bens, pelo arrematante. É o exercício de uma determinada atividade empresarial que une os elementos que integram o estabelecimento.266 Diz-se então que, se o plano de recuperação envolver a alienação de estabelecimentos empresariais isolados do devedor, o arrematante não sucede nas obrigações este, nem fica sujeito aos eventuais ônus anteriormente incidentes sobre tal universalidade de fato.” (SATIRO, 2007, p. 298-299).

14. “O procedimento falimentar não visa apenas à retirada do empresário devedor do mercado, com a liquidação dos seus ativos para a satisfação dos credores. A falência passa a ser concebida como um modo de o exercício da atividade se tornar mais eficiente, com a preservação da função social da empresa, agora apenas sob o comando de outro empresário.” (SACRAMONE, 2018b, p. 305)

15. “Com o afastamento do devedor, procura-se assegurar a conservação dos bens e otimizar sua utilização produtiva para sua liquidação. A alienação em conjunto da maior quantidade dos bens produtivos, por outro lado, permitirá que o adquirente continue a desenvolver a atividade por meio do estabelecimento empresarial adquirido, a partir de então com maior eficiência, o que asseguraria a preservação da atividade empresarial e garantiria sua função social.” (SACRAMONE, 2018b, p. 306)

16. “O plano de recuperação judicial poderá igualmente conter cláusulas acerca da reestruturação de seu ativo. Para tanto, poderá prever desde a venda parcial de bens até a alienação de unidades produtivas isoladas e operações societárias de fusão, cisão e incorporação. A alienação de bens integrantes do ativo da empresa devedora é voltada a aprimorar a operação da empresa devedora e, assim, pagar credores concursais. Portanto, o produto da alienação desses ativos não poderá ser penhorado por terceiros” (AYOUB, 2013, p. 232).

17. “A lei de falências que se analisa tem dupla natureza: por um lado, traz normas de direito processual, indispensáveis à boa condução das falências e das recuperações de empresas. Por outro, prevê regras de direito material, estabelecendo em que hipóteses e sob que condições as pessoas e as sociedades em dificuldades têm direito à tutela do Estado para se recuperar e, caso isso não seja possível, como deve ser conduzido o processo para que sejam afastadas das atividades empresariais.” (TEBET, 2005, p. 13)

18. “Liquidação é a conversão em dinheiro das coisas e dos direitos do falido, arrecadados pelo administrador judicial, e que objetiva a satisfação dos créditos habilitados e das despesas e encargos da Massa Falida.” (SACRAMONE, 2018b, p. 463)

19. É importante comentar, também, que não há evidências de que a falência, sob seu aspecto liquidatório, é um mecanismo eficiente. Como apontou Marcelo Sacramone: “Se a recuperação judicial aparenta não permitir a concessão da recuperação apenas aos empresários com atividades economicamente viáveis, a falência também não tem sido eficiente a permitir a maximização do valor dos ativos e da satisfação dos interesses dos credores. Conforme estudo de Jupetipe, Martins, Mário e Carvalho, os processos de falência duraram, em média, 9,2 anos, com alienação de bens que resultou em perda de valor de 46,84% e ressarcimento aos credores de apenas 12,4% do montante devido.” (SACRAMONE, 2019)

20. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresa e falência. São Paulo: Saraiva, 2018b. p. 218-219.

21. “Nem se alegue que a impossibilidade de sucessão permitiria a liquidação ordinária dos ativos, em detrimento dos credores não sujeitos à recuperação judicial. A alienação dos ativos continua condicionada à evidente utilidade para a recuperação judicial reconhecida pelo juiz e, mesmo se aprovada pela Assembleia Geral de Credores, poderá ser anulada se houver a demonstração de desvio da finalidade da utilização do instituto da recuperação judicial.” (SACRAMONE, 2018b, p. 287)

22. “Importante esclarecer que a aplicação do art. 47 se justifica sempre que uma recuperação viável estiver em pauta. Não se pretende seja o argumento da preservação utilizado para fundamentar recuperações inexequíveis, levadas a cabo apenas para satisfazer interesses particulares. Ademais, não se deve sustentar a aplicação do art. 47 somente nos casos de recuperação. Em verdade, as finalidades mencionadas no dispositivo devem ser almejadas também nos casos de liquidação, nos termos do art. 75, que elenca a preservação e a otimização da utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos da empresa falida como objetivos consubstanciados na manutenção da fonte produtora e do emprego dos trabalhadores. Ademais, sabe-se que, em sede de falência, os bens empresariais devem ser alienados em vista da realização do ativo e pagamento do passivo. Para tanto, estabelece a Lei de Recuperação e Falência uma ordem de preferência na adoção das formas de realização (art. 140), dando-se prioridade aos mecanismos que permitam a continuidade da atividade antes desenvolvida pela empresa ora em falência. Sobre esse aspecto, parece que o legislador pátrio preocupou-se como uma das importantes críticas aos procedimentos liquidatários.” (NEDER CEREZETTI, 2012, p. 243)

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A GOVERNANÇA NA SOCIEDADE EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL: UMA ANÁLISE EMPÍRICA DA IMPLEMENTAÇÃO DE REARRANJOS COMO MEIO DE RECUPERAÇÃO

Gustavo Deucher BrolloMestrando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Pós-graduado em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em São Paulo.

João Leandro Pereira ChavesMestrando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Pós-graduado (LLM) em Direto Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC-RJ). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV-ES). Advogado em São Paulo.

RESUMOO presente artigo apresenta uma análise empírica da efetiva implementação de rearranjos na governança das sociedades em recuperação judicial, com relação a processos da Capital do Estado de São Paulo, examinando-se, como base para a verificação dos números levantados, as restrições impostas à condução da atividade durante o processo recuperacional, as razões pelas quais uma empresa é levada à crise, bem como os meios entendidos como hábeis ao efetivo soerguimento.

PALAVRAS-CHAVE

Recuperação Judicial. Governança. Estudo Empírico. Meios de Recuperação.

ABSTRACTThis paper presents an empirical analysis of the effective implementation of rearrangements in the governance of companies undergoing judicial reorganization, in relation to lawsuits in the capital of the State of São Paulo, examining, as a basis for the verification of the numbers raised, the restrictions imposed on the conduction of the activity during the reorganization procedure, the reasons why a company is driven to the crisis, as well as the mechanisms understood to be able to the effective recovery.

KEYWORDS

Corporate Bankruptcy Reorganization. Governance. Empirical study. Recovery mechanisms.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. As razões que levam a empresa à crise

3. O processamento da recuperação judicial3.1 Objetivos da LRF3.2 Alterações na condução das

atividades da empresa em crise no curso do processo de recuperação judicial

3.3 Os meios de recuperação judicial

4. O instituto da Governança Corporativa como meio de recuperação judicial

5. Uma análise empírica da efetiva implementação de medidas e rearranjos societários nas empresas em recuperação judicial

6. Conclusão

Referências Bibliográficas

Notações

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O presente artigo apresenta uma análise empírica quantitativa da efetiva implementação, com relação a processos das Varas Especializadas da Capital do

Estado de São Paulo, de medidas de rearranjo da governança de sociedades em recuperação judicial.

Considerando-se baixa a incidência de efetivos rearranjos de governança como meio de recuperação judicial, o que representa um contrassenso para um efetivo soerguimento da empresa, não foi verificada qualquer relação entre a adoção de tais medidas como meio de recuperação e desfechos positivos do correspondentes processos.

Busca-se neste trabalho, dessa forma, traçar um contraponto entre as razões que levam a empresa à crise, pautadas principalmente na falta de profissionalização da gestão, o que pode ser mitigado com a adoção de práticas que melhorem a governança, com a efetiva implementação destas medidas, a

fim de que os objetivos insculpidos pela Lei de Recuperação de Falência sejam observados.

Na primeira parte do trabalho serão abordados os motivos do surgimento da crise econômico-financeira na empresa, passando-se para a análise dos efeitos do processamento da recuperação judicial, seus objetivos, a alteração na condução dos negócios e os meios para a superação da crise, na segunda parte.

Na sequência, na terceira parte, serão abordados os conceitos da governança corporativa como forma de aumentar o valor da empresa, para, na parte final, apresentar o resultado obtido na análise de processos em trâmite na 1ª e 2ª Varas de Recuperação Judicial e Falência da Capital do Estado de São Paulo, a fim de verificar se as recuperandas propõem a adoção de medidas de governança como meio de recuperação, e se de fato essas medidas são implementadas. Por fim, a conclusão buscará traçar as hipóteses para os resultados obtidos, de modo a municiar os operadores do direito recuperacional com dados que permitem a reflexão sobre os mecanismos dispostos na legislação para que os objetivos de soerguimento das empresas em crise sejam alcançados.

2. As Razões que Levam a Empresa à Crise

Segundo disposto no artigo 47 da LRF e adiante melhor destrinchado, o instituto da recuperação judicial visa “viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, (...) promovendo, assim, a preservação da empresa”, por meio da aplicação de mecanismos capazes de possibilitar o enfrentamento do momento de crise.

Cabe ressaltar que a “crise” indicada no referido artigo 47 tem o condão de discriminar uma situação de desequilíbrio entre a realização dos direitos e a exigibilidade das obrigações, na

1. Introdução

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medida em que o devedor passa a ter dificuldade em honrar com os compromissos assumidos com terceiros01.

Tal crise pode ou não gerar uma situação de insolvência econômica, compreendida pela ausência de recursos do devedor para saldar seu passivo, e desencadear na insolvência jurídica, com o inadimplemento das obrigações e demais atos que frustram direitos dos credores em executar determinada obrigação anteriormente pactuada02.

No processo de recuperação judicial, a lógica é pela viabilidade da empresa que se encontra em crise, de modo a evitar o atingimento de uma insolvência econômica irreversível do devedor. Não se trata, contudo, de uma proteção exagerada do devedor em detrimento dos credores: empresas inviáveis devem ter, inquestionavelmente, a falência decretada, a fim de permitir a realocação de recursos ineficientes entre players saudáveis e solventes, como um caminho natural que qualquer economia que preze pelo livre mercado deve estar sujeita03.

Dessa forma, no âmbito do processo de recuperação judicial, deve-se analisar as razões que levaram à crise econômica financeira do devedor para, em um segundo momento, buscar um meio para sua superação.

Neste sentido, diversas são as razões verificadas que levam uma empresa à crise, desde questões de ordem financeira, elevação do endividamento e restrições à tomada de crédito, passando por questões relacionadas à atividade, dificuldade em atrair clientes, desentendimentos com fornecedores, mão-de-obra pouco qualificada disponível, e até crises macroeconômicas.

Independente da razão que tenha levado à situação de crise econômico financeira, para que a empresa entre em um estado

de dificuldade, diversas decisões estratégicas e relevantes são tomadas, sendo determinantes para o agravamento ou para a eliminação de qualquer risco que coloque em xeque sua capacidade financeira.

São decisões relacionadas à gestão do negócio, como a opção por uma linha de crédito junto a uma instituição financeira em detrimento de outra, demissão de funcionários que pouco contribuem para o resultado da empresa, criação ou eliminação de determinado produto ou serviço objeto de sua atividade, por exemplo. Assim, embora não se possa afirmar que a crise econômico-financeira decorre necessariamente de um comportamento desidioso do devedor04, é de supor que, a menos que haja fatores externos não ligados à má-gestão, como razões macroeconômicas, que ultrapassam qualquer tomada de decisão por parte do devedor, “a razão das dificuldades se encontra na falta de condições ou competência para os administradores realizarem os cortes de pessoal e de despesas, modernizarem o estabelecimento ou otimizarem os recursos disponíveis”05.

Tal fato se torna ainda mais relevante em um cenário em que o sócio da sociedade ocupa também o papel de administrador. Conforme estudo realizado pelo Núcleo de Estudos em Mercados e Investimento da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo publicado em 2014, em uma Radiografia das Sociedades Limitadas, após analisar as sociedades limitadas ativas constituídas entre 1993 a janeiro de 2012, com registro na Junta Comercial do Estado de São Paulo, constatou-se que 98,34% das sociedades limitadas analisadas possuem algum sócio ocupando o cargo de administrador06, considerado pelo estudo, por tal razão, como um administrador não profissional.

O índice acima aponta para uma realidade nas sociedades brasileiras, em que a figura e os interesses do sócio se

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confundem com a figura e os interesses do administrador. Assim, se estiver diante de uma situação que possa influir diretamente no seu patrimônio, o sócio administrador muito provavelmente tomará uma decisão embasada nos interesses de quem detém participação societária, ainda que seja uma decisão não técnica ou em prejuízo da sociedade.

Este cenário reforça ainda mais a ideia que, a menos que haja fatores externos que influam diretamente na atividade, as razões que levam uma empresa a uma situação de crise econômica financeira são decorrentes de atos de má-gestão, quando determinada decisão relacionada às atividades da sociedade é tomada de forma equivocada, em prejuízo da própria sociedade.

A análise dos motivos que levam uma empresa a entrar em crise são determinantes para que os meios de recuperação judicial possam ser adotados da forma mais eficiente possível, de modo a possibilitar o soerguimento da atividade e a preservação da empresa07. Há de se verificar, portanto, as causas verdadeiras que deram ensejo à crise, para que se possa buscar de forma efetiva a superação da crise.

3. O Processamento da Recuperação Judicial

3.1 Objetivos da LRF

Com a instauração de uma crise econômico-financeira em uma empresa, inicia-se um ambiente de incertezas e inseguranças para os participantes daquela atividade econômica.

Os credores ficam sem saber se terão seus créditos recuperados, os trabalhadores sem saber se terão seus postos mantidos, os sócios sem saber o impacto que será verificado em suas participações societárias, atingindo ainda terceiros que são influenciados indiretamente pelo exercício da

atividade empresarial da empresa com problemas econômicos e financeiros.

Neste sentido, os chamados stakeholders correspondem ao conjunto de agentes que, direta ou indiretamente, guardam relação com uma empresa. Com o objetivo primordial de preservação da atividade empresarial economicamente viável e dos interesses dos stakeholders, é que se formam, de acordo com a legislação brasileira, mecanismos para viabilizar o soerguimento de uma empresa em crise.

No Brasil, o artigo 47 da Lei de Recuperação Judicial e Falências (“LRF”)08 prescreve que o principal objetivo do processo de recuperação judicial é oportunizar à empresa uma chance de superação da crise com a manutenção da fonte produtora, preservação dos empregos e a conservação dos interesses dos credores09, desde que seja viável recuperá-la.

Tanto é assim que, do plano de recuperação judicial, deve obrigatoriamente constar a demonstração da viabilidade econômica do devedor para a manutenção da atividade10, já que no momento do deferimento do processamento da recuperação judicial, o Juízo recuperacional somente se atém aos aspectos formais do pedido, cabendo futuramente aos credores decidirem pela recuperação ou não da empresa em crise11, por meio da aprovação do plano apresentado.

Busca a lei, portanto, “outorgar efetiva condição de superação de crise econômico-financeira de empresa nessa condição [de crise]”12, de modo a preservar sua função social. Assim, para que o processamento da recuperação judicial seja exitoso, nos termos da LRF, é preciso que a recuperanda apresente soluções eficientes de soerguimento e que os credores, interessados na continuidade da atividade empresarial desempenhada – ao menos em tese, como adiante abordado – resolvam por bem implementá-las.

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Considerados esses objetivos macro da recuperação judicial, verifica-se que, para serem efetivados, o ambiente de incerteza que se instala sobretudo entre o devedor e os credores (mas também passando pelos stakeholders como um todo) deve ser regulado por regras que confiram aos participantes da empresa em crise um mínimo de segurança jurídica, a fim de que os diversos interesses envolvidos no processo de recuperação sejam devidamente atendidos.

Tais regras devem contemplar transparência13 e outras medidas de forma a reestabelecer a confiança e o atingimento de objetivos comum, quais sejam, o soerguimento da atividade e o pagamento dos credores.

Já que é do interesse dos credores a manutenção do devedor na condução dos negócios da empresa em crise – ainda que com restrições, como abordado a seguir – seria importante que ao menos fossem implementadas medidas para mitigar as chances de decisões equivocadas, tomadas de forma pouco profissional ou eivadas de interesses pessoais que podem inclusive colocar em risco o processo de soerguimento.

É nesse contexto que se insere a importância da adoção de melhorias na governança em um ambiente de recuperação de crise, de forma a reestabelecer confiança, aumentar valor da sociedade em dificuldades e ter-se uma chance real para o seu soerguimento, cumprindo-se, assim, os objetivos insculpidos na LRF.

3.2 Alterações na Condução das Atividades da Empresa em Crise no Curso do Processo de Recuperação Judicial

Nos termos do caput do art. 64 da LRF, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial durante o processamento da recuperação judicial14,

salvo se praticados atos criminosos, nos termos da LRF, ou atos que coloquem em risco os interesses dos credores ou o sucesso do processamento da recuperação judicial.

A manutenção do devedor à frente das atividades desempenhadas pela recuperanda visa preservar as relações comerciais realizadas pelo devedor, a fim de maximizar o valor dos ativos durante o processo de recuperação judicial, um dos objetivos deste instituto e, consequentemente, maximizar o valor da empresa em crise, atendendo aos interesses dos credores em receber o valor dos créditos junto à recuperanda.

A opção do legislador pela manutenção do devedor e seus administradores na condução da atividade empresarial durante a recuperação judicial, além de prezar pela conservação das relações comerciais, maximizando o valor da empresa, traz um incentivo para a apresentação de pedido de recuperação judicial, já que não há o afastamento da condução das atividades exercidas pela recuperanda. Caso contrato, se houvesse o afastamento com o início do processamento da recuperação judicial, pode-se afirmar instintivamente que a chance do devedor recorrer a este instituto seria drasticamente reduzida, sabendo que entregaria a condução dos negócios para terceiro estranho15.

Outro ponto colocado é que ninguém melhor conhece16(ou não deveria) o negócio e a empresa em crise, como o próprio devedor e sua administração17. Atribuir a terceiro estranho ao negócio a competência de administrar a recuperanda muito provavelmente resultará, portanto, numa perda de valor para a atividade empresarial e no enfraquecimento deste instituto, em que pese o afastamento ser medida necessária em determinadas situações18.

A mesma lógica de manutenção do devedor na condução da empresa em crise a partir do processamento da recuperação

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judicial19/20– se verifica no Chapter 11 do Bankruptcy Code do direito norte-americano21, identificado como debtor-in-possession. Outro modelo comum de condução das atividades no curso do processo de recuperação, com aplicação predominante no Reino Unido judicial é a figura do trustee, quando ocorre a destituição dos administradores do devedor logo ao início do processo de recuperação judicial e quando é apontado um terceiro para administrar a sociedade recuperanda22.

Apesar de continuar na condução dos negócios da empresa em crise durante o processamento da recuperação judicial, no momento em que o pedido é deferido, o devedor sofre severas restrições quanto a disposição de bens e tomada de decisão dos rumos da empresa em crise, visando atender e observar os interesses dos credores envolvidos no processo recuperacional, trazendo alterações que influenciam diretamente na “formação de vontade social, no modo como é exercida a administração e no seu regime informacional”23.

Por meio do comitê de credores24, se existente25, da assembleia de credores26 e do administrador judicial, a condução da empresa em crise sofre fiscalizações que inexistiam antes do deferimento do pedido, havendo clara limitação por parte do devedor, ainda que lhe seja garantido a permanência na condução sobre os rumos da sociedade27.

Assim, embora na recuperação judicial, ao contrário do que verifica na falência, os órgãos societários continuem constituídos e operando, há um enfraquecimento do controlador, diante das restrições legais que se verificam e da sujeição à fiscalização de credores, do Poder do Judiciário e de seus auxiliares.

A referida limitação alcança ainda a disposição de bens da sociedade em recuperação judicial pelo devedor, já que, para preservação do princípio do par conditio creditorum, a alienação

de bens de propriedade da sociedade deve ser aprovada pelos credores28, preferencialmente no plano de recuperação judicial – sem prejuízo de alienar bens fora do plano de recuperação29 – pois trata-se de um meio de recuperação da sociedade, como adiante abordado.

Com isso, muito embora o controle seja mantido na recuperação judicial – a menos que no plano haja previsão de sua alteração – sofre o devedor restrições de diversas ordens, sendo a mais relevante delas a restrição imposta à possibilidade de alienação de bens da sociedade. Fala-se em esvaziamento do poder de controle nesse caso30.

Além das limitações impostas pela legislação, é de se destacar a possibilidade de outras formas de restrição ao exercício de controle pelo devedor, o que pode ser estipulado no plano de recuperação judicial, estejam ou não previstas na LRF ou não, como adiante abordado.

Pelo ora exposto, verifica-se que a LRF impõe restrições à condução das atividades pelo próprio devedor, seja por meio de suas disposições mandatórias, seja por meio da sujeição dele, devedor, à ingerência31 de terceiros, notadamente os credores, que têm seus poderes alargados32, verificando-se a certa restrição aos atos dos sócios e administradores, e não propriamente uma reestruturação da administração da sociedade, o que somente pode ocorrer com a adoção de medidas para melhoria da governança.

3.3 Os Meios de Recuperação Judicial

As medidas que serão adotadas para o atingimento dos objetivos insculpidos pela LRF devem estar devidamente dispostas no plano de recuperação judicial, que dispõe sobre os meios de recuperação judicial adotados pela recuperanda,

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trazendo a demonstração da viabilidade econômica, bem como a avaliação dos ativos, devidamente levantado em laudo especialmente produzido33.

Trata-se de negócio jurídico plurilateral, que tem o efeito de novar as obrigações originalmente pactuadas pela recuperanda34, e vincula o devedor ao seu cumprimento, da forma como disposto no plano. É o documento que norteia todo o procedimento de soerguimento da empresa em crise, fornecendo os meios que serão implementados para tanto, que deverão ser submetidos à aprovação dos credores.

Neste sentido, o art. 50 da LRF prevê um rol exemplificativo35 de meios pelos quais a recuperação judicial pode ser operada, trazendo “instrumentos financeiros, administrativos e jurídicos que normalmente são empregados para a superação de crises em empresas”36.

O objetivo em outorgar total liberdade para a eleição dos meios de recuperação judicial é justamente possibilitar ao devedor a adoção de medidas que guardem relação com as causas da crise, a fim de que o objetivo do processamento da recuperação judicial seja atingido.

Importante ressaltar, contudo, que a liberdade em escolher medidas que enfrentam a crise não significa a adoção de qualquer ato contrário a lei, já que os meios de recuperação deverão “observar as condições materiais de sua validade e os procedimentos previstos na legislação correspondente”37.

Dessa forma, para o sucesso da recuperação judicial, é preciso que os meios indicados no plano de recuperação judicial guardem relação com os motivos que levaram à crise econômica-financeira, sob pena de colocar em xeque o atingimento dos objetivos estipulados pela LRF.

O que se observa, contudo, é que os meios adotados nem sempre guardam relação com os motivos da crise – como será objeto do estudo empírico adiante trazido – mas sim com os interesses dos credores no recebimento do seu crédito. Assim, apesar de atuar na restrição do devedor no exercício das atividades desempenhadas pela recuperanda, os interesses dos credores no recebimento dos créditos nas melhores condições possíveis muitas vezes ultrapassam o interesse pela continuidade e pelo soerguimento da empresa em crise.

Já que é do interesse dos credores manter o devedor à frente da condução dos negócios da empresa em crise – ainda que com restrições, como já abordado – seria importante que ao menos tal devedor implementasse medidas para mitigar as chances de decisões equivocadas, tomadas de forma pouco profissional ou eivadas de interesses pessoais que podem inclusive colocar em risco o sucesso do soerguimento.

Não está desprezando, com a afirmação acima, os custos e as despesas incidentes na implementação das medidas para aumentar a governança, o que influencia diretamente na chance destas medidas serem mais ou menos implementadas.

De todo modo, é nesse contexto que se insere a importância da adoção de melhorias na governança corporativa num ambiente de recuperação de crise, de forma a reestabelecer confiança, aumentar valor da sociedade em dificuldades e ter-se uma chance real para o seu soerguimento.

4. O Instituto da Governança Corporativa como Meio de Recuperação Judicial

Em tratando o presente artigo da governança da sociedade em recuperação judicial, das restrições a ela impostas durante o procedimento e, principalmente, da análise de efetividade e

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implementação dos meios de recuperação, relevante se faz uma breve análise do instituto da Governança Corporativa38.

Antes de verificar-se a relevância da governança corporativa bem estruturada no âmbito da recuperação judicial propriamente dito, indispensável faz-se a análise do referido instituto de forma geral, como sendo aplicável a qualquer sociedade.

De acordo com o IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, a “Governança Corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas.”39

Cumpre destacar neste Capítulo que o IBGC ainda lista os mais relevantes princípios aos quais a governança corporativa deve atender40: (i) transparência (disclosure); (ii) equidade ou isonomia (fairness); (iii) prestação de contas (accountability); e (iv) responsabilidade corporativa (compliance).

Tais objetivos podem ser atingidos por meio de alterações na estrutura da sociedade, de modo a segregar as figuras dos sócios das figuras dos administradores, profissionalizando, assim, a gestão da sociedade. Eleição de administradores profissionais, criação de novos órgãos de administração para possibilitar uma mitigação de decisões tomadas em conflito de interesses, bem como a atribuição de competências claras e compatíveis com os propósitos de cada órgão societário.

De acordo com o acima indicado, verifica-se que a governança corporativa, embora não conceituada de forma una, trata basicamente do conjunto de regras e medidas pelas quais as sociedades são operadas, sendo que são recomendáveis as

melhores práticas para melhorar relações entre os participantes da atividade e o aumento do seu valor.

Nessa esteira, pressupõe-se que, quanto mais se observa boas práticas de governança, mais atrativa se faz uma sociedade para investimentos e, consequentemente, maximiza-se seu valor. As boas práticas de governança entregam majoração de valor às sociedades que as implementam, possibilitando uma gestão profissionalizada e indene de interesses diversos senão o atingimento do objeto social proposto pela sociedade.

Destarte, seria intuitivo defender que a implementação de medidas de melhoria da governança corporativa é providência primordial para que a empresa em crise consiga se soerguer, atingindo os objetivos da LRF, principalmente pela mitigação de riscos decorrentes de decisões tomadas de forma equivocada que estas medidas proporcionam, o que se torna ainda mais relevante se considerado que os atos de má gestão são os principais motivos que levam a empresa à crise.

Propostas de melhoria para a governança corporativa da sociedade em dificuldades devem constituir instrumento hábil à recuperação, considerando que a sua implementação contribui com a coesão do plano. Neste sentido, como acima trabalhado, o artigo 50 da LRF dispõe como meio para a recuperação medidas que implicam diretamente na alteração da estrutura societária das recuperandas, entendendo que mudanças na administração, ainda que o devedor seja mantido na gestão, possibilitam a recuperação da empresa em crise41.

Criar e colocar em prática melhores sistemas de governança, portanto, prestam-se a recompor a confiança e melhorar o desempenho da empresa em crise, além de preservar e aumentar o valor da empresa, reduzir riscos na atividade e propiciar mais facilidade ao acesso de capital novo.

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5. Uma Análise Empírica da Efetiva Implementação de Medidas e Rearranjos Societários de Empresas em Recuperação Judicial

Apresenta-se nesta parte um estudo empírico que visa a verificação da previsão de adoção de medidas de governança nos planos de recuperação judicial e a sua efetiva implementação de medidas e rearranjos societários em sociedades em recuperação judicial – que implicam a governança – em relação às previsões contidas nos respectivos planos como meios para o soerguimento da empresa em crise.

A questão que aqui se levanta é em que medida as empresas de fato preveem a adoção de medidas de governança como meio de recuperação judicial e se há algum indicativo de que estas medidas guardam alguma relação com a efetiva recuperação da empresa em crise.

Em consonância com a metodologia adiante explanada, o estudo chegou à conclusão de que apenas 6,6% das recuperandas analisadas implementaram alguma medida para a melhoria de sua governança e que, em relação àquelas que implementaram, 33,3% tiveram sua falência decretada durante o cumprimento do plano, não sendo possível estabelecer a relação direta entre a adoção de medidas para melhoria da gestão e o resultado final do processo de recuperação judicial, uma vez que fatores outros – dos mais diversos – podem influenciar no desfecho de uma recuperação judicial.

Como base para a realização da pesquisa empírica do presente trabalho, foram utilizados os dados apresentados por estudos elaborados pelo NEPI – Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência da PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em parceria com a ABJ – Associação

Brasileira de Jurimetria, notadamente a 2ª Fase do Observatório de Insolvência42.

O Observatório analisou processos de recuperação judicial decorrentes de pedidos ajuizados no Estado de São Paulo entre janeiro de 2010 a julho de 2017, o que totalizou 906 processos.

Dentro deste número, foram analisados somente os processos em que o plano de recuperação judicial foi aprovado, a fim de verificar se houve a previsão de meios de recuperação pautados na adoção de medidas de governança nas recuperandas. Ainda, como forma de viabilizar o corte amostral no qual pautou-se a pesquisa ora apresentada, esta tomou por base a análise somente de processos eletrônicos em trâmite na 1ª e na 2ª Varas de Falências e Recuperação Judicial da Capital, o que totalizou 95 processos analisados.

Com fulcro nessa amostragem, buscou-se verificar nos planos de recuperação judicial aprovados a previsão de adoção de medidas para melhoria de governança nas recuperandas como meio de recuperação e, em um segundo momento, se as medidas de fato foram implementadas.

Na fase de verificar a implementação das medidas de melhora na governança corporativa, conforme indicado em determinados planos de recuperação, a pesquisa partiu da premissa que as medidas de governança corporativa que possibilitam a profissionalização da gestão da sociedade e alteração na composição acionária são de natureza estrutural, representada pela eleição de novos administradores, criação de novos órgãos de administração, alteração de competências específicas para cada órgão social e alteração na composição societária, por exemplo, todas medidas que necessitam de alteração e registro de atos societários perante a junta comercial.

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Dessa forma, foram analisados os atos constitutivos dessas sociedades perante a página virtual da JUCESP – Junta Comercial do Estado de São Paulo, a fim de verificar se houve alguma alteração de contrato ou estatuto social, bem como o registro de demais atos, relacionados a medidas de governança.

O objetivo da pesquisa foi examinar qual é a proporção das recuperandas que preveem a adoção de alguma medida para melhoria na governança como meio de recuperação judicial, a fim de verificar se os propósitos de soerguimento e recuperação das atividades empresariais são de fato observados, e qual é a consequência da implementação ou não da referida medida.

O resultado, de forma geral, é que há pouca previsão nesse sentido como meio de recuperação da empresa em crise nos planos de recuperação judicial, sendo ainda menor o número de sociedades que realmente implementam as medidas indicadas nos planos aprovados.

Verificou-se que, em 38 dos 95 planos de recuperação aprovados analisados, há alguma menção sobre a possibilidade da adoção de medidas que visem melhorar a governança corporativa como meio de recuperação, sendo que em 08 dos 38 processos há somente uma mera alusão às referidas medidas, citando, de forma exemplificativa, os incisos correlatos do artigo 50 da LRF, sem qualquer previsão minimamente concreta43.

Dessa forma, considerou-se que de 95 planos de recuperação analisados, apenas 30, ou seja, aproximadamente 31,6%, previam, de forma efetiva, a possibilidade de adoção de alguma medida que contribuísse para a melhoria da sua governança, sendo certo que as disposições presentes nos planos analisados nesse sentido em geral não tinham o objetivo de vincular a recuperanda no cumprimento daquelas obrigações, sendo comumente utilizados termos como “poderão” para exemplificar

os meios de recuperação adotados, aí incluídos os que fazem menção à mudança da estrutura de gestão da sociedade.

Dentre os principais meios de recuperação relacionados à medidas de governança, os 30 planos de recuperação indicaram a previsão de: (i) eleição de administradores profissionais e independentes (6); (ii) alteração na composição societária da recuperanda, com consequente alteração no capital social (11); (iii) alteração na estrutura dos órgãos da administração da sociedade (04); e (iv) adoção de medidas de reorganização de forma genérica (09).

Dessa forma, em termos de percentuais, os meios mais indicados pelos planos de recuperação analisados têm a seguinte proporção:

Passando para a análise da efetiva implementação das medidas de governança mencionadas nos planos de recuperação judicial, por meio da verificação de arquivamento de atos societários no sítio virtual da JUCESP, verificou-se que em apenas 06 recuperandas, ou seja, em apenas 20% dos casos em que havia previsão no plano, de fato houve a implementação. As medidas efetivamente implementadas,

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conforme apurado perante a Junta Comercial do Estado de São Paulo, foram (i) a criação de conselho de administração e eleição de novos administradores; (ii) a transformação do tipo societário e eleição de novos administradores; (iii) a alteração na composição acionária e eleição de novos administradores; e (iv) a mudança nas regras de administração da recuperanda.

Como verificado na análise acima exposta, apenas 31,6% dos planos de recuperação aprovados trazem alguma menção à possibilidade de adoção de medidas de governança como meio de recuperação, sendo que, em apenas 20% dos casos em que de fato havia a previsão, a referida medida foi efetivamente implementada, ou seja, apenas 06 de 95 recuperandas, o que representa 6,6% do total de processos de recuperação judicial analisados de fato implementram alguma medida para melhoria da governança.

Prosseguindo na análise, a fim de verificar o resultado do processo de recuperação das recuperandas que implementaram as medidas de governança indicadas no plano, constatou-se que 02 tiveram sua falência decretada ao longo do cumprimento do plano, enquanto 03 estão em fase de cumprimento e 01 teve a recuperação encerrada.

Evidente que os resultados acima apontados não possuem viscosidade suficiente para alcançar uma conclusão robusta e concisa, apesar da base inicial de processos analisar ser considerável, o que demandaria a ampliação do número de processos de recuperação judicial ajuizados.

Tais resultados podem gerar diversas conclusões, frisando-se sempre que, para uma pesquisa mais fiel à realidade é necessária a ampliação da base de dados analisados. Uma delas é que poucas recuperandas (6,6%) implementam medidas para melhorar a governança corporativa durante o processo de recuperação judicial, o que indica ser um elemento pouco importante, na visão

do devedor e dos credores, para o soerguimento da sociedade com a consequente superação da crise.

Isto traz à tona os questionamentos sobre se os objetivos da LRF estão sendo estão sendo observados no processo de recuperação judicial, e sobre se há algum tipo de incentivo legal para que medidas que visam melhorar a gestão das recuperandas sejam implementadas.

De outro turno, o resultado final dos processos de recuperação analisados permitem refletir se, de fato, a adoção de medidas de governança influenciam no sucesso ou no fracasso da recuperação judicial, na medida em que o índice aproximado de decretação de falência das empresas que implementam as referidas medidas é de 33,3%, o que não foge muito da proporção verificada na base de processos analisados, levando em consideração o reduzido número de recuperandas implementada (6).

Buscou-se verificar por meio do estudo acima apresentado se é verdadeira a hipótese de que, numa sociedade em recuperação judicial, reestruturar os órgãos da administração, rearranjar a forma pela qual é exercido o controle ou implementar novas práticas de governança corresponde a uma maior efetividade para o soerguimento.

Com fulcro nos números levantados – considerava a amostragem relativamente reduzida –, verifica-se que a adoção de medidas de reestruturação da governança da sociedade em recuperação judicial tem baixa incidência nas Varas Especializadas da Capital do Estado de São Paulo.

Verificou-se, ademais, que mesmo quando medidas de rearranjo na governança são implementadas no âmbito da empresa em crise, não é possível vislumbrar uma relação direta

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entre tal reorganização e um desfecho positivo do processo de recuperação judicial.

6. Conclusão

O presente artigo apresentou uma análise empírica da efetiva implementação, com relação a processos das Varas Especializadas da Capital do Estado de São Paulo, de medidas de rearranjo da governança em sociedades em recuperação judicial.

Para conferir subsídios à realização de um exercício de pensamento sobre o que representam os números verificados, analisou-se (a) as razões que levam uma empresa à crise econômico-financeira, cuja identificação é de importância de relevo para a escolha das medidas a serem implementadas para o soerguimento e a superação da crise, (b) as restrições impostas pela legislação aplicável (e passíveis de serem impostas) à condução das atividades da sociedade em recuperação judicial, (c) os supostos benefícios da implementação de melhores práticas de governança corporativa como meio de recuperação judicial.

Tendo sido verificada do estudo empírico apresentado uma baixa taxa de sociedades em recuperação que previram e implementaram rearranjos em suas governanças, é possível formular as seguintes hipóteses:

I. a baixa incidência de rearranjos de governança nas sociedades em recuperação judicial poderia decorrer dos custos que a implementação representam à devedora, o que nem sempre vale a pena ser empregado;

II. igualmente, poder-se-ia atribuir os resultados aferidos à resistência por parte dos credores contra a implementação de rearranjos de governança, que, diante de interesses egoísticos que têm, raras as vezes são as que se preocupam

com o efetivo soerguimento da empresa em crise (a menos que necessário seja tal soerguimento à maximização de seus créditos); destarte, exceto se representarem maximização a curto prazo dos créditos dos credores, a efetivação de melhorias na governança da recuperanda enfrenta resistência destes, muito em função do custo representado; e

III. finalmente, destaca-se que outra e final hipótese que poderia justificar a não implementação de rearranjos nas sociedades em recuperação judicial, qual seja, a ineficiência (ou indiferença) de tais medidas na entrega de valor à empresa. Isto é, uma vez em recuperação judicial, o valor da sociedade automaticamente decai, sendo que a implementação de medidas para supostas melhorias na governança não suprem as perdas decorrentes do processamento; não ter-se-ia retorno suficiente.

Dessa forma, conclui-se que a elaboração de novos e complementares estudos empíricos se mostram importantes à verificação de se a LRF, especialmente no tocante aos meios de recuperação, tem se prestado ao fim ao qual foi concebida.

Assumindo que mecanismos de reorganização da governança de sociedades em crise – neles incluídos aqueles previstos na legislação própria – não têm sido utilizados como meio de recuperação, inovadoras soluções precisam ser ventiladas pelos juristas (a serem acompanhadas de evolução legislativa), a fim de conferir maior efetividade ao processo de recuperação judicial.

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Notações

01. Cf. CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime da insolvência empresarial. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 126.

02. Sobre insolvência jurídica e insolvabilidade econômica, v. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. op. cit., pp. 356-357.

03. Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 161-162.

04. Cf. Marcelo Sacramone: “[a] crise econômico-financeira que acomete a sua atividade empresarial não necessariamente é decorrente de um comportamento desidioso do devedor. Sua situação de iliquidez transitória poderá ser decorrente de fatores externos não ligados à má-gestão.” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. op. cit., p. 280)

05. Cf. Fábio Ulhoa Coelho: “[s]alvo quando a crise tem razões macroeconômicas pelas quais os administradores não podem responder, a razão das dificuldades se encontra na falta de condições ou competência para os administradores realizarem os cortes de pessoal e de despesas, modernizarem o estabelecimento ou otimizarem os recursos disponíveis.” (COELHO, Fábio Ulhoa. op. cit., p. 203.)

06. MATTOS FILHO, Ary Oswaldo; CHAVENCO, Maurício; HUBERT, Paulo; VILELA, Renato; RIBEIRO, Victor B. Holloway. Núcleo de Estudos em Mercados e Investimento. Radiografia das Sociedades Limitadas. FGV Direito, 2014.

07. “Nenhuma recuperação judicial terá sucesso se o diagnóstico da crise for malfeito. Se as razões das dificuldades por que passa a devedora dizem respeito a má administração, a reorganização da empresa será possível desde que substituídos os administradores; se estão ligadas ao atraso tecnológico, dependerá de mudanças na estrutura do capital que gere os recursos necessários à modernização do estabelecimento empresarial; quando decorrem exclusivamente da conjuntura econômica desfavorável, a recuperação pode dar-se com a simples postergação de vencimentos de algumas obrigações ou corte de custos, e assim por diante. Quer dizer, para cada empresa caberá adotar solução diversa em função da causa de sua crise. Se o diagnóstico não é correto, a terapêutica recomendada falhará. Se a causa apontada para o estado de pré-insolvência é o atraso tecnológico, mas a razão verdadeira deriva da total incompetência dos administradores, é evidente que o aporte de recursos no reaparelhamento da planta sem substituição dos diretores representará puro desperdício. Entre as causas concretas expostas pela sociedade empresária devedora e o seu plano de reorganização, portanto, não pode deixar de existir um liame lógico e tecnicamente consistente.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 3. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 381.)

08. LRF. Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos

interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

09. BEZERRA FILHO, Manuel Justino[et al.]. Recuperação empresarial e falência. 2ª ed. rev. atul. e ampl. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 179.

10. LRF, art. 53, II.

11. “No momento em que o juiz, à vista da petição inicial do devedor, defere o processamento da recuperação judicial, não cabe avaliar se a requerente está envolvida em crise de superação viável. A viabilidade da recuperação judicial será objeto de decisão pelos credores em outra oportunidade (na assembleia de credores) e não pelo juiz, ao despachar a petição de impetração.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas, 13ª ed. rev. e atual., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 228)

12. BEZERRA FILHO, Manuel Justino[et al.] op. cit., p. 180.

13. “Destaque-se que o uso da máxima da transparência no ambiente de recuperação judicial não beneficia apenas e tão-somente os diretamente envolvidos no específico processo. Ela contribui para os sucessos das medidas de reorganização empresarial como um todo. (...) [o] dever de transparência aplicado aos casos de crise empresarial está intimamente relacionado ao estímulo da participação de qualidade dos credores na definição do destino do devedor, favorecida pela criação de ambiente de cooperação entre as partes”. NEDER CEREZETTI, Sheila Christina; MAFFIOLETTI, Emanuelle Urbano, Transparência e divulgação de informações nos casos de recuperação judicial de empresas, in Ricardo Lupion (coord.), 10 anos da lei de falências e recuperação judicial de empresas: inovações, desafios e perspectivas, 2016.

14. “A LRE optou por manter a administração das atividades sob a competência do devedor, que fica sob a fiscalização do administrador judicial e, quando constituído, do comitê de credores. Isso significa que, em situações de normalidade, os órgãos da administração continuam em atuação, sendo afastados apenas e tão somente nos casos de irregularidade previstos no art. 64.”. (Ibid.)

15. “A manutenção do devedor na condução de sua atividade incentiva-o a requerer a recuperação judicial por ocasião de sua crise, na medida em que não haveria risco de perda do controle de seus bens”. (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. op. cit., p. 280)

16. “Ao deter o conhecimento para a organização dos fatores de produção, o devedor pode ser o profissional mais apto ao desenvolvimento da sua atividade.” (Ibid.)

17. “O emprego desse modelo, evidentemente, traz vantagens e desvantagens. Dentro os benefícios, pode-se mencionar, por exemplo, que ninguém conhece as atividades da devedora e os negócios de que participa melhor do que o seu controlador e sua administração. Esse conhecimento certamente pode contribuir com a recuperação da empresa em crise e dificilmente seria rapidamente adquirido por um terceiro que viesse a assumir a administração da sociedade já em recuperação judicial. Além disso, a não alteração, em regra,

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da administração da companhia pode permitir o prosseguimento do processo de recuperação com maior celeridade, uma vez que tanto a nomeação quanto a adaptação de possíveis novos administradores a seus cargos levariam um tempo considerável, muitas vezes crucial ao reerguimento da companhia.” (PEREIRA, Guilherme Setoguti J.; PIVA, Fernanda Neves, op. cit., p. 383).

18. Nesse sentido, Sheila Cerezetti e Emanuelle Maffioletti assim pontuam: “[s]abe-se que, em determinadas situações, o afastamento do devedor é fundamental para que o processo de recuperação judicial seja devidamente conduzido. Há casos em que a manutenção do grupo de controle e/ou da administração anterior impede que sejam negociados termos aceitáveis de reestruturação da dívida e dos negócios. Aqui, a criação de um novo núcleo de administração do devedor apresenta-se como única saída para que o acordo viável seja alcançado.” (NEDER CEREZETTI, Sheila Christina; MAFFIOLETTI, Emanuelle, op. cit.).

19. “Perhaps the most appealing feature of reorganization under Chapter 11 to a debtor firm is that the incumbent management remains in office and continues to control the firm during its attempt to reorganize. This management-friendly approach of Chapter 11 can explain its evolvement as the leading vehicle for treating the financial affairs of distressed firms. (…) The displacement of management discourages a voluntary filing for reorganization, and creditors invariably file for the liquidation of a debtor.” (HAHN, David, Concentrated ownership and control of corporate reorganizations, in JCLS 4, 2004).

20. “The Code gives debtors management control over the business after filing, permission to continue the business in ordinary operations, the exclusive right to propose a plan of reorganization, exemption from securities laws when a plan is proposed, and a number of other options that make it possible to operate a business successfully after filing. By creating an opportunity for a business to survive its immediate financial crisis, the system serves several normative goals, including the objective goal of encouraging voluntary submission.” (WARREN, Elizabeth, Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World, in Mich. L. Rev. 92, 1993-1994)

21. “Chapter 11 provides a reorganization mechanism under which the business may continue while restructuring the investor claims against its assets. After these claims are adjusted to reflect the value of the business as an ongoing entity, the business emerges from bankruptcy protection to begin life anew.” (FROST, Christopher. W. Bankruptcy Redistributive Policies and The Limits of The Judicial Process. In: 74 N.C. L. Rev. 75, 1995-1996, p. 77).

22. Outra estrutura de condução das empresas nos processos de recuperação judicial é o modelo híbrido, comumente aplicado no Canadá, no qual a sociedade em recuperação indica um “monitor”, que, via de regra, não participa das atividades diárias e das decisões, mas tem a principal função de levar informação ao Juízo e aos credores sobre os rumos da sociedade, cabendo ao Juízo recuperacional decidir, caso a caso, as atribuições específicas do monitor. Neste sentido, nas palavras de ROTEM: “Corporate bankruptcy scholarship has contemplated this normative query against the backdrop of two prevailing models: the American Debtor-In-Possession Model and

the more European-oriented Trustee Model. While the former allows the incumbent management to continue exercising its daily control of the firm during rehabilitation attempts, the latter dictates that incumbent management be replaced with a court-appointed official as soon as the formal bankruptcy proceeding is initiated. Neither of these models provides a perfect solution, and lately it has been suggested that a hybrid governance regime, combining elements of both models, is the better solution. Still, there is further disagreement about the optimal combination of elements. For example, it is not clear whether the court-appointed official should perform managerial tasks alongside the incumbent management. In this context, Canada offers a unique laboratory in which to evaluate such a hybrid reorganization regime. Canada’s main corporate restructuring tool — the Companies’ Creditors Arrangement Act (‘CCAA’) — allows Canadian bankruptcy judges to appoint a ‘Monitor’ to accompany the incumbent management and grants judges considerable flexibility in assigning tasks to this distinctive court-appointed official. As the title indicates, the Monitor is first and foremost an information intermediary”. (ROTEM, Yaad, Contemplating a corporate governance model for bankruptcy reorganizations: lessons from Canada, in Va. L. & Bus. Rev.3. 2008.)

23. PEREIRA, Guilherme Setoguti J.; PIVA, Fernanda Neves, Recuperação Judicial e Direito Societário: Impactos na Governança Corporativa das Companhias, in ROSETTI, Maristela Abla; PITTA, Andre Grunspun (coords.), Governança Corporativa: avanços e retrocessos. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 383.)

24. “O Comitê de Credores não é figura nova em nosso diploma falimentar, pois existia na lei anterior, desde 1945, como se pode ver dos arts. 122 e 123 daquele diploma, que previam exatamente a formação de sociedade organizada por credores em assembleia, para liquidar ou administrar a massa falida, da forma que viessem a propor ao juiz. No entanto – a observação é válida também para a presente lei –, não houve interesse em usar tal prerrogativa legal, porque a recuperação da empresa por meio de comitês é um fenômeno de natureza econômica e não jurídica. Ou seja, embora já houvesse a previsão legal, não houve interesse econômico e, por isso mesmo, o sistema de comitês não funcionou na legislação anterior.” (BEZERRA FILHO, Manoel Justino. op. cit., p. 132.)

25. “É facultativa a instalação do Comitê. Ele não existe e não deve existir em toda e qualquer falência ou recuperação judicial. Deve, ao contrário, ser instaurado pelos credores apenas quando a complexidade e o volume da massa falida ou da empresa em crise o recomendarem. Não sendo empresa de vulto (seja pelo indicador da dimensão do ativo, seja pelo do passivo) e não havendo nenhuma especificidade que justifique a formação da instância de consulta, o Comitê representará apenas burocracia e perda de tempo, sem proveito algum para o processo falimentar ou de recuperação.” (COELHO, Fábio Ulhoa. op. cit., 2018, p. 114)

26. “A assembleia de credores não é inovação trazida pela Lei n. 11.101/2005, eis que no direito concursal brasileiro, em diplomas precedentes e no próprio Dec.-lei 7.661/1945, havia previsão de funcionamento do órgão, porém com

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feições diferentes de como hoje disciplinado. E nisto, evidentemente, está a novidade da Lei vigente: a forma como agora se apresenta a assembleia de credores, e os poderes que lhe são conferidos”. (TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; PUGLIESI, Adriana Valéria. op. cit.).

27. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. op. cit., p. 280.

28. O mesmo verifica-se no direito italiano. Cf. BOGGIO: “”Il fatto che l’organizzazione societaria resti indenne nella sua struttura e funzionalità all’ammissione al concordato non significa che l’apertura della procedura sia senza effetti. In particolare, le regole della procedura, pur non spiegando direttamente effetti endosocietari, ma solo nei rapporti tra la società ed i terzi, incidono in concreto sui poteri di disposizione degli organi societari” (BOGGIO, Luca, Amministrazione e controllo dele società di capitali in concordato preventivo (dalla domanda all’omologazione), in Amministrazione e controllo nel diritto dele società–Liber amicorumAntonio Piras, G. Giappichelli Editore, Torino, 2010.)

29. LRF. Art. 66. Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo permanente, salvo evidente utilidade reconhecida pelo juiz, depois de ouvido o Comitê, com exceção daqueles previamente relacionados no plano de recuperação judicial.

30. “[U]ma vez iniciado o processo, o acionista controlador fica integralmente esvaziado do poder de orientar e fazer com eu a administração da companhia realize atos de alienação de bens do ativo não circulante.” (MENEZES, Maurício. O Poder de Controle nas Companhias em Recuperação Judicial. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 128.)

31. O termo “ingerência” é utilizado lato sensu. Nesse sentido, Marcelo Sacramone anota: “Exceto de estabelecido no plano de recuperação judicial aprovado, não há ingerência propriamente dita dos credores ou do administrador judicial na gestão do devedor. Esses não precisarão aprovar ou ratificar decisões administrativas ou o modo pelo qual o desenvolvimento da atividade econômica é realizado, exceto eventual alienação de unidades produtivas isoladas (art. 60). A condução da atividade é integralmente realizada pelo devedor e apenas a verificação de sua regularidade e do cumprimento do plano é submetida ao acompanhamento pelos órgãos da recuperação judicial.” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. op. cit., pp. 280-281)

32. “Em contraposição à perda de poderes do controlador, há claramente um aumento de poderes de terceiros. Daí se falar até mesmo em creditor control no direito norte-americano.” (PEREIRA, Guilherme Setoguti J.; PIVA, Fernanda Neves, op. cit., p. 383.)

33. CAMPINHO, Sérgio.op. cit., p. 172.

34. “(...) o instituto da recuperação judicial deve ser visto com a natureza de um contrato judicial, com feição novativa, realizável através de um plano de recuperação, obedecidas, por parte do devedor, determinadas condições de ordens objetiva e subjetiva para sua implementação” (Ibid., pp. 12-13).

35. “A possibilidade de utilização de quaisquer meios possíveis para a reestruturação da empresa assegura uma alteração de fim do próprio instituto. A recuperação judicial não almeja, como pretendia a concordata, apenas superar uma falta transitória de liquidez do empresário devedor diante de uma condição adversa do mercado. Procurou a lei criar instituto apto a superação de crise econômica estrutural do empresário, que poderá readequar sua atividade e a organização de seus fatores de produção para continuar a regularmente empreender. (...) Nada impede, assim, que, além dos meios dispostos pelo art. 50, a recuperanda proponha meios diversos e que atendam melhor à sua necessidade, cumule vários dos meios propostos ou apresente uma combinação entre vários outros.” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. op. cit., pp. 218-219)

36. Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 192.

37. CAMPINHO, Sérgio.op. cit., p. 166.

38. Utiliza-se a terminologia “Governança Corporativa” no presente artigo, porquanto consolidada está sua utilização, muito embora sejam tecidas críticas a ela pela doutrina. Marcelo Von Adamek critica a tradução livre e literal do termo “corporate governance” para a expressão “governança corporativa” da seguinte forma: “No Brasil, uma péssima tradução literal fez vingar a expressão governança corporativa que, a rigor é inexpressiva. ‘Governança’ é sinônimo de governo, quando não de ‘intendência’. Corporativa é o adjetivo utilizado para designar aquilo que é relativo às corporações, palavra essa que, juridicamente, tem sentido bastante diverso (agremiação ou união de pessoas subordinada a uma regra, estatuto ou compromisso) e que apenas por meio da tradução homófona do termo norte-americano ‘corporation’ estaria a designar as sociedades anônimas (lembre-se, a propósito que o direito no inglês, a palavra ‘corporation’ não designa apenas as anônimas). Em Portugal assim alude-se, com maior propriedade, a ‘corporate governance’ ou ‘governo das sociedades’”. (ADAMEK, Marcelo Vieira von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A e as ações correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009).

39. Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. 5ª ed. São Paulo, SP: IBGC, 2015.

40. Ibid.

41. Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros:[...]II – cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente;III – alteração do controle societário;IV – substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos;

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V – concessão aos credores de direito de eleição em separado de administradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especificar;VI – aumento de capital social;[...]XIV – administração compartilhada;

42. WAISBERG, Ivo; SACRAMONE, Marcelo; NUNES, Marcelo Guedes; CORRÊA, Fernando, Judicial Restructuring. Recuperação Judicial no Estado de São Paulo – 2ª Fase do Observatório de Insolvência. 26 de abril de 2019). Acessível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3378503orhttp://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3378503

43. “Além de não poder atentar contra a lei, os meios de recuperação judicial deverão ser especificamente descritos no plano de recuperação judicial. A previsão de forma genérica do meio de recuperação judicial no plano não permite que os credores saibam com precisão como seus direitos são afetados, de modo que mesmo a deliberação de aprovação do plano de recuperação judicial não autoriza a recuperanda a realizá-los. A descrição genérica do meio de recuperação judicial é considerada ineficaz e exige o consentimento dos credores especificamente sobre o meio de recuperação a ser implementado”. (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. op. cit., p. 218).

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COMPLIANCE ANTIDISCRIMINATÓRIO E MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NO AMBIENTE DE TRABALHOCamilo Onoda CaldasDoutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Diretor do Instituto Luiz Gama, entidade que atua na defesa dos direitos humanos. Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu em São Paulo/SP e do programa de Mestrado da Escola Paulista de Direito.

Nayara Correia de AndradeMestranda em Direito pela Escola Paulista de Direito, Especialista em Direito Previdenciário e em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Legale. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Advogada de Sociedade Anônima de Economia Mista.

RESUMO

O presente artigo descreve alguns dos instrumentos ligados ao compliance antidiscriminatório, sistema voltado para prevenir, mediar e solucionar conflitos extrajudicialmente, bem como reduzir condutas, comissivas ou omissivas, potencialmente preconceituosas ou discriminatórias em ambiente das relações de trabalho. Por meio de pesquisa bibliográfica de legislação relativa ao tema e doutrinas especializadas, o artigo inicia com a conceituação de compliance antidiscriminatório e indica como as políticas antidiscriminatórias corporativas são um tema em ascensão e, em seguida, se estrutura em duas partes: na primeira, descreve quais são as principais normas jurídicas, constitucionais e infraconstitucionais, relacionadas com o tema no Brasil; a segunda parte descreve alguns dos instrumentos que podem ser integrados a um sistema de compliance antidiscriminatório nas empresas como forma de garantir um ambiente de trabalho mais harmônico, saudável e em conformidade com as diretrizes de direitos humanos vigentes no país.

PALAVRAS-CHAVECompliance antidiscriminatório. Litigiosidade. Direitos fundamentais. Meios extrajudiciais de solução de conflitos. Mediação.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. Discriminação e Preconceito: Conceituação e Vedações Jurídicas

3. Instrumentos Relacionados ao Compliance Antidiscriminatório para Prevenção e Mediação de Conflitos

4. Conclusão

Referências Bibliográficas

Notações

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O termo compliance designa, em âmbito corporativo, “as ações para mitigar riscos e prevenir corrupção e fraude nas organizações, independentemente do ramo de

atividade. As organizações podem ser regulamentadas pelo poder público (como é o caso dos setores regulamentados pelas agências) ou subordinadas simultaneamente às leis nacionais e de outros países”01. Em função da existência dos sistemas de compliance nas empresas, organiza-se uma série de códigos de condutas, de regulamentos diversos, de padronização de procedimentos, de instituições de controle e de mecanismos de fiscalização, voltados para atingir o objetivo acima mencionado.

Se originalmente o compliance tinha por objetivo a prevenção de corrupção e práticas fraudulentas, atualmente, seu escopo tem sido ampliado para outros âmbitos e entre esses se destaca o denominado compliance antidiscriminatório. Nesse caso, trata-se de um sistema que constitui um conjunto de ações igualmente voltado para mitigação de riscos e de prevenção de determinadas condutas, contudo, nesse

caso, essas envolvem práticas discriminatórias. Portanto, o compliance antidiscriminatório pode ser definido como ações institucionalmente organizadas para prevenir discriminação e práticas preconceituosas02 no ambiente de trabalho, como meio de minimizar riscos, diminuir conflitos e criar um ambiente mais integrado, harmônico e humanizado03.

O termo compliance antidiscriminatório é adotado há muitos anos em âmbito internacional, conforme se observa no artigo publicado, em 2001, intitulado: “Workforce Diversity Training: From Anti-Discrimination Compliance to Organizational Development”04 ou em “The Opioid Crisis in the Workplace: What Employers Must Do to Ensure Anti-Discrimination Compliance and to Support Their Employees” de 201905. Mesmo em artigos que não adotam essa expressão, a ideia de aplicação do compliance nesse âmbito aparece, como, por exemplo, em “Effective Compliance with Antidiscrimination Law: Corporate Personhood, Purpose and Social Responsibility” publicado por Cheryl L. Wade06.

No Brasil, a adoção de políticas de compliance veio a se tornar efetiva de modo relativamente tardio (a Convenção Interamericana contra a Corrupção foi assinada pelo Brasil, em 1996, mas ratificada e promulgada apenas em 2002, por meio do Decreto Legislativo 4.410/200207). O mesmo pode se verificar com relação ao compliance antidiscriminatório, que raramente integra o currículo de cursos de compliance ou mesmo de práticas corporativas antidiscriminatórias, bem como subsiste considerável escassez de artigos acadêmicos e obras que tratem especificamente deste tema (ainda que exista uma literatura muito relevante sobre discriminação e preconceito08). Um dos raros estudos sobre o tema aponta que:

(...) a não adoção do Compliance Antidiscriminatório pela legislação brasileira representa uma lacuna a ser preenchida no ordenamento jurídico, para o fim de cumprir os objetivos de combate à discriminação listados na Constituição

1. Introdução

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Federal, uma vez que, embora o combate à corrupção seja relevante, os demais aspectos da vida em sociedade devem ser igualmente tutelados pelo legislador, bem como se deve exigir das empresas que ajam com responsabilidade social e contribuam para a melhora do ambiente de trabalho e para o aumento da produtividade, além do bem-estar social.09

O contexto atual demonstra que é imprescindível a existência de mecanismos de prevenção a atos discriminatórios. Assim, a imposição de sanções pelo Poder Judiciário, apesar de necessária e reparatória, é insuficiente para lidar com ocorrências dessa natureza. Nesse sentido, pode-se destacar que o próprio Judiciário reconhece essa necessidade, como pode ser observado em acórdão do Tribunal Superior do Trabalho, que ao julgar Recurso de Revista repudiou a alegação de que expressões discriminatórias eram mera brincadeira do ex-empregador (o denominado “racismo recreativo”10), aponta a necessidade de que se adotem políticas corporativas antidiscriminatórias, por meio de política de ampliação à diversidade intermediada pelo Ministério Público do Trabalho:

[...] Caberia à empresa demonstrar de forma clara que tomasse alguma atitude enérgica contra o ato perpetrado, uma vez que pode caracterizar prática de racismo, crime inafiançável e imprescritível. No entanto, não se vislumbra nos autos qualquer medida efetiva e suficientemente enérgica para evitar que tal fato lamentável ocorresse.[...] Por fim, não há como acolher a tese de que o ato não implica em ofensa capaz de gerar o direito à indenização. A atitude do preposto da empresa ao esfregar uma mão no dorso da outra e dizer “SÓ PODIA SER MESMO” revela claramente a intenção de depreciar o reclamante em razão da tonalidade de sua pele. Tal ato é prática de diferenciação de tratamento por motivo de ração, situação gravíssima que deve ser punida com extremo rigor. É absolutamente inaceitável tal tipo de comportamento, o qual trata um cidadão como se fosse uma pessoa de segunda classe, algo inadmissível em uma sociedade civilizada.

Por certo que a utilização por preposto do empregador de palavras e gestos ofensivos e, com conotação racista e discriminatória atinge a honra do empregado, maculando sua integridade como ser humano. Houve flagrante violação dos diplomas acima citados, bem como da Convenção 111 da OIT e do artigo 3º, IV, da Constituição Federal de 1988, merecendo uma reparação enérgica o ato demonstrado nos autos. [...] Oficie-se ao Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho com cópia da presente, para que tome as providências cabíveis no artigo 3º da Lei 9.029/95, inclusive sugerindo instituir uma política de ação afirmativa na Recorrente, bem como as providências do referido crime na forma do artigo 5º – inc. XLII da Constituição Federal de 1988 e da Lei 7716/89 conforme determina o artigo 40 do Código de Processo Penal.11

Considerando os elementos acima apresentados, o presente artigo se organiza em duas partes. Na primeira é apresentado o panorama do arcabouço jurídico que fundamenta a adoção de políticas corporativas de compliance antidiscriminatório. Em seguida, são descritas algumas ferramentas relacionadas ao sistema corporativo voltado a prevenir, solucionar e reprimir eventuais práticas preconceituosas e discriminatórias no âmbito das relações de trabalho. Desse modo, o presente artigo desenvolve um debate necessário, porém ainda de pouco desenvolvimento nos meios acadêmicos e corporativos brasileiros, a despeito de sua importância dentro de um contexto no qual cada vez mais esses sistemas se tornam imprescindíveis.

2. Discriminação e Preconceito: Conceituação e Vedações Jurídicas

Atos discriminatórios são repudiados pelo Direito Internacional e, no século XX, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 constitui o marco jurídico histórico mais significativo. Juntamente dessa, outras normas antidiscriminatórias surgiram,

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em especial, as normas globais e regionais da segunda metade do século XX.

André de Carvalho Ramos, ao classificar os Tratados Internacionais feito por Villán Durán, no âmbito das Nações Unidas, destaca quatro principais grupos de normas de Direito Internacional: os tratados gerais de direitos humanos, tratados sobre temas específicos, tratados que protegem certas categorias de pessoas e os tratados contra a discriminação12.

Alberto do Amaral Júnior assevera que as convenções, que tratam de várias modalidades de discriminação, compõem um grupo especial de convenções especiais, pois focalizam as especificidades e diferenças entre os seres humanos e que podem justificar o tratamento particularizado – especialmente, por meio de políticas públicas e estratégias de inclusão – sob pena de se cometer injustiças13.

Entre outros Tratados Internacionais que trataram sob o tema pode ser destacada a Convenção nº 111 da OIT, de 1958, pioneira em nível internacional ao definir o que é ato discriminatório (ratificada até a presente data, segundo os dados da própria Organização, por 169 de seus 177 membros14). Em 1960, a Convenção relativa à luta contra as discriminações, em esfera do ensino, foi aprovada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Em 1965, a Organização das Nações Unidas aprovou a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial. Em 1979, a Assembleia das Nações Unidas aprovou a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher.

A Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, aprovada em 1998 durante sua 87ª Reunião Anual, definiu em seu artigo 2º que

são princípios fundamentais a todos os membros da organização promover e tornar efetivos os seguintes aspectos: “[...] d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação”15.

O trabalho se revela como atividade, ao mesmo tempo em que representa uma forma de relação social, experiência individual e coletiva, que se desenvolve a partir da mobilização da subjetividade e envolve o engajar-se em “um mundo humano caracterizado por relações de desigualdade, de poder e de dominação”16.

Para Cristophe Dejours, enquanto desdobramento da inevitável experiência subjetiva perante resistências materiais e sociais17, o sofrimento é ínsito ao trabalho. Trabalhar pressupõe uma relação afetiva do sujeito com as inconsistências, imprevistos, acidentes, falhas e conflitos que o real comporta. O sofrimento é, contudo, passível de ressignificação, convolando em prazer, gratificação e alívio sob certos aspectos.

Dentro de uma realidade neoliberal, contudo, o trabalho exacerba uma inclinação para uma lógica instrumental, esgarçando paulatinamente as condições mínimas que sustentam uma dinâmica de reconhecimento e de cooperação. Segundo Dejours são múltiplos os desdobramentos dessa precarização. Intensifica-se o trabalho e, assim, o sofrimento subjetivo dos trabalhadores, anulando-se a possibilidade de mobilização coletiva contra esse. O trabalhador silencia quanto ao sofrimento e às injustiças experimentadas pelos outros, focando energias na própria resistência e na manutenção de sua instável colocação. A insegurança oriunda da ameaça contínua do desemprego alimenta um crescente individualismo18.

O direito do trabalho dá ao empregador o poder de dirigir sua atividade empresarial. Conforme insculpido no artigo 2º, da Consolidação das Leis de Trabalho, o poder diretivo do empregador propicia autoridade ao empresário para controlar,

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organizar e fiscalizar a atividade desenvolvida19. Contudo, esse poder sofre limitações, de modo que o próprio direito procura estabelecer determinadas limitações, evitando o que alguns autores apontam como sendo uma “tendência autodestrutiva” do capital sobre o trabalho20. Em suma, trata-se de evitar que o trabalho amplie progressivamente o sofrimento, a frustração, o sentimento de injustiça e, eventualmente, patologia, tornando-se deletério e contribuindo para destruir a subjetividade, juntamente com as bases da saúde mental21.

A partir desse viés, portanto, é necessário pensar na forma de o empregador lidar com as condutas discriminatórias perpetradas no ambiente de trabalho. Na Psicologia, especificamente na Psicologia Social, o preconceito é estudado dentro do que se assentou denominar de “percepção de pessoa”, sendo considerado por Aroldo Rodrigues um dos fenômenos que podem interferir no processo perceptivo22.

O autor, ao definir preconceito, afirma consistir esse em uma “atitude negativa, aprendida, dirigida a um grupo determinado. O preconceito não é inato e sim, condicionado”, embora também afirme que determinados traços de personalidade possam contribuir para que alguém incorpore preconceitos mais facilmente23.

Preconceito, no conceito de Egídia Maria de Almeida Aiexe, “consiste em julgar ou conceituar alguém mediante uma generalização, uma banalização ou uma mistificação” de modo que “em regra, não se discrimina alguém sem antes se lhe voltar um olhar de condenação, de censura ou de rejeição por algo que componha o seu ser, as suas características intrínsecas ou extrínsecas, ou por algo que tenha praticado”24.

Discriminar significa atentar contra o princípio da igualdade, muito embora não só contra esse, mas também contra o princípio da dignidade do ser humano. As práticas discriminatórias

figuram como questão cada vez mais discutidas no universo laboral. O cotidiano do Judiciário trabalhista tem revelado diversas ações judiciais que noticiam a prática de atos arbitrários no ambiente de trabalho com claro conteúdo discriminatório.

A discriminação se revela nefasta não só porque segrega, reprime e ofende, mas inclusive porque subjuga a completude do indivíduo a um, apenas um, aspecto de sua complexa existência. E quando tal ocorre no âmbito da relação de trabalho, a questão assume contornos exponencialmente graves, uma vez que o trabalho, como fração de energia vital humana, não é somente fonte de riqueza, de sobrevivência, mas de dignidade e de cidadania.

No Brasil, entre os diversos mecanismos legais de combate à discriminação do trabalhador existe a Lei nº 9.029/199525, a Lei nº 7.716/198926, a Súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho27, além de dispositivos legais que embasam, por vezes, as indenizações por danos morais, entre esses o artigo 5º, X, da Constituição Federal e os artigos 186, 187 e 927 do Código Civil.

Deste conjunto normativo se destaca a Lei nº 7.716/1989, que originalmente possuía um rol bastante restrito de condutas que caracterizam racismo no ambiente de trabalho, contudo, por meio de alteração legislativa (Lei nº 12.288/201028), essa passou a conter um conjunto mais amplo de situações consideradas delituosas:

Art. 4º Negar ou obstar emprego em empresa privada.Pena: reclusão de dois a cinco anos.§ 1º Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes do preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica: (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)I – deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores; (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)

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II – impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional; (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010) (Vigência)III – proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)§ 2º Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)

Além disso, nesse mesmo sentido expansionista merece destaque o disposto nos artigos 1º a 3º da Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995, que foi alterado significativamente, em 2010, e ampliou seu espectro inicial (reprimir condutas discriminatórias contra mulheres gestantes) e passou a abranger diversas hipóteses:

Art. 1o É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)Art. 2º Constituem crime as seguintes práticas discriminatórias:I – a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou a estado de gravidez;II – a adoção de quaisquer medidas, de iniciativa do empregador, que configurem;a) indução ou instigamento à esterilização genética;b) promoção do controle de natalidade, assim não considerado o oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento familiar, realizados através de instituições

públicas ou privadas, submetidas às normas do Sistema Único de Saúde (SUS).Pena: detenção de um a dois anos e multa.Parágrafo único. São sujeitos ativos dos crimes a que se refere este artigo:I – a pessoa física empregadora;II – o representante legal do empregador, como definido na legislação trabalhista;III – o dirigente, direto ou por delegação, de órgãos públicos e entidades das administrações públicas direta, indireta e fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

No mesmo diploma legal, nota-se que diversas sanções podem ser impostas as empresas infratoras:

Art. 3o Sem prejuízo do prescrito no art. 2o e nos dispositivos legais que tipificam os crimes resultantes de preconceito de etnia, raça ou cor, as infrações do disposto nesta Lei são passíveis das seguintes cominações: (Redação dada pela Lei nº 12.288, de 2010)

Art. 3o Sem prejuízo do prescrito no art. 2o desta Lei e nos dispositivos legais que tipificam os crimes resultantes de preconceito de etnia, raça, cor ou deficiência, as infrações ao disposto nesta Lei são passíveis das seguintes cominações: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)I – multa administrativa de dez vezes o valor do maior salário pago pelo empregador, elevado em cinquenta por cento em caso de reincidência;II – proibição de obter empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais.Art. 4º O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, nos moldes desta lei, faculta ao empregado optar entre:

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, em diversos momentos se preocupa com a construção de uma sociedade justa, solidária e sem preconceitos de qualquer espécie29. É possível

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identificar, por conseguinte, o conteúdo jurídico do princípio da igualdade que pode ser sintetizado do seguinte modo:

O princípio da igualdade no direito constitucional brasileiro afirma, por meio de suas dimensões formal e material, a igualdade de direito. Vale dizer, institui um mandamento de igualdade de tratamento entre indivíduos e grupos, a não ser que haja razões suficientes para a instituição de um tratamento diferenciado. Ações afirmativas, todavia, não dizem respeito à instituição de tratamentos iguais ou diferenciados conforme o grau de desigualdade entre os indivíduos e grupos considerados. Elas objetivam o combate à discriminação através da instituição de medidas especiais, em face de situações de desvantagem ou exclusão. Elas almejam alterar os efeitos das práticas discriminatórias, especialmente indiretas30.

Diante dos riscos existentes com a propositura de ações judicias, individuais ou coletivas (resultando em prejuízos financeiros e danos à imagem e reputação das empresas, especialmente em redes sociais31), bem como diante dos resultados prejudiciais que a discriminação provoca em termos de produtividade, diversas estratégias têm sido adotadas como meio de se promover a diversidade e se combater as discriminações nas empresas, o que pode abranger desde iniciativas pontuais até a adoção de programas de compliance antidiscriminatório, a fim de que haja uma melhor governança corporativa. A ferramenta para criação de uma política corporativa antidiscriminatória deve abarcar, necessariamente, um método que permita tratar as pessoas de forma respeitosa, reconhecendo que cada pessoa tem seus saberes, suas crenças, sua história, seus valores. Os pilares desse mecanismo devem também possibilitar que as pessoas reconheçam as diferenças existentes e, ainda sim, sentir que se pode viver e conviver em harmonia.

3. Instrumentos Relacionados ao Compliance Antidiscriminatório para Prevenção e Mediação de Conflitos

O sistema de compliance tradicional funciona a partir da institucionalização de regras e de procedimentos e o mesmo ocorre quando seu objeto é promover políticas corporativas antidiscriminatórias. O ponto de partida, portanto, consiste na criação de um código de ética, no qual possam constar com clareza quais as condutas esperadas por todos aqueles que constituem ou se relacionam com a empresa. É necessário que os envolvidos tenham conhecimento a respeito da postura esperada e que a diversidade e representatividade, em todas as instâncias, figurem como valores institucionais.

O código de ética é uma ferramenta que deve estar alinhada à tríade visão, missão e valores que constituem a identidade organizacional da empresa. É a declaração formal de suas expectativas que serve para orientar as ações de seus colaboradores e explicitar a postura da empresa diante dos diferentes públicos com os quais interage, de forma a apresentar como colaborar na construção da identidade profissional de todos os envolvidos. Com isso, seu objetivo é criar um sentimento de pertencimento e, ao mesmo tempo, conferir responsabilidade no que diz respeito às condutas perpetradas no local de trabalho. Sobre o tema, ensinam Rodrigo Pironti Aguirre de Castro e Francine Silva Pacheco Gonçalves32:

Para que um programa de integridade possua engajamento, e consequentemente sucesso em suas atividades, faz-se necessário que os gestores da organização reflitam exemplos de conduta ética em sua atuação profissional, de acordo com os valores da entidade e com as normas que a permeiam.

Um código de conduta terá por finalidade apresentar os princípios, que determinado corpo funcional deverá utilizar como referência para suas ações. De acordo com Benavides e Antón33, referido instrumento servirá para dar indicações a uma determinada prática, cuja função consistirá em fornecer

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elementos para moldar, regulamentar as relações profissionais, com vistas a harmonia no ambiente de trabalho.

Assim, antes de se conceber uma forma de solucionar conflitos que envolvam condutas discriminatórias, as políticas internas e comportamentais devem ser estabelecidas, de modo a definir que os valores de determinada companhia não são compatíveis com atitudes discriminatórias e visões preconceituosas. O conceito de tone at the top34(o exemplo vem de cima) explicita para todos os funcionários, bem como para aqueles que se relacionam com a empresa, a institucionalização das políticas corporativas desenhadas no código de ética.

É oportuno observar que a Controladoria Geral da União, em seu Guia de implantação de programas de integridade nas empresas estatais35, ao abordar o tema, apresenta alternativa diversa, adaptável à realidade de empresas de menor porte, de modo a demonstrar que a implantação de um sistema de compliance antidiscriminatório não é exclusividade de grande empresas:

No caso de empresas estatais de menor porte, com menor número de colaboradores, por exemplo, pode ser possível atribuir a coordenação das atividades do programa a uma única pessoa. Em outros casos, pode-se optar por designar as funções ligadas à gestão de integridade para uma área já existente na empresa, que tenha atribuições convergentes com as dimensões da integridade (excetuada a auditoria interna).

A implantação de um sistema de compliance antidiscriminatório é uma iniciativa que se alinha ao Pacto Global36, lançado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Trata-se de chamada para as empresas alinharem suas estratégias e operações a dez princípios universais nas áreas de Direitos Humanos, Trabalho, Meio Ambiente e Anticorrupção e desenvolverem ações, que contribuam para o enfrentamento dos desafios da sociedade. É, atualmente, a maior iniciativa de sustentabilidade corporativa

do mundo, com mais de treze mil membros, em quase oitenta redes locais, que abrangem cento e sessenta países.

A adesão ao pacto, por parte de empresas, pode ocorrer na qualidade de signatário ou participante. O Pacto Global advoga dez Princípios Universais37, originários da Declaração Universal de Direitos Humanos, da Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. As organizações que passam a fazer parte do Pacto Global se comprometem a seguir esses princípios na rotina de suas operações. Entre esses figura na sexta posição do documento supra o objetivo de eliminar a discriminação no emprego.

Sobre os benefícios do Compliance Antidiscriminatório, Evelini Oliveira de Figueiredo Fonseca e Fellipe Rodrigues Sousa fizeram uma abordagem pioneira sobre Compliance Antidiscriminatório como Ferramenta Garantidora do Respeito à Diversidade nas Empresas, explicando que:

( . . . ) necessidade de ut i l ização do Compl iance Antidiscriminatório como ferramenta apta a garantir o respeito à diversidade nas empresas. Assevere-se que também a possibilidade de ocorrência de racismo e sexismo nas ambiências empresariais impactam na reputação das organizações, sendo necessário acoplar ao compliance preocupações com o binômio discriminação-diversidade, o que implica na necessidade de implantação de práticas antidiscriminatórias e também de promoção de respeito à diversidade em ambientes empresariais.38

Havendo um código de ética que baliza as expectativas, valores e horizontes corporativos, aliada à conscientização do corpo funcional sobre seu conteúdo, é necessário criar mecanismos institucionais de controle de condutas e de gerenciamento de

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crises. A existência de um canal que incentive a comunicação, ou que permita possíveis denúncias, preservando-se o sigilo e garantindo que a ocorrência será averiguada com toda a cautela, sem presunções ou pré-julgamentos pode se revelar de grande valia, a exemplo da criação de uma ouvidoria interna.

Esse canal pode viabilizar a melhoria das relações entre os colaboradores, sendo que pode ainda funcionar como instrumento de avaliação a respeito das políticas implementadas, retroalimentando as melhorias necessárias. Além disso, sua função precípua não é simplesmente a de punição, mas sim pedagógica, a fim de entender as causas de uma ocorrência ou postura e os meios necessários para prevenir novos acontecimentos dessa natureza e fazer com que todas os envolvidos compreendam todo os fatores e efeitos envolvidos, quando preconceitos e discriminações se manifestam.

Um dos pontos fundamentais de toda política antidiscriminatória nas empresas é a isonomia. Isso significa que seu alcance deve atingir todos os integrantes da hierarquia corporativa. De um lado, é necessário alcançar a alta administração, como: conselheiros, presidente, vice-presidentes e diretores, bem como outras empresas controladas por eventual conglomerado, funcionários, que estejam lotados em território nacional ou no exterior. Rodrigo Pironti Aguirre de Castro e Francine Silva Pacheco Gonçalves39 destacam que o primeiro passo para eficiência de um programa de integridade é o comprometimento da alta administração desde a sua implantação até sua manutenção e monitoramento contínuo. De outro lado, a observância das diretrizes de compliance deve ocorrer entre todos os demais trabalhadores, sejam estagiários, aprendizes, terceirizados e os que estejam atuando como prestadores de serviços em nome da empresa, conforme explicam Evelini Oliveira de Figueiredo Fonseca e Fellipe Rodrigues Sousa:

Neste sentido, não restam dúvidas de que seria muito vantajoso que as empresas adotassem programas efetivos de Compliance, mediante a implementação de códigos de conduta envolvendo todos os colaboradores, intermediários e prestadores de serviço, dando prioridade a ações específicas voltadas aos diferentes grupos, uma vez que, como exposto no item anterior, a concentração em um grupo em particular falha na resolução do problema como um todo. Isto porque as práticas de uma atuação empresarial antidiscriminatórias trazem grande relevância no plano social, tendo em vista que aumentam a representatividade da população na participação do quadro de funcionários, bem como aumentam as possibilidades de novos mercados consumidores, fazendo, assim, aumentarem os investimentos na economia.40

Considerando que cada membro da empresa terá o desafio de efetivar os princípios insculpidos em um código de ética, referido documento deverá ser apto a ditar a direção que cada integrante do corpo funcional deverá tomar. Para prevenir ou eventualmente solucionar conflitos de natureza discriminatória, é importante que seja destacada o repúdio a quaisquer práticas que impliquem em desrespeito à dignidade, à igualdade, à diversidade e à privacidade das pessoas, sendo que o ambiente de trabalho deve ser preservado como local de estrito profissionalismo, em que se respeitam as diferentes culturas e compreensões de mundo. Ao se manter e valorizar uma postura fundada em tais valores, no local de trabalho, há grande probabilidade de se desenvolver uma cultura organizacional saudável.

Outro instrumento importante para o desenvolvimento de políticas antidiscriminatórias no ambiente de trabalho é a criação de um órgão colegiado, a exemplo de um comitê, para: atuar na prevenção de problemas éticos e em potenciais conflitos; implantar ações de treinamento e formação; responder consultas e dúvidas de membros do corpo funcional

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sobre como agir em determinadas situações (muitas situações podem ser interpretadas erroneamente pelos envolvidos, ou ainda, pode haver uma desconsideração da condição particular do outro); mediar conflitos; realizar apurações a respeito de descumprimento das condutas desejáveis e encaminhar soluções e pareceres sobre o ocorrido.

Do ponto de vista da formação podem ser adotadas metodologias para que as equipes se desenvolvam em ambientes mais cooperativos, com redução de desgaste emocional e consequente transformação. Nesse ponto, é importante que seja valorizada a fluidez comunicacional para reduzir impasses interativos, que interferem na convivência e produtividade da organização. Destaca-se, ainda, que determinadas expressões e linguagem expressam, de forma imperceptível, preconceitos ou podem ofender determinados grupos ou indivíduos que se encontram dentro do conceito qualitativo de minoria, portanto, trata-se de uma questão a ser contemplada pelo código de ética, manuais de procedimento e, sobretudo, por iniciativas de treinamento e formação dos membros da corporação.

Ao se atuar na solução de conflitos de natureza discriminatória, o empregador deve valorizar e incentivar o protagonismo e o debate colaborativo. Deverá ser sedimentado na cultura que qualquer integrante que tenha conhecimento de desvio de conduta que fira o código de ética terá por dever comunicar o ocorrido (neste ponto, o foco em estratégias de correção de condutas, que precisam ser efetivas para não haja descrédito no sistema, e não simplesmente de punição, evita que haja receio de se reportarem situações dessa natureza).

Para o recebimento de comunicações de fatos envolvendo preconceito e discriminação é desejável a existência de um mecanismo apto a recepcionar tais notícias, inclusive, de

forma anônima, que tenha por premissa o sigilo da fonte e a confidencialidade do trato das informações. Para que seja assegurado tratamento imparcial, é desejável que as denúncias possam ser conduzidas por instâncias autônomas e altamente especializadas. Tais estratégias visam evitar retaliação aos autores de denúncias do gênero.

Para aperfeiçoar o funcionamento do sistema, é preciso que se adotem referenciais teóricos sólidos para que as políticas institucionais sejam desenhadas e implantadas. Nesse sentido, é necessário que também haja espaço para que os funcionários, que integram o meio ambiente de trabalho, se sintam motivados a agirem dentro de uma postura de colaboração, de modo que o sistema seja (re)construído permanentemente em conjunto. A respeito do tema, Eliara Ramos et al.41:

Por meio da análise do desempenho dos indivíduos e das equipes, bem como do entendimento das suas causas, é possível estabelecer planos de ação para o desenvolvimento das pessoas, equipes e organizações, além de viabilizar a utilização de critérios meritocráticos nos sistemas de reconhecimento, recompensa e gestão de carreiras nas organizações.

Dessa forma, com a possibilidade da transformação das relações, por meio das conversas e do diálogo, será possível construir um meio ambiente no qual não existem dogmas no campo dos relacionamentos interpessoais, ou seja, haverá incentivo para a construção de verdades locais e datadas, permitindo-se o desenvolvimento do protagonismo através da revalorização e reconhecimento.

Por intermédio do diálogo é possível a busca de novos significados comuns às partes, contribuindo com a inovação das relações, em que se poderá reconhecer a lógica do outro. A comunicação incentiva a reflexão e o trabalho com a alteridade, propiciando escuta melhor e facilitando a expressão

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de cada um. Esse conjunto é, inclusive, fundamental quando a mediação é adotada como instrumento para solução e prevenção de conflitos.

Assim, as ferramentas para adoção de uma política corporativa para solução adequada de conflitos interpessoais passam, necessariamente, pela prática de cognição, de condução e de resolução de situações conflituosas, promovidas por meio do emprego do método ou técnica que melhor atenda às particularidades do caso concreto.

Por fim, destaca-se um outro instrumento que pode ser utilizado: a criação de uma ouvidoria interna42 dotada de conhecimento específico sobre as questões relacionadas ao preconceito e discriminação. Por meio dessa é criado um canal de comunicação específico, que pode ser acessado por todos os membros da empresa. A atuação dessa ouvidoria interna se revela em determinados empregadores como fundamental na gestão da ética corporativa, acolhendo, analisando e propondo soluções sobre casos que versem sobre conflitos no ambiente de trabalho.

Como objetivo, por meio do diálogo e da mediação, a ouvidoria interna deve buscar humanizar as relações, valorizar a ética no trabalho, disseminar conceitos relacionados às práticas restaurativas e comunicação não-violenta, atuar na prevenção e solução de conflitos, democratizar as relações de trabalho e contribuir para a valorização do público interno. Justamente a partir das informações, dados e insumos obtidos pela ouvidoria interna será possível fazer recomendações aos órgãos diretivos com vistas ao aprimoramento das políticas, processos e práticas empregadas.

Enfim, o desenvolvimento de um projeto de compliance antidiscriminatório deve considerar as particularidades fáticas

e jurídicas que individualizam o quadro conflituoso, de modo a evitar o emprego de medidas genéricas e impróprias. Deve haver, portanto, a utilização de critérios racionais e objetivos norteadores da escolha do método adequado. A escolha do método que melhor atenda às particularidades do caso concreto deve ser compreendida como atividade técnica. Assim, para melhor eficiência da política corporativa a ser adotada, é desejável que seja apartado um gestor para condução da atividade. É válido ressaltar a lição de Eliara Ramos et al.43 a respeito da governança corporativa, em que a adoção de uma política corporativa poderá auxiliar o empregador a apresentar índices satisfatórios de governança:

Nesse cenário surge a aliada Governança Corporativa, na medida em que a adoção de suas práticas contribui para manter a boa imagem da organização junto aos funcionários e aos acionistas; essa prática tende a refletir positivamente no valor de mercado da empresa.

Um dos princípios básicos da Governança Corporativa é a transparência das empresas em relação às suas informações; um de seus pontos fortes é a busca de uma atuação mais efetiva de seus dirigentes.

A adoção das melhores práticas de Governança Corporativa contribui para manter a boa imagem junto aos pequenos acionistas, preservando a confiança dos mesmos assim como provendo visibilidade da empresa como uma boa opção de investimento e refletindo positivamente no valor de suas ações como mencionamos acima.

Por gestão adequada de conflitos no ambiente corporativo se entende a prática de cognição, de condução e de resolução de situações conflituosas surgidas nas relações interpessoais estabelecidas no ambiente de trabalho, promovida mediante o emprego do método ou técnica que melhor atenda às particularidades do conflito.

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4. Conclusão

A existência de sistemas de compliance antidiscriminatório nas empresas brasileiras não é uma realidade, apesar de ser uma necessidade. Ambientes de trabalhos permeados por condutas preconceituosas e discriminatórias tendem a se repetir de modo perceptível ou até imperceptível, resultando em diversas formas como a violência simbólica, microagressões, hostilidades declaradas e diretas etc. No Brasil, em particular, as relações historicamente constituídas entre brancos e negros, homens e mulheres, estabelecem uma estrutura social na qual as assimetrias materiais e imateriais (autopercepção sobre si e sobre o outro) se manifestam continuamente em todos os níveis da vida social, inclusive, no ambiente de trabalho, o que acaba perpetuando o cenário social de desigualdade e de injustiça, bem como resulta em prejuízos severos no nível psicológico, financeiro e social para os trabalhadores que são atingidos pelas mais diversas formas de discriminação e preconceito existente.

Nos ambientes de trabalho existem relações de poder e, desse modo, as consequências negativas decorrentes de condutas discriminatórias tendem a ser ainda mais danosas, pois um sujeito tem a capacidade de fazer com que suas decisões, fundadas em determinados preconceitos, tragam efeitos materiais na vida daqueles que são vítimas de discriminações.

Portanto, nesse caso, a agressão não produz efeitos deletérios apenas em termos psicológicos da vítima, mas a prejudica em outros níveis, por exemplo, no desenvolvimento de uma carreira profissional ou então no progresso financeiro, por exemplo, quando alguém acaba preterido para uma promoção na empresa por conta de um preconceito (de raça, de gênero, de orientação sexual, de compleição física, de idade, etc), ou ainda quando é demitido ou não contratado por essa razão.

Considerando as normas jurídicas vigentes no país, apontadas anteriormente ao longo deste artigo, nota-se que existe uma determinação claramente estabelecida para que o Estado reprima condutas discriminatórias, bem como para que em todos os níveis da vida social, inclusive no ambiente de trabalho, sejam adotadas posturas no sentido de prevenir, de evitar e de reduzir todas as formas de discriminação existentes. Os instrumentos apontados ao longo deste trabalho podem ser integrados a um sistema de compliance antidiscriminatório como meio de se efetivar os preceitos legais e éticos citados anteriormente, bem como para promover mediação de conflitos no ambiente de trabalho, a fim de que os sujeitos envolvidos se tornem mais autoconscientes das causas e efeitos das ações e omissões reproduzidas no ambiente de trabalho e, assim, possam promover uma convivência mais harmônica e potencialmente menos prejudicial a todos aqueles que se relacionam no ambiente de trabalho.

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contorno racista, ao afirmar que os afrodescendentes desatendiam à norma da empresa Punição severa que deve ser tomada contra a empresa, a qual não demonstrou nos autos que combatesse energicamente que um de seus prepostos adotasse esta lamentável atitude com os empregados subordinados. A gravidade da situação enseja a expedição de ofícios ao Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho para que tomem as providências criminais e administrativas previstas, respectivamente, nas Leis nº 7.716/89 e do artigo 3º da Lei nº 9.029/95, independentemente do requerimento da parte, por força do que estatui o inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal de 1988 e o artigo 40 do Código de Processo Penal.

Acórdão em Recurso Ordinário nº 0260600-80.2009.5.15.0022. Masterfood Brasil Alimentos Ltda. e José de Fátima Oliveira Costa. Relator: Juiz Federal do Trabalho Firmino Alves Lima. Data de julgamento: 12 de junho de 2012. Disponível em: <https://www.trt15.jus.br/consulta/owa/documento.pdf?pAplicacao=DOCASSDIG&pid=6956124>. Acesso em: 28 jul. 2020.

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Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu

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Notações01. 3 SANTOS, Reinaldo Almeida et al. Compliance and leadership: the susceptibility

of leaders to the risk of corruption in organizations. einstein (São Paulo), São Paulo, v.10, n.1, p. 1-10, mar. 2012. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-45082012000100003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 02 ago. 2020.

02. A discriminação consiste em uma prática na qual um sujeito é segregado e/ou tratado de forma diferenciada injustamente, geralmente, a partir de determinados preconceitos, que por sua vez constituem opiniões e/ou juízos de valores formulados, consciente ou inconscientemente, a partir de estereótipos e outras espécies de crenças sem fundamento real.

03. É preciso reconhecer as limitações deste tipo de estratégia no combate às diferentes formas de discriminação, tese muito bem explicada por Silvio Luiz de Almeida na obra O que é racismo estrutural?. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. E-book.

04. BENDICK, Marc et al. Workforce Diversity Training: From Anti-Discrimination Compliance to Organizational Development. Human Resource Planning, v.24, n.2, p. 10, jun 2001. Disponível em: <https://go.gale.com/ps/anonymous? id=GALE%7CA77036425&sid=googleScholar&v=2.1&it=r&linkaccess =abs&issn=01998986&p=AONE&sw=w>. Acesso em: 02 ago. 2020.

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08. ALMEIDA, Silvio L. O que é racismo estrutural?. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. E-book. MOREIRA, Adilson J. O que é discriminação?. Belo Horizonte: Letramento, 2017. RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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10. MOREIRA, Adilson J. O que é racismo recreativo?. Belo Horizonte: Letramento, 2018. Conforme ensina Silvio Luiz de Almeida: “O fato de parte expressiva da sociedade considerar ofensas raciais como “piadas”, como parte de um suposto espírito irreverente que grassa na cultura popular em virtude da democracia racial,

é o tipo de argumento necessário para que o judiciário resista em reconhecer casos de racismo, e que se considere “racialmente neutro”. In ALMEIDA, Silvio L. O que é racismo estrutural?. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. E-book.

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17. Nas palavras de Cristophe Dejours “o real do trabalho é definido como o que resiste ao conhecimento, ao saber, ao savoir-faire e, de modo mais geral, ao domínio” (Id., A banalização da injustiça social. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 29). Essa resistência (da matéria e dos objetos técnicos ao domínio, ou dos conflitos inerentes às relações sociais travadas em um mundo desigual) há de ser superada sob uma dupla perspectiva, para que o trabalhar seja efetivo e os objetivos da atividade, alcançados. No plano individual, a angústia e a frustração decorrentes da defasagem da organização prescrita (procedimentos, normas e instruções que orientam o desempenho das tarefas) ante os imprevistos da realidade precisam servir de gatilho para a mobilização da inteligência individual, com vistas à experimentação e à busca de soluções para os problemas concretos do trabalhar. Em contrapartida, no plano coletivo, faz-se necessária a articulação das inteligências individuais, de modo a evitar contradições e conflitos no funcionamento do todo. Isso se opera, em parte, pela coordenação formal dessas inteligências (prescrições que ordenam a divisão social e técnica do trabalho, com repartição de atribuições e de prerrogativas), sendo complementada pelo desenvolvimento de uma cooperação efetiva dos

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trabalhadores (o estabelecimento de compromissos, técnicos e sociais, “entre os estilos de trabalho, entre as preferências de cada trabalhador, de forma a torná-los compatíveis”) (Id., op. cit., 2004, p. 28-31).

18. DEJOURS, Cristophe. A banalização da injustiça social. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 50.

19. “Poder empregatício é o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego. Pode ser conceituado, ainda, como o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços”. DELGADO, Mauricio G. Curso de Direito do Trabalho. 11. ed. São Paulo: LTr, 2012. p. 660.

20. idem21. DEJOURS, Cristophe. Subjetividade, trabalho e ação. Revista produção, v.14, n.3,

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O DIREITO A EXISTÊNCIA E SUA INTERLOCUÇÃO DO ELO ENTRE O CIDADÃO E O ESTADO: UMA LEITURA DA APATRIDIAMarina Aparecida Pimenta da Cruz CorreaDoutoranda e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Especialista em Elaboração, gestão e avaliação de projetos sociais em áreas urbanas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Professora Substituta da Universidade Federal de Viçosa – Campus Viçosa (Avenida Peter Henry Rolfs, s/n – Campus Universitário, Viçosa – MG). Membro do Observatório de Migração Internacional do Estado de Minas Gerais – OBMinas. Coordenadora de Projetos sobre Migração na Faculdade de Passos – UEMG. Advogada e Gestora de Projetos na Empresa Geoline Engenharia.

Valquíria AlmeidaBacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Tecnóloga em Processos Gerenciais com ênfase em Gestão das Organizações do Terceiro Setor pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG. Elaboradora de projetos sociais e captadora de Recursos na Associação FRED – Uma Alternativa à Reintegração.

RESUMO

O presente artigo propõe avaliar o fenômeno da apatridia, suas principais causas, consequências e os mecanismos de Direito Internacional que tratam sobre a questão. Para tanto, será realizada uma introdução conceitual ao tema, para possibilitar a discussão posterior acerca do direito fundamental à nacionalidade. A fundamentabilidade da nacionalidade está no fato de ela ser o direito que garante ao indivíduo ter direitos, por vincular o Estado a ele. Sob esse aspecto, surge o conceito de cidadania, que presume nacionalidade, uma vez que correntemente, as garantias sociais proporcionadas pela cidadania se limitam aos nacionais, excluindo os estrangeiros. A partir desse pressuposto, se aborda o instituto da nacionalidade, suas possibilidades e limitações dentro da esfera dos Direitos Humanos. Conclui-se acerca dessa problemática que, apesar das tentativas de universalização da proteção aos direitos humanos, sua implementação continua vinculada à autonomia estatal, o que gera déficits em sua plena aplicação.

PALAVRAS-CHAVE

Apatridia. Direitos humanos. Nacionalidade. Cidadania. Direito Internacional.

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O DIREITO A EXISTÊNCIA E SUA INTERLOCUÇÃO DO ELO ENTRE O CIDADÃO E O ESTADO: UMA LEITURA DA APATRIDIA

ABSTRACT

This article proposes to evaluate the phenomenon of statelessness, its main causes, consequences and the mechanisms of international law that deal with the issue. To do so, a conceptual introduction will be made to the subject, to enable a later discussion about the fundamental right to nationality. The reasonableness of nationality lies in the fact that it is the right that guarantees the individual to have rights, to bind the State to him. In this respect, the concept of citizenship arises, which presumes nationality, since, at present, the social guarantees provided by citizenship are limited to nationals, excluding foreigners. Based on this assumption, the institution of nationality, its possibilities and limitations within the sphere of Human Rights is addressed. It is concluded that despite the attempts to universalize the protection of human rights, its implementation remains linked to state autonomy, which generates deficits in its full application.

KEYWORDS

Statelessness. Human rights. Nationality. Citizenship. International right.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. O Reconhecimento da Nacionalidade: o Elo Entre Cidadão e o Estado

3. A Apatridia no Brasil e no Mundo

4. Práticas no Combate a Apatridia: Limites e Possibilidades

5. Conclusão

Referências Bibliográficas

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948, determina em seu artigo 15º que

todo ser humano tem direito a uma nacionalidade e que “ninguém pode ser arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”. A designação da nacionalidade como Direito humano fundamenta-se nas implicações do vínculo jurídico que se cria entre um indivíduo e seu Estado a partir dessa institucionalização, uma vez que produz a responsabilidade estatal de proteção de seus nacionais e a garantia de direitos fundamentais como o direito à saúde, à educação ou à moradia.

Em adversidade a essa realidade, há indivíduos que por diversos fatores, não possuem este laço jurídico da nacionalidade. Seja devido à fuga de um Estado por razão de perseguição ou risco de vida, ou por não querer regressar, ou ainda, por não ter adquirido ou perdido sua nacionalidade em

razão dos requisitos da legislação de um Estado reivindicado como sendo o seu. Estes indivíduos são caracterizados como “apátridas” pelo Direito Internacional.

Segundo levantamento do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR, 2011), existem mais de 12 milhões de apátridas espalhados por todo o globo atualmente, apesar de o enfrentamento da questão já se dar a muitas décadas. A ONU tem criado mecanismos internacionais e prestado assistência a essas pessoas juridicamente vulneráveis buscando a garantia de direitos deste grupo, sua erradicação e pleiteando seu fim. Dentre estes esforços, destacam-se a Convenção de Genebra de 1951, a Convenção relativa ao Estatuto dos Apátridas de 1954, e a Convenção sobre os Mecanismos de Redução de Apatridia de 1961.

Com o objetivo de buscar o melhor entendimento acerca da situação dos apátridas, buscamos analisar as principais causas para ocorrência desse fenômeno e os conceitos que o envolvem, demonstrando a importância de ter uma nacionalidade e os graves problemas que decorrem da sua falta. Para além do vínculo jurídico criado pela nacionalidade, observa-se a estreita relação desta com o conceito de cidadania, que possui características mais ligadas à participação social e política, como garantia do exercício dos direitos fundamentais.

Assume-se aqui o entendimento de que o direito à nacionalidade é um direito humano consagrado em instrumentos internacionais. Busca-se analisar, no entanto, quais as principais consequências geradas pela falta desse direito. Para tanto, abordaremos alguns conceitos introdutórios ao tema, como Estado, Nação, soberania, território, povo, população e nacionalidade. Posteriormente, analisaremos as principais formas de aquisição de nacionalidade e os instrumentos internacionais de proteção aos apátridas mais relevantes, seus limites e possibilidades.

1. Introdução

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2. O Reconhecimento da Nacionalidade: o Elo Entre Cidadão e o Estado

Para se discutir nacionalidade, primeiramente se faz necessária a definição de Estado. Tal conceito varia do ponto de vista da doutrina, de autor e do panorama que se pretende fazer. No entanto, é consenso que o Estado é uma organização político-administrativa que deve ter no mínimo três elementos constitutivos: território demarcado, povo e governo soberano, sendo essa soberania, interna (conjunto de poderes internos sobre os quais se estabelecem os fundamentos e se realizam os objetivos do Estado dentro e fora de seu território, em consonância com as regras e princípios de direito internacional) e externa (direito do Estado de livremente determinar suas relações com outros Estados e outras entidades internacionais, independentemente de seu controle ou restrições com os demais) (MORE, 2012).

Nesse sentido, a soberania interna é territorial. Acerca deste critério, Zipellius (2017, p.112) afirma que,

A soberania territorial tem um lado positivo e um lado negativo. O aspecto positivo implica que cada indivíduo se encontra no território do Estado está sujeito ao poder deste Estado. O lado negativo significa que dentro do território do Estado não deve ser exercido qualquer poder soberano que não decorra do poder de regulação do Estado. Isto não exclui que o Estado excepcione das suas intervenções soberanas, em virtude do seu próprio poder estatal, p. ex., diplomatas estrangeiros garantindo-lhes a sua extraterritorialidade [...] Além disso ele pode, p. ex., em virtude de servidões políticas positivas ou negativas, [...] conceder a um outro Estado determinadas faculdades soberanas no seu território ou renunciar ao exercício de certos direitos de soberania próprios no seu território.

O território, desta forma, é a “base espacial do poder jurisdicional do Estado”. (SOARES, 2008, p. 125 apud CARTAXO, 2010, p.25). Para além disso, o território também é parâmetro de atribuição da nacionalidade. Em alguns países, como no Brasil, todo aquele que nasce em seu território, adquire a nacionalidade deste, este é o chamado critério do jus soli. Já em alguns outros Estados impera critério jus sanguinis, no qual a nacionalidade dos pais define a nacionalidade do descendente, e existem ainda aqueles países onde apenas o jus soli não é condição suficiente para obtenção da nacionalidade. Este deve sempre estar vinculado a algum outro critério, como duplex jus soli ou residência qualificada, como a França (MICALI-DROSSOS, 2002).

Como já exposto, o povo é uma das unidades constitutivas do Estado. Sobre essa questão, Sidney Guerra Reginaldo (2006, p. 22-23) leciona:

[...] povo é a dimensão humana do Estado, e a dinâmica entre povo e Estado é tão íntima que é possível afirmar que o povo não existe sem a organização e o poder do Estado, de forma que inexistindo um ou outro, levaria ao desaparecimento do povo. Destarte, o Estado nasce desta comunidade que irá se transformar em povo, convertendo-se em razão de ser do Estado; o poder político se determina em relação ao povo e só então é possível se definir em relação a outros poderes; o poder insurge do povo e necessita ser validade por ele, uma vez que o poder se pratica por identificação ao povo.

É importante destacar que a definição de ‘povo’ aqui utilizada não é sinônimo de ‘população’. Entende-se que povo é o conjunto de nacionais de um Estado, enquanto a população é o quantitativo de habitantes dele, independente de nacionalidades. Da mesma forma, Estado não de confunde com Nação: em uma nação, é pressuposto um sentimento que vincula os indivíduos entre si, seja através de um idioma comum, cultura,

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ou etnia. Já o Estado não necessariamente precisa que seus nacionais tenham as mesmas características culturais ou étnicas. Segundo tais definições, nota-se que os estrangeiros fazem parte da sua população e não do povo, mas mesmo sendo excluídos do conceito de povo, não quer dizer que não estejam sujeitos a soberania do Estado (CARTAXO, 2010).

Acerca do conceito de nacionalidade utilizado aqui:

A nacionalidade é o vínculo que prende um indivíduo a um Estado, fazendo desse indivíduo um componente do povo desse Estado, integrante, portanto, de sua dimensão pessoal. É o direito de cada Estado que diz quem é nacional e quem não o é, ou seja, quem é estrangeiro. Segundo direito internacional público, o nacional continua preso ao Estado, de cujo povo é membro, mesmo quando se acha fora do alcance de seu poder, estabelecido em território de outro Estado (FILHO, 1977, p.38).

A nacionalidade é uma consequência da organização estatal, pois se trata de um vínculo jurídico-político, uma vez que um indivíduo pode ser nacional de um país e estar sujeito à legislação de outro juridicamente, como nos casos de naturalização. Nesse sentido, a nacionalidade é uma questão de soberania do Estado, pois somente ele pode a atribuir aos indivíduos. Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo G. Branco (2012, p. 955) analisam que a própria definição de Estado é indissociável da idéia de nacionalidade e que esta configura um “vínculo político e pessoal que se estabelece entre o Estado e o indivíduo, fazendo com que este se integre a uma dada comunidade política, o que faz com que o Estado distinga o nacional do estrangeiro para diversos fins”.

Considerando que os nacionais são o elemento humano do Estado e, portanto, fato essencial a própria existência do Estado, a nacionalidade é uma questão de regulamentada pelo Direito

interno. Isto é, a definição e a concessão da nacionalidade pelo Estado é ato soberano, resguardado pela Convenção de Haia de 1930 (ACNUR, 2005, p.9):

Art. 1º. [...] cabe a cada Estado determinar por sua legislação quais são os seus nacionais. Esta legislação será aceita por todos os outros Estados, desde que esteja de acordo com as convenções internacionais, o costume internacional e os princípios de direito geralmente reconhecidos em matéria de nacionalidade.

[...]

Art. 2º. [...] Toda questão relativa ao ponto de saber se um indivíduo possui nacionalidade de um Estado será resolvida de acordo com a legislação desse Estado.

Existem, entretanto, diversos casos que sustentam a visão de que deixar a determinação da nacionalidade nas mãos do Estado exclusivamente pode acarretar em danos e desorientações, principalmente para indivíduos que podem, por exemplo, ficar sem nacionalidade ou com mais de uma nacionalidade. Além disso, existem Estados que ainda não adotaram qualquer lei de nacionalidade nos moldes atuais (CARTAXO, 2010).

A nacionalidade, por sua vez, pode ser de duas espécies: originária (primária ou atribuída) e adquirida (secundária, derivada). Os critérios de nacionalidade originária são majoritariamente o jus soli(s) e o jus sanguinis, já conceituados aqui. A nacionalidade secundária, no entanto, se adquire mediante naturalização. Isto e, quando um indivíduo a requisita por vontade própria; O Estado não impõe naturalização, apenas a concede de acordo com seu Direito interno. Wilba Lúcia Maia Bernardes (1996, p. 114) define a naturalização como “um acordo de vontades entre as partes, Estado e indivíduo, já que é o Estado soberano quem a concede em razão do pedido do interessado, que tem a faculdade de mudar de nacionalidade e escolher a que bem entender”.

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Não obstante, historicamente é possível identificar nas práticas internacionais outros critérios de aquisição da nacionalidade secundária. Um exemplo é o vínculo funcional com o Estado, no qual este pode conceder nacionalidade aqueles que sejam seus colaboradores e servidores, como se vê no Vaticano. Outro critério muito comum antigamente era o casamento, pelo qual o indivíduo automaticamente obtinha a nacionalidade do cônjuge estrangeiro somente pelo fato de contrair matrimônio, independente de sua vontade. Esta prática, no entanto, não é mais utilizada atualmente devido aos inúmeros impasses advindos dela. Além disso, existe também o critério jus domicilli, que se refere à aquisição da nacionalidade aqueles que se encontram domiciliados em um pais por tempo determinado (CARTAXO, 2010).

Geralmente, quando um indivíduo requer naturalização em um determinado país, é exigido que este renuncie à sua nacionalidade anterior. Algumas legislações ainda admitem a renúncia tácita da nacionalidade, que ocorre quando o cidadão naturalizado volta a seu país de origem e lá permanece além de determinado período, considerando-se ter renunciado à nacionalidade que adquirira mediante a naturalização. Os questionamentos que se fazem acerca desses fatos são sobre o direito de não perder a nacionalidade anterior, sobre o direito de não mudar, e de não adquirir.

Com efeito, a mudança de nacionalidade é um direito segundo as premissas relativas à dignidade da pessoa humana.

A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem aprovada em Bogotá, em 1948, Dispõe seu artigo 19 que: “Toda pessoa tem direito à uma nacionalidade que legalmente lhe corresponda, podendo mudá-la se assim o desejar, pela de qualquer outro país que estiver disposto a concedê-la”. E a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de São José de Costa Rica, de 1969, em seu artigo 20, dispõe que: “1.

Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Toda pessoa tem direito à nacionalidade do Estado em cujo território tiver nascido, se não tiver direito à outra. 3. A ninguém se deve privar arbitrariamente de sua nacionalidade nem do direito de mudá-la.” (CARTAXO, 2010, p.70-71).

Além disso, a Convenção para a Redução da Apatridia, patrocinada pela ONU, no seu artigo 8º dispõe que “os Estados contratantes não destituirão uma pessoa de sua nacionalidade se isto causar sua apatridia” (CARTAXO, 2010, p.70). Nesse sentido, a nacionalidade é um Direito humano, contudo, o Direito Internacional estabelece apenas regras gerais a respeito da nacionalidade para não contrariar a prerrogativa soberana de o Estado determinar quem são seus nacionais, mas existem muitos indivíduos sem nacionalidade ou com mais de uma nacionalidade, devido a complicações e falhas de Direito interno de alguns países.

Observa-se que a legislação acerca da nacionalidade ainda se faz a partir do conceito de Nação, que, como já exposto, pressupõe algum vínculo cultural ou étnico entre os cidadãos de um determinado local, e não sobre conceito de Estado. Especialmente a partir do último processo de globalização e do incremento dos meios de comunicação e transporte, os fluxos migratórios se intensificaram enormemente, trazendo consigo a necessidade de mudança em legislações que podem gerar exclusão social, como o da nacionalidade, uma vez que esta se relaciona diretamente com o conceito de cidadania, na maioria dos Estados.

Faz-se importante salientar também a diferença entre os conceitos de nacionalidade, aqui já exposto, e o conceito de cidadania. T. H. Marshall (2009 apud Ribeiro et. al., 2013) explicita o conceito de cidadania como a aquisição de direitos fundamentais de uma sociedade moderna. De acordo com o

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autor, esses direitos estariam divididos em três eixos principais: direitos civis, políticos e sociais. A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, passa-se a conceituar como cidadãos todos os que habitam o âmbito da soberania de um Estado e desse Estado auferem um conjunto de direitos (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) e deveres variados (CARTAXO, 2010).

A cidadania, assim considerada, consiste na consciência de participação dos indivíduos na vida da sociedade e nos negócios que envolvem o âmbito de seu Estado, alcançados, em igualdade de direitos e dignidade, pela convivência coletiva, com base num sentimento ético comum, capaz de torná-los partícipes do poder e garantir-lhes o acesso ao espaço público. São atos que comprovam o exercício da cidadania o desempenho de funções públicas, de atividades comerciais ou empresariais, o exercício do voto, a participação na vida da sociedade civil etc. (CARTAXO, 2010, p.54).

Nessa perspectiva, a nacionalidade é o conceito mais ligado as concepções conceituais do vínculo que liga o indivíduo a um Estado, enquanto que a cidadania tem características mais ligadas à participação social, esta última, como garantia do exercício dos direitos fundamentais. Sob esse aspecto, a cidadania presume nacionalidade, uma vez que correntemente, as garantias proporcionadas pela cidadania se limitam aos nacionais, excluindo os estrangeiros.

3. A Apatridia no Brasil e no Mundo

A nacionalidade é um direito humano que abre espaço ao exercício de todos os outros direitos, pois se liga diretamente à cidadania. Entretanto, existem pessoas que não possuem nacionalidade, sendo apátridas. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), existem cerca de 12 milhões de apátridas localizados em

diversos continentes, principalmente África, América, Ásia e Europa, sendo que metade desse número se refere a crianças. Entretanto, é previsto que estes números sejam ainda mais alarmantes visto que são poucos os países que monitoram a frequência de apátridas em seus territórios, e mesmo aqueles que monitoram, o fazem sem critérios claros de verificação (ACNUR, 2012).

Segundo definição exposta no Artigo 1º da Convenção de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas, apátrida é “toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional” (AGNU, 1954). Nesse sentido, a definição se refere a um vínculo jurídico formal entre o indivíduo e o Estado. O ACNUR classifica a apatridia em duas categorias: a de facto e a de jure. A primeira compreende indivíduos que possuem nacionalidade formal, mas que não gozam de direitos normalmente desfrutados por todos os nacionais. Já os apátridas de jure são aqueles que não possuem nenhuma nacionalidade formal, isso é, não são considerados nacionais de acordo com as leis de nenhum país (CORREA; OLIVEIRA, 2012).

É importante observar que atualmente existe uma grande discussão acadêmica acerca da definição da apatridia de facto. Isso se dá devido ao argumento de alguns autores de que um apátrida de facto, sendo uma pessoa que se encontra fora do país de sua nacionalidade, e que não podem ou, por razões válidas, não querem valer-se da proteção de tal país, pode se enquadrar na definição de refugiado apresentada na Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados (AGNU, 1951, Artigo 1º), em que refugiado é conceituado como toda pessoa que

[...] temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse

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país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

Dessarte, a apatridia tem causas diferentes, algumas mais fáceis de se definir que outras. Uma das causas seriam disputas entre Estados sobre a condição jurídica de pessoas, marginalização prolongada de populações durante processos de independência ou traçados de novas fronteiras nacionais, mudanças nas relações internacionais, etc. Segundo o ACNUR, na primeira metade dos anos 1990, mais da metade dos apátridas do mundo tinha perdido a nacionalidade devido à secessão de países. A partir do desmembramento da antiga União Soviética Iugoslávia e Checoslováquia, e com o surgimento de novos países, milhares de pessoas tanto no Leste Europeu como na Ásia Central, ficaram em situação de apatridia. O problema tomou maiores proporções com as migrações massivas que colocaram inúmeras pessoas na condição de refugiados ou deslocados. Ainda hoje dezenas de milhares de pessoas na região permanecem apátridas ou em risco de apatridia. Existem alguns esforços em prol da questão e movimentos que visam restaurar a nacionalidade desses indivíduos através da expedição de documentos, no entanto, a situação ainda é preocupante (ACNUR, 2011).

O ACNUR (2011) aponta também que o abandono após a formação pós-colonial de países é outra causa de apatridia. Grandes populações ficaram por décadas sem cidadania como resultado dessas construções de Estados na África e na Ásia. Destacam-se os casos da África Subsaariana, do Quênia, e da Costa do Marfim. Segundo pesquisas, no Himalaia existem por volta de oitocentos mil apátridas hoje que são impedidos de ter acesso a serviços e direitos básicos como direito à saúde, à educação, ao livre deslocamento, à propriedade, entre muitos outros.

Os apátridas são comumente alvo de arbitrariedades. São vítimas em potencial principalmente para o crime de tráfico de pessoas, por exemplo. Segundo o ACNUR, dentre as principais razões da apatridia do mundo, se destacam as complexas leis de nacionalidade e cidadania adotada em alguns países. Como exemplo, em alguns Estados, a cidadania é automaticamente perdida após a residência prolongada em outro país. “Com frequência, tais grupos se tornaram tão marginalizados que mesmo com mudanças de legislação para dar acesso à cidadania eles enfrentam obstáculos e burocracias.” (ACNUR, 2011, p.3).

Outro obstáculo muito comum especialmente em países em desenvolvimento apontado pelo Alto Comissariado é o não-registro de crianças ao nascer. A inexistência de certidão de nascimento não indica, automaticamente, a falta de cidadania, entretanto, em muitos países, não ter registro de nascimento, origens, ou identidade legal aumenta os riscos de apatridia por conta da burocracia local. Ligado a essa questão, também existem também casos de apatridia relacionados a discriminação contra a mulher. Sobretudo no Oriente Médio e na África, apenas os homens podem passar sua nacionalidade para os filhos; Dessa forma, mulheres que se casam com estrangeiros não podem passar sua nacionalidade para descendentes.

O ACNUR (2011) ressalta ainda que um tema relevante a todas as discussões sobre apatridia é a discriminação racial e étnica que leva à exclusão e vulnerabilidade, e aponta que frequentemente falta vontade política para tentar trabalhar sobre este problema. Considerando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que ‘todo ser humano tem direito a uma nacionalidade’, governos devem se esforçar para garantir que todos possuam uma nacionalidade para o gozo dos direitos humanos, reconhecendo assim sua importância jurídica. Sem o vínculo de nacionalidade com qualquer Estado, pessoas

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apátridas precisam de atenção e proteção especial para garantir sua capacidade de exercer os direitos básicos.

Para além da Declaração Universal dos Direitos Humanos, existem três tratados internacionais que versam sobre a apatridia efetivamente, são eles: a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, a Convenção sobre a Redução dos Casos de Apatridia de 1961, e a Convenção sobre a Nacionalidade das Mulheres Casadas de 1958. Dentre eles o mais representativo atualmente é o primeiro.

A condição jurídica internacional de apátrida foi reconhecida pela Convenção de 1954, e os indivíduos que satisfazem a esta definição têm acesso a certos direitos e benefícios contidos na Convenção de 1954, que possui reconhecimento de lei costumeira internacional. Tal Convenção parte do princípio fundamental de que nenhum apátrida deve ser tratado de maneira inferior a qualquer indivíduo que possua uma nacionalidade. No entanto, admite que os apátridas são mais vulneráveis que outros estrangeiros e, por isso, prevê uma série de parâmetros especiais para os mesmos (ACNUR, 2011).

Faz-se importante ressaltar que a Convenção de 1954 não abarca os apátridas de facto, para os quais não existe uma definição universalmente aceita no direito internacional. Entretanto, estes têm direito à proteção de acordo com os princípios fundamentais do direito internacional dos direitos humanos. Concomitantemente, os apátridas em situação de refúgio são amparados pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e devem ser tratados em conformidade com o direito internacional dos refugiados (ACNUR, 2011).

Por sua vez, a Convenção sobre a Redução dos Casos de Apatridia de 1961 é aplicada em casos onde o indivíduo é privado de sua nacionalidade, dispondo em quatro questões

basilares: a prevenção da apatridia entre crianças; em virtude de perda ou renúncia de nacionalidade; por revogação de nacionalidade e por sucessão estatal. Os primeiros artigos da Convenção estabelece a seus Estados contratantes a concessão de nacionalidade a toda criança apátrida nascida em seu território ou que tenha parentesco com um nacional. Crianças abandonadas no território também devem automaticamente ser reconhecidas como nacionais, como prescreve o Artigo 2º.

O Artigo 6º veda a revogação da nacionalidade a todos os Estados Contratantes, exceto em casos específicos dispostos no Artigo 8º, sendo proibida sua revogação arbitrária sob pretextos raciais, étnicos, religiosos ou políticos (Artigo 9º). O Artigo 7º especificamente proíbe a renúncia à nacionalidade sem que se haja adquirido uma segunda. Por sua vez, o Artigo 10º declara que os Estados devem observar em seus tratados a possibilidade de apatridia em casos de transferência de território de um Estado a outro (RIBEIRO et.al., 2013).

A Convenção sobre a Nacionalidade das Mulheres Casadas de 1958 reconhece os conflitos jurídicos sobre a perda e aquisição da nacionalidade da mulher como resultado do matrimônio, de sua dissolução ou da mudança de nacionalidade do marido durante o matrimônio. Nesse contexto, declara:

Art. 1º. Os Estados concordam em que nem a celebração ou dissolução do matrimônio entre nacionais ou estrangeiros, nem a mudança de nacionalidade do marido durante o matrimônio, poderão afetar automaticamente a nacionalidade da mulher.

Art. 2º. Os Estados contratantes concordam no fato de que se um de seus nacionais adquira voluntariamente a nacionalidade de outro Estado ou o de que renuncie a sua nacionalidade, não impedirá que a conjugue conserve a nacionalidade que possua.

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Art. 3º. Os estados contratantes concordam em que uma mulher estrangeira casada com um de seus nacionais poderá adquirir, se o solicitar, a nacionalidade do marido, mediante um procedimento especial de naturalização privilegiada, com sujeição às limitações que possam ser impostas por razões de segurança ou de interesse público (AGNU, 1958, online).

Há outros dispositivos de Direitos Humanos que podem ser citados perante o regime de proteção aos apátridas, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 que exprime que toda criança, independente de “raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, propriedade ou nascimento” tem o direito à nacionalidade, e deve ser registrada imediatamente após o nascimento (Artigo 24º); além disso, o Artigo 13º consagra que não-cidadãos só podem ser expulsos dopais em que se encontram em observância à lei, tornando indispensável a prerrogativa de contestação da decisão junto a uma autoridade competente. Pode-se considerar também a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1966 que anuncia a inalienabilidade do direito à nacionalidade, independente de qualquer forma de discriminação, como observa seu Artigo 5º, os Estados se comprometem “a proibir e a eliminar a discriminação racial sob todas as suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei, sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica” (AGNU, 1966, online).

Em síntese, existem outros mecanismos que podem ser citados acerca da questão, entretanto, apenas as Convenções de 1954 e de 1961 e o regime de Direitos Humanos em conjunto já poderiam fornecer uma estrutura geral e relativamente satisfatória em prol da proteção dos direitos dos apátridas, entretanto, observa-se que a maior adversidade nesse conteúdo está na aplicação dessas normas internacionais nas legislações internas e/ou na baixa contratação pelos Estados.

4. Práticas no Combate a Apatridia: Limites e Possibilidades

Para além de um vínculo jurídico entre a pessoa e o Estado, a nacionalidade proporciona às pessoas um senso de identidade, e mais importante, o pleno exercício de um conjunto de direitos e da cidadania em si. Nesse sentido, a apatridia pode ser devastadora na vida das pessoas acometidas. Não obstante aos esforços internacionais já expostos aqui em resposta a essa questão, novos casos de apatridia continuam a surgir. Dessa forma, o combate à apatridia continua a representar um importante desafio no século XXI. Este capítulo trata dos principais dilemas enfrentados pelos apátridas, bem como os mecanismos de enfrentamento a apatridia atualmente.

A ausência de vínculo com algum país, repercute no direito a existência do sujeito, visto que ele não é contabilizado por nenhum país, não pode acessar a rede de serviços, não exerce os direitos civis, políticos, dentre outros, requisitos esses essenciais para o status de cidadão e exercício de cidadania. O que significa dizer o sujeito encontrará uma série de desafios e seguirá no “limbo jurídico” até que seja instituído mudanças.

Como uma forma de contribuir com o combate a apatridia no mundo, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e o Amparo de Apátridas, o ACNUR, sediado em Genebra, Suíça, criado em 1950 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, com o objetivo primário de amparar e auxiliar os refugiados precedentes de conflitos e perseguições provenientes da Segunda Guerra Mundial. Com o passar do tempo, o Alto Comissariado também foi incumbido de acolher e dar assistência e proteção aos deslocados internos e apátridas, em especial àqueles em condições vulneráveis, como crianças, mulheres, indígenas, e negros (CORREA; OLIVEIRA, 2012).

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Concomitantemente, o ACNUR estimula que os Estados se engajem perante aos direitos dos refugiados e apátridas, assentindo suas legislações nacionais a essas questões e possibilitando a repatriação voluntária e proteção de grupos vulneráveis. Também busca estimular os Estados a adotarem as Convenções da Organização das Nações Unidas sobre apatridia e refúgio, orientando sobre as adequações necessárias a serem feitas em seu aparato jurídico nacional.

O trabalho do Alto Comissariado segue as diretrizes expostas na Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954. A partir da mencionada Convenção, o ACNUR oferece assistência técnica em matéria de legislação e suporte operacional aos Estados para promover a implementação das medidas e direitos previstos aos apátridas e refugiados. Além disso, busca a disseminação ativa de informações acerca destas normas e instrui organizações governamentais sobre os mecanismos adequados para identificar, registrar e conceder estatuto aos apátridas (ACNUR, 2011).

Essa forma de organização se da devido ao julgamento do próprio ACNUR de que o Estatuto dos Apátridas é o único instrumento legal que estabelece formalmente a condição jurídica internacional de apátrida, pois aborda muitos aspectos práticos relacionadas à proteção dessas pessoas, como o acesso a documentos de viagem, que não são abordadas em outros instrumentos do direito internacional. Ainda segundo o ACNUR (2011), este tratado complementa as disposições dos demais tratados de Direitos humanas e objetiva regulamentar a condição dos apátridas e garantir o gozo de todos os aspectos dos seus direitos humanos.

A Convenção de 1954 garante aos apátridas o direito à assistência administrativa (Artigo 25), o direito à carteira de identidade e aos documentos de viagem (Artigos 27

e 28) e os isenta da reciprocidade dos requisitos (Artigo 7). Estas disposições diferenciadas são implementadas para lidar com dificuldades específicas enfrentadas pelos apátridas devido à falta de qualquer nacionalidade, por exemplo, proporcionando a eles um documento de viagem mutuamente reconhecido que funcione no lugar do passaporte. Estas questões não estão regulamentadas por outros instrumentos do direito internacional, e se encontram entre os principais benefícios legais dos apátridas contidos na Convenção de 1954 (ACNUR, 2011, p.4).

A Convenção estipula que os apátridas devem ser tratados da mesma forma que nacionais do Estado com relação a certos direitos, tais como a liberdade de praticar sua religião ou ao acesso a educação primária, entretanto faz-se importante observar que o usufruto dos direitos previstos na Convenção de 1954 não constitui nacionalidade. Por esse motivo, a Convenção de 1954 solicita aos Estados contratantes, em seu artigo 32º, que facilitem a naturalização dos apátridas, já que ao adquirirem uma nacionalidade efetiva, não se configurariam mais como apátridas e essa condição chegaria ao fim. Nesse sentido, o ACNUR (2011, p.9) afirma que a Convenção de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas “deve ser vista como uma resposta temporária enquanto medidas para a aquisição de nacionalidade são exploradas”. O fim da apatridia por meio da aquisição da nacionalidade ainda é o objetivo final.

Em novembro de 2014, 60 anos após o primeiro acordo da ONU para garantir a proteção de apátridas, o Alto Comissariado lançou ainda a campanha global intitulada “I Belong” (Eu Pertenço, em português), com o objetivo que acabar com a apatridia até 2024. A campanha foi lançada em carta aberta publicada no jornal The Guardian, com o apoio da Enviada Especial do ACNUR, a atriz Angelina Jolie, e com o apoio de diversas outras celebridades internacionais formadoras de opinião (ACNUR, 2017).

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Segundo o ACNUR, o lançamento da campanha se baseia em aparentes sinais positivos de uma mudança de atitude internacional em relação a questão da apatridia, uma vez que o número de Estados signatários da Convenção de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas e da Convenção de 1961 para Reduzir os Casos de Apatridia aumentou consideravelmente. Contudo, o Alto Comissariado alerta para novos riscos de apatridia mediante a intensificação de diversos conflitos ao redor do mundo, como as guerras na República Centro-Africana e na Síria que obrigaram milhares de pessoas a se deslocar internamente ou a buscarem refúgio (ACNUR, 2017).

Face ao exposto, observa-se as iniciativas na tentativa de sensibilização dos países para lidar com tal fenômeno social, além de contribuir com a produção de conhecimento sobre a questão e encontrar soluções jurídicas para fenômeno. Portanto, trata-se de iniciativas fundamentais para contribuir com o reconhecimento de vínculo do sujeito com um estado nação, bem como exercício da sua cidadania plena.

5. Conclusão

A partir das considerações do presente trabalho, observa-se que os entraves a plena execução do regime de proteção dos apátridas já se iniciaram com a baixa contratação das Convenções de 1954 e 1961 por parte dos Estados. Além disso, como já é costumeiro no regime de Direitos Humanos, grande parte das normas e diretrizes nestes documentos são expressas de forma bastante ampla, sendo exigido o amparo de uma série de documentos para se ter uma visão mais ou menos clara dos direitos que devem ser estendidos aos apátridas, e trazendo a necessidade de procurar por interpretações nos órgãos supervisores da aplicação dos tratados congruentes; o que traz a tona a limitação adicional de que as Convenções de 1954 e 1961 não dispõem de um corpo supervisor.

Nesse sentido, questiona-se a amplitude e faculdade operacional do ACNUR em sua incumbência universal sobre questões relativas à apatridia, uma vez que a instituição não possui uma metodologia formal de supervisão e aplicação plena da Convenção de 1954. O que se observa, é que o percurso que o Alto Comissariado tem trilhado, não evidencia uma melhora efetiva sobre o regime de proteção dos apátridas, pois estes acabam sempre outorgando espaço a questão dos refugiados, que obtém maior atenção política e midiática. Um indício que sustenta esse argumento é o baixo financiamento dedicado à apatridia em comparação às outras atividades do órgão (LOESCHER, 2001).

Além disso, é importante admitir que o processo segundo o qual se define a validade do pedido de proteção de um suposto apátrida é inerentemente complexo. O ACNUR (2011) indica que os Estados compreendidos na questão especifica de cada indivíduo que se declara apátrida, devem se consultar objetivando obter evidência documental de que o indivíduo em questão de fato não possui nacionalidade ou uma aspiração válida a nacionalidade sob a legislação de algum dos países com que possuía vínculos anteriormente. Não sendo possível identificar nenhuma evidência nesse sentido, o órgão aconselha que a indisposição do Estado questionado em fornecer documentação seja vista como evidência de apatridia.

Concomitantemente a estes limites, perante o processo de solicitação de proteção por apatridia, os apátridas têm desvantagens acerca da possibilidade de intervenção de uma terceira parte, prática costumeiramente empregue pelos Estados para auxiliar indiretamente nos litígios de seus cidadãos. Além disso, existem dificuldades com relação ao tempo e aos custos destes litígios, pois a maioria dos apátridas se encontra em condição socioeconômica desprivilegiada.

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Portanto, a circunstância de apatridia é extremamente complexa e situa o indivíduo num estado de grande vulnerabilidade, por não ter Estado que utilize a proteção diplomática ao seu favor. Um apátrida é essencialmente invisível. A nacionalidade representa muito mais do que um vínculo jurídico e político entre o indivíduo e o seu país. Significa um vínculo cultural, afetivo e social que assente que direitos e garantias, como a dignidade e a cidadania, sejam verdadeiramente efetivados. Nesse sentido, o apátrida é privado de direitos elementares na sociedade contemporânea. Todas essas privações impedem à condução de uma vida digna; e como já exposto aqui, a dignidade pressupõe largamente a cidadania, que pressupõe a nacionalidade.

Em suma, as Convenções de 1954 e 1961 são importantes instrumentos normativos de Direito internacional em prol do regime de proteção aos apátridas. Entretanto, em curto prazo, é imprescindível que cada país encontre maneiras de tratar deste problema em âmbito interno, não só ratificando

estes documentos internacionais, como criando leis próprias de nacionalidade e aperfeiçoando seus mecanismos administrativos para que dêem atenção especial à questão. A longo prazo, espera-se que a premissa dos direitos humanos de que todo ser humano, apenas por sê-lo, é digno de respeito, seja interpretada em sua plenitude, e nessa perspectiva, os Direitos Humanos sejam desnacionalizados, tendo em vista que se propõem a ser “universais”. Infere-se que os Direitos Humanos devem ser concedidos a todo o indivíduo, independente de este possuir ou não documentos que evidenciem seu nascimento em determinado Estado.

Face ao exposto, conclui-se que a apatridia representa uma grave violação de direitos humanos, demandando uma forte articulação da sociedade civil, dos organismos internacionais, dos Estados para que esse fenômeno possa desaparecer no mundo, para que tais indivíduos posam exercer verdadeiramente a sua cidadania e, consequentemente, a sua existência.

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A SATISFAÇÃO DE CRÉDITOS POR EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O PERÍODO DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL

Frederico Augusto Cavalheiro e Carmelo NunesAdvogado, Sócio do escritório Carmelo Nunes Sociedade de Advogados, Mestrando em Direito Comercial na Pontifica Universidade Católica de São Paulo.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. Período de Fiscalização Judicial

3. Dados coletados

4. Processos não finalizados após o biênio legal

5. Especialização Judiciária

6. Conclusão

Referências Bibliográficas

Notações

RESUMOEste artigo procura avaliar o comportamento dos processos de recuperação judicial após a aprovação do plano, quando iniciado o período de supervisão, comparando a tramitação nas varas especializadas e comuns. A pesquisa empírica buscou dados disponíveis no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e realizou análise no sentido de verificar quantos dos processos, com o plano aprovado até junho de 2016, foram finalizados ou poderiam ser, tanto pelo cumprimento do plano quanto pela falência, identificando o impacto da especialização judiciária no âmbito da recuperação judicial.

PALAVRAS-CHAVE

Recuperação Judicial. Plano. Período de Acompanhamento. Jurimetria. Especialização. Eficiência.

ABSTRACTThis article seeks to evaluate the behavior of the judicial reorganization processes after the approval of the plan, when the period of supervision has started, comparing the processing in specialized and common courts. The empirical research sought data available at the Court of Justice of the State of São Paulo and carried out an analysis in order to verify how many of the cases, with the plan approved until June 2016, were finalized or could be, both for the fulfillment of the plan and for bankruptcy, identifying the impact of judicial specialization in the context of judicial reorganization.

KEYWORDS

Judicial recovery. Plan. Judicial Inspection. Jurimetry. Specialization. Efficiency.

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Mesmo após alguns anos de vigência da Lei de Recuperação Judicial e Falências (LRF), pairam dúvidas sobre sua aplicabilidade prática, seus

resultados e o impacto da especialização judiciária. Realizou-se, então, no ano de 2017 e 2018, o Observatório da Insolvência, através do Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência (NEPI) da PUC-SP e da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), objetivando levantar e analisar casos concretos referentes às sociedades em crise que se dirigiram ao Poder Judiciário para apresentar meios de recuperação ou, na impossibilidade, para serem liquidadas, maximizando seu valor econômico.

O trabalho empírico foi dividido em duas fases. Na primeira, os pesquisadores extraíram dados e analisaram 198 recuperações distribuídas junto às Varas de falência e recuperação judicial do Foro Central da Comarca de São Paulo, Capital, em um período de quase três anos. Já na segunda fase, o objeto da pesquisa foi ampliado para o todo o estado de São Paulo, analisando todos os

processos distribuídos entre janeiro de 2010 a julho de 2017 (906 processos), o que permitiu a atualização dos dados anteriormente coletados e a inserção de novos detalhes às análises.

A presente pesquisa partiu do fato de que dos 170 planos aprovados até junho de 2016, 97 ainda estavam em fase de acompanhamento, superando o período legal de dois anos, previsto no art. 61 da LRF. Foram selecionados os processos digitais, no total de 71, visando facilitar a coleta de dados e informações processuais.

A análise levou em consideração a data de concessão do instituto, os atos processuais subsequentes, a atuação jurisdicional e o resultado, ou seja, processo encerrado pelo cumprimento do plano e decurso do biênio legal01; convolação em falência ; ou ainda em curso. Além disso, buscou identificar os processos ativos em condições de serem finalizadas, ou seja, aqueles ativos devido à ineficiência do Judiciário.

A consolidação dos dados possibilitou a materialização da real situação dos processos, firmando um prognóstico referente às recuperações judiciais que tramitam no Estado de São Paulo, bem como a identificação dos problemas práticos enfrentados pelos empresários brasileiros, abrindo caminho para melhorias e ajustes procedimentais com enfoque na eficiência do instituto.

O objetivo central da presente pesquisa foi identificar as causas do prolongamento processual na maioria dos processos, as diferenças na condução processual e taxa de processos que são finalizados pelo cumprimento do plano, o que indica o sucesso do procedimento, dividindo os resultados entre varas comuns e especializadas para entender o impacto da especialização judiciária e se a medida atingiu o efeito desejado.

1. Introdução

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Por fim, conclui explicando se a solução implementada trouxe maior eficiência na condução dos processos de recuperação judicial e se a medida se mostra cabível para varas do interior, no sentido de propiciar melhores resultados e o cumprimento da finalidade legal de proteção das empresas, empregos e da sociedade, sem desrespeitar as regras de mercado.

2. Período de Fiscalização Judicial

Concedida a recuperação judicial, o Judiciário deverá acompanhar o cumprimento do plano, pelo prazo de dois anos a partir da decisão, conforme disposto no art. 61 da LRF02. A publicação da decisão implica a novação dos créditos perante os credores, assim como na publicidade do ato.

O dispositivo em questão prevê que:[...] proferida a decisão prevista no art. 58 desta Lei, o devedor permanecerá em recuperação judicial até que se cumpram todas as obrigações previstas no plano que se vencerem até 2 (dois) anos depois da concessão da recuperação judicial. (BRASIL, 2005).

Extrai-se, portanto, que o termo inicial fixado é a data da concessão da recuperação judicial (art. 58) e que o encerramento processual, após o prazo de dois anos, está condicionado ao cumprimento das obrigações vencidas nesse período03.

Finalizado o processo, o credor poderá, em caso de descumprimento de obrigação, requerer a falência ou promover a cobrança pela via executiva, pois o encerramento do processo de recuperação não extingue as obrigações previstas no plano, as quais prevalecem até seu integral cumprimento04.

Não há necessidade do devedor pagar todos os credores previstos no plano, tampouco de projeções financeiras para o período de cumprimento, pois a sentença de encerramento

do processo deve ser proferida após o decurso dos dois anos, desde que constatado o adimplemento das obrigações na forma aprovada pelos credores.

O biênio legal não se presta para proteger as empresas endividadas ou ajudá-las com as obrigações assumidas, mas sim para facilitar a fiscalização de suas atividades e do cumprimento do plano, principalmente pelos credores, proporcionando uma maior celeridade processual, a preservação dos ativos da falida e o pagamento dos haveres05. Destaca-se que o prazo legal não tem nenhuma fundamentação empírica ou jurídica, entendido simplesmente como adequado pelo legislador, fato que se mostra relevante quando observado o tempo mediano para encerramento do processo.

Mecanismos que proporcionem maior proteção ao credor e segurança quanto à técnica jurídica aplicada para administração dos processos de recuperação judicial, tendem a reduzir os custos do procedimento e do crédito, gerando incentivos econômicos ao empreendedorismo e fomentando investimentos e a geração de empregos.

Descumpridas as obrigações contidas no plano de recuperação judicial no período de fiscalização, o juiz poderá de ofício convolar a recuperação em falência, vez que demonstrada a inviabilidade econômica do devedor, procurando evitar que os efeitos negativos da sua má gestão contamine o mercado. Nessa hipótese, a novação será resolvida e os credores retornam à situação original06.

O Estado não deve agir para tentar recuperar empresas que não têm condições de seguir seu propósito e que, dessa forma, não geram benefício social relevante, pois as sociedades que se socorrem ao Judiciário para resolver problemas econômico-financeiros, entendidos como crise, devem atuar com cautela

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e diligência em busca de sua reorganização, pautando-se na boa-fé e no dever de informação, na medida em que os processos de recuperação judicial geram custos às partes envolvidas e, consequentemente, refletem negativamente na economia brasileira.

As estruturas do livre mercado condenam empresas insustentáveis para a sobrevivência saudável de outras, não existindo amparo nos princípios econômicos a utilização do Poder Judiciário para sustentar ou até ressuscitar sociedades condenadas à falência.

Se não interessa ao sistema econômico a manutenção das empresas inviáveis, não existe razão para que o Estado, através do Poder Judiciário, trabalhe nesse sentido, protegendo sociedades devedoras que se escondem nos processos de recuperação judicial, situação que causa alto grau de insegurança jurídica, inibindo a criação de novos negócios, empregos, arrecadação de impostos e o crescimento do país.

O sistema de recuperação judicial brasileiro parte do princípio de a devedora e credores devem arcar com os custos envolvidos no procedimento, protegendo os empregos e todos os benefícios decorrentes da manutenção da unidade produtiva07. Os ônus suportados pelos credores só se justificam se a manutenção da empresa recuperanda for possível e gerar os benefícios sociais esperados.

A devedora continuará produzindo para pagamento de seus credores, que receberão, ainda que em termos renegociados e compatíveis com a situação financeira da recuperanda. Portanto, tal mecanismo só faz sentido se utilizado para proteger os titulares de crédito e beneficiar o interesse social, entendimento que deve preservado pelos operadores do direito.

Empresas que, em recuperação judicial, não geram empregos, rendas, tributos, nem circulam riquezas, serviços e produtos, não cumprem sua função social e, consequentemente, não há justificativa para mantê-las em funcionamento, carreando todo o ônus do procedimento reparador aos credores.

A partir disso, a presente pesquisa buscou analisar e identificar as causas que levaram os processos a permanecerem ativos após o período de fiscalização judicial, levando-se em consideração os dados obtidos pelo Observatório da Insolvência realizado no ano de 2017 e 2018.

Buscou-se, ainda, medir a quantidade de processos ativos em condições de serem encerrados, pelo cumprimento ou descumprimento do plano, identificando o índice dos que atingiram o objetivo legal de auxiliar na recuperação das empresas em crise.

Além de identificar as causas, foram contrapostos os resultados obtidos nas varas especializadas e varas comuns, com objetivo de medir se a especialização judiciária trouxe maior eficiência na condução processual e melhorou os resultados na aplicação do instituto.

3. Dados Coletados

Das análises realizadas pelo Observatório de Insolvência, restringidas aos planos de recuperação aprovados até primeiro de junho de 2016, com o período de supervisão judicial encerrando em junho de 2018, observou-se um grande número de processos não finalizados no biênio legal, formando uma espécie de limbo processual da recuperação judicial. Dos 170 planos aprovados até junho de 2016, 97 ainda estavam em fase de acompanhamento, superando a expectativa legal08.

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A presente pesquisa buscou analisar os autos de cada processo para diagnosticar quais as causas do retardo processual e suas características, na medida em que seu prolongamento causa prejuízos econômicos e sociais, como o aumento do valor do crédito, do desemprego e, principalmente, dos gastos públicos, tudo para manutenção de empresas inviáveis e condenadas ao insucesso.

Para viabilizar a pesquisa, foram analisados os processos eletrônicos, no total de 71.

Tabela 2 – Desfecho final da recuperação judicialDesfecho final da

recuperação judicial Nº %

Em Andamento 44 62%Encerrado 16 23%

Falida 11 15%Total Geral 71 100%

Do total de processos, apurou-se que 62% dos casos que não haviam sido finalizados no prazo legal, estando ativos. Em 23% dos processos verificou-se o encerramento pelo cumprimento do plano e decurso do biênio legal e 15% deles terminaram na falência da empresa.

Os dados gerais demonstram que, apesar de superado o prazo de acompanhamento legal, 23% (16) dos processos foram finalizados pela constatação do adimplemento do plano e 15% (11) tiveram a convolação em falência. Quando contraposto aos dados da Tabela 1 supra, observa-se uma melhora razoável nos resultados, com a queda de 3,2% no índice de empresas que faliram e um aumento de 4,8% no número de recuperações bem sucedidas.

Quando separados os processos que tramitam nas varas empresariais e varas comuns, os resultados demonstram o impacto da especialização judiciaria e ressaltam a questão da efetividade na aplicação da LRF.

Tabela 3 – Desfecho final da recuperação judicial na vara comum

Varas Comuns Nº %Em Andamento 26 72%

Encerrado 5 14%Falida 5 14%

Total Geral 36 100%

Tabela 4 – Desfecho final da recuperação judicial na vara especializada

Varas Especializadas Nº %Em Andamento 18 51%

Encerrado 11 31%Falida 6 17%

Total Geral 35 100%

Dos 36 processos analisados nas varas comuns, 72% ainda estavam em andamento, enquanto apenas 28% dos casos foram encerrados até novembro de 2019, sendo 14% pela convolação da recuperação judicial em falência e 14% pelo cumprimento do plano aprovado.

Tabela 1 – Desfechos da fase de acompanhamento do plano de recuperação judicial

Desfecho final da recuperação Nº %% – apenas

recuperações finalizadas

Encerramento da recuperação devido à falência (não cumprimento do plano) 42 24,7% 57,5%

Encerramento da recuperação judicial sem falência 31 18,2% 42,4%

Fase de acompanhamento ainda em curso 97 57,1%

Fonte: Associação Brasileira de Jurimetria (2019)

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Nas varas especializadas, 51% dos processos verificados ainda estavam sob fiscalização. Foram encerrados 31% dos casos pelo decurso do prazo de fiscalização e 17% devido à falência da empresa.

Quando separados os resultados entre varas empresariais e varas comuns, constata-se uma grande diferença, sendo que 69% (11) dos casos finalizados pelo decurso do biênio legal tramitaram nas varas especializadas, enquanto apenas 31% (5) se encontravam nas varas comuns. Os índices nos levam a concluir que o instituo é melhor aplicado pelos juízes especializados, no que diz respeito à recuperação da empresa em crise, vez que recuperou mais do que o dobro de empresas.

O melhor aproveitamento é reforçado pelos resultados extraídos dos processos que foram convolados em falência, pois representam 50% (5) dos analisados nas varas comuns e 35% (6) dos processos nas varas especializadas. O dado de que metade das recuperações judiciais foi convertida em falência nas varas comuns demonstra a ineficiência na aplicação do instituto, na medida em que uma melhor análise e verificação da recuperanda, quando do pedido inicial, poderia antecipar a falência. Fato é que mais empresas se recuperam, ou cumprem o plano aprovado, quando tem seus processos fiscalizados e julgados pelas varas especializadas.

Os resultados expressam nitidamente o tratamento diferenciado dos juízes especializados, apresentando maior eficiência na aplicação do instituto e atingindo o objetivo legal. A conclusão é extraída do fato de que 10% a mais dos processos foram resolvidos pelas varas especializadas, sendo que a grande diferença está no número de processos que finalizaram pelo cumprimento do plano.

A pesquisa apurou que o prolongamento processual se deve ao fato do processo de recuperação judicial apresentar diversas peculiaridades, direitos a serem tutelados e um procedimento específico a ser seguido, mais complexo do que os procedimentos comuns, a demandar a especialização dos juízes para uma atuação mais concisa, célere e, principalmente, conforme os princípios norteadores do instituto legal.

Enquanto não encerrado o processo de recuperação judicial, o plano pode sofrer alterações, mesmo após sua homologação pela Assembleia Geral de Credores09. Isto ocorre exatamente para que se possa adequá-lo após o julgamento de eventuais impugnações e nos casos de habilitações de crédito retardatárias, como prevê o art. 10, da Lei n. 11.101/2005.

A falta de expertise na condução dos processos resulta no prolongamento excessivo do procedimento, vez que, mesmo em condições, não são finalizados, o que se apresenta prejudicial aos fins a que se presta o instituto, pois limita a atuação do credor, sendo obrigado, em muitas vezes, a deliberar acerca de aditamentos e liquidação de ativos, sem que as exceções sejam corretamente utilizadas, eternizando os processos e criando o chamado limbo processual10.

Não há objeção legal ou processual para o encerramento da recuperação ainda que haja aditamento ao plano, impugnações, habilitações retardatárias e ações rescisórias pendentes de julgamento. A extinção do processo não está vinculada à consolidação do rol de credores, sendo certo que sua continuidade forçada e imotivada, mais do que desvirtuar, frustrará a finalidade do instituto, além de trazer gastos excessivos aos cofres públicos e aos credores.

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4. Processos não Finalizados no Biênio Legal

Neste capítulo foram destacados os processos não finalizados, correspondentes a 62% dos casos analisados. Os 44 processos em andamento merecem análise um pouco mais aprofundada quanto aos motivos que levaram ao seu prolongamento.

A interpretação sistemática dos artigos 61 e 62 da LRF deixa evidente que a lei definiu o prazo de dois anos como um limite máximo para a manutenção do processo de recuperação, justamente para limitar os aspectos negativos do prolongamento desse regime, ou seja, aumento dos custos do processo, dificuldade de recuperação de crédito da devedora e os gastos públicos inúteis. Entende-se que a lei adotou um critério temporal absolutamente formal, desligado da realidade de cada plano, apenas como parâmetro de tempo para verificar a viabilidade econômica de uma empresa pagar seus credores, na forma do plano aprovado, e sair da crise vivenciada, voltando a gerar benefícios econômicos e sociais11.

Constatou-se, inicialmente, que o principal elemento que permitiu uma melhora considerável na aplicação da LRF foi a implementação dos processos digitais, tecnologia que proporcionou melhores condições para o juiz administrar do processo e facilidade para o credor fiscalizar as atividades da devedora.

Da análise realizada, apurou-se que do total de processos ativos, 56% (24) reúne condições para o encerramento, ou seja, decorreu o período de fiscalização legal e o plano está sendo cumprido; não houve denúncia de descumprimento; ou houve a denúncia do descumprimento, sem comprovação contrária pela devedora (caso de falência), estando indevidamente em ativos.

Os outros 44% (20) dos processos tiveram o início do prazo de supervisão postergado, justificando a manutenção da recuperação judicial pelo Poder Judiciário. Constatou-se que a flexibilização da contagem do prazo deveu-se pela previsão de prazos de carência12; concessão de efeitos suspensivos contra sentença de concessão do plano; alteração do plano pelo Poder Judiciário; aditamentos; venda de ativos; entre outros motivos que obrigam a atuação no sentido de proteger o credor e garantir que receba seu crédito.

Tabela 5 – Processos ativos que reunem condições para encerramento

Condições para encerramento Nº %

Sim 24 55%Não 20 45%

Total Geral 44 100%

Excluindo os 20 processos supracitados do total analisado, observa-se 51 processos, sendo que se somados os processos finalizados e os que reúnem condições para encerramento, chega-se à conclusão de que 26 dos processos estariam finalizados pelo cumprimento do plano, indicando o sucesso do procedimento, e 25 teriam resultado na falência da empresa em crise. O índice de, aproximadamente, 50% de sucesso das empresas que buscam a ajuda do Poder Judiciário, se mostra relevante e animador para a utilidade do instituto legal.

Tabela 6 – Índice de sucesso na recuperação judicial

Índice de Sucesso na Recuperação Judicial Nº %

Encerrado/Encerramento 26 51%Falida/Falência 25 49%

Total Geral 51 100%

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Gráfico 1 – Representação do índice de sucesso na recuperação judicial

obriga a compreender as possíveis causas desse fenômeno, já que a interpretação restritiva da lei impõe que o início do prazo de fiscalização inicia na data de concessão da recuperação judicial.

Observou-se que a especialização judiciária proporcionou decisões mais acertadas, com menor índice de reformas, vez que amparadas nos princípios, requisitos e prazos legais, bem como em uma melhor atuação do administrador judicial. A soma dos pontos positivos resulta na celeridade processual, menor índice de descumprimento do plano e no maior número de processos encerrados, indícios de que os recursos empenhados no procedimento são mais bem aproveitados.

Nas varas especializas constatou-se que a extensão do prazo de fiscalização está diretamente ligada à flexibilização do marco inicial do biênio legal, ou seja, a contagem ocorre a partir do fim da carência ou da homologação do aditamento ao plano de recuperação. Na maioria dos casos ativos, o biênio legal foi desconsiderado para viabilizar a venda de ativos da devedora, de acordo com o plano aprovado, situação que demanda atuação do judiciário para garantir a segurança do negócio e o pagamento dos créditos.

Apurou-se, ainda, que os processos que tramitaram nas varas especializadas são mais organizados, garantindo aos credores melhores condições de fiscalizar o recebimento de seus haveres e, ao administrador judicial, de fiscalizar as atividades da recuperanda13.

Os credores possuem papel fundamental, pois têm o dever de fiscalizar o cumprimento do plano aprovado14, noticiando o inadimplemento ao juízo que, por sua vez, deverá atuar de forma a confirmar o descumprimento obrigacional e convolar o procedimento em falência ou encerrar o procedimento findo o biênio legal. Nos processos analisados, observou-se

Quando separados os resultados entre varas comuns e especializadas, observa-se que dos 44 processos ativos, 41% (17) tramita nas varas especializadas e 59% (26) nas varas comuns.

Tabela 7 – Distribuição dos processos ativos de acordo com a vara

Vara Nº %Comum 26 59%

Especializada 18 41%Total Geral 44 100%

O alto índice de processos ativos após os dois anos de supervisão, com especial relevância das varas comuns, nos

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uma atuação mais efetiva das varas especializadas no que tange aos requerimentos dos credores, proporcionando-lhe melhores condições para fiscalizar o cumprimento do plano, sob a ameaça de falência.

Outro fator que se apresenta determinante para o bom andamento do processo é a atuação ativa do administrador judicial que tem o dever de fiscalizar as atividades da recuperanda, bem como o cumprimento das obrigações assumidas na forma do plano homologado. Apurou-se que o administrador judicial, atuante nas varas empresariais, é mais especializado, utilizando-se de meios mais eficientes para manter os credores informados sobre reestruturação da empresa devedora, assim como das providências e pagamentos realizados.

Nas varas comuns constatou-se que as causas do prolongamento processual eram outras. A falta de expertise em lidar com as diferentes situações inerentes ao processo de recuperação judicial, reflete diretamente na duração razoável do procedimento, possibilitando a utilização do instituto para fraudar credores, vez que, sob a proteção do juízo universal15, o patrimônio da empresa devedora fica protegido até o final cumprimento do plano ou extinção do processo pelo decurso do prazo legal.

O principal problema observado foi assimetria de informação, causada pela ausência de esclarecimentos quanto as providências adotadas para cumprimento do plano, fato agravado pela falta de técnica do juiz comum para compelir a recuperanda a prestar as informações necessárias. A assimetria informacional resulta na desorganização processual, impossibilitando os credores de acompanhar o recebimento de seu crédito, situação constatada de forma mais acentuada nos processos das varas comuns.

Além disso, verificou-se que, quando os credores denunciaram o inadimplemento do plano, os juízes das varas comuns tenderam a conceder prazos extras para que o devedor cumpra as obrigações, alterando as condições aprovadas pelos credores, mesmo sem haver previsão legal autorizando o ato, e, em alguns casos, permitiram a convocação de assembleia-geral para aditamento do plano, sem comprovação do adimplemento das obrigações até a data do pedido. A atuação jurisdicional equivocada reflete negativamente no mercado, gerando insegurança e gastos desnecessários, para os credores e aos cofres públicos, bem como dúvidas quanto à utilidade do instituto.

A dificuldade de o juiz não especializado atuar nos processos de recuperação judicial está diretamente ligada à complexidade do instituto, pois a LRF possui diferentes prazos e requisitos que devem ser observados para o regular processamento dos autos, devendo aplicar, quando necessário, as soluções já consolidadas pelo instituto, visando a proteção dos credores e não da recuperanda.

O administrador judicial atuante nas varas comuns também se mostrou omisso e ineficiente, na medida em que o processo mal administrado não possibilita condições para uma atuação mais incisiva do expert junto à empresa recuperanda, dificultando a tomada de decisão dos credores quanto à viabilidade de reestruturação16.

Dos 24 processos que foram verificadas condições para encerramento, seja pelo cumprimento do plano ou pela convolação em falência, apenas 28% (7) estão concentrados nas varas especializadas, enquanto 72% (17) estão em tramite perante as varas comuns.

Nas varas especializadas, constatou-se que em 3 dos casos o plano foi adimplido e o prazo de fiscalização foi encerrado,

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e em 4 processos foi constatado o descumprimento do plano, demandando a convolação em falência.

Quando somados os 17 processos finalizados (cf. Tabela 4) com os 7 processos supracitados, tem-se o total de 24 processos, apontando para uma taxa de 68,57% de sucesso do procedimento, com 14 planos cumpridos e 10 descumpridos.

Nas varas comuns, constatou-se que em 7 processos o plano foi cumprido, estando em condições de encerramento, e 10 deveriam ter sido convolados em falência pela notícia do inadimplemento.

Quando somados os 10 processos já finalizados (cf. Tabela 4) com os 17 processos em condições para finalizar, tem-se o total de 27 processos, apontando para uma taxa de 75% de sucesso do procedimento, com 12 planos cumpridos e 15 descumpridos.

Tabela 8 – Detalhamento dos processos de acordo com a vara e status

Nº %Comum 36 51%Em Andamento 26 72%

NÃO 9 35%SIM 17 65%

Encerrado 5 14%Falida 5 14%Especializada 35 49%Em Andamento 18 51%

NÃO 11 61%SIM 7 39%

Encerrado 11 31%Falida 6 17%

Total Geral 71 100%

Verifica-se que a taxa de processos finalizados pelo cumprimento do plano nas varas especializadas é maior que a apresentada nas varas comuns, o que indica piores resultados na aplicação do instituto, bem como um maior número de empresas inviáveis ativas devido à ineficiência do judiciário, frustrando os objetivos da lei.

Por tanto, forçoso concluir pela necessidade da implementação das varas especializadas também nas comarcas do interior, propiciando que o instituto da recuperação judicial seja melhor aplicada no âmbito estadual, garantindo, assim, os direitos dos credores.

A atuação especializada garante maior proteção aos credores, aumentando o sucesso do procedimento e diminuindo o número de processos desnecessários, utilizados apenas para fraudar credores e proteger o mau empresário das consequências legais de uma falência17, prática que desvirtua a natureza do instituto.

5. Especializaçâo Judiciária

A excessiva quantidade de processos ativos em condições de serem encerrados está diretamente ligada à falta de especialização do julgador, conclusão que se extrai do fato de que a maioria desses processos está concentrada nas varas comuns.

Mais precisamente, 71% (17) dos processos ativos analisados está em condições de ser finalizado, enquanto apenas 29% (7) tramitam nas varas especializadas, índice significativamente menor que demonstra o sucesso e eficiência da especialização judiciária, cumprindo a finalidade da lei.

A LRF é inspirada no ideal de eficiência, sendo que: não está restrita à celeridade processual; não se resume a satisfação creditícia; não se encerra com o atendimento das prioridades e

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privilégios legais; e não se pauta na solução da má administração empresarial. Um processo de insolvência eficiente é aquele capaz de atender a todas essas metas.

É de extrema importância a aplicação da solução adequada nas empresas em dificuldades financeiras para que se alcance a produtividade e crescimento esperados, possibilitando sua reorganização e a manutenção dos empregos e dos benefícios sociais gerados. A atividade jurisdicional é ainda dificultada pela amplitude de conhecimentos jurídicos e extrajurídicos, assim como pela deficiência estrutural para a condução dos processos. Revelam-se dificuldades, inclusive, para nomeação de administradores judiciais, peritos e avaliadores, por necessidade de conhecimento técnico específico.

As soluções devem sedimentar, não só a relação entre devedor e credores, mas também proteger as relações de trabalho e a imagem da empresa, cuja crise financeira e eventual falência poderiam levar outras ao mesmo caminho. Os processos que perduram no tempo, sem a devida solução, trazem efeitos colaterais ao mercado, afetando negativamente os interesses sociais, sem atendimento da finalidade legal de proteção ao crédito, trabalho e geração de recursos ao Estado.

O resultado obtido com a presente pesquisa da conta de que nas varas comuns existe um grande índice de processos que deveriam ter sido encerrados pelo cumprimento do plano ou convolados em falência, em claro sinal de ineficiência judiciária.

Afirma-se, assim, que a existência do limbo processual, formado por aqueles processos sem a devida fiscalização e sem prazo para finalizar, está destacada nas varas comuns, causando prejuízos irreparáveis aos credores, motivo pelo qual merecem atenção necessária.

A análise realizada revelou, também, que a LRF vem sendo adequadamente aplicada nos processos que tramitam nas varas especializadas, apresentando melhores resultados, ou seja, mais empresas recuperadas, menos processos ativos além do prazo de supervisão e menos encerrados pela convolação em falência, a concluir sucesso da especialização judiciária.

A extensão das varas especializadas às comarcas de fora da capital mostra-se medida adequada para melhorar a aplicação do instituto, garantir maior segurança jurídica ao procedimento, proporcionando adequada proteção ao credor.

Nesse proceder, O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo aprovou, no dia 16/10/2019, por votação unânime, a criação e instalação das 1ª e 2ª Varas Regionais Empresariais e de Conflitos de Arbitragem da 1ª Região Administrativa Judiciária (RAJ) da Grande São Paulo. As unidades, de tramitação exclusivamente digital, foram instaladas nas dependências do Fórum João Mendes Júnior.

O ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, comemorou a implantação das novas varas18.

Já é a primeira iniciativa a partir das recomendações da comissão do CNJ. É uma grande oportunidade para atrair investimentos. Segurança jurídica para recuperação do crédito é o que mais atrai investidores. (Luís Felipe Salomão, 2019).

De acordo com mensurações de processos do TJSP, o tempo médio de sentenças nas varas empresariais é três vezes mais rápido do que nas comuns. Em 2018, a 1ª RAJ distribuiu 1.942 feitos de matéria empresarial, uma média mensal de 162. Destes, 973 foram distribuídos para as duas varas especializadas da Capital, enquanto a outra metade, de 969 feitos, tramita nas demais comarcas do interior (varas comuns). A criação das varas especializas, além de conferir mais celeridade aos

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julgamentos, gera interpretação uniforme para casos que envolvam a matéria empresarial e cria segurança jurídica.

Quanto mais especializado for o judiciário, menor será a probabilidade de decisões erradas serem proferidas, viabilizando melhor aplicação da lei e garantindo efeitos positivos no mercado, pois os juízes especializados decidem com um maior grau de certeza e de forma mais célere, o que reduz a insegurança dos participantes.

A lei prevê uma atuação decisiva do magistrado, por exemplo, na hipótese de o plano promover tratamento desfavorável aos credores, que a ele não estejam sujeitos, ou previsões abusivas. O juiz deve, bem assessorado, verificar se a empresa realmente se encontra em crise, quanto os credores devem certificar se a recuperação é viável. Depois, o juiz deverá analisar se o plano de recuperação é adequado e preserva o interesse coletivo. Os dados coletados na presente pesquisa comprovam a atuação mais eficiente das varas especializadas.

Além das varas e câmaras especializadas, importante que o magistrado tenha uma formação compatível com a realidade, capacitando-lhe para lidar com as peculiaridades do procedimento de recuperação judicial, pois é inegável os atrasos econômico e social gerados por processos que mantém ativas empresas inviáveis, em claro sinal de ineficiência na aplicação do instituto.

6. Conclusão

As pesquisas empíricas jurídicas são relevantes para entender a situação fática dos processos ativos e os resultados, possibilitando identificar as reais necessidades do procedimento, meios eficientes de atingir os objetivos legais, os impactos da norma e se proporcionam os resultados pretendidos pelo legislador.

Com base na pesquisa realizada pela ABJ e NEPI da PUC-SP, buscou-se atualizar os dados coletados, extraindo as características dos processos que superaram o período de acompanhamento processual, para entender os motivos desse fenômeno e a quantidade de processos ativos que poderiam ser finalizados, objetivando identificar meios de melhorar os resultados. Os dados foram divididos entre varas especializadas e comuns para medir o impacto da especialização judiciária e o sucesso da medida pública.

A observância do prazo de fiscalização é benéfica para o instituto da recuperação judicial, pois evita a manutenção de empresas fadadas ao insucesso, proporcionando maior segurança e a diminuição dos custos do procedimento. O sucesso na aplicação da LRF está diretamente ligado a uma fiscalização eficaz da devedora , bem como na duração razoável do processo, vez que necessários para reorganizar a empresa devedora com enfoque no pagamento dos credores.

Os dados coletados possibilitaram a identificação da taxa de sucesso dos processos de recuperação judicial que ultrapassaram o período de acompanhamento judicial, mas encerradas pelo pagamento na forma do plano aprovado. Identificou-se, ainda, a taxa de insucesso, ou seja, os processos que ultrapassaram o biênio legal e, mesmo assim, foram convolados em falência, significando, em tese, que a reestruturação dessas sociedades era inviável desde o início do procedimento. Foram destacados os processos que possuem condições para serem finalizados, mas, por ineficiência do judiciário, continuam ativos. Em seguida, os resultados foram divididos entre varas empresariais e comuns, de onde se extraiu o impacto positivo da especialização judiciária.

Os processos que permanecem ativos foram objetos de análise mais aprofundada, sendo separados em processos

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devidamente ativos, com período de fiscalização em andamento, e processos que reúnem condições para encerramento, devido ao cumprimento ou inadimplemento, demandando a convolação da recuperação judicial em falência.

Foi possível, ainda, medir a eficiência do Poder Judiciário, no que tange a aplicação da LRF, propiciando condições vantajosas para as empresas se recuperarem das crises econômicas, em comparação ao número de processos que foram convolados em falência, indicando a taxa de empresas que conseguem se reestruturar e pagar seus credores, cumprindo a finalidade do instituto.

Por fim, foram destacados os benefícios da especialização judiciária, apresentando-se a solução mais viável e eficaz para melhorar os resultados dos processos de recuperação judicial distribuídos fora da Capital de São Paulo. A especialização judiciária vem de uma longa história, que abrange diversos ramos do direito, estando em alta as medidas no âmbito empresarial, como a criação das 1ª e 2ª Varas Regionais Empresariais e de Conflitos de Arbitragem para o Estado de São Paulo. Fato é que a análise empírica acerca da atuação

judicial deve ser frequentemente atualizada, tendo em vista o dinamismo do direito e as constantes mudanças sociais.

Diante dos resultados obtidos, constatou-se melhor aproveitamento na aplicação do instituto da recuperação judicial pelas varas especializadas, vez que, revelando-se mais eficiente, garante a legalidade e a duração razoável do processo, características que justificam sua criação e fundamentam a sua extensão às comarcas do interior. O sucesso está diretamente relacionado à forma de condução do processo, familiaridade com os entendimentos jurisprudenciais e assertividade das decisões proferidas, garantindo melhores condições aos credores e diminuindo as chances do instituto ser utilizado de forma a desvirtuar o procedimento falimentar.

Diante da economia dinâmica que vivemos é necessário utilizar novos instrumentos para analisar os movimentos processuais e compreender se a finalidade social, esculpida por trás da norma, está sendo atingida, consolidando dados que fundamentam as medidas governamentais, garantindo segurança jurídica para partes envolvidas.

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Notações01. MEMEDE, Gladstone. Direito Empresarial Brasileiro: falência e recuperação de

empresas. 10. ed. São Paulo: Atlas Ltda., 2019. 192 p.02. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – CASA CIVIL – SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Brasília, Art. 6103. MEMEDE, Gladstone. Direito Empresarial Brasileiro: falência e recuperação de

empresas. 10. ed. São Paulo: Atlas Ltda., 2019. 68, 243 e 427 p.04. idem.05. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de

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Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva Jur, 2018. 189 p.08. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURIMETRIA (São Paulo). – Recuperação

Judicial no Estado de São Paulo: 2ª Fase do Observatório de Insolvência. São Paulo, 2018. 48 p.

09. SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência: teoria e prática. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Ltda., 2019. 74 p.

10. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva Jur, 2018. 275/276 p.

11. FROST, Christopher W. Frost, Bankruptcy Redistributive Policies and the Limits of the Judicial Process, 74 N.C. L. Rev. 75. 1995. 76 p.

12. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva Jur, 2018. 274 p.

13. TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: falência e recuperação judicial. 7. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2019. 142/170 e 263/266 p. (3).

14 idem.

15. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva Jur, 2018. 188/189 p.

16. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva Jur, 2018. 262 p.

17. TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: falência e recuperação judicial. 7. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2019. 461/467 p. (3).

18. JURÍDICO, Revista Consultor. TJ-SP cria primeiras Varas Regionais Empresariais do estado. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-out-16/tj-sp-cria-primeiras-varas-regionais-empresariais-estado?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook. Acesso em: 21 out. 2019.

20. TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: falência e recuperação judicial. 7. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2019. 135/136 p.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ADMINISTRADORES DE BANCOS SUJEITOS A REGIMES ESPECIAISThiago Silva de Souza NunesMestrando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduado em Direito Público e Advogado

RESUMO

Este trabalho tem por objeto tratar sobre a responsabilidade civil dos administradores de bancos sujeitos a regimes especiais. Para tanto, buscar-se-á demonstrar a evolução legislativa, do pensamento doutrinário e jurisprudencial, frente aos aspectos e impactos da crise no setor bancário no Brasil, bem como sobre os mecanismos de intervenção do Banco Central sobre a administração bancária, até chegar no posicionamento majoritário consolidado acerca da natureza da responsabilidade civil dos administradores de banco, fazendo uso, para tanto, de extensa pesquisa exploratória e bibliográfica.

PALAVRAS-CHAVE

Instituição financeira. Administrador. Responsabilidade civil. Regime especial. Insolvência. Regulação.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to deal with the civil liability of bank administrators subject to special regimes. To this end, we will seek to demonstrate the legislative evolution, of doctrinal and jurisprudential thinking, in view of the aspects and impacts of the crisis in the banking sector in Brazil, as well as on the intervention mechanisms of the Central Bank on banking administration, until it reaches the consolidated majority position on the nature of bank administrators’ civil liability, making use of extensive exploratory and bibliographic research.

KEYWORDS

Financial institution. Administrator. Civil responsability. Special scheme. Insolvency. Regulation.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. Dos Regimes Especiais de Instituições Bancárias2.1 Intervenção2.2 Do Regime de

Administração Especial Temporária – RAET

2.3 Liquidação Extrajudicial

3. Da Responsabilidade Civil Pela Lei 6.404/1976

4. Da Responsabilidade Civil pelas Leis Específicas4.1 Corrente Subjetivista4.2 Corrente Objetiva

5. Da Evolução Jurisprudencial

6. Conclusão

Referências Bibliográficas

Notações

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A história do mundo moderno está permeada de exemplos em que o descontrole bancário gerou impactos severos em todos os setores da economia. Para entender a

dimensão de seus reflexos, faz-se necessário, antes, explicitar quais as funções dos bancos comerciais perante seus clientes e frente à economia como um todo.

Nesse espeque, diante da vastidão do assunto, faremos um recorte temático e nos ateremos aos aspectos conceituais dos bancos comerciais, doravante chamados apenas de banco(s).

A doutrina traz vários conceitos de bancos, que, no entanto, pela necessidade de síntese que trabalho demanda, faremos uso do conceito de Ivo Waisberg (2002, p. 32), para quem esclarece que os bancos são instituições financeiras que atuam fundamentalmente na intermediação ou mobilização de crédito, entre agentes superavitários e os agentes deficitários da economia, captando a poupança do público em geral e negociando-os em forma de crédito aos que necessitam.

O Banco Central, de outra banda define bancos comerciais como instituições que proporcionam suprimento de recursos a curto e médio prazos para o comércio, indústria e pessoas físicas.01

Uma das principais características dos bancos é sua capacidade de criar as moedas escriturais, estas, por sua vez, possibilitam o financiamento de todo o mercado de crédito, fomentando o comércio, as indústrias e o próprio consumo. Tal missão só se faz factível face uma segunda grande característica dos bancos, qual seja a de captação de depósitos à vista, valores esses que são utilizados para lastrear a circulação de capital na economia.

Ocorre que a quantidade de papéis representativos de crédito que um banco possui não tem correspondência em dinheiro físico sob sua tutela, fato esse conhecido por todos. Em contrapartida, o cliente bancário confia que quando o mesmo quiser sacar seu dinheiro o terá disponível, posto que descrê que todos, ou pelo menos a maioria dos depositantes, não irá, ao mesmo tempo, requerer o saque de seus valores.

Assim, o principal bem tutelado no mercado bancário é a manutenção da confiança, pois a mudança de percepção do público voltado a liquidez de um banco, não importando o tamanho, gera efeito cascata, contaminando a percepção do mercado e esvaziando a credibilidade e por conseguinte os investimentos.

O Brasil já enfrentou grandes crises bancárias, o que fez com que houvesse edições de várias medidas regulatórias, protetivas e acautelatórias, buscando por todos os meios evitar, ou pelo menos minorar ao máximo os impactos de uma crise bancária.

1. Introdução

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Assim, em 1946, foi editado o Dec. 9.228/1946, que reestabeleceu o processo de liquidação extrajudicial para banco, em similitude ao processo falimentar, que logo em seguida fora revogado. Na sequência foi editado o Decreto-Lei 9.328/46, sucedido pela Lei 1.808/53. Já em 1964, foi criado o Conselho Monetário Nacional – CMN e o Banco Central – BCB, através da Lei 4.595, e finalmente, consolidando a legislação bancária a Lei 6.024/1974.

Com o passar dos anos houve um grande crescimento no sistema de proteção bancário, destacando-se os mecanismos de proteção criados em prol do interesse público através da decretação de regimes especiais, estes usados quando encontrados indícios de insolvência ou de afronta à regras e legislação pertinente.

Para tanto, é frente ao cenário de insolvência, de crise bancária, que buscaremos entender os aspectos da responsabilização civil pelos causadores e pelos danos gerados à economia e aos clientes.

Assim, no presente trabalho, far-se-á uma pesquisa de caráter exploratório com levantamento bibliográfico de autores de direito bancário, decisões dos tribunais de justiça, publicações científicas e da legislação correlata, demonstrando e comparando a evolução do pensamento dos profissionais do segmento até chegar ao atual posicionamento consolidado pela responsabilidade subjetiva com culpa presumida dos administradores de bancos sujeitos a regimes especiais.

2. Dos Regimes Especiais de Instituições Bancárias

Conforme já destacado, a necessidade de proteção e manutenção da saúde da rede bancária é tão grande, que é regida por leis especiais, bem como, controlada e fiscalizada

através do Banco Central do Brasil, este incumbido, inclusive, de autorizar o funcionamento das instituições financeiras.02

Antes de analisar os regimes especiais em espécie, cumpre desmistificar o conhecimento popular de que os bancos não estão sujeitos à Lei de Falência. O que existe, em verdade é uma sinergia e complementariedade dos regimes especiais previstos na Lei 6.024/1974 e no Dec.-lei 2.321/1987, com a Lei 11.101/2005, como bem se observa nos arts. 12, “d”, e 19, “d”, da Lei 6.024/197.

Assim, capitaneado pelo Banco Central, todas as instituições financeiras, exceto as públicas federais, estão sujeitas à fiscalização, controle e intervenção por meio da decretação dos regimes especiais, que terão por escopo sanear e proteger o interesse público, no caso a manutenção da saúde financeira.

São três as modalidades de regimes especiais das instituições financeiras previstas em lei, quais sejam: intervenção, liquidação extrajudicial e regime de administração especial temporária (RAET).

2.1. Intervenção

A intervenção extrajudicial em questão acontecerá quando constatado anormalidades nos negócios sociais da instituição, quais sejam03: I – prejuízo decorrente de má administração; II – reiteradas infrações da legislação bancária; III – hipóteses do art. 1º e 2º do Decreto – Lei 7.661/1945 (antiga lei de falência).

Segundo Rubens Requião (2001, p. 220), o conceito de intervenção administrativa, regulada pela Lei 6.024/74, seria um conjunto de medidas administrativas, de natureza cautelar, aplicadas a empresas não-federais, componentes do Sistema Financeiro Nacional, e que lhes são aplicadas em

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caso de sofrerem ponderáveis prejuízos decorrentes de má administração, de reiteradas violações à lei ou em caso de caracterizada insolvência.

Comumente, a intervenção, denota a primeira etapa para a liquidação extrajudicial, a despeito da decretação ser efetivada sem a antecedência da intervenção.

Como bem já destacado, o Banco Central detém a exclusividade para a decretação, que o faz ex-offício ou por solicitação dos administradores do banco, desde que competentes por meio do estatuto para o intento.

A intervenção extrajudicial tem natureza preventiva-cautelar, posto que busca evitar o alastramento dos riscos identificados ou a insolvência, que, após a solução do problema devolveria o comando da instituição aos administradores.

Ocorre, como bem ressalta Ivo Waisberg (2002, p. 46), o mercado bancário é todo pautado pela confiança do público, no entanto, a intervenção possui como medidas de efeito a suspensão da exigibilidade das obrigações vencidas, a inexigibilidade dos depósitos efetuados, e, ainda, acarreta na suspensão dos mandatos dos administradores e membros do conselho fiscal. Tais medidas têm prazo de 6 meses podendo ser prorrogado por igual período. Assim, como poderia um banco reestabelecer-se comercialmente, se publicamente teve todos os seus atos de gestão alterados e não pode honrar com seus compromissos frente aos seus clientes e credores?

Não solucionado o problema, o Banco Central poderá decretar a liquidação extrajudicial ou autorizar ao interventor requerer a falência da entidade quando (i) os ativos do banco for menor que a metade do valor dos créditos quirografários; (ii) for julgada inconveniente a liquidação extrajudicial; (iii) a complexidade

dos negócios da instituição ou a gravidade dos fatos apurados aconselharem a medida.

Em verdade, o regime em questão mostrou-se ineficaz e contraproducente, o que motivou a criação do Regime de Administração Especial Temporária – RAET.

2.2 Do Regime de Administração Especial Temporária – RAET

Criado em 1987 por meio do Decreto-Lei 2.321, o RAET veio para auxiliar na crise bancária à época, podendo ser decretado quando identificado04: (i) prática reiterada de operações contrárias às diretrizes de política econômica ou financeira traçadas em lei federal; (ii) existência de passivo a descoberto; (iii) descumprimento das normas referentes à conta de reservas bancárias mantida no Banco Central do Brasil; (iv) gestão temerária ou fraudulenta de seus administradores; (v) ocorrência de qualquer das situações prevista para o caso de intervenção extrajudicial estipulada na Lei 6.024/1974.

Em verdade o RAET foi criado como forma de evitar a liquidação extrajudicial, perceptível ao observar a alínea “d” do art. 14 do diploma em questão, posto que estabelece a cessação do mesmo por meio da decretação da liquidação extrajudicial da instituição. Porém, como bem esclarece Ivo Waisberg (2002, p. 64), a grande diferença do RAET para a intervenção extrajudicial é que esta última não suspende as atividades bancárias, não gerando o impacto junto ao público, por conseguinte, mantendo a confiança e denotando ser instrumento muito mais eficaz que a intervenção.

Conforme se extrai do Decreto-Lei 2.321, o RAET será comando por um Conselho Diretor nomeado pelo Banco Central com poderes de administração da instituição, gerando, em

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consequência, a perda do mandado dos administradores e dos conselheiros fiscais do Banco.

O RAET tem duração fixada no momento da decretação, podendo ser prorrogado por igual período ou menor, caso seja de fato necessário. Na sequência, o Banco Central gera um relatório na qual embasará a utilização de instrumentos de reorganização societária do banco, podendo ser: (i) transformação; (ii) cisão; (iii) fusão; (iv) incorporação.

Na ausência de regulação, em atenção ao art. 19 do Dec.-lei 2.321/1987, aplicam-se as disposições da Lei 6.024/1974, em especial, as atinentes à responsabilidade dos ex-administradores.

2.3 Liquidação Extrajudicial

A liquidação extrajudicial vem de muito tempo se aperfeiçoando, pois diante das idiossincrasias do mercado bancário e seus impactos em caso de crise, demanda-se um sistema administrativo calcado de poderes investigativos, protetivos-acautelatórios, interventivos e, o mais importante, célere, sob pena de gerar traumas financeiros pelo tempo de processo.

A liquidação extrajudicial é a última ratio, posto que diversamente dos regimes anteriormente expostos, este não tem por escopo o salvamento da empresa e, sim, o de extingui-la, retirando-a do mercado, apurando passivos e ativos e criando o concurso de credores.

No entanto, diversamente da falência, a liquidação extrajudicial, de igual forma com os demais regimes especiais, busca defender, primeiramente o interesse público, mantendo a saúde financeira como um todo.

Em verdade a lei equiparou o procedimento administrativo ao da falência, determinando, no art. 34, que “aplicam-se à liquidação extrajudicial no que couberem e não colidirem com os preceitos desta lei as disposições da Lei de Falências (Decreto-Lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945)” (BRASIL, 1974), ou seja, a liquidação extrajudicial passou a ser o sucedâneo administrativo da falência.

O art. 15 da 6.024/1974 dispõe as hipóteses de decretação da liquidação extrajudicial, verbis:

Art . 15. Decretar-se-á a liquidação extrajudicial da instituição financeira:

I – ex officio :

a) em razão de ocorrências que comprometam sua situação econômica ou financeira especialmente quando deixar de satisfazer, com pontualidade, seus compromissos ou quando se caracterizar qualquer dos motivos que autorizem a declararão de falência;

b) quando a administração violar gravemente as normas legais e estatutárias que disciplinam a atividade da instituição bem como as determinações do Conselho Monetário Nacional ou do Banco Central do Brasil, no uso de suas atribuições legais;

c) quando a instituição sofrer prejuízo que sujeite a risco anormal seus credores quirografários;

d) quando, cassada a autorização para funcionar, a instituição não iniciar, nos 90 (noventa) dias seguintes, sua liquidação ordinária, ou quando, iniciada esta, verificar o Banco Central do Brasil que a morosidade de sua administração pode acarretar prejuízos para os credores;

II – a requerimento dos administradores da instituição – se o respectivo estatuto social lhes conferir esta competência – ou

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por proposta do interventor, expostos circunstanciadamente os motivos justificadores da medida.

§1º O Banco Central do Brasil decidirá sobre a gravidade dos fatos determinantes da liquidação extrajudicial, considerando as repercussões deste sobre os interesses dos mercados financeiro e de capitais, e, poderá, em lugar da liquidação, efetuar a intervenção, se julgar esta medida suficiente para a normalização dos negócios da instituição e preservação daqueles interesses.

§2º O ato do Banco Central do Brasil, que decretar a liquidação extrajudicial, indicará a data em que se tenha caracterizado o estado que a determinou, fixando o termo legal da liquidação que não poderá ser superior a 60 (sessenta) dias contados do primeiro protesto por falta de pagamento ou, na falta deste do ato que haja decretado a intervenção ou a liquidação. (BRASIL, 1974)

Repisa-se que a medida de liquidação extrajudicial requer a maior das cautelas, posto que denota o extremo vigor da mão estatal por meio de uma intervenção terminativa, devendo ser utilizada somente quando não for possível qualquer outro recurso. Como efeitos da decretação da liquidação extrajudicial observa-se:

Art . 18. A decretação da liquidação extrajudicial produzirá, de imediato, os seguintes efeitos:a) suspensão das ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade liquidanda, não podendo ser intentadas quaisquer outras, enquanto durar a liquidação;b) vencimento antecipado das obrigações da liquidanda;c) não atendimento das cláusulas penais dos contratos unilaterais vencidos em virtude da decretação da liquidação extrajudicial;

d) não fluência de juros, mesmo que estipulados, contra a massa, enquanto não integralmente pago o passivo;e) interrupção da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade da instituição;f) não reclamação de correção monetária de quaisquer divisas passivas, nem de penas pecuniárias por infração de leis penais ou administrativas. (BRASIL, 1974)

Decretada a liquidação extrajudicial, o Banco Central nomeará o liquidante, que terá poderes de administração e liquidação, dentre os quais estão os de verificação e classificação dos créditos, propositura de ações e representação da massa em juízo ou fora dele (art. 16, Lei 6.024/74).

Ainda, com a prévia e expressa autorização do Banco Central, poderá o liquidante, em benefício da massa, ultimar os negócios pendentes e onerar ou alienar, através de licitações, seus bens (art. 16, § 1º, Lei 6.024/74).

3. Da Responsabilidade Civil Pela Lei 6.404/1976

Cumpre destacar, que, nos termos do art. 25 da Lei 6.404/76, ou seja, por regra legal, todas as instituições financeiras privadas são criadas sob a forma de sociedades anônimas, fazendo da lei em comento como lei geral a nortear os direitos, deveres, normas e procedimentos a serem seguidos pelos bancos, na ausência de norma específica.

Dentre os pontos a destacar, cumpre enaltecer o art. 13805

que estabelece que a administração da sociedade anônima compete ao Conselho de Administração e à Diretoria, aquele, órgão colegiado composto de no mínimo 3 acionistas eleitos em assembleia geral e, a diretoria, por pelo menos 2 membros eleitos pelo Conselho de Administração.

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Em sintonia à Lei das Sociedades Anônimas, os administradores de banco respondem civilmente frente à companhia e aos acionistas quando agir com culpa ou dolo nos seus atos de gestão, como bem ensina Modesto Carvalhosa (1982) apud Nelson Abrão (2019)06, respondendo, inclusive, quando por omissão, não assegurar o funcionamento normal da sociedade.

Tal entendimento é extraído do art. 158 da Lei das S.A., que assim declara:

Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:

I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;

II – com violação da lei ou estatuto. (BRASIL, 1976)

Assim, por meio da lei em questão, o administrador responde mesmo que tenha agido dentro de suas atribuições, caso tenha agido em desvio de poder ou abuso. Em regra, a lei estabelece padrões de conduta ao administrador que se resumem em atos de diligência, lealdade e informação, tendo em vista a proteção dos direitos dos acionistas minoritários e pautar a gestão visando o interessa da sociedade.

Ocorre que o inciso II do artigo suso mencionado é considerado para boa parte da doutrina como responsabilidade subjetiva com culpa presumida07. Tal entendimento denota que incumbe ao administrador provar que agiu dentro dos limites legais e estatutários, caso contrário será responsabilizado e obrigado a reparar os prejuízos causados à sociedade ou terceiros.

Ademais, cumpre ressaltar, que face as características financeiras e de atuação dos membros do Conselho de

Administração e diretores, na medida da desigualdade é a quantificação e exigência das respectivas responsabilidades08.

Diante de tal cenário, conclui-se que a responsabilidade civil instada na lei de sociedades anônimas é da responsabilidade subjetiva simples.

4. Da Responsabilidade Civil pelas Leis Específicas

O tema do presente trabalho debruça sobre a responsabilidade dos administradores de instituições bancárias sob regime especial, para tanto, apresentamos tintas sobre os impactos da crise financeira bancária, a evolução das medidas legislativas criadas para assegurar ou ao menos minorar seus efeitos, caminhamos sobre os regimes especiais e competências do BCB. Tudo isso para chegarmos ao presente ponto e termos a dimensão da complexidade do sistema, legislativo, regulatório, financeiro e administrativo ao qual os administradores de banco estão sujeitos, bem como a compreender as consequências de seus atos.

O cerne do tema em questão é causa de enormes debates doutrinários e de várias reviravoltas no cenário jurisprudencial nas últimas 2 décadas.

Antes da edição da Lei 6.024/1974, a Lei 1.808/1953 definia em seu artigo 2 que “respondem solidariamente pelas obrigações assumidas pelos bancos e casas bancarias durante a sua gestão e até que elas se cumpram, os diretores e gerentes que procederem com culpa ou dolo.” (BRASIL, 1946)

Com a edição da Lei 4.595, de 31.12.1964, foi alterada a redação do artigo acima referenciado e legislador suprimiu do texto legal a expressão “procederem com dolo ou culpa”10.

Na sequência com a revogação da Lei 1.808/1953 pela Lei 6.024/1974, houve uma mudança expressiva no texto

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atinente a responsabilidade dos administradores, suprimindo a responsabilidade solidariedade e tirando o foco da coletividade.

Foi com as alterações acima que iniciou a falta de consenso na doutrina face à disposição dos artigos 39 e 40 da Lei 6.024/1974. Prima facie, em analise perfunctória, denota-se contradição e tratamento diferenciado, ao tratar a responsabilidade civil dos administradores de instituições financeiras, sem deixar evidente, porém, qual é a natureza jurídica de tal responsabilidade (se objetiva, subjetiva, ou subjetiva com inversão do ônus da prova), conforme se observa da Lei 6.024/74:

Art. 39. Os administradores e membros do Conselho Fiscal de instituições financeiras responderão, a qualquer tempo, salvo prescrição extintiva, pelos [atos] que tiverem praticado ou omissões em que houverem incorrido.

Art. 40. Os administradores de instituições financeiras respondem solidariamente pelas obrigações por elas assumidas durante sua gestão, até que se cumpram.

Parágrafo único. A responsabilidade solidária se circunscreverá ao montante dos prejuízos causados. (BRASIL, 1974)

Ao analisar o artigo 39 da lei em comento, percebe-se de forma clara estarmos diante de responsabilidade subjetiva ao deparar com a expressão “praticado ou omissões em que houverem incorrido”. Ou seja, para a responsabilização do administrador exige a demonstração da conduta antijurídica, do dano, do nexo causal e, especialmente, da culpa.

A celeuma se instala quando tratado acerca da natureza da responsabilidade dos administradores atinente ao artigo 40, para qual se discorrerá de forma mais aprofundada a seguir.

4.1. Corrente Subjetivista

Entendendo pela corrente da responsabilidade subjetiva dos administradores de bancos, posicionam-se, dentre outros, Fábio Ulhôa Coelho (1999), Saulo Ramos (1998), Werter Faria (1993), Arnoldo Wald (1976)11 e Ivo Waisberg (2002). Ressalvando que os três últimos, no entanto, expressam que o entendimento acrescido na necessidade da inversão do ônus probatório.

Para Fábio Ulhôa (1999), face a narrativa dos arts. 39 e 40 da Lei 6.024/74 não serem literais no tocante à inversão do ônus da prova ou da responsabilidade objetiva dos administradores, entende que se deve aplicar, a regra geral da legislação brasileira, qual seja a responsabilidade subjetiva clássica12.

Continua o autor, agora pareando a responsabilidade civil dos administradores de banco com à responsabilidade do administrador/diretor constante da Lei das S/A, na qual extrai-se a natureza subjetiva.

Por derradeiro e a solidificar seu entendimento, Fábio Ulhôa (1999), destaca que o fundamento da responsabilidade objetiva não decorre da teoria do risco da atividade e sim da capacidade de absorver as repercussões econômicas ligadas ao evento danoso, ou seja, a socialização das repercussões econômicas do dano, caso em que o administrador de banco não o possui13.

O ilustre jurista Arnoldo Wald (1976, p. 36), em convergência, também entendendo pela natureza subjetiva da responsabilidade dos administradores de banco, estabelece interpretação conjunta e complementar dos arts. 39 e 40 da Lei 6.024/74, destacando que a responsabilidade solidária do diretor está limitada pelo prejuízo causado, denotando a culpa tangente a responsabilidade subjetiva.

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Ressalta, outrossim, a impossibilidade de comunicação de culpa entre os diretores, em razão da expressa previsão de realização de inquérito e necessidade de ajuizamento de ação para apuração dos efetivos causadores do prejuízo.

O autor, fundamentando seu posicionamento, lembra que o sistema nacional é baseado na culpa e, assim, a teoria do risco é admitida em poucas hipóteses, expressamente previstas. Esclarece, ainda, que a responsabilidade do banco (objetiva) não pode ser confundida com a do administrador, que, via de regra, é um simples funcionário da instituição, cujo patrimônio, provavelmente, é infinitamente menor.

Ivo Waisberg (2002), soma aos entendimentos expostos, entendendo ser de natureza subjetiva a responsabilidade civil dos administradores de bancos comerciais sujeitos a regimes especiais, inclusive assevera acerca da necessidade de alteração legislativa a dirimir as controvérsias e a estabelecer a continuidade da responsabilidade subjetiva, porém com o ônus da prova invertido. Ressalta acerca da análise teleológica e sistemática quando da interpretação dos arts. 39 e 40 da Lei 6.024/74, buscando sempre a premissa da “rede de proteção” do sistema bancário, ao qual tem por princípio fundante o interesse público.

Conclui, deste modo, o autor, que a adoção da culpa como fundamento da responsabilidade civil estimula o zelo e a diligência dos administradores de bancos e, por conseguinte, a responsabilidade subjetiva é a que melhor atende aos interesses do sistema.

4.2. Corrente Objetiva

De outra banda, adotam a corrente da responsabilidade objetiva aos administradores de bancos comerciais, os doutrinadores, Paulo Fernando Campos Salles de Toledo (1995),

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (1993) e Liane Maia Simoni (1981).

Paulo Fernando Campos Salles de Toledo (1995, p. 28), expressa que a compilação pelo legislador de dois artigos diversos tratando do tema, de per si, já denotaria que existem duas espécies de responsabilidade, sob pena de inutilidade do art. 40 da Lei 6.024/74, questão que não se pode conceber.

Assevera o autor que, a concepção interpretativa pela ótica objetivista advém de ordem prática, posto que a prova da culpa dos administradores demanda esforço que no mais das vezes não se alcança pelos credores prejudicados.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (1993, p. 57), explicita em suas divagações sobre o tema, que o art. 40 demanda responsabilidade especial dos administradores de banco, qual seja a objetiva, sem a necessidade de perquirição de culpa, alcançando os administradores de forma solidária pelo prejuízo da sociedade. Assevera, ainda, que a supressão da expressão “dolo ou culpa” pela Lei 4.595, de 31.12.1964 foi intencional pelo legislador, querendo este adotar a natureza objetiva para responsabilidade de administradores de banco.

Liane Maia Simoni (1981, p. 62), em interpretação sistemática da evolução legislativa sobre o tema, aduz de forma enfática que em razão da Lei 4.595, no seu artigo 42, ter excluído a expressão outrora carreada pela Lei 1.808/53 em seu artigo 2º “com culpa dolo”, teria o legislador expressado de forma clara a intensão pela responsabilidade objetiva.

5. Da Evolução Jurisprudencial

A jurisprudência, igualmente, não é uníssona quanto à matéria, tendo havido épocas em que os Tribunais Superiores

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se posicionaram pela natureza objetiva da responsabilidade, bem como se posicionou pela natureza subjetiva.

São diversos os julgados do STJ que estabeleceram como objetiva a responsabilidade civil do administrador de instituição financeira. Podemos citar, a título de exemplo: REsp 172.736 (rel. Min. Peçanha Martins, j. em 10/6/2003); AgRg no AgRg no Ag 189.349 (rel. Min. Ruy Rosado Aguiar, j. em 14/12/1999); e REsp 21.245 (rel. Min. Ruy Rosado Aguiar, j. em 04/10/1994).

Em um primeiro momento, a jurisprudência, tendo como paradigma o voto do eminente Min. Ruy Rosado Aguiar, do STJ, no julgamento o REsp 2.125-9/ SP, j. 31.10.1994, decidiu pelo regime dúplice de responsabilidade civil dos administradores de bancos sob regime especial, concluindo que no art. 39 está prevista uma responsabilidade subjetiva e no art. 40 uma responsabilidade civil objetiva:

A responsabilidade dos administradores das instituições financeiras é de dupla natureza: pelo art. 39 da Lei 6.024/1974, respondem, segundo os princípios da teoria subjetiva da culpa, pelos prejuízos que tiverem causado em razão de sua ação ou omissão; a sua responsabilidade tem como pressuposto o ato ilícito; ela é direta e pessoal; não subsidiária; nem solidária; pelo art. 40 da mesma Lei, respondem objetivamente, em razão do simples dato de serem administradores, pelas obrigações da instituição, assumidas no tempo limitado de sua gestão; é uma responsabilidade solidária e subsidiária. (BRASIL, 1994)

Neste mesmo sentido, seguiu o REsp 592.069/SP, j. 15.02.2007, relatado pelo o eminente Min. Carlos Alberto Menezes Direito.

Posteriormente, através do REsp 447.949/SP, j. 04.10.2007, relatado pela Min. Nancy Andrigh, da 3.ª T., houve mudança no entendimento do STJ quanto a responsabilidade dos

administradores de bancos sujeito a regimes especiais. Neste julgamento decidiu que a responsabilidade prevista na Lei 6.024/1974 é subjetiva, entretanto, foi ponderado que a responsabilidade prevista no art. 39 é ex lege, enquanto a responsabilidade contida no art. 40 é contratual com culpa presumida, conforme se colaciona trechos:

[...] A regra do art. 39 da Lei n. 6.024/74 regula uma hipótese de responsabilidade extracontratual; a do art. 40 da mesma lei, uma hipótese de responsabilidade contratual. Ambas as normas, porém, estabelecem a responsabilidade subjetiva do administrador de instituições financeiras ou consórcio. Para que se possa imputar responsabilidade objetiva, é necessário previsão expressa, que a Lei n. 6.024/74 não contém. O art. 40 meramente complementa o art. 39, estabelecendo solidariedade que ele não contempla.

[...]

De todas essas ponderações decorre que não é possível, no panorama atual, adotar a tese de que é objetiva a responsabilização dos administradores de instituições financeiras, no âmbito da Lei n. 6.024/74. A sua responsabilidade é, até que se altere o panorama legislativo, subjetiva, limitando-se aos prejuízos causados por ato de cada um deles, durante sua gestão. (BRASIL, 2007)

Posteriormente, outros julgados se sucederam confirmando o posicionamento dado pelo REsp 447.949/SP, j. 04.10.2007, conforme abaixo:

[...] 7. A responsabilidade do art. 40 da Lei n. 6.024/74 é subjetiva, fundada na presunção iuris tantum de culpa do ex-administrador pelos prejuízos causados à instituição financeira.

[...]

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9. Em razão de a responsabilidade dos ex-administradores ser subjetiva com base na presunção iuris tantum de culpa, o fumus boni iuris do arresto se contentará com a mera indicação pelo inquérito do Bacen acerca da existência de obrigações inadimplidas, assegurado, porém, ao exadministrador erguer provas suficientes para derruir a referida culpa presumida. (BRASIL, 2009)

3. A responsabilidade dos administradores de instituição financeira em liquidação é subjetiva, conforme dispõem os artigos 39 e 40 da Lei n. 6.024/74 – Precedentes da 3ª Turma do STJ.

4. A não aferição de responsabilidade individual de cada réu, segundo as regras da Lei n. 6.024/74, viola os princípios do contraditório e da ampla defesa.

[...]

Ocorre que a Eg. 3ª Turma deste Colendo Superior Tribunal de Justiça, interpretando os dispositivos legais em evidência, definiu, recentemente, que a responsabilidade dos administradores é subjetiva, devendo ser apurada, necessariamente, a culpa dos administradores pela gestão da instituição financeira liquidada e falida. (BRASIL, 2011)

Como se percebe, a jurisprudência está majoritariamente inclinada pela interpretação da responsabilidade subjetiva dos administradores de instituições bancárias em regime especial, corroborando com os posicionamentos de Fábio Ulhôa Coelho (1999), Saulo Ramos (1998), Werter Faria (1993), Arnoldo Wald (1981) e Ivo Waisberg (2002), entre outros.

6. Conclusão

O sistema de proteção da rede bancária criado nos últimos anos é fruto de muita experiência e aprendizado em decorrência das crises suportadas pelo Brasil, fazendo com que fossem criadas várias regulamentações a se evitar, ou ao menos minorar os impactos de uma possível crise financeira.

Para tanto, foram criados os regimes especiais da intervenção, da liquidação extrajudicial e do regime especial de administração temporário – RAET, para os quais integraram os mecanismos que o Banco Central detém para manter a saúde financeira nacional.

Ocorrendo a insolvência ou prejuízos na gestão bancária, cabe ao Banco Central intervir e apurar as responsabilidades, estas nas quais, por meio do presente trabalho prevaleceu-se o entendimento de que os administradores e diretores de bancos comerciais respondem subjetivamente frente aos prejuízos causados sob a sua gestão.

Ressaltando o posicionamento jurisprudencial mais atual de que vem se consolidando entendimento de que a natureza da responsabilidade dos ex-administradores de bancos comerciais sob regimes especiais, tanto no caso do art. 39 quanto do art. 40 da Lei 6.024/1974, é subjetiva.

Acrescenta-se, ainda, que para o caso do art. 40 da Lei 6.024/1974, a jurisprudência se posicionou pela responsabilidade subjetiva com culpa presumida, cabendo ao ex-administrador provar que agiram segundo os padrões de conduta que lhes são exigidos no exercício do cargo, ou seja, sem culpa no desempenho de suas funções, sob pena de ser responsabilizado.

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Notações

01. “Os bancos comerciais são instituições financeiras privadas ou públicas que têm como objetivo principal proporcionar suprimento de recursos necessários para financiar, a curto e a médio prazos, o comércio, a indústria, as empresas prestadoras de serviços, as pessoas físicas e terceiros em geral. A captação de depósitos à vista, livremente movimentáveis, é atividade típica do banco comercial, o qual pode também captar depósitos a prazo. Deve ser constituído sob a forma de sociedade anônima e na sua denominação social deve constar a expressão ‘Banco’”. (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 1994)

02. O art. 18 da Lei 4.595/64 dispõe que: “As instituições financeiras somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização do Banco Central da República do Brasil ou decreto do Poder Executivo, quando forem estrangeiras”. (BRASIL, 1964)

03. “Ar t . 2º Far-se-á a intervenção quando se ver if icarem as seguintes anormalidades nos negócios sociais da instituição: I – a e n t i d a d e s o f r e r p r e j u í z o , d e c o r r e n t e d a m á a d m i n i s t ra ç ã o , q u e s u j e i t e a r i s c o s o s s e u s c re d o re s ; II – forem verificadas reiteradas infrações a dispositivos da legislação bancária não regularizadas após as determinações do Banco Central do Brasil, no uso das suas atribuições de fiscalização; III – na hipótese de ocorrer qualquer dos fatos mencionados nos artigos 1º e 2º, do Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945 (lei de falências), houver possibilidade de evitar-se, a liquidação extrajudicial.” (BRASIL, 1974)

04. Art. 1° O Banco Central do Brasil poderá decretar regime de administração especial temporária, na forma regulada por este decreto-lei, nas instituições financeiras privadas e públicas não federais, autorizadas a funcionar nos termos da Lei n° 4.595, de 31 de dezembro de 1964, quando nelas verificar: a) prát ica re i terada de operações contrár ias às di retr izes de polít ica econômica ou financeira traçadas em lei federal; b ) e x i s t ê n c i a d e p a s s i v o a d e s c o b e r t o ; c ) d e s c u m p r i m e n to d a s n o r m a s re fe re n t e s à c o n t a d e Reservas Bancár ias mant ida no Banco Centra l do Bras i l ; d) gestão temerária ou fraudulenta de seus administradores; e) ocorrência de qualquer das situações descritas no artigo 2º da Lei n° 6.024, de 13 de março de 1974. Parágrafo único. A duração da administração especial fixada no ato que a decretar, podendo ser prorrogada, se absolutamente necessário, por período não superior ao primeiro. (BRASIL, 1987)

05. Art. 138. A administração da companhia competirá, conforme dispuser o estatuto, ao conselho de administração e à diretoria, ou somente à diretoria. § 1º O conselho de administração é órgão de deliberação colegiada, sendo a representação da companhia privativa dos diretores. § 2º As companhias abertas e as de capital autorizado terão, obrigatoriamente, conselho de administração. (BRASIL, 1976)

06. “Essa responsabilidade pelo procedimento ilícito, dentro das atribuições e poderes do administrador, demanda para sua caracterização três elementos:

o ato do administrador, a lesão causada à companhia e o nexo causal entre o ato e a consequência. O ônus da prova cabe na espécie, à companhia, que, para tanto, deverá evidenciar a ocorrência daqueles três requisitos: a lesão material ou jurídica, a conduta antijurídica do administrador e a relação de causalidade entre uma e outra”. (CARVALHOSA, 1982, p. 196 apud. ABRÃO, 2019, p. 294)

07. Neste sentido Eizirik (1984), Lamy Filho e Pedreira (1996), Valverde apud Borba (2007) e Guerreiro (1978) concordam com a presunção de culpa, mas entende que esta não importa para a responsabilização do administrador: “Já nos detivemos sobre a responsabilidade decorrente de violação da lei ou do estatuto, a qual se acha prevista no inc. II do art. 158. Em tal caso, as consequências reparatórias imputadas ao administrador prescindem da existência de culpa no seu proceder, bastando que se evidencia a causação de prejuízos, quer a sociedade, quer aos acionistas, quer ainda a terceiros. Ocorrendo violação da lei ou estatuto, por parte do administrador, e desde que configurado o nexo causal entre seu ato e o prejuízo, há presunção de culpa, pela próprio natureza da violação”.

08. “Salvo conluio ou negligência, nenhum diretor torna-se responsável por ato de terceiro, ou seja, de outro diretor. Já no que respeita ao conselho administrativo, a responsabilidade será sempre de todos os membros, salvo se os discordantes fizerem consignar em ata a sua divergência ou se utilizarem dos restantes procedimentos exoneradores de responsabilidade previstos em lei. Isto porque não há ato individual eficaz em termos de competência do conselho de administração.” (CARVALHOSA, 1982, p. 196 apud. ABRÃO, 2019, p. 294)

09. Art. 2º Respondem solidariamente pelas obrigações assumidas pelos bancos e casas bancarias durante a sua gestão e até que elas se cumpram, os diretores e gerentes que procederem com culpa ou dolo, ainda que se trate de sociedade por ações, ou de sociedade por cotas, de responsabilidade limitada. Parágrafo único. A responsabilidade se circunscreverá ao montante dos prejuízos causados, pela inobservância do disposto nesta lei, sempre que fôr possível fixá-la. (BRASIL, 1946)

10. Art. 2.º Os diretores e gerentes das instituições financeiras re s p o n d e m s o l i d a r i a m e n t e p e l a s o b r i g a ç õ e s a s s u m i d a s pelas mesmas durante sua gestão até que elas se cumpram. Parágrafo único. Havendo prejuízos, a responsabilidade solidária se circunscreverá ao respectivo montante. (BRASIL, 1964)

11. “Na realidade, os arts. 39 e 40 se complementam e devem ser interpretados conjuntamente. O primeiro trata de responsabilidade pelos atos e omissões praticados pelo administrador. O segundo, ao estabelecer a responsabilidade solidária do diretor pelas obrigações assumidas pela instituição, durante a sua gestão, o faz partindo do pressuposto de terem sido tais obrigações decorrentes de atos ou omissões do administrador. Tanto assim é que o próprio artigo 40, no seu parágrafo único, estabelece um limite a essa responsabilidade, que é o montante dos prejuízos causados”. (WALD, 1976, p. 36)

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12. “[...] grosso modo, o sistema clássico será o pertinente, caso não exista expressa previsão, na lei imputadora da responsabilidade, de inversão do ônus probatório da culpa, ou da ressalva desse elemento. Ele constituiu a regra básica da responsabilidade civil da ordem jurídica brasileira”. (COELHO, 1999, p. 91)

13. Para o jurista: “[...] o fundamento axiológico e racional para a responsabilidade objetiva não são os riscos da atividade, mas a possibilidade de se absorverem as repercussões econômicas ligadas ao evento danoso, através da distribuição do correspondente custo entre as pessoas expostas ao mesmo dano ou, de algum modo, beneficiárias do evento”. (COELHO, 1999, p. 92)

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MELHORES EMPREGOS? UMA ANÁLISE DO TRABALHO INTERMITENTE SOB A PERSPECTIVA DA AGENDA NACIONAL DE TRABALHO DECENTECatharina Lopes ScodroGraduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisadora pelo Programa Institucional de Iniciação Científica (FAPEMIG UFU 2017-2018/UFU 2018-2019).

Juliane Caravieri MartinsProfessora Adjunta de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Doutora em Ciências no Programa de Integração da América Latina (PROLAM) pela Universidade de São Paulo (2014). Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009).

RESUMOA Agenda Nacional de Trabalho Decente, instituída pela OIT, prevê como prioridade para a efetivação do trabalho decente a geração de “mais e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento”. No Brasil, com a aprovação da Reforma Trabalhista, esta prioridade restou prejudicada, vez que a previsão de modalidades flexibilizadas de trabalho e de qualidade duvidável, como o trabalho intermitente, consagra tão somente os interesses do empresariado. Assim, esta pesquisa se propõe a analisar a Reforma, a figura contratual do trabalho decente e os preceitos da Agenda, sobretudo em relação à incompatibilidade na promoção do desenvolvimento social, ao obstar a criação de melhores empregos.

PALAVRAS-CHAVE

Reforma Trabalhista. Organização Internacional do Trabalho. Trabalho decente. Trabalho intermitente.

ABSTRACTThe National Decent Work Agenda, instituted by ILO, previsse as an priority to effectiveness the decent work the generate of “more and better jobs, wih equalite of oportunities and treatment”. In Brazil, with the approval of Labour Reform, this priority was impaired, since it provides flexibilized contracts with doubtful quality, as the intermittent work, that consagrate the interests of the economical sectors. This study pretends to analyse the Reform, the contractual figure of the intermittent work and the precepts of the Agenda, especially about the incompatibility to the promotion on the social development and the obstruct to the creation of better jobs.

KEYWORDS

Labor Reform. International Labor Organization. Decent work. Intermittent work.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. A Proteção Jurídica do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho

3. A Agenda Nacional de Trabalho Decente (2006) e a Geração de Empregos

4. A Reforma Trabalhista no Brasil, a Flexibilização de Contratos e o Trabalho Intermitente

5. Análise Crítica Acerca da Agenda Nacional de Trabalho Decente e do Trabalho Intermitente

6. Conclusão

Referências Bibliográficas

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Em 2006, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabeleceu a Agenda Nacional de Trabalho Decente (OIT, 2006), em que previa a instituição do “trabalho decente”

(OIT, 2006, p. 5) como forma de combater a pobreza e as desigualdades sociais, acentuando com vigor a busca pela realização da justiça social e da democracia.

A realização desta forma de trabalho sustenta-se na remuneração adequada e no seu exercício com garantias de liberdade, equidade e segurança. Para tanto, deve ater-se às três prioridades instituídas pela Organização, dentre as quais a geração de empregos, a erradicação das piores formas de trabalho – como o trabalho infantil e a redução a condição análoga à de escravo – e o fortalecimento do diálogo e da atuação do corpo social para a efetivação de direitos.

Em relação à geração de empregos, a Agenda institui o fomento a “mais e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento” (OIT, 2006, p. 10), o que, recentemente, resta prejudicado com a atual conjuntura

trabalhista. Assim, com a Reforma Trabalhista, estabelecida com a aprovação da Lei 13.467/2017 que alterou mais de 90 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a previsão de modalidades flexibilizadas de contratos de trabalho atesta a ausência de qualidade dos empregos ofertados, uma vez que, dentre outros, contempla o trabalho intermitente.

Neste sentido, esta pesquisa apresenta, como objetivo geral, o estudo contraposto da Agenda Nacional de Trabalho Decente e da Reforma Trabalhista. Dentre os objetivos específicos, propõe-se a análise crítica da prioridade de geração de empregos, diante da realidade de elevados índices de desemprego e da possibilidade de pactuação por modalidades flexibilizadas de trabalho, como o trabalho intermitente. Deste modo, este estudo desenvolveu-se a partir da metodologia bibliográfica, documental, exploratória, dedutiva e dialética, com consulta às obras direcionadas à Sociologia do Trabalho e ao Direito do Trabalho, e teve, como marco teórico, a “Agenda Nacional de Trabalho Decente”, da OIT, e a obra “O direito do trabalho como instrumento de justiça social”, de Jorge Luiz Souto Maior.

2. A Proteção Jurídica do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho

Para o indivíduo, o trabalho pode ser auferido sob a perspectiva individual e coletiva, representando, respectivamente, um fator pessoal de conquista e outro social, capaz de desenvolver a cooperação entre semelhantes, a partir de lutas e ideais (NASCIMENTO; FERRARI; FILHO, 2011, p. 324). A partir desta acepção, nota-se a importância e a centralidade da atividade laboral, que deve ser regulamentada e protegida, a fim de garantir os direitos dos partícipes, vinculados por um contrato de trabalho.

Esta proteção ao trabalho provém de uma trajetória histórica de luta e conquistas, que o consolidaram e positivaram no âmbito

1. Introdução

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do ordenamento jurídico interno – como direito fundamental e social – no do externo, cuja proteção internacional o prevê como direito humano. Internamente, esta tutela fundamenta-se na proteção instituída pela Constituição Federal (1988), pelo Direito do Trabalho e pelo Direito Penal. Já externamente, a defesa deste direito se dá por convenções, declarações e tratados internacionais e pela coexistência não excludente de sistemas de proteção no contexto global, “global especial” e regional (MARTINS, 2017, p. 57).

A Constituição Federal brasileira estabeleceu a proteção dos valores sociais do trabalho, juntamente com a dignidade da pessoa humana, como fundamento deste Estado Democrático de Direito (art. 1º). Nos artigos 6º e 7º, o trabalho foi determinado como direito social, caracterizado pela presença de um núcleo essência, qual seja um mínimo intransponível para garantir a “condição de humanidade” ao indivíduo, independentemente de critérios econômicos ou jurídicos (BATISTA, 2014, p. 203). Deste modo, o texto legal prevê a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa na relação de emprego (art. 7º, I), o salário mínimo adequado e capaz de garantir as necessidades vitais básicas para o trabalhador e sua família (art. 7º, IV), a duração máxima do trabalho (art. 7º, XIII), a previsão de repouso semanal remunerado (art. 7º, XV) e, dentre outros, o gozo de férias anuais remuneradas (art. 7º, XVII). A proteção do instrumento constitucional afirma ser o trabalho o fundamento da ordem econômica (art. 170) e a base da ordem social (art. 193), para certificar a existência digna, o bem-estar dos indivíduos e a consecução da justiça social.

Para Souto Maior (2000, p. 21), a atuação do Direito do Trabalho direciona-se a impedir a exploração excessiva do trabalho humano e a melhorar as condições de realização das atividades e de vida dos trabalhadores. Neste sentido,

reconhece o seu “status social” e, simbolicamente, eleva o trabalho à um fator de liberdade, para além de constituir um direito. Para tanto, este ramo do Direito apresenta uma matriz principiológica específica, direcionada à regulamentação das relações de trabalho e, sobretudo, as de emprego, e à promoção dos direitos, garantias e liberdades do trabalhador. Segundo Plá Rodriguez (2000, p. 19-20), constituem princípios justrabalhistas a proteção, auferida no in dubio pro operario, na regra da aplicação da norma mais favorável e da condição mais benéfica; a irrenunciabilidade dos direitos, a continuidade da relação de emprego; a primazia da realidade; a razoabilidade; a boa-fé; e, por fim, a não discriminação.

O Direito Penal encerra os recursos internos direcionados à proteção do trabalho, a partir da tutela das situações juridicamente relevantes que atentem contra a saúde, a liberdade, a dignidade do trabalhador e a organização do trabalho. Como ultima ratio, a aplicação da Código Penal (1940) restringe-se aos delitos de redução a condição análoga à de escravo (art. 149) e aos presentes no Título IV “dos crimes contra a organização do trabalho”, dentre os quais o atentado contra a liberdade de trabalho (art. 197), o atentado contra a liberdade de associação (art. 199), a frustração de direito assegurado por lei trabalhista (art. 203) e o aliciamento para o fim de emigração (art. 206).

No âmbito externo, a proteção internacional do trabalho fundamenta-se na coexistência e na complementariedade dos sistemas global, regional e “global especial”, que atuam para viabilizar e fortalecer a tutela conferida aos direitos humanos.

O sistema global da Organização das Nações Unidas (ONU) foi instaurado com a Carta das Nações Unidas pelos Estados signatários (1945) e seu rol de direitos humanos, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Nesta, a proteção ao trabalho está no artigo 23, que

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estabelece, em síntese, o direito à livre escolha do trabalho, à percepção de um salário, à remuneração equitativa e satisfatória e à filiação em sindicatos. Segundo Martins (2017, p. 64), com a aprovação, em 1966, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que somente entraram em vigor em 1976, os direitos da Declaração foram “juridicializados”.

Os sistemas regionais de proteção de direitos humanos constituem-se por semelhanças culturais e referem-se à “internacionalização dos direitos humanos” (PIOVESAN, 2006, p. 50-55), a fim de fixar um parâmetro mínimo de proteção dos direitos humanos nos contextos regionais da Europa, América e África. No contexto da América, o sistema regional de proteção de direitos humanos foi instituído efetivamente com a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), usualmente conhecida com Pacto de San José da Costa Rica, em 1969. Neste instrumento, há previsão de dois órgãos – a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) – responsáveis pela atuação frente aos compromissos assumidos com a ratificação pelos Estados-membros. A CADH entrou em vigor no plano internacional em 1978, tendo sido ratificada pelo Estado brasileiro apenas em 1992, com o Decreto n. 678.

Por fim, o sistema “global especial” contempla especificamente a proteção dos direitos trabalhistas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), com normas internacionais do trabalho aplicáveis aos Estados-membros. Segundo Martins (2017, p. 94),

O sistema da OIT é compreendido como um “sistema global especial” de proteção aos direitos humanos porque trata de regras e princípios específicos que tutelam os direitos trabalhistas. O conjunto de normas estabelecido no sistema da OIT atua no aperfeiçoamento e na adequação das relações firmadas

entre trabalho e capital buscando estar em consonância com a dignidade da pessoa humana do trabalhador.

Neste sentido, a OIT foi criada em 1919 e incorporada à Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, como uma agência especializada. Sua estrutura caracteriza-se como tripartite, por ser composta por representantes das organizações sindicais, das organizações patronais e dos governos dos países membros. É perceptível, portanto, que se trata de uma instituição que fomenta o fortalecimento do diálogo social para realizar a formulação de normas internacionais.

No que tange aos seus ideias e valores, segundo o Preâmbulo de sua Constituição, a atuação da Organização guia-se pela justiça, humanidade e paz mundial. Para tanto, reconhece a relevância da justiça social para a consolidação destes objetivos, a situação de injustiça, miséria e privações presentes em determinadas condições de trabalho, que ameaçam a paz e harmonia universais e, por fim, a importância da adoção de um regime de trabalho digno pelos países para a melhoria do futuro dos trabalhadores.

Pelo momento de sua criação e de seus objetivos, a OIT recebeu fortes influências das ideias relacionadas à internacionalização da legislação social trabalhista, da primeira metade do século XX, diante das tendências que defendiam a intervenção estatal nas relações sociais, políticas e econômicas para viabilizar a concretização dos direitos sociais (ALVARENGA, 2007, p. 56). Na atualidade, a Organização empenha-se na luta pela regulamentação internacional e pelo reconhecimento dos Direitos Humanos do Trabalhador.

A OIT, portanto, visa adotar uma política social de cooperação e de desenvolvimento social entre todos os sistemas jurídicos nacionais para a melhoria das condições de

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trabalho, mediante o implemento de normas protetivas sociais universais para os trabalhadores e o reconhecimento internacional dos Direitos Humanos do Trabalhador. (ALVARENGA, 2007, p. 57)

Esta regulamentação e reconhecimento são possíveis a partir de declarações, recomendações e convenções da Organização, bem como de programas e projetos específicos para os Estados, concretizados com a criação de Agendas. Em relação às convenções, para garantir sua efetividade e cogência, o Estado-membro da OIT deve ratificá-las no âmbito interno. No Brasil, esta ratificação para entrada em vigor ocorre por meio dos decretos e, dentre as Convenções recepcionadas, ressalte-se a n. 29 sobre “Trabalho Forçado ou Obrigatório” (1930), a n. 95 sobre “Proteção do Salário”, a n. 98 sobre “Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva” e a n. 105 sobre “Abolição do Trabalho Forçado” (1957).

3. A Agenda Nacional de Trabalho Decente (2006) e a Geração de Empregos

No Brasil, em 2006, a Organização Internacional do Trabalho, conjuntamente com o Governo federal, instituiu a Agenda Nacional de Trabalho Decente como um programa direcionado ao fomento do trabalho decente e ao combate da pobreza e das desigualdades sociais. Para tanto, o documento estabelece os antecedentes, as prioridades e os mecanismos de implementação da Agenda.

Segundo a OIT (2006, p. 5), o trabalho decente deve ser provido de remuneração adequada, exercido com liberdade, equidade e segurança e com aptidão para garantir dignidade ao trabalhador. Este trabalho apresenta-se como uma condição fundamental para superar a pobreza, promover a diminuição das desigualdades sociais, consolidar a governabilidade

democrática e garantir o desenvolvimento sustentável. Para tanto, a base deste conceito funda-se estrategicamente em quatro pontos, quais sejam

a) Respeito às normas internacionais do trabalho, em especial aos princípios e direitos fundamentais do trabalho (liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; eliminação de todas as formas de trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil; eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação); b) Promoção do emprego de qualidade; c) Extensão da proteção social; d) Diálogo social. (OIT, 2006, p. 5)

Para a elaboração da Agenda, houve ampla consulta às organizações de empregadores e de trabalhadores, a fim de criar um mecanismo hábil para a implantação do trabalho decente. No Brasil, o compromisso com a promoção deste trabalho constitui uma prioridade política desde 2003, estabelecido pelo Memorando de Entendimento entre o Governo e a Organização, assinado pelo Presidente da República em exercício, Luiz Inácio Lula da Silva, e pelo Diretor-Geral da OIT, Juan Somavia. Com este comprometimento, estabeleceu-se um “Programa Especial de Cooperação Técnica para a Promoção de uma Agenda Nacional de Trabalho Decente” (OIT, 2006, p. 08). A Agenda estruturou-se em três prioridades para promover o trabalho decente, quais sejam a geração de mais e melhores empregos, com garantia de igualdade de oportunidades e tratamento; a erradicação do trabalho escravo contemporâneo e a eliminação do trabalho infantil, sobretudo em suas piores formas; e o fortalecimento dos atores tripartites – Governo, organizações dos empregadores e dos trabalhadores – e do diálogo social como meio de governabilidade democrática.

Acerca da “Prioridade 1”, de geração de mais e melhores empregos, a Agenda esperou, como resultados (OIT, 2006,

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10), o estabelecimento de uma Política Nacional de Emprego, elaborada a partir do diálogo social entre os atores tripartites, e das metas de criação de empregos produtivos e de qualidade, para proporcionar estrategicamente o desenvolvimento social, econômico e dos setores de produção.

A atuação da Agenda (OIT, 2006, p. 10-13), para consecução destes fins, ampara-se no investimento – público e privado – para viabilizar o desenvolvimento local e empresarial para gerar empregos; nas políticas públicas que contemplem o emprego, a administração e a inspeção do trabalho; nas políticas direcionadas ao salário e à renda, para valorizar o salário-mínimo e fomentar a distribuição de renda; na promoção da igualdade de oportunidade e tratamento para combater qualquer forma de discriminação, relacionada ao gênero, etnia, idade, doença ou deficiências; no aumento progressivo da proteção social direcionada aos trabalhadores, sobretudo informais, domésticos e migrantes; e, por fim, na melhoria das condições de trabalho, a partir do implemento de uma Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador para garantir que o meio ambiente laboral seja seguro e íntegro.

Para implementar esta Agenda, deve haver um diálogo com as organizações dos empregadores, dos trabalhadores e o próprio Governo, a partir da criação de um programa nacional direcionado ao trabalho decente (OIT, 2006, p. 18). No Brasil, com o Decreto n. 4, de 2009, foi instituído um Comitê para garantir a promoção da Agenda do trabalho decente firmada entre o Governo Federal e a Organização Internacional do Trabalho.

4. A Reforma Trabalhista no Brasil, a Flexibilização de Contratos e o Trabalho Intermitente

No Brasil, a ampla proteção direcionada ao direito do trabalho sofreu, recentemente, uma ruptura repentina com a

aprovação da Lei 13.467, de 2017, que alterou mais de noventa dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (1943). Esta Lei, responsável pela Reforma Trabalhista, sustentou-se no discurso de “obsolescência e urgente reformulação” (MARTINS, 2017, p. 33) do Direito do Trabalho, para supostamente adequá-lo aos mercados de trabalho globalizados e à criação de mais postos de trabalho.

A aprovação desta Lei ocorreu com um trâmite excepcionalmente acelerado nas Casas Civis e sem qualquer diálogo efetivamente social e democrático entre os atores tripartites, o que atestou o caráter político da Reforma em relação ao direito das massas e à consagração de interesses específicos. Neste sentido, a partir da derrogada da matriz principiológica justrabalhista e da flexibilização generalizada dos contratos de trabalho, percebe-se que os interesses contemplados pelas alterações da Reforma coadunam com as demandas do grande capital e, portanto, dos setores empresariais.

Com a extensa flexibilização, a regulamentação jurídica positivada direcionada à relação de emprego, caracterizada pela pessoalidade, onerosidade, subordinação jurídica e não eventualidade, restou prejudicada. Assim, novas modalidades contratuais surgiram valorizando a autonomia privada frente as regras imperativas dos contratos de trabalho, responsáveis por garantir o conteúdo mínimo diante da negociação da força de trabalho e consagrar o patamar civilizatório mínimo para os trabalhadores (DELGADO; DELGADO, 2017, p. 40). Deste modo, atentou-se contra o objetivo de estabelecer a igualdade jurídica material entre o empregador e o empregado, viabilizado pela proteção conferida pelo Direito Trabalhista. Para Delgado e Delgado,

A reforma trabalhista implementada no Brasil por meio da Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, desponta por seu direcionamento claro em busca do retorno ao antigo

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papel do Direito na História como instrumento de exclusão, segregação e sedimentação da desigualdade entre as pessoas humanas e grupos sociais.

Profundamente dissociada das ideias matrizes da Constituição de 1988, como a concepção de Estado Democrático de Direito, a principiologia humanística e social constitucional, o conceito constitucional de direitos fundamentais da pessoa humana no campo justrabalhista e da compreensão constitucional do Direito como instrumento de civilização, a Lei n. 13.467/2017 tenta instituir múltiplos mecanismos em direção gravemente contrária e regressiva. (2017, p. 39-40)

À visto disso, dentre as modalidades flexibilizadas de contrato instituídas pela Reforma Trabalhista, há o contrato de trabalho intermitente, previsto no art. 443 e regulamentado no art. 452-A, ambos da CLT. Esta forma de contratação da força de trabalho regulamentou o “bico oficial” (DA SILVA, 2017, p. 69), caracterizado pela alternância de períodos de trabalho e de inatividade a partir da redução dos custos empresariais e da ampliação das faculdades jurídico patronais para gerir a força de trabalho (PINHEIRO, 2018, p. 128).

Nesta modalidade, o empregador poderá convocar irrestritamente o empregado em até três dias corridos antes da prestação do serviço e este deverá responder ao aviso de comparecimento em até 24 horas. Diante disso, a subordinação jurídica somente estará presente com a aceitação pelo empregado. Ressalte-se que, embora o contrato de trabalho intermitente seja de trato sucessivo, o empregador não é obrigado a convocar o empregado com frequência, restando esta escolha ao seu livre arbítrio.

Acerca dos períodos de inatividade, conquanto o § 5o do art. 452-A, estabeleça que “o período de inatividade não será considerado

tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes”, na realidade, o trabalhador se encontra constantemente à disposição do empregador, guardadas as semelhanças com o regime de sobreaviso, em razão da natureza da intermitência e do pouco tempo entre a convocação e a resposta. Assim, o dispositivo legal incide na percepção diminuta de quantias pelos serviços prestados, atrelando-a tão somente ao serviço efetivamente prestado, de forma que, diante da inatividade, o contrato é considerado suspenso, sem qualquer ônus recíproco e recolhimentos relacionados à Previdência Social e à conta vinculada do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (SOUSA FRANCO, 2018, p. 122).

Por fim, por ser uma forma de trabalho em que não há compromisso em prover renda (PINHEIRO, 2018, p. 128), a precarização da atividade restou potencializada, já que o empregado, para garantir sua subsistência, deverá vincular-se a diversos empregadores. Diante de uma “constante disposição”, o trabalhador será impedido de organizar sua vida e terá sua dignidade mitigada.

5. Análise Crítica Acerca da Agenda Nacional de Trabalho Decente e do Trabalho Intermitente

Desde a instituição da Agenda Nacional de Trabalho Decente (OIT, 2006), a geração de empregos foi elevada ao patamar de prioridade nacional, a partir do fortalecimento do discurso de criação intensa de postos de emprego como um mecanismo para alcançar a pleno desenvolvimento social e econômico.

No entanto, para além do plano ideal, este discurso fundamentou-se, sobretudo, na abundante precarização dos postos já existentes e dos direitos conquistados pela classe trabalhadora, afastando-se das condições dignas de pactuação da força de trabalho. Para Souto Maior (2000, p. 261),

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No caso concreto do direito do trabalho brasileiro, está-se alterando o seu direito pressuposto. Está-se deixando a preocupação com a eliminação das injustiças, com vistas à melhoria das condições de vida dos trabalhadores, para considerar, tão-somente, o fenômeno do desemprego, o que, em última análise, justifica que as injustiças sejam consagradas pelo próprio direito. Preocupa-se, sob a perspectiva desse novo paradigma, apenas com o oferecimento de condições para que as empresas ofereçam trabalho, qualquer trabalho, a qualquer custo. O direito do trabalho, desse modo, tende a ser meramente direito a trabalhar, inserido na conjuntura do direito civil.

Com a Reforma Trabalhista, o oferecimento de “qualquer trabalho”, ainda que essencialmente desvantajoso ao trabalhador, passou a ser regulamentado, consagrando os interesses do empresariado. Nota-se, portanto, na previsão da modalidade do trabalho intermitente, em que o trabalhador é subordinado sem, entretanto, prestar o serviço de forma contínua, alternando períodos de exercício e de inatividade, nos termos do art. 443, § 3o, e do art. 452-A, da CLT.

É necessário, neste sentido, tecer críticas à atual política de geração de empregos, lastreadas em contratos de trabalho flexibilizados, que descaracterizam as relações de emprego. Afinal, a regulamentação de um contrato de trato sucessivo cuja subordinação está atrelada à convocação e à aceitação não garante a geração de mais e melhores empregos, já que esta pactuação do trabalho não garante a convocação e, por conseguinte, não estabelece, dentre outros direitos, a certeza da percepção da remuneração justa, adequada e periódica.

Ao atestar, tão-somente, a existência da atividade laboral, mesmo com a ausência de condições dignas de exercício, fomenta-se a ardilosa sensação de menores índices de desemprego, sob uma perspectiva essencialmente quantitativa. Assim, ao prever um

vínculo de trabalho cuja alternância com períodos de inatividade afaste os direitos do trabalhador, resta demonstrado que o aspecto qualitativo não foi relevante no ato de sua positivação.

Neste sentido, os resultados esperados com a instituição da Agenda, relacionados à criação da política de empregos sustentada no diálogo social dos atores tripartites, restou ausente com a aprovação abrupta da Reforma, sustentada em discussões restritas que privilegiaram determinados interesses econômicos frente à história de luta e conquista de direitos trabalhistas. Assim, a positivação do contrato de trabalho intermitente com a Lei 13.467/2017 confirmou banalização dos direitos do trabalhador, da matriz principiológica que sustenta o Direito justrabalhista e dos compromissos assumidos em sede internacional pelo Estado brasileiro, já que obsta a criação de mais e melhores empregos, possibilitando a pactuação por um contrato flexibilizado cujos direitos foram restringidos e mitigados.

6. Conclusão

Com fulcro no discurso de elevados índices de desemprego, necessidade de reformulação do Direito do Trabalho e de adequação aos ditames da economia globalizada, a Reforma foi aprovada e confirmou o distanciamento da prioridade de “geração de mais e melhores empregos”, estabelecida pela Agenda Nacional de Trabalho Decente.

Neste sentido, ao prever modalidades flexibilizadas de contratação, a Lei 13.467/2017 enalteceu os interesses dos setores empresários, promovendo um desenvolvimento econômico que dista do social, vez que cria uma ilusória sensação de consagração do pleno emprego à população.

Prezou-se, tão somente pelo aspecto quantitativo relacionado à quantidade de empregos, empregos gerados, para fomentar a

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ardilosa sensação de desenvolvimento dos postos de trabalho, com repercussão nas searas sociais, econômicas e políticas. Na realidade, a forma irrestrita de previsão da pactuação do trabalho intermitente comprova o distanciamento com a preocupação, sobretudo do atual Governo federal e dos setores empresariais, com a qualidade dos empregos ofertados à população, que devem ser melhor conceituados como “subempregos”.

Diante desta conjuntura, resta comprovada a banalização do trabalhador e da pactuação de sua força de trabalho, que, com fulcro na necessidade de sustento, sujeita-se às

modalidades flexibilizadas de contratação. Ilusoriamente, o trabalho intermitente conforta os trabalhadores da existência de uma relação de trabalho, sem, no entanto, promover qualquer garantia da prestação de serviços e, portanto, do que será auferido, acentuando as desigualdades sociais e econômicas.

Assim, no atual cenário brasileiro, o direito dos trabalhadores restou violado, o que repercute na promoção da justiça social e, consequentemente, no desenvolvimento social e na redução das desigualdades. A efetivação do trabalho decente, desta sorte, mostra-se uma realidade distante.

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A PRODUÇÃO NORMATIVA NO PODER JUDICIÁRIO: ENTRE O POSITIVISMO E O REALISMOCecilia Priscila de SouzaMestre e doutoranda em Direito Tributário PUC/SP

Erick Calheiros AleluiaMestrando em Direito Tributário PUC/SP

RESUMO

O presente trabalho explora a atividade de produção normativa exercida pelos órgãos do Poder Judiciário nas lides que envolvem o conflito entre as normas jurídicas tributárias e os princípios constitucionais, considerando a relevância da análise casuística, o fenômeno de constitucionalização do direito e a necessidade de se utilizar o direito como um instrumento para consecução dos fins previstos, ainda que de forma implícita, pela Constituição Federal.

PALAVRAS-CHAVE

Constructivismo lógico-semântico. Constitucionalização do direito. Pós-positivismo. Produção normativa pelo poder judiciário.

ABSTRACT

The present work explores the normative production activity performed by the organs of the Judiciary in disputes involving the conflict between tax legal norms and constitutional principles, considering the relevance of case-by-case analysis, the phenomenon of constitutionalization of law and the need to use law as an instrument for achieving the intended purposes, even if implicitly, by the Federal Constitution.

KEYWORDS

Logical-semantic constructivism. Constitutionalization of law. Post-positivism. Normative production by the judiciary.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. O Conhecer, o Direito Positivo e o Constructivismo Lógico-Semântico

3. O Sistema do Direito Positivo e a Regra Matriz de Incidência Tributária3.1 As Normas Jurídicas3.2 A Regra Matriz e o

Fenômeno da Incidência3.3 A Valoração e os Princípios

4. As Fontes do Direito e a Produção Normativa4.1 As Fontes do Direito4.2 A Constituição Federal de

1988 e o Protagonismo do Poder Judiciário

5. A Produção Normativa no Âmbito do Poder Judiciário e a Atividade Valorativa do Julgador

6. Conclusão

Referências Bibliográficas

Notações

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As correntes jurídicas positivistas, construídas sobre a ciência normativa do dever-ser idealizada por Hans Kelsen, tomam a realidade como uma construção intelectual, um

produto do homem, e se apoiam sobre a incomunicabilidade entre a realidade jurídica (dever-ser) e o mundo ontológico (ser). Os modelos jurídicos positivistas adotavam o raciocínio dedutivo, implementado mediante uma atividade mecânica de subsunção da previsão normativa ao fato jurídico.

O modelo jurídico adotado pelo Brasil, construído sob influência dessas correntes positivistas, passou por pelo menos duas grandes mudanças estruturais ao longo do século XX. Inicialmente, com a adoção do ideal político progressista e a formação de um Estado Regulatório e, posteriormente, com o fenômeno da constitucionalização do direito, sob influência do Realismo Jurídico estadunidense. Com o fim da segunda guerra mundial, os Estados Unidos passaram a assumir a liderança nas esferas econômica, militar e política, acarretando a difusão das características do seu modelo jurídico, baseado no sistema jurídico do common law.

Historicamente, esse movimento acompanhou processos de democratização ou de redemocratização, e foi observado em modelos jurídicos de inúmeros países da Europa. No Brasil, o fenômeno da constitucionalização ou movimento pós-positivista se iniciou com o advento da Constituição Federal de 1988 e conferiu supremacia ao Texto Constitucional, que passou a elencar determinados fins que orientariam o uso do direito e a construção de todo o plano infraconstitucional, além de atribuir um papel de relevância ao Poder Judiciário como fonte de produção normativa.

Algumas características que ressaltam do modelo jurídico brasileiro atual, especialmente quanto à produção normativa e aos mecanismos de revisão das normas jurídicas tributárias, são a rigidez constitucional, o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário, a importância das normas produzidas pelos órgãos jurisdicionais e a liberdade conferida ao juiz, que não se encontra limitado àquele modelo de raciocínio dedutivo.

Inúmeras características do modelo jurídico brasileiro demonstram a influência de correntes positivistas, como é o caso, por exemplo, da importância do direito posto, pautado pelo princípio da legalidade (e, em direito tributário, do princípio da estrita legalidade), composto por um vasto conjunto de legislações, e da maior objetividade atribuída à Administração Pública, que executa parte significativa das suas funções com base no modelo subsuntivo. Esse raciocínio dedutivo não mais limita a atuação dos órgãos jurisdicionais, que são comumente encarregados, especialmente em matéria tributária, por analisar a constitucionalidade das normas expedidas pela Administração Pública.

A utilização do direito como um instrumento para a consecução de determinados fins, a supremacia da Constituição Federal e o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário integram o objeto do presente trabalho, que adota o Constructivismo

1. Introdução

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Lógico-Semântico como expediente metodológico com o fim de garantir o rigor do discurso.

2. O Conhecer, o Direito Positivo e o Constructivismo Lógico-Semântico

Como processo de construção de sentido, o conhecer pressupõe a existência de linguagem, pois é a linguagem que constitui a realidade e é a partir deste instrumento (representado num suporte físico) que o sujeito cognoscente inicia a sua atividade de construção de sentido e passa a conhecer o seu objeto. De acordo com Aurora Tomazini de Carvalho01, o conhecimento é “a forma da consciência humana por meio da qual o homem atribui significado ao mundo”.

O conhecimento do direito positivo também se realiza mediante um processo de construção de sentido, que se inicia com o contato do intérprete com o texto legal. O limite do intérprete é a própria linguagem do ordenamento jurídico, pois não será possível conhecer o que não integra aquele discurso. Este processo de conhecimento compreende o confronto do objeto de estudo com os elementos de referência do sistema e do contexto do discurso, pressupondo a incursão do intérprete nos planos semântico e pragmático.

O dialogismo é característico deste processo construtivo, na medida em que o intérprete estabelece relações entre o objeto de estudo e os demais enunciados pertencentes do sistema. Essa relação dialógica ou interdisciplinar que o intérprete estabelece entre os enunciados é essencial para a construção do sistema do direito positivo, que pode, de acordo Aurora Tomazini de Carvalho02, ser observada por duas perspectivas:

O direito positivo como texto, relaciona-se cognoscitivamente com outros sistemas (social, econômico, político, histórico,

etc), que também são linguísticos. Há, neste sentido, uma intertextualidade externa (contexto não-jurídico) muito importante, pois, apesar do foco da análise jurídica não recair sobre seu contexto histórico-social, é esta relação dialógica que molda as valorações do intérprete. Como sistema, as unidades do direito positivo também se relacionam entre si. Há, neste sentido, uma intertextualidade interna (contexto jurídico), na qual se justificam e fundamentam todas as construções significativas da análise jurídica.

Adota-se como expediente metodológico o Constructivismo Lógico-Semântico, que faz uso da semiótica e da lógica (ferramentas que permitem a decomposição e a análise sintática e semântica do discurso), além da hermenêutica (com atenção aos valores e referenciais que condicionam os sentidos atribuídos pelo intérprete aos textos). De acordo com Aurora Tomazini de Carvalho, o método constructivista garante “uniformidade e coerência na construção do discurso científico e, consequentemente, da realidade objeto deste discurso”03.

Esse percurso de construção de sentido envolve o tráfego, segundo Paulo de Barros Carvalho04, por quatro planos: i. o plano da literalidade textual, que representa o contato do sujeito cognoscente com as marcas de tinta no papel; ii. o plano do conteúdo dos enunciados prescritivos, que envolve o início do trabalho de construção de sentido, embora restrito à análise das proposições isoladas (normas jurídicas em sentido amplo); iii. o plano do sistema das significações normativas, em que as proposições isoladas do plano anterior serão estruturadas para construir a norma jurídica em sentido estrito; e iv. o plano das significações normativas sistematicamente organizadas, que pressupõe o cotejo entre a norma jurídica em construção e as demais normas que integram o sistema do direito positivo, estabelecendo-se, de acordo com as lições de Aurora Tomazini

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de Carvalho05, os vínculos de subordinação e coordenação entre essas normas jurídicas.

A análise dos planos ou subdomínios acima evidencia a relação entre a atividade interpretativa e os planos fundamentais da linguagem – sintático, semântico e pragmático06. Essas incursões representam a manipulação de diferentes planos de linguagem, como é o caso, por exemplo, do subdomínio da literalidade textual, cujo contato se limita ao plano sintático.

Uma importante corrente filosófica para a forma metodológica adotada neste trabalho foi o giro linguístico, que representa o momento em que a linguagem se torna independente da realidade. Esse processo de independência se iniciou com a publicação da obra Tratactus Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein07. De acordo com Robson Maia Lins08,

o conhecimento não aparece como a relação entre sujeito e objeto, mas como relação entre linguagens, entre significações. Aqui, a linguagem ganhou um novo sentido, não aparecendo mais como um meio, como algo que estaria entre o eu e o objeto, capaz de criar tanto o eu como a realidade.

Para a compreensão do direito, o Constructivismo Lógico-Semântico adota como pressuposto a Filosofia da Linguagem e tem no próprio homem a ferramenta essencial para a produção e renovação do discurso jurídico. Será o sujeito cognoscente, na qualidade de intérprete, que atribuirá sentido ao ordenamento jurídico, seu objeto do estudo, construindo o seu próprio sistema normativo09.

O direito positivo cria a sua própria realidade, que se apresenta como independente em relação à existência ontológica dos elementos do mundo factual. Por tal motivo, o discurso jurídico se apresenta como autorreferente e autossustentável, pois estruturado por mecanismos de criação e de revogação

das suas próprias normas jurídicas. Desta forma, a ideia de “verdade”, segundo Fabiana Del Padre Tomé10, se estabelece entre linguagens, e não entre uma linguagem e um objeto, de modo que um enunciado “é verdadeiro, em princípio, quando está em consonância com uma interpretação estabelecida, aceita, instituída dentro de uma comunidade de pertinência”.

As premissas aqui adotadas não são compatíveis com as teorias de hermenêutica jurídica tradicionais, relacionadas com a ideia de que o sentido e o alcance da norma jurídica foram estabelecidos pelo legislador e se encontram no próprio texto legal. As normas jurídicas são construídas pelo intérprete mediante atividade mental, orientada pelas regras fixadas pelo próprio sistema do direito positivo, que ora se apresenta como o referencial para este processo de construção de sentido, de modo que essa atividade intelectual será influenciada pelo contexto que envolve o intérprete e pela sua própria bagagem cultural.

3. O Sistema do Direito Positivo e a Regra Matriz de Incidência Tributária

3.1. As Normas Jurídicas

As normas jurídicas são produtos de uma atividade interpretativa, de uma construção mental, que tem como ponto de partida os textos que compõem o ordenamento jurídico e têm como fim regulamentar condutas intersubjetivas. Para que integrem a realidade jurídica, essas normas devem ser vertidas em linguagem por agente ou por órgão habilitado pelo sistema do direito positivo e de acordo com os procedimentos estipulados por suas próprias regras.

Por ser criado pelo homem, o direito positivo se apresenta como um objeto cultural, que tem como fim disciplinar o comportamento social. A adoção de um sistema de referência

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é imprescindível para que se delimite o significado dos objetos do estudo, se apresentando como uma condição para o próprio conhecimento.

O intérprete, ao atribuir significação aos enunciados prescritivos, constrói proposições, que se apresentam como normas jurídicas em sentido amplo. Quando o intérprete organiza essas proposições numa forma hipotético-condicional, referir-se-á às normas jurídicas em sentido estrito. Essa estrutura hipotético-condicional D (H » C) traduz basicamente que o preenchimento de uma determinada hipótese (uma ação ou conduta regulada pelo direito positivo) implicará um consequente (uma consequência prescrita pelo direito positivo), revelando o cunho prescritivo daquele sistema normativo – que disciplina as condutas intersubjetivas por um dos seguintes modais: obrigatório, permitido ou proibido.

As normas jurídicas podem ter em seu antecedente um evento concreto, demarcado no espaço e no tempo, ou um enunciado hipotético, e, em seu consequente, podem indicar indivíduos específicos para compor a relação jurídica ou se destinar à toda a comunidade sujeita àquele ordenamento jurídico. As normas abstratas são aquelas que possuem em seu antecedente um enunciado hipotético responsável por descrever um fato de possível ocorrência no mundo fenomênico, enquanto as normas concretas têm em seu antecedente o relato de um acontecimento (passado). Por outro lado, se apresentam como normas individuais aquelas que comportam em seu consequente um sujeito ou um grupo de pessoas determinadas, e como normas gerais aquelas que possuem no seu consequente um conjunto indeterminado de sujeitos.

Para os fins deste trabalho, extrair-se-á da classificação proposta acima as classes das normas gerais e abstratas e das individuais e concretas11.

3.2. A Regra Matriz e o Fenômeno da Incidência

A Regra Matriz de Incidência Tributária é, de acordo com Paulo de Barros Carvalho, uma regra de comportamento, que se responsabiliza por definir os elementos estruturais da norma jurídica (sentido estrito), com o fim de orientar o preenchimento dos pressupostos mínimos e essenciais à subsunção do fato (relato de um evento, um acontecimento no mundo factual que se exauriu no espaço e no tempo) à norma jurídica.

Essa regra pode ser subdividida em duas partes: um antecedente (ou descritor) e um consequente (prescritor), que preveem elementos específicos e essenciais à identificação de todos os aspectos necessários para a construção da norma jurídica. O descritor se responsabiliza basicamente pela identificação dos aspectos necessários à constituição do fato jurídico (aferível pelos critérios espacial, temporal e material), enquanto o prescritor identifica os aspectos que compõem a relação jurídica (critérios pessoal e quantitativo).

Para que nasça a relação jurídica, é necessária a exata correlação entre os aspectos do evento (que se pretende registrar em linguagem competente) e a previsão constante no antecedente da norma geral e abstrata.

O fenômeno da incidência se relaciona basicamente com a compatibilidade entre o fato jurídico (antecedente da norma individual e concreta) e a hipótese (antecedente da norma geral e abstrata)12, de modo que a norma produzida deverá ter em seu antecedente aspectos compatíveis com os critérios daquela situação hipotética de possível ocorrência da norma geral e abstrata. Entretanto, esse fenômeno somente se concretizará, alterando a realidade jurídica, mediante um ato de vontade: o ato de aplicação pelo sujeito que possui competência para a criação dessa linguagem.

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Esse ato de vontade do agente competente é um ato de enunciação, que deverá ser produzido de acordo com o procedimento previsto pelo próprio sistema do direito positivo. Para o Constructivismo Lógico-Semântico, a aplicação se confunde com o fenômeno da incidência: apenas será possível se referir à aplicação quando houver a exata correspondência entre as características do evento e a hipótese tributária, da mesma forma que essa correspondência deverá ser registrada em linguagem mediante ato de vontade de sujeito que possua competência.

3.3. A Valoração e os Princípios

A norma jurídica, como o produto de um processo intelectual, é influenciada por aspectos diversos que permeiam a sua construção, como é o caso, por exemplo, do contexto e da formação do intérprete. O sujeito cognoscente construiu a sua trajetória de vida sob um determinado caminho e experienciou situações particulares que o levaram a adotar crenças e privilegiar valores específicos. A bagagem cultural é indissociável deste processo intelectual, orientando a atividade de construção das normas jurídicas.

O intérprete, ao construir a norma jurídica, escolherá determinados valores em detrimento de outros. De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Júnior13, os “valores são preferências por núcleos de significações”, de modo que a escolha de um valor implica na sua preferência em relação ao valor contrário (desvalor) e, por conseguinte, numa graduação hierárquica, ainda que dentro de um contexto específico.

Não obstante o conteúdo dos enunciados prescritivos seja atribuído pelo intérprete, que construirá as normas jurídicas mediante essa atividade intelectual de natureza valorativa, as normas jurídicas possuem cargas de abstração e comportam

níveis de valoração diversos. Neste cenário, os princípios constitucionais, como normas jurídicas em sentido amplo (pois desprovidas daquela estrutura hipotético-condicional), se apresentam como normas de elevada abstração e carga valorativa que foram construídas com base em enunciados prescritivos dispostos, ainda que de forma implícita, no Texto Constitucional.

O intérprete somente poderá delimitar o que é e o que não é um princípio mediante uma análise sistêmica, considerando especialmente o plano constitucional14. Neste sentido, ensina Maria Ângela Lopes Paulino Padilha15 que “não é o legislador quem determina qual proposição consubstancia um princípio ou não, pois cabe ao intérprete valorar os enunciados e, via de consequência, atribuir relevância a determinada proposição, a ponto de esta influir por todas as porções do sistema”.

Embora seja o intérprete que dê sentido ao texto legislado e atribua, mediante atividade intelectual, valor às normas jurídicas, estabelecendo os seus próprios vínculos de subordinação e de coordenação, vale lembrar que este sujeito não é livre para atribuir qualquer sentido àqueles signos, encontrando na linguagem os limites para a sua interpretação. O próprio legislador constituinte originário, ao editar o Texto Constitucional, manifestou em linguagem a sua preferência por determinados fins ou valores – que não significa afirmar que o texto possua um conteúdo valorativo, mas tão somente que este serve de ponto de partida para a atividade interpretativa.

Portanto, esses princípios refletem, de certa forma, os fins que eram almejados pela sociedade no contexto da edição da Constituição Federal e se responsabilizam por orientar o processo de construção das demais normas do sistema do direito positivo. Neste sentido, ensinam Geraldo Ataliba e Roque Antônio Carrazza:

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O princípio aponta a direção, o sentido em que devem ser entendidas as normas que nele se apoiam, e ressalva não poder o intérprete extrair conclusão que contrarie um princípio, lhe comprometa as exigências ou lhe negue as naturais consequências.16

[...] diante de várias possibilidades interpretativas de uma norma, inclusive constitucional, se opte pela mais consentânea com os princípios que a Lei Maior consagra.17

Os princípios com elevados níveis de abstração e carga valorativa se apresentam como princípios valores, como é o caso dos princípios da capacidade contributiva, da proporcionalidade, da segurança jurídica, etc. Por outro lado, outros princípios funcionam como limites para a aplicação das normas jurídicas, mais se assemelhando a regras do que valores, como é o caso, por exemplo, dos princípios da não-cumulatividade, da legalidade, da anterioridade, dentre outros.

Embora orientem a produção de novos enunciados prescritivos e o processo de construção das normas jurídicas pelo intérprete, os princípios também se submetem àquele mesmo processo de atribuição de sentido – pois, da mesma forma como toda e qualquer norma jurídica, os princípios são construídos mediante atividade intelectual pelo intérprete do direito. A única distinção no processo de construção de sentido é que essas normas jurídicas (princípios) são dotadas de elevada carga valorativa, de modo que limitam a produção de novos enunciados e orientam a construção das demais normas jurídicas. O processo de construção das normas jurídicas é indissociável da valoração e se desenvolve a partir da linguagem: neste caso, pelos enunciados dispostos no Texto Constitucional. Os princípios constitucionais tributários seriam aquelas normas que atuam como vetores (sejam como valores ou limites objetivos) para o processo de positivação das normas jurídicas tributárias.

4. As Fontes do Direito e a Produção Normativa

4.1. As Fontes do Direito

Além de regulamentar as condutas intersubjetivas, o sistema do direito positivo deve disciplinar o procedimento de produção das suas próprias normas. As normas construídas com base nos enunciados que regem como determinadas normas se comportarão dentro do ordenamento (como é o caso das normas de competência) são normas de estrutura, enquanto aquelas que disciplinam as condutas intersubjetivas (dever-ser), praticadas pela sociedade enquanto destinatária da mensagem normativa, são as normas de comportamento. Na verdade, tanto as normas de comportamento quanto as normas de estrutura têm a regulamentação de comportamentos como objeto, distinguindo-se quanto ao tipo de comportamento que é disciplinado18 – as condutas intersubjetivas ou a produção normativa, respectivamente.

A produção normativa, como um processo enunciativo, tem íntima relação com o ato de aplicação, pois se concretiza mediante um ato de vontade do ente que possui competência, de acordo com as normas do direito positivo, para criar novos enunciados (ou documento normativo). É a partir do estudo das fontes do direito e das marcas de produção constantes nas normas jurídicas que poderão ser colhidas as informações sobre a sua produção, permitindo que o intérprete: i. identifique o agente ou o órgão que produziu aquela norma jurídica; e ii. apure se aquele ente possuía competência para a sua produção; e iii. verifique se o procedimento adotado foi aquele previsto pelo sistema do direito positivo.

As fontes do direito são, em consonância com as lições de Paulo de Barros Carvalho19, os agentes ou órgãos que possuem competência para produzir normas e a atividade desenvolvida por

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esses órgãos. Para que integrem a realidade jurídica, as normas devem ser produzidas de acordo com as normas de competência daquele sistema, que disciplinam procedimentos e elegem agentes ou órgãos específicos para produzir normas jurídicas.

De acordo com as premissas fixadas neste trabalho, resta afastada a ideia de que a lei pode ser fonte do direito, como pretendem sustentar as teorias de hermenêutica jurídica tradicionais. A lei é o resultado ou o produto do processo enunciativo e integra o ordenamento jurídico, não se confundindo com a sua fonte. Sob a mesma ótica, o fato jurídico, como um evento da realidade social que foi vertido em linguagem mediante ato de vontade de um agente competente, em consonância com o procedimento previsto pelo sistema do direito positivo, também é o produto do processo enunciativo.

Na mesma esteira, os órgãos que compõem o Poder Judiciário e o procedimento que regulamenta a sua atuação são fontes do direito e as decisões proferidas por esses órgãos constituem um produto do processo enunciativo20, integrando a realidade jurídica e inovando o sistema do direito positivo. Neste sentido, Tárek Moysés Moussallem21 é categórico ao afirmar que, “como toda aplicação do direito é criação do direito e vice-versa, não resta outra saída senão afirmar que os juízes criam direito”.

4.2. A Constituição Federal de 1988 e o Protagonismo do Poder Judiciário

No modelo jurídico brasileiro, o movimento ou fenômeno da constitucionalização foi precedido pela adoção do ideal político progressista e pela correspondente criação do Estado Regulatório. A adoção do ideal progressista e a promoção da intervenção do Estado na indústria e na economia também trouxeram novos encargos para aquele modelo jurídico, que se

responsabilizaria pela regulamentação de uma série de matérias e temas que antes não eram disciplinados juridicamente.

Com a criação do Estado Regulatório, o sistema normativo passou a ser utilizado como instrumento para a consecução das políticas públicas e almejava alcançar efetivamente os fins eleitos pelo ordenamento jurídico22. Entretanto, foi com o advento da Constituição Federal de 1988, sob influência do Realismo Jurídico estadunidense, que os órgãos do Poder Judiciário obtiveram notória importância como fontes de produção normativa.

Com o abandono daquele modelo de raciocínio dedutivo e a outorga de maior liberdade ao julgador que o Poder Judiciário foi alçado, segundo Oscar Vilhena23, ao status de um Poder Moderador. Houve, de acordo com Bruno Salama e Mariana Pargendler24, a mudança de um modelo formalista para um modelo “aberto e baseado em princípios”, que tinha o Poder Judiciário como protagonista. Ao discorrer sobre o fenômeno da constitucionalização, bem esclarece Luís Roberto Barroso25 a supremacia do plano constitucional e a sua influência sobre a construção das demais normas jurídicas daquele sistema:

Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.

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À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei Maior.

A construção das normas jurídicas deve, como já tratado acima, ser orientada por uma análise sistêmica e pela incursão do intérprete em todos os planos ou subdomínios da linguagem, incluindo o plano das significações normativas sistematicamente organizadas. É por este subdomínio que a norma que se pretende construir é confrontada com os princípios constitucionais, permitindo que o intérprete estabeleça os vínculos de subordinação e coordenação entre essas normas jurídicas.

No direito tributário, as condutas dos contribuintes e a atuação da Administração Pública se pautam pelo que é previsto em lei, em consonância com os princípios da legalidade e da estrita legalidade tributária. Não obstante, a competência tributária dos entes federativos encontra outros limites que transpassam essas normas, como é o caso dos princípios da capacidade contributiva, da vedação ao confisco, da segurança jurídica, da justiça etc. O recurso ao Poder Judiciário como forma de afastar ou de evitar a constituição de uma norma jurídica tributária é comumente utilizado pelos contribuintes que pretendem demonstrar a violação aos princípios constitucionais tributários.

5. A Produção Normativa no Âmbito do Poder Judiciário e a Atividade Valorativa do Julgador

A atividade de produção normativa é orientada por inúmeros princípios, que podem atuar como valores ou como limites objetivos. Aos legisladores constitucional e infraconstitucional não cabe estabelecer os campos e as fronteiras dos princípios valores, dado o elevado teor de abstração dessas normas jurídicas, que exigem, na maior parte das vezes, uma análise

casuística, considerando, além das normas jurídicas envolvidas, o contexto que envolve o intérprete.

Em matéria tributária, ainda que a análise casuística possa ser exercida pelo Poder Judiciário e pela Administração Pública, o presente trabalho se deterá à atuação dos órgãos jurisdicionais, considerando as limitações estabelecidas pelo próprio direito positivo para o reconhecimento da inconstitucionalidade de normas por esses órgãos administrativos.

O legislador constituinte delimitou a competência dos entes federativos e os legisladores infraconstitucionais criaram seus respectivos tributos nos moldes das normas constitucionais de competência. Não obstante a autoridade fiscal exerça a capacidade tributária ativa de forma vinculada, o sistema do direito positivo prevê mecanismos de revisão desses atos, como é o caso do controle de revisão exercido pelo Poder Judiciário.

Quando o legislador municipal, estadual, distrital ou federal produz, mediante atividade enunciativa, uma norma jurídica tributária, alguns princípios constitucionais, pelo menos num primeiro momento, saltam à vista, como é o caso, por exemplo, da legalidade, da estrita legalidade, da irretroatividade e da anterioridade. Todos são princípios limites objetivos, que não possuem elevado nível de abstração e permitem uma análise mais objetiva pelo intérprete. Outros princípios como a capacidade contributiva, a vedação ao confisco e a proporcionalidade exigem um maior esforço do intérprete, pois a construção das normas jurídicas depende, além daquela análise sistêmica que pressupõe a incursão do intérprete em todos os subdomínios da linguagem (especialmente no plano das significações normativas sistematicamente organizadas), o sopesamento dos valores envolvidos – cuja verificação deverá ser realizada considerando o contexto e a bagagem cultural do intérprete.

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Quando observadas as lides tributárias, especialmente aquelas que envolvem o confronto entre os valores vinculados à arrecadação fiscal e aos direitos do contribuinte (capacidade contributiva, vedação ao confisco, razoabilidade etc.), o modelo proposto pelas correntes positivistas dos séculos XIX e XX se revela inapto para a solução do caso, pois entendiam que havia uma correta e exclusiva forma de interpretação da norma, exigindo do julgador uma postura engessada.

O modelo atual, que considera a aplicação normativa oriunda da valoração do julgador (intérprete), permitindo que ele construa o melhor enquadramento entre fatos e normas, evidencia a necessidade de verificação do contexto fático e ponderação dos valores envolvidos em confronto norma jurídica expedida pela Administração Pública.

Os princípios constitucionais reforçam a ideia de que o direito deve ser utilizado como um instrumento para a consecução de determinados fins para a sociedade, se revelando incompatíveis com o raciocínio dedutivo. Entretanto, a constatação de que esses princípios realmente foram observados consiste em tarefa árdua, pois envolve, de acordo com Aurora Tomazini de Carvalho26, critérios ideológicos.

A eleição de um princípio constitucional pressupõe uma ponderação axiológica e demonstra a preferência do intérprete por um valor ou por um conjunto de valores específicos. Essa preferência cria uma hierarquia, pelo menos dentro de um contexto específico, afastando os princípios que privilegiem outros valores.

O acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 562.045/RS, cuja matéria envolvia a progressividade das alíquotas do Imposto sobre as Transmissões Causa Mortis e Doações de Bens e Direitos –

ITCMD, bem demonstra o exercício dessa ponderação de valores. Foi reconhecido naquele julgamento, por maioria dos votos, a constitucionalidade das leis estaduais que estabeleceram o regime da progressividade para o ITCMD. A tese prevalente no Recurso Extraordinário 562.045/RS sustentou que a progressividade não apenas seria compatível com o princípio da capacidade contributiva, mas se apresentaria como um mecanismo para a consecução do valor ali privilegiado (ideal de igualdade na esfera tributária).

O Ministro Ricardo Lewandowski, que também participou do julgamento do Recurso Extraordinário 562.045/RS, adotou posição contrária à tese prevalente e manifestou que se aplicaria ao ITCMD o mesmo entendimento adotado anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal para a progressividade do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis – ITBI, concluindo que não seria possível “presumir a capacidade econômica do contribuinte, simplesmente, a partir do valor do bem ou da operação tributada”. No mesmo voto, o Ministro registrou que a instituição de alíquotas progressivas para o ITCMD afrontava os princípios da capacidade contributiva, da isonomia e da vedação ao confisco:

Ademais, tendo em conta, sobretudo, os princípios da

isonomia tributária, da vedação do confisco, e da não-

afetação, abrigados, respectivamente, nos arts. 150, II e IV, e

167, IV, da Carta Magna, bem como o fato de caracterizarem-

se os impostos como exações desvinculadas de qualquer

atividade estatal específica, nos termos do art. 16 do

Código Tributário Nacional, não há como identificar, no

texto constitucional sob exame, uma autorização geral e

indiscriminada para a adoção da progressividade no que se

refere a toda a espécie de impostos.

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No mesmo sentido, segue o voto (vencido) do Ministro Marco Aurélio:

A progressividade das alíquotas do Imposto Causa Mortis olvida completamente a situação real patrimonial do sujeito passivo. Para esse tributo, mostra-se necessário algum grau de personalização na progressão das alíquotas. Sem a pessoalidade, haverá inevitavelmente injustiça. Tal como posta, a legislação estadual permite, por exemplo, que herdeiros, legatários ou donatários em situação econômica absolutamente distinta – um franciscano e outro argentário – sejam compelidos ao pagamento de igual valor do tributo, que poderá ser elevadíssimo, a depender dos bens recebidos. Essa óptica contraria, a um só tempo, o princípio da capacidade contributiva e o da isonomia tributária. Assim, mesmo que se admita, em tese, a progressividade em impostos reais, na espécie, a legislação estadual impugnada veio a violar o princípio maior da capacidade contributiva ao implementá-la do modo como procedeu. (realces não constam no original)

A Ministra Cármen Lúcia, cujo voto reconheceu a constitucionalidade da progressividade dessas alíquotas, rebate os trechos enunciados acima ao entender pela conformidade entre a materialidade do ITCMD e a alíquota progressiva, uma vez que aquele tipo de transmissão realizar-se-ia à título gratuito:

O imposto de transmissão causa mortis tem diferenças – segundo penso, Ministro Marco Aurélio – em relação ao outro imposto de transmissão, inter vivos, na medida em que, neste imposto de que estamos tratando, se considera sempre uma transmissão a título gratuito. Há necessariamente um engrandecimento do patrimônio do recipiente – ou da doação ou da herança – , enquanto que no imposto o inter vivos geralmente há onerosidade, ou seja, adquire-se o bem imóvel, mas, em contrapartida, adquire-se também a

obrigação do pagamento de um financiamento, por exemplo. (realce não consta no original)

Da mesma forma como as marcas da enunciação localizadas no documento normativo permitem que o intérprete verifique o procedimento e o órgão que o expediu, as razões proferidas naqueles votos registram o percurso constructivo realizado pelos julgadores e que culminaram na manutenção ou no afastamento da norma jurídica questionada. É por esses registros que os votos proferidos no Recurso Extraordinário 562.045/RS reforçam as premissas estabelecidas nos itens anteriores no sentido de que a construção das normas jurídicas é uma atividade intelectual e cada intérprete construirá o seu próprio sistema normativo.

Teoricamente, todos os Ministros que votaram no Recurso Extraordinário 562.045/RS tiveram acesso aos mesmos autos e às mesmas informações e, por terem adotado valores diversos, construíram normas jurídicas distintas – sustentando, de um lado, a manutenção da norma jurídica produzida pela Administração Pública e, de outro lado, o seu afastamento.

O discurso jurídico é, como já delimitado anteriormente, autorreferente e autossustentável, de modo que o próprio sistema do direito positivo prevê mecanismos diversos de revisão. A decisão expedida por um julgador pode ser submetida à revisão por outro julgador ou órgão colegiado, que também desenvolverá a mesma atividade interpretativa e poderá construir norma diversa. Por esta perspectiva, a ideia verdade poderia ser associada àquelas decisões que não são passíveis de reforma – em consonância com as normas processuais do sistema normativo.

Essa atividade exercida pelos órgãos jurisdicionais não se confunde com ativismo judicial nem se limita ao confronto das normas jurídicas expedidas pela Administração Pública com o

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plano constitucional, uma vez que aquela atividade constructiva pressupõe a análise do contexto que envolve a lide, a influência da bagagem cultural do intérprete e o sopesamento dos valores que serão suprimidos e privilegiados com a manutenção ou com o afastamento de uma determinada norma jurídica.

Não se identificam no modelo jurídico brasileiro características daquelas correntes realistas que qualificam os órgãos jurisdicionais como a principal fonte do direito. A figura do legislador e, em especial, do legislador constituinte se responsabiliza por expedir os enunciados prescritivos constitucionais e dar suporte à construção de todo o ordenamento jurídico. O modelo jurídico atual poderia, no máximo, se enquadrar numa versão mais moderada do Realismo Jurídico – identificada por Renato Lopes Becho27 como aquela que “não eleva as decisões judiciais como a fonte única do direito, mas destaca a importância da verificação do direito que está sendo praticado nos tribunais. O direito judiciário é apresentado como aquele que realmente é o definidor das relações jurídicas”.

Atualmente, a atuação do Poder Judiciário é livre para confirmar ou afastar as normas jurídicas produzidas pela Administração Pública ou pelo próprio legislador. Cabe ao Estado-Juiz, para a solução das lides tributárias, desenvolver aquela atividade constructiva, ingressando em todos os planos ou subdomínios da linguagem, avaliando o contexto e sopesando os valores envolvidos. As preferências depositadas pelo legislador constituinte originário e a própria atividade valorativa exercida pelo julgador se apresentam como importantes pilares para a atual relevância do Poder Judiciário como fonte de produção normativa, especialmente quanto ao exercício do controle de legalidade e de constitucionalidade das normas jurídicas.

A atividade desses órgãos jurisdicionais é subordinada à linguagem, de modo que o juiz adotará como referencial o

próprio sistema do direito positivo e somente conhecerá o contexto fático que lhe foi apresentado, desde que esse relato tenha sido produzido de acordo com as normas processuais e com a linguagem das provas.

6. Conclusão

O juiz produz normas jurídicas e não se encontra limitado a reproduzir o texto legal, tendo por superado aquela atuação engessada pelo raciocínio dedutivo. Embora o modelo jurídico brasileiro ainda carregue influências das correntes positivistas, especialmente pela importância que ainda é conferida à lei, o Poder Judiciário assume uma posição privilegiada28, com liberdade para solucionar as lides sopesando os valores ou preferências manifestadas no Texto Constitucional.

É o intérprete e, neste caso, o julgador que construirá a sua norma jurídica e o seu sistema normativo, considerando, além do contexto que o cerca, a sua própria bagagem cultural. Essa atividade intelectual tem a linguagem do discurso jurídico como o seu ponto de partida e limite, pois a construção das normas jurídicas deverá se iniciar com base no texto de lei e, da mesma forma, não será possível conhecer o que não integra este discurso – que não foi constituído em linguagem competente de acordo com as regras de produção normativa.

A adoção do Constructivismo Lógico-Semântico como método de estudo justifica a existência de decisões muitas vezes diversas, como é o caso dos votos proferidos no julgamento do Recurso Extraordinário 562.045/RS. O julgador é fonte do direito e se apresenta como a figura mais adequada para mediar as lides tributárias, de modo que a sua atuação nos moldes atuais fomenta, de forma diversa do que sugerem as correntes positivistas, a consecução do ideal de justiça e, por conseguinte, da segurança jurídica e da certeza do direito.

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Notações

01. CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 6ª Ed. São Paulo: Noeses, 2019, p. 10.

02. CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 6ª Ed. São Paulo: Noeses, 2019, p. 195-196.

03. CARVALHO, Aurora Tomazini de. O constructivismo lógico-semântico como método de trabalho na elaboração jurídica. In: Paulo de Barros Carvalho (Coord.). Constructivismo lógico-semântico vol. I. São Paulo: Noeses, 2014, p. 16.

04. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 24ª Ed. (edição digital). São Paulo: Saraiva, 2012.

05. “É também neste plano que o intérprete, ao estabelecer relações de subordinação, verifica a fundamentação jurídica das normas, detectando vícios de constitucionalidade e de legalidade.” (CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 6ª Ed. São Paulo: Noeses, 2019, p. 272)

06. “O plano sintático é formado pelo relacionamento que os símbolos linguísticos mantêm entre si, sem qualquer alusão ao mundo exterior ao sistema. O semântico diz respeito às ligações dos símbolos com os objetos significados, as quais, tratando-se da linguagem jurídica, são os modos de referência à realidade: qualificar fatos para alterar normativamente a conduta. E o pragmático é tecido pelas formas segundo as quais os utentes da linguagem a empregam na comunidade do discurso e na comunidade social para motivar comportamentos.” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 202)

07. MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes no direito tributário. 2ª Edição. São Paulo: Noeses, 2006, p. 01.

08. LINS, Robson Maia. Curso de direito tributário brasileiro. 1ª Ed. São Paulo: Noeses, 2019, p. 50.

09. CARVALHO, Aurora Tomazini. op. cit., p. 273.

10. TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. 4ª Ed. São Paulo: Noeses, 2016, p. 28.

11. Além das normas individuais e concretas e das normas gerais e abstratas, podemos destacar também as normas individuais e abstratas e as normas gerais e concretas – como é o caso, por exemplo, das normas que veiculam as respostas às consultas tributárias e das normas veículos introdutores, respectivamente.

12. Paulo Cesar Conrado bem resume esse processo de positivação, distinguindo as normas gerais e abstratas das individuais e concretas: “Partindo do binômio norma geral e abstrata e norma individual e concreta,

constatamos que o sentido deôntico, voltado que está ao condicionamento da conduta humana em suas relações intersubjetivas, só se perfaz, em regra, através de normas inscritas sob a última das rubricas, as individuais e concretas. Com efeito, sendo as normas gerais e abstratas desvestidas, justamente por sua generalidade a abstração, de condições de atuar no caso materialmente definido, a única forma de seus conteúdos ferirem a região das interações sociais, realizando-se o direito, é mediante a celebração intercalar e sucessiva de tantas normas quantas forem necessárias até que se chegue, por fim, à que ostenta máximo grau de concretude: é o que, assentados em Paulo de Barros Carvalho, chamamos de ‘processo de positivação’, fenômeno que se apresenta pelo desencadeamento de uma continuidade de regras, cujo marco inicial é uma dada norma geral e abstrata e a ponta final é, à sua vez e consoante sinalizado, uma norma individual e concreta, apta a atingir o caso especificado.” (CONRADO, Paulo Cesar. Processo Tributário. 3ª Ed. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 56-57)

13. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5ª Ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 175.

14. “Não há no texto legislado uma indicação do legislador de quais proposições devem ser consideradas como princípios. Não há pontuações, nem nada escrito de que este ou aquele anunciado configura-se como princípio. É o intérprete que, valorando o sistema, diz quais são os princípios, ou seja, quais proposições considera tão relevante a ponto de informara construção e estruturação de todas as outras.” (CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 6ª Ed. São Paulo: Noeses, 2019, p. 519)

15. PADILHA, Maria Ângela Lopes Paulino. As sanções no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2015, p. 96.

16. ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 3ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 35.

17. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, p. 53.

18. “Toda e qualquer norma jurídica tem como objeto a disciplinação de condutas entre sujeitos, o que torna redundante a expressão “regras de conduta”. Numa análise mais detalhada, no entanto, encontramos regras que aparecem como condição sintática para a criação de outras normas. Embora tais regras também tenham como objeto a disciplinação de relações intersubjetivas, a conduta por elas prescrita é específica, trata-se do comportamento de produzir novas unidades jurídicas. Este é o critério diferenciador que deve informar a classificação das normas de comportamento e de estrutura. Nestes termos, são de estrutura as regras que instituem condições, fixam limites e prescrevem a conduta que servirá de meio para a construção de outras regras. São de comportamento as normas que prescrevem todas as outras relações intersubjetivas, reguladas juridicamente, desde que não referentes à formação e transformação de unidades jurídicas.” (CARVALHO,

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Aurora Tomazini. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 6ª Ed. São Paulo: Noeses, 2019, p. 368)

19. “No entanto, esquecem os argutos conhecedores que ao postular haver normas que criam normas, direito que cria direito, numa proposição evidentemente circular, deixam o primeiro termo como resíduo inexplicado.” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5ª Ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 424)

20. “Por outras palavras: a lei está para o enunciado, assim como o procedimento legislativo, judicial ou administrativo está para a enunciação. Esta é a fonte do direito, ao passo que aquele é o produto.” (IVO, Gabriel. Norma jurídica – produção e controle. São Paulo: Noeses, 2006)

21. MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes no direito tributário. 2ª Edição. São Paulo: Noeses, 2006, p. 151.

22. “[...] pode-se dizer que a ascensão do government by policy propõe ao jurista problemas para os quais o conhecimento jurídico tradicional – interpretar leis e redigi-las, sustentar um argumento para um debate judicial ou desconstruir a coesão de argumentos sobre a interpretação das leis – oferece poucas respostas. A política pública é eminentemente finalística, isto é, está eminentemente voltada à consecução de fins concretos. Sua legitimidade, portanto, prende-se não apenas aos procedimentos seguidos para a sua feitura, mas também à plausibilidade de que os efeitos pretendidos possam ser de fato alcançados.” (PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno. Direito

e consequência no Brasil: em busca de um discurso sobre o método. In Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 262, jan./abr. 2013, p. 111)

23. ibidem, p. 116.

24. ibidem, p. 110.

25. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, v. 240, 2005, p. 27.

26. CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 6ª Ed. São Paulo: Noeses, 2019, p. 521-522.

27. BECHO, Renato Lopes. Filosofia do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 292.

28. Atualmente, o sistema normativo brasileiro se enquadraria na versão mais moderada do Realismo Jurídico proposta por Renato Lopes Becho: “A versão mais fraca ou moderada do realismo jurídico não eleva as decisões judiciais como a fonte única do direito, mas destaca a importância da verificação do direito que está sendo praticado nos tribunais. O direito judiciário é apresentado como aquele que realmente é o definidor das relações jurídicas.” (BECHO, Renato Lopes. Filosofia do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 292)

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A IMPUNIDADE IMPERA NA ESFERA EMPRESARIAL? UMA ANÁLISE CASUÍSTICA DA APLICAÇÃO DOS ARTIGOS 64 E 65 DA LEI DE RECUPERAÇÃO E FALÊNCIA

Marina Coelho Reverendo VidalAdvogada no escritório Padis Mattar Advogados. Mestre em Direito das Relações Internacionais pela PUC-SP.

RESUMO

Trata-se de estudo acerca da aplicação dos artigos 64 e 65 da Lei 11.101/2005 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que versam sobre a substituição do administrador ou acionista majoritário de empresas em recuperação judicial. Analisaremos com que frequência os interessados buscam se socorrer dos remédios previstos em tais artigos, quem são as partes que pedem a sua aplicação, com que frequência há o acolhimento dos pedidos e quais são as soluções empregadas nos casos concretos analisados.

ABSTRACT

This article contains an analysis of the application of articles 64 and 65 of Law 11,101/2005 by the State Court of Appeals of São Paulo, which concern the replacement of the officers or majority shareholders of companies in judicial recovery. We will analyze in which circumstances the interested parties resorted to the remedies provided in such articles, who are the parties that seek their application, the frequency in which the applications are granted and which remedies have been applied by judicial courts in the analyzed cases.

SEÇÕES DO ARTIGO

1. Introdução

2. Breve Análise da Aplicação dos Artigos 64 e 65 da LRF ao Longo do Tempo

3. As Diferentes Formas de Aplicação dos Artigos 64 e 65 da LRF

4. Reflexos da Aplicação dos Artigos 64 e 65 da LRF

5. Análise Comparativa: Varas Especializadas vs. Varas Comuns

6. Conclusão

Referências Bibliográficas

Notações

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Após um período de euforia e crescimento econômico, em que sociedades batizadas com sobrenomes de prestigiadas famílias brasileiras ganharam destaque

no cenário doméstico e internacional, o país (e muitas destas sociedades) vem enfrentando uma grave crise econômica, ética e moral. Descobriu-se que o crescimento acelerado de diversas empresas brasileiras era alicerçado em atos ímprobos, expostos em diversas operações conduzidas pela Polícia Federal.

Uma vez desmascarados os esquemas de corrupção, os órgãos brasileiros de controle e repressão, com fundamento na Lei 12.846/2013 (“Lei Anticorrupção”), na Lei 2.848/1940 (“Código Penal Brasileiro”), e na Lei 8429/92 (“Lei de Improbidade Administrativa”), deram início a uma série de ações voltadas à restituição de valores aos cofres públicos, outrora desfalcados pelos atos ilegais, à prisão dos responsáveis e à imposição de diversas penalidades pecuniárias às sociedades empresárias cujos administradores e sócios haviam praticado ilícitos.

Além da imposição das sanções legais, o quadro revelado desencadeou verdadeiro clamor público por transparência, probidade e justiça, o que fez com que se acendessem holofotes sobre questões de governança nas sociedades empresárias. Tais holofotes brilham com especial intensidade nas empresas em crise, uma vez que tal crise pode estar relacionada exatamente à falta de probidade de seus administradores e sócios, que, atrelada à má-gestão, pode vir a forçar a sociedade a buscar amparo legal para recuperação financeira.

A Lei 11.101/2005 (“LRF”) alberga mecanismos de ingerência na administração das empresas em recuperação, incluindo a possibilidade de substituição dos administradores e do “devedor” nas hipóteses previstas no artigo 64 da LRF.

Enquanto, até 2014, encontramos registro de apenas 7 (sete) casos no site do Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”) versando sobre a aplicação do artigo 64 da LRF02 (a metodologia da pesquisa será explicada abaixo), de 2014 a 2019, com a deflagração das denúncias públicas contra empresas de renome e o consequente aumento das discussões sobre questões de governança, identificamos 17 (dezessete) casos sobre o assunto. Ou seja: após a deflagração da Operação Lava Jato, em 2014, é possível notar o crescimento exponencial de pedidos de mudanças na gestão de sociedades em recuperação judicial com fundamento no artigo 64 da LRF, o que indica uma mudança na postura dos envolvidos nos processos de recuperação judicial em relação à gestão das sociedades em crise03/04.

A metodologia de pesquisa deste artigo envolveu uma extensa pesquisa de casos julgados pela 1ª e 2ª Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP. Os termos utilizados na pesquisa foram os seguintes: “art. 64 E recuperação judicial” “artigo 65 E recuperação judicial”, “gestor judicial E recuperação judicial” e “afastamento de sócio E recuperação judicial”. Dos julgados que

1. Introdução

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encontramos aplicando tais filtros, 24 (vinte e quatro) referem-se a casos em que o artigo 64 da LRF foi de fato suscitado.

Este artigo pretende analisar exatamente a mudança de postura dos atores da recuperação judicial em relação à gestão das sociedades em crise, ou seja, avaliar a reação dos credores, do Ministério Público, dos administradores judiciais e demais envolvidos à crescente preocupação com questões de governança no cenário de recuperações judiciais (Capítulo II). Em seguida, observaremos alguns aspectos quanto à forma de aplicação dos artigos 64 e 65 da LRF nos casos analisados (Capítulo III), e as consequências desta aplicação (Capítulo IV). Ao final, faremos breves considerações acerca do comportamento das varas especializadas e das varas cíveis em relação ao assunto (Capítulo V).

2. Breve Análise da Aplicação dos Artigos 64 e 65 da LRF ao Longo do Tempo

O artigo 64 da LRF estabelece como regra a manutenção do devedor na gestão das empresas que pedem recuperação judicial, com a permanência dos sócios e administradores no comando da sociedade05. Isso porque o pedido de recuperação judicial não deve

implicar, por si só, alteração da administração da empresa, o que configuraria verdadeira expropriação dos poderes de gestão do devedor e acabaria desmotivando o ajuizamento de recuperações judiciais06. Além disso, a preservação dos administradores em seus cargos assegura a manutenção na empresa daqueles que detêm a expertise necessária para gerir seus negócios, uma vez que foram responsáveis, muitas das vezes, por sua criação e desenvolvimento até o momento de crise07.

Há, contudo, exceções taxativas à regra de manutenção da gestão da empresa em recuperação, contidas nos incisos do artigo 64 da LRF08. Ou seja, apesar de estabelecer a regra de manutenção da gestão, o artigo 64 da LRF também alberga importante mecanismo de controle pelos credores e demais interessados de atos praticados em prejuízo da recuperação da empresa, impondo limites à gestão dos sócios e administradores, que podem ser afastados do comando nas situações descritas nos incisos I a IV de tal dispositivo legal.

Muito embora a sociedade em recuperação tenha mecanismos próprios de governança interna, acessíveis, em regra, aos seus próprios acionistas/sócios, a convergência de interesses inerente à recuperação judicial justifica a ingerência também dos credores09, do administrador judicial e do Ministério Público nas hipóteses previstas no artigo 64 da LRF10. Explica-se: se terceiros vão ter seus interesses sacrificados em prol da sobrevivência da empresa, que ao menos possam exigir lisura no processo de soerguimento desta empresa, com a punição de afastamento dos administradores ou do “devedor” nas hipóteses legalmente previstas.

Tratando-se de exceção, a substituição do “devedor” ou dos administradores, como esperado, não é vastamente aplicada nos processos de recuperação judicial.

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O que se nota dos poucos pedidos fundamentados no artigo 64 da LRF até 2014 é que não havia sequer provocação pelas partes interessadas para que houvesse mudanças na gestão da empresa em recuperação, o que explica as poucas determinações judiciais nesse sentido. Como explicado, encontramos apenas 7 (sete) casos em que houve provocação do juízo quanto à necessidade de substituição dos administradores ou do devedor11, 1 (um) deles apresentado por um acionista minoritário12 e os demais por credores. Conquanto tivessem a função legal de fiscalizar o processo de recuperação judicial, nem o Ministério Público nem o administrador judicial foram autores de qualquer pedido de afastamento com fundamento no artigo 64 da LRF até 2014.

Ainda em relação aos pedidos fundamentados no artigo 64 realizados até 2014, em 2 (dois) dos casos13 (ou 29% do total) – houve a instauração de perícia contábil para apuração das condutas relatadas pelos credores, o que fez com que o juízo

demorasse uma média de 53 (cinquenta e três) meses para apreciar o pedido de substituição14.

Em apenas 3 (três) dos casos até 2014 (42% do total) foi determinada a substituição dos administradores ou do devedor15, sendo que em 1 (um) caso a substituição foi necessária em razão da renúncia voluntária dos antigos administradores16 Excluindo-se esse caso, em que o juízo não tinha alternativa senão suprir o vazio na administração, a porcentagem de casos em que houve substituição dos administradores ou do devedor com fundamento no artigo 64, incisos I a IV, cai para 33%.

Considerando-se os 17 (dezessete) casos em que houve discussão quanto à aplicação dos artigos 64 e 65 da LRF entre 2014/2019, em 8 (oito) deles os credores pediram a substituição dos administradores ou do devedor17, em 2 (dois) o pedido foi realizado por acionistas/sócios minoritários18, em 2 (dois) pelo administrador judicial19, em 3 (três) pelo Ministério Público20, e em 2 (dois) houve decisão de ofício pelo juiz da causa21. Houve,

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portanto, uma maior participação do Ministério Público, dos administradores judiciais e do próprio juízo após 2014.

Além da participação maior de diferentes sujeitos da recuperação judicial, houve um perceptível um aumento na porcentagem de aplicação das medidas legais previstas nos artigos 64 e 65 da LRF após 2014. A porcentagem de casos em que foram determinadas alterações na gestão aumentou para 63% nos casos entre 2014/2019, com a substituição dos administradores e/ou do devedor e a implementação de medidas de cogestão em 10 (dez) dos 17 (dezessete) casos analisados22.

Em nenhum dos casos em que o pedido foi realizado após 2014, houve a instauração de perícia judicial.

A conclusão dos dados acima é que a preocupação com questões de governança é cada vez mais evidente nos processos de recuperação judicial e que os juízes cada vez mais vêm determinando a implementação de medidas de controle de atos abusivos pelos administradores e sócios do

devedor, inclusive com uma maior flexibilização do ônus da prova imposto aos sujeitos que requerem a aplicação das medidas previstas nos artigos 64 e 65 da LRF.

3. As Diferentes Formas de Aplicação dos Artigos 64 e 65 da LRF

Quando o administrador pratica uma das ações descritas no artigo 64 da LRF de modo autônomo, ou seja, sem contar com o incentivo ou participação dos acionistas/sócios da empresa em recuperação, o parágrafo único do referido artigo prevê uma solução bastante simples: a destituição do administrador e sua substituição nos termos dos atos societários da sociedade ou do plano de recuperação judicial. Ou seja, o administrador que pratica uma das condutas previstas no artigo 64 é afastado e outro é indicado para atuar em seu lugar pelos próprios acionistas/sócios ou pelos credores23.

A solução do parágrafo único do artigo 64 da LRF, apesar de representar uma forma mais moderada de ingerência na gestão

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da sociedade, uma vez que respeita os mecanismos para eleição de administradores pré-estabelecidos, ou ao menos leva em consideração a prerrogativa exclusiva do devedor de propor o plano de recuperação judicial prevendo a alteração da administração para aprovação dos credores, não foi empregada em nenhum dos casos que analisamos24. A inexistência de aplicação da solução proposta pelo artigo 64 da LRF parece estar relacionada a dois fatores. O primeiro fator é o tipo societário das empresas em recuperação judicial. Dos 13 (treze) casos em que houve determinação de mudanças na administração entre 2005 e 2019, apenas 3 (três) envolviam sociedades anônimas, que muitas vezes possuem um caráter impessoal e administração profissional. Em sociedades limitadas e outros tipos empresários, é mais comum que a figura do sócio se confunda com a figura do administrador, hipótese em que não faria sentido o afastamento apenas dos administradores.

O segundo fator relaciona-se ao fato de a nomeação dos administradores ser feita, em regra, pelos próprios acionistas ou sócios, razão pela qual há de se presumir que haja ao menos aquiescência destes em relação aos atos praticados por aqueles. Dessa forma, a substituição dos administradores nos termos dos atos societários resultaria em permissão para que os acionistas ou sócios indicassem pessoas que praticariam os mesmos atos que deram ensejo à substituição, o que tornaria a medida ineficaz25.

Para evitar a substituição dos administradores por outros que praticariam atos semelhantes, os artigos 64 e 6526 preveem a hipótese de destituição do próprio “devedor”, com a sua substituição temporária pelo administrador judicial e, após deliberação da Assembleia de Credores, pelo gestor escolhido pelos credores representantes da maioria simples dos créditos submetidos à recuperação judicial.

Ou seja, interpretando-se literalmente os artigos 64 e 65 da LRF, incorrendo os sócios/acionistas nas condutas previstas

no artigo 64 da LRF, todo o poder de controle da atividade empresarial seria transmitido a um terceiro, que conduziria a empresa enquanto perdurasse a recuperação judicial.

Foi essa a solução empregada em 10 (dez) dos casos em análise, ou seja, em 77% de todos os casos em que houve determinação de mudança na gestão27. Apenas em 3 (três) casos (23%), foram determinadas medidas alternativas, que serão explicadas adiante28. Embora em 77% dos casos o artigo 65 da LRF tenha sido aplicado (na medida em que houve a substituição do devedor), há peculiaridades em relação à indicação do gestor judicial. Em 1 (um) dos casos o juiz determinou a substituição do devedor pelo acionista minoritário29. Em 4 (quatro) casos houve a nomeação de gestor temporário, com a posterior eleição em Assembleia de Credores do gestor permanente (em apenas 1 (um) deles o gestor temporário foi confirmado no cargo)30. Nos 5 (cinco) casos restantes, o juiz indicou o gestor judicial e não houve Assembleia de Credores para confirmá-lo.

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Os 3 (três) casos em que houve a implementação de medidas alternativas merecem comentários específicos. Primeiro, em todos eles as medidas foram moldadas pelos próprios juízes para as circunstâncias específicas dos casos, não refletindo o que havia sido solicitado pelos interessados. No caso Dolly, os administradores tiveram seus poderes limitados e foi indicado cogestor pelo juízo31. No caso Love Story, ao invés de indicar um cogestor, determinou-se que alguns atos de gestão só poderiam ser praticados com a participação da terceira administradora (a sócia que havia provocado a aplicação do artigo 64 da LRF)32. No caso Agroz, por fim, houve a nomeação de “gestor judicial para acompanhamento e administração da referida empresa, verificando a legalidade de suas contas e gestão“33.

Em todos os 3 (três) casos, ponderou-se a necessidade de um maior controle dos atos dos administradores e sócios e os possíveis prejuízos relacionados ao afastamento daqueles que detinham as informações necessárias para gerir o negócio. A adoção das medias alternativas, ou intermediárias, justifica-se no jargão “quem pode mais, pode menos”; se o artigo 64 da LRF permite ao juiz afastar por completo os administradores da empresa em prol de sua sobrevivência, ao certo também alberga a possibilidade de limitação dos poderes de gestão.

As medidas alternativas, que garantem a manutenção da gestão ao mesmo tempo em que asseguram o maior controle da administração da empresa em crise, não são uma inovação do judiciário brasileiro. A doutrina norte-americana há muito discorre sobre os riscos do debtor-in-possession, posicionando-se pela adoção de soluções alternativas, como a indicação de um trustee com poder de veto em relação a determinados atos de gestão34. Já no Canadá, adota-se a figura do “Monitor”: um terceiro indicado pelo juízo não para praticar os atos de gestão, mas sim para monitorar as atividades e reportar eventuais

irregularidades ao juízo (assemelha-se à figura do gestor indicado no Caso Agroz). Por fim, parte da doutrina brasileira defende que a palavra “devedor” no artigo 64 da LRF não poderia ser interpretada de forma literal, na medida em que a indicação de terceiro para gerir a sociedade poderia prejudicar eventuais acionistas/sócios minoritários que não tomaram partido dos atos abusivos35.

Para aqueles que criticam a interpretação literal do artigo 64 da LRF, a expressão “devedor” deveria ser lida como abarcando o sócio ou acionista controlador das sociedades, mas não a pessoa jurídica do devedor. Dessa forma, ficariam suspensos temporariamente os direitos de voto de acionistas/sócios que praticaram os abusos taxativamente previstos da lei (ou que instruíram e/ou compactuaram com atos praticados pelos administradores), mantendo-se o devedor, ou seja, a pessoa jurídica sob o manto da qual se desenvolvem as atividades de empresa e os administradores que não teriam praticado nenhum ato abusivo na condução das atividades da empresa36.

As críticas feitas a essa interpretação alternativa se amparam no histórico legislativo dos artigos 64 e 65 da LRF, já que o projeto de lei previa expressamente a possibilidade de suspensão dos direitos dos sócios. Para aqueles que se opõem à solução, o fato de o Executivo ter vetado tal previsão legal demonstra a vontade legislativa de que não fosse possível a suspensão do direito de voto dos sócios/acionistas37. Além disso, em alguns casos, a suspensão do direito de voto poderia inviabilizar determinadas deliberações, como, por exemplo, nas hipóteses em que o Código Civil exige um quórum qualificado para as deliberações nas sociedades limitadas.

Apesar da relevância da discussão do ponto de vista acadêmico, não encontramos nenhum caso em que o direito de voto dos sócios ou acionistas foi suspenso em razão da aplicação do artigo 64 da LRF.

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A questão foi discutida apenas como pano de fundo no caso GNV Aroeiras, em que a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial afirmou, com fundamento na doutrina de EDUARDO SECCHI MUNHOZ, que “o art. 64, ao empregar a expressão ‘devedor’, aplica-se: (...) no caso de sociedades de responsabilidade limitada personificadas, à própria sociedade, e não aos seus sócios”38.

No caso Schahin, também en passant, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial afirmou o contrário, tendo expressado que “tem-se a possibilidade de afastamento do administrador e mesmo do próprio sócio, num caso mediante sua substituição, no outro pela suspensão do direito de voto em assembleia”39. O mesmo aconteceu nos casos Dolly e Love Story, em que o juiz afirmou, com fundamento em lições de GUSTAVO LACERDA FRANCO40, ser possível a suspensão dos direitos dos sócios caso fossem verificados os abusos descritos no artigo 64 da LRF e a medida se mostrasse eficaz para assegurar a recuperação da empresa.

4. Reflexos da Aplicação dos Artigos 64 e 65 da LRF

Considerando-se o universo de 9 (nove) casos41 em que houve indeferimento do pedido de substituição do devedor ou dos administradores, em 3 (três) deles foi decretada a falência do devedor, 2 (dois) em razão do descumprimento do plano42 e 1 (um), pois não houve aprovação do plano pelos credores43. Em 5 (cinco) casos a recuperação judicial ainda está em curso (período de fiscalização)44 e em apenas 1 (um) foi encerrada45.

Considerando-se o universo de 13 (treze) casos em que houve deferimento do pedido de substituição dos sócios ou administradores, ou a imposição de medidas alternativas, em 5 (cinco) houve a falência (2 (dois) casos em razão do

descumprimento do plano (artigo 73, IV da LRF)46, 1 (um) por deliberação da Assembleia Geral de credores (artigo 73, I da LRF)47 e 2 (dois) com fundamento no artigo 94 da LRF48).

Ou seja: houve uma taxa de falência ligeiramente menor nas recuperações judiciais em que o juízo não interferiu na administração, apesar de terem sido provocados a tanto por terceiros.

Em relação aos 5 (cinco) casos em que houve falência após a determinação de substituição da administração, a média de tempo entre o ajuizamento da recuperação judicial e a substituição dos administradores foi de 30 (trinta) meses. Após a substituição dos administradores, as empresas faliram em uma média de aproximadamente 17 (dezessete) meses. Em todos os casos, a conduta imputada era, entre outras, a de “descapitalizar injustificadamente a empresa ou realizar operações prejudiciais ao seu funcionamento regular”49.

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O que se nota é que, muito embora uma quantidade razoável de empresas tenha falido após a determinação de modificações na gestão, em tais casos houve uma demora considerável até que a substituição fosse determinada, o que pode ter contribuído para a falência das empresas; principalmente se considerarmos que a aplicação do artigo 64, IV “c” da LRF, que fundamentou todos os casos ora comentados, significa que de fato houve dilapidação dos ativos da companhia antes da substituição ser implementada.

Em um caso específico o juízo afirmou expressamente que “o pedido de recuperação judicial não tem como prosperar diante da administração realizada ao longo desses anos”, imputando aos administradores substituídos a responsabilidade pela falência da empresa50. Neste caso houve o transcurso de 86 (oitenta e seis) meses entre o início da recuperação judicial e a

determinação de substituição. Depois disso, em menos de dois meses, foi decretada a falência.

Trata-se, é claro, de exemplo extremo, mas que demonstra como é necessário que os sujeitos do processo se atentem à forma com que a companhia é gerida antes e durante o processo de recuperação judicial, e não apenas observem aspectos econômicos com vistas ao pagamento dos créditos. A demora na provocação do juízo pelos interessados, ou do próprio juízo para apreciar eventual pedido ou determinar de ofício medidas que limitem abusos na gestão, pode significar a falência de empresas em tese recuperáveis, não fossem os atos de seus sócios ou administradores. Feitas tais considerações, a verdade é que a porcentagem de convolações em falência nos casos em que não há qualquer discussão acerca do artigo 64 da LRF continua razoavelmente menor51. São duas as possíveis explicações. Nos casos em que há deferimento do pedido de substituição dos sócios ou administradores, reconhece-se que havia abusos na gestão, que podem ter se prolongado por tempo indefinido antes do início da recuperação judicial, prejudicando a empresa de forma irremediável. Ou seja, para tais empresas, governadas à margem da lisura durante anos, a recuperação se inicia, não há dúvida, um degrau abaixo, sendo necessário superar fatores de crise que podem se mostrar insuperáveis ao longo do processo de recuperação judicial.

A segunda explicação é que o afastamento de pessoas que conhecem e detêm a expertise do negócio prejudica a empresa em recuperação. Uma forma de evitar o afastamento daqueles que detêm a expertise sem lhes permitir que continuem a praticar os atos elencados no artigo 64 da LRF é a indicação de cogestores, implementada nos casos Love Story, Dolly e Agroz. A eficácia das medidas poderá ser mais bem compreendida nos próximos anos, já que foram recentemente determinadas.

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5. Análise Comparativa: Varas Especializadas vs. Varas Comuns

Nossa pesquisa revelou que há mais processos debatendo a aplicação do artigo 64 da LRF nas varas do interior (15 (quinze) casos) do que nas varas da capital de São Paulo (9 (nove) casos).

Em relação aos processos da capital, houve a determinação de mudanças na gestão em 1ª instância em 4 (quatro) de 9 (nove) casos, ou seja, em 44% do total. Já nas varas do interior, há 10 (dez) casos que que foram determinadas alterações na gestão das sociedades, o que representa 67% do total dos casos.

Dos dados acima, podemos inferir que as varas da capital aplicam com maior ponderação o artigo 64 da LRF – principalmente se considerarmos que em 2 (dois) dos 4 (quatro) casos foram nomeados cogestores, com a manutenção dos antigos administradores na empresa.

6. Conclusão

Explicamos como o número de pedidos com fundamento no artigo 64 da LRF evoluiu ao longo do tempo e como o comportamento dos juízes também parece ter sofrido alguma alteração, com uma maior ponderação acerca do real benefício de se manter na gestão sócios e administradores que não são probos. Explicamos também como os artigos 64 e 65 foram aplicados nos casos analisados, passando brevemente por alguns aspectos controversos. Por fim, analisamos o destino das recuperações judiciais que foram objeto de análise.

A primeira conclusão que tiramos de nossa análise é de que, apesar do relativo aumento no número de casos sobre o assunto desde 2014, ainda é tímida a aplicação dos artigos 64 e 65 da LRF. Mais tímida ainda é a atuação de outros

interessados que não os credores, responsáveis pela grande maioria dos pedidos fundamentados nos artigos 64 e 65 da LRF. E isso apesar de outros atores, como o administrador judicial e acionistas minoritários, terem acesso a informações mais robustas sobre a gestão da companhia, o que lhes permitiria, em tese, identificar eventuais abusos mais facilmente.

Os credores, acionistas minoritários, administradores judiciais e o Ministério Público não deveriam se emudecer ao se deparar com fatos que devem ensejar mudanças na gestão de sociedades em recuperação. A manutenção de administradores e sócios inidôneos na administração da empresa pode prejudicar todos os sacrifícios individuais feitos ao longo do processo de recuperação judicial, resultando na falência de empresas recuperáveis não fosse a má-gestão.

Em relação à aplicação dos artigos 64 e 65 da LRF, notamos que a solução amplamente aplicada é a substituição do próprio devedor, conforme determina a literalidade do artigo 65 da LRF. Contudo, novos métodos de controle da gestão das empresas em recuperação estão surgindo, que podem representar um equilíbrio entre o receio de perder-se o know-how do negócio e os riscos ao se manter no poder pessoas que não estão comprometidas com o soerguimento da empresa em recuperação.

Isso feito, resta a pergunta: qual é o efeito prático das decisões proferidas nos casos analisados? A premissa de que é benéfica a manutenção da gestão sem grandes interferências mostrou-se correta?

Como o índice de convolação em falência das recuperações em que não houve ingerência na gestão da empresa em crise continua menor, é possível dizer que a premissa se mostrou correta e que há um benefício em se manter no poder aqueles que detém o know-how da empresa. Contudo,

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há de se lembrar, como explicado, que o resultado pode estar relacionado à gestão fraudulenta das sociedades em recuperação antes das alterações na administração serem implementadas e não às alterações em si, o que, no mínimo, lança dúvidas sobre a premissa.

O fato de o índice de falência das empresas em que houve debate acerca do artigo 64 LRF ser razoavelmente maior do que índices gerais demostra, na verdade, que é preciso se atentar à administração das empresas em recuperação judicial, evitando-se prestigiar sócios e administradores que não atuam em prol do interesse social. Sempre que há indícios de irregularidade, tais indícios devem ser apurados com cuidado e celeridade, de modo a assegurar a efetividade

da recuperação por meio da implementação das medidas previstas nos artigos 64 e 65, ou de medidas alternativas mais razoáveis, que evitem a prática de abusos.

Da análise dos casos em que houve decretação de falência, restou evidente que a demora para apreciar a necessidade de alterações na gestão pode ser tão prejudicial quanto a substituição imediata dos gestores da sociedade. Em que pesem os benefícios de se manter intacta a gestão, é certo que os malefícios relacionados a gestões fraudulentas extrapolam tais benefícios, sendo necessário que o Judiciário pondere todos os interesses em jogo ao decidir quanto à aplicação dos artigos 64 e 65 da LRF.

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Notações

01. Recuperação judicial de ARALCO S/A – INDUSTRIA E COMERCIO, processo n. 0016609-74.2014.8.26.0032, em trâmite perante a 2ª Vara Cível do Foro de Araçatuba (caso “Aralco”); recuperação judicial de OAS S/A & Outras, processo no. 1030812-77.2015.8.26.0100, em trâmite perante a 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais – Foro Central Cível (caso “Grupo OAS”); recuperação judicial de GNV Recuperação judicial de ARALCO S/A – INDUSTRIA E COMERCIO, processo n. 0016609-74.2014.8.26.0032, em trâmite perante a 2ª Vara Cível do Foro de Araçatuba (caso “Aralco”); recuperação judicial de OAS S/A & Outras, processo no. 1030812-77.2015.8.26.0100, em trâmite perante a 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais – Foro Central Cível (caso “Grupo OAS”); recuperação judicial de GNV AROEIRAS LTDA, processo n. 0019334-55.2013.8.26.0037, em trâmite perante a 1ª Vara Cível do Foro de Araraquara (caso “GNV”); recuperação judicial de Alcana Destilaria de Álcool de Nanuque S/A & Outros, processo n. 0151873-29.2009.8.26.0100, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível (caso “Grupo Infinity”); Recuperação judicial da H-BUSTER SÃO PAULO INDÚSTRIA E COMÉRCIO S/A, processo n. 0011305-59.2013.8.26.0152, em trâmite perante a 3ª Vara Civel do Foro de Cotia (caso “H-Buster”); recuperação judicial de DEV Mineração S.A. – Em Recuperação Judicial, processo n. 1088747-75.2015.8.26.0100, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível (caso “Zamin”); recuperação judicial da Companhia Schahin de Ativos & Outras, processo n. 1037133-31.2015.8.26.0100, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível (caso “Grupo Schahin”); recuperação judicial da Construtora Beter S/A, processo n. 0646687-02.2008.8.26.0100, em trâmite perante a 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível (caso “Beter”); recuperação judicial de Edra do Brasil Indústria e Comércio Ltda e outras, processo n. 1004365-83.2015.8.26.0510, em trâmite perante a 4ª Vara Cível do Foro de Rio Claro (caso “Edra”); recuperação judicial da Altaneira Indústria e Comércio de Bebidas Ltda., processo n. 0019127-84.2011.8.26.0309 (309.01.2011.019127), em trâmite perante a 5ª Vara Cível do Foro de Jundiaí (caso “Altaneira”); recuperação judicial da Realy Administradora de Bens Ltda., processo n. 1009799-95.2015.8.26.0302, em trâmite perante a 1ª Vara Cível do Foro de Jaú (caso “Realy”); recuperação judicial de Paulo Cesar Fleury de Oliveira Eireli, processo n. 1006074-61.2016.8.26.0400, em trâmite perante a 1ª Vara Cível do Foro de Olímpia (caso “Paulo Cesar Fleury de Oliveira”); recuperação judicial de Urbplan Desenvolvimento Urbano S/A & Outras, processo n. 0046096-40.2018.8.26.0100, em trâmite perante a 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível (caso “Ubplan”); recuperação judicial de Hands Distribuidora – EIRELI, processo n. 0004530-10.2012.8.26.0137, em trâmite perante a Vara Única do Foro de Cerquilho (caso “Hans”); recuperação judicial de Dettal – Part Participações, Importação, Exportação e Comércio Ltda., processo n. 1064813-83.2018.8.26.0100, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível (caso

“Dolly”); recuperação judicial de Aslan Comércio de Armarinhos Ltda., processo n. 1054889-19.2016.8.26.0100, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível (caso “Aslan”); recuperação judicial de BAR E RESTAURANTE DANÇANTE MIMAR LTDA – EPP, processo n. 1080970-34.2018.8.26.0100, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível (caso “Love Story”); recuperação judicial de Ecco do Brasil Informática e Eletrônicos Eireli “Em Recuperação Judicial” & Outras, processo n. 1003324-71.2016.8.26.0114, em trâmite perante a 9ª Vara Cível do Foro de Campinas (caso “Grupo Ecco”); recuperação judicial da MONDELLI INDÚSTRIA DE ALIMENTOS S/A, processo n. 0004265-12.2012.8.26.0071, em trâmite perante a 1ª Vara Cível do Foro de Bauru (caso “Modelli”); recuperação judicial de Cole Alimentos Industria, Comercio e Armazenagem Eireli (em recuperação judicial), processo n. 1005312-10.2017.8.26.0271, em trâmite perante a 2ª Vara Cível do Foro de Itapevi (caso “Cole”); recuperação judicial de Manoel Participações e Empreendimentos S.a., processo n. 281.01.2011.009372 7, em trâmite perante a 2ª Vara Cível do Foro de Itatiba (caso “Manoel Participações e Empreendimentos”); recuperação judicial da Agroz – Administradora de Bens Zurita Ltda. e outras, processo n. 2239797-38.2018.8.26.0000, em trâmite perante a 1ª Vara Cível do Foro de Araras (caso “Agroz”); recuperação judicial de Usina Global Goiás S A, processo n. 0000136-51.2011.8.26.0506, em trâmite perante a 10ª Vara Cível de Ribeirão Preto (caso “Usina Global Goiás”); recuperação judicial de Cinalp Produtos Alímenticios Ltda., processo n. 309.01.2010.031107-4, em trâmite perante a 1ª Vara Cível do Foro de Jundiaí (caso “Cinalp”).

02. Segundo nossa pesquisa, a média de tempo para o julgamento de recursos interpostos contra decisões que versam sobre o artigo 64 da LRF é de 11 (onze) meses. Dessa forma, como a metodologia empregada envolveu a pesquisa de casos em que já houve decisão em segunda instância, é possível que alguns casos de 2019 não tenham sido analisados.

03. A crise nacional de 2014 e 2015 teve um forte impacto no aumento dos pedidos de recuperação judicial do país (Weiseberg, Ivo, et. al., Recuperação Judicial no Estado de São Paulo – 2ª Fase do Observatório de Insolvência, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3378503, consulta em 11 de novembro de 2019, p. 11).

04. A regra é conhecida no direito norte-americano como “debtor-in-possession”.

05. Sobre a questão, o professor doutor MARCELO BARBOSA SACRAMONE: “A regra assenta-se na premissa de que, ainda que esteja em crise econômico-financeira, o devedor é o proprietário dos ativos e não poderia ser, nem pelos próprios credores, expropriado. A manutenção do devedor na condução de sua atividade incentiva-o a requerer a recuperação judicial por ocasião de sua crise, na medida em que não haveria risco de perda do controle de seus bens. Outrossim, a manutenção do devedor na condução de sua empresa mostra-se economicamente mais eficiente.” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2018).

06. SPINELLI, Luis Felipe. Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Almedina, 2019, p. 272. A mesma lógica é aplicada na legislação americana

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(chapter 11). Nesse sentido: HAHN, David. Concentrated ownership and control of corporate reorganizations. JCLS 4, 2004.

07. “Artigo 64. Durante o procedimento de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial, sob fiscalização do Comitê, se houver, e do administrador judicial, salvo se qualquer deles:

I – houver sido condenado em sentença penal transitada em julgado por crime cometido em recuperação judicial ou falência anteriores ou por crime contra o patrimônio, a economia popular ou a ordem econômica previstos na legislação vigente;II – houver indícios veementes de ter cometido crime previsto nesta Lei;III – houver agido com dolo, simulação ou fraude contra os interesses de seus credores;IV – houver praticado qualquer das seguintes condutas:a) efetuar gastos pessoais manifestamente excessivos em relação a sua situação patrimonial;b) efetuar despesas injustificáveis por sua natureza ou vulto, em relação ao capital ou gênero do negócio, ao movimento das operações e a outras circunstâncias análogas;c) descapitalizar injustificadamente a empresa ou realizar operações prejudiciais ao seu funcionamento regular;d) simular ou omitir créditos ao apresentar a relação de que trata o inciso III do caput do artigo 51 desta Lei, sem relevante razão de direito ou amparo de decisão judicial;V – negar-se a prestar informações solicitadas pelo administrador judicial ou pelos demais membros do Comitê;VI – tiver seu afastamento previsto no plano de recuperação judicial.Parágrafo único. Verificada qualquer das hipóteses do caput deste artigo, o juiz destituirá o administrador, que será substituído na forma prevista nos atos constitutivos do devedor ou do plano de recuperação judicial.”

08. ABRÃO, Carlos Henrique. A Crise da Empresa e os Meios Recuperacionais. Revista de Direito Recuperacional e Empresa, vol. 1/2016, Jul/ Set de 2016, DTR\2016\21744.

09. A participação dos credores também é assegurada em outros dispositivos legais da Lei de Recuperação e Falências. Maurício Menezes explica que o Comitê de Credores, por exemplo, guarda semelhanças com o Conselho Fiscal e com o Conselho de Administração: “A própria estrutura e as funções do Comitê de Credores seriam, segundo Rachel Sztajn, semelhantes às do Conselho Fiscal das companhias.81 Logo, pode-se aqui fazer referência às seguintes atribuições do Comitê de Credores, todas previstas em lei: (i) fiscalização das atividades e exame das contas do administrador judicial (artigo 27, I, “a”, da Lei n. 11.101/2005); (ii) apuração e emissão de parecer sobre quaisquer reclamações dos interessados (artigo 27, I, “d”); (iii) comunicação ao juiz, caso detecte violação dos direitos ou prejuízo aos interesses dos credores (artigo 27, I, “c”); (iv) requisição ao juiz da convo – cação da assembleia geral de credores (artigo 27, I, “e”). Sem dúvida, há interessante proximidade do perfil funcional do Comitê de Credores com aquele do Conselho Fiscal, o qual, nas

palavras de Modesto Carvalhosa, deixou de ser mero homologador de contas da administração para figurar como verdadeiro órgão opinador, fiscalizador e denunciador de irregularidades, principalmente em razão do aumento do poder-dever individual do conselheiro pelas reformas que alteraram a redação do artigo 163, da Lei n. 6.404/1976, promovidas pela Lei n. 9.457/1997 e pela Lei n. 10.303/2001. (...) Por outro lado, pondere-se que, em certa medida, é defensável sustentar a proximidade das funções do Comitê de Credores com aquelas que a lei societária reserva para o conselho de administração das companhias. “ (MENEZES, Maurício Moreira Mendonça de. O poder de controle nas companhias em recuperação judicial. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 97)

10. Casos GNV Aroeiras, H-Buster, São Manoel Participações Empreendimentos, Beter, Mondelli, Usina Gloal Goióas e Cinalp.

11. Caso Beter.12. Casos GNV Aroeiras e H-Buster.13. Caso H-Buster. A demora na apreciação dos pedidos de substituição em

razão da instauração de perícia, na prática, poderia ensejar o esvaziamento do patrimônio das empresas caso os credores estivessem corretos em suas acusações (ambos os pedidos eram fundamentados na dilapidação do patrimônio da companhia, conforme art. 64, IV, “c” e “d” da LRF). Em um deles, houve a convolação em falência, com fundamento no artigo 73, IV da LRF (descumprimento do plano).

14. Caos Modelli, Usina Global Goiás e Cinalp.15. Caso Usina Global Goiás16. Casos Aralco Grupo OAS, Grupo Infinity, Grupo Schahin, Edra, Paulo Cesar

Fleury de Oliveira, Grupo Urbplan e Cole Alimentos.17. Caso Love-Story e caso Zamin. Nos dois casos em que a provocação se

deu pelo acionista minoritário, o TJSP confirmou sua legitimidade para realizar o pedido.

18. Caso Realy e caso Hands Distribuidora.19. Casos Dolly, Altaneira e Grupo Ecco.20. Casos Aslan e Agroz.21. Casos Hands, Agroz, Grupo Ecco, Altaneira, Paulo Cesar Fleury de Oliveira

Eireli, Realy, Edra, Zamin, Love Story e Dolly.22. Artigo 64, parágrafo único da LRF: “Verificada qualquer das hipóteses do

caput deste artigo, o juiz destituirá o administrador, que será substituído na forma prevista nos atos constitutivos do devedor ou do plano de recuperação judicial.”

23. No caso Aslan o juiz chegou a determinar, em primeira instância, a substituição dos administradores em razão do não pagamento de débitos tributários. A decisão, contudo, foi imediatamente reformada pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, que afirmou que tais fatos não poderiam ensejar a substituição dos administradores.

24. GOLVÊA, João Bosco Cascardo. Recuperação e Falências. Lei n. 11.101/2005. Comentários artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

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25. “Artigo 65. Quando do afastamento do devedor, nas hipóteses previstas no artigo 64 desta Lei, o juiz convocará a assembléia-geral de credores para deliberar sobre o nome do gestor judicial que assumirá a administração das atividades do devedor, aplicando-se-lhe, no que couber, todas as normas sobre deveres, impedimentos e remuneração do administrador judicial. § 1º O administrador judicial exercerá as funções de gestor enquanto a assembléia-geral não deliberar sobre a escolha deste. § 2º Na hipótese de o gestor indicado pela assembléia-geral de credores recusar ou estar impedido de aceitar o encargo para gerir os negócios do devedor, o juiz convocará, no prazo de 72 (setenta e duas) horas, contado da recusa ou da declaração do impedimento nos autos, nova assembléia-geral, aplicado o disposto no § 1º deste artigo.”

26. Casos Hands, Aslan, Grupo Ecco, Altaneira, Paulo Cesar Fleury de Oliveira, Realy, Edra, Zamin, Modelli, Usina Global Foipas, Cinalp.

27. Casos Agroz, Schahin e Dolly.

28. Caso Zamin.

29. Casos Grupo Ecco, Paulo Cesar Fleury de Oliveira, Realy e Edra.

30. Não houve a interposição de recurso contra a decisão que determinou a cogestão da sociedade, o que indica que tanto os credores quanto o próprio devedor concordaram com a utilidade da medida, que resultou em um maior grau controle dos atos praticados pelos administradores, sem comprometer algumas particularidades da administração.

31. Houve, neste caso, a interposição de recurso, mas a decisão foi confirmada pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP (Agravo de instrumento n. 2011725-88.2019.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Alexandre Lazarini, j. em 26.9.2019). Após a decisão, o devedor contratou empresa especializada para realizar a sua gestão administrativa, reconhecendo expressamente que a crise da empresa se relacionava à má-gestão dos antigos administradores (fls. 2286 dos autos). Apesar disso, não há previsão específica quanto às medidas de gestão que serão empregadas pela sociedade no plano de recuperação judicial já aprovado (fls. 2141/2159 dos autos).

32. A medida foi confirmada pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, após a interposição de recurso (Agravo de Instrumento n. 2239797-38.2018.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Maurício Pessoa, j. em 26.9.2019).

33. HAHN, David. Concentrated ownership and control of corporate reorganizations. JCLS 4 (2004).

34. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 282. FRANCO, Gustavo Lacerda. A condução da sociedade em recuperação judicial: análise da solução brasileira à luz dos modelos globais e dos seus pressupostos. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2018, p. 167.

35. A solução deve ser aplicada com cuidado para hipóteses em que a lei ou os atos societários exigem quórum qualificado para determinadas deliberações, como acontece nas sociedades limitadas.

36. MUNHOZ, Eduardo Stecchi. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 2ª ed., pág. 307, citado em TJSP, Apelação Cível n. 0019334-55.2013.8.26.0037, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. em 19/07/2017.

37. MUNHOZ, Eduardo Stecchi. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 2ª ed., pág. 307, citado em TJSP, Apelação Cível n. 0019334-55.2013.8.26.0037, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. em 19/07/2017.

38. TJSO, Agravo de Instrumento n. 2097008-84.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Caio Marcelo Mendes de Oliveira, j. em 13/03/2017.

39. Gustavo LACERDA FRANCO. A condução da sociedade em recuperação judicial: análise da solução brasileira à luz dos modelos globais e dos seus pressupostos, Dissertação (Mestrado) Faculdade de Direito da USP, São Pulo, 2018.

40. Casos pendentes ou que perderam o objeto por expressa manifestação das partes não foram computados.

41. Casos H-Buster e Schahin.

42. Caso São Manoel Participações e Empreendimentos.

43. Casos Aralco, Grupo Infinity, Cole, Aslan e Beter.

44. Caso GNV Aroeiras.

45. Casos Edra e Cinalp.

46. Caso Altaneiras.

47. Casos Modelli e Usina Global Goiás.

48. Artigo 64, IV, “c”.

49. Caso Altaneiras.

50. WEISEBERG, Ivo, et. al., Recuperação Judicial no Estado de São Paulo – 2ª Fase do Observatório de Insolvência, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3378503, consulta em 11 de novembro de 2019.

51. WEISEBERG, Ivo, et. al. Recuperação Judicial no Estado de São Paulo – 2ª Fase do Observatório de Insolvência, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3378503, consulta em 11 de novembro de 2019.