(re)ver o passado e (re) escrever a história. cultura histórica, cultura visual e as afirmações

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 (Re)ver o passado e (re) escrever a história. Cultura histórica, cultura visual e as afirmações identitárias no Brasil oitocentista. PAULO ROBERTO DE JESUS MENEZES*

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    (Re)ver o passado e (re) escrever a histria. Cultura histrica, cultura visual e as afirmaes

    identitrias no Brasil oitocentista.

    PAULO ROBERTO DE JESUS MENEZES*

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    * Doutorando em Histria PPGH/UERJNada, se quisermos examinar bem a coisa, indiferente num retrato. O gesto, a

    expresso, a indumentria, o prprio cenrio, tudo deve contribuir para representar

    um carter (...). Enfim, seja qual for o meio mais visivelmente adotado pelo artista,

    seja ele Holbein, David, Velsquez ou Laurence, um bom retrato sempre me parece

    uma biografia dramatizada, ou melhor, como o drama natural inerente a qualquer

    homem. (Baudelaire,1988: 121-122)

    Retrato e biografia1, imagem e texto. O que ocorre quando as duas linguagens se

    conectam para gerar outra forma de expresso o tema deste trabalho. Neste sentido, a

    proposta que o norteia por um lado, discutir a importncia da experincia visual para a

    sociedade da corte e seu desdobramento na elaborao de um discurso histrico calcado na

    modernidade que naquele momento traduzia-se na palavra civilizao e, por outro, refletir

    sobre a biografia enquanto um gnero de escrita literrio capaz de destacar ou mesmo

    glorificar pessoas transformando-as em exemplos.Assim, apresento em um primeiro momento uma breve discusso sobre os conceitos

    de cultura histrica e identidade, logo em seguida trao um rpido balano historiogrfico

    para, por fim, propor algumas direes de pesquisa nesta linha de reflexo.

    De imediato, para as pretenses deste artigo, importante situar o conceito de cultura

    histrica. Segundo Fernando Snches Marcos, esta noo surge com uma tenso terica e

    inegveis implicaes filosficas, como um conceito heurstico e interpretativo para

    compreender e investigar como se criam, se difundem e se transformam determinadas1Se Charles Baudelaire fala em biografia dramatizada no texto em epgrafe, Norbert Elias em A sociedade dosindivduos diz que o rosto, mais que qualquer parte do corpo a vitrine da pessoa. Segundo ele, os membrosde todas as sociedades conhecidas presumem-se primordialmente reconhecveis por todos os conhecidos de seugrupo, como pessoas particulares e nicas, atravs de seus rostos suplementados pela referncia a seus nomes.ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p.160. Elias no faladiretamente na relao entre imagem e texto, biografia e retrato, mas deixa indicado um caminho para futuraspesquisas j que referir-se a um nome nos leva rapidamente a pensar na biografia daquele indivduo. J EnricoCastelnuovo, em Retrato e sociedade na arte italiana, ao pesquisar a trajetria do retrato na histria italiana, nosfala da funo mgica dos retratos de BonifcioVIII e seu funcionamento como elemento substitutivo. Para esteautor,por trs do retrato est o homem, que dele se vale como de um instrumento mgico de poder. Ainda queo foco no esteja diretamente na biografia, podemos perguntar: como saber mais sobre o homem por trs doretrato, seno por sua biografia? J em outra passagem, mais na direo da proposta de minha pesquisa arelao entre texto e imagem -, o autor compara o cortejo dos pontfices romanos representado no interior dasbaslicas de So Pedro e So Paulo a uma grandiosa srie de biografias pintadas. CASTELNUOVO, Enrico.

    Retrato e Sociedade na arte italiana. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.15-19.

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    imagens do passado relativamente coerentes e socialmente operativas nas quais se objetiva e

    se articula a conscincia histrica de uma comunidade humana. Comunidade esta que pode

    ser vista atravs de diferentes critrios: nacionalidade, lngua, religio, gnero, classe ou

    geraes que compartilham experincias formativas ou civilizaes que se baseiam em um

    legado simblico e material comum (MARCOS, 2010: 1-3).

    Assim, a cultura histrica expressa uma nova forma de pensar e compreender a relao

    efetiva e afetiva que um grupo humano tem com seu passado. Trata-se de uma categoria de

    estudo que pretende ser mais abrangente que a historiografia uma vez que no se limita anlise da literatura histrica acadmica. A perspectiva da cultura histrica acompanhar

    todas as camadas e processos da conscincia histrica social, com ateno nos atores que a

    criam, os meios pelos quais ela de difunde, as representaes que divulga e a recepo na

    sociedade (MARCOS, 2010: 1-3). Sendo a cultura histrica o modo concreto e peculiar que

    uma sociedade se relaciona com seu passado, ao estud-la estamos indagando a elaborao

    social da experincia histrica e sua influncia objetiva na vida de uma comunidade.

    Sabemos que impossvel acessar o passado enquanto passado, assim, para nosaproximar dele o representamos, precisamos faz-lo presente tornando-o visvel,

    compreensvel2. Por isso, o conhecimento do passado e seus usos no presente se do sempre

    2O problema da representao em histria no um debate trivial. Danrlei de Azevedo e Felipe Charbel fazemuma interessante reflexo acerca da representao na escrita histrica. Segundo os autores, o objeto histrico construdo a partir da relao, regulada por regras intersubjetivas e debates tericos os quais delimitam ocampo discursivo da histria -, entre expectativas de sentido de um sujeito historiador e os vestgios do passado,pensados no como fontes ou documentos passivos, mas como textos complexos ou ento registros dearquivo. Para eles, o elemento subjetivo ligado ao da imaginao possui um carter central na elaborao

    da narrativa histrica, embora no atue livremente. AZEVEDO, Danrlei de Freitas, TEIXEIRA, Felipe Charbel.Escrita da histria e representao: sobre o papel da imaginao do sujeito na operao historiogrfica. In:Topoi, v. 9, n. 16, jan-jun. 2008, p. 71.De qualquer forma, embora central ao da imaginao, como avaliam os autores, o elemento subjetivo no

    parte de uma tabula rasa e sempre estar entremeado pelas relaes sociais que o regulam e o validam. JFrancisco Falcon, argumenta que o conceito de representao constituiu uma espcie de divisor de gua entre ashistoriografias moderna e ps-moderna. Para ele, a historiografia moderna ao mesmo tempo em que afirma arealidade do passado, empenha-se sempre na demarcao, no seu prprio discurso, atravs dos chamadosprotocolos de verdade, das distncias epistemolgicas, que o separam da literatura ficcional, ou seja, ahistria da estria. J a historiografia ps-moderna tem como caracterstica em primeiro lugar a morte ( noapenas o fim) da Histria. Em segundo lugar, a superao das construes metafricas, espaciais e visuais,inerentes epistemologia moderna, rejeitando a metfora das origens ou gnese e a substituindo pelo modelogenealgico e pela disperso, trabalhando com a fragmentao e as imagens contrapondo-se s metforas detotalidade e centros, buscando em cada texto precisamente os elementos que escapam percepoconsciente do autor e, por ltimo, a questo do narrativismo. FALCON, Francisco J. Calazans. Histria erepresentao. In: Revista de Histria das Ideias. Vol. 21. pp. 87-126. Ainda hoje este tema levanta acaloradosdebates e, certamente, est longe de se esgotar. De qualquer forma, no podemos dispensar os elementos da

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    dentro de prticas sociais de interpretao e reproduo da histria. Sendo assim, a

    conscincia histrica de cada indivduo de desenvolve dentro de um sistema scio-

    comunicativo de interpretao, objetivao e uso pblico do passado. Certamente obras como

    as galerias ilustradas, com as quais a presente pesquisa se ocupa, incluem-se neste sistema

    scio-comunicativo do passado.

    Outro importante conceito o de identidade. Com os debates em torno da ps-

    modernidade, o tema das identidades veio tona no campo dos estudos histricos. Tema

    recente entre historiadores, mas uma noo j conhecida em outras reas das cinciashumanas especialmente a Psicologia e a Antropologia. Hoje comum falar-se nas mais

    variadas formas de identidade e o estudo de sua elaborao feito sob os mais diversos

    ngulos.

    A identidade definida como o carter do que permanece idntico a si prprio; como

    uma caracterstica de continuidade que o ser mantm consigo mesmo. Partindo da,

    possvel compreender a identidade pessoal como a caracterstica de um indivduo de se

    perceber como o mesmo ao longo do tempo (SILVA, 2005: 204). Tanto para a Antropologiaquanto para a Psicologia, a identidade um sistema de representaes que permite a

    construo do eu, ou seja, que permite que o indivduo se torne semelhante a si mesmo e

    diferentes dos outros. Tal sistema possui representaes do passado, de condutas atuais e de

    projetos para o futuro. Da identidade pessoal passamos para identidade cultural, que seria a

    partilha de uma mesma essncia entre diferentes indivduos.

    H algumas dcadas, a Histria dentro de novos interesses gerados pela

    interdisciplinaridade, tem tentado trabalhar com o conceito de identidade. Talvez um dosprincipais campos da historiografia a refletir sobre esta noo seja a o dos estudos da

    memria, pois identidade e memria esto intimamente ligados (SILVA, 2005:204), uma

    vez que sem recordar o passado no possvel saber quem somos. E a identidade surge

    quando se evoca uma srie de lembranas. Isto serve no s para indivduos, mas tambm

    para grupos sociais.

    realidade na elaborao do discurso historiogrfico ainda que, como chamaram Danrlei e Charbel, sejam vistoscomo suposto real.

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    Para Tomaz Silva, a compreenso da identidade deve levar em conta sua relao

    intrnseca com a diferena, pois uma no existe sem a outra. Para tanto preciso perceber a

    primeira como uma relao relacional, ou seja, para existir ela depende de algo fora dela, que

    outra identidade3. Alm disso, devemos entender que toda identidade uma construo

    histrica: ela no existe sozinha, nem de forma absoluta e sempre construda em relao a

    outras identidades, pois sempre nos identificamos como o que somos para nos distinguir de

    outras pessoas.

    Neste sentido, podemos pensar que na cultura histrica oitocentista, texto e imagemarticularam-se conferindo um novo sentido ao passado4, passado este pensado segundo as

    demandas de uma produo identitria especfica ao sculo XIX (GUIMARES, 2007: 26)

    No estudo da escrita histrica do Brasil do oitocentos esta questo se reveste de grande

    relevncia. No podemos esquecer que tal escrita se desenvolve em um momento de definio

    da nacionalidade e, portanto, fonte de tenso e disputas, pois dar visibilidade a determinado

    passado atravs da histria poderia significar apagar outro, ou melhor, torn-lo invisvel.

    Mas, numa sociedade na qual os letrados eram minoria, provavelmente, a incluso deimagens na escrita histrica facilitaria sobremaneira o trabalho pedaggico. Neste sentido,

    importante perceber, como ressaltado por Ulpiano T. Bezerra de Meneses, o potencial

    cognitivo da imagem para entender como ela tem sido explorada tanto pela Histria como

    pelas demais cincias sociais e, antes disto, no prprio interior da vida social (MENESES,

    2003:11-36). Ou seja, preciso compreender como se opera esta cognio atravs da

    visualidade.

    3 Segundo Bronislaw Baczko, atravs dos seus imaginrios sociais que uma coletividade designa suaidentidade; elabora certa representao de si; estabelece a distribuio dos papis e posies sociais; exprime eimpe crenas comuns; (...). Porm, designar uma identidade coletiva corresponde, do mesmo passo, a delimitaro seu territrio e as suas relaes com o meio ambiente e, designadamente, com os outros; e correspondeainda a formar as imagens dos inimigos e dos amigos, rivais e aliados, etc.. BACZKO, Bronislaw. AImaginao social. In: LEACH, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa daMoeda, 1985, P. 309.4 Roland Barthes em O bvio e o obtuso j levanta algumas questes na direo desta relao entre texto eimagem. Diz o autor: A mensagem lingustica ser constante? Haver sempre texto no interior, abaixo ou volta da imagem? Para encontrar imagens sem palavras, ser, talvez necessrio remontar a sociedadesparcialmente analfabetas, isto , uma espcie de estado pictogrfico da imagem; na verdade, desde oaparecimento do livro, a vinculao texto-imagem frequente, ligao que parece ter sido pouco estudada doponto de vista estrutural; qual a estrutura significante da ilustrao? A imagem duplica certas informaes dotexto, por um fenmeno de redundncia, ou o texto que acrescenta imagem uma informao indita?BARTHES, Roland. O bvio e o Obtuso. Ensaios Crticos III. Editora Nova Fronteira. P. 31

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    Para as pretenses deste artigo importa perceber quais os vnculos entre escrita da

    histria, biografias e imagem. E, para isto, preciso percorrer o trajeto das imagens na

    sociedade, o que implica em compreender de antemo que elas acompanham o homem h

    longo tempo, perpassam a vida e a organizao social, ordenando a relao entre os homens

    e destes com o visvel do presente e o invisvel do passado (CHARLES, 2008: 169-185).

    Alm de serem utilizadas politicamente como instrumento de legitimao de poder, elas

    emergem de uma troca simblica e de um simulacro fabricado para enfrentar a destruio

    provocada pela passagem do tempo, agenciar a memria, manter a coeso social e, tambmexercer o controle poltico.

    Paulo Knauss faz uma instigante afirmao acerca da relao da escrita histrica e

    imagens: a histria como disciplina tem um encontro marcado com as fontes visuais e que

    nunca demais anotar que a historiografia centrada na fonte escrita despreza o fato de que

    as imagens so os vestgios mais antigos que conhecemos (KNAUSS, 2008: 151-168). Para

    ele, o carter probatrio da pesquisa histrica definiu a noo de documento textual como

    sinnimo de fonte histrica, demarcando assim, o seu universo hegemonia da fonte escritae oficial. Da o desprezo das imagens como fonte para a pesquisa histrica. Logo, de modo

    geral, a possibilidade do uso de imagens como provas no favoreceu a sua valorizao pela

    historiografia que restringiu o uso das imagens s situaes em que as fontes escritas no se

    evidenciavam suficientes, como no caso do estudo da antiguidade. Mas, para Knauss, a

    historiografia contempornea, ao superar a noo probatria da histria tem promovido um

    reencontro com o estudo das imagens.5 E, neste sentido, seria possvel propor uma

    perspectiva abrangente para a noo de cultura visual no tomando a viso como um dadonatural e questionando a universalidade da experincia visual, ou seja, a viso seria

    construda culturalmente tratando-se, ento, de abandonar a centralidade da categoria de

    viso e admitir a especificidade cultural da visualidade para caracterizar transformaes

    histricas da visualidade e contextualizar a viso (KNAUSS, 2008: 157). Desta forma, as

    5Segundo este autor, a crtica contempornea concepo cientificista de histria conduziu tambm crtica daconcepo correspondente de documento histrico, que parte da perspectiva de que os registros do passado quenos chegam at os dias de hoje no so inocentes. Para ele, a afirmao do universo do estudo da histria dasrepresentaes, valorizada pelos estudos da histria do imaginrio, da antropologia histrica e da histriacultural, imps a reviso definitiva da definio de documento e a revalorizao das imagens como fontes derepresentaes sociais e culturais. In: KNAUSS, Paulo. Aproximaes disciplinares: histria, arte e imagem.Op. cit., p.153.

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    imagens ganham um significado particular relacionado ao tempo e lugar de sua concepo e,

    uma vez criadas, tm o poder de atrair outras ideias e podem ser esquecidas por sculos para

    depois serem reconvocadas pela memria.

    A relao entre escrita da histria e biografia, bem como entre Histria e imagem vem,

    nos ltimos anos, ganhando importncia nos estudos histricos. No entanto, ainda so

    poucos os estudos que do conta desta complexa conexo entre a cultura baseada no texto

    escrito e a cultura visual na elaborao do discurso histrico.

    Um destes estudos um artigo de Manoel Salgado Guimares, publicado nos Anais doMuseu Paulista, onde ele aponta algumas questes dentro desta problemtica. O autor parte

    da constatao de que h um consenso de que os fundamentos disciplinares da histria,

    concebida como projeto cientfico, baseia-se na clara definio e diferenciao entre fontes

    primrias e secundrias e que a base da escrita histrica se assentaria no trabalho de

    pesquisa das primeiras e, por fontes primrias entendia-se basicamente as fontes escritas,

    registro considerado prioritrio para as tarefas da nova disciplina em sua busca por

    afirmao no espao acadmico (GUIMARES, 2007: 11-30). Mas, segundo ele, datamtambm do fim do sculo XVIII e comeo do sculo XIX, em especial na Frana ps-

    revolucionria, os esforos no sentido de organizao do passado atravs de sua visibilidade

    nos museus. Nestas instituies, o visitante, com um conhecimento do passado, adquirido na

    leitura de textos, deveria encontrar conforto para seu conhecimento, uma vez que tais

    espaos seriam capazes de produzir um efeito do real (GUIMARES, 2007: 11-30).

    Assim, imagem e escrita articularam-se de forma peculiar na cultura histrica oitocentista

    de modo a conferir um novo sentido ao passado, pensado segundo uma demanda identitriaespecfica do sculo XIX, parecendo agregar o poder de ressuscitar o passado despertando a

    histria. As vidas, ressuscitadas pela lembrana, transformavam-se em elos de uma cadeia

    articulando os homens do presente e do passado numa associao pela histria necessria

    produo de uma identidade especfica (GUIMARES, 2007: 11-30). No entanto, conclui

    o autor, a vitria de uma cultura histrica cientificista acabou por submeter a viso s fontes

    textuais mesmos nos projetos de visualizao do passado como o da pintura histrica que

    assentava a produo de imagens pesquisa e ao conhecimento das fontes escritas

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    (GUIMARES, 2007: 11-30). Ou seja, a produo imagtica estava de certa forma

    submetida ao conhecimento do cdigo letrado6.

    Algumas direes para o debate - imagem, escrita biogrfica e escrita da histria

    Para o historiador, o debate sobre a veracidade do que se v e o que se escreve

    constante. Esta polmica levou Franois Hartog a dizer que desde a Antiguidade e passando

    por mdicos e historiadores, a viso tida como instrumento do conhecimento. Estaobservao no tem o objetivo de reduzir esses discursos a um denominador comum, mas

    apontar o que parece ser, certamente, uma constante epistemolgica (HARTOG, 1999: 274).

    Expresses do tipo para saber preciso ter visto, atribuda Xenfanes ou aquela escrita

    por Aristteles nas primeiras linhas da Metafsica: Preferimos a vista a todo resto tm

    como pressuposto a ideia de que a vista , de todos os sentidos, aquele que nos faz adquirir

    mais conhecimentos e o que nos revela mais diferenas (HARTOG, 1999: 274).

    Escrever biografias onde fossem mostradas as virtudes morais, as aes heroicas e nasquais estivesse contido um modelo a ser seguido consistiu a caracterstica fundamental para

    a histria desenvolvida pelo IHGB. Criar a imagem do biografado atravs do uso de palavras

    enaltecedoras foi o recurso utilizado pelos bigrafos que se dispuseram a contar as diversas

    vidas na revista do Instituto.

    Com o advento da fotografia/litografia outro tipo de obra biogrfica despontou no

    Imprio: as galerias dos Ilustradas7. Ligada ao desenvolvimento de uma relao at ento

    6Para Roland Barthes, o texto conduz o leitor por entre os significados da imagem, fazendo com que se desviede alguns e assimile outros; atravs de um dispatching, muitas vezes sutil, ele o teleguia em direo a um sentidoescolhido a priori. (...) O texto realmente a possibilidade do criador ( e, logo, a sociedade) exercer um controlesobre a imagem: a fixao um controle, detm uma responsabilidade sobre o uso da imagem, frente ao poder deprojeo das ilustraes; o texto tem um valor repressivo em relao liberdade dos significados da imagem;compreende-se que seja ao nvel do texto que se d o investimento da moral e da ideologia de uma sociedadeBARTHES, Roland. O bvio e o Obtuso. Ensaios Crticos III. Editora Nova Fronteira. p. 33. Em O poder dasimagens e as limitaes dos telogos, Hans Belting tambm percebe esta submisso das imagens ao texto.Segundo ele, todas as vezes que as imagens ameaaram conquistar uma influncia indevida dentro das igrejas,os telogos tentaram despi-las de seu poder. Mas, no entanto, diz o autor: nunca foi fcil control-las compalavras porque, como os santos, elas favoreciam uma experincia em nveis mais profundos, bem comosatisfaziam desejos para alm dos que as autoridades da Igreja eram capazes de atender. BELTING, Hans.Semelhana e presena: a histria da imagem antes da era da arte. Rio de Janeiro, Arsurbe, 2010. p. 17Ainda que o projeto para o doutorado contemple outras obras, para os objetivos deste artigo ficarei restrito obra Galeria dos Brasileiros Ilustres- Os Contemporneosde Sebastio Sisson, editada pelo Senado Federal em1999. Esta obra poderia em um primeiro momento ser inserida naquilo que Castelnuovo chamou de State portrait

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    pouco explorada, a associao de imagens e texto ocorre no bojo daquilo que Sthephen Bann

    denominou de cultura visual do ocidente (BANN, Apud ZENHA, 2002: 134-160).

    Entretanto, a associao entre biografia e imagem s se daria na medida em que as tcnicas de

    reproduo passassem da esfera do lazer pessoal a uma atividade rentvel. Desta forma, Poses

    e trajes imponentes seriam complementados por palavras enaltecedoras.

    O homem ocidental que emerge no sculo XIX tributrio de diversas transformaes

    ainda em curso naquele momento. Ele se torna cada vez mais nico por se libertar dia a dia

    das tutelas tradicionais que pesavam sobre seu destino, agora senhor de sua trajetria. Outroncleo de gravidade se configurava na sociedade, pois das leis superiores impostas por Deus,

    pelo Estado ou a famlia, tal centro voltou-se para o culto de si. O indivduo tornava-se meta

    e norma de todas as coisas (PRIORE, 2009: 7-16).

    Embora em compasso mais lento, o Brasil oitocentista no ficou imune s

    transformaes pelas quais passava a sociedade ocidental no sculo XIX. A vinda da Corte

    induziu a uma lenta, mas crescente expanso de ncleos urbanos. A circulao de mercadorias

    bem como o desenvolvimento da imprensa peridica tambm foram alguns exemplos destastransformaes. Nesta mesma direo foram inaugurados no Rio de Janeiro instituies como

    o Arquivo Nacional, o Colgio Pedro II e o IHGB. A importao de hbitos europeus tambm

    serviu de exemplo desta insero do Imprio no processo civilizador, para tomar as palavras

    de Norbert Elias (ELIAS, 1993).

    Na esteira destas transformaes, a fundao do IHGB contribuiu de forma inequvoca

    para que se consolidasse uma dada ideia de passado. Resignificar a ptria e difundir este

    conceito era a proposta do Instituto. O debate historiogrfico d conta de que a escritahistrica no Brasil oitocentista esteve intrinsecamente ligada ao surgimento do IHGB8. Foi ele

    [retrato de Estado]: (...) Em seguida o assunto representado de modo a resaltar o carter pblico tanto domodelo quanto da imagem. Trata-se de evidenciar os sinais caractersticos do exerccio do poder, quer nos trajes,nos atributos e na pose, quer na expresso do olhar. O retrato se despersonaliza, ressaltam-se mais os caracterespblicos que os privados CASTELNUOVO, Enrico. Op. Cit. P. 54. Um dos aspectos que pretendo discutir aolongo do trabalho de doutorado exatamente que a Galeria de ilustres de Sisson, assim como outras obras destegnero, se reveste de um carter diferenciao e individualizao na sociedade imperial.8Refiro-me particularmente aos seguintes trabalhos: GUIMARES, Manoel Luiz Salgado.Nao e Civilizaonos Trpicos: o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e o projeto de uma histria nacional ; SCHWARCZ,Lilia Moritz. O Espetculo das Raas: cientistas, instituies e a questo racial no Brasil, 1870-1930;________. As Barbas do Imperador: D.Pedro II, um monarca nos trpicos; GUIMARES, L. M. P.Debaixoda imediata proteo imperial: Instituto Historico e Geogrfico Brasileiro. 2a.. ed. So Paulo: Annablume,2011. v. 1. 180 p. WEHLING, Arno. Estado, Histria e Memria e REIS, Jos Carlos. As Identidades do Brasil:de Varnhagem a FHC.

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    o local por excelncia da escrita histrica nacional cumprindo assim o papel que lhe fora

    reservado desde sua fundao. Ao Instituto cabia construir uma histria da nao, recriar um

    passado, solidificar mitos de fundao, ordenar fatos buscando homogeneidades em

    personagens e eventos at ento dispersos (SCHWARCZ, 1998: 99), tornando-se, por sua

    produo letrada e pelo ncleo de sociabilidades que enfeixou, um dos principais cones das

    estratgias de construo do imaginrio nacional do Imprio do Brasil (GONALVES, 2009:

    450).

    Fonte de tenses e disputas em torno de sua elaborao, no oitocentos, a escritabiogrfica se expandiu e diversificou-se em seus usos e, em determinados casos, passou, tanto

    quanto a histria e a literatura, a contribuir para a fundao simblica de individualidades

    nacionais (GONALVES, 2009:427-465). Na direo desta expanso e diversificao,

    para alm da produo intelectual do Instituto, outras formas de escrita biogrfica

    despontaram no Imprio com o surgimento da fotografia e a difuso de novos meios para

    reproduo de imagens em especial a litografia9: as galerias ilustradas. Produzidas e

    publicadas nos mais diversos formatos, traziam uma importante peculiaridade: as biografiascompunham-se tambm pelo retrato do homenageado. Eram trabalhos produzidos mais para

    serem vistos do que lidos.

    Mas, para que fossem vistos foi preciso a incorporao de todo um repertrio de

    signos ainda escassos no Brasil do sculo XIX. Uma nova relao cognitiva com as imagens

    estava em curso. Uma civilizao da imagem comeava a delinear-se a partir do momento

    em que a litografia ao reproduzir em srie as obras produzidas pelos artistas no princpio do

    oitocentos, inaugurou o fenmeno do consumo de imagem enquanto produto esttico de

    interesse artstico e documental (KOSSOY , 2001: 134-136). O conhecimento visual se

    tornaria moda j nas primeiras dcadas aps o advento da fotografia. A partir da as imagens

    9 Para Walter Benjamin, com a litografia, a tcnica de reproduo atinge uma etapa essencialmente nova. Esendo ela um procedimento mais preciso que a xilogravura e a reproduo em cobre,permitiu s artes grficaspela primeira vez colocar no mercado suas produes no somente em massa mas tambm sob forma de criaessempre novas, adquirindo os meios de ilustrar a vida Cotidiana. Usada amplamente no sculo XIX como umatcnica de reproduo, a litografia era considerada um dos meios mais eficientes de comunicao impressa napoca de sua inveno, e, desta forma, contribuiu decisivamente na divulgao e popularizao de imagens.O poeta Charles Baudelaire em O pintor da vida moderna tem uma viso negativa desta tcnica e a associa aarte menor. Cf. BAUDELAIRE, Charles. A Modernidade de Baudelaire/ apresentao de Teixeira Coelho;traduo, Suely Cassal, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988

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    tornaram-se aliadas indispensveis ao progresso das cincias10 e das tcnicas por

    representarem uma linguagem universal, facilitando o sentido do texto a pessoas pouco

    familiarizadas com as letras. Outro repertrio simblico vai aos pouco sendo disseminado a

    partir das novas formas de reproduo de imagens nas publicaes ilustradas.

    O modelo de escrita contendo imagens constituiu-se assim em uma nova forma

    esttica de conceber o texto histrico.11 Esta no uma questo menor posto que neste

    momento tambm a biografia assumia contornos de escrita histrica. Neste caso, trata-se,

    principalmente, da sua incorporao ao mundo no acadmico, ou seja, o conhecimentohistrico ampliava-se dos crculos letrados para outros setores da sociedade, em especial, os

    artsticos e a imprensa. Neste aspecto, a circulao das galerias ilustradas inseria-se em uma

    cultura histrica alterada pela afirmao e expanso da palavra impressa a partir da dcada de

    1840 (GONALVES, 2009: 444). A histria escrita pela linguagem visual tinha, ento, na

    biografia uma importante fonte de circulao. Ligada ao desenvolvimento das tcnicas de

    produo e reproduo de imagens, estava mais disponvel em uma sociedade na qual os

    letrados eram ainda um pequeno contingente. Mas no havia uma polarizao entre texto eimagem. Ao contrrio, as linguagens se combinavam para aprofundar a ideia de verdade

    histrica, com a imagem funcionando no s como prova inequvoca do narrado, mas

    tambm como possibilidade de fazer viver de novo pela sensibilizao do olhar, no dilogo

    entre ver, sentir, imaginar e conhecer.

    Neste sentido, obras como as galerias de ilustres12, muito comuns ao longo do sculo

    XIX, reuniam duas importantes formas de expresso cujo foco principal o indivduo: o

    10A possibilidade de reproduo de imagens no oitocentos propiciadas pelas novas tcnicas, influenciou, decerta forma, todo tipo de escrita, desde as revistas ilustradas, com aspectos de pura diverso, at mesmo aostrabalhos dos viajantes naturalistas que aqui desembarcaram para explorar aquela natureza esplndida. Paramaiores detalhes sobre a circulao de imagens destes viajantes ver os trabalhos de Lorelai Brilhante Kury,Viajantes- naturalistas no Brasil oitocentista: experincia , relato e imagem . In: Histria, Cincias, Sade-

    Manguinhos. Vol.8 . Rio de Janeiro, 2001. E Cincia e Nao: romantismo e histria natural na obra de E.J. daSilva Maia. In: Histria, Cincia, Sade-Manguinhos. Vol. 5, no. 2, Rio de Janeiro, Julho/outubro.199811 histria cabia, dento do critrio de cientificidade, desvendar a verdade. Neste sentido, a biografia compostacom imagens surtiria por um lado, o efeito de realidade para o narrado e, por outro, exteriorizava a personagemhomenageada em um movimento que a tornasse fonte de exemplo. Segundo a caracterizao de MikhailBakhthin, este corresponderia ao tipo biogrfico analtico, um a vez que em sua composio estaria, alm davida social, vida familiar, virtudes e vcios, a aparncia exterior. BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura ede esttica (A Teoria do Romance). So Paulo: HUCITEC, 2010.12Seguindo indicaes do trabalho Ensaios das Luzes sobre um Brasil Pitoresco: o projeto fotogrfico de VictorFrond,de Lygia Segala, em um primeiro inventrio no setor de iconografia da Biblioteca Nacional do Rio deJaneiro pude levantar as seguintes obras : Galerie des Contemporains Illustres ( 1815-1878), A Galeria dos

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    gnero biogrfico e o retrato. Nestas obras texto e imagem misturavam-se para formar um

    conjunto homogneo de complementaridade recproca. Aparentemente ligadas questo

    nacional, elas uniam-se ao crescente processo de individualizao e diferenciao pelo qual

    passava a sociedade - um individualismo coletivo para tomar uma expresso de Peter Gay

    (GAY, 2009: 65), tornando-se, por um lado, objeto de consumo para uma elite abastada

    desejosa por reconhecimento, admirao e distino e, por outro, fonte de conhecimento

    histrico para pessoas pouco afeitas ao mundo das letras.Para alm das palavras, a imagem,

    cada dia mais acessvel, colaborava com este aspecto possibilitando uma diferenciao tantointerna quanto externamente.

    De cunho claramente pedaggico, inserindo-se no que Franois Hartog chamou de

    antigo regime de historicidade,13tais obras traziam em seu bojo toda uma rede de simbolismo

    ligada entre si pelo entrelaamento das duas linguagens. Divulgadas em diferentes meios

    como jornais e revistas ilustradas, eram o elo entre pessoas dos mais diferentes lugares

    contribuindo, desta forma, para a elaborao simblica do novo homem brasileiro.14

    Ao tomar obras que continham imagens como um contraponto quelas elaboradasapenas por texto quero propor outra leitura da escrita histrica do oitocentos. Meu intuito o

    de vislumbrar a possibilidade de uma inflexo nesta escrita no que toca aos seus cnones. Ou

    seja, uma escrita claramente voltada para o exemplar, que tinha na historia magistra vitae15

    sua premissa, adota nas galerias ilustradas a linguagem extremamente moderna da

    visualidade. Este ponto ainda pouco visvel queles que veem no modelo difundido pelo

    Vares Illustres de Portugal (1825-1891), Galerie de Femmes Clbres de Saint Beuve (1862), Galeria dos

    Homens Uteis (1867) e Galeria Pitoresca de Homens Celebres de todas as pocas e Naes (1867).13Essa tarefa pedaggica pode ser vista tanto no discurso de fundao do IHGB quanto na introduo da obraGaleria dos Brasileiros Ilustres de Sisson. Nelas, nota-se a clara indicao de tomar as biografias como liespara os homens do presente ou ainda a de seguir os exemplos dos pais: Alguns porm restam ainda, comovenerandos monumentos do passado, e com seus, seus conselhos e sua experincia animam aqueles que, jovensainda, e cheios de vigor e de esperanas, continuam a obra grandiosa de seus pais (grifo meu). KOSELLECK,Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC-Rio, 2006. P.42-43.14Este novo homem pode ser caracterizado resumidamente como tributrio das transformaes ocorridas apartir da vinda da Corte para Brasil. Certamente os modos de pensar , agir e sentir so contaminados pela furorda modernidade que este fato acarreta.15 A histria como orientadora das aes dos homens, a mestra da vida, foi uma forte caracterstica doshistoriadores do oitocentos no Brasil. Segundo Reinhart Koselleck, a expresso ciceroneana historia magistravitae orientou durante sculos a maneira como os historiadores compreenderam seu objeto ou mesmo a suaproduo e este tipo de escrita teria durado at o sculo XIX vindo a se diluir no decorrer da poca moderna.KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro:Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. P.42-43.

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    Instituto a principal fonte de inspirao e difuso do conhecimento histrico no Imprio e

    desconsideram as transformaes ocorridas na sociedade imperial, em especial a crescente

    urbanizao16e individualizao. Tais transformaes podem ser indcios de uma sociedade

    cada vez mais complexa17e ciosa por elementos de distino social.

    Se considerarmos que falamos de uma sociedade que tinha na escravido o principal

    pilar econmico; onde a populao dita preta e parda alcanava, segundo o censo de 1872, a

    cifra de 58%, com o problema da identidade constituindo-se em fonte de tenso permanente

    (ALENCASTRO, 1997: 60), podemos sugerir que as galerias ilustradas foram pensadas comoobras que iam ao encontro de uma clara distino social, transformadas em um trabalho de

    memria e identidade funcionando como um elemento desta distino, trazendo para este tipo

    de obra as diversas vises do significado de ser ou no civilizado naquele momento. Neste

    caso, afirmar algumas nacionalidades como brasileiros, portugueses, franceses poderia

    funcionar tanto como um critrio de diferenciao/afirmao frente ao outro como uma

    mostra de prestgio social.

    Editadas em um momento histrico singular, no qual, por conta do escravismo quegrassava na sociedade, o problema mais geral da identidade era grande fonte de tenso, as

    galerias nos mostram parte da considerada boa sociedade imperial. Tal qual uma galeria de

    arte, indivduos com suas biografias e imagens estavam expostos apreciao pblica no s

    em um ntido exemplo da histria como mestra da vida, mas tambm para deleite dos prprios

    retratados em um crescente processo de distino social.

    16Para Massimo Mastrogregori foi o desenvolvimento da cidade, este agente transformador de memrias, comsuas oficinas e atelis, que possibilitou o encontro da escrita e da imagem. J Denise Gonalves em seu trabalhosobre a revista OSTENSOR BRASILEIRO, reala que aquela publicao ilustrada tinha como projeto aconstruo da histria, da memria e de um imaginrio em um momento em que o pas se encontra entre doismodelos culturais quase antagnicos. Se por um lado havia a permanncia de aspectos do perodo colonial, poroutro, havia o contato como uma rede de influncia caracterstica do sculo XIX. GONALVES Denise. Aconstruo de um imaginrio Urbano: historiografia e imagens da cidade em Ostensor Brasileiro.In: Revistasilustradas: Modos de ler e ver no Segundo Reinado. Paulo Knaus ..(et. al), organizadores. Rio de Janeiro: MauadX: FAPERJ, 2011. pp 81-90.17Segundo Gilberto Velho, em uma sociedade tradicional, holista, em que o indivduo englobado pelo cl,linhagem, tribo, etc., a memria socialmente relevante a da unidade encompassadora e a memriasocialmente significativa a da unidade englobante, havendo pouca nfase ou reconhecimento da noo debiografia no sentido moderno. Para ele, em qualquer sociedade h o processo de individuao mas aindividualizao seria prpria das sociedades ou segmentos sociais onde florescem ideologias individualistas quefixam o indivduo socialmente significativo, como valor bsico da cultura. VELHO, Gilberto. Projeto e

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