retrato de uma senhora - pnl2027

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66 » noticiasmagazine 24.JUN.2006 Começou por escrever para adultos, mas tudo mudou com O Livro daTila,ilustrado por Maria Keil. ¬ Quando enviou o manuscrito para um concurso literário,disseram-lhe que «o livro tinha interesse,mas a poesia não era para as crianças». ¬ Felizmente,não acreditou.Cinco décadas depois,com 86 anos e mais de trinta títulos publicados, Matilde Rosa Araújo continua atenta à música que faz o acaso da escrita: «Uma ilha povoada de vozes, as minhas e as dos outros.» S empre que visita uma esco- la, Matilde Rosa Araújo qua- se se esquece de que tem 86 anos. É como se a vida se multiplicasse com o que vê e ouve. Plateias de miúdos, diante de um escritor convidado, são imprevisíveis na sua curiosidade primi- tiva. Originais, perspicazes, observadores... Lançam perguntas que fazem certas confe- rências de imprensa parecer reuniões de me- ninos do coro, cheias de jornalistas ensina- dos pela cartilha. Estamos na sala de estar de uma casa de Lisboa, um segundo andar da Rua Rodrigues Sampaio, a lembrar o dia em que um aluno de uma dessas escolas lhe per- guntou onde tinha nascido. «Na Estrada de Benfica», respondeu. Mais tarde, acabada a sessão, o miúdo puxou-lhe por um braço e, num aparte envergonhado em que se notava uma ponta de indignação, insistiu: «A senho- ra desculpe, eu ainda tenho de lhe perguntar uma coisa. Então, mas… a sua mãe teve cora- gem de a deixar nascer na estrada?!» Sentada no sofá da pequena sala, Matilde ri- se outra vez com esta história, um riso terno de quem sabe que «a criança é, na sua essên- cia, revolucionária», como escreveu há quase vinte anos num ensaio sobre literatura infan- to-juvenil, A Estrada Fascinante (1988). Quan- to à outra estrada, perto do Jardim Zoológico, hoje cercada de prédios tristes e consumida por fumos de automóveis, também já teve o seu quê de fascínio. Às portas de Lisboa, hou- ve um tempo em que Benfica era paisagem: uma extensão de campos, hortas e quintas, por onde passavam rebanhos de ovelhas e juntas de bois. Numa dessas quintas, pertença dos avós maternos, nasceu Matilde Rosa Lopes Araú- jo, a 20 de Junho de 1921. O pai, comerciante de ourivesaria, veio do Norte, da freguesia de Barbeita, concelho de Monção. A mãe era lis- boeta, com ascendentes na Galiza. Do casa- mento nasceram três raparigas; ela, a do meio. Mais tarde mudaram-se «para a cida- de», a casa perto do Parque Eduardo VII on- de vive agora com a irmã mais velha, Maria Luísa, rodeada de livros, fotografias e objec- tos de família. O retrato a óleo de uma dama antiga destaca-se neste espaço de intimidade onde nos recebe – sem artifícios, sem pose, sem um vestígio de impaciência. A escola, uma revelação «Julgo que nunca tive a infância muito pre- sente, mesmo quando era criança», começa por dizer. «Talvez fosse séria de mais, dema- siado adulta.» Tão-pouco se sentiu especial, apesar de ter aprendido a ler aos cinco anos. A quinta onde cresceu, acompanha- da de árvores, flores e animais, já só exis- te num lugar privilegiado da memória. E também numa obra que consagra a na- tureza como fonte de linguagem. «Tinha uma sensibilidade à flor da pele», conta, «chegava a pedir licença quando passava pelo meio dos canteiros floridos. Fui sem- pre muito distraída e muito atenta.» Como um prolongamento desse jardim protegido, o pai determinou que a educa- ção das filhas começasse em casa, por uma professora escolhida a dedo, «irmã da Maria Lamas, mulher admirável». Em complemento, manteve durante bastante tempo os estudos de piano. Explica-se, as- sim, o amor pela música, quase tão gran- de como o da literatura. Quem repara nos dedos elegantes fica indeciso sobre qual das duas artes lhe assentaria melhor. Mas as dúvidas desfazem-se: «Nunca senti uma verdadeira vocação para o piano e ti- ve de optar. Não quis deixar as letras.» À mudança para Lisboa seguiu-se a en- trada na Universidade Clássica, o curso de Filologia Românica que lhe abriu as portas ao ensino do Português e Francês. «Só quando entrei para a faculdade é que me descobri verdadeiramente feliz. Fui uma contemplada. Tive mestres e cole- gas espantosos que me ensinaram muito, muito, sinto que nunca lhes agradeci o suficiente.» Como professores, Jacinto do Prado Coelho, de quem recorda «o afecto, a compreensão, o acolhimento». E também Hernâni Cidade, Vitorino Ne- mésio, Vitorino Magalhães Godinho… Colegas e amigos, entre muitos outros («até tenho medo de me esquecer»), fo- ram Sebastião da Gama, Helena Cidade Moura, Irene Lisboa, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Judite de Carvalho, Maria de Lurdes Belchior, Rui Grácio, Joel Serrão, David Mourão-Ferreira, Lindley Cintra… Curiosamente, licenciou-se com uma tese algo invulgar para a época: «A repor- tagem como género: génese do jornalismo através da constante histórico-literária.» Não havia muitos livros em casa, mas os jornais faziam parte do quotidiano fami- liar. O Diário de Notícias era (e ainda é) ob- rigatório, bem como os já extintos O Sécu- lo, República, Diário de Lisboa, A CapitalDiz que sente falta dos vespertinos e la- menta que os jornais de hoje «não se inte- ressem mais pelas coisas boas que aconte- cem». Ainda assim, não passa sem «o chei- ro das folhas impressas», todos os dias. Nas décadas seguintes à licenciatura, concluída em 1945, colaborou regular- mente com quase todos os jornais e revis- tas que fizeram escola e pensamento. Mas ser jornalista a tempo inteiro foi al- go que pôs de lado em 1946, no dia em que Retrato de uma senhora TEXTO Carla Maia de Almeida FOTOGRAFIA Reinaldo Rodrigues PERFIL

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Page 1: Retrato de uma senhora - PNL2027

66»noticiasmagazine 24.JUN.2006

Começou por escrever para adultos,mas tudo mudou com O Livro da Tila,ilustrado por Maria Keil.¬ Quando enviou o manuscrito paraum concurso literário,disseram-lheque «o livro tinha interesse,mas apoesia não era para as crianças».¬ Felizmente,não acreditou.Cincodécadas depois,com 86 anos e maisde trinta títulos publicados, MatildeRosa Araújo continua atenta àmúsica que faz o acaso da escrita:«Uma ilha povoada de vozes,as minhas e as dos outros.»

Sempre que visita uma esco-la, Matilde Rosa Araújo qua-se se esquece de que tem 86anos. É como se a vida se

multiplicasse com o que vê e ouve. Plateiasde miúdos, diante de um escritor convidado,são imprevisíveis na sua curiosidade primi-tiva. Originais, perspicazes, observadores...Lançam perguntas que fazem certas confe-rências de imprensa parecer reuniões de me-ninos do coro, cheias de jornalistas ensina-dos pela cartilha. Estamos na sala de estar deuma casa de Lisboa, um segundo andar daRua Rodrigues Sampaio, a lembrar o dia emque um aluno de uma dessas escolas lhe per-guntou onde tinha nascido. «Na Estrada deBenfica», respondeu. Mais tarde, acabada asessão, o miúdo puxou-lhe por um braço e,num aparte envergonhado em que se notavauma ponta de indignação, insistiu: «A senho-ra desculpe, eu ainda tenho de lhe perguntaruma coisa. Então, mas… a sua mãe teve cora-gem de a deixar nascer na estrada?!»

Sentada no sofá da pequena sala, Matilde ri-se outra vez com esta história, um riso ternode quem sabe que «a criança é, na sua essên-cia, revolucionária», como escreveu há quasevinte anos num ensaio sobre literatura infan-to-juvenil, A Estrada Fascinante(1988). Quan-

to à outra estrada, perto do Jardim Zoológico,hoje cercada de prédios tristes e consumidapor fumos de automóveis, também já teve oseu quê de fascínio. Às portas de Lisboa, hou-ve um tempo em que Benfica era paisagem:uma extensão de campos, hortas e quintas,por onde passavam rebanhos de ovelhas ejuntas de bois.

Numa dessas quintas, pertença dos avósmaternos, nasceu Matilde Rosa Lopes Araú-jo, a 20 de Junho de 1921. O pai, comerciantede ourivesaria, veio do Norte, da freguesia deBarbeita, concelho de Monção. A mãe era lis-boeta, com ascendentes na Galiza. Do casa-mento nasceram três raparigas; ela, a domeio. Mais tarde mudaram-se «para a cida-de», a casa perto do Parque Eduardo VII on-de vive agora com a irmã mais velha, MariaLuísa, rodeada de livros, fotografias e objec-tos de família. O retrato a óleo de uma damaantiga destaca-se neste espaço de intimidadeonde nos recebe – sem artifícios, sem pose,sem um vestígio de impaciência.

A escola, uma revelação «Julgo que nunca tive a infância muito pre-sente, mesmo quando era criança», começapor dizer. «Talvez fosse séria de mais, dema-siado adulta.» Tão-pouco se sentiu especial,

apesar de ter aprendido a ler aos cincoanos. A quinta onde cresceu, acompanha-da de árvores, flores e animais, já só exis-te num lugar privilegiado da memória. E também numa obra que consagra a na-tureza como fonte de linguagem. «Tinhauma sensibilidade à flor da pele», conta,«chegava a pedir licença quando passavapelo meio dos canteiros floridos. Fui sem-pre muito distraída e muito atenta.»

Como um prolongamento desse jardimprotegido, o pai determinou que a educa-ção das filhas começasse em casa, poruma professora escolhida a dedo, «irmãda Maria Lamas, mulher admirável». Emcomplemento, manteve durante bastantetempo os estudos de piano. Explica-se, as-sim, o amor pela música, quase tão gran-de como o da literatura. Quem repara nosdedos elegantes fica indeciso sobre qualdas duas artes lhe assentaria melhor. Masas dúvidas desfazem-se: «Nunca sentiuma verdadeira vocação para o piano e ti-ve de optar. Não quis deixar as letras.»

À mudança para Lisboa seguiu-se a en-trada na Universidade Clássica, o cursode Filologia Românica que lhe abriu asportas ao ensino do Português e Francês.«Só quando entrei para a faculdade é queme descobri verdadeiramente feliz. Fuiuma contemplada. Tive mestres e cole-gas espantosos que me ensinaram muito,muito, sinto que nunca lhes agradeci osuficiente.» Como professores, Jacintodo Prado Coelho, de quem recorda «oafecto, a compreensão, o acolhimento».E também Hernâni Cidade, Vitorino Ne-mésio, Vitorino Magalhães Godinho…Colegas e amigos, entre muitos outros(«até tenho medo de me esquecer»), fo-ram Sebastião da Gama, Helena CidadeMoura, Irene Lisboa, Urbano TavaresRodrigues, Maria Judite de Carvalho,Maria de Lurdes Belchior, Rui Grácio,Joel Serrão, David Mourão-Ferreira,Lindley Cintra…

Curiosamente, licenciou-se com umatese algo invulgar para a época: «A repor-tagem como género: génese do jornalismoatravés da constante histórico-literária.»Não havia muitos livros em casa, mas osjornais faziam parte do quotidiano fami-liar. O Diário de Notícias era (e ainda é) ob-rigatório, bem como os já extintos O Sécu-lo, República, Diário de Lisboa, A Capital…Diz que sente falta dos vespertinos e la-menta que os jornais de hoje «não se inte-ressem mais pelas coisas boas que aconte-cem». Ainda assim, não passa sem «o chei-ro das folhas impressas», todos os dias.

Nas décadas seguintes à licenciatura,concluída em 1945, colaborou regular-mente com quase todos os jornais e revis-tas que fizeram escola e pensamento.Mas ser jornalista a tempo inteiro foi al-go que pôs de lado em 1946, no dia em que

Retrato de uma senhora

TEXTOCarla Maia de Almeida FOTOGRAFIAReinaldo Rodrigues

PERFIL

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va representações de O Capuchinho Verme-lho, estimulando o interesse pela literaturainfanto-juvenil. Além disso, «mostrava-nospostais e fotografias das viagens que fazia.Nunca me esqueci da descrição em que noscontou como passou o canal de Suez.»

Outra ex-aluna, hoje uma grande amiga, éVanda Pinto de Almeida. Decidiu retomar osestudos depois do 25 de Abril de 1974 e foi naEscola do Magistério Primário de Lisboaque teve contacto com uma novidade nosprogramas curriculares, a cadeira de Portu-guês e Literatura Infantil, até aí uma maté-ria pouco considerada. «Matilde foi uma dasprimeiras professoras, se não a primeira, aensinar e a conceber os conteúdos dessa no-va e importante disciplina. E nós, alunos efuturos professores, aprendíamos a esco-lher textos em que os valores da criativida-de, da solidariedade e da compreensão dooutro estivessem presentes.»

O respeito pela identidade própria de umser singular é uma constante na obra de Ma-tilde Rosa Araújo, visível em livros como His-tória de Um Rapaz (1963) ou O Passarinho deMaio (1990). Fátima Ventura, professora deEducação Visual e pintora, conheceu a escri-tora no exame de admissão à Escola Indus-trial e Comercial de Elvas. «Eu ia metida nu-ma saia de roda engomada que me picava aspernas, devia ter um ar bastante infeliz», re-corda. Ao abrir o livro para escolher o texto deleitura, sai-lhe um poema sobre a Primavera.«A Professora Matilde, com uma voz suave emelodiosa, perguntou-me: “Gostas muito daPrimavera, não gostas, minha filha?”» E ela,habitualmente tímida, deu por si a contestar:«Não, gosto mais do Outono!» A madrinha,que tinha ido assistir ao exame, quase se ben-zeu com o atrevimento da afilhada. «E porque gostas tu do Outono?», insistiu a profes-sora. «Gosto dos dias cinzentos, da chuvamiudinha, do chão cheio de folhas secas, deandar sobre elas e de ouvir o barulhinho.»Com o seu ar sempre doce, a professora ex-clamou: «Mas tu és uma poetisa!»

Fátima Ventura não se lembra de ter lidoo texto sobre a Primavera, nesse dia. Mas re-teve o essencial: «Mais tarde, escolhi tam-bém ser professora. E aos muitos alunos quepassaram pelas minhas mãos procurei dar aliberdade e a aceitação da diferença que, na-quele dia, me foram dadas.»

A pedagogia dos afectosNo ano em que Matilde Rosa Araújo esco-lheu a carreira docente, Portugal, saído daguerra onde não chegou a entrar, tinha pas-sado de falso paraíso a um poço negro de mi-sérias expostas. Viam-se crianças em fila pa-ra uma refeição na Mitra de Lisboa, criançasa disputar o lixo com os cães, crianças a dor-mir nas soleiras das portas. Essas «infânciastrucidadas» que, mais tarde, ela trouxe paraos livros; por exemplo, nas histórias de ZéManel e Joaquim, do livro de contos O Sol e o

se estreou no lugar de professora. Lembra--se perfeitamente: era uma escola muito ve-lha na Calçada do Combro, um dos estabele-cimentos do Ensino Técnico-Profissionalpara onde não iam os filhos das elites lisboe-tas. Neste caso, as filhas, porque o tempo dasclasses mistas ainda era pouco menos do queuma utopia. Vinte pares de olhos de rapari-gas que nada conheciam do mundo fixaram--se nela, expectantes. «Quando entrei na sa-la de aula, foi como se tivesse aberto um li-vro.» Páginas em branco, à espera deatenção, afecto e sabedoria. Tudo o que elaquis dar.

Uma professora inesquecívelPorque também há mais quem se lembre. A gratidão é um valor contagiante. Se Matil-de Rosa Araújo afirma ser «uma contempla-da» – pelas gerações de mestres e colegas quea ajudaram a crescer –, outras pessoas subs-crevem o que diz. Maria Alda Begonha, an-tiga aluna da Escola Comercial Ferreira Bor-

ges, começou por contar às filhas (e agoraaos netos) como eram diferentes as aulas daprofessora que lhe transmitiu «o gosto pelaleitura», entre os anos de 1949 e 1951. Sobuma disciplina de nome pomposo, Língua eHistória Pátria, Matilde lia e dava a ler poe-sia e histórias da mitologia grega, e encena-

«Meu ferrinho de engomar/ Feito deferro e brasas/ Contigo engomava

sonhos/ De lençóis que eram asas.»(In Segredos e Brinquedos)

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Menino dos Pés Frios (1972) ou As Botas deMeu Pai (1981). Em sessenta anos de carrei-ra académica e literária, pôs sempre na linhada frente a defesa dos direitos da criança, oque a levou a fazer parte da fundação do Co-mité Português da UNICEF e a apoiar ou-tras instituições congéneres.

Apesar de nunca ter dado aulas aos maispequenos, afirma ter aprendido com «todasas marés da infância» que se cruzaram noseu caminho. Como professora do EnsinoTécnico, andou por muitos sítios, até regres-sar a Lisboa: Portalegre, Elvas, Leiria, Cal-das da Rainha, Barreiro, Almada, Porto…Mas quando se lhe pergunta onde estão, afi-nal, as suas raízes, responde que não sabe. Eacrescenta: «Acho que sou uma erva domonte.» Ao longo da conversa com a nm, es-te «não sei» apareceu mais vezes, sem soar anegação inconsequente. Significa, talvez, aliberdade de não escolher uma resposta desentido único, excluindo todas as outras. Senão houve um casamento, nem filhos, «foi

porque não tinha de ser». Se não surgiu umDeus em que se pudesse acreditar, terá sidopor uma razão semelhante: «Não apare-ceu.» Pausa longa. «Não quer dizer que nãoo tenha procurado.»

Tem, sem dúvida, valores espirituais e um«sentido do transcendente» que atravessatoda a sua obra; obra essa que, segundo o es-critor António Torrado, está marcada por«uma fidelidade aos grandes afectos, à poe-sia como experiência vital, à religiosidadedos sentimentos». Outros seguidores e estu-diosos da sua produção literária para crian-ças e jovens, iniciada com O Livro da Tila(1957), são unânimes em reconhecer-lheum papel pioneiro na criação de laços afec-tivos com a leitura e na abertura aos múlti-plos sentidos da palavra. Para Natércia Ro-cha, «a sua acção como pedagoga acompa-nha a sua acção como poeta», enquanto JoséAntónio Gomes a coloca entre os autoresque «contribuíram de forma decisiva para arenovação da poesia para a infância no pe-ríodo 1950-1980».

Um aniversário inéditoNas últimas décadas, foram muitas, porven-tura incontáveis, as homenagens prestadas aMatilde Rosa Araújo. Em 1980, coube-lhe oGrande Prémio Calouste Gulbenkian de Li-teratura para Crianças, atribuído pela pri-meira vez nesse ano, ex æquocom Ricardo Al-berty. Em 1994, representou a candidaturaportuguesa ao prestigiado Prémio HansChristian Andersen. Em 2004, recebeu dasmãos do escritor e amigo Urbano TavaresRodrigues o Prémio Consagração de Carrei-ra da Sociedade Portuguesa de Autores. Ago-ra, na celebração de mais um aniversário, aos86 anos, viu o seu nome «emprestado» a umasala do Centro de Estudos e Recursos de Li-teratura & Literacia Eça de Queiroz, organi-zador do encontro entre a escritora e os seusleitores, grandes e pequenos.

Até 29 de Junho, no espaço cedido pelaEscola Secundária Marquês de Pombal, emLisboa, os visitantes vão poder conhecer OsUniversos de Matilde, uma mostra de objec-tos pessoais da escritora – e não só – que su-gerem pistas para a leitura da sua vida e obra.Lá estão a boneca Januáriaque o tio lhe trou-xe de Paris, o ferrinho de engomar com quebrincava com a irmã, o cão Rolito que os co-legas do Barreiro lhe ofereceram à despedi-da da escola – muitos aparecem no livro Se-gredos e Brinquedos (2000), ilustrados porMaria Keil. Objectos importantes, precio-sos, insubstituíveis, mas nem por isso moti-vo de um culto nostálgico ou exagerado. Osgrandes valores de Matilde Rosa Araújo sãode ordem imaterial, isso é fácil de perceber.De resto, não costuma celebrar o dia em quefaz anos. Porquê? «Não sei.» Depois da fes-ta, o regresso à casa da Rodrigues Sampaio ea um quotidiano tranquilo. «Continuo a es-crever. Ajuda-me a viver.»«

O cão Rolito, na casota de madeirafeita pelo senhor Joaquim, e a

Januária, boneca vinda de Paris.