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Michelle Lopes Natália Beraldi Retrato de mulheres do Jardim São Marcos

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Este livro é um Projeto de Conclusão de Curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas composto por perfis jornalísticos que retratam mulheres distintas, que possuem um orgulho em comum: morar no São Marcos.

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MichelleLopes

Natália Beraldi

Retrato de mulheres do Jardim São Marcos

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Retrato de mulheres do Jardim São Marcos

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Retrato de mulheres do Jardim São Marcos

Michelle LopesNatália Beraldi

1° edição

Campinas/SP2013

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Às mulheres de nossas vidas - Angela e Suely.Às mulheres que constroem diariamente a

história do São Marcos.

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“Ser repórter é algo profundo, definitivo, do que sou. Todo o meu olhar sobre o mundo é mediado

por um amor desmedido pelo infinito absurdo da realidade. E pela capacidade de cada pessoa reinventar a si mesma, dar sentido ao que não

tem nenhum. São estes os únicos milagres em que acredito, os de gente.”

Eliane Brum

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Sumário

Apresentação 10A reservada flor do Primavera 14A festeira do São Marcos 20Um pedaço de rapadura entre o Primavera e o Vedruna 28A razão de viver além do diploma 34O tom da determinação 42Da construção à luta no São Marcos 52A agente de saúde para Viver 62Os caminhos para a superação dos vícios 72O apego de mãe 80Duas vidas e uma história de Renascimento 86Agradecimentos 100

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Apresentação

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Olhar para as periferias das cidades agrega mais conhecimento sobre o próprio espaço urbano em que habitamos do que se possa imagi-nar. Como mais um dos muitos bairros periféricos de Campinas, o Jar-dim São Marcos, localizado na Região Norte, que abriga cinco mil dos 1.080.113 habitantes da cidade, é composto em sua maioria por mora-dores migrantes de diferentes partes do país e de Campinas que busca- ram por meio de sua mudança para ali novas oportunidades de vida. O bairro é conhecido pela falta de segurança, empregos e infraestrutura, uma visão estigmatizada que perpetua há anos no inconsciente dos mo-radores de Campinas.

A partir disso, formulou-se a ideia de retratar a realidade dos mora-dores do São Marcos, visando capturar suas rotinas e histórias de vida, que vinculam-se diretamente com a história do bairro, pois ao per- tencerem àquela região colaboram para sua construção. Para a seleção de tais moradores estipulou-se um critério: deveriam ser moradoras. A escolha especial pelo retrato de mulheres originou-se de sua própria condição, sendo um gênero ainda, infelizmente, considerado inferior na estrutura da sociedade. Buscou-se apresentar o cotidiano das mulheres que vivem ali, cidadãs comuns que colaboram para o desenvolvimento do São Marcos, e também suas vidas, resgatando momentos impor-tantes de suas trajetórias para produzir um registro de suas memórias, o que muitas vezes não é feito no dia a dia.

A dificuldade principal no estudo das mulheres dos séculos passados, por exemplo, caracteriza-se pelas lacunas de registros deixadas, muitas vezes limitando-se aos seus diários pessoais. A intenção deste livro é não permitir que este grupo de mulheres permaneça sem registros e sem histórias. Compreende-se a necessidade de retratar as suas lutas diárias, realizando também uma documentação sobre a realidade onde vivem.

Dessa maneira, através do retrato de suas realidades – mães, tias, trabalhadoras, voluntárias das ONGs atuantes no bairro, estudantes, frequentadoras do centro de saúde – busca-se dar voz a um grupo de pessoas naturalmente excluídas. Neste caso, duplamente excluídas: são mulheres que moram na periferia.

Neste livro encontram-se histórias de mulheres que cresceram no Jardim São Marcos ou que em algum momento de suas vidas mudaram para lá, de forma que acompanharam a melhora nas condições urbanas,

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Apresentação 13

humanas e de segurança. Esta é a oportunidade de apresentar ao leitor uma realidade tão próxima da cidade de Campinas, mas desconhecida para grande parte da população. Apresenta-se aqui a realidade de um bairro por meio dos retratos individuais de mulheres e suas famílias. Estas são moradoras que, apesar de algumas dificuldades ainda viven-ciadas, buscam colaborar cada vez mais com o desenvolvimento do bairro, lutando por melhorias em suas próprias vidas e também aju-dando jo vens a alcançarem futuros melhores e idosos a terem melhores condições de vida através de trabalhos desenvolvidos ali.

Este livro é um Projeto de Conclusão de Curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas composto por 10 perfis jornalísticos que retratam vidas de mulheres distintas, que possuem um orgulho em comum: morar no São Marcos.

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A reservada flor do Primavera

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¹ Dado fornecido pela Prefeitura Municipal de Campinas.² Número baseado na média entre o número de prontuários (quatro mil) abertos no Centro de Saúde São Marcos e no número de registros de casas do bairro informado pela SANASA (este número informado pela SANASA e multiplicado por quatro gera uma média de seis mil habitantes naquela região).

Quem caminha pelo Galleria Shopping, localizado na Região Leste de Campinas, encontra no primeiro piso uma singela loja chamada Oficina Primavera. Cheia de artesanatos, brinquedos e itens para o lar, chama a atenção pela costura do patchwork e pelos detalhes caprichados de todos os artigos expostos. Nesse shopping, conhecido pela elegância e frequência da parte mais rica da população de 1.080.113 habitantes da cidade, são vendidos os trabalhos manuais que colaboram financei-ramente para manter o Grupo Primavera.

A Organização Não Governamental, localizada no Jardim São Mar-cos, na área Norte da cidade, é mais uma de tantas outras que atendem esta região periférica de 554.500 m²¹ que abriga aproximadamente cinco mil pessoas². Sua especialidade: meninas. Atende cerca de 500 adolescentes, entre oito e 18 anos, que aprendem trabalhos manuais e fazem diversos cursos complementares à grade escolar. Ali, entre as salas de aula, há um cantinho utilizado como oficina de artesanato onde trabalha uma equipe de produção profissional, composta por morado-ras do bairro, que abastece a loja do shopping. Uma dessas mulheres é Lúcia.

Moradora do São Marcos por todos os 36 anos de sua vida, Lúcia é mãe de uma única filha, Luana, hoje com 17, que há alguns anos também fez parte do grupo de meninas que frequentam o Primavera em período contrário ao da escola. Não se adaptou, no entanto. “A pessoa tem que gostar, né? Aqui as meninas aprendem a fazer bordado e artesanato. Ela não gosta dessas coisas, não”, explica Lúcia, que ainda lamenta a escolha da filha.

Aos 18 anos, quando as meninas desligam-se da ONG, encontram sempre um emprego, já que ao longo dos anos que permanecem ali dentro adquirem várias habilidades e podem começar a exercer uma profissão. “As pessoas deveriam dar mais valor ao Grupo. Minha filha mesmo, por exemplo, se tivesse pegado firme, era para ter um trabalho bom hoje, porque muitas amigas dela, que também estudaram aqui, estão trabalhando”.

Durante o período em que Luana participava das atividades dali, Lúcia, que ao contrário da filha sempre gostou desse tipo de trabalho manual, logo se inscreveu em um dos muitos cursos de artesanatos que são oferecidos às mães. Aprimorou um gosto que já tinha. Foi assim

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que o artesanato, de forma profissional, entrou em sua vida. Quase que por acaso, quando ficou desempregada, surgiu uma vaga na equipe de produção da Oficina Primavera e lá está ela registrada há cinco anos.

Das 7h42min às 17h30min, costura e monta bonecas, faz fantoches e “um pouco de tudo”, explica. Quando há muitas encomendas, Lúcia ainda leva trabalho para casa, hora extra que ajuda a garantir dinheiro a mais no orçamento de sua casa. Lá, inclusive, possui um cantinho para fazer artesanato, principalmente o crochê, seu favorito.

Lúcia sempre viveu nessa região: quando sua família mudou-se para o bairro, São Marcos ainda não existia, ali era o Jardim Santa Mônica. Seus pais e mais três irmãos moravam na casa dos avós. Depois, com o aumento do número de moradores, o bairro se dividiu: começou a existir também o Jardim São Marcos e foi onde sua mãe comprou uma casa para a família.

Ela cresceu em um bairro ainda em formação, sem estrutura ou se-gurança. “Aqui era onde o bicho pegava: as ruas eram de terra, quando chovia era difícil ir pra escola porque as ruas ficavam cheias de água, era tudo barraco. E foi na época que tinha um rapaz, o Capeta, que fazia o terror”. Conhecido como “o rei do São Marcos”, Capeta foi muito procurado durante a década de 1990 e sua morte, em fevereiro de 1997, trouxe uma calmaria sentida pelos moradores do bairro. “A violência melhorou! Ele morreu, né... Dizem que mataram ele em Barão Geraldo. Depois disso melhorou!”. Lúcia lembra-se dessa época e agradece por sua família nunca ter tido problemas com violência. Ela recorda que, in-felizmente, muitas de suas amigas de escola não tiveram a mesma sorte.

Foi nessa escola do bairro onde ela conheceu seu marido, o Mar-cos, com quem está casada há 21 anos. Foi durante um campeonato em que ele jogava futebol. Os esportes, por sinal, fizeram parte de sua adolescência: seu sonho era ser jogadora de vôlei. Mas não seguiu com o plano adiante: estudou até a 8ª série, trabalhou, casou, criou Luana. Seus sonhos em família foram colocados na frente.

Seu marido, Marcos, também sempre morou no bairro. Foi ao lado dele um dos episódios que Lúcia recorda-se, hoje aos risos, de ter esta-do em perigo. Ainda na mesma época em que o Capeta vivia no São Marcos, surgiu “Lorenzo, o tarado”, conhecido por aterrorizar as meni-nas de lá. Numa noite, Marcos acompanhava a namorada de volta a

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casa, depois de terem jantado com seus pais, quando o tarado apareceu. Escondido num terreno vazio esperou que o casal passasse por ele e depois, ameaçando-os com uma arma, fez com que eles voltassem pelo mesmo caminho por onde tinham vindo.

Revistou os dois, mas não encontrou nada para roubar. Em um mo-mento em que Lorenzo pareceu distraído, Marcos tomou a arma dele e o colocou para correr – correndo atrás dele também, claro, para garantir que fosse mesmo embora. “Ele fez a gente entrar no meio do mato! Sorte que o Marcos foi pra cima e saiu correndo atrás dele. Eu fiquei lá gritando com medo. Tinha me ferrado se estivesse sozinha”, recorda.

Por falta de condições financeiras, Lúcia e sua família nunca saíram do São Marcos e ali construíram tudo o que têm: um carro e uma casa construída em cima da de seus pais, que cuidam ainda de uma de suas irmãs, de 32 anos, portadora de deficiência mental. Lúcia, que já tra-balhou como ajudante de cozinha e em uma cooperativa, hoje com seu cargo no Grupo Primavera cultiva ao lado do marido, que é almoxarife em uma empresa de vidros, o sonho de ter sua casa própria. É uma de suas metas para o futuro – a outra é ainda fazer um curso de corte e costura. “Eu sou curiosa. A gente tem que ser um pouco de tudo: dona de casa, mãe, trabalhadora, tudo ao mesmo tempo”, diz referindo-se aos seus gostos por conhecer as variadas técnicas de artesanatos que existem.

Reservada, não é de falar muito e diz ser assim desde pequena. Mes-mo antes de nos encontrarmos, durante seu período de almoço, sua co-lega de trabalho, Dona Cida – cozinheira da ONG – comenta: “Ela não vai querer falar não, estava lá desistindo, estava tímida”. No final, aceita. Consegue abrir-se para falar sobre sua vida, mas deixa para nos revelar uma vitória alcançada só no final: esta é a história de uma mulher que já conviveu com o temor do câncer.

“Descobri quando dos meus seios começou a sair uma secreção e manchava. Eram nos ductos e para parar isso precisaram tirar os dois. Deu esse problema”. O problema foram células cancerígenas que apare-ceram nas mamas de Lúcia, que preferiu retirá-las antes que surgissem problemas maiores, como um câncer. Perguntamos se não foi precipita-do, ela afirma que não. “Dizem que o mal a gente tem que cortar pela raiz, né? Eu concordei”.

O câncer de mama é o segundo tipo mais frequente do mundo,

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representando 22% dos novos casos de câncer a cada ano. É o mais comum entre as mulheres, sendo que uma a cada 12 terão um tumor nas mamas até os 90 anos, segundo dados da Sociedade Brasileira de Mastologia. A mastectomia, nos casos como o de Lúcia, é indicada em mulheres com alto risco de desenvolver a doença, principalmente por predisposição genética. Levando em consideração que uma de suas irmãs também teve o mesmo problema, Lúcia aceitou retirar as duas mamas há 10 anos, mas ainda aguarda a cirurgia de reconstrução. “A assistente social diz que se eu for depender do SUS para fazer isso, não vou fazer. A fila é muito grande e a cada dia aparecem novos casos”, lamenta, sem se arrepender.

Essa informação, inclusive, foi revelada apenas agora, no final, porque é assim que ela a vê: só como mais um detalhe de sua vida. Nem mesmo o medo de voltar a se olhar no espelho, já que era cheia de vaidade, a fez desistir de sempre lutar pela vida. Hoje considera a experiência pela qual passou como mais um aprendizado, não como algo que tenha transformado sua maneira de viver. “No dia que fiquei sabendo quase morri de tanto chorar. Na hora a gente pensa em tudo de ruim que tem, né? Mas tem que ser forte e acreditar que tudo passa na vida, o que é bom e também o que é ruim. Tem que acreditar em Deus em primeiro lugar”.

Hoje Lúcia confia mais em si mesma e acredita que sua fé e sua família tiveram um papel fundamental, dando a ela o apoio necessário para superar essa experiência. Aceitar submeter-se à mastectomia au-mentou sua coragem e vontade de viver com saúde. Perguntamos se ela faria tudo de novo. “Com certeza”, diz com um sorriso de quem sabe a força que tem por passar pelo o que já passou.

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A festeira do São Marcos

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¹ Dado fornecido pelo Grupo Primavera.

Infelizmente, algumas meninas, como Luana, filha de Lúcia, desistem de participar das atividades oferecidas pelo Grupo Primavera, o que representa uma exceção das inscrições, menos de 10%¹. Há, no entanto, situações em que o vínculo estabelecido com a ONG é tão forte que nem mesmo após pararem de frequentar o Primavera, geralmente aos 18 anos, quando chegam à idade máxima permitida para as educandas, elas distanciam-se do Grupo, tanto as meninas como suas mães.

É o caso de Jéssica Regina Gonçalves, hoje com 22 anos, e sua mãe, Sônia Monteiro Gonçalves, 50. Mas a história não é sobre Jéssica, e sim sobre Sônia, uma senhora pequenina, que aparenta ter menos idade do que realmente tem. Chegou a nós através de Alessandra Aparecida de Oliveira, assistente social da ONG, que quando questionada sobre o envolvimento das mães com as atividades promovidas pelo Grupo, logo nos disse: “Vocês precisam conhecer a Sônia”.

Conhecemos. Mesmo depois de um dia inteiro de trabalho, aguar-dava-nos de muito bom humor, bem-vestida e com a maquiagem im-pecável. Descontraída, com um jeito divertido, parecia contente da vida por estar de novo dentro do Primavera, onde a convidamos para con-versar. Afinal, foi lá onde Sônia passou muitas e muitas horas de sua vida – e ainda passa, sempre que possível. Conta-nos que participa da maioria das atividades oferecidas pelo Grupo. “Todo dia eu estou aqui. Por enquanto não está tendo nada, nenhuma oficina, mas quando tem, eu participo de tudo, eu gosto. A minha filha saiu, eu não”, brinca.

A filha desenvolveu muitas habilidades durante o período em que frequentou a ONG, gostava muito de dançar e bordar, atividades que realiza até hoje, agradando a mãe quando a presenteia com artefatos bordados com seu nome. Hoje Jéssica trabalha em uma empresa de tele-marketing e planeja casar-se no ano que vem. Pela falta de tempo ainda não ingressou na faculdade, mas pretende, ainda mais porque Sônia in-siste sempre para que ela continue os estudos. “Ela é meio cabeçudinha. Eu pego no pé dela, falo que tem que estudar, que é importante, dou conselho, digo pra estudar mais, mas de resto tudo bem, nós conver-samos muito, somos amigas, conversamos sobre tudo”.

Sônia viu a oportunidade de colocar sua filha, na época com 12 anos, para participar das atividades oferecidas pelo Grupo Primavera como uma forma de aprimorar os gostos por trabalhos manuais e corporais da

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filha. Aproveitou a chance e acompanhou-a em tudo. “Eu trazia, vinha junto, sempre participei de tudo o que tinha aqui. Fazia crochê, fazia os cursos junto, três anos de teatro, três anos de jazz. A gente apresentava até pra fora daqui. Era supergostoso”, relembra.

Sendo mãe, considera a presença das ONGs muito importante para a melhora da situação do São Marcos, pois são lugares que oferecem atividades aos filhos de mulheres que trabalham e que estariam na rua, sem nada para fazer, caso não existissem essas instituições. Jéssica foi a única filha de Sônia que frequentou regularmente uma ONG. Seus outros três filhos, Juliano, de 29 anos, Jefferson, 28, e Jerson, 20, fize-ram alguns cursos profissionalizantes, como os de eletricista e padeiro, que sempre são oferecidos gratuitamente pelo Centro Espírita Allan Kardec, no núcleo Vila Nova, ao lado da Indústria de Pães Bambini, próxima àquela região. “Mas criar quatro filhos no São Marcos para mim não foi difícil, eu não trabalhava quando criava eles. Levava e bus-cava na escola, nunca deixei eles irem sozinhos. Hoje, do jeito que estão as coisas a gente tem que ter muito cuidado com nossos filhos, né? Mas quando eles foram crescendo fui ensinando essas coisas, pra atravessar a rua, não pegar as coisas dos outros, não aceitar nada, não entrar no carro de ninguém, sempre falei isso pra eles”.

A lição sobre não entrar em carro de estranhos, Sônia, quando jovem, aprendeu com um susto. Ela, que desde os 10 anos mora no bairro, sempre cultivou muitas amizades e seu gosto por festas. Revela, aos risos, que saía escondida para ir a festas com as amigas mesmo quando ainda nem tinha idade para tanto. “Eu ia nas baladas, mas nunca com pessoas da minha idade, eram tudo mais velhos que eu, me buscavam e me traziam de volta. Ia pra dançar, pagode, carnaval... Quer dizer, eu ia com pessoas mais velhas, que tinham responsabilidade, então não es-tava perdida no mundo. Minha mãe ficava inconformada porque nem podia entrar nos lugares, era de menor, aí eu falava que era de maior, meus amigos ajudavam e eu conseguia entrar!”, conta.

Em uma dessas vezes, chegando a uma festa com sua amiga, esta encontrou o namorado. Por isso, quando Sônia, em certa hora da noite, quis ir embora para que a mãe não notasse sua falta (e batesse nela quando chegasse), a amiga não quis ir, queria ficar um pouco mais ali. Então, Sônia arranjou carona com um rapaz que também estava na fes-

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ta, mas que ela não conhecia. “Ele falou que me levava embora. Aí no meio do caminho, ele queria se aproveitar de mim, mas eu era esperta! Chegando ali perto do [bairro] Matão, eu comecei a gritar e por sorte a polícia estava do outro lado e viu. A polícia bateu no vidro e eu falei que ele estava tentando me estuprar e foi nós dois pra delegacia. Ele falou que ia me matar e eu respondi ‘pode me matar, mas que você não vai por a mão em mim, não vai’”, fala de uma maneira marrenta que já tínhamos percebido antes.

Mas a história não ficou por aí. Com a situação, sua mãe, dona Dar-ci, teve que ir buscá-la na delegacia. Estava tão brava que a todo custo queria descobrir se realmente não tinha acontecido nada entre o moço e sua filha, porque, se tivesse, eles teriam que casar. Ao lembrar-se da mãe preocupada com casamento diante daquilo, Sônia desata a rir. “Ela falou que se ele tivesse feito alguma coisa a gente ia ter que casar. De jeito nenhum! Mas depois disso, nunca mais aceitei carona, por isso que tem que ensinar os filhos que não se pode aceitar nada de ninguém”, conclui.

Foi com esse jeito arruaceiro que Sônia, aos 20 anos, conheceu seu marido, José dos Reis Gonçalves, em plena folia de carnaval. Após quatro noites de festas bem aproveitadas, quando Sônia pôde dançar e sair à vontade, sem estar fugida de casa, ela o viu no salão que ficava na mesma rua onde os dois moravam. Ele também era do São Marcos e compartilhava de sua paixão por festas, mas eles nunca tinham se visto. Depois desse primeiro encontro, começaram a namorar. “Foi tudo muito rápido, sabe? Comecei a namorar ele no começo de 1982, em 15 de outubro nós ficamos noivos e em 26 de dezembro casamos. Foi tudo rápido. Minha mãe achava que se começava a namorar e já ficava grávida, mas eu falava que eu tinha cabeça, que não precisava casar, mas ela achava que eu era fogueteira”, ri.

A preocupação de sua mãe foi mesmo em vão, porque Sônia só en-gravidou de seu primeiro filho, Juliano, quase dois anos após o casa-mento. “E assim faz 30 anos que somos casados. É uma vida, né?”, pen-sa alto. Festeiros, sempre aproveitaram a vida juntos, principalmente o carnaval, data especial em que comemoram o início desse longo rela-cionamento. “Ele saía em escola de samba até! Nunca proibi, não, vou até junto. Ele toca pandeiro também e eu nunca tive ciúmes não. Acho

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² Fonte: MINISTÉRIO DA SAÚDE. AVC: governo alerta para principal causa de mortes. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/noticia/7904/162/avc:-governo-alerta-para-%3Cbr%3Eprincipal-causa-de-mortes.html. Acesso em: 20 de out. 2013.³ Fonte: MINISTÉRIO DA SAÚDE. Alcoolismo. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/saude/2012/04/alcoolismo. Acesso em: 06 de set. 2013.

que isso que acaba com um relacionamento, se a pessoa é ciumenta demais é a pior coisa”, ensina.

E foi seu marido quem, infelizmente, possibilitou que ela treinasse para desempenhar a atual profissão de cuidadora de idosos e pessoas com necessidades especiais de saúde. Ela, que sempre teve o sonho de ser médica, é quem cuida dele após ter sofrido um Acidente Vascular Cerebral (AVC) há cinco anos. O AVC, popularmente conhecido como derrame, atinge 16 milhões de pessoas por ano no mundo. Dessas, seis milhões não sobrevivem².

Hoje ele está melhor e consegue realizar algumas atividades sozinho, mas os cuidados principais ficam a cargo de sua esposa. Antes disso, Sônia também já havia passado por função parecida, quando precisou cuidar de seu pai, José, que teve leucemia e faleceu. Com a experiên-cia, ela percebeu a possibilidade de ser uma cuidadora, principalmente porque sempre teve carinho pela profissão. Como a segunda filha mais velha de nove irmãos, que vieram com os pais da cidade de Anastácio, Mato Grosso, teve que tomar conta dos mais novos enquanto os pais trabalhavam. Ainda criança aprendeu a cuidar de outras pessoas.

“Minha mãe e meu pai iam trabalhar e era eu quem cuidava das cri-anças. Não era dificuldade pra mim, porque desde cedo eu cuidava de irmão para os pais trabalharem, né?”, diz Sônia, que alimentava o sonho de ser médica e sempre que via uma pessoa doente tinha vontade de cuidar. “Lembro que quando a gente morava lá no Mato Grosso tinha uma menina que tinha aquela doença que a cabeça é grande, sabe? Eu fui na casa dela um dia e perguntei pra minha mãe se ela deixava eu cui-dar dela. Ela falou que não, de jeito nenhum. Ficavam com medo e eu só queria ficar perto. Ela ficava me chamando, me olhando com aquele olhar...”, lembra-se da criança de um jeito maternal.

Mas agora ela pode cuidar de quem precisa de sua ajuda. Levanta todos os dias às 5h da manhã e muitas vezes quando é 6h já está fora de casa. Durante a manhã cuida de um homem de 48 anos que ficou tetraplégico por causa de um acidente de carro. Depois, vai para a casa de uma senhora de 78 anos com problemas de coração. Lá pelas 17h chega a casa e cuida dos quatro filhos, uma nora e o marido, que moram todos com ela. Do marido cuida não apenas por causa de suas sequelas do AVC, mas porque ele faz parte dos 12% de brasileiros³

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com dependência química do álcool. “Dá trabalho. Depois que sofreu o AVC ficou cinco anos sem beber. Eu tirei bebida e cigarro, tirei tudo dele. Depois, assim que ele voltou a andar, já voltou a beber também”.

Seus filhos, por sorte, Sônia garante que não dão trabalho algum e ainda colaboram com o que é possível, principalmente com a condição do pai. “Eles sabem que pai e mãe a gente tem que respeitar, por mais que o pai esteja errado... Até mesmo se o pai cai, fica lá e se machuca, eles vão, ajudam, trazem ele”. Ela conta que participou de palestras so-bre alcoolismo, levada pela antiga assistente social do Grupo Primavera, Carmen Ferreira, e que lá aprendeu a lidar melhor com o vício do mari-do. “Dá trabalho, ele muda, xinga, ofende, essas coisas. Mas eu falo para os meninos fingirem que ele nem tá falando, pra evitar confusão, né? Quanto mais a gente debate com uma pessoa que bebe é pior”, lamenta.

Apesar da dificuldade em enfrentar a situação, Sônia não perde o carinho pelo marido e a alegria de viver, que a anima, inclusive, para sair e dançar em alguns finais de semana. Até explica que José não bebia dessa forma e que tudo começou após a morte de sua sogra, de câncer, que o deixou muito abalado. “Mas mesmo assim, eu nunca fui para cima dele porque a minha sogra sempre dizia que ele não arrumou uma mulher, arrumou um anjo, porque é normal perder a paciência, né? Eu sempre tive paciência demais”.

Com paciência demais e bom humor, Sônia, que ainda levanta todas as madrugadas quando os filhos chegam de festas para verificar se eles estão todos bem, planeja cuidar sempre da família e manter, princi-palmente, os filhos por perto. Quer ainda fazer um curso técnico de enfermagem, para complementar todo o conhecimento que adquiriu na prática com as pessoas de quem cuida. Além disso, cobra dos filhos seus netos. “Espero que meus filhos tenham suas vidas encaminhadas, né? E uns netinhos! Quero ser avó!”, diz Sônia que será uma avó, além de festeira, bem moderna, com seu piercing prateado na orelha.

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Um pedaço de rapadura entre o

Primavera e o Vedruna

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Outra “menina-primavera”, como são chamadas as educandas do Grupo, foi Joice Miranda, que começou a participar das atividades de lá aos 11 anos de idade. Agora, com completos 16, não vai mais, porque trabalha como Menor Aprendiz do CIEE no Banco do Brasil. Antes do Primavera, Joice, como seus dois irmãos, Jonathan, 18, e Reginaldo, 11, frequentava a Associação Beneficente Campineira, conhecida por ABC, pertencente à Igreja Metodista. Dos três, apenas Reginaldo Júnior, que carrega o nome do pai, ainda participa e não troca por nada seu posto no grupo dos Meninos Sapateadores do Jardim São Marcos, um dos projetos da ONG.

Para a mãe desse trio, Érica Cristiane Lopes da Silva, nascida no centro de Campinas e moradora do Jardim São Marcos há 16 anos, a existência de diversas instituições como essa no bairro é um dos prin-cipais pontos positivos de morar ali. “São as ONGs que ajudam a tirar as crianças da rua, porque aqui tem um alto índice de violência. As crianças que ficam nelas são justamente os filhos das mães que estão trabalhando e que não têm lugar para deixar. Aí eles já vão aprendendo alguma coisa também”, diz.

Ela, que dá grande importância para a educação dos filhos, seja em escolas em período normal ou pela participação em ONGs, e cujos filhos são, de alguma forma, ligados a duas das instituições do São Marcos, o Primavera e o ABC, tem um vínculo maior com uma terceira: a ONG Vedruna. É ali onde ela divide parte do seu tempo, quase inteiramente dedicado à família. Às 7h45min ela assume um grupo de 26 crianças entre nove e 11 anos e os libera ao meio-dia – horário em que corre para sua casa, cruzando o bairro em uma singela bicicleta, para receber o filho mais velho que chega do trabalho.

Antes de ser a mais nova educadora da ONG, registrada desde maio de 2013, Érica teve diversas funções: trabalhou em supermercado, foi doméstica, governanta, panfletou e, durante sete anos e meio, foi agente comunitária de saúde do bairro. “Eu nunca tinha trabalhado especi-ficamente com um grupo de adolescentes. Eu trabalhava como edu-cadora, mas na área da saúde, com grupos de prevenção e grupos de adolescentes, mas sempre voltado para a saúde. E agora eu estou aqui totalmente voltada para a educação”.

Por sinal, Érica tornou-se agente de saúde como Lucinete Valdivino

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e Rosana Rodrigues Santos, que ainda desempenham a função e formam a atual equipe de agentes de saúde comunitária do bairro, que deveria ser composta por quatro pessoas, mas por falta de funcionários (uma delas pediu demissão e a outra cobre ausência de um funcionário administrativo) segue prejudicada desde 2009. Todas as agentes chegaram ao Centro de Saúde São Marcos por meio de um concurso realizado pela Prefeitura de Campinas no início da década de 2000. Quando efetivadas, no entanto, foram registradas pelo Serviço de Saúde Cândido Ferreira em vez de o serem pela Prefeitura, como estava previsto no edital. O caso terminou dentro das normas quase quatro anos depois, quando as agentes foram reconduzidas para funcionárias oficiais da Prefeitura da cidade. Érica, porém, já tinha se demitido para poder terminar seus estudos na faculdade com mais tempo.

No entanto, chegar ao Vedruna não foi um acaso, pois desde criança Érica sonhava em ser professora. E apesar de seus outros empregos, nunca esteve longe da educação: dos anos em que mora ali, dedicou 11 ao voluntariado em ONGs. Atuando como agente de saúde conheceu todas as instituições instaladas no bairro, as quais ajudava sempre que preciso. Ainda hoje, durante a tarde, quando alguma delas necessita de ajuda, por falta de funcionários ou pelo grande número de crianças frequentando a ONG naquele período, recorrem a ela.

Aos 36 anos, acaba de formar-se em Pedagogia, alcançando oficial-mente seu sonho de ser professora. Enxerga essa demora em concre-tizá-lo não como um atraso, mas um investimento. “Não me arrepen-di em adiar este projeto, porque hoje eu tenho três filhos muitíssimo bem-educados e eu não vejo como perda de tempo ficar em casa com eles, porque eles foram muito bem orientados durante o tempo que eu fiquei. Mas as crianças foram crescendo e eu fiquei pensando: ‘Eles vão crescer e eu vou fazer o quê?’. Resolvi voltar a estudar para poder ter uma profissão, porque até então eu era ‘do lar’ ou qualquer coisa que aparecia. Agora eu sou pedagoga. Eles estão cada um no seu caminho e eu estou no meu”, explica a nós duplamente orgulhosa: pela boa edu-cação dada aos filhos e pelo diploma que agora carrega.

Os estudos e o crescimento dos filhos foram fatores importantes que impulsionaram Érica a buscar aquilo que desejava. Outro motivo foi o momento difícil pelo qual passava seu casamento. Tendo em vista

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uma possível separação, resolveu trilhar sozinha mesmo seu caminho. “Isso tudo me chamou a atenção para buscar alguma coisa para mim, como pessoa”. Para isso, contou com a ajuda dos filhos mais velhos, que tomavam conta de Reginaldo, o caçula, quando ela saía à noite para estudar do outro lado da cidade, na Universidade Paulista, no bairro Swift. Érica conta que ficava com o coração na mão ao deixar os filhos para trás, mas que aquela era uma atitude que precisava ser tomada. A separação era outra. Concluiu as duas.

O fim de seu casamento tem causas, em partes, fundadas no São Marcos. Quando ela e Reginaldo mudaram-se para o bairro, encararam como uma possibilidade de crescimento pessoal e, principalmente, como um casal. Juntos havia cinco anos, moravam ao lado dos pais e sempre que precisavam de algo ou passavam por alguma dificuldade recorriam a eles, em vez de procurarem uma solução juntos. Comprar uma casa afastada dos pais representava uma tentativa de verificar se dariam certo como uma família. Compraram casa, carro, tiveram três filhos. E na educação dos filhos Reginaldo falhou. Ela, mãe coruja, optou por limitar a convivência dos filhos com ele através da separação. “Esse bairro tem valores e ‘desvalores’. Se você tiver cabeça e juízo, você vive bem porque tem ONG, Igreja, o Ceasa, faculdade, curso técnico, tem de tudo. Só que, infelizmente, também tem o lado escuro e Reginaldo começou a beber e a andar com más companhias. Eu tenho três adolescentes e, como toda mãe, tenho que escolher que tipo de vida eu quero levar. E eu fiz a minha escolha”, explica. Firme, não demonstra tristeza.

O ex-marido, que há muito estava desempregado e não colaborava com as contas, voltou para a casa da mãe. Não ajudava a família an-tes, tampouco agora e, por isso, Érica não se arrepende e acredita ter feito a escolha certa. Diz que não passou por momentos difíceis, lem-brando-se sempre de que tinha tomado uma decisão e não havia por que mudá-la de novo. Com a separação dos pais, Joice e Jonathan, que já colaboravam com a educação de Reginaldo Júnior, assumiram mais uma responsabilidade dentro de casa: começaram a trabalhar e ajudar financeiramente a mãe, com quem dividem as despesas da casa.

A colaboração, no entanto, não vem de uma relação severa com Érica, mas de amizade. Eles, inclusive, compreendendo a situação da

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mãe, buscaram apoiá-la no momento do divórcio. “A gente tem uma relação superaberta, falamos de tudo: drogas, sexo, zoeira. Se tiver que chamar a atenção, um chama do outro. A gente divide as contas em três e divide a educação do de 11 também. Por eles terem visto que o pai não conseguia dar muito apoio ficou esse peso para eles também. Quando o pai foi embora, que a gente decidiu se separar e foi ele quem saiu, eu continuei terminando o último ano da faculdade e eles me ajudaram a cuidar. Até hoje a gente divide tudo em três”, conta.

Professora e mãe, Érica sempre ajudou na educação dos filhos e ain-da com o filho mais novo senta-se durante a tarde e o auxilia nos deveres de casa. Atenção de mãe que leva para dentro do Vedruna, em sala de aula, todos os dias. Por criar três filhos no São Marcos, conhece as difi-culdades enfrentadas no cotidiano dos moradores do bairro e utiliza isso para educar melhor os adolescentes que por ela passam. “É trabalhoso, porque você tem que estar com os dois olhos abertos o tempo todo, saber a hora que sai, a hora que chega, com quem está, quem chegou perto, dobrar as orientações de não tomar nada da mão dos outros, não compartilhar copo, não aceitar drogas, não experimentar nada e sempre tem que responder às perguntas deles, às curiosidades assim que apare-cem, porque se você não responder, alguém responde. Se você não tem condição de dar as coisas, o tráfico dá”, alerta.

Atrasada para ir embora e encontrar o filho Jonathan, às 13h25min Érica passa pelo mesmo corredor que há uma hora estava lotado de crianças que a abraçavam antes de irem almoçar no refeitório da ONG. No tumulto da hora do almoço, aguardávamos Érica desvencilhar-se de todas, quando uma menina nos disse: “A comida daqui é maravilhosa, a melhor! Vocês vão comer? É uma das melhores coisas daqui”. Érica passa e a criança a agarra pela cintura, despede-se da professora e vai almoçar contente.

E foi falando em comida que ela resumiu como é ser mãe e educado-ra: “Tem que ser igual rapadura: nem muito dura e nem muito doce”. Dias depois, vemos a mesma professora que abraçava a todos sorridente na hora do almoço pedir brava um pouco mais de ordem às crianças que corriam animadas na hora da saída pelo corredor, carregando mo-chilas e empurrando bicicletas. A comparação com a rapadura, então, fez sentido.

Um pedaço de rapadura entre o Primavera e o Vedruna 33

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No mesmo Vedruna em que Érica trabalha há pouco menos de um semestre, trabalha também uma das mais antigas e fiéis admiradoras da ONG. Oficialmente, está na instituição desde 1993, ano em que foi inaugurada. De forma trabalhista, desde 2001. Renata Lopes Vieira, 27 anos, que sonhava em ser astrônoma, conheceu o Vedruna aos nove. Hoje, biomédica por formação e professora da ONG por opção, não troca seu trabalho ali por outro na área em que se formou. Por amor aos ensinamentos que recebeu no Vedruna durante a infância e que mudaram sua vida, ela faz questão de continuar transmitindo estes mesmos valores, colaborando para o desenvolvimento dos jovens moradores do bairro.

Tudo começou há exatos 10 anos, quando Renata viu nascer no solo de um terreno baldio o prédio em que passaria boa parte de sua juven-tude. A animação com a ONG instalada perto de sua casa foi tanta que ela jura ter sido uma das primeiras crianças a se inscrever ali. “Eu era a primeira da fila quando abriu! Hoje eu me sinto parte dessa história. No início era só parte do terreno, o resto foi sendo adquirido com o tempo. Eu presenciei todo esse processo enquanto moradora e depois como funcionária. É gratificante. A gente continua aqui porque acredita na missão. Se um dia, por acaso, eu não tiver mais trabalhando na ONG, eu tenho certeza que vou continuar como voluntária, porque acredito muito no trabalho do Vedruna”, diz.

Durante a infância, Renata participou das atividades ali oferecidas com todas as outras crianças de sua rua. Lembra-se de que a vivência na ONG nessa época colaborou para que ela norteasse o que gostaria de fazer no futuro, aprendeu a fazer planos e organizar-se financeiramente. “Aprendi a clarear meus objetivos”, resume. Foi por isso que ao chegar ao ensino médio já possuía maturidade para organizar a própria rotina de estudos, tarefas e trabalho.

Sempre muito estudiosa, ao final de seu último ano no ensino fun-damental foi considerada a melhor aluna da Escola Municipal de En-sino Fundamental Padre José Narciso Vieira Ehrenberg, localizada no São Marcos. Concorreu, assim, ao lado dos melhores alunos de cada escola municipal de Campinas a uma bolsa para cursar gratuitamente o ensino médio na Fundação Bradesco. Ganhou.

Tal benefício estipulava que o jovem ganhador fosse vinculado

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¹ Oficialmente, o termo “educador” refere-se a profissionais graduados em Pedagogia, mas tornou-se uma nomenclatura comum nos ambientes das Organizações Não Governamentais para referir-se aos trabalhadores responsáveis pela educação de turmas de crianças que participam das atividades oferecidas por elas, formados em Pedagogia ou não.

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profissionalmente a alguma instituição e que trabalhasse durante o dia, já que o período escolar na Fundação era noturno. Sem demora, Renata procurou o Vedruna e ofereceu-se para trabalhar. Aceita, começou outra espécie de laço com as crianças que ali estudavam e que antes eram seus colegas de turma. “Era monitora, organizava os espaços, a biblioteca, substituía os educadores¹ quando um estava atrasado ou faltava”, explica as atividades que seriam uma espécie de treino para tornar-se, anos mais tarde, uma professora da ONG que atualmente atende 155 crianças entre seis e 15 anos. Renata é responsável por uma turma de 28 crianças, entre 12 e 15 anos, durante o período da manhã.

Passaram-se três anos e o período crucial na vida de muitos adoles-centes, inclusive na dela, chegou: o vestibular. Entre História, Psicolo-gia e Pedagogia, Renata acabou escolhendo Biomedicina e, aos risos, quase nem sabe explicar o porquê. “Um dia eu estava pensando nas escolhas, olhando os papéis e resolvi arriscar Biomedicina”. Como boa aluna em todas as matérias, acabou tendo dificuldade em escolher uma única área na qual tivesse maior afinidade para direcionar-se na escolha do curso universitário.

Curso escolhido, novamente conseguiu uma bolsa integral, dessa vez do ProUni, para cursá-lo na Metrocamp (hoje Veris IBTA Metrocamp, do Grupo Ibmec Educacional). Os quatro anos em que se dedicou à faculdade foram bem valorizados, Renata não se arrependeu da escolha e tornou-se o orgulho da família, sendo a primeira a alcançar um di-ploma universitário. “Meus pais não tiveram oportunidade de estudar, então para eles sempre foi muito importante a questão do ensino. Era uma prioridade que eu estudasse, que eu pudesse ter um ensino superi-or e tudo mais”, revela.

Seus pais, Violeta e Divinaldo, que não tiveram oportunidade de prosseguir com os estudos e trabalharam toda a vida, ela como domésti-ca e ele como pedreiro, sempre a incentivando de todas as formas pos-síveis. Renata não cursou creche, nem pré-escola, mas ao entrar na 1ª série já sabia muitas coisas, como escrever o nome, contar etc. Tudo foi fruto do ensino caseiro do pai, que mesmo com o crescimento da filha continuava a sentar-se com ela para ajudar na lição de casa, a levava para a escola e fazia o possível para comprar todo o material necessário à sua aprendizagem. Tanta dedicação obteve resultado: agora formada, por

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² Fonte: Instituto Nacional do Câncer (INCA). Estimativa 2012: Incidência de Câncer no Brasil. Disponível em: http://www1.inca.gov.br/estimativa/2012/estimativa20122111.pdf. Acesso em: 20 de out. 2013.

exemplo, já planeja cursar pós-graduação no ano que vem e demonstra que seu gosto pelos estudos não acabou. “E agora todo mundo acha que eu sou meio nerd”, ri.

Apesar do diploma, Renata faz hoje aquilo que mais gosta. Pela ex-periência que adquiriu nas substituições dos educadores do Vedruna, tornou-se uma desde 2006, e colabora com a perpetuação da “Pedago-gia do Amor”, principal ponto de partida das atividades exercidas pela ONG, fundada pela Congregação das Irmãs Carmelitas da Caridade de Vedruna. Diante disso, perguntamos se o curso de Pedagogia não teria sido a melhor opção, mas ela explica que não. “Até pensei em ser professora durante um tempo, aí vi que o ensino formal não era uma coisa que me interessava, por ser muito rígido, muito certinho e detalhado, tirando a liberdade para criar. O Vedruna é muito diferente nesse sentido, porque como ONG a gente lida com imprevistos e nosso principal objetivo não é transmitir um conteúdo de exatas, de ciências, por exemplo, mas trabalhar os vínculos, os relacionamentos. Acho isso muito mais importante, muito mais interessante”, defende.

Tanto amor ao Vedruna reflete a gratidão pelos momentos que vivenciou ali, pelas amizades que fez e, principalmente, pelos ensinamentos que com o bom exemplo dos pais colaboraram para que ela sempre colocasse os estudos em primeiro lugar, rejeitando más companhias e atividades que sabia não serem corretas. Financeiramente, Renata concorda que seria mais vantajoso trabalhar na área de Biomedicina, mas coloca esse plano para o futuro por enquanto, depois da pós-graduação em Medicina Nuclear e Ressonância Magnética que planeja cursar. Após isso, ainda pretende conciliar as duas profissões. O que seria uma rotina puxada para muitos, para ela é o sonho de continuar ajudando o desenvolvimento do São Marcos por meio da educação das crianças que serão os adultos moradores do bairro.

Renata – fruto da segunda gravidez de Violeta – nasceu em Teófilo Otoni, Minas Gerais, em 1986, durante uma viagem à sua terra natal. Antes de seu nascimento seus pais haviam tido Augusto, que morreu aos dois anos e meio de leucemia, doença maligna nos glóbulos bran-cos, geralmente de origem desconhecida, que atinge aproximadamente cinco entre 100 mil homens².

O trauma foi tanto que o segundo filho do casal, Renata, nasceu

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apenas nove anos depois da morte do primeiro. “Eu senti muito o peso da morte do meu irmão, principalmente na infância, quando aos oito anos eu também tive uma suspeita de leucemia. Vi minha mãe reviver tudo o que tinha acontecido antes com ela”, lamenta. Apesar da suspei-ta, Renata não teve leucemia, mas descobriu uma doença que carregará por toda a vida: leucopenia crônica, caracterizada por um problema de imunidade reduzida, uma contagem inferior de leucócitos em relação à maioria das pessoas.

Hoje a doença está estabilizada, mas, quando pequena, Renata era sempre mais frágil do que as outras crianças, tinha mais facilidade para contrair doenças. Por isso não podia frequentar a casa de ninguém que estivesse doente, não participava das aulas de educação física para não se esforçar demais, evitava contato com produtos de limpeza e de beleza, como sabonete ou perfume. Agora, adulta e mais vaidosa, comemora que essa fase passou e pode tranquilamente aproveitar os cosméticos.

Completava um ano de vida quando chegou ao São Marcos, onde encontrou boa parte da sua família, que já morava no bairro. Ao longo de seus 27 anos viveu em apenas duas casas e conta que sua mãe, atualmente com vários problemas de saúde, como hipertensão e diabetes, que a impossibilitam de trabalhar e fazem com que ela fique muito tempo dentro de casa, quer mudar-se de novo. A rua onde Renata e seus pais moram ainda não tem asfalto, uma exceção entre as ruas do São Marcos, o que incomoda muito o cotidiano da casa. Renata, que divide as despesas da família com o pai, conta que gostaria de mudar para outra residência dentro do bairro mesmo, mas por conta dos altos preços dos imóveis acha impossível. “Outra coisa que eu planejo para o meu futuro é comprar um terreno”. Comprar um terreno e construir, com a força do pai, parece a saída mais viável, já que o aluguel de uma quitinete ali, por exemplo, custa aproximadamente R$ 650, valor similar a um imóvel da mesma natureza no distrito de Barão Geraldo, próximo a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Como cresceu ali, Renata entende a realidade dos jovens, suas dificuldades e tentações, principalmente porque em sua família convivem (e bem) os opostos da violência: ela tem primos envolvidos com as atividades criminosas e também parentes policiais. “Com relação à violência, ninguém nunca chegou em mim, mas na minha família teve

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pessoas que erraram, vamos dizer assim, com a vida meio perdida, que desperdiçaram a vida. Tive primos, inclusive, que foram assassinados, na época do Capeta, porque meu primo era da turma dele, era o outro líder. E tem o outro lado: na minha família também tem gente que é policial, não parentes que moram aqui, mas que vêm aqui e nos visitam. Tem os dois lados e desde pequena eu convivi com isso”, conta.

Pela oportunidade de vivenciar os dois lados, Renata diz nunca ter tido dificuldade para escolher, porque seus pais sempre foram pessoas que a ensinaram sobre a importância de se manter no caminho certo. Entendendo a situação, vendo parentes que morreram em decorrência do envolvimento com o crime ou estão presos, nunca pensou em seguir outro caminho a não ser o dos estudos e do trabalho, não teve contato com o crime organizado, nem experimentou tipo algum de droga. Diz que tudo o que aconteceu de ruim em sua família serviu de exemplo para o que ela não queria para a própria vida.

Ela defende que o envolvimento com drogas ou violência nada tem a ver com morar ou não no bairro, e sim com o tipo de influências que as pessoas permitem que cheguem até elas e seus filhos. “Eu não vou negar, eu gosto do São Marcos, gosto muito do bairro, me identifico. É perto de um monte de coisa, a gente tem tudo. Claro que tem coisas a melhorar, como a questão da saúde, do lazer, mas todo lugar tem”. Re-nata acredita que os problemas dos jovens com a criminalidade são fruto da educação dos pais. Crescida no bairro e com os exemplos dentro da própria família, nunca permitiu que suas escolhas fossem influenciadas. Até nos diz que gostaria de casar e criar seus filhos ali. “Eu cresci aqui e não influenciou minhas escolhas. Poderia muito bem criar meu filho ou minha filha aqui, dependendo de como eu os tratasse, de como eu me dedicasse a eles, e isso não interferiria nas escolhas deles também”. Ao falar sobre isso, é nítida a gratidão aos pais por tudo o que fizeram por ela, o que possibilitou que Renata tivesse todas as oportunidades que eles não tiveram.

A falta de espaços para lazer não interfere mais na vida de Renata, já que prefere outras atividades, mas ela considera a ausência de espaços destinados para as crianças que estão fora do período de escolas ou das ONGs, como aos finais de semana, por exemplo, um ponto importantíssimo a ser resolvido pela Prefeitura. Tentando melhorar a

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situação, o dono de uma oficina perto do Vedruna criou um parquinho de diversões para as crianças, construindo brinquedos com restos de ferro e pneus. “E o que aconteceu? Ninguém danifica. É tudo bonitinho: o portão fica aberto, as crianças vão lá destravam, entram, brincam felizes da vida, depois saem e fecham, porque elas precisam dessas coisas para se divertir”, comenta uma das moradoras da rua, Inês Gouvêa, que acompanhou toda a construção.

Para a própria diversão, Renata gosta de ir ao cinema no Parque Dom Pedro Shopping, ler livros que encontra disponíveis na internet, sair com amigos da faculdade e com alguns poucos que tem pelo bairro ou comprar sapatos. Este, inclusive, é um pequeno vício: Renata tem (ou tinha, porque nesse momento a conta já deve ter aumentado) 50 pares de sapato. Tirando isso, não tem outros luxos e sempre que com-pra uma roupa ou acessório para ela, compra também para a mãe. “Eu não sou muito de sair. Normalmente quando eu estou aqui no bairro eu prefiro ficar em casa. Fico na internet, gosto muito de ler, então não saio muito. Quando eu saio, normalmente eu saio com o pessoal, a Inês, que trabalha no Vedruna, e o Lucas, um ex-funcionário, com o pessoal que era da faculdade ou com os primos. Até por uma questão de vínculos, é muito mais fácil de combinar alguma coisa”.

Inês Gouvêa, a senhora entusiasmada com o parquinho das crianças, é também a simpática e prestativa recepcionista do Vedruna. Inês, a animação em pessoa, é uma das poucas que consegue tirar Renata de casa para um jantar ou um barzinho. E para elas locomoção é o que menos importa: de carona ou de ônibus, o importante é estar com os amigos.

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“Vedruna. Inêeeeeees. Bom-diiiiiiiiiia”. É dela a voz forte que atende todas as chamadas telefônicas realizadas à ONG. Sempre profissional e bem disposta a colaborar com quem recorre à secretaria para obter informações, ajuda ou resolução de algum problema. “Nossa, Inês, eu pensava que você era brava!”, é algo muito comum que ela ouve. De fato, parece séria, até brava, quando tem o primeiro contato com alguém, mas basta sentar-se ali na recepção por alguns instantes, enquanto aguarda um profissional ou uma criança, e pronto: um laço de amizade já é logo estabelecido, aquela seriedade vai-se embora e dá lugar a umas boas gargalhadas. “Eu gosto do contato com o povo, gosto de ouvir as pessoas, suas histórias...”, comenta, reconhecendo em nós, jornalistas, o seu gosto pelas histórias do povo.

Quem vê Inês andando para lá e para cá no Vedruna, familiariza-da com tudo e com todos – crianças, funcionários, telefones, gavetas, documentos e agendas – esbanjando aquele amor de tia, nem imagina que ela só chegou ali em fevereiro de 2007. Parece que está na secre-taria desde sempre, mas não. Antes de tornar-se secretária da ONG trabalhou durante 18 anos em casas de família, como faxineira, arru-madeira, acompanhante de idosos, babá e cozinheira, sendo esta última sua função preferida. “Ainda hoje, sempre que tenho uma oportuni-dade, estou cozinhando, eu gosto!”.

Após tantos anos nessa função, foi um verdadeiro desafio mudar de trabalho tão bruscamente, algo que trouxe a ela grande crescimento pessoal e profissional. “Cresci muito aqui dentro, porque convivo com pessoas que a maioria é pedagoga, assistente social... Eu vou aprender mais e mais com elas. E quando eu peço ajuda – porque até hoje no computador eu sou zero à esquerda – elas vêm e me ensinam. Aqui o pessoal me ajuda demais e estou sempre fazendo cursos. Terminei um esses dias de ‘Atendimento telefônico em empresas e recepções’. Fiz lá no SESC, o Vedruna pagou. Agradeço muito ao Vedruna por acreditar em mim, porque se não eu não estava aqui até hoje”, reconhece, hoje aos 44 anos, sua evolução nos últimos tempos.

E literalmente é o Vedruna que investe e acredita na importância de Inês ali dentro, já que foram as próprias irmãs que coordenam a instituição que a levaram quase na marra para trabalhar ali. No final de 2006, muito cansada e sem o mesmo pique que antes para trabalhar em

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¹ Josiane dos Santos e Maria José Meira.

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casas de família, ela procurou médicos e descobriu que estava com hi-potireoidismo e hipertensão. Pensando em sua saúde, saiu do emprego para tirar um tempo para si, descansar e só voltar a trabalhar quando se sentisse bem de novo.

Nessa época, seu primo de segundo grau, Seu Idalino Pereira da Silva, trabalhava no Vedruna, colaborando com todo tipo de serviço, desde jardinagem até reparos na fiação elétrica. Aposentado, estava deprimido por ficar muito em casa até que as irmãs Vedruna o convidaram a juntar-se à equipe. Assim, acabaram conhecendo Inês, que jamais imaginou trabalhar na ONG, e viram nela uma oportunidade de substituir a secretária Glaucimar, que estava saindo da função para tornar-se educadora da instituição. “Elas me conheciam, mas eu nem vinha no Vedruna. Eu nunca procurei trabalho aqui, nunca vim pedir serviço, nada. Eu trabalhava em casa de família, era onde eu me identificava, era o que eu sabia fazer. Então não tinha por que eu vir procurar trabalho aqui, já que já tinha faxineira e tudo”, conta. Mas as irmãs Jô e Dedé¹, na época diretora e vice-diretora, queriam Inês ali.

Imaginando que ela não aceitaria o serviço logo de cara, bolaram um plano: disseram que tinham um amigo, que estava viajando, interessado no trabalho de Inês e que desejava ela trabalhando em sua casa. Por conta da viagem, ela deveria esperar ele voltar. Inês gostou da ideia. Enquanto isso, as irmãs, que realmente iam viajar, convidaram Inês para colaborar na ONG, fazendo a entrega do leite do programa Viva Leite, para ocupar seu tempo durante a espera do suposto trabalho – e também para familiarizar-se mais com a rotina do Vedruna. Sem desconfiar, ela aceitou.

Quando as irmãs voltaram, agradeceram a ajuda e deram um dinheiro a ela pelo serviço. Uma semana depois ligaram na casa de Dona Ana, mulher de Seu Idalino, prima da mãe de Inês, onde ela morava, e pediram para que fosse até o Vedruna. Chegando lá, encontrou as irmãs que contaram estar precisando de uma recepcionista e que queriam contratá-la. Em choque, Inês disse que não, porque não sabia fazer esse tipo de coisa. Insistentes, propuseram uma experiência de três meses. “Elas falaram: ‘você tenta, se você não se adaptar, tem o direito de sair. E se nós não gostarmos do seu trabalho, a gente também te dispensa, mas ficamos bem, sem mágoa’. Eu falei ‘tá bom’, mas com muito medo”.

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² Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Serranópolis de Minas. Disponível em: http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=316695. Acesso em: 20 de out. 2013.

E lá está ela há seis anos atendendo telefone, ajudando as crianças, as mães, colaborando com os funcionários e com a organização inteira do Vedruna. Ela se arrependeu? Nunca! “Se o Vedruna não quiser mais o meu trabalho eu volto a trabalhar em casa de família numa boa, mas eu prefiro ficar aqui”, diz sorrindo, sentada na mesa em que passa boa parte do dia, das 7h30min às 17h.

O Vedruna tornou-se, assim, uma extensão de seu lar, que fica a exatas três casas da ONG, mesmo local em que foi recebida por seus primos ao chegar ao São Marcos, vinda de Serranópolis de Minas, Mi-nas Gerais, uma cidadezinha com 4.650 habitantes². Aos 19 anos, com a cara e a coragem, chegou a Campinas para começar uma vida nova, e, apesar da animação, assustou-se com o que encontrou, uma realidade muito diferente daquela de onde havia crescido. “Eu queria até morrer. Assustei com as moradias! Hoje em dia você vê casas de alvenaria, está ótimo. Eram uns barracos cobertos com lona, cobertos com papelão, folhas de lata, tudo o que você pudesse imaginar que era aberto e que dava pra cobrir alguma coisa tinha. Eu não acreditava que ali dentro morava gente. Esgoto a céu aberto. Asfalto? Nem pensar. Capim, lama podre. Aquelas crianças barrigudas, peladas, correndo em volta dos es-gotos. Tiro comendo solto na rua. Polícia maltratando as pessoas só porque era o São Marcos, fazer o quê? Eu não conheço o inferno não, mas acho que era mais ou menos isso, porque dizem que o inferno é aqui. Era uma visão infernal”, relata o sufoco que era viver ali 25 anos atrás.

Mesmo com o susto, Inês não foi embora e passou boa parte da vida morando com Dona Ana e Seu Idalino, que se tornaram mais do que primos, “pais postiços”. No auge da sua adolescência, diz que sua rebeldia colaborou para que insistisse em ficar em Campinas, já que tinha muitos problemas de relacionamento com o pai e não considerava voltar a morar com a família. Ela não aceitava a educação severa que era imposta a ela e aos irmãos, que juntos somavam 10 filhos. “A decisão de sair de lá foi minha. Primeiro porque havia muita dificuldade em morar lá, uma cidade muito precária, com problemas de infraestrutura, saúde e falta de emprego, e segundo porque naquela época teve aquela rebeldia de jovem e meu pai era muito severo. A gente nunca se enten-dia”, explica.

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Muito rígidos, os pais seguravam ao máximo Inês dentro de casa, o que, infelizmente, acabou prejudicando até seus estudos. Apesar da vontade de Inês caminhar três quilômetros todos os dias até a escola, caminho do sítio em que morava até a vila onde ficava a escola, o pai não permitiu que ela continuasse os estudos após a 4ª série, pois havia aulas apenas no período noturno. Começaram aí os problemas dentro de casa. Mais velha, pegou os pais numa conversa em que diziam que deveriam ser mais duros e não deixar que ela saísse para lugar algum. Foi a gota d’água. “É porque em Minas os pais já são mais severos, naquela época, então, mais ainda”, acredita.

Assim, aproveitou uma visita de Dona Ana à Serranópolis e contou sobre sua intenção de deixar a cidade, disse que gostaria de ir embora com ela. Mas não foi daquela vez. Cerca de um ano depois, a filha de sua prima ficou doente e Dona Ana pediu que seu genro fosse até Mi-nas buscar Inês para ajudá-la a cuidar dela. No fim, Inês não deu certo como enfermeira e pediu à prima para ficar de vez em sua casa. Então, saiu da casa da filha de Dona Ana e mudou-se para o São Marcos, com Dona Ana e Seu Idalino, onde compartilhou a vida com eles, hoje já falecidos. “O que eles fizeram por mim não tem como medir, foram pessoas como pai e mãe. Eu acho que eles fizeram por mim mais do que meus pais e eu vivi com eles mais tempo do que com meu pai e minha mãe. Quando eu falo isso para a minha mãe ela até fica com ciúmes”, graceja.

A mãe, Dona Clemência, ainda mora com o marido, Adão, em Serranópolis. Quando Inês nasceu, a região era apenas um distrito da cidade de Porteirinha. Hoje é cidade, mas ela conta que pouca coisa melhorou com a emancipação do vilarejo. De sua infância lembra-se do trabalho social realizado pela mãe, que também colocava os 10 filhos para ajudarem as pessoas mais carentes que eles. “A gente aprendeu com a minha mãe a acolher as pessoas que estavam passando fome, a levar elas para minha casa, a dar comida, a dividir o que meu pai comprava. Minha mãe fazia muito isso: pegava filhos de vizinhos, de outras pes-soas, que estavam com muito piolho, e levava para minha casa e nós é que levávamos as crianças no rio, sentava a criança e começava a tirar. Deixava com a cabeça limpa, sem piolho. E era tudo minha mãe que falava: vai lá e faz isso, faz aquilo. Quando alguém ficava doente: ‘vai lá

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buscar a roupa de fulano para lavar’, entendeu? Lógico que as pessoas naquela época eram muito solidárias, mas tinham umas que eram mais e minha mãe era aquela mais. Eu aprendi tudo isso com a minha mãe”, conta.

Inês, mesmo sem o pedido da mãe, também desenvolveu um peque-no trabalho social, que ela chama de “inconsciente”. Tendo aprendido a ler antes mesmo de escrever, quando criança lia tudo quanto era bilhete, panfleto, revista, livro que encontrava e gostava de ajudar as pessoas analfabetas a lerem o que precisavam. Seus tios, por exemplo, adoravam chamá-la para ler livros de histórias em suas casas, aqueles momentos se tornavam acontecimentos familiares. Ela ainda guarda sua paixão pelas letras e não perde oportunidade de colaborar nas leituras da missa da Igreja que frequenta no bairro. “Eu adoro ler para as pessoas. E quando eu vou à Igreja e faço a Leitura da Palavra da Bíblia, eu não estou lendo para as pessoas que sabem ler, estou lendo para aquelas senhorinhas que não sabem. E elas dizem ‘eu gosto quando você lê, você fala alto e eu consigo ouvir e entender o que você falou. É Deus que fala, mas quando você fala, parece que Deus está falando comigo. Agora quando alguém lê muito baixinho eu não entendo’”, diz. E talvez venham dessa prática sua articulação e pronúncia tão boas que se tornam nítidas ao telefone.

Mas, de todas as pessoas para as quais já leu, desempenhava essa função com mais carinho ainda quando lia para sua mãe. Analfabeta, Dona Clemência achava os símbolos das letras sempre muito interessantes e volta e meia perguntava “Inês, o que está escrito aqui?” e lá ia ela ler para a mãe. “Eu desenvolvi esse sabor pela leitura porque tudo eu lia para ela. Coisas do bolso do meu pai, que ela queria saber o que estava escrito, pedaço de jornal no chão, tudo. Às vezes ela via uma letra e achava bonita e ela queria saber o que estava ali escrito. Eu lia. Foi pra ela que eu fiz tudo isso, porque minha mãe teve trauma e não aprendeu a escrever e nem ler. Na época que ela era criança foi estudar numa escola na roça e o professor agrediu a amiguinha dela do lado com palmatória, agrediu feio. No outro dia a menininha não voltou para a escola porque estava com a mão toda inchada. Ela traumatizou. Não aprende, não adianta. Nós tentamos quando nós éramos criança, todo mundo tentou. Ela entrou na escola, mas não aprende. Quanto mais você ensina mais a mente dela fecha. Começa a suar frio...”, relata.

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Ela relembra que sua mãe adorava quando Inês lia para ela, princi-palmente porque fazia isso de boa vontade – ao contrário dos irmãos. “Meus irmãos tinham preguiça, mas eu pegava e lia, escrevia cartas pra ela para a família inteira”. Além das leituras, Dona Clemência adorava enviar e receber cartas e Inês também era a responsável por escrevê-las. Ofício que estendeu para todas as pessoas de Serranópolis, que bus-cavam Inês para ler e escrever cartas a parentes distantes. “As pessoas analfabetas iam na minha casa e eu, menina, escrevia carta para todo mundo pra mandar pros filhos que estavam trabalhando fora, porque, lógico, em toda a vila os filhos tiveram que sair”. Inês lembra-se de que, quando chegou sua vez de ir embora, a mãe chorou muito, pela falta que sentiria da filha e também porque com ela iriam embora as cartas e leituras que ela gostava tanto e que só Inês fazia para ela.

Como seus pais continuam na cidade natal, Inês planeja voltar um dia com o objetivo de ajudar os mais necessitados, colocar em prática novamente tudo o que aprendeu com a mãe. Para isso, tem se prepara-do: quando a conhecemos, Inês havia acabado de inscrever-se no Enem e pretende ingressar no curso de Serviço Social. “Eu quero estar lá. Com aquele pessoal sofrido que não abre a boca para nada, que tem vergonha de pedir, de ir atrás dos seus direitos, naqueles que a Prefeitura deita e rola, faz o que bem quer. Quem tem um pouco a mais de dinheiro está acima do bem e do mal, os pobres estão sempre à margem. É como no São Marcos, mas aqui as pessoas têm mais onde procurar. E elas têm mais respaldo aqui, têm mais assistência. Lá não. Tá certo que eu não vou resolver tudo, mas eu acho que um pouquinho o pessoal merece”, conta com os olhos brilhando de animação de quem quer abraçar o mundo.

Voltar a estudar é outro desafio pelo qual Inês vai passar na vida. Quando criança estudou apenas até a 4ª série e depois de chegar ao São Marcos, aos 22 anos, matriculou-se na tradicional Escola Municipal de Ensino Fundamental Padre José Narciso Vieira Ehrenberg do bairro. Chegou a concluir os estudos, mas não ali e apenas 10 anos depois. As-sim como a mãe, passou por um episódio traumatizante, que a impos-sibilitou de continuar os estudos logo depois de matriculada. “Naquela época, devido à violência, aconteceu um episódio lá na escola e eu fiquei traumatizada. Saí da escola e não voltei mais. Foi uma discussão do

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guarda com um rapaz que ele não sabia quem era e o rapaz atirou no guarda. Eu fumava na época e eu estava no corredor, quase que pegou. Fiquei com trauma, porque eu vi o guarda se jogar no chão e eu achei que ele tinha morrido, mas não pegou nele. Ele se jogou e quase que pegou foi em mim. Não quis mais ir pra escola”, relembra. Em 2007, voltou. Matriculou-se na Escola Estadual Professor Paulo Mangabeira, no bairro Jardim Aparecida, e concluiu o ensino médio.

Agora se prepara para ingressar no curso de Serviço Social, formação que acredita ser importante e necessária para prosseguir sua colaboração com a melhoria da sociedade. Enquanto isso, a semente que sua mãe plantou espalha seus frutos quilômetros longe de onde ela cresceu. Inês, em Campinas, é voluntária da Pastoral da Criança há nove anos, sendo hoje coordenadora da Pastoral no São Marcos, da comunidade do Di-vino Espírito Santo. Mensalmente realiza visitas às casas pela Pastoral, contando com a colaboração de mais voluntários para realizar as tarefas. Inês aproveita esses momentos também para conversar com as mães, rever conhecidos do bairro, colocar a conversa em dia.

Essas conversas, inclusive, percebemos logo que são os tesouros de Inês. Para ela, nada é mais importante do que ter amigos. “Ter amizade para mim é fundamental. Acho que meu planejamento para o futuro também é não perder meus amigos. É ter mais amigos ainda. Amigos do bairro e vários que eu tenho espalhados por aí. Amigos que eu fiz no trabalho, que foram embora, que eles permaneçam, que eu nun-ca esqueça deles em nenhum momento, pois foram pessoas que me ajudaram muito”.

Seus amigos são também sua família na cidade. Tendo escolhido nunca se casar e estando longe dos pais, mantém seu círculo de amizade sempre por perto, pessoas com quem sai aos finais de semana, são suas companhias. “Não, não casei. Era uma decisão minha. Eu tomei essa decisão acho que tinha uns 13 anos de idade. Eu via meu pai e minha mãe e achava que marido era marido e mulher era mulher. A mulher cozinhava, passava e ouvia desaforo. Ah, não. Não era pra mim aquilo, não era vida pra mim. Acho que nasci já rebelde, foi isso o que aconte-ceu”, constata às gargalhadas.

Inês conta que seu pai nunca foi violento com a mãe, mas que não aceitava que ele pudesse tudo e a mãe, nada. Com 10 filhos, Dona

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Clemência nunca abandonou a casa, sendo persistente para criá-los dentro de um lar com toda a família, apesar das dificuldades encontradas em seu casamento. “Daí eu falei pra ela ‘tá vendo mãe, por isso que eu não quero casar. Eu nunca vou casar, porque você se casa só pra ter filho e pra levar chifre’”. Para ela, seu modelo de relacionamento seria aquele por toda vida, não tendo mudado mesmo com a convivência com seus primos, que ela afirma não terem tido uma história muito diferente da de seus pais. “O machismo de Minas, do povo lá, continuava, porque ele era mineiro e ela também”.

Tomada a decisão nunca mudou. E parece a pessoa mais feliz do mundo ao contar que hoje tem tudo o que quer: um emprego, sonhos, amigos e uma casa só para ela, onde pode ter tranquilidade de estar sozinha todos os dias. “Desde criança, eu preferia não ter boneca quando brincava de casinha. Na minha casinha era eu e as minhas coisas todas no lugar, tudo arrumadinho, só. Não tinha ninguém. Só eu e a casinha”, lembra-se.

Medo da solidão? Inês ri quando perguntam isso a ela. “Solidão? Eu sou a pessoa mais feliz da face da terra. É uma escolha minha. Quando não é escolha, aí sim, é lógico que deve ser horrível quando você sonha em ter uma família e você não consegue. Mas, no meu caso, eu não sonhei em ter uma família, eu não sonhei e não sonho. A minha alegria é estar com muita gente, o dia todo, mas chegar à noite, ter paz. Entrar e ficar quieta”, revela uma Inês falante até os cotovelos.

Apesar da dificuldade passada na infância, dos medos em estudar, da demora em retomar os estudos, Inês mostra orgulho por ter trabalhado toda a vida, não ter sido levada pelas drogas ou prostituição. “Fui guer-reira, apesar de ter ficado muita coisa que eu acho que tinha condições de ter alcançado, eu me enxergo com uma vencedora. Eu venci. Eu sou vencedora porque foi tudo na base do trabalho digno”. Esforço que Inês garante: terá 90 anos e estará buscando aproveitar as oportunidades.

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Durante cinco anos, fez parte da equipe da Pastoral da Criança, coordenada atualmente por Inês, a voluntária Shyrlei Antônia Rodrigues Couto. Colaboradora das atividades promovidas pela Pastoral, como acompanhamentos de gestantes e crianças, desde o ventre da mãe até os seis anos de idade, orientações de higiene e alimentação, pesagem das crianças, além de apoio às famílias despreparadas para receber um filho, momento em que os voluntários oferecem apoio psicológico, Dona Shyrlei, carinhosamente assim chamada por todos que a conhecem, alegra-se por ter participado desse time que colabora para a melhoria da vida das crianças do São Marcos, onde adora mora há 45 anos, sendo uma das primeiras moradoras do bairro.

Para estar entre os voluntários, Dona Shyrlei teve que se preparar: como todos os interessados, frequentou o curso preparatório durante 10 sábados. Para ela, essa experiência trouxe em sua vida uma alegria redobrada, pois assim passaria a integrar a Pastoral e também durante os encontros estava fazendo uma das coisas que mais gosta e mais fez ao longo de seus 69 anos, completados dia quatro de setembro: cursos. Essa pequenina senhora, sorridente e falante, revela uma paixão por cursos diversos, tendo participado de muitos sobre diferentes assuntos – desde trabalhos manuais, culinária, esse da Pastoral e outros variados, como um de inclusão digital promovido pela ONG Vedruna.

“Ih, bem... Eu já fiz de tudo! Eu vou mostrar! Fiz curso de boleira, de doces e salgados, de sorvete, de bordado, de renda turca, de pintura... Essas almofadas e os tapetes da sala foi tudo eu que fiz”, diz andando pela pequena casa de dois quartos, sala e cozinha onde mora, procu-rando alguma coisa. Volta à sala, onde conversávamos, com um grosso envelope pardo. “Estão aí todos os meus certificados”, orgulha-se da enorme quantidade que nos apresenta.

Tendo estudado apenas até a 4ª série e depois, quando adolescente, frequentado um colégio técnico onde aprendeu diferentes atividades, como corte e costura, Dona Shyrlei adquiriu o gosto por participar de cursos, gratuitos sempre que eram oferecidos, e pagos, quando podia pagar. Foi a forma encontrada para sempre continuar estudando. Dos oferecidos no São Marcos pelas ONGs esteve presente em inúmeros, o que possibilitou que ela criasse muitas amizades. “Todo mundo conhece a Dona Shyrlei. Ela é uma das mais antigas moradoras daqui. Adora

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contar do tempo em que não tinha nada, nem o São Marcos direito”, conta-nos Inês, que mora a menos de um quarteirão de distância de sua casa.

Na época em que Dona Shyrlei chegou ao São Marcos, ele ainda estava se constituindo como bairro, no fim dos anos de 1960, durante o processo de sua emancipação do Jardim Santa Mônica. Por conta da extensa área rural presente naquela região e pela construção da Univer-sidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1962, a cidade começou a expandir-se para a Região Norte, abrigando ali muitos migrantes vindos de diferentes lugares do país em busca de oportunidades de emprego. “A gente morava no interior. Viemos de trem. Eu morei um ano na Vila Jorgina, perto do Extra Abolição, pagando aluguel. Enquanto isso eu e ele [marido] trabalhávamos. Eu trabalhei como doméstica. Meu marido era lavador de carros, trabalhava naquele posto de gasolina em frente à Prefeitura e lá perto tinha um corretor que tinha um loteamento aqui no São Marcos. Ele arrumou aqui para a gente comprar”, conta.

Shyrlei, que veio com o marido Osvaldo Avelar Couto, de São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, conta que um dos principais fatores que influenciaram a compra de um terreno no bairro é que poderiam ter um quintal, diferentemente das casas já prontas que haviam encontrado para adquirir em Campinas. Para o casal vindo do interior isso era algo muito importante, pois teriam um espaço a mais no terreno, para ter plantas e cadeiras postas na varanda. Durante um ano trabalharam, utilizando quase todo o dinheiro conseguido para pagar o aluguel e a prestação do terreno no São Marcos. No entanto, quando o contrato do aluguel venceu, não quiseram renovar por mais um ano, já que estava financeiramente difícil pagar as duas prestações juntas. Assim, tomaram a decisão de ir morar no terreno comprado, mesmo sem ainda terem construído nada.

“Nosso contrato de aluguel venceu quando deu um ano e a gente não queria renovar o contrato para não pagar o aluguel, porque ficava pesado a gente pagar o aluguel, pagar o terreno e construir. Daí a gente entrou no barraco de madeira mesmo, ainda sem cobrir, colocamos telha, madeira, tinha dois cômodos. E a gente veio para o São Marcos naquele tempo que não tinha água, não tinha luz, não tinha nada”, recorda-se. Instalaram-se no mesmo terreno em que construíram depois

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¹ Instituto de Tecnologia de Alimentos.

sua casa de alvenaria, em que moraram por toda a vida juntos, com direito a quintal na frente da casa, quintal atrás e uma casinha de fundo, fruto do trabalho do casal, ele como lavador de carros e ela, doméstica. Dona Shyrlei, orgulhosa, conta que seu marido, inclusive, chegou a se aposentar nessa função, após 20 anos de trabalho em outro posto de gasolina, perto do Colégio Liceu, e que ela trabalhou em duas únicas casas na cidade.

“Era num tempo em que a gente quase não tinha ônibus aqui. Ôni-bus era difícil. Em dia que chovia a gente tinha que empurrar o ônibus. Quando saía mais cedo do serviço, a gente vinha a pé. Eu trabalhei para cima do ITAL¹, perto do Banco do Brasil, na Avenida Brasil. Dali dava pra vir a pé. Quase não tinha ônibus, então, a gente vinha pela estrada mesmo. Não tinha perigo naquele tempo”, conta, rindo da situação que era ter que descer e empurrar o ônibus para poder voltar para casa em dias de muita chuva.

Essa mania de andar a pé, por sinal, Dona Shyrlei, uma senhora franzina de quase 70 anos, ainda mantém. Mas não são curtas caminhadas matinais, não. Quando precisa ir ao Tenda Atacado, que fica na Rodovia Dom Pedro, ou ao Higa Atacado, perto do Campo dos Amarais, por exemplo, vai a pé mesmo, sem reclamar. “Eu sou acostumada a andar a pé. Antigamente era longe, mas a gente vinha. Às vezes me perguntam por que eu não pego ônibus aqui, mas eu falo que é mais difícil eu atravessar a passarela ali e depois atravessar de volta. Então eu já subo a pé. Não tem importância”, defende sua mania com disposição.

A vida do casal no São Marcos foi bem movimentada. Logo após terem se mudado para lá, em precárias condições, foram visitar suas famílias no interior. Shyrlei, que perdeu a mãe aos 18 anos, e cuidou dos seis irmãos após o ocorrido, ao chegar a casa de seu pai, Jerônimo, que já havia se casado de novo, encontrou sua irmã caçula muito enfer-ma, com problemas graves na perna, que ela acredita terem se originado por conta do trabalho doméstico que a irmã aos 12 já tinha sido coloca-da para fazer. Preocupada com o estado dela, trouxe-a para Campinas, onde, mais tarde, foi curada com tratamentos na Santa Casa. “Daí fui buscar essa minha irmã. Fui buscar uma e trouxe duas. E depois foi vindo todo mundo. Só ficou um irmão lá com meu pai”, lembra.

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Shyrlei conta que a mudança dos irmãos para Campinas foi bem-sucedida, pois todos encontraram bons empregos e construíram suas vidas na cidade. Não continuaram a morar no São Marcos, mas instalaram-se na região. Com o tempo, o desenvolvimento chegou ali: luz, água e a construção da casa onde ela ainda mora. O crescimento da família de Shyrlei só se completaria, por fim, com a chegada de Sérgio, seu único filho, hoje com 40 anos, recebido em seus braços quando completou sete dias de vida. Depois de frustradas tentativas de engravidar, o casal realizou exames, em que se constatou a ausência de espermatozoides do marido. Dona Shyrlei, então, procurou a Santa Casa e deixou seu nome entre os interessados para adoção. “Eu liguei e dei o nome. Minha irmã que estava internada lá falava que tinha cada negrinho bonito. Me perguntaram se eu queria homem ou mulher, mas eu disse que eu não ia escolher, porque se fosse meu, eu não ia escolher. E chegou esse menino”, lembra-se.

Após ter nascido, Sérgio foi deixado para adoção e Shyrlei o viu pela primeira vez quando tinha apenas três dias. Feita a preparação dos papéis necessários, foi buscá-lo sozinha, tendo na bolsa só uma man-tinha e uma roupa para ele. Eram mais de sete horas da noite quando saiu do hospital com seu, oficialmente, filho no colo. Foi para o pon-to de ônibus da Avenida Francisco Glicério e esperou para voltar para casa e apresentá-lo ao pai. Criado com muito amor, hoje é ele quem mora com a esposa, Lucilene, e dois filhos, Cauane e Douglas, na casa construída nos fundos do terreno da mãe. Morando sozinha na casa da frente, são eles quem fazem companhia para ela, abandonada pelo marido há quase seis anos, depois de 42 anos de casamento.

“Até a mulher do pastor disse que lá fizeram lavagem cerebral nele. Ele já estava aposentado, mas trabalhando no mesmo lugar, lá no Liceu. Ela falava pra ele que estavam roubando ele, que ele tinha que sair daquela igreja. Eu sou da [Igreja] Universal, mas ele foi para a [Igreja] Deus é Amor. Lá ele mesmo disse que dominaram ele, e falavam o que ele tinha que fazer com o dinheiro dele... Antes disso, não. Ficava tudo dentro de casa, ele sempre deu tudo dentro de casa e eu quem administrava. Ele passou para lá e eles falaram que ele não precisava mais dar dinheiro aqui, que não sei o que. Comeram tudo esse dinheiro, gastaram tudo”, explica a causa da separação.

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Shyrlei e Sérgio não concordaram com o que Osvaldo estava fazen-do com a aposentadoria dele, principalmente por deixar de colaborar com o sustento de casa, já que ela não trabalhava mais por problemas de saúde, sem ter conseguido, até aquele momento, também a sua apo-sentadoria. Apesar de terem tentado abrir-lhe os olhos, um dia Shyrlei saiu para ir à igreja e, quando voltou, o marido já tinha ido embora. Essa foi a segunda vez que ele havia abandonado a família. Da primeira vez, no entanto, ao procurar abrigo na casa de seus parentes, que agora também moram na cidade, eles não o receberam e mandaram que ele voltasse para casa. Seu filho Sérgio, então, foi buscá-lo. Mas dessa vez, ao chegar e ver sua mãe sozinha de novo, disse que não buscaria o pai novamente. E não precisou, agora com o apoio da família, alugou um cômodo, onde mora atualmente, e conta com as orientações de uma sobrinha, advogada e integrante da mesma igreja que Osvaldo, para pedir a casa onde sua ex-mulher e o filho moram. “Por fim nós ficamos com a casa agora, mas o povo da igreja falou para ele que ele tinha que nos largar e vender a casa, porque ele tinha esse direito. Eu coloquei nas mãos de Deus. Falei: ‘Senhor, tá nas tuas mãos, tá na tua vontade, só que eu não quero que o Senhor me deixe na rua’. E aí com isso, essa minha doença veio mais de nervoso”, lamenta.

Sem solução para o destino da casa onde ela mora e que o ex-marido quer vender para ter sua parte do dinheiro – e poder doá-lo à igreja que agora frequenta, segundo ela – e por todo o nervoso que passou com a separação, Shyrlei agravou um reumatismo que carrega consigo desde os 15 anos. Apesar das dores nas mãos, nunca se preocupou, considerando ser uma coisa normal de pessoas que realizam muito trabalho doméstico. Mesmo com a constante piora da aparência de seus dedos, não procurou ajuda, principalmente porque quando abandonada e sem renda para sustentar-se sozinha, apesar da ajuda que recebeu do filho e de uma das irmãs, Shyrlei passou a recolher sucatas, esperando a aprovação de sua aposentadoria pelo INSS – que já havia sido negada uma vez, pois a perícia constatou que seu reumatismo não a impedia, ainda, de trabalhar. “Minha irmã dizia que ia me ajudar com as despesas e contas de casa até sair minha aposentadoria. E quando eu estava ruim, entrei com o advogado e ele marcou perícia e nisso o médico faltou em duas consulta lá na Policlínica, faltou duas semanas seguidas. Eu não

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² Fonte: VARELLA, Drauzio. Doenças e sintomas: Esclerodermia. Disponível em: http://drauziovarella.com.br/crianca-2/escle-rodermia/. Acesso em: 15 de out. 2013.

aguentava mais... Tinha até vontade de cortar as minhas mãos de tanta dor que eu tinha”.

Chegando a sua casa, um desses dias, após não ter encontrado médico para fazer a perícia em sua mão, Shyrlei encontrou a nora, que decidiu levá-la ao Hospital das Clínicas da Unicamp, vendo que a situação das mãos da sogra estava muito ruim. Depois de consultá-la, o médico pediu para avisar sua família que iria precisar cortar seus dedos. “Fiquei três dias numa maca no corredor, porque não tinha nem vaga entrando no Pronto-Socorro. Todo mundo que chegava da emergência tinha que passar ali. E esses três dias eu não pude comer nada e nem beber água, porque a qualquer momento eles iam me levar para fazer a cirurgia. Eu bebia água só quando vinha o comprimido e um copinho, bebia assim. Aí no terceiro dia disseram que iam me operar porque tinha desocupado um leito. Me operaram. Eu fiquei mais cinco dias lá e num desses dias eu tinha perícia. Eles disseram que iam lá, mas passou os dias e eles não foram”.

Shyrlei ficaria sabendo depois que, justo no dia em que ganhou alta, foi procurada no hospital por uma médica da perícia do INSS. Apesar de pensar que novamente não conseguiria sua aposentadoria por não ter sido feita a perícia, a sorte por não ter sido encontrada foi que esta médica pegou diretamente o prontuário onde estava marcada a amputação. Dona Shyrlei perdeu pela metade o indicador, o dedo do meio e o anelar da mão direita, resultado de uma esclerose sistêmica inicialmente tratada como micose. Enfermidade mais frequente em mulheres, a esclerodermia pode ser classificada como esclerodermia localizada, ou em placas, e esclerodermia sistêmica. É uma doença inflamatória crônica do tecido conjuntivo, ligada a fatores autoimunes, caracterizada pelo endurecimento da pele². Cerca de um mês após sua cirurgia, Shyrlei foi até a Previdência Social e, para sua enorme emoção, foi informada sobre a aprovação de sua aposentadoria por invalidez. Chorou diante do atendente. Enfim, uma ajuda começava a ser dada a ela, que estava passando por todos os problemas, colocando as resoluções nas mãos de Deus.

Apesar das dificuldades para realizar atividades cotidianas, ela acostumou-se com o possível, adaptando-se à sua nova rotina, mais debilitada. Hoje cozinha sua própria comida, limpa a casa, faz compras

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no supermercado e planeja voltar a colaborar com a Pastoral da Criança, voluntariado que precisou abandonar devido aos problemas de saúde e emocionais que enfrentou. Sua maior tristeza, infelizmente, é que ainda não encontrou um meio de voltar a fazer seus trabalhos manuais, especialmente renda turca, que sempre gostou, e a confeitar bolos de aniversários para seus netos, o que fez durante todas as datas comemorativas. “Tem sido difícil, porque eu sou uma pessoa que eu gosto de fazer as coisas. Minha nora disse que fazia comida, tudo, mas eu gosto de fazer. Eles têm, por exemplo, costume de comer bem tarde, essas coisas, mas eu não, devido ao medicamento, eu tenho horário, sabe? E eu falo que eu faço. Limpo a casa do jeito que dá, mesmo de luva. Por exemplo, eu uso três panos de chão: um eu limpo, enxáguo e coloco no varal, enquanto aquele está escorrendo eu vou passando o outro e coloco no varal, assim eu faço. Só a única coisa que eu gosto de fazer, que é meus bolos, eu não posso e a renda, por enquanto não dá”, conta.

Além dos remédios que toma regularmente, Dona Shyrlei, há cerca de três meses, desde meados de agosto de 2013, tem participado de um grupo de atividades físicas para a Terceira Idade, coordenado pela agente de saúde comunitária Lucinete Valdivino, do Centro de Saúde São Marcos, para complementar seus cuidados com a saúde. Convidada por sua amiga, também moradora do bairro, Ilda, que faz uso de ben-gala, mas que tem andado sem ela em curtas caminhadas depois que passou a frequentar o grupo, Dona Shyrlei ficou animada em juntar-se a amiga. Duas vezes por semana pega um ônibus, que tem ponto na esquina de sua casa, e vai até o Centro de Saúde. “O motorista já até me conhece, eu nem preciso mostrar o documento para não pagar o ônibus”, diverte-se.

Os benefícios da atividade já proporcionaram nela resultados sensíveis e Dona Shyrlei comenta que sua rotina ficou bem melhor de-pois que passou a frequentar o grupo. Agora, não sente mais dores de coluna após limpar a casa e consegue até mesmo abaixar-se para esfre-gar a sola do pé durante o banho, atividades aparentemente cotidianas, mas importantes para ela, que já sentiu muitas dores, e ainda luta para controlar a esclerodermia, que ela teme que apareça nos outros dedos de suas mãos.

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O Centro de Saúde São Marcos conta com 90 colaboradores para atender não só o bairro, mas também muitos outros da região, como o Jardim Santa Mônica, Jardim Campineiro, Recanto Fortuna etc. Das 7h às 19h, funciona com atendimento em diversas especialidades médicas, retirada de medicamentos e auxílio pelas equipes de agentes de saúde à comunidade. Requisito básico para a admissão nesse cargo é que o agente seja morador da área em que atua, o que possibilita um conhecimento amplo tanto dos moradores quanto das necessidades gerais da região. Atualmente, a equipe dos agentes de saúde do bairro, que deveria ser composta por quatro pessoas, conta apenas com a colaboração de duas mulheres desde 2009, pois uma desligou-se do Centro de Saúde e a outra cobre a ausência de um funcionário administrativo.

Uma delas é Lucinete Valdivino, moradora do São Marcos há 41 anos, que veio de Anastácio, Mato Grosso do Sul, aos seis anos de idade, com os pais e mais cinco irmãos, para que sua mãe e seu pai pudes-sem trabalhar – ela como doméstica e ele, pedreiro. “A gente chegou aqui, pagou aluguel. Era um bairro que tinha poucas casas. Quando a gente chegou aqui há 41 anos não tinha casas, era só mato. Tinha até plantação de algodão, onde a família trabalhava. Minha mãe ia cedo trabalhar na plantação de algodão e à noite ela ia trabalhar em uma em-presa ainda para criar os filhos todos”, relembra o sacrifício feito pelos pais para educar os filhos.

Apesar das dificuldades, Lucinete nunca precisou abandonar a escola para ajudar financeiramente em casa e completou seus estudos até o ensino médio nas escolas construídas naquele tempo no São Marcos, todas de pau a pique. “A primeira escola que eu estudei aqui no bairro era de pau a pique, não tinha água, não tinha luz... A gente pegou o bairro aqui no começo. A escola estadual chegou aqui depois, acho que nos anos 1970, se eu não me engano. Então era uma escolinha simples e todo mundo estudava nessa escola. Depois foi construindo a escola do município, depois a do estado...”, conta. Hoje, o bairro que não con-tava com nenhuma infraestrutura para a educação possui três escolas: duas municipais – a Escola Municipal de Ensino Infantil Roberto Telles Sampaio e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Padre José Nar-ciso Vieira Ehrenberg – e uma estadual – a Escola Estadual Professora Castinauta de Barros Mello e Albuquerque.

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Antes de trabalhar como agente comunitária, função que exerce des-de 2004, resultado de um concurso que havia prestado cerca de dois anos antes, Lucinete já havia trabalhado como doméstica, faxineira, cozinheira, atendente e recepcionista. Mas hoje não se vê fazendo outra coisa, garante. Além das funções rotineiras de agente, como visitas e cadastros de famílias, ela também realiza um trabalho específico com a Terceira Idade, por seu carinho especial pelas gerações mais velhas que sempre teve, principalmente porque seu pai era 40 anos mais velho do que ela.

Durante os dias normais, de segunda à sexta-feira, das 8h às 16h12min, Lucinete atende as demandas urgentes do Centro de Saúde, como pacientes que necessitam de receitas médicas, de entrega de me-dicamentos ou de um acompanhante para consultas ou exames realiza-dos fora do São Marcos. Neste caso, a agente de saúde deve acompanhar o paciente até o local agendado e muitas vezes, por falta de locomoção apropriada, Lucinete acompanha-os de ônibus mesmo. Ela também faz suas atividades rotineiras da função, como visitas às casas onde residem recém-nascidos, grávidas, idosos e pessoas com cuidados especiais de saúde, agendamentos de consultas médicas ou cadastros de famílias. “Para ser atendido no Centro de Saúde, a família tem que ser cadastra-da, tem que ter um vínculo no Centro de Saúde. Por exemplo, a gente é equipe verde, temos uma numeração de dois a quatro mil. Ou seja, duas mil família no São Marcos, mas tem mais do que as cadastradas, porque a nossa área é muito flutuante”, explica.

Ela atribui esse alto índice de variabilidade ao grande número de casas de aluguel no bairro e ao elevado valor cobrado por elas, o que faz com que as famílias estejam sempre em busca de uma casa com valor de aluguel mais barato, recorrendo até mesmo a casas em locais inapropriados. “A pessoa acabou de se mudar aqui e vai para a primeira casa que encontrar. Depois ela vai procurar uma mais em conta, então ela vai mudar. São famílias que você acaba de cadastrar e que já mudam, mudam de bairro, mudam de lugar de casas. Às vezes constroem casas na beira do córrego, porque a gente tem uma área de risco bem extensa aqui no São Marcos, Jardim Campineiro, Santa Mônica e Recanto da Fortuna. É uma área extensa de invasão, de ocupação. Tanto que a Cohab está tirando esse pessoal e levando para o Jardim Bassoli, que é

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bem longe, fora de mão, e eles acabam voltando. Eles vão e voltam, e daí a gente tem que cadastrar de novo”.

Esses cadastros entram todos na equipe verde, que representa o bairro São Marcos dentro do sistema do Centro de Saúde. Esse modelo, implantado em 2001, nomeado Programa de Saúde da Família, trabalha com a população separada por território, sendo cada um atendido por uma equipe determinada. “Aqui no Centro de Saúde São Marcos nós temos quatro equipes: a Equipe Verde, responsável pelo atendimento aos moradores do bairro São Marcos; a Vermelha, pelo Parque Cidade e San Martin; a Amarela, pela Vila Esperança; e a Equipe Azul, que cuida dos bairros Jardim Campineiro e Recanto Fortuna. Essa mudança foi uma luta grande, que no fim prevaleceu, e a gente conseguiu transformar o São Marcos, que sempre foi uma região grande, atendendo uma população que depende 100% do SUS. Nessa época os conflitos eram muito maiores, diários, vários por dia, porque as pessoas chegavam cedo, ficavam em filas enormes para tentar conseguir uma consulta, e uma vaga. Com a mudança na lógica da saúde da família a gente começou a trabalhar com território de referência, com a população separada por território, cada um cuidava da sua equipe, fazendo visita domiciliar com agentes de saúde comunitários, com o acolhimento, que é uma questão da escuta diferenciada, é você ouvir todas as pessoas que veem no Centro de Saúde e saber o que elas necessitam, o que elas estão querendo, ouvir e tentar direcionar e resolver e não simplesmente dizer ‘hoje não tem mais vaga’, porque a população sempre quer uma consulta médica para conseguir tudo. Foi um grande avanço em Campinas”, explica Valéria Ceriani, coordenadora do Centro de Saúde desde 2007.

Embora as tarefas sejam estas, sempre diversificadas, os dias mais aguardados por Lucinete são as terças e quintas-feiras, quando encontra suas senhoras participantes do Grupo Viver, o qual coordena desde que entrou no Centro de Saúde. Na quadra poliesportiva da escola vizinha ao Centro, das 8h às 9h15min, ela desenvolve uma atividade física com elas. Começando com alongamentos, seguindo para uma dança e ter-minando com a prática chinesa Liang Gong. E foi o momento da dança que fez com que o grupo da Terceira Idade, frequentado quase que to-talmente por mulheres, se ampliasse de 10 para 60 pessoas ao longo dos anos em que Lucinete assumiu o Grupo.

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¹ Fonte: Instituto Nacional do Câncer (INCA). Linfona Não-Hodgkin. Disponível em: http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=457. Acesso em: 20 de out. 2013.

“O primeiro dia foi mais difícil, claro. Como você pega uma turma que você não conhece, que já tinha uma pessoa que fazia, que era uma terapeuta ocupacional e outra agente de saúde, mas elas saíram e me deixaram. E o povo foi tudo embora, porque estavam acostumadas com elas. Senti que faltava alguma coisa, porque se você não faz uma aula boa, a pessoas não voltam”, conta sobre seu início de carreira como agente de saúde. Assim, Lucinete, que já havia terminado sua capacitação na prática chinesa, teve uma ideia e resolveu improvisar a aula: após o alongamento, começou a colocar um CD com músicas antigas para que as alunas dançassem, tornando aquele um momento de descontração antes do Liang Gong. E funcionou, pois os alunos voltaram e trouxeram com eles amigos. E os amigos trouxeram amigos, que trouxeram amigos. “Isso aqui encheu. Eu acho que valeu a pena a minha persistência, porque se fosse outra pessoa falava: ‘ah, gente, uma ou duas pessoas, vamos parar com isso aqui, isso não dá’. Mas eu persisti. A minha persistência trouxe melhoria de vida para elas”, orgulha-se.

Os idosos participantes do Grupo Viver, além de uma condição de vida melhor, sentiram o bem-estar proporcionado pela prática. “Por isso que esses grupos que vocês vão conhecer de vivências, que tem exercícios, Liang Gong, isso é uma desculpa, na verdade é um grande grupo de vivência, pessoas se encontram, estavam solitárias, pessoas mais velhas vão ficando mais sozinhas, não têm uma rede, e esses grupos fazem isso, é impressionante, essas senhoras eram extremamente queixosas, vinham aqui toda hora reclamando de algo, depois que começaram a ter essa ocupação, tendo atividade, elas melhoraram muito. Eu acho que é o caminho, a saúde não é só dar um remedinho, é tentar ajudar essas pessoas a se encontrarem”, explica a coordenadora Valéria.

Lucinete garante que carregou essa persistência consigo por toda a vida, principalmente ao descobrir no filho mais velho, Christopher, à época com 18 anos e meio de idade, um linfoma, tipo de câncer que se origina nos gânglios, importantes no combate às infecções, podendo ser de até 20 tipos diferentes, com poucos fatores de risco conhecidos, como sistema imune comprometido, exposição química ou exposição a altas doses de radiação¹. No caso de Christopher, além da demora em ser diagnosticado, não foi apresentado nenhum fator influente. “Eu entrei

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aqui fazia três meses. Deus faz as coisas certas, porque eu entrei aqui, levei ele em hospitais, pronto-socorros e ninguém descobria o que ele tinha. Um médico daqui disse para eu pedir um hemograma e pegar o resultado naquele mesmo dia. Ali pensei ‘deve ser sério, né?’”, lembra-se Lucinete, que citando Deus, depois nos explica, que embora não tenha deixado de acreditar Nele, entrou em conflito com Ele ao descobrir o câncer do filho. Crise intensa, inclusive, pois mesmo passados oito anos ela ainda comenta que até esqueceu como é que se reza.

Com o resultado do hemograma começou uma batalha de quase dois anos entre as salas de tratamento da Unicamp. Após iniciada a quimi-oterapia, Christopher foi tido como curado e viu sua doença voltar seis meses depois. Recomeçou novamente a terapia e, novamente curado, o câncer retornou após um ano. O filho de Lucinete só encontraria a cura mesmo depois de um transplante autólogo, em que a medula óssea (ou células-tronco periféricas) é retirada do próprio paciente e reimplanta-da. “Fazia um mês que ele já estava internado para fazer transplante e a médica falou assim para mim ‘olha, ele pode vir a falecer na hora do transplante’. Eu disse para ela ‘seja o que Deus quiser, porque se ele não fizer, ele vai morrer, e se ele fizer, pode ter a chance de sobreviver’. E você olha pra ele hoje e não fala que ele teve nada”, diz, aliviada sobre seu filho que completará 28 anos em dezembro de 2013.

Nessa luta, Lucinete contou com o apoio apenas de sua filha caçu-la, Tainá, hoje com 21 anos – na época do câncer do irmão, com 13. Com o coração apertado de mãe, Lucinete lamenta não ter estado tão presente nessa parte da adolescência da filha. “Era a época que era para eu estar junto com ela e era só nós três. Eles dependiam muito de mim, principalmente ela”. Quando tudo isso aconteceu, Lucinete já estava separada havia 12 anos do pai de seus dois filhos.

Tendo se casado aos 17 anos, pensa que eram apenas crianças quan-do começaram a constituir uma família, o que não poderia dar certo, já que ambos eram muito imaturos. Hoje, ela está com seu atual marido, Reginaldo, há cinco anos, mas conta que preferiu esperar criar os filhos e que eles crescessem para apresentá-los a outro homem. “Sempre falei que homem na minha casa só entrava depois que meus filhos cresces-sem, porque você vê muita violência, você escuta muita coisa, muita história. Então eu sempre tive medo de colocar um homem em casa,

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acontecer alguma coisa e eles não saberem se defender”, Lucinete temia, crente de que cuidado de mãe nunca é demais.

Lucinete, que levou a dança às senhoras do São Marcos, coinciden-temente conheceu Reginaldo assim, dançando em um baile. Indepen-dente, no entanto, mostra-se uma mulher que gosta de dançar sozinha, buscando apenas um companheiro, não um guia. “Eu já tinha a minha independência. Sou aquela pessoa que tudo resolve sozinha, que passou por essa crise de saúde do meu filho sozinha. Você acha que eu aceito alguém mandando em mim?”, responde, também com uma pergunta, a nossa sobre casar-se de novo. Planos de casar, oficialmente, pelo visto, não.

E é assim que eles mantêm seu relacionamento, em que ela encon-trou um parceiro para fazer uma das coisas que mais gosta na vida: via-jar. “Eu sempre gostei de viajar, desde criança. Mas antes eu só viajava comigo mesmo, sempre gostei de livros de romance”, ri. Agora que Lucinete pode sair dos livros, conta que aproveita e não abre mão de sua viagem à praia, geralmente Santos, todo ano, pois é seu lugar preferido. “Eu vivo financeiramente bem, porque não tenho luxo. Eu não vou e compro uma calça de R$300. Se eu vou comprar uma calça de R$300, o salário não vai dar, porque o que eu ganho não é compatível para isso, mas eu vivo bem. Não passo fome, não passo frio, não ando nua, tudo o que eu quero eu tenho e eu viajo todo ano, tiro as minhas férias...”, e ao falar sobre férias até coloca um sorriso a mais no rosto.

Lucinete, que já tinha colocado uma animação no Grupo Viver com as danças semanais, também é responsável por um agito a mais entre as senhoras: todo ano ela leva as integrantes do grupo para um passeio especial – muitas vezes, um fim de semana na praia. Uma completa excursão, com direito a registros fotográficos colocados em um álbum exclusivo do grupo feito por ela mesma, que o guarda com carinho. No álbum, entre as fotos de comemorações realizadas entre elas, muitas fotografias de suas viagens feitas à praia. Vemos aquelas senhoras que há pouco mais de uma hora vestiam roupas confortáveis durante o Liang Gong em coloridos trajes de banho, usando bonés e chapéus, sentadas na praia em cadeiras de plástico. Uma das fotos revela um grupo de senhoras, entre elas o marido de uma das mais antigas participantes do Grupo Viver, sentado em uma mesa vermelha, onde estava estampado

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um belo logo de cerveja. Lucinete conta aos risos: “Elas até bebem na praia e não pode. Eu falo que não pode porque elas tomam remédio. Eu tenho que ficar cuidando”.

Perguntamos qual será o destino do grupo neste ano e Lucinete nos diz, entristecida, que todos já a cobram sobre a viagem faz tempo, mas que ela não sabe se irá, de fato, acontecer desta vez. Antes, ela lotava um ônibus com 40 pessoas do Grupo e a pousada era oferecida pelo presi-dente do Sindicato dos Aposentados e Pensionistas. “Mas eu disse para elas que ele, vereador, ganhou e sumiu. Era um vereador que é presiden-te do Sindicato, e que sempre arrumava pousada pra gente. Agora que é vereador, sumiu. Não conseguimos encontrar o homem”, lamenta.

Lucinete coloca na frente os interesses e o bem-estar das senhoras que encontra todas as semanas, cuidando delas com todo o carinho e tendo a todas como amigas, conhece seus nomes, problemas, histórias de vida. Percebe até as expressões faciais durante as aulas, reconhecendo de longe quando é cansaço ou problema – em ambos os casos, oferece lá o seu apoio. “Sendo agente comunitária aprendi a ser mais humana, a olhar você e ver as suas necessidades e eu tentar resolver. É o pa-ciente chegar, conversar comigo e eu suprir as necessidades dele e ele sair satisfeito. Eu aprendi aqui a ter esse olhar mais humano”, reflete com gratidão.

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“Nadir? Ah, ela é bem participante. Ela gosta de estar aqui. Quando eu comecei no Grupo, ela já participava. Acho que ela já tem bem uns 13 anos de Grupo”, diz Lucinete sobre uma de suas alunas da atividade realizada às terças e quintas. É Nadir Ferreira de Oliveira, que está no Grupo Viver há mais de 10 anos mesmo, como supunha a coordena-dora, e tendo idade para ser sua mãe, criou por ela imenso carinho, considerando Lucinete como mais uma de suas filhas.

Esse laço de amor estabelecido entre elas e também por todo o grupo tem bases na gratidão que Nadir tem pelo Grupo Viver, por Lucinete, por suas colegas que também frequentam com ela, sendo muitas vezes suas vizinhas e conhecidas do bairro, e também pelo Centro de Saúde São Marcos. Graças às atividades, apoio e orientações dados a ela, cu-rou-se da depressão e mantém-se livre há muitos anos do alcoolismo. “Eu aposentei por causa da doença, fiquei muito depressiva, não saía, ficava chorando muito. Aí vim na Dra. Vera Lúcia Braga do Souto Fari-as, a terapeuta [ocupacional], que me aconselhou a entrar em algumas atividades”, conta.

Assim, como uma forma de preencher seu tempo livre com atividades benéficas para sua saúde, Nadir seguiu o conselho oferecido e começou a participar de diversos grupos para a Terceira Idade. Começou a frequentar o Grupo Viver, que logo seria assumido pela Lucinete, e diz, inclusive, que aprovou as modificações feitas na prática e que ela, particularmente, adora o momento em que dançam. Além do Grupo, ela também participa das atividades oferecidas pelo Movimento Assistencial Espírita Maria Rosa, localizado no Jardim Campineiro, bem ao lado do Centro de Saúde. Lá, Nadir tem a oportunidade de frequentar atividades de lazer, culturais e terapêuticas, como um grupo de atividades físicas e um coral de senhores e senhoras.

Às segundas-feiras de manhã Nadir encontra-se com sua turma do coral. Terças e quintas são dedicadas ao Grupo Viver. Às quartas e sextas frequenta o Maria Rosa e aos sábados vai para a Casa do Amor Frater-no, onde ajuda com o café da manhã que é distribuído para famílias carentes. Com essas atividades, que preenchem quase todos os dias da semana, Nadir viu sua saúde melhorar radicalmente e hoje tem uma vida muito diferente da que tinha quando foi aposentada, após 21 anos de trabalho e dedicação a uma única casa de família, por depressão e

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problemas no coração, que somadas às sequelas do alcoolismo causa-vam desmaios e convulsões constantes. “Minha saúde melhorou 100%! A depressão foi embora, acabou”, comemora a saúde que tem hoje, aos 71 anos.

Tendo dedicado sua vida a uma família, cuidando de todos, inclusive dos dois filhos do casal, como sendo seus próprios, Nadir diz que sua tristeza profunda, transformada depois em depressão, começou após ter saído do trabalho. Quando chegou a Campinas, vinda de Belo Hori-zonte diretamente para o São Marcos, encontrou este emprego na ci-dade. A família morava em um apartamento no Jardim Nossa Senhora Auxiliadora e depois se mudou para o Taquaral, sempre levando a fiel colaboradora com eles.

Um dia, no entanto, Nadir pegou a patroa para conversar sobre sua dificuldade em continuar realizando os mesmos trabalhos, por seus problemas de saúde, num péssimo dia. Magoada com a reação dela, disse ao patrão que iria embora. Ela recorda-se de ter sido um dia muito triste e que os filhos do casal, já adultos, choraram muito. Foi embora, mas ao chegar a casa, também deixou as lágrimas tomarem conta dela. “Tinham duas crianças. Quando eu entrei a menina tinha dois anos e o menino 6 meses. Eles eram muito apegados comigo. Aí quando eu falei que não estava mais aguentando trabalhar, a minha patroa, que também estava nervosa, discutiu comigo. E eu falei para o meu patrão que ia embora, ele me segurou e pediu para eu não ir. Os filhos deles já eram grandes e começaram a chorar, vim embora com aquilo na ca-beça”, relembra.

Apesar de não trabalhar mais em sua casa, Nadir conta que mantém contato com as crianças que ajudou a criar. O menino, hoje casado, mora nos Estados Unidos, mas sempre manda cartões postais, e a meni-na até hoje recorre a ela quando está com vontade de comer uma boa macarronada. “A menina vem aqui em casa, liga para mim falando que vai vir aqui e que é pra fazer macarrão pra ela, eu faço. É um amor... eu amo meus filhos, olho pra eles e também amo eles”, sorri ao lembrar-se deles, incluídos na extensa soma de seus filhos.

E não foi a primeira vez que ela pegou para criar como filhos crianças de outras pessoas. Literalmente, foi ela quem acolheu o filho de uma prima que após o nascimento desistiu de criá-lo. Somando este adotivo,

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Nadir tem sete filhos. “Eu vim para cá com os dois filhos pequenos, né? Aí surgiu uma prima que teve um filho e não queria, aí eu fui e adotei ele, fiquei com ele. É o mais novo, tem 30 anos. Aí depois eu fui buscando cada um deles, trouxe todo mundo, hoje mora todos os sete filhos em Campinas. Três moram comigo, a mais velha mora na rua de cima de casa, o caçula mora na Vila Esperança, nas casinhas. Três casaram, quatro são solteiros, mas tem uma que é solteira que não mora comigo, ela tem um apartamento lá no Campineiro. Quem mora comi-go é o moço mais velho, a quarta filha e o mais novo”, contabiliza os sete filhos que deram a ela, até agora, a alegria de 11 netos, uma bisneta e um bisneto, que está a caminho.

Todos os filhos foram criados sozinhos por ela, que ao vir para Campi-nas, apenas com dois filhos, deixou quatro com a mãe do ex-marido em Belo Horizonte, voltando para buscar todos. Com seu trabalho de doméstica sustentou a família toda, sem ajuda alguma, com exceção de quando chegou ao São Marcos, tendo recorrido às casas assistenciais. “Quando eu cheguei de Minas, eu não tinha as coisas direito, aí eu fui lá na [rua] Irmã Serafina pra pegar uma cesta básica no Allan Kardec, aí eles me deram móveis, roupas, muitas coisas para eu começar a vida aqui”, agradece.

A ajuda dada por casas espíritas e a convivência com sua ex-patroa, também espírita, fez com que Nadir conhecesse a doutrina e hoje também se considere uma, mas de forma ainda um tanto relutante, já que foi criada de forma rígida dentro dos padrões da Igreja Católica. Nadir foi cuidada apenas por sua mãe e ao lado de duas irmãs, pois seu pai abandonou a família quando ela ainda não havia completado dois anos de idade. Para dar uma boa educação às filhas, Sebastiana Ferreira de Oliveira sempre foi muito severa, exigindo que elas seguissem os ensinamentos da Igreja e também colocando as meninas para ajudá-la na roça desde pequenas. Quando Nadir completou oito anos começou a trabalhar em casas de família.

Ela nasceu em Divinolândia, interior do estado de São Paulo, e aos 12 anos sua família mudou-se para Belo Horizonte para que a mãe pudesse trabalhar. Dois anos depois Nadir casou-se por imposição da mãe, que morreu no mesmo ano em decorrência de um problema no coração, deixando as três filhas. Começou, assim, no início de sua

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adolescência seu conturbado casamento, que duraria 12 anos. “Ele me espancava muito, era muito ciumento, era difícil, mas a minha mãe sempre falava que a gente era obrigada a casar, que não podia separar, que não era coisa de Deus, como eu tinha casado na Igreja. Aí ficava aquela coisa, né? Mas quando ele largou, eu falei ‘Graças a Deus’”, diz, aliviada por ter sido o marido a pedir o divórcio, já que ela tinha muito medo de fazer isso, considerando que desrespeitaria a sua religião e os ensinamentos deixados pela mãe.

Em Belo Horizonte tinha uma colega que havia se mudado para o São Marcos e voltado durante as férias para visitar os parentes. Ao encontrar Nadir comentou com ela sobre o bairro e disse que essa seria uma boa oportunidade para recomeçar a vida. Oficialmente separada, tomou coragem e foi para Campinas, onde continuou a trabalhar com aquilo o que havia aprendido e praticado desde os oito anos, mas conta que seu sonho maior era ser enfermeira. Mas isso também não havia sido permitido pela mãe. “Quando eu fiz a 4ª série, a minha professora queria me trazer para um convento, eu queria vir, ela falava que a gente podia ser parteira, enfermeira, essas coisas e depois voltar, sempre tinha amiga minha que voltava. Mas minha mãe não deixou, eu tinha vonta-de de ser enfermeira”, lamenta.

Mas antes de começar a trabalhar na casa de seus antigos (e únicos) patrões, Nadir que chegou ao São Marcos muito abalada por conta dos anos de sofrimento vividos como casada, começou a beber. “Comecei a beber aqui, antes de trabalhar, arrumei umas amizades aqui, comecei a beber muito e peguei o vício”, explica. Durante anos entregou-se a ele, o que abalou seu relacionamento com os filhos. Mesmo após começar a trabalhar, ainda estava lutando para controlar o alcoolismo, e contou com a ajuda da família a qual se dedicou durante seu tempo de trabalho. “Eu não tive muita ajuda não. Fiquei até internada uma vez. Meu patrão me internou em Sousas, no Cândido Ferreira. Fiquei quatro meses lá, aí depois Deus me ajudou e eu parei. Não sei, eu vi que eu estava ficando esquisita, a pele descascando, feia, inchava os pés e as mãos. Aí minha filha conversou comigo, eu resolvi parar. Ela falou que precisava muito de mim. Foi minha filha Raquel, que mora comigo, hoje tem 42 anos”, relembra.

Desde então, Nadir teve forças para manter-se longe dos vícios do

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álcool e do cigarro, que foi abandonado também com o pedido da filha. Passada essa tormenta, dedicou-se a família, a educar os filhos e a incen-tivá-los nos estudos e no trabalho. Sobre sua família, considera todos os de sangue, mas também os amigos que fez ao longo de todos esses anos no São Marcos, suas vizinhas, pessoas que moram no bairro e que, através da amizade, colaboraram para que ela se mantivesse firme em seu propósito de manter-se saudável.

A única coisa que aflige Nadir atualmente é que o terreno onde vive não é próprio, ainda é um terreno da Prefeitura e ela tem medo de que aconteça o que já aconteceu em outros bairros da cidade: que eles se-jam retirados dali e levados a algum outro bairro distante. Lamenta ao pensar sobre essa possibilidade, já que, por ter reconstruído toda a sua vida nesse bairro, não quer deixá-lo nunca. “Quando eu mudei para cá não tinha casa, era só barraco, tinha muita bagunça tinha pouca luz e água, meu patrão me deu na época um poste de luz, e as ruas eram tudo barro. Onde eu moro até tem o apelido de ‘Barro Preto’. Agora tem asfalto e tudo, construí a casa, mas a área é da Prefeitura. Tô esperando eles resolverem se vão tirar a gente ou deixar lá. Por enquanto, não sei, faz 31 anos que tô lá. Eu gosto daqui”, conta.

Tirando essa angústia, Nadir chega aos 71 anos alegremente e é vista, inclusive, como uma batalhadora por ter passado por diversos proble-mas, com sua família e de saúde, e hoje estar feliz, buscando estar cada vez melhor. Para isso, não falta nunca às consultas regulares e nunca se esquece de tomar os remédios diários que precisa. “Eu sou feliz, porque se eu aguentei isso tudo, né? Eu agradeço a Deus porque agora eu tô com 71 anos, sou feliz e com saúde, porque os problemas de saúde que eu tenho, não considero que sou doente, porque eu trato”, diz referin-do-se a tendinite, artrose e bico de papagaio que descobriu há uns oito anos e ao problema de convulsão, devidamente controlado depois que passou a tomar os remédios certos.

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Todas as senhoras e senhores do Grupo Viver, além do apoio que recebem de Lucinete, também podem contar com a colaboração de Rosana Rodrigues Santos no Centro de Saúde. Ela é a outra agente de saúde comunitária que compõe a equipe encarregada dessa função. Como Lucinete, Rosana começou essa atividade no ano de 2002 e com-partilha o mesmo horário de trabalho que ela, das 8h às 16h12min. Rosana, no entanto, ao contrário da coordenadora do Grupo, que se especializou em Liang Gong para poder assumir também as atividades para os idosos do São Marcos, dedica-se apenas ao Centro de Saúde, principalmente para não prejudicar (mais) o time, que deveria contar com quatro profissionais ao todo.

“Só a Lucinete tem o grupo de atividade, mesmo porque só tem nós duas, éramos quatro e agora somos só em duas, porque uma foi trans-ferida e está fazendo serviços administrativos aqui e a outra saiu, pediu demissão, e essas vagas não foram ocupadas ainda. Então, só tem nós duas. E não dá pra eu ajudar ela no Grupo Viver, se não aqui fica des-falcado”, explica ela, que além das visitas domiciliares também entrega e separa medicações para pacientes, faz acolhimentos de pessoas que chegam ao Centro de Saúde e cadastros de famílias.

Como a maioria dos moradores do bairro, Rosana não nasceu no São Marcos, mas veio de Marília, interior de São Paulo, aos oito anos ao lado dos pais, Maria Neusa e Manoel, e mais sete irmãos. Antes de ser agente comunitária, Rosana trabalhou quando adolescente em uma fábrica de doces instalada ali no bairro por quase quatro anos, para ajudar a mãe com as contas da casa. Sentada em um dos bancos de con-creto postos do lado de fora do Centro de Saúde, Rosana recorda-se que seus avós, que também moravam no interior do estado, mudaram-se para o bairro em busca de uma vida melhor. Seus pais, que na época moravam em um sítio, como antigamente viviam seus avós, devido a alguns problemas que tiveram na cidade enxergaram também nessa mu-dança uma oportunidade de vida nova. Foi, assim, toda a família para o São Marcos.

“Quem não mora aqui ainda mantém aquela imagem de ser um bairro violento, né? Mas em vista do que isso aqui era há 20 anos, mu-dou muito. Tinha semana que era dois ou três mortos, a gente morria de medo. Era de manhã e já estava tendo tiroteio na rua. Eu tinha

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muito medo, agora não tenho mais, não”, lembra-se do susto que teve quando chegou ao São Marcos. E, apesar disso, após completados 31 anos como moradora do bairro, Rosana diz que não se mudaria dali, mas que ainda planeja voltar às origens, comprar um sítio e mudar-se para viver em tranquilidade depois que se aposentar.

Enquanto seus avós buscavam ali uma vida melhor, os pais de Rosana vieram em busca de uma vida nova, pois Manoel, o pai, com problemas de alcoolismo, havia sido mandado embora do trabalho. Ele, na época administrador de fazenda, foi pego pelo dono da propriedade enquanto bebia. Sua mãe, então, encarou a responsabilidade de criar os filhos e aceitou a mudança. Pagando aluguel da casa nova, Maria trabalhou a vida inteira como doméstica e contou com a ajuda dos filhos, conforme foram crescendo, para colaborar financeiramente dentro de casa.

“Minha mãe veio para trabalhar, porque nós éramos pequenos. Minha irmã mais velha tinha 10 anos, mas ela começou a trabalhar cedo também, com 12. E eu com 14 anos já era babá. Aí com 15 eu en-trei nessa fábrica de doces, fiquei lá até uns 18. Meu pai trabalhou anti-gamente numa empresa que tinha aqui atrás. Ele trabalhou alguns anos aí, mas foi mandado embora porque bebia muito e foi pego dormindo no banheiro. De lá para cá ele nunca mais trabalhou registrado, só fazia bico quando queria. Minha mãe que tomou a frente, foi trabalhar como doméstica, trabalhava para nos sustentar”, conta sobre a mulher que ela se orgulha por ter como exemplo de sua vida.

Assim, Rosana cresceu e estudou no São Marcos, completando o ensino médio ali. Seu vizinho, Hélio Ronaldo, tornou-se seu marido, com quem está casada há 17 anos. Com ele teve duas filhas, Juliana, de 17, e Júlia, de 11. A mais velha, que sempre estudou no bairro, como a mãe, ganhou no início do ensino médio uma bolsa para cursá-lo no Colégio Objetivo, no centro de Campinas. A mais nova passa as manhãs frequentando as atividades do Grupo Primavera e depois do almoço vai para a escola regular no bairro. Como Rosana, hoje com 39 anos, todos os outros sete filhos de Maria Neusa ainda moram perto dela. A mais velha é quem mora mais afastada, em Sumaré. O restante vive, no máximo, a dois quarteirões de distância.

“Nós somos bem unidos, todo final de semana estamos na casa da minha mãe. Eu moro a dois quarteirões da casa dela e tenho uma irmã

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¹ Segundo o Ministério da Saúde, 12% de brasileiros são dependentes químicos do álcool.

que mora na mesma rua. Outro irmão, que mora na rua de cima, não chega a ser nenhum quarteirão de diferença. Aí tem outra que também mora aqui e só a minha irmã mais velha que mora em Sumaré”, conta sobre os cinco filhos do casal que saíram de casa.

Essa proximidade foi fundamental para sua família, que sempre teve cuidado com o pai, por sua condição, principalmente agora que ele não movimenta mais as mãos nem as pernas após um derrame e uma queda, sozinho, no bainheiro de sua casa. Os cuidados diários agora são feitos pela esposa e três filhos, que ainda moram com eles, mas sempre que necessário todos os outros filhos colaboram.

“Na verdade ele não parou de beber, ele só não tem mais como, porque há cinco anos ele teve um derrame. Primeiro ele caiu, bateu a cabeça e teve um coagulo, depois de 15 dias, ele entrou em coma por causa disso, teve que operar, tratava na Unicamp. Depois de 40 dias ele voltou a beber. Aí teve um derrame, ficou meio esquecido, não saía mais sozinho. Ficou bem, já fazia dois anos que não estava mais bebendo, daí caiu no banheiro e fraturou a cervical, perdeu o movimento das mãos e pernas. Fez uma cirurgia no Mário Gatti, mas não voltou a andar”, lamenta.

Sua mãe, que já havia trabalhado 25 anos como empregada domésti-ca, resolveu então abrir um pequeno comércio em frente a sua casa, para estar sempre por perto. Rosana diz que não só para ela, mas para todos os irmãos, a mãe tornou-se um modelo a ser seguido, pois foi graças a seus esforços diários que todos os oito filhos foram criados, estudaram – tendo um, inclusive, alcançado um diploma universitário – e nunca se envolveram em problemas com drogas ou violência. Além dos cuida-dos com os filhos, apesar de todas as dificuldades passadas, mantém-se firme ao lado do marido, tendo com ele cuidados redobrados.

“A gente podia ter sido qualquer coisa, mas pelo fato dela ter tomado a frente e ter lutado por nós ninguém se viciou em drogas, todos que são casados têm as suas casas, têm seu carro, sua profissão. Tenho um irmão até que é formado na faculdade de Administração. Então, assim, cada um tem suas vidas honestas. Eu tenho muito orgulho da minha mãe, mas também não julgo meu pai. Sei que isso é uma doença¹ e hoje tentamos cuidar dele da melhor maneira possível”.

Rosana, por seu trabalho como agente de saúde, orienta a mãe sobre

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os cuidados necessários com o pai. Como agente, acompanha médicos em visitas domiciliares a pacientes acamados. Para ela, lidar com essa condição especial não foi uma grande dificuldade, mas acredita ser im-portante o apoio dos filhos (que por sorte moram por perto) à mãe.

Apesar do sonho de infância em ser arqueóloga, Rosana sente-se realizada nessa função e planeja até fazer um curso técnico de farmácia no ano que vem. Enfermagem, não. Aos risos, diz que lhe “falta estômago” para isso. Ela acredita que uma formação na área de Farmácia já complementa sua atividade como agente comunitária de saúde, colaborando para seu melhor desempenho tanto nas atividades rotineiras do Centro de Saúde como durante as visitas aos moradores do bairro.

Essa atividade, por sinal, é uma das que Rosana mais gosta em seu emprego. São feitas uma vez por semana, em geral das 13h às 16h, momento em que as agentes de saúde podem visitar recém-nascidos, orientar as mães sobre cuidados com a saúde do bebê, amamentação etc, e também quando acompanham médicos a casas de pacientes que não podem ir se consultar no Centro de Saúde, por estarem acamados ou serem idosos em situação delicada de saúde.

“Visitar as famílias é o que eu gosto mais. Elas contam muito com a gente. Os principais problemas deles, as primeiras pessoas que ficam sabendo são os agentes. Eles têm muito essa confiança de contar problemas, às vezes até de ordem assistencial, querendo algum tipo de ajuda. Eu tenho um carinho por eles, principalmente os idosos, que são a maioria. Eu gostaria de ter mais tempo para fazer mais visitas, é a parte que eu mais gosto”, diz, animada com a profissão alcançada.

Foi assim, em uma das visitas semanais que Rosana tanto gosta, que ela nos apresentou a Marlir e Claudiana, mãe e filha, moradoras do São Marcos, com o restante de sua família. Autorizadas pelo Centro de Saúde a acompanhar a agente comunitária a algumas residências du-rante a tarde de uma quinta-feira, saímos com Rosana a pé diretamente para sua casa, a alguns quarteirões de distância.

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A casa onde moram tem uma fachada modesta, um portãozinho de ferro dá passagem para o quintal, habitado por um agitado coelho branco, que atende por Shakira, que faz o papel de um animal de esti-mação – adestrado e obediente como um cachorro, por sinal. Entramos numa parte da casa onde encontramos Marlir Santos da Silva, 50 anos, e sua filha Claudiana, 30, que tem nos braços seu filho Pedro Henri-que, nascido em julho deste ano. Ali moram também os seus maridos e a filha mais velha de Claudiana, Gabriela, de 12 anos. Originalmente aquela era apenas uma única casa, mas depois foi aumentada para duas, agregando uma parte do quintal, para que Claudiana pudesse morar com o atual marido perto dos pais. A casa é repartida ao meio por uma parede que define o lado de Claudiana e o de seus pais. A janela do quarto de Marlir, por exemplo, abre-se para dentro da sala de estar do jovem casal.

A agente de saúde comunitária Rosana Rodrigues Santos, chega, en-tão, para uma dupla visita: verifica a saúde da criança recém-nascida, conversa com Claudiana sobre os cuidados com a amamentação, para garantir tanto a saúde de Pedro como a dela, que reclama de dores inten-sas no seio enquanto amamenta, e aproveita para cobrar de Marlir alguns exames de sangue que foram agendados para ela na PUC-Campinas¹. Rapidamente, a senhora retruca, com uma maneira muito particular de falar, alegando que não irá fazê-los, porque é longe e dá trabalho sair do bairro. Ela queria mesmo que o Centro de Saúde São Marcos atendesse todas as especialidades e que ela pudesse fazer todas as suas consultas e exames ali. “Eu sinto dificuldade aqui é na saúde, porque eu marquei uma consulta só pra daqui um mês. Se tiver que morrer, morre. Se for um exame, manda pra casa do cacete. Eu já falei que não vou fazer esse exame, não. Me mandaram lá pra PUCC, eu nem sei andar na PUCC”, reclama, alfinetando Rosana, que parece acostumada com esse tipo de reação e não se abala, voltando a insistir para que ela vá fazer os exames.

Marlir, nascida em Recife e criada em Olinda, apesar de morar há 25 anos no São Marcos, não perdeu o sotaque forte – nem seu jeito “arretado”, como ela diria. Parece ser uma mulher brava, mas nega que seja. “Não sou brava, sou nervosa!”, diz. Seu temperamento nervoso chega a ser divertido, porque ela muda de uma resposta ríspida dada a Rosana para um comentário engraçado em segundos. E todo mundo

¹ No Hospital Maternidade Celso Pierro.

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já está acostumado a isso. “Marlir é assim mesmo”, explica-nos Rosa-na, divertindo-se com a matriarca que, segurando um pano de prato, abandona a atividade doméstica para juntar-se às visitas que chegaram a sua casa. É uma mulher espontânea, daquelas que falam o que precisar a qualquer pessoa em qualquer lugar, e muito falante, não dispensando uma boa conversa jamais.

Ao mesmo tempo tem um jeito firme, durão, o qual atribui às suas origens. Diz ter sido criada assim, sem muito tempo para delongas e por isso é determinada – em tudo, principalmente quando o assunto é trabalho. “Eu? Eu não tinha nem tempo de pensar no que queria ser quando criança, era só trabalhar. Minha mãe ficou viúva com 14 filhos, grávida. Quando estava de seis meses foi atropelada e na família nin-guém ajudava, aí tive que trabalhar tudo cedo. Eu comecei a trabalhar com nove anos”, conta.

E foi pensando em novas oportunidades de trabalho que ela se aven-turou ao aceitar mudar-se para Campinas, diretamente para o São Mar-cos. Ela veio com Claudiana, a filha caçula, e uma amiga que já tinha um filho que morava no bairro. “Primeiro ela mandou o filho dela, porque estavam querendo matar ele lá. Daí meti a cara e vim com a Pilantra [modo como se refere à antiga amiga]. Ela pagou minha pas-sagem. Deixei meu filho lá, Cu Seco ficou lá...”. Uma nota é necessária: Marlir tem um apelido especial para cada pessoa importante em sua vida. “Cu Seco”, neste caso, é seu marido, oficialmente registrado como Luís Carlos, com quem está casada há 39 anos.

Então, tornou-se moradora do São Marcos. Ela, Claudiana, Pilantra e o filho de Pilantra viveram em péssimas condições por alguns anos. Moraram todos em um barraco de tábua, na beira do córrego que ali existia, até possuir dinheiro suficiente para comprar uma casa de alve-naria, a mesma onde mora atualmente, por R$ 7 mil. Marlir, logo após chegar à cidade, conseguiu um emprego como doméstica e recebeu aju-da de sua antiga patroa para recomeçar a vida. “Aí depois ela [Pilantra] fez o barraco lá no campinho e foi só ‘tribulação’. Arrumei serviço, ar-rumei um barraquinho de tábua e com 15 dias pedi adiantamento para a minha patroa para dar no aluguel, porque naquele tempo exigia, né? Arrumei um fogão, ainda um fogão que funcionava só uma boca. Boti-jão essa minha colega me emprestou. Fui trabalhando, trabalhando.

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² Diclofenaco é medicamento não esteroide com ação analgésica e anti-inflamatória.³ O Cruzeiro (Cr$) foi a moeda do Brasil de 1942 a 1967, de 1970 a 1986 e de 1990 a 1993.

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Foi uma luta. Trabalhei, ralei pra caramba. Tanto que hoje estou toda podre de tanto trabalhar.”, reclama.

Por causa das faxinas que fez durante a vida toda, hoje Marlir sente muitas dores no corpo, fruto de um bico de papagaio e um proble-ma no osso da perna, onde ela sente “que está entortando”. Pela falta de condições físicas para trabalhar, hoje fica em casa ajudando a filha com o bebê, enquanto aguarda sua aposentadoria ser aprovada. Mesmo com a insistência das agentes comunitárias e de sua filha para que ela frequentasse as atividades promovidas pelo Centro de Saúde, como o Grupo Viver, para obter melhores condições de vida, ela mantém-se relutante. “Eu tô toda podre. Vou nada! Ela [Claudiana] botou meu nome, mas eu não aguento, não. Eu ando daqui para ali e meu joelho incha. Eu tomo direto diclofenaco² com Dorflex. É coluna, é joelho... de tanto fazer faxina. Agora tô correndo atrás pra ver se eu encosto, porque meu menino paga meu INSS”, explica. Seu menino é Cleber-son, o filho que havia ficado com o marido em Recife. E pensando em voltar para buscá-lo é que Marlir trabalhava naquele tempo, guardando dinheiro para essa viagem.

Completados alguns meses morando ali, em um dia quando voltava para o São Marcos, depois do trabalho, Marlir teve a sorte de encontrar dinheiro no meio da rua. Como ainda não havia pagado o empréstimo feito por Pilantra (que, inclusive, conseguiu tal apelido pelo desenrolar desse episódio) Marlir resolveu, então, entregar o dinheiro encontrado a ela. “Eu achei cinco mil [cruzeiros³]. Nunca tinha visto uma nota de cinco mil. Ia jogar fora, mas pensei em mostrar a meu compadre. Aí ele falou ‘não, Marlir, aqui é cinco mil’. E eu que ia jogar fora! Como eu morava na casa dessa Pilantra e ela sempre vivia jogando na minha cara que a gente comia e tudo, que ela me deu a passagem... Ela disse que ao chegar aqui eu pagava a passagem quando eu arrumasse serviço, mas deu três meses e a mulher já estava me cobrando. Miserável! Botei [o dinheiro] na mão dela e ela foi logo embora, deixou a gente sem nada”, relata, colocando na voz certo tom de amargura.

Pilantra não foi escondida, mas inventou que precisava voltar a Re-cife para resolver alguns problemas. Marlir viu nessa viagem uma opor-tunidade de rever seu filho e pediu para que a amiga, quando voltasse, trouxesse Cleberson. Alertou-a também para que trouxesse apenas o

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filho e que deixasse o Luís Carlos lá, sem nem dar a ele o endereço de onde ela estava morando. No entanto, Pilantra voltou a Recife, não cumpriu com o prometido, deu a ele o endereço de Marlir e sumiu com o dinheiro da amiga, quantia muito maior do que aquela paga pela passagem de ônibus para irem a Campinas.

Foi assim que a família reuniu-se novamente: tempos depois Marlir encontrou na porta do barraco o filho e o marido. “Eu pedi pra ela não dar o endereço para o Carlinhos, porque ele bebe demais, sabe? ‘Traz só meu menino’. Ela ficou e deu o endereço certinho a ele. Quando eu vejo, chega ele com o menino. Ela me deixou no barraco dela e como eu morava de favor aí eu tive que aceitar ele. Graças a Deus que com seis meses ele já começou a trabalhar”, lembra-se.

Apesar da aparente birra que tem com o marido por conta de seu vício, o casal esteve sempre unido na construção de suas vidas na nova cidade, ele como porteiro e ela, faxineira. Juntos conseguiram comprar a sonhada casa própria e criar os dois filhos no São Marcos. Aliás, com Luís Carlos, Marlir teve três. A filha mais velha, que não aparece na história, chama-se (ou chamava) Mônica, mas Marlir não teve a chance de criá-la. “A mais velha roubaram da maternidade. Pra você ver meu karma! É filha roubada, filha queimada, marido que bebe. Roubaram assim que nasceu. Naquele tempo o filho não ficava com a gente. Agora fica, né? Ficava no berçário. Eu cheguei a ver ela só de longe”, lamenta a ausência da filha que completaria 39 anos em 2013.

Marlir teve a primeira filha aos 15, idade em que casou com Luís Carlos. Apesar de dar trabalho a ela e a filha por causa do alcoolis-mo, nunca o abandonou – mesmo que tenha tentado ao mudar-se para Campinas, mas foi só daquela vez, ela garante. Diz que depois desistiu da ideia, porque ele não tem mais ninguém além deles como família. “Chegaram a querer matar ele, porque ele só perturbava, tanto a gente como o bairro. Agora ele melhorou, graças a Deus. Mas quando ele bebe eu tranco ele, porque se soltar, ele vai perturbar o bairro, cair na rua”, conta o seu jeito peculiar de cuidar do marido, que chega até a demonstrar carinho ao seu modo.

Apesar do jeito desleixado de como fala, há amor em seu coração. Mas ela nos revela um segredo: “Quando eu conheci ele... Maldita hora. Amava outro, era apaixonada por outro, mas naquele tempo era assim:

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namorou, noivou, casou”. A história complicada começou no colégio em que estudava em sua cidade natal, onde conheceu o atual marido. Amava Orlando, mas foi Luís Carlos que conquistou a aprovação de sua família. Pediu a mão de Marlir a sua mãe, que contente com o casamen-to agilizou a realização da cerimônia. Marlir e Orlando nunca mais se falaram depois que ela casou, mas ela diz lembrar-se dele todos os dias. “Eu sonhava com ele de cair da cama. Eu acho que é amor, porque eu não esqueço dele. Mas ele era louco por mim porque ele ia me buscar na escola, ele deu conselho para eu não casar com o Macarrão, que era o apelido do meu marido... Ele tem tanto apelido! Ele falou que eu ia sofrer, passava na minha casa direto, quando eu fui casar e entreguei-lhe o convite a ele, chorou e falou que eu nunca mais ia ver ele”, vemos tris-teza na expressão de Marlir, pela primeira vez desde que a conhecemos.

Orlando hoje está casado, é avô e mora em Brasília, ela informa. “Quem sabe um dia a senhora não encontra ele...”, pensamos alto e ela conta, aos risos, que até programas de auditório na televisão assiste, porque pode vê-lo, nunca se sabe. Aproveita, então, a oportunidade e emenda logo um pedido: “Coloca meu nome aí, vai que ele lê seu livro! Daí ele sabe que eu tô viva e vem me procurar! Vou botar meus dentes, cortar o cabelo, dar um ‘grau’ pra ver se eu encontro ele”. É o último pedido de Marlir antes de voltar à faxina. Fala ao lado da filha Claudi-ana, acostumada com os devaneios da mãe sobre seu amor por Orlan-do. “Ela é assim, mas meus pais se gostam, sabe? Senão ela não ficava preocupada com ele”, pensa Claudiana, que nos relata as buscas da mãe pelo pai nos bares do São Marcos quando ele some de casa. E quando encontra é um espetáculo presenciado pelos vizinhos: Luís Carlos quan-do vê a mulher nervosa procurando por ele, muitas vezes carregando algum artefato ameaçador, como um cabo de vassoura, corre para casa.

E foi em meio a esse relacionamento turbulento que o casal criou Cleberson e Claudiana. Nunca tiveram problemas com a violência do bairro e com o passar dos anos confirma que tudo melhorou muito, des-de a segurança, até questões de infraestrutura e transporte. “Melhorou muito, porque aqui antigamente era zona, era muito violento, né? A violência melhorou para caramba. Quando eu cheguei aqui era três, quatro, cinco morto. Uma vez meu marido saiu pra trabalhar de manhã cedo e cinco horas da manhã tinha um presunto no meu portão”. Então

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questionamos Marlir se ela não tinha medo de deixar os filhos sozinhos em casa ao sair para trabalhar. “Minha filha, [criá-los no São Marcos] foi a Deus dará, sabe? Porque eu trabalhava. Quando eu trabalhava e eles eram pequenos eu saía, escondia fósforo e faca e deixava eles dois trancados, porque eu não tinha quem olhasse eles pequenos. Aí botei na Guardinha, porque naquele tempo era com 14 anos. Quando eles fizeram 14 anos, botei eles na Guardinha. Estudava à noite e iam pra Guardinha. Mas graças a Deus não deram trabalho não com negócio de droga”.

Concluíram os estudos nas escolas do bairro, completando o ensino médio. Cleberson, que se mudou recentemente para Paulínia com a esposa e uma filha, chegou a graduar-se em Contabilidade. Claudiana diz nunca terem tido problemas na escola, nem situações ruins dentro do bairro quando crianças. Coloca uma exceção com relação às drogas, pois o contato que teve com elas dentro da escola foi frequente, embora não tenha experimentado. Agora, mãe, preocupa-se com a educação de seus filhos, principalmente com Gabriela, que já estuda na escola municipal localizada no São Marcos. “Antigamente era mais escondido, quem usava, usava dentro de casa, escondido mais ou menos. Agora você vai na rua e vê os meninos fumando maconha. Você até fica dando risada à-toa por causa do cheiro, não é? O fato é esse. É bem complica-do. Hoje em dia as drogas estão aí, não é mais escondido. Hoje em dia eles fumam e usam na nossa frente. Antigamente não podia. Eu peço muito a Deus por ela”, reflete.

Quando chegaram à adolescência, para que eles não ficassem mais sozinhos, podendo ter contato com más companhias, Marlir colocou os filhos na Associação de Educação do Homem de Amanhã (AEDHA), conhecida como “Guardinha” de Campinas, onde tiveram a oportunidade de fazer cursos técnicos e ajuda para iniciação profissional. Foi nessa época em que era “Guardinha” que Claudiana conheceu o primeiro amor, Rodrigo, pai de Gabriela. Grávida aos 16 anos de seu namorado, também de 16, não casaram, mas decidiram morar juntos. No entanto, não se adaptaram a rotina de casados. “Não deu certo, porque a gente era muito imaturo, bem adolescentes. Tentamos morar juntos, só que não deu certo. Vimos que não era aquilo que a gente queria, né? Muito novos, essas coisas de adolescentes. Após o

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nascimento da Gabriela eu tive depressão pós-parto. Não é fácil você acordar de madrugada, cuidar de neném, cuidar de casa, essas coisas. Eu tive a depressão pós-parto e aí ele me abandonou. Acho que não teve entendimento de saber o que é depressão pós-parto, porque as pessoas pensam que é frescura, entre aspas, né? Acham que é frescura a depressão. Só que ele já tava envolvido com essa madrasta da minha filha. Aí ele se envolveu com ela e me abandonou. A minha filha tinha cinco meses quando ele nos abandonou. Minha mãe me deu força, meu pai... falaram para eu colocar ela na creche e continuar a minha vida, trabalhar, estudar. E foi o que aconteceu”, relembra.

O não entendimento da depressão pós-parto (DPP) por parte do ex-namorado, o que Claudiana considera um dos principais motivos da separação, é comprovadamente algo comum. Segundo dados divulgados pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, cerca de 50% dos casos de DPP não são identificados. Esse tipo de depressão atinge entre 12% e 26% das brasileiras e é caracterizado por episódios depressivos iniciados após o nascimento do bebê. A mulher apresenta sintomas como distúrbios psicomotores, do apetite e do sono, cansaço excessivo, apatia pelas atividades cotidianas, desinteresse pelo recém-nascido, culpa e pensamentos suicidas. Essa depressão pode durar meses ou anos, aumentando o risco para novos episódios depressivos ao longo da vida da mulher. Quando não corretamente tratada, pode acarretar em problemas psicológicos maiores, como a psicose, estado psíquico no qual se perde a real compreensão da realidade, podendo ocorrer delírios ou alucinações, angústia, pensamentos paranoicos ou suicidas.

Assim, Claudiana voltou a morar com os pais, colocou Gabriela na creche, começou a trabalhar novamente e terminou os estudos na Escola Estadual Professora Castinauta de Barros Mello e Albuquerque. Não se submeteu a tratamento psicológico adequado, preocupando-se apenas em retomar a vida, buscando recuperar-se com a ajuda da família, desatenta aos sinais da depressão, os quais as pessoas próximas a ela acreditavam ser uma bobagem. Quatro anos depois, conheceu Gilmar, seu segundo namorado.

Claudiana, que havia passado pelo trauma de uma traição e ainda estava muito magoada, reproduziu com Gilmar as sequelas de um amor mal

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curado. Depressiva e traumatizada, não contou com o companheirismo do novo namorado, não tendo confiança em seu relacionamento. Parte dos problemas que tiveram originou-se em seu ciúme. “Foram cinco anos que nós ficamos juntos, mas também foi só de transtorno. Como eu posso dizer? Muito ciúme da minha parte, sendo que quem era mais bonita era eu. Só que eu me apeguei a ele de forma inesperada, achei que ia dar certo...”. Mantiveram um relacionamento durante cinco anos e chegaram a dividir um apartamento no bairro Recanto Fortuna. Foi esse apartamento, inclusive, palco de seu maior trauma, momento ao qual ela se refere sempre como “o acontecimento de minha vida”. Parte desse acontecimento ela não se lembra. Prontuários, enfermeiros, médicos e seus pais a relembraram de pontos esquecidos pelo trauma. “Não, desse fato assim eu não lembro, não. Diz que muitas coisas apagam da memória, só com o tempo é que vai vir, né? E essa é uma história que até hoje eu não entendo. Só sei que acordei depois de três meses cheia de aparelho no HC da Unicamp”. Claudiana ficaria por muito tempo em leitos de hospitais após aquela noite. Levada pela ambulância ao Hospital das Clínicas da Unicamp, saiu de lá três meses depois, também em uma ambulância, que a levou ao Hospital Sanatorinhos de Itu, onde ficaria por mais sete meses, na ala reservada para queimados.

Quando Claudiana acordou do coma, não sabia onde estava, nem o que tinha acontecido. Quando soube, teve uma crise nervosa. Não aceitava que ela mesma havia provocado aquela situação: durante uma briga com Gilmar, o resultado da depressão pós-parto não tratada veio à tona e Claudiana, durante uma crise psicótica, atentou contra sua própria vida. Despejou álcool em seu corpo, depois colocou fogo. De-morou anos para se lembrar o que aconteceu nesse intervalo de tempo entre a crise e quando acordaria com 45% do corpo queimado. “Dizem que eu saí agonizando no apartamento e eu saí em chamas pelos blo-cos, pedindo socorro e ele [Gilmar] ficou dentro da minha casa. E foi maldade dele porque ele trabalhava na Mercedes Benz e lá quem entrou ou uma vez a cada seis meses tinha aula de primeiros socorros. E ele me viu agonizando, de braços cruzados e não fez nada. Parado olhando enquanto eu saía correndo do apartamento. Quer dizer, foi maldade dele porque ele sabia como agir. Quando você vê uma pessoa em cha-mas você tem que abafar com cobertor e ele me jogou de baixo da água

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quente do chuveiro. Foi ‘estopando’, a minha carne foi caindo. Meu cabelo caindo. Aí ele pegou e foi abafar com o cobertor. Grudou tudo o cobertor. Na hora em que foram arrancar foi caindo tudo, minha carne foi caindo. Dizem que foi uma cena terrível”, descreve o ocorrido no apartamento com uma mistura de suas próprias lembranças e das que Gilmar informou depois a Marlir, que contou a ela.

Desse dia em diante a vida de Claudiana nunca mais seria a mesma. Sentada no sofá de sua sala, quase seis anos depois, enquanto segura Pedro Henrique, não pode esquecer tal acontecimento. Camadas de uma pele em textura mais fina do que a natural cobrem parte dos braços e pescoço de Claudiana. A pele de seu pescoço parece mais rígida do que a do braço, o que dificulta amplos movimentos, como olhar para o bebê que amamenta. O rosto de Claudiana, que havia perdido cabelos, cílios e sobrancelha, no entanto, não foi tomado pelas cicatrizes. Ao olhá-la de frente, as marcas não aparecem muito e a beleza dos olhos permaneceu intacta. “Para os médicos, eu não ia mais ter cabelo, cílios, sobrancelha, nada. Aí cresceu... Meu cabelo nem era pra ter, os médicos alegam. Não era pra ter nada, porque quando queima a parte do supercílio eles falam que não cresce mais e isso aqui meu tudo queimou [passa a mão pelo rosto]. Não era nem pra eu ter essa face assim, perfeita, quando olha assim de frente, por causa da queimadura”.

As cicatrizes estão por todo o corpo, inclusive nas mamas que alimentam o bebê. Pela sensibilidade da pele, sequela da queimadura, amamentar incomoda Claudiana, que pergunta a Rosana, durante a visita da agente de saúde, o que fazer para amenizar a dor. “Na primeira gravidez eu tinha aquele desânimo. O choro da Gabriela me irritava, acordar de madrugada me irritava, meu bico do seio machucado fazia com que eu nem quisesse dar de mamar para a Gabriela. Agora com ele, mesmo com o peito assim, eu tô dando de mamar para ele, tô curtindo mais a gravidez”, explica.

Estar ali com Pedro, nascido há pouco menos de seis meses, em seu colo, por sinal, é um milagre, pois nenhum médico acreditava que Claudiana pudesse engravidar novamente um dia, uma vez que toda a pele de sua barriga foi reconstruída com enxerto. Barriga e coxas foram reconstruídas por meio desse processo. Braços, costas, rosto, pescoço, passaram por difícil cicatrização. A completa recuperação demorou,

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principalmente porque ela não conseguia locomover-se muito e ficava a maior parte do tempo deitada, posição que impedia a cicatrização da pele encostada no lençol. Marcas de sangue, pele e gaze eram deixadas na roupa de cama, trocada diariamente por sua mãe, Marlir.

Com a tentativa de suicídio da filha, ela pediu demissão do antigo emprego e passou a dedicar-se a ela. Enquanto cuidava de Claudiana no hospital, providenciava sua mudança, já que voltaria a morar com os pais novamente, após o término do relacionamento com Gilmar. “Ele me abandonou no hospital mesmo. Minha mãe falou que ele já tinha falado para a assistente social do hospital que não ia ficar comigo e minha mãe agiu com sabedoria de mãe e construiu essa casinha pra mim, aqui no caso era a área dela de lavanderia. Minha mãe que construiu essa casinha pra mim, porque ela já sabia”. E não foi apenas o namorado quem se afastou naquele momento, mas também sua filha, cuja guarda foi passada para o pai, Rodrigo, pela falta de condições de Claudiana de cuidar dela, pois estava internada.

Dos amigos, restou apenas um da escola, o Cléber, que nunca deixou de visitá-la. A família foi seu alicerce maior: pai, mãe, primos, irmãos. E também os membros da equipe responsável pelo Centro de Saúde São Marcos que fizeram atendimento psiquiátrico, ajudavam com a trocar os curativos e faziam visitas periódicas a ela. As agentes de saúde, médi-cas e até mesmo a coordenadora de lá vibravam com suas melhoras. Hoje acompanham suas conquistas e contentam-se ao vê-la no Centro de Saúde, só que dessa vez para realizar as primeiras vacinas de Pedro Henrique. “Ninguém imaginou como ela melhoraria. Vocês precisam ver! Tinha dores, estava deprimida, não conseguia sair daquele estado de depressão pelo o que ela tinha feito. Um dia, não sei o que aconte-ceu, parece que ela resolveu melhorar, resolveu retomar a vida, chegou aqui de cabeça erguida, bem. Depois disso, tudo começou a acontecer”, conta Valéria Ceriani, coordenadora.

Essa melhora aconteceu há dois anos, quando as dores não eram mais tão intensas e Claudiana passou a recuperar-se pensando na filha Gabriela e também na família, que cuidava carinhosamente dela. “Luís Carlos até deu uma parada de beber!”, acrescenta Marlir. Claudiana queria ficar bem consigo mesma, perdoar-se, e, para isso, aproximou-se mais de Deus, a Quem atribui sua recuperação. “Antes quando eu vim

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para cá eu pedi perdão a Deus, porque só quem tem direito de tirar a nossa vida é Deus. Ele é o dono do ar, do fogo, de tudo, então só ele pode dar a vida. Quem atentar contra a sua própria vida, se não pedir perdão pra Deus e não for perdoado, não tem salvação. Isso tá escrito na Bíblia, tanto na Igreja Católica, quanto na evangélica ou no espiritismo. Então eu pedi muito perdão a Deus. Pedi que Deus me desse uma nova chance”.

E ela está certa de que Ele deu a oportunidade bem no dia 25 de dezembro de 2011, no Natal. A família toda se reuniu para a ceia. Um de seus primos chegou acompanhado de um amigo, que comemoraria a data com eles. Coincidentemente, seu nome também era Natal e ele se apaixonou por Claudiana naquele dia. “Ele veio jantar aqui e per-guntou para o meu primo quem era eu. Meu primo contou a história e perguntou pra ele se ele tava vendo bem quem eu era, como eu estava... e ele disse que sim. E meu primo disse que se falava em relação às seque-las, às manchas... e ele falou que sim! Meu primo passou meu telefone e ele ficou ligando em casa. Ficou ligando até que a gente foi pro primeiro encontro. Só que eu estava muito machucada com relacionamento e fiquei meio com pé atrás, porque homem, né... Demorou um mês e pouco até que a gente marcou o primeiro encontro”, relata.

Depois desse primeiro encontro, vieram outros, e outros. Claudiana percebeu que não havia desistido do amor. Por tudo que passou, diz que aprendeu a ser mais tranquila, a não colocar tantas expectativas nos relacionamentos e a saber que, acima de tudo, ela tem seu amor próprio e o de Deus, que são os mais importantes. Aceitou o namoro com Na-tal. Depois o casamento, que logo foi presenteado com o nascimento de Pedro Henrique. Ela recebeu o Natal em sua vida como um sinal de Deus, pois após tantos relacionamentos conturbados encontrou uma pessoa que a ama e que se orgulha em estar ao seu lado, que a leva para sair e que também gosta de ficar em casa ao lado da família.

Ele trabalha perto de sua casa, no Jardim Santa Monica, e volta para almoçar todos os dias com a esposa. Quando chega do trabalho, no fim do dia, quer jantar e assistir a televisão com ela, Pedro Henrique e Gabriela, atividades simples, mas importantes para Claudiana, que sempre desejou isso para sua vida, mas nunca havia encontrado companhia com os antigos parceiros. “Coisa que eu falo que é Deus

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mesmo, porque hoje em dia o homem vai muito pela aparência da mulher. O Júnior [Natal Francisco Vieira Júnior] é uma pessoa boa. E se fosse outro? Ele não tem vergonha das minhas sequelas. Eu às vezes sinto vergonha. Ele fala ‘dá a mão aqui, Claudiana!’ e me dá a mão. Sai na rua comigo e não tem vergonha”, sorri. Depois de sua total recuperação, Claudiana retomou a guarda de Gabriela, para completa felicidade. Apesar de tudo, os problemas sempre dão lugar às soluções, à felicidade e ao recomeço. Vemos o sorriso no rosto dos moradores daquela humilde casa que se adaptou para receber duas famílias e que está sempre aberta aos primos e parentes que os visitam. Vencedores, com suas exóticas personalidades, mas que estiveram sempre juntos diante das dificuldades. Vamos embora ao lado de Rosana, retornando todas a pé ao Centro de Saúde. Uma imagem nos vem à mente: uma fênix, pássaro da mitologia grega que morre em chamas, vira cinzas e delas renasce. É Claudiana.

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Agradecimentos

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Agradecimentos 103

A Deus, pela vida.Às nossas mães, Angela e Suely, por serem nossos maiores exemplos

de vida e força de vontade, por terem acreditado em nossos sonhos e nos ajudado a sermos quem somos hoje.

Aos nossos pais, Carlos e Jurandir, por tudo.Às nossas famílias, pelo apoio.Ao Hugo e Robson, pelo amor, suporte e paciência incalculáveis.À Cyntia Andretta, por ter nos incentivado e acreditado neste pro-

jeto desde o princípio, nos impulsionando por meio de seus conheci-mentos e experiências.

Aos nossos amigos, pelo companheirismo e compreensão.À Camila, Domitila, Fernanda, Isadora, Stephanie, Stela e Rayssa,

pelo afeto e amizade de sempre.Ao Rodrigo Dias, pelo apoio e por ter nos apresentado o Grupo

Primavera, colaborando com os primeiros passos desta empreitada.À equipe do Centro de Saúde São Marcos, por ter nos acolhido.Ao Grupo Primavera e ao Centro Vedruna, pelo apoio, colaboração

e carinho com que nos receberam.Agradecimentos especiais a Ruth de Oliveira, Inês Gouvêa, Lucinete

Valdivino, Valéria Ceriani, Elza Carnelocci, Maria Jacinto, Neusa da Silva, Nadir de Oliveira, Vanda da Silva, Érica Lopes da Silva, Shyrlei Couto, Rosana Rodrigues Santos, Paula Rodrigues, Renata Lopes Viei-ra, Maria Aparecida Borges Pereira, Lúcia Machado Lourenço, Adriana Alves, Claudiana Santos da Silva, Marlir Santos da Silva, Angelita Gui-marães e Sônia Monteiro Gonçalves.

A todas as moradoras do São Marcos, que nos deram a honra de conhecer suas vidas, compartilhando suas histórias e lutas.

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O Jardim São Marcos abriga cinco mil dos 1.080.113 habitantes da cidade de Campinas. Seus moradores são, em sua maioria, migrantes de diferentes partes do país, que buscaram ao instalarem-se ali novas oportunidades de vida. Este livro contém histórias de mulheres que moram no São Marcos e que, apesar de todas as dificuldades em suas vidas, colaboram com o desenvolvimento do bairro, cada uma à sua maneira. Por meio de seus retratos individuais constitui-se o cotidiano deste bairro periférico, apresentando ao leitor uma realidade tão próxima de Campinas, mas desconhecida para grande parte da população. Este livro é um Projeto de Conclusão de Curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas composto por perfis jornalísticos que retratam mulheres distintas, que possuem um orgulho em comum: morar no São Marcos.