retÓrica de ruptura em artigos programÁticos...

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO RETÓRICA DE RUPTURA EM ARTIGOS PROGRAMÁTICOS DAS DÉCADAS DE 1960 E 1970: UMA ANÁLISE PELA HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA ELIANA VIEIRA GODOY São Paulo 2015

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO

RETÓRICA DE RUPTURA EM ARTIGOS PROGRAMÁTICOS

DAS DÉCADAS DE 1960 E 1970: UMA ANÁLISE PELA

HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA

ELIANA VIEIRA GODOY

São Paulo

2015

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO

RETÓRICA DE RUPTURA EM ARTIGOS PROGRAMÁTICOS

DAS DÉCADAS DE 1960 E 1970: UMA ANÁLISE PELA

HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA

ELIANA VIEIRA GODOY

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito para

obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Professor Doutor Ronaldo de Oliveira Batista

ELIANA VIEIRA GODOY

RETÓRICA DE RUPTURA EM ARTIGOS PROGRAMÁTICOS

DAS DÉCADAS DE 1960 E 1970: UMA ANÁLISE PELA

HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito para

obtenção do título de Mestre em Letras.

.

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________

Prof. Dr. – Ronaldo de Oliveira Batista

Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos

Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Nancy dos Santos Casagrande

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC)

Dedico este trabalho:

Aos meus pais: João e Hélia, amores

eternos.

Ao meu marido: João Augusto, amor da

minha vida.

Aos meus irmãos: Edilson, Elenilton,

Emerson e Leonardo, companheiros na

tristeza e na alegria.

À minha cunhada: Suli, amiga e

confidente.

Aos meus sobrinhos: Renata, Marina, João

Pedro, Lívia e Théo, pela alegria de

viver.

AGRADECIMENTOS

Ao meu esposo, João Augusto, pela compreensão, pelo apoio e pela paciência.

Ao Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Batista, por todas as nossas conversas, pela

paciência, pelo apoio e, principalmente, pelas valiosas contribuições com as quais

este trabalho foi organizado.

À Profa. Dra. Neusa Bastos, responsável, em 2005, por me apresentar a

Historiografia Linguística, e ainda pelas considerações importantes apresentadas na

minha banca de qualificação.

À Profa. Dra. Nancy dos Santos Casagrande, pelas considerações apresentadas na

minha defesa.

Ao Prof. Dr. Elenilton Vieira Godoy, pela leitura, sugestões, críticas e principalmente

pela nossa amizade.

À Profa. Ms. Suli de Moura, pelo incentivo e amizade.

À Prof. Renata Carnaz, pela leitura crítica e sugestões e ainda pela nossa amizade

de tantos anos.

“A retórica é chamada arte (do

latim ars, que traduz o grego

techné), porque é um conjunto

de habilidades (é uma técnica,

entendiam os antigos) que

visa a tornar o discurso eficaz,

ou seja, capaz de persuadir. “

Fiorin, 2014

RESUMO

Esta dissertação propõe um estudo historiográfico que toma como objeto de

observação, análise e interpretação artigos programáticos (escritos para divulgar

teorias e/ou métodos científicos de uma determinada área) das décadas de 1960 e

1970 escritos por linguistas brasileiros em um período de efervescência da

linguística nacional, que começava a ser solidificada a implantação da área no Brasil

e o início da formação de uma pluralidade de abordagens e métodos, gerando

debates e embates em torno de teorias e formas de pesquisa. O objetivo central

deste trabalho é analisar a retórica de ruptura utilizada por linguistas dessa época.

Para a dissertação de mestrado, o corpus escolhido são os seguintes artigos

programáticos: a) Miriam Lemle: O novo estruturalismo em linguística: Chomsky; b)

Geraldo Mattos: A linguística construtural; c) Mattoso Câmara Jr.: O estruturalismo

linguístico. O trabalho visa a investigar em que medida retóricas de ruptura se

estabeleceram na história da linguística brasileira, tendo em vista a circunscrição de

modos discursivos em grupos de especialidade específicos. Para o desenvolvimento

da pesquisa foram selecionados, seguindo procedimentos já tradicionais na

abordagem historiográfica da pesquisa linguística, parâmetros de análise internos e

parâmetros de análise externos. Como referencial teórico privilegiado estão autores

como Pierre Swiggers e Konrad Koerner, que contribuíram para a definição da

Historiografia Linguística como um campo nos estudos linguísticos, com diretrizes

metodológicas e concepções teóricas articuladas a um modo específico de

reconstruir e interpretar a história dos estudos sobre a linguagem.

Palavras-chave – Historiografia Linguística. Retórica. Ruptura. Linguística brasileira.

ABSTRACT

This dissertation has as its theme a historiographical study that focuses on

observation, analysis and interpretation of programmatic articles (written to promote

theories and / or scientific methods of a certain area) of the 1960s and 1970s written

by Brazilian linguists in a period of rich development of the national Linguistics, that

started to see the area’s solidified implementation in Brazil and the beginning of the

plurality formation of approaches and methods, generating debates and conflicts

around theories and ways of research. The main objective of this work is to discuss

the rhetoric of rupture used by linguists from that time. For the dissertation, the

corpus is the following programmatic articles: a) Miriam Lemle: The new structuralism

in linguistics: Chomsky; b) Geraldo Mattos: The constructural language; c) Mattoso

Jr. The linguistic structuralism. The work aims to investigate to what extent rhetoric of

rupture settled in Brazilian Linguistic, with a division view of discursive modes in

specific specialty groups. For the research development were selected, following

traditional procedures in historiographical approach to linguistic research, internal

and external analysis parameters. As theoretical reference works are authors like

Pierre Swiggers and Konrad Koerner, who contributed to the definition of the

Historiography of Linguistics as a field in linguistic studies with methodological

guidelines and theoretical concepts articulated a specific way to reconstruct and

interpret the history of the studies in language.

Keywords - Linguistics Historiography. Rhetoric. Rupture. Brazilian linguistic.

Índice de quadros

Quadro 1 – Programa de investigação (Swiggers).................................................26

Quadro 2 – Primeiras publicações a respeito do Gerativismo no Brasil..................49

Quadro 3 – Tópicos do livro Princípios da Linguística Geral...................................57

Quadro 4 - Tópicos do livro Gramática Geral.........................................................58

Quadro 5 – Comparação: Estruturalismo x Construturalismo.................................82

Quadro 6 – Comparação: Transformalismo x Construturalismo.............................83

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1: RETÓRICA DE RUPTURA E GRUPOS DE ESPECIALIDADES: CATEGORIAS DE ANÁLISE

NA HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA ........................................................................................... 30

CAPÍTULO 2: UM OLHAR PARA A LINGUÍSTICA BRASILEIRA: ELEMENTOS PARA ANÁLISE DE

ARTIGOS PROGRAMÁTICOS ..................................................................................................... 38

2.1 BREVE PANORAMA DA LINGUÍSTICA BRASILEIRA: DOS PRIMEIROS MOMENTOS À DÉCADA DE

1960 ....................................................................................................................................... 38

2.2 MOMENTOS DE RUPTURA NA LINGUÍSTICA BRASILEIRA .................................................... 41

2.3 O ESTRUTURALISMO ........................................................................................................ 43

2. 4 O GERATIVISMO .............................................................................................................. 48

2.5 O CONSTRUTURALISMO .................................................................................................... 52

CAPÍTULO 3: A RETÓRICA DE RUPTURA EM ARTIGOS PROGRAMÁTICOS NA LINGUÍSTICA

BRASILEIRA ............................................................................................................................ 55

3.1 ESTRUTURALISMO, MATTOSO CÂMARA JR E A RUPTURA COM UMA TRADIÇÃO ................. 55

3.2 GERATIVISMO, MIRIAM LEMLE E A CHEGADA DO “NOVO” NA LINGUÍSTICA ....................... 71

3.3 CONSTRUTURALISMO, MATTOS E BACK E A RUPTURA TOTAL PRETENDIDA ........................ 80

CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 88

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................... 92

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Introdução

Esta dissertação insere-se no campo de pesquisa em Historiografia

Linguística (ou Historiografia da Linguística1), e nela analisaremos, a partir de artigos

programáticos2 dos anos 1960 e 1970, a retórica3 de linguistas brasileiros em busca

de ruptura científica (nas teorias e nos procedimentos metodológicos de descrição e

análise).

A nossa fundamentação teórica tem como base autores já

reconhecidos como referencial na pesquisa brasileira em Historiografia Linguística:

Pierre Swiggers, Konrad Koerner e Cristina Altman; também foi utilizada a

introdução à área proposta por Batista (2013). Buscamos em Altman (1998, p. 24)

uma definição para Historiografia Linguística, que é também a direção teórico-

metodológica deste trabalho: para a autora, a Historiografia Linguística busca

“compreender os movimentos em história da ciência, [o que] presume,

inevitavelmente, uma atividade de seleção, ordenação, reconstrução e interpretação

dos fatos”.

Para atender a essa diretriz, selecionamos, como objeto de análise,

artigos programáticos das décadas de 1960 e 1970, representativos de programas

de pesquisa (Estruturalismo, Gerativismo e Construturalismo) presentes na história

da linguística brasileira, elaboramos a reconstrução histórica analítica desses

movimentos e, por fim, interpretamos historiograficamente a retórica dos linguistas

1 Batista (2013) apresenta uma discussão introdutória sobre a nomeação do campo, que não se coloca como objeto de reflexão deste trabalho. Aqui consideraremos as duas nomeações apontadas como equivalentes. 2 Entende-se como artigo programático aquele que tem a finalidade de trazer de modo que considera como inaugural diretrizes teórico-metodológicas para um campo científico ou intelectual. Na sequência desta dissertação, a denominação artigo programático será explorada de modo mais abrangente. Aqui apresentamos uma breve definição apenas para situar o leitor. 3 Entende-se como retórica na Historiografia Linguística o discurso adotado por pesquisadores, situados em comunidades científicas e intelectuais (cf. Batista, no prelo). Esses modos de discurso, a retórica, demarcam espaços de pertencimento ou exclusão em ambientes científicos (cf. Ziman 1979). Na sequência desta dissertação, retórica será explorada teoricamente como categoria de análise. Aqui apresentamos uma breve definição apenas para situar o leitor em meio a diferentes sentidos possíveis para a palavra.

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brasileiros que clamaram por ruptura entre diferentes paradigmas (diretrizes teórico-

metodológicas de análise) em meio a grupos de especialidade (comunidades de

pesquisadores) em atuação na segunda metade do século XX no Brasil.

A partir da definição de Altman acima, compreendemos que os passos

da atividade historiográfica se definem não por meio de procedimentos que buscam

recolher fatos passados somente por recolher, uma vez que é necessário que se

faça uma análise desses fatos para que possamos observá-los criticamente dentro

de seu contexto histórico-social de emergência e presença.

Ainda em direção a uma apresentação do referencial teórico que

sustenta esta dissertação, lembramos com Koerner (1996a) que a Historiografia

Linguística apresenta uma perspectiva interpretativa de eventos da história da

linguística (objeto observacional, assim, de um modo analítico de interpretação), ou

seja, a proposta historiográfica que apresentamos define-se como um “discurso

sobre o passado tal como é produzido pelo historiador, distinto da história no sentido

de fatos passados” (KOERNER, 1996a, p. 46). Foi a partir dessas considerações

que a Historiografia Linguística passou, a partir de 1970, a ser vista por um novo

ângulo e tornou-se centro de interesse de muitos pesquisadores europeus e norte-

americanos, firmando-se como "o modo de escrever a história do estudo da

linguagem baseado em princípios teórico-metodológicos” (KOERNER, 1996a, p. 45).

Em consonância com essas considerações apresentadas, na visão de

Swiggers (1990), a Historiografia Linguística é o estudo do saber linguístico e tem

por objetivo descrever/explicar como se desenvolveu esse conhecimento num

determinado contexto.

Para que se chegue a um tipo de pesquisa tal como delineado, é

necessário observar que, no momento da realização de uma pesquisa

historiográfica, o historiógrafo da linguística deve conhecer os conceitos

relacionados à Linguística, bem como conhecer outros campos do conhecimento

(como História, Filosofia e Sociologia da Ciência), para compreender, de modo

abrangente, os fatos do período a ser analisado, ou seja, deve haver uma pesquisa

interdisciplinar. Nesse sentido, Koerner (1996a) discorre sobre a necessidade do

alcance do saber do historiógrafo:

14

[...] a construção das verdadeiras bases da historiografia da linguística impõe grandes exigências à atividade acadêmica individual, amplitude de escopo e profundidade de assimilação, exigindo um conhecimento quase que enciclopédico da parte do investigador, dada a natureza interdisciplinar desta atividade. (KOENER, 1996a, p. 47)

Além de dominar conhecimentos auxiliares para a análise

historiográfica, o historiógrafo deve ainda ter um olhar crítico para saber o que é

importante para seus estudos nas várias áreas do conhecimento. Nesse sentido,

Koerner (1996a, p. 47) ressalta que “o historiógrafo deve ter capacidade de síntese,

a faculdade de destilar o essencial da massa dos fatos empíricos coligidos a partir

das fontes primárias”.

Munido de habilidades como as indicadas, como nos lembra Batista

(2013a), o historiógrafo deve olhar a História (entendida como o conjunto de eventos

históricos) como sequência ininterrupta de relações causais e associativas:

Em primeiro lugar, devemos guardar a reflexão de que o olhar para a História (seja em relação ao passado, seja em relação ao presente) nos permite entender os eventos, nos quais estamos inevitavelmente inseridos, como parte de um processo histórico, que coloca em constante diálogo os tempos do passado, do presente e também do futuro, em uma construção de memórias, projeções e identidades. (BATISTA, 2013a, p. 38)

Batista (2013a, p. 38), em suas considerações a respeito da

Historiografia como reconstrução interpretativa de eventos da História da Linguística,

explica a importância de apresentar “um discurso de observação sobre o conjunto de

eventos que dão forma à corrente histórica”.

Dessa forma, a Historiografia Linguística poderá se interessar por

diferentes temas para serem analisados. Batista (2013a) indica alguns caminhos

para análises, tais como estudar:

de que forma estruturas linguísticas foram sistematizadas como objeto de

estudo?

quais seriam os pressupostos para a sistematização, descrição e análise de

línguas?

que teorias sobre a linguagem foram propostas?

quais foram os materiais (e suas condições de produção) elaborados nas

diferentes propostas de tratamento de questões linguísticas? (BATISTA,

2013a, p. 41)

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Outro ponto que devemos destacar nesta exposição sobre a

Historiografia Linguística é que seu objeto de pesquisa não é, conforme Batista

(2013a, p. 49), a “língua e seus fenômenos”, mas como a linguagem e as línguas

foram compreendidas num determinado contexto social e histórico, portanto o papel

desse pesquisador não é apenas colher datas, mas sim analisar, interpretar e

explicar o conhecimento sobre a linguagem gerado num determinado período

histórico. Para chegar a esse nível de conhecimento, é necessário, segundo Batista

(2013a, p. 50), que se faça uma “hierarquização de dados, teorias e métodos que

constituem os estudos sobre linguagem ao longo do tempo”.

Para compreender de modo adequado essa definição de Historiografia

Linguística, é preciso retomar Altman (1998), que argumenta que a História e

Historiografia Linguística apresentam:

[...] estatutos e dimensões diferentes. Principalmente não são

co-extensivas. Suas relações são comparáveis àquelas existentes entre

uma gramática descritiva e a língua que ela descreve [...] (ALTMAN, 1998,

p. 25)

Por isso a Historiografia efetua recortes e seleções em um documento

histórico (definido como seu objeto de análise, que também pode ser considerado

como os textos históricos a partir dos quais se buscará uma interpretação

historiográfica) para explicar os acontecimentos situados ao longo da proposição e

do desenvolvimento de diferentes conhecimentos sobre línguas e linguagem.

Desse modo, o historiógrafo da Linguística, para selecionar, analisar,

interpretar e explicar o objeto de sua pesquisa, deve também observar alguns

aspectos como: a) a dimensão teórica à qual o documento histórico se vincula; b) a

dimensão temporal que permite a inserção do documento em recorte histórico

específico, constituindo uma periodização para a análise; c) a dimensão social que

possibilita a compreensão do que diz o documento em um contexto mais amplo de

inserção intelectual, por exemplo.

De acordo com Batista (2013a, p.75), para que o historiógrafo possa

contemplar esses aspectos em suas análises, é imprescindível que se busque um

caminho metodológico para a realização de historiografias, o qual estabelecerá

16

diretrizes que “pressupõem a seleção do material de análise, sua ordenação (com as

tentativas de periodização) e reconstrução interpretativa”.

No estágio atual de reflexão sobre procedimentos para uma pesquisa

historiográfica, são considerados por diferentes autores como passos investigativos

adequados os seguintes:

1. a seleção, por meio da qual o historiógrafo deve selecionar o material a

ser estudado (os documentos históricos a serem analisados);

2. a ordenação, a partir da qual o historiógrafo deve contextualizar, em

um recorte definido de acordo com seus interesses de pesquisa, os

documentos em busca do estabelecimento de periodização (que não

necessariamente precisa se configurar de modo linear);

3. a reconstrução, na qual o historiógrafo deve refazer o saber linguístico

da época pesquisada, tendo como base a compreensão crítica do

período, ou seja, confrontar o documento com o espírito de época e

com suas interpretações, que resultarão, assim, na própria

historiografia, entendida como o modo de narrar e interpretar fatos

históricos.

Ainda sobre a metodologia (ou os procedimentos metodológicos) a ser

adotada na Historiografia Linguística, é preciso ressaltar que os pesquisadores

desse campo afirmam que ainda não se apresentou uma metodologia que possa ser

considerada como base definitiva para as pesquisas relacionadas a essa área.

Koerner (1996b, p. 96) explica que “desde que a história se tornou um tema genuíno

de pesquisa científica, questões de metodologia têm recebido alguma atenção nos

últimos anos, embora não tanto quanto desejável”, ou seja, o historiógrafo deve ficar

atento à sua metodologia.

Em “Questões que persistem em historiografia linguística”, Koerner

(1996a) esclarece que o historiógrafo deve encontrar caminhos próprios para a sua

pesquisa e não ficar esperando que outras áreas de conhecimento apresentem

alternativas.

17

Koerner (1996a, p. 60) apresenta três princípios metodológicos. São

eles:

a) Princípio de contextualização: é aquele que pesquisa o clima

de opinião relacionado ao documento a ser estudado. Para

que isso aconteça, é necessário que façamos a

reconstituição do clima de opinião da época a ser estudada;

b) Princípio de imanência: é aquele que observa o documento

em sua constituição interna, levando em consideração

também seu momento de produção e recepção. Para que

isso aconteça, é necessário que façamos um esforço para

entender os documentos analisados tanto histórica quanto

linguisticamente no período em que tais documentos foram

produzidos;

c) Princípio de adequação: é aquele que busca aproximação de

determinado período observado com outras teorias e/ou

movimentos, também de diferentes épocas, para que se

possam criar correlações históricas, tendo em vista uma

ampliação da compreensão não só do conteúdo do material

em análise como também de seu contexto de emergência,

divulgação e recepção.

Ainda sobre proposições de procedimentos metodológicos a serem

adotados na Historiografia Linguística, Swiggers (2013, p. 44) indica três fases para

a execução de pesquisas: a) uma fase heurística, que tem por objetivo “informar-se

sobre as fontes e sua disponibilidade; ler os textos-fonte; catalogar ideias, os pontos

de vista e a terminologia, contextualizar as ideias, os termos”; b) uma fase

hermenêutica, que tem por objetivo elaborar “uma interpretação, que sempre se

fundamenta no uso de categorias interpretativas”; c) uma fase executiva, que tem

por objetivo “a demonstração dos resultados da investigação”.

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Outro ponto elaborado por Swiggers (2013, p. 45) é o que indica as

características que uma historiografia pode assumir, em virtude de sua própria

elaboração e construção interpretativa e resultado narrativo. O autor propõe cinco

perfis diferentes para caracterizar, assim, tipos de Historiografia Linguística:

atomística: aquela “sob forma de uma apresentação analítica de

acontecimentos e fatos da história da linguística”;

narrativa: aquela que “relata, na sua sucessão cronológica, os

acontecimentos na história da linguística”;

nocional-estrutural: aquela que propõe uma “análise estrutural de

conjuntos de ideias, de tipos de abordagens na história da

linguística”;

arquitetônico-axiomática: aquela que estabelece “descrição e

análise da estrutura lógica de teorias e modelos como sistemas de

axiomas e enunciados”;

correlativa: aquela que privilegia o “estudo entre teorias e das

correlações entre pontos de vista, no âmbito da linguística, e o

contexto sociocultural, político, institucional”.

A análise de nosso corpus contempla os perfis nocional-estrutural e

correlativa, pois analisaremos proposições teórico-metodológicas dos movimentos

estruturalista, gerativista e construturalista e verificaremos de que modo essas

teorias se correlacionam ou não no contexto sociocultural, político e institucional da

linguística brasileira das décadas de 1960 e 1970.

Swiggers (2013) ainda aponta alguns elementos teórico-metodológicos

para a execução de trabalhos na Historiografia Linguística como os pontos de

ancoragem, a partir dos quais são possíveis duas perspectivas: uma individual,

relacionada a textos, autores e usuários; e outra contínua, que por sua vez observa

relações entre redes de contato, instituições, grupos de especialidade, círculos e

sociedades. Há também as linhas de desenvolvimento que destacam mudanças,

revolução, continuidade, descontinuidade, inovação, antecipação, entre outros focos

de observação. Nesse sentido, levam-se em consideração: relações com o tempo e

19

fontes, os modelos, a influência, os embates teóricos e a abrangência referencial;

etapas da evolução em que se localizam diferentes paradigmas de investigação

linguística.

Em seu texto, Swiggers (2013) argumenta a respeito da importância de

elaborar um plano de estudo para nortear o trabalho de pesquisa e também a de

estabelecer uma metodologia que envolva interesses, conhecimentos e objetivos.

Esse plano engloba:

seleção de documentos - haverá etapas como a de recolher documentos,

específicos ou gerais; esse processo seleciona documentos e, nessa base

de trabalho, haverá “os textos-fonte, literatura secundária e literatura

subjacente” (SWIGGERS, 2013, p. 48-49), tem-se, assim, a formação de

um instrumental conceptual que “consiste em conceitos gerais e conceitos

específicos em relação ao tipo e objeto de investigação (são esses últimos

que formam parte da metodologia específica e personalizada)”

(SWIGGERS, 2013, p. 48-49);

uma agenda de pesquisa, que determina “um quadro analítico que se

apresenta sob a forma de uma série de critérios ou questionamentos

aplicados a um corpus de textos” (SWIGGERS, 2013, p. 48-49).

Mediante os passos indicados por Pierre Swiggers, começamos a

delinear a metodologia deste trabalho historiográfico, que será explicitada no final

desta introdução. A seguir estabelecemos os objetivos de nossa pesquisa.

A importância de buscar respostas a muitos de nossos

questionamentos sobre a natureza da linguística como ciência da linguagem e sua

presença cada vez mais destacada nos modos de ensino de língua se coloca ao

pesquisador. E uma das possíveis direções para compreender os estudos

linguísticos, seu papel e relevância é assumir uma perspectiva histórica sobre esse

campo do saber. Olhar a história para observar o presente com olhos críticos. Essa

dimensão de observação não se desvincula, segundo Batista (2013a), de uma

necessidade que temos do resgate histórico:

20

Uma das questões em destaque na constituição do que reconhecemos como o mundo contemporâneo é a que se coloca em torno de uma necessidade, quase inconsciente, de resgate, de busca por memória, de valorização dos registros — não é longe de implicações de caráter mais amplo o fato de que vivemos em uma era tecnológica que disponibiliza às pessoas cada vez mais aparelhos que registram, armazenam e reproduzem experiências pessoais e coletivas. (BATISTA, 2013a, p. 14)

Dessa forma, o objetivo central, como já apontado, de nosso trabalho é

analisar a retórica de ruptura presente no discurso de linguistas brasileiros em

artigos, escritos em periódicos especializados da área da linguística, das décadas de

1960 e 1970. Analisar a retórica e os modos de dizer desses linguistas é, como

definido neste trabalho, uma das estratégias de que o historiógrafo pode lançar mão

para compreender o desenvolvimento histórico da ciência da linguagem no Brasil,

permitindo, desse modo, que a ciência seja vista não apenas como empreendimento

individual de pesquisadores, mas também ação social em meio a comunidades de

especialidade em torno de paradigmas específicos. Será a retórica, como nosso

objeto de análise preferencial, que permitirá observar adesões ou não às ideias e

práticas de pesquisa. De acordo com Batista (2013a):

[...] a retórica pede adesão de pesquisadores e estudiosos: há uma suposta transparência no dizer, mas o que há é a ilusão do discurso de base objetiva, considerado como científico ou intelectual. Esse discurso é também social e político, considerando o universo de políticas científicas, educacionais e linguísticas, principalmente. (BATISTA, 2013a, p. 58)

Salientamos que as décadas de 1960 e 1970 foram importantes para a

pesquisa brasileira em linguística, pois, segundo Altman (1998), nesse período

surgiram em atuação paralela, ou quase, diferentes programas de pesquisa

relacionados à descrição e análise de língua. Esses programas apresentavam

diferentes pontos de vista e, consequentemente, geraram debates envolvendo

movimentos linguísticos da época reconhecidos como Estruturalismo, Gerativismo e

Construturalismo.

A discussão relacionada a esses movimentos fez com que surgissem

líderes intelectuais, para propostas específicas de descrição e análise linguística, e

consequentemente a formação de grupos que discutiam essas vertentes. Nesse

período, houve publicações de artigos programáticos, em que cada grupo defendia

uma linha de pesquisa.

21

Tendo direcionado o objetivo central, explicitamos os objetivos

específicos de nossa dissertação, focando-os da seguinte forma:

a) analisar a retórica empregada em artigos programáticos na linguística

brasileira das décadas 1960 e 1970;

b) comparar e contextualizar a retórica de ruptura dos artigos programáticos

escolhidos para a análise;

c) propor uma análise historiográfica da linguística brasileira das décadas

de1960 e 1970, a partir das análises indicadas acima.

Os objetivos acima expostos estão relacionados às dimensões interna

e externa de pesquisa, vistas como parâmetros de análise que conduzem as linhas

de trabalho do historiógrafo. Para a Historiografia Linguística, os elementos internos

ao texto (o que é dito no texto, que ideias são assumidas, como são construídos os

elementos de argumentação em torno da defesa de ideias) são importantes para o

desenvolvimento do trabalho do historiógrafo. Batista (2013a, p. 71), ao referir-se à

dimensão interna de um objeto de análise, esclarece que ela permite “observar

teorias, práticas e métodos de análise empreendidos por determinado autor, grupo

etc”. A retórica se relaciona com a dimensão interna, pois é por meio dela que

averiguamos como se deu esse processo e como o discurso foi construído, por meio

de ruptura ou continuidade. Naturalmente que as dimensões internas (que definem

parâmetros de análise internos) de um material de análise se associam às suas

dimensões externas (que definem parâmetros de análise externos). No nosso caso,

a partir da retórica será possível reconstruir analiticamente uma série de fatores

sociais, que contextualizam a linguística em um complexo social e histórico (grupos

de pesquisa, locais de atuação de pesquisadores, repercussão social dos trabalhos,

divulgação de resultados, articulações políticas em instituições acadêmicas).

Nossa hipótese parte da premissa de que a prática científica não é

desvinculada de elementos de natureza histórica e social nos quais o

reconhecimento dos pares é condição fundamental para que se produza pesquisa e

se modifique o cenário vigente.

22

De acordo com Batista (2013a, p. 71), e as citações abaixo recuperam

o texto do autor, a narrativa historiográfica permite, ao estudioso da Historiografia

Linguística, alguns olhares por meio das dimensões que já apontamos nesta

introdução: a teórica, a temporal e a social. O autor caracteriza esses momentos

desta forma, permitindo, assim, a incorporação de suas ideias para o objetivo deste

trabalho:

a) Dimensão teórica: tem por objetivo “reconstruir a história interna dos

estudos sobre linguagem e por meio dessa reconstrução descrever,

analisar e interpretar percursos argumentativos e práticas metodológicas

que estejam presentes nos textos analisados”;

b) Dimensão temporal: tem por objetivo “verificar se houve a continuidade ou

descontinuidade nos textos analisados”;

c) Dimensão social: tem por objetivo analisar “legitimidade acadêmica,

profissional e/ou social. Essa dimensão dialoga com a visão de que a

ciência e os saberes fazem parte de um complexo social”.

Além da dimensão interna, como dissemos, a Historiografia Linguística

também permite ao historiógrafo analisar a dimensão externa dos materiais de

análise (os documentos históricos). Para explicar a dimensão externa citamos

Batista (2013a):

[...] ao enfoque externalista interessa o aspecto social como parte do processo histórico de formação e desenvolvimento de uma ciência e suas práticas discursivas, revelando posicionamentos ideológicos, sociais e históricos, em torno do estabelecimento de retóricas (formas e tipos de discurso adotados) típicas de comunidades de pesquisadores [...] (BATISTA, 2013a, p.57)

Batista (2012, p. 131) ainda comenta a respeito dos parâmetros

internos e externos. Para ele, parâmetros internos de análise estão ligados à

“reconstrução dos estudos sobre a linguagem a partir da análise da formulação e

reformulação de conceitos teóricos e práticas de tratamento dos fenômenos

linguísticos”. Já os parâmetros externos estão relacionados ao “aspecto social como

23

parte do processo histórico de formação e desenvolvimento de uma ciência e suas

práticas discursivas [...]”.

Percebe-se que tanto a dimensão interna quanto a dimensão externa

são imprescindíveis para analisar o discurso inserido em todo tipo de texto, estando

elas, assim, interligadas.

Retomando, agora de modo mais explícito, a dimensão interna de

nossa dissertação refere-se à retórica presente nos discursos dos linguistas e a

dimensão externa compreende analisar fatores sociais que envolvem a retórica dos

pesquisadores.

Para isso, utilizaremos os seguintes parâmetros externos:

a) descrever grupos de especialidade específicos na linguística brasileira das

décadas de 1960 e 1970;

b) mapear centros de produção de pesquisa em linguística da época;

c) apontar possíveis líderes intelectuais para a pesquisa linguística e a

repercussão dos trabalhos na área.

Os parâmetros internos são:

a) contextualizar cada autor e seu texto em programas de investigação

científica específicos;

b) analisar a retórica empregada por linguistas pertencentes aos diferentes

grupos;

c) observar na retórica movimentos de continuidade ou de ruptura na história

da linguística brasileira.

É mediante análise das dimensões internas e externas do objeto

selecionado como corpus que o historiógrafo elabora suas análises. Vale salientar

que, ao analisar a História da Linguística, o historiógrafo reforça o fato de que o

estudo relacionado à linguagem não é neutro (na verdade como todo estudo de

natureza científica ou intelectual), sendo assim, analisaremos os artigos

programáticos sob essa visão. Para corroborar, buscamos em Batista (2013a) a

24

explicação acerca dos parâmetros internos e externos, pois, para ele, esses

parâmetros são necessários para os estudos historiográficos:

A pesquisa historiográfica na linguística procura definir parâmetros externos (relativos ao contexto de produção de determinada obra ou trabalho) e internos (relativos ao conteúdo que trata de descrição e

explicação de fenômenos linguísticos) para a análise dos materiais escolhidos como fontes primárias, ainda que com isso não se entenda uma divisão rígida entre tais parâmetros, pois o que se coloca é uma observação da constante relação entre fatores externos e internos. (BATISTA, 2013a, p.74)

Após discorrermos sobre as dimensões interna e externa, passaremos

a descrever a metodologia escolhida para a análise empreendida neste trabalho. A

metodologia de pesquisa adotada será a qualitativa, pois nos centraremos na

pesquisa bibliográfica a respeito dos documentos escolhidos. O tipo de pesquisa

será o histórico-documental, tendo em vista que analisaremos os documentos

(fontes primárias) para interpretação e contextualização da retórica presente nos

discursos de linguistas nos anos 1960-1970. Além da metodologia de pesquisa

qualitativa, também nos basearemos na metodologia interpretativa, porque esta visa

a compreender, ao descrever, analisar e interpretar o objeto de análise, a retórica de

ruptura empregada pelos linguistas brasileiros em seus artigos programáticos. Outro

ponto que destacamos é o método histórico, pois, ao usá-lo, buscaremos entender

modos de presença da retórica de ruptura na história da linguística brasileira, como

aponta Batista (no prelo).

Assim, o trabalho aqui em questão pressupõe a investigação de

acontecimentos, processos e instituições do passado para entender como se deu

parte de processos de ruptura na História da Linguística brasileira, presente nos

artigos programáticos, tomados por nós como o documento histórico que permitirá

essa análise.

Sobre o material de análise, é preciso retomar Altman (1998, p. 48),

que conceitua artigo programático como aquele que “procura instaurar ‘novas'

direções de pesquisa, ou então apontar para a necessidade de se retomar a

investigação de determinado problema sob ’novas’ perspectivas”, ou seja, o artigo

programático tem a finalidade de trazer novas diretrizes para discussão nos grupos

de especialidade específicos. Há ainda outra finalidade: apresentar novas

25

possibilidades de pesquisa, evidenciando a busca por “proposições de uma nova

teoria a um conjunto de problemas”.

O corpus de análise desta dissertação, nossos documentos históricos,

são os seguintes artigos programáticos:

de Miriam Lemle: "O novo Estruturalismo em linguística: Chomsky",

publicado na revista Tempo Brasileiro, n. 15/16, p. 51-64, de 1967;

de Joaquim Mattoso Câmara Jr.: "O Estruturalismo linguístico",

publicado também na revista Tempo Brasileiro, n.15/16, p. 5-44, de

1967;

de Geraldo Mattos: "A linguística construtural", publicado na Revista

Brasileira de Linguística, n.1, p. 22-39, de 1974.

Cada um desses artigos programáticos foi inserido, por nós, em um

programa de pesquisa, de acordo com as direções de Swiggers (1981). Esses

programas se definem, conforme Batista (2013a, p. 72), “como uma associação de

diferentes escolas, teorias, autores (cada um com suas especificidades operacionais

e terminológicas)”. São eles, com citações de Batista (indicado acima):

1. o programa de correspondência, que tem como objetivo “esclarecer as

correspondências entre linguagem, pensamento e mundo”;

2. o programa descritivista, que foca “a descrição da forma linguística”;

3. o programa sociocultural, que estuda “a linguagem em seu contexto

sociocultural”;

4. o programa de projeção, que estuda “uma categoria de linguagem

desenvolvida pelo linguista-lógico – em certos fragmentos de uma língua

particular”.

Para que possamos entender os programas indicados por Pierre

Swiggers, adaptamos o quadro explicativo apresentado por Bruna Soares Polachini

em sua dissertação de mestrado.

26

1- Programa de correspondência:

Visão: língua-pensamento-realidade.

Incidência: estruturas morfossintáticas e conteúdos ou processos mentais.

Técnica: estabelecimento de classes lógico-semânticas, estabelecimento de

correlação entre os processos mentais e regras gramaticais.

Representantes desse grupo: Platão, Aristóteles, os modistas, os gramáticos

filosóficos dos séculos XVII e XVIII, Gustave Guillaume e Noam Chomsky (e seus

seguidores).

2- Programa descritivista:

Visão: descrição das línguas como objetos.

Incidência: análise (oposição/combinação) de formas observáveis, comparação de

diferentes línguas e função de formas.

Técnica: determinação de contextos, segmentação, estudo de relação de

proporção entre os elementos; estabelecimento de relações entre formas

linguísticas e funções comunicativas.

Representantes desse grupo: gramáticos sânscritos, os gramáticos alexandrinos e

seus comentaristas bizantinos, os gramáticos romanos e carolíngios, os autores

das gramáticas de uso da Renascença, e, nos últimos séculos, os comparatistas e

os linguistas estruturalistas que trabalham com sincronia e diacronia.

3- Programa sociocultural:

Visão: estudo da língua como um fenômeno social e cultural.

Incidência: determinação do uso da linguagem, competência comunicativa,

variação sociolinguística, expressão de uma cultura por meio da língua.

Técnica: integrativa ou sintética (inserção de fatos linguísticos em uma análise das

sociedades ou das culturas, inserção de análise linguística em uma teoria de

estratificação social ou da evolução social e cultural.)

Representantes desse grupo: autores que discutiam a respeito do uso linguístico e

as reflexões filosófico-linguísticas, desde a Renascença, sobre a diversidade social

das línguas, linguistas “idealistas” neo-humboltiana, romana e obras modernas em

sociolinguística e trabalhos ligados a etnografia da fala ligada à obra de Dell

Hymes e John Gumpertz.

4- Programa de projeção:

Visão: línguas como conjuntos de fragmentos lógicos (predicativos).

Incidência: favorecimento de subsistemas gramaticais (como os tempos e modos

verbais, determinação nominal, dêiticos).

Técnica: tradução de estruturas linguísticas na língua formal.

Representantes desse grupo: Montague, Hintikka, Cresswell, Dowty, Partee, etc.

Quadro 1 - PROGRAMAS DE INVESTIGAÇÃO (SWIGGERS, 2004, p. 130) – Adaptado do quadro apresentado por Bruna Soares Polachini (2013)

27

Se buscarmos situar os artigos programáticos nos programas

apresentados por Swiggers, então teremos o seguinte enquadramento:

tanto o artigo de Mattoso Câmara quanto o artigo de Geraldo Mattos se

enquadram no programa descritivista, pois eles buscam descrever estruturas

linguísticas;

já o de Miriam Lemle se encaixa no programa de correspondência, pois ela

busca esclarecer a correlação entre linguagem, mente e pensamento, tal

como delineada por Noam Chomsky.

A escolha de artigos programáticos para serem analisados tem por

objetivo avaliar como essas novas teorias evidenciaram os problemas relacionados

à linguística e como essas correntes (Estruturalismo, Gerativismo e

Construturalismo) foram apresentadas e abordadas pelos linguistas brasileiros. As

décadas de 1960 e 1970 foram escolhidas tendo em vista que nesse período a

Linguística se tornou disciplina obrigatória nas Universidades, por meio de decreto

da Lei n.º 4.024 de 20 de dezembro de 1961, e também por ser o momento em que

os grupos de especialidade específicos começaram a discutir essas correntes

linguísticas.

Selecionamos os artigos tendo em vista o papel deles nas décadas

escolhidas, pois o Estruturalismo teve o seu grande momento na década de 1960 e

teve de conviver com a concorrência do Gerativismo que começou a ter influência na

pesquisa linguística brasileira a partir de 1967, quando Miriam Lemle publicou o

artigo “O novo Estruturalismo em Linguística: Chomsky” e quando os primeiros

grupos de especialidade específicos, para discutir essa nova linguística, começaram

a surgir. O Construturalismo foi, segundo seus autores, um movimento

genuinamente brasileiro, que tentou apresentar uma nova teoria para o ensino de

língua, resulta daí o interesse em analisar de que modo os autores dessa teoria se

situam na história da pesquisa linguística no Brasil.

Esse material será analisado a partir dos parâmetros já apontados,

tendo em vista uma análise dos textos selecionados em relação a três níveis,

também apresentados por Batista (2013a) e citados abaixo tal como o autor os

emprega em seu texto:

28

um primeiro nível atento à forma do discurso empregado na

teoria/escola/autor em análise;

um segundo nível atento ao conteúdo do discurso veiculado;

um terceiro nível atento às estratégias de convencimento de comunidades

científicas ou intelectuais a respeito de teorias, métodos, dados e

explicações. (BATISTA, 2013a, p. 56)

Além disso, o material será descrito e analisado a partir das seguintes

diretrizes metodológicas:

a) circunscrição temporal do material;

b) autoria do material;

c) análise do conteúdo do material;

d) análise do discurso e da retórica;

e) análise de rupturas e continuidades nas propostas de investigação.

Após essas etapas, será realizada uma comparação entre os textos, na

tentativa de construir em forma de síntese uma historiografia da produção linguística

brasileira das décadas de 1960 e 1970, em termos de rupturas e retórica dos

pesquisadores.

O presente trabalho está estruturado em quatro partes:

a) No primeiro capítulo, "Retórica de ruptura e grupos de especialidade:

categorias de análise na Historiografia Linguística", serão apresentadas

essas duas categorias de análise, que sustentam a observação historiográfica

empreendida nesta dissertação;

b) No segundo capítulo, "Um olhar para a Linguística Brasileira: elementos

para análise de artigos programáticos", discorreremos sobre o panorama

da linguística brasileira. Apresentaremos a formação dos primeiros cursos de

linguística, tanto na graduação quanto na pós-graduação, e como os grupos

de especialidade trabalharam para que a linguística se firmasse no meio

acadêmico brasileiro. Faremos um percurso historiográfico, para introduzir a

análise do discurso de ruptura, por intermédio da análise dos artigos que

serão analisados no capítulo seguinte;

29

c) No terceiro capítulo, analisaremos "A retórica de ruptura em artigos

programáticos na Linguística Brasileira"; para isso, observaremos os

discursos dos linguistas para evidenciar e situar historicamente a retórica de

ruptura de grupos de especialidade;

d) Na Conclusão, faremos uma narrativa historiográfica que busque uma

síntese interpretativa do trabalho, com destaque para os períodos de rupturas

teórico-metodológicas.

.

30

CAPÍTULO 1

Retórica de ruptura e grupos de especialidade:

categorias de análise na Historiografia Linguística

Neste capítulo, discutiremos retórica como categoria de análise na

Historiografia (essencialmente a partir de ideias elaboradas por Batista, no prelo).

Em conjunto, assumindo o posicionamento de que a retórica utilizada por linguistas

está circunscrita a espaços específicos de atuação científica, trataremos também da

noção de grupos de especialidade (a partir das considerações de Murray, 1994).

Como já citado anteriormente, o objeto de nossa pesquisa é estudar a

retórica de linguistas brasileiros de três programas distintos, o Estruturalismo, o

Gerativismo e o Construturalismo, o corpus escolhido foram artigos programáticos

das décadas de 1960 e 1970.

Segundo Batista (no prelo), a maneira como esse discurso é proferido

pode convencer a comunidade sobre um determinado assunto por meio de uma

argumentação teórico-metodológica. A retórica, portanto, é um meio de validar o

conhecimento de determinada comunidade científica, pois, na perspectiva da

Historiografia Linguística, a persuasão “está na base, muitas vezes não perceptível

em nível superficial, de todos os tipos de discurso, e não só naqueles que mais

ostensivamente nos revelam suas estratégias”.

A retórica de um pesquisador está presente de forma sutil ou não nos

seus proferimentos e apresenta valores de natureza ideológica, que podem ser

percebidos por meio da construção discursiva elaborada na defesa de

posicionamentos científicos. Serão esses proferimentos e posicionamentos os

responsáveis pelo enquadramento de pesquisadores em comunidades específicas

de pesquisa, os grupos de especialidade.

31

Para que haja efetivamente a formação de um grupo especialidade,

segundo Murray (1994), são necessários alguns estágios para que determinados

estudos sejam levados adiante. São esses os estágios:

1.º - momento de lançamento das bases teóricas e surgimento de

líderes intelectuais que possam formar grupos que discutam as novas teorias;

2.º - momento de surgimento de novos pesquisadores que possam

expandir as discussões;

3.º - momento de sucesso;

4.º - momento de estabelecimento das publicações realizadas pelo

grupo.

Esses estágios, geralmente, são construídos em torno de um líder, que

conforme a sua forma de agir pode tornar-se líder intelectual. Outro ponto visto é a

organização desse líder (ou de outro, que assumiria uma liderança organizacional) e

a sua competência para administrar e organizar centros de pesquisas, conseguir

bolsas, financiamento, planejar eventos, e por fim, a publicação dos resultados das

pesquisas realizadas.

Podemos considerar que os grupos de especialidade são formados a

partir de pesquisadores que buscam resultados referentes aos temas a serem

discutidos cientificamente. O desenvolvimento de uma pesquisa necessita seguir os

estágios indicados acima, na perspectiva sociológica de Murray (1994). Em diálogo

com a formação de grupos, há a presença da retórica dos pesquisadores, em busca

da legitimidade de suas iniciativas e seus resultados de pesquisa.

A formação de um grupo de especialidade depende de um líder

intelectual e de como esse líder posiciona-se diante dos fatores sociais de ordem

acadêmica. São importantes também a imagem construída pelos seguidores de um

líder e, por fim, o reconhecimento que vem por meio de publicações. Caso haja um

retorno de reconhecimento positivo, teremos uma retórica de sucesso.

32

Ziman (1979) afirma que para um trabalho científico ser reconhecido,

não basta repetir os experimentos e muito menos a observação, as atividades do

líder intelectual devem ser guiadas por:

[...] ideias, por teorias, pelo desejo de se obter informação significativa. O observador, ou pesquisador, deseja dar sua contribuição para o saber público e por conseguinte procura dirigir o seu trabalho de maneira que ele seja importante dentro dos conceitos gerais compartilhados pelo mundo científico. (ZIMAN,1979, p.63)

Como apresentamos nas páginas iniciais deste trabalho, retóricas de

ruptura se articulam, naturalmente, a períodos de descontinuidade em um

determinado campo de saber. Desse modo, buscamos em Robins (1976) algumas

considerações a respeito de como e por que ocorrem mudanças significativas em

domínios intelectuais, caracterizando, assim, momentos de descontinuidade e

ruptura. Na História da Linguística, podem ser identificadas descontinuidades em

modos de compreender e estudar a linguagem humana em toda a sua

complexidade, ora temos estudos direcionados a determinadas visões e ora essas

visões são modificadas ou permanecem. Tradicionalmente na História da

Linguística, colocam-se como períodos de ruptura a transição do século XIX para o

XX e também os paradigmas considerados como revolucionários, como a Gramática

Gerativa. Períodos de transição, como os apontados, demandam engajamento de

pesquisadores e intelectuais. É nesse sentido que se entende que momentos de

descontinuidade são acompanhados por uma retórica que afirma a natureza da

ruptura e também por definições precisas de grupos de especialidade, que

configuram socialmente descontinuidades intelectuais em comunidades de

pesquisadores atuantes em determinadas instituições e espaços de interlocução.

Batista (2012) esclarece que os estudiosos necessitam tornar legítimas

suas pesquisas, para isso, buscam por meio de seu discurso reconhecimento.

Segundo o autor:

[...] a linguagem utilizada pelos linguistas e o dialeto técnico adotado (o vocabulário especializado), configurando a metalinguagem de um programa de investigação, colaboram para criar uma imagem de cientificidade. (BATISTA, 2012, p.134)

33

Outro item que Batista (2012, p. 134) discute é que o linguista pode

empregar uma terminologia nova para discorrer a respeito de sua pesquisa, porém

se não houver uma divulgação, pelo grupo de especialidade, toda a pesquisa se

perderá, pois o aceite é “crucial para que novas gerações sejam 'seduzidas' pela

linguagem adotada por uma comunidade de pesquisadores”. A retórica adotada

pelos pesquisadores é imprescindível para que haja a interlocução entre seus pares,

e essa interlocução é apresentada por intermédio de argumentos que devem

evidenciar a validade das pesquisas que estão em divulgação pelo discurso

científico adotado.

Ou seja, o pesquisador precisa de seus pares, entretanto, necessita

também de outros fatores para que seu trabalho seja visto e aceito numa

comunidade científica e, para que isso aconteça, a argumentação do pesquisador

necessita garantir os meios para a continuidade de seu discurso.

Coracini (1991) oferece alguns esclarecimentos a respeito da

constituição do discurso científico. Segundo a autora (1991, p. 37), a manifestação

discursiva de um cientista deve ser concebida por meio da “ciência, teoria e

expressão linguística”, pois essas “se entrelaçam na constituição do discurso”.

Compreendemos, então, que além da cientificidade e do apoio de um grupo de

especialidade, o discurso científico necessita de “enunciados universais, em

oposição aos chamados enunciados singulares”.

Para Coracini (1991, p. 41), o discurso científico se desenvolve por

uma “visão argumentativa”, entretanto essa visão é “subjetiva da ciência e da

política, enquanto atividades humanas”. Ela salienta que o discurso científico tem

uma intenção de “convencer da validade da pesquisa relatada”, para isso, o rigor da

pesquisa é indispensável para que seja aceita numa comunidade acadêmica. Ainda

para Coracini (1991), o discurso científico necessita de um ouvinte; nesse caso, o

grupo de especialidade e os membros do grupo devem ser conhecedores do

assunto:

Dirige-se a um ouvinte situável no tempo e no espaço: o grupo de especialistas da área. Pressupõe um ouvinte conhecedor da matéria, dos métodos utilizados normalmente na área e interessado na pesquisa a ser relatada. (CORACINI, 1991, p.42)

34

Coracini (1991, p. 44) também relata que o discurso científico

apresenta um “jogo de interesse”, mas esse jogo é altamente “velado em nome do

saber”. O cientista necessita conhecer se o seu posicionamento é bem visto pelo

seu grupo de especialidade, pois se esse grupo aderir à sua retórica ela será de

continuidade, entretanto, se não for aceito, será de ruptura. Coracini ainda informa

que se o embate discursivo acontecer em uma situação de comunicação aberta

poderá haver um confronto de “posturas teórico-ideológicas”, porém “uma teoria não

invalida necessariamente a outra”. Em algumas situações o discurso apresentado

pelos linguistas traz essa característica de não invalidar o discurso do outro.

O discurso utilizado pelos linguistas tem o objetivo de aproximar seus

pares por meio da palavra, mediante os vários pressupostos técnicos e teóricos.

Coracini (1991, p.45) argumenta que essa dominação técnica e teórica acontece não

com “relação ao interlocutor-especialista, mas com relação ao grande público, que

se atemoriza diante da terminologia incompreensível e na sabedora mítica,

provocando uma reação de inferioridade e admiração”. Esse fator, indicado por

Coracini (1991, p. 45), já é marca de como esse discurso será entendido dentro de

um grupo de especialidade, pois vários estudiosos buscam uma terminologia para

demarcar o seu conhecimento e, assim, permanecer em seu grupo e em

determinadas situações com o intuito de alcançar seu objetivo. O cientista busca

determinar o seu espaço para “mostrar a validade de sua pesquisa, argumentando a

seu favor e obedecendo às normas impostas pela comunidade científica”. Para

conquistar a validade de sua pesquisa, os estudiosos buscam, por exemplo, “usar a

3.ª pessoa, modalidades lógicas, intertextualidade explícita, como formas de fazer

transparecer no texto a objetividade científica”.

Como sabemos, para que uma teoria linguística seja bem avaliada

precisa apresentar modelos linguísticos que possam ser discutidos pela comunidade

linguística, isso só é possível se os argumentos forem persuasivos, pois se isso não

acontecer o grupo de especialidade pode buscar outros argumentos para formar

novos modelos. Conforme Coracini (1991, p. 46), quanto mais os “paradigmas

entram em debate, mais os grupos de cientistas se armam de argumentos para a

defesa de um novo”. Se houver o debate para apresentar novos conceitos, haverá

uma retórica de ruptura.

35

Batista (2012, p.135) também discute a questão de usos de termos

técnicos para conferir cientificidade ao discurso, pois é por meio desses termos que

se “configura a metalinguagem adotada pelo grupo”. Argumenta, ainda, que a

linguagem especializada é responsável pela cientificidade da pesquisa e do grupo.

Segundo ele:

[...] Essa linguagem especializada também é responsável pela imagem de cientificidade atribuída a correntes de pensamento divulgadas por meio de do livro de iniciação, possibilitando que o ideal de objetividade (ainda que apenas um simulacro) esteja presente por meio da linguagem e dos modos de atuação. (BATISTA, 2012, p.135)

O linguista, dentro de seu grupo de especialidade, conseguirá

convencer seus pares por meio de sua argumentação, a qual é imprescindível para

que o seu ponto de vista seja aceito pelos seus pares já que, conforme Coracini

(1991, p. 50), “o cientista, autor do artigo científico, tem todo interesse em

demonstrar a importância de seu trabalho e a sua contribuição para o ‘progresso’ da

ciência, posicionando-se, muitas vezes, contra outros cientistas, outros paradigmas”.

A relevância de uma pesquisa será bem vista se a ideia apresentada compartilhar

com os ideais propostos e assim der continuidade aos interesses do grupo.

A análise elaborada pela Historiografia Linguística permite ao

historiógrafo distinguir a retórica de um determinado grupo de especialidade. Batista

(2012) aponta o seguinte, em relação ao material a ser avaliado:

[...] a descrição do material nos leva a captar determinada retórica adotada por um grupo em um estágio específico em que ele se encontra; mas a interpretação do processo histórico e sua evolução, função da HL, poderá validar ou não essa retórica apontada. (BATISTA, 2012, p.158)

Como vimos, a Historiografia Linguística analisa a presença da retórica

e se ela é de ruptura ou continuidade. Essa retórica se distingue pela forma de dizer

de grupos ou indivíduos. Esse dizer, segundo Batista (2011), determina:

[...] espaços discursivos, no sentido de que todo proferimento científico (os enunciados que requerem a atenção para determinado procedimento científico ou intelectual) impõe um contexto que torna exatamente esse proferimento possível. (BATISTA, 2011, p. 3780)

36

O enunciado, mencionado no trecho acima, pode ser caracterizado por

meio de um discurso que pode apresentar uma retórica de ruptura ou de

continuidade. Os artigos programáticos aqui analisados apresentam uma retórica de

ruptura.

Claro que, dependendo do grupo de especialidade ao qual pertence, o

linguista deverá seguir o que foi determinado, pois certo conceito linguístico, quando

indicado e instituído por um grupo influente torna-se reconhecido. Esse processo de

reconhecimento pôde ser observado nos documentos elaborados pelos grupos de

especialidade do eixo Rio-São Paulo; o que não aconteceu com a proposta do

projeto da Gramática Construtural, pois os pesquisadores, mesmo renomados, não

faziam parte do eixo conhecido como de elite, já que pertenciam a um grupo menor,

situado em Curitiba e, por isso, pode-se argumentar que não alcançou o mesmo

êxito de outros grupos de especialidade, mesmo sendo o grupo que apresentou,

pelo menos como proposta, algo diferente e inovador.

Para que haja continuidade ou ruptura, perceptível na retórica de um

grupo de especialidade, os argumentos apresentados deverão estar pautados pela

ciência. Ziman (1979, p. 17) define Ciência como “precisa, metódica, acadêmica,

lógica e prática”, assim os membros que compartilham os mesmos ideais

entenderão e focalizarão com nitidez o objeto de pesquisa, pois esse objeto se

mostrará como “real, sólido e concreto”.

Isso acontecerá, segundo Ziman (1979, p. 47), quando os cientistas

criadores de uma teoria necessitarem colocar em prática o resultado de seus

estudos e, ao apresentarem os resultados, usarem sua “força retórica”, que, se

utilizada adequadamente, terá um poder de persuasão determinante da presença ou

não da adesão a determinadas ideias.

[...] Usamos essas técnicas, consciente ou inconscientemente não apenas para deslindar para nos mesmos os segredos da Natureza, mas também para expô-los à plena luz do dia para os nossos colegas. (ZIMAN, 1979, p. 47)

Além de profissionais comprometidos com um conjunto teórico-

metodológico, Batista (2013a, p. 89) enfatiza o pré-requisito para formar um grupo

de especialidade “boas ideias, consideradas pelos cientistas como adequadas para

37

resolução de problemas e também para abrir novas frentes de pesquisas”, mas para

que tudo isso sobreviva no contexto de pesquisa é necessária a articulação de boas

relações sociais, pois não adianta ter boas ideias, elaborar pesquisas que sejam

honestas se não houver “uma rede de comunicação e para isso a relação social é

importante, já que boas proposições isoladas de teorias e/ou métodos não garantem

a formação de um grupo de especialidade”.

Ao analisar os artigos programáticos, evidenciaremos como os

pesquisadores sustentam a retórica de ruptura para apresentar novos conceitos

linguísticos. Sabemos que o discurso científico adotado pelos pesquisadores, no

meio acadêmico, é altamente persuasivo, pois os estudiosos buscam em novas

terminologias argumentos e dados para convencer os seus pares e conseguirem,

por meio de seu poder retórico, êxito.

38

CAPÍTULO 2

Um olhar para a Linguística Brasileira: elementos para

análise de artigos programáticos

2.1 Breve panorama da Linguística Brasileira: dos primeiros momentos à

década de 1960

Neste capítulo, nosso objetivo é apresentar algumas etapas da História

da Linguística Brasileira, tais etapas apresentam a introdução da Linguística como

disciplina nos cursos de Letras e, também, a influência dos grupos de especialidade

no cenário acadêmico brasileiro.

Em primeiro lugar, é necessário citar que a institucionalização da

Linguística brasileira surgiu bem antes do decreto n.º 4.024 de 1961 (cf. ALTMAN,

1998; CASTILHO, 1963), com a experiência da Universidade do Rio de Janeiro em

1931, quando foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública, e o titular do

Ministério, Francisco Luís da Silva Campos (1891-1968), elaborou e implementou

reformas de ensino secundário, superior e comercial. Nesse processo, estava a

fundação de uma Faculdade de Educação, Ciências e Letras, porém esse projeto só

obteve êxito em 1939.

Segundo Fiorin (2006), os cursos de Letras no Brasil surgiram

primeiramente na Universidade de São Paulo (Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras), em 1934, em seguida na Universidade do Distrito Federal (Faculdade

Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil), no ano de 1935 e, por último, na

Universidade de Minas Gerais em 1939. Foi nesse período também o início de uma

reflexão acerca da linguagem e das línguas, em uma perspectiva mais

institucionalizada academicamente no Brasil.

39

A pesquisa Linguística na Universidade brasileira surge com as criações dos cursos de Letras. Estes aparecem no Brasil no bojo dos projetos de criação das Faculdades de Filosofia apenas nos anos 30 do século passado, embora houvesse reivindicações anteriores para a existência de uma formação superior em línguas e literatura [...]. (FIORIN, 2006, p. 15)

Altman (1998), abaixo, esclarece-nos que, mesmo antes da Linguística

se tornar disciplina obrigatória, Mattoso Câmara (1904-1970), em 1938, ministrou um

curso extensivo de Linguística:

A criação de um novo espaço institucional, de nível superior, se propiciou a profissionalização daqueles que cumpriam o programa de investigação proposto pela Filologia, propiciou, igualmente, que se instalasse no país, pela primeira vez junto a um Curso de Letras, um curso extensivo de Linguística, ministrado por Mattoso Câmara, em 1938 e 1939, na então chamada Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro. (ALTMAN, 1998, p.101)

De acordo com Altman (1998), a década de 1930 foi o período do

surgimento das primeiras Faculdades de Filosofia, em diferentes centros no Brasil, e

com a criação dessas faculdades, iniciou-se também o processo de aplicação de

procedimentos científicos aos estudos linguísticos.

Foi nesse período que começaram a aparecer os primeiros estudiosos

de línguas e de fenômenos da linguagem, porém nem todos apresentavam formação

em Letras. Mattoso Câmara, por exemplo, era formado em Direito e Arquitetura,

Antenor Nascentes (1886-1972), em Engenharia, por isso a necessidade de

contratar profissionais do exterior, dentre eles os portugueses Fidelino de Figueiredo

(1889-1967), Urbano Soares (1894-1971) e Rebelo Gonçalves (1907-1982). Com

isso, percebe-se que nesse início não havia no Brasil docentes em número

adequado para ministrarem aulas nos cursos de Letras e, por isso, justificava-se a

vinda de profissionais europeus para darem início à pesquisa em línguas em solo

brasileiro.

Os professores franceses e portugueses conquistaram os estudiosos

brasileiros e fizeram deles pesquisadores. Altman (1998) enumera os nomes desses

pesquisadores brasileiros, entre eles Manuel Said Ali Ida (1861-1953), Antenor

Nascentes, Francisco da Silveira Bueno (1898-1989), Antonio Houaiss (1915-1999)

e outros. A autora salienta que:

40

[...] embora não sejam todos da mesma geração nem tenham produzido exatamente sobre os mesmos assuntos, fizeram parte da uma tradição de pesquisa vista pelos seus contemporâneos como contínua, passaram para a literatura crítica posterior como grandes filólogos [...] (ALTMAN, 1998, p. 69)

Além das pesquisas, foram também esses estudiosos que se tornaram

professores, fundando os centros de pesquisas linguísticas, os quais passaram a ser

o celeiro de desenvolvimento dos estudos e publicações da área. Isso denota a

relevância que as décadas de 1930 a 1960 tiveram no cenário das pesquisas

linguísticas nas faculdades de Letras.

Em seguida, cerca de três décadas depois desses primeiros

movimentos de implantação de estudos sobre línguas e das Faculdades de Letras,

os Cursos de Pós-Graduação em Letras obtiveram a sua regulamentação mediante

a publicação do Decreto Federal n.º 67.350, de 06 de outubro de 1970, mas as

pesquisas linguísticas já aconteciam no Brasil bem antes desse decreto (cf.

ALTMAN, 1998; CASTILHO, 1963).

Até meados da década de 1960, as pesquisas apresentavam o

embasamento nos estudos estruturalistas, já no final da década de 1960, houve

outro evento importante para a Linguística brasileira: a chegada das ideias de Noam

Chomsky e, por meio dessas, começaram a surgir novas pesquisas linguísticas,

caudatárias de seu viés gerativista. Batista (2007) comenta que:

[...] A propagação das ideias de Chomsky no Brasil começaram a se dar nesse período, e o Estruturalismo, como programa de investigação, passaria a conviver com o programa gerativista, acompanhado de um discurso que destacava a novidade, um ideal diferente de cientificidade e práticas de análise linguística, alicerçadas, sobretudo em seus primeiros momentos, numa sintaxe com métodos diversos daqueles antes empregados pelo Estruturalismo. (BATISTA, 2007, p.92)

Outros acontecimentos linguísticos ocorreram no Brasil nos anos de

1960, por exemplo, em 1962, na Universidade de São Paulo, no curso de Letras,

houve substituição da Cadeira de Etnografia de Língua Tupi-Guarani pela Cadeira

de Línguas Indígenas do Brasil. Em 1965, iniciou-se o curso de Pós-Graduação

Especialização em Linguística Geral, desenvolvido pelo professor Theodoro

Henrique Maurer Júnior (1906-1979) que em 1966, tornou-se Curso de Mestrado

em Linguística Geral. Em 1958, no Rio de Janeiro, Linguística passou a ser nome de

41

setor; ainda no Rio de Janeiro, Mattoso Câmara, com outros intelectuais, fundou o

setor de Linguística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional. A

Universidade de Brasília (UnB), inaugurada em 1962, colocou o termo Linguística

como nome de disciplina, curso de mestrado e programa de pós-graduação. Em

1966, com a coordenação do professor Francisco Gomes de Matos, foi inaugurado o

centro de Linguística Aplicada do Curso de Idiomas Yázigi. Em 1969, criou-se a

Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) em assembleia presidida pelo

Professor Mattoso Câmara. Nesse mesmo ano, em São Paulo, o Grupo de Estudos

Linguísticos (GEL) foi fundado e depois dele outros grupos regionais foram

fundados. Ainda nos anos de 1950, em Curitiba, foi criado o Círculo Linguístico de

Curitiba. Esse movimento teve uma vida curta, pois em 1956 deixou de existir para

dar vida à Revista Letras. Foi também em Curitiba que, nos anos de 1960, surgiu o

grupo liderado por Eurico Back e Geraldo Mattos pleiteando mudanças no ensino de

língua portuguesa. Na década de 1960, o Gerativismo, de Noam Chomsky,

influenciou os estudos linguísticos no Brasil. Na mesma década, outro movimento

linguístico trouxe para o Brasil novos caminhos. Esse movimento foi denominado

Estruturalismo. Ilari (2007) afirma que o Estruturalismo foi impactante para os

estudos linguísticos brasileiros:

O Estruturalismo teve sobre os estudos da linguagem, no Brasil, um impacto enorme, típico de uma escola dominante. Seu advento se deu no Brasil durante os anos 1960 e coincidiu com o reconhecimento da linguística como disciplina autônoma; assim, muitos professores e pesquisadores que, naquela altura, já tinham uma larga experiência de investigação, foram atraídos pela nova orientação [...] (ILARI, 2007, p.53)

2.2 Momentos de ruptura na Linguística Brasileira

A Linguística Brasileira que se institucionalizou a partir da década de

1960 logo se diluiu em diferentes grupos de especialidade, formados essencialmente

pela influência de movimentos teóricos que vieram do exterior. Essa influência

determinou a formação de comunidades de pesquisadores, cada uma delas

adotando uma retórica própria para advogar sua especificidade e importância no

cenário acadêmico. Ao efetivar esse processo em busca de visibilidade,

estabeleceram, também, movimentos de ruptura com outros modos de pensar

42

linguagem. Nesta dissertação, estaremos atentos a três movimentos de ruptura e à

retórica adotada no interior desses grupos: a ruptura do Estruturalismo com um tipo

de estudo da linguagem que não se reconhecia mais, na época, de modo

abrangente como Linguística (típico dos estudos do século XIX até o período da

institucionalização da Linguística e da criação dos primeiros centros de ensino nessa

área); a ruptura do Gerativismo com o Estruturalismo e outros modos de pensar e

estudar a linguagem (como a tradição gramatical prescritiva); a ruptura do

Construturalismo com os outros modos de saber que tratavam da linguagem na

década de 1970 no Brasil.

E será por meio desse olhar que analisaremos a retórica de ruptura dos

autores escolhidos por nós, os quais faziam parte de grupos de especialidade, pois,

segundo Batista (2011, p. 3779), a organização desses grupos é necessária para

marcar de forma coesa e atuante posições em uma área de pesquisa. Esses grupos,

geralmente, são formados por estudiosos que comungam dos mesmos

“pressupostos teóricos e formas de análises do objeto de investigação”. Esses

grupos são importantes porque demarcam seus posicionamentos por meio de

discursos específicos, ou seja, pela retórica de ruptura ou de continuidade com

diferentes tradições de pensamento.

Ao longo das décadas de 1960 a 1970, surgiram diferentes grupos de

especialidade para os estudos linguísticos, e cada grupo comungava aspectos

relacionados aos saberes teóricos e metodológicos nos modos de tratamento da

linguagem e partilhava da mesma retórica, ou seja, apresentava o mesmo discurso.

Batista (2013) esclarece que:

[...] Quando comunidades científicas ou intelectuais se organizam em torno de uma retórica de ruptura ou de adesão a um paradigma, a suposta

neutralidade do discurso científico ou do conhecimento intelectual coloca-se em meio a um posicionamento que se quer legítimo e ocupa seu lugar social, uma vez que fala de um espaço científico e demarcado. (grifo do autor do texto) (BATISTA, 2013a, p.57)

Batista (2013a) busca em Murray (1994) argumento para explicar como

é organizado e estabelecido um grupo de especialidade, em torno de retóricas de

ruptura ou de continuidade. Vejamos:

43

Assim, considera-se uma análise de grupos de especialidade em relação a aspectos, como os diferentes estágios pelos quais os grupos passam em busca de sua legitimidade, levando em conta pontos como a retórica de ruptura ou retórica de continuidade, papel assumido pelos linguistas em relação a lideranças, possíveis índices de sucesso de grupos de especialidade e seu objeto de pesquisa, percepção dos linguistas e seus pares, a respeitos dos grupos. (BATISTA, 2013a, p.87)

O objetivo central de nossa dissertação está na discussão da retórica

de ruptura dos movimentos estruturalista, gerativista e construturalista.

Observaremos como se deu essa ruptura. Para isso, acreditamos ser pertinente

relatar como esses grupos de especialidade se formaram como comunidades

científicas.

2.3 O Estruturalismo

O movimento estruturalista surgiu no Brasil a partir efetivamente dos

primeiros trabalhos de Mattoso Câmara e Aryon Rodrigues (1925-2014), entre

outros, e com força na década de 1960 com a institucionalização de centros de

pesquisa em Linguística (cf. ALTMAN, 1998), com nova concepção para a pesquisa

sobre a linguagem, não mais com olhar diacrônico e sim uma visão sincrônica, por

isso os estudos linguísticos passaram a analisar língua como estrutura, a partir

essencialmente do que propunha uma pesquisa de natureza descritiva. Nesse

processo, os estudos diacrônicos começaram a perder espaço dentro das

universidades, caracterizando, assim, um movimento de ruptura com um

pensamento linguístico herdeiro da visão diacrônica e evolucionista do século XIX,

em direção ao que se considerava como ciência de fato, sincrônica, estrutural, com

métodos organizados de forma precisa.

Segundo Altman (1998), os primeiros passos para que os estudos

linguísticos se tornassem um campo científico foram as criações das primeiras

Faculdades de Filosofia em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nesse período, as

disciplinas Dialetologia e Filologia estavam em evidência, ou seja, temos aqui a

formação dos primeiros grupos de especialidade em estudos linguísticos. O primeiro

44

grupo a se destacar foi o da Filologia, formado por pesquisadores como Sousa da

Silveira (1883-1967), Serafim da Silva Neto (1917-1960), Silveira Bueno (1898-

1989), entre outros. A liderança desse grupo foi marcante, tendo em vista que

alguns desses filólogos não admitiam ser contrariados ou questionados, sob a

pretensão de serem mais sábios ou mais bem informados que os demais. Além

disso, havia a concorrência para assumir cátedras nas melhores faculdades da

época e, como não podemos esquecer, nesse período o eixo Rio-São Paulo era o

preferido pelos estudiosos (cf. ALTMAN, 1998).

Outro grupo a emergir nesse período foi o da Dialetologia, um de seus

líderes, Serafim da Silva Neto (1917-1960), mesmo com muitas dificuldades, tentou

organizar e executar o seu projeto em âmbito nacional, porém encontrou vários

empecilhos devido à extensão territorial do Brasil e, consequentemente, a vasta

variedade linguística existente em nosso país. Além disso, surgiram no Brasil novas

tendências linguísticas que acabaram por limitar o desenvolvimento da área, entre

elas o Estruturalismo. Altman (1998) esclarece o motivo da não continuidade das

pesquisas dialetológicas, além da morte prematura de Silva Neto:

[...] A variante brasileira do português estava longe de ser descrita e seu estudo continuou se fazendo isoladamente, e cada vez menos, em projetos individuais. Além disso, começa a tomar formas mais nítidas em outro programa de pesquisa que se apresentava como fortemente concorrente: o Estruturalismo, que adentrava no cenário brasileiro via institucionalização da Linguística, nos Currículos Mínimos Federais das Faculdades de Letras. (ALTMAN, 1998, p.76)

As correntes relacionadas à Filologia e à Dialetologia, dentro de suas

especialidades, buscavam elementos nos acontecimentos sociais e culturais, já o

Estruturalismo buscava explicação para a estrutura da língua numa visão sincrônica.

Altman (1998) nos esclarece que:

[...] De um lado, a histórico-filológica e a dialetológica, ambas caracterizadas, respeitadas as suas especificidades, por uma visão da língua enquanto fato sociocultural e por uma orientação diacrônica no tratamento da língua portuguesa [...] E, de outro, a estruturalista, eminentemente sincrônica [...] (ALTMAN, 1998, p.77)

Para que possamos entender a evolução das vertentes, sejam elas de

ruptura, sejam elas de continuidade, precisamos analisar como estas se situavam

em grupos de especialidade, para isso, primeiramente, discorreremos sobre o grupo

45

de linguistas do movimento Estruturalista e, para tal, buscamos dados no texto de

Rodolfo Ilari “O Estruturalismo linguístico: alguns caminhos” (2007). Nesse texto, Ilari

nos traz apontamentos a respeito do Estruturalismo e dos estudiosos desse

movimento. O Estruturalismo brasileiro:

[...] se impôs no Brasil vencendo as resistências de outras tradições de análises, e acabou, ele próprio, sendo superado pelas novas tendências de uma linguística que tinha contribuído para consolidar. Nessas circunstâncias, isto é, em contraste com as orientações que se opuseram historicamente a ele, tendemos a pensar no Estruturalismo linguístico como um movimento uniforme e coeso, mas no que concerne ao Brasil, é preciso considerar pelo menos dois focos de irradiação distintos, localizados respectivamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. (ILARI, 2007, p.54)

Por intermédio dessa consideração de Ilari (2007), vimos que os

grupos de especialidade do Estruturalismo pertenciam ao eixo Rio-São Paulo, sendo

no Rio de Janeiro o Professor Mattoso Câmara aquele que mais atuou, e, em São

Paulo, o movimento ocorreu tanto na graduação quanto na pós-graduação da USP,

da PUC – São Paulo (diálogo com os professores da UNICAMP).

O Estruturalismo, segundo Ilari (2007), iniciou-se em 1916, com a

publicação póstuma do livro Cours de Linguistique Générale, do suíço Ferdinand de

Saussure (1857-1913), e, a partir dos estudos de Saussure, outros estudiosos tanto

na Europa quanto nos Estudos Unidos pesquisaram a língua como um modelo

estrutural. Esse modelo estruturalista da língua teve como objetivo principal propor a

existência de estruturas para explicar o sistema e o uso da língua. Esses estudiosos

buscaram vários modelos estruturalistas para explicar fenômenos linguísticos. Louis

Hjelmslev (1899-1965) propôs a Glossemática e, para ele, a língua se constituía por

meio de estruturas de oposições. Ilari (2007) explica que:

[...] A glossemática foi a escola de linguística estrutural que mais consequentemente procurou aplicar a tese saussuriana de que as línguas se constituem como sistemas de oposições. Esta preocupação levou o próprio Hjelmslev a caracterizar exaustivamente, do ponto de vista lógico, as relações por meio das quais as línguas se estruturam, e resultou num tipo de descrição linguística das línguas em que se dá atenção particular às relações entre as unidades, nos vários níveis de análise. (ILARI, 2007, p.70)

Outro momento do Estruturalismo ficou conhecido como Funcionalismo

e, nele, a figura que despontou foi André Martinet (1908-1999). Conforme Ilari

46

(2007), os estruturalistas funcionalistas apresentaram para a linguística o termo

função:

[...] o termo que se dá nome à escola “função”, foi usado pelos martinetianos para dar cobertura a conceitos tão disparatados como (i) o caráter, próprio da fala, de ser um instrumento de comunicação entre as pessoas; (ii) a possibilidade de fazer referência a objetos diferentes, por meio de unidades linguísticas diferentes; (iii) o tipo de relação gramatical liga uma unidade sintática (por exemplo, um adjunto adverbial) ao contexto sintático maior de que faz parte (por exemplo, a sentença); essa ambiguidade não chegou incomodar Martinet e os martinetianos, e não os impediu de desenvolver um conjunto de análise que, em determinado momento, puderam ser considerados de vanguarda. [...] (ILARI, 2007, p.72)

Outro pesquisador europeu foi Roman Jakobson (1896-1982), que

trouxe para os estudos estruturalistas uma visão ampla, pois abordou temas

relacionados à fonologia, à linguagem da poesia, além de voltar sua atenção para a

patologia linguística. Ilari (2007) ressalta que Jakobson:

[...] refletiu sobre temas que vão desde a fonologia até a linguagem da poesia, desde a aquisição da linguagem dita “normal”, até a patologia linguística. Deixou estudos descritivos sobre línguas diversas na forma de artigos e ensaios curtos. A reflexão linguística de Jakobson é altamente integrada. [...] (ILARI, 2007, p.74)

Ainda no Estruturalismo tivemos a corrente norte-americana, cujo

interesse inicial era descrever as línguas indígenas do continente, estes não

buscaram em Ferdinand de Saussure elementos para desenvolver suas pesquisas,

e sim em Leonard Bloomfield (1887-1949), que publicou, em 1933, o livro Language,

no qual defendia , segundo Ilari (2007, p. 78), que “as únicas generalizações úteis a

respeito da linguagem são de ordem indutiva”. Weedwood (2004) salienta que

Bloomfield, para escrever esse livro, foi influenciado pela psicologia da linguagem de

autoria de Wundt. Esse olhar do Estruturalismo norte-americano apresentou, de

acordo com Ilari (2007), o seguinte:

[...] Era uma forma de evitar que o linguista tentasse dominar os dados por meio de sua intuição pessoal, lançando hipóteses que, por serem de ordem mental ou psicológica, corriam o risco de ficar sem “prova”, isto é, sem confirmação empírica. [...] (ILARI, 2007, p.78)

Weedwood (2004) afirma que Bloomfield adotou uma visão

behaviorista para os estudos da língua. Segundo a autora, essa visão trouxe

grandes consequências para a pesquisa linguística:

47

[...] Teve ampla consequência sua adoção de teoria behaviorista da semântica, segunda a qual o significado é simplesmente a relação entre um estímulo e uma reação verbal. Como a ciência ainda estava muito distante de ser capaz de explicar de forma abrangente a maioria dos estímulos, nenhum resultado importante ou interessante poderia ser esperado, por muito tempo ainda, do estudo do significado, e era preferível, tanto quanto possível, evitar basear a análise gramatical de uma língua em considerações semânticas. [...] (WEEDWOOD, 2004, p.131)

Já para Altman (1998), as pesquisas de Bloomfield a respeito do

Estruturalismo buscaram uma metodologia original que fosse:

[...] capaz de dar conta de fatos linguísticos sobre os quais não se tinha nenhuma documentação – ou tradição literária – que permitisse a investigação por procedimentos outros que não a acumulação indutiva dos fatos materialmente observáveis. [...] (ALTMAN, 1994, p.29)

No Brasil, como já citado anteriormente, os estudos estruturalistas

iniciaram-se na década de 1960, e os estudiosos brasileiros que pesquisavam a

língua segundo a ótica dessa tendência apresentaram, conforme Ilari (2007),

contribuições importantes do ponto de vista teórico, tais como:

[...] o Estruturalismo instaurou a crença de que língua portuguesa tal qual é falada e escrita no Brasil deveria ser tomada como objeto de descrição, contrariando uma longa tradição normativa. [...] o Estruturalismo trouxe também a preocupação de registrar, disponibilizar e tratar dados linguísticos. Estimulou a linguística de campo, e levou à constituição de grandes corpora, que se caracterizaram não só por sua abrangência, mas também por seu alto grau de rigor nos procedimentos de coleta. [...] o Estruturalismo criou grandes expectativas de que poderia contribuir positivamente para a renovação do ensino de língua. [...] (ILARI, 2007, p.87-89)

Se buscarmos pontos de referência nos programas de investigação

apresentados por Swiggers (1981), pode-se dizer que o Estruturalismo se insere no

programa descritivista, pois esse modelo descreve a língua a partir de abordagens

sincrônicas para descrever a estrutura linguística. Para corroborar tal afirmação,

buscamos em Altman (1998) as considerações a respeito desse programa:

Descrever os sistemas sígnicos nos limites das suas propriedades estruturais, ou nos contextos comunicativos em que se inserem, dividiria ainda uma vez a produção linguística dita estruturalista entre as interpretações ‘formalistas’ e as interpretações ‘funcionalistas’. Mas a visão global do objeto linguagem como estrutura sui generis a desvendar e descrever, a perspectiva sincrônica, e a ênfase no estudo do material linguístico oral continuaram sendo os principais índices da ruptura epistemológicas com o fazer linguístico [...] (ALTMAN, 1998, p.29-30)

48

2.4 O Gerativismo

Após o movimento estruturalista se firmar em terras brasileiras, surgiu

um novo movimento: o Gerativismo, desenvolvido inicialmente por Noam Chomsky.

Para Nivette (1975), a Gramática Gerativa apresenta também um modelo estrutural,

o qual pesquisa a língua numa visão sincrônica, porém como uma nova roupagem,

essencialmente ancorada em uma perspectiva biológica sobre a linguagem humana.

Para ele, o Gerativismo tem aspectos semelhantes a alguns do Estruturalismo:

A gramática gerativa aparece, pois, como uma teoria estruturalista – visto que estuda a língua segundo o aspecto sincrônico, considera-a como uma estrutura e, ademais propõe-se por alvo o sistema ordenado das unidades e das relações -, porém ela se distingue, igualmente, das outras teorias estruturalistas pelos seus métodos científicos próprios. (NIVETTE,1975, p.5)

O Gerativismo apresentava, na década de 1960, como novo as regras

transformacionais e utilizava o modelo das regras sintagmáticas já presentes em

outros modelos de análise linguística.

Borges Neto (2004) argumenta que o Gerativismo apresentado por

Chomsky é “forma sofisticada de gramática de constituintes imediatos acrescida de

um componente transformacional”. De acordo com Borges Neto:

[...] Este modelo de análise apresenta dois componentes principais: um que forma expressões, e que é uma versão gerativa da gramática de constituintes imediatos [...] e outro que transforma expressões e que, ao menos em parte, apoia-se na noção de “transformação” [...] (BORGES NETO, 2004, p.101)

Batista (2007, p. 56) analisa, a partir da Historiografia Linguística, a

trajetória do Gerativismo no Brasil, para isso ele elaborou o percurso histórico desse

movimento linguístico. Ainda em Batista (2007, p. 59), a Gramática Gerativa, num

primeiro momento, apresentava algo inovador “por não dar continuidade à linguística

que se fazia até então: aquela de teor distribucionalista, em que o importante era a

descrição e a análise de dados fundamentalmente fonético-fonológicos e

morfológicos”.

49

A Gramática Gerativa, segundo Batista (2007), teve o seu início no

Brasil em 1967, com a publicação do texto de Miriam Lemle na revista Tempo

Brasileiro, e, assim que chegou, teve a mesma repercussão verificada nos Estados

Unidos, ou seja, ficou conhecida como uma “teoria revolucionária”.

Lemle, conforme Batista (2007, p.98), destacou em seu texto a visão

de “inovação, as mudanças, as novas perspectivas que o programa chomskiano

trazia em comparação com o programa estruturalista”.

Kato e Ramos (1999) apontam alguns momentos iniciais do movimento

gerativista no Brasil:

Data Evento

1967 Artigo publicado na Tempo Brasileiro

1968 A teoria gerativista é apresentada por Mirian Lemle no Museu Nacional.

1969/1975 Primeiras teses: Eunice Pontes, Leila Barbara e Mary Kato.

Quadro 2 – Primeiras publicações a respeito do movimento gerativista no Brasil

Esse grupo de pesquisadores gerativistas estava dividido nas

seguintes instituições: UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), PUC-SP

(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), UNICAMP (Universidade de

Campinas) e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e era composto por,

entre outros, Anthony Naro, Miriam Lemle, Margarida Basílio, Mary Kato, Leila

Barbara, Antonio Carlos Quicoli, Quentin A. Pizzini, Frank Brandon e Eunice Pontes.

O grupo formado pelos linguistas brasileiros que se filiaram a uma

proposta gerativista produziu vasto material entre as décadas de 1970 e 1980.

Dentre essa produção há, conforme Batista (2007, p. 103), “manuais de introdução à

Gramática Gerativa, nacionais ou traduzidos, e a inclusão de capítulos, em manuais

de introdução à linguística ou à sintaxe, com orientação gerativista”.

Essa proposta de descrição e análise linguística, conforme Kenedy

(2008, p. 127), veio para dar uma resposta aos pesquisadores ligados ao

Estruturalismo, os quais buscaram no “modelo behaviorista de descrição dos fatos

da linguagem, modelo esse que foi dominante na linguística e nas ciências de uma

maneira geral”. Segundo Kenedy (2008, p. 128), para os estruturalistas, a linguagem

50

humana era “um fenômeno externo ao indivíduo, um sistema de hábitos, gerado

como respostas a estímulos e fixado pela repetição". Diferentemente desse olhar

estruturalista, o Gerativismo de Chomsky veio para romper com esse paradigma,

pois, para ele, os falantes de uma língua são criativos porque são capazes de

produzir frases novas e inéditas, das mais simples, às mais complexas. Kenedy

(2008, p. 129) relata que Chomsky traz para os seus estudos a “concepção

racionalista dos estudos da linguagem, em oposição franca e direta à concepção

empirista que era defendida pelos estruturalistas, tanto os europeus quanto os

estadunidenses”.

Outro ponto discutido pela proposta chomskiana foi o inatismo, ou seja,

o indivíduo, por meio de sua genética e sua capacidade humana de falar e

compreender uma língua, apresenta uma competência linguística. Kenedy (2008)

aponta que:

[...] todos os indivíduos humanos, de todas as raças, em qualquer condição social, em todas as regiões do planeta e em todos os tempos da história foram e são capazes de manifestar, ao cabo de alguns anos de vida e sem receber instruções explícitas para tanto, uma competência linguística – a capacidade natural e inconsciente de produzir e entender frases. (KENEDY, 2008, p.129)

Para Kenedy (2008), o objetivo central do Gerativismo para Chomsky é

descrever e explicar a Faculdade da Linguagem:

O papel do Gerativismo, no seio da linguística, é constituir um modelo teórico capaz de descrever e explicar a natureza do funcionamento dessa Faculdade, o que significa procurar compreender um dos aspectos mais importantes da mente humana. (KENEDY, 2008, p.130)

A Gramática Gerativa trouxe um novo modelo para os estudos

linguísticos. A partir dessa proposta teórico-metodológica, as línguas deixaram de

ser estudadas pelo viés que via o comportamento humano e o uso da linguagem

verbal em meio a trocas de estímulo-resposta, e passaram a ser vistas como uma

faculdade mental natural. Ainda no movimento gerativista, foi apresentada a primeira

versão da Gramática Transformacional, a qual foi desenvolvida e reformulada várias

vezes nas décadas de 1960 e 1970. Kenedy (2008) explica os objetivos do

Gerativismo nessas décadas:

51

Os objetivos dessa fase do Gerativismo consistiam em descrever como os constituintes das sentenças eram formados e como tais constituintes transformavam-se em outros, por meio da aplicação de regras. Por exemplo, a sentença “o estudante leu o livro” possui cinco itens lexicais, que estão organizados entre si através de relações estruturais que chamamos de marcadores sintagmáticos, e tais marcadores poderiam sofrer regras de transformação de modo a formar outras sentenças [...] esse sistema de regra que, então, se assumia como o conhecimento linguístico existente na mente do falante de uma língua, o qual deveria ser descrito e explicado pelos linguistas gerativistas. (KENEDY, 2008, p.131)

De acordo com Altman (1998), o método transformacional apresentado

pelo Gerativismo trouxe uma nova visão sobre modos de analisar e descrever

fenômenos linguísticos:

As proposições da Gramática Gerativista acabaram por provocar reflexões mais gerais sobre as tarefas a serem desempenhadas por uma Linguística da ‘competência’ e por uma Linguística da ‘performance”. Impôs-se, neste referencial teórico, ultrapassar o estágio da observação e classificação de enunciados e formular hipóteses mais gerais, capazes de explicar – e não somente descrever – esses mesmos fatos. Assim, do ponto de vista interno da cronologia da ciência, no curto espaço de três décadas, a um ideal descritivista, ter-se-ia sucedido um ideal teórico-explicativo de fazer científico. (ALTMAN, 1998, p.30)

Dentre os programas apresentados por Swiggers (1981), podemos

dizer que o movimento gerativista se encaixa no programa de correspondência, o

qual tem como objetivo esclarecer as correspondências entre linguagem,

pensamento e mundo. Para comprovar tal análise, orientamo-nos pelos

esclarecimentos de Altman (1998):

O programa de correspondência na história das ideias e das práticas de análises linguísticas caracterizaria os trabalhos que tiveram como objetivo principal examinar as correspondências entre linguagem, pensamento e realidade. Nesse programa, a linguagem seria um meio de expressão do pensamento, e a segmentação do pensamento (geralmente equivalente às maneiras como a mente pode perceber o mundo) comandaria a segmentação das unidades linguísticas. Platão, Aristóteles, Varrão, Port-Royal, Guillaume, Chomsky, entre outros, são alguns exemplos de linguistas que, segundo o autor [Pierre Swiggers], operam – ou operaram – dentro deste programa. (ALTMAN, 1998, p.37)

52

2.5 O Construturalismo

Após o percurso do Gerativismo, passamos a comentar sobre o

Construturalismo, último modelo linguístico que será analisado por nós. Geraldo

Mattos e Eurico Back idealizaram o modelo construtural.

O grupo de especialidade que se organizou em torno da proposta

construturalista pretendeu apresentar uma gramática de descrição da língua

portuguesa valorizando um modelo estrutural, mas também relacionado à

comunicação entre emissor e receptor. Os conceitos básicos apresentados são: as

relações entre os elementos, a comunicação, o sinal e a linguagem.

Mattos e Back (1972, p. 31) esclarecem que a pesquisa linguística

desenvolvida por eles pertence à perspectiva sincrônica. Afirmam o seguinte a

respeito das pesquisas desenvolvidas por eles: “o nosso estudo, portanto, pertence

ao campo da Linguística Especial Sincrônica. O seu assunto é a língua portuguesa

deste século, em modalidade adloquial”. O modelo adloquial, na concepção da

construtura, é a comunicação em que há mais receptores que emissores.

Segundo Altman (1998, p. 117), Mattos e Back propuseram, por meio

das pesquisas relacionadas à Gramática Construtural, uma retórica de ruptura com o

Estruturalismo e o Gerativismo, “em retórica de franca ruptura com o Estruturalismo

e o Gerativismo, propunham, seus autores, uma ‘nova’ teoria gramatical”.

Batista (2013b, p. 50) relata que o grupo construturalista apresentou de

imediato uma retórica de ruptura, pois tanto Back como Mattos por intermédio de

seus artigos programáticos configuraram “um novo caminho para a descrição e

análise linguística de unidades e fenômenos da língua portuguesa”.

Em 1972, foi publicada a Gramática Construtural da Língua

Portuguesa, e seus autores explicitaram o motivo desse novo olhar para o ensino de

língua:

53

A Línguística Construtural é o resultado de quinze anos de pesquisas conjuntas, realizados por Eurico Back e Geraldo Mattos. Ao início de nossos trabalhos, consistia nosso intuito dotar a língua portuguesa de uma gramática científica em moldes tagmêmicos; contudo, à medida que avançávamos na pesquisa, sempre mais deficiente nos resultava o modelo tagmêmico e, inconscientemente talvez, começavam as inovações, trazidas pelo estudo exaustivo dos mecanismos da língua portuguesa. A certo momento, descobrimos que nos afastáramos enormente do modelo tagmêmico e caminhávamos em novos terrenos. Optamos por interrompermos a pesquisa sobre a língua portuguesa e deter-nos com mais afinco na procura de um novo modelo, que incluísse as conquistas realizadas. E surgiu a Linguística Construtural. (BACK e MATTOS, 1972, p.22)

Outro ponto necessário para a adequada compreensão do

Construturalismo é verificar como os pesquisadores fundamentaram essa nova visão

de linguística e esse modelo relacionado à comunicação, pois conforme

Deschamps( (1976):

Na realidade, o modelo construtural se fundamenta no modelo de comunicação, onde a relação entre emissor e receptor desempenha papel preponderante; cifração e decifração são habilidades essenciais de processo, determinantes pelo código; as relações entre os elementos ficam estabelecidos como postulados. (DESCHAMPS, 1976, p.11)

Para corroborar com a definição dada por Deschamps, buscamos em

Back e Mattos, no prefácio4 da Gramática Construtural da Língua Portuguesa, a

seguinte afirmação:

Para entender-nos, basta desligar-se de conhecimentos gramaticais anteriores e seguir item por item a exposição, desde que o estudioso aceite a nossa base de Comunicação e a ideia de relações que nos levaram à Construtura.

Borges Neto em seu artigo “A Linguística Construtural: Um capítulo da

história da linguística no Brasil”, publicado na Revista Letras, expõe que esse estudo

linguístico teve como base os conceitos apresentados na Linguística Estruturalista.

Segundo Borges Neto (2013, p.19), “a Linguística Construtural (LC) é uma teoria

linguística, de exploração estruturalista, desenvolvida nos anos sessenta e setenta

do século XX [...]”.

O Construturalismo teve como alicerce a teoria behaviorista, e esta

teoria, conforme Oliveira e Paiva (2014), estabeleceu como apoio duas vertentes,

sendo uma linguística e a outra psicológica.

4 Prefácio do livro A Gramática Construtural da Língua Portuguesa, não há identificação da página.

54

A teoria behaviorista se apoia em dois pilares: um linguístico e outro psicológico. O primeiro se refere ao conceito de língua como um conjunto de estruturas e o segundo a aprendizagem como formação de hábitos automáticos. Assim adquirir uma língua é adquirir hábitos linguísticos automáticos e isso é feito através da repetição de estruturas básicas da língua. (OLIVEIRA e PAIVA, 2014, p. 21-22)

Batista (2013b, p. 46), em seu artigo “Uma técnica, um grupo e uma

retórica: A Gramática Construtural na História da Linguística Brasileira”, afirma que

as influências do Construturalismo tiveram apoio em várias correntes do

Estruturalismo norte-americano de influência behaviorista, ou seja, a corrente

estruturalista delineada por Bloomfield. Borges Neto (2013, p. 21) também ressalta

que os estudos construturalistas eram para seus autores como “mais uma ‘técnica’

de descrição linguística, mais adequada à descrição do português do que as

técnicas alternativas (Tagmênica, Glossemática, Gramática Transformacional, etc.)”.

O Construturalismo de Back e Mattos se enquadra no programa

descritivista apresentado por Swiggers (1981), pois esses estudiosos focam suas

propostas na descrição do uso da língua. Batista (2013b) constata que a Linguística

Construtural se caracteriza pelo programa descritivista na história dos estudos sobre

a linguagem, conforme apresenta:

[...] teorias e modelos que trabalham a estrutura linguística como objeto autônomo, sem relações com aspectos psicológicos e/ou sociais (no sentido de que seriam essas relações que favoreceriam o entendimento de fatos linguísticos). (BATISTA, 2013b, p.57)

Enfim, percebemos que o Estruturalismo e o Construturalismo estão

enquadrados no programa descritivista e o Gerativismo se encaixa no programa de

correspondência e sua visão de língua se relaciona a uma perspectiva inatista da

linguagem humana.

55

CAPÍTULO 3

_____________________________________________________________________

A retórica de ruptura em artigos programáticos na

linguística brasileira

3.1 Estruturalismo, Mattoso Câmara Jr. e a ruptura com uma tradição

Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1904-1970) foi e é uma referência

brasileira para os estudos de uma linguística reconhecida como estruturalista. Ele

conviveu com linguistas dessa corrente tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.

Sabemos que Mattoso Câmara foi reconhecido como aquele que

apresentou (pelo menos assim é reconhecido na história da linguística brasileira), na

década de 1940, a linguística moderna para os estudiosos da linguagem no Brasil, e

foi por essa razão que os estudos linguísticos passaram por mudanças, com

Mattoso apresentando uma nova forma de estudar a linguagem. Um momento que

pode ser caracterizado como início de um novo percurso e, consequentemente, de

um embate com os modos presentes naquele momento de estudar linguagem, como

o praticado pelo grupo de filólogos, de dialetologistas e gramáticos tradicionais.

De acordo com Altman (1998), ao publicar o livro Princípios de

Linguística Geral na década de 1940 (depois de ter apresentado o texto em artigos

publicados em jornal diário), ficou nítido que Mattoso Câmara não compartilhava

ideias sobre o tratamento da linguagem com o grupo de especialidade que

protagonizava o cenário brasileiro: a Filologia, a Dialetologia e a Gramática

Tradicional. Nesse momento, o interesse dos filólogos eram a perspectiva diacrônica

e os estudos que documentavam e analisavam a língua sob essa perspectiva, além

disso, havia os dialetólogos, com suas catalogações sobre variedades de uso da

língua. A proposta da Linguística Estrutural disseminada por Mattoso vai de encontro

56

aos ideais desses grupos, que se interessavam pela diacronia e por análise da

língua que não levava em conta uma ideia de sistema tal como visão defendida pelo

Estruturalismo pós-saussuriano. Segundo Uchôa (2004)5, a obra de Mattoso nas

décadas de 1940 e 1950 era “representante isolado, no Brasil e em Portugal, do

discurso teórico estruturalista, opondo-se desse modo ao discurso dominante dos

filólogos [...]”.

Esse novo olhar preocupava-se em apresentar princípios gerais que

pudessem ser aplicados a todas as línguas, por exemplo, mostrar que para os

estruturalistas a importância era discutir a língua em seus aspectos individual e

social, portanto o estudo da linguagem apresentado por Mattoso foi marcado, ainda

segundo Uchôa (2004), por meio de um discurso preocupado com os aspectos

teóricos e com um modelo que ensinasse a fazer linguística teórica.

Princípios de Linguística Geral, conforme Uchôa (2004), foi criticado

em sua época, pois, como dito por alguns críticos, a teoria não era original,

entretanto, segundo Uchôa (2004), os aspectos apresentados nesse livro

demonstraram que Mattoso era um linguista que estava à frente de seu tempo:

[...] bem informado, atualizado, cuja seleção de temas assegurava uma cobertura satisfatória dos domínios da Linguística desenvolvidos à época, e com a sempre presente originalidade da reflexão pessoal do autor. (UCHÔA, 2004)

O livro trouxe realmente algo novo para a época e para o que estava

sendo publicado em termos de estudo da linguagem no Brasil. Podemos perceber

essa inovação logo por uma breve análise do índice do livro, tendo em vista uma

comparação com o que se publicava então. Princípios de Linguística Geral foi

dividido em dezenove capítulos assim denominados, apresentando os tópicos

privilegiados por Mattoso em sua visão sobre o que era estudar cientificamente a

linguagem humana:

5 Carlos Eduardo Falcão Uchôa: artigo publicado na Revista Delta – Vol. 20 – 2004: Título do artigo “Mattoso Câmara: um novo discurso sobre o estudo da linguística no Brasil”: revista online e por isso sem numeração de páginas.

57

Capítulo I Linguística: seu objeto

Capítulo II Linguística: suas modalidades

Capítulo III Os fonemas ou unidades da fonação

Capítulo IV Sílaba e vocábulo fonético

Capítulo V As unidades significativas

Capítulo VI Os tipos de fonemas

Capítulo VII As significações linguísticas

Capítulo VIII Uma categoria nominal: o gênero

Capítulo IX Uma categoria verbal: o aspecto

Capítulo X As espécies de vocábulos

Capítulo XI A frase: sua conceituação

Capítulo XII A frase: sua estrutura

Capitulo XIII Conceito da evolução linguística

Capítulo XIV A evolução fonética: suas causas

Capitulo XV Os aspectos da evolução fonética

Capítulo XVI As leis fonéticas

Capítulo XVII Empréstimos e sua amplitude

Capítulo XVIII Aspectos linguísticos e sociais do empréstimo

Capítulo XIX A classificação das línguas

Quadro 3 – Tópicos do livro Princípios de Linguística Geral

Observem comparação com o livro Gramática Histórica, do filólogo

Ismael de Lima Coutinho (1900-1965), com primeira edição em 1938 e a segunda

em 1941, contemporâneo, assim, à primeira edição do livro Princípios de Mattoso.

Nesse período, os estudos relacionados à linguagem estavam concentrados na

perspectiva diacrônica das gramáticas históricas e da filologia. Batista (2011) definiu

esses campos de estudo:

[...] Entende-se o campo filológico como aquele que estabeleceu estudos de feição clássica, em torno de conjuntos de textos de cultura, representando

58

manifestações intelectuais e históricas de um povo. Já o campo de estudos de uma gramática histórica compreendeu principalmente a fonética e a morfologia. (BATISTA, 2011, p. 371)

A título de comparação entre o que defendia Mattoso, uma visão

sincrônica de análise da língua, e a visão diacrônica de Ismael de Lima Coutinho,

apresentamos o índice do livro Gramática Histórica6.

Capítulo I Introdução

Capítulo II Latim vulgar e latim clássico

Capítulo III Línguas românicas

Capítulo IV História da língua portuguesa

Capítulo V Domínio da língua portuguesa

Capítulo VI Português arcaico

Capítulo VII Ortografia portuguesa

Capítulo VIII Palavra e vocábulo. Sílaba. Acento Tônico

Capítulo IX Fonética descritiva

Capítulo X Fonética histórica

Capítulo XI Leis Fonéticas

Capítulo XII Metaplasmos

Capítulo XIII Analogia

Capítulo XIV Constituição do léxico português

Capítulo XV Morfologia

Capítulo XVI Português do Brasil

Quadro 4 – Tópicos do livro Gramática Histórica

Carlos Eduardo Falcão Uchôa, no prefácio da edição de 1976 do livro

de Ismael de Lima Coutinho, esclarece ao leitor que o autor do livro “não

desconhecia a fonologia sincrônica e nem a fonologia diacrônica” (UCHÔA, 1976)7.

6 Gramática Histórica, 7.ª edição, 1976. 7 Prefácio do Livro Gramática Histórica, de Ismael de Lima Coutinho, de 1976. O prefácio é de autoria de Carlos Eduardo Falcão Uchôa e não há numeração de página.

59

Esse comentário indica a importância dos estudos apresentados por Mattoso, pois

nos indicia que já havia uma certa preocupação de não deslocar Coutinho de um

panorama que, na década de 1970, já reconhecia a importância de uma linguística

estruturalista, que de fato havia estabelecido um movimento de ruptura na linguística

brasileira, ao descontinuar os estudos diacrônicos como orientação dominante nos

estudos sobre a linguagem no Brasil.

Com a publicação do livro Princípios, Mattoso demonstrou que estava

bem informado em relação aos estudos estruturalistas. Como sabemos, o linguista

brasileiro começou a discutir o ensino da língua por meio da linguística no final da

década de 1930 mediante a publicação de livros e artigos. Foi também o primeiro

professor de Linguística no Brasil, precisamente na Universidade do Distrito Federal,

instituição que na concepção de Rodrigues (2005, p. 13) era uma “instituição liberal

e inovadora” e que veio ao encontro dos estudos de Mattoso: em ambiente moderno,

propício para um ensino da língua no viés da moderna ciência da linguagem

praticada fora do Brasil. No entanto, segundo Altman (1998), a Universidade do

Distrito Federal foi extinta no ano de 1939, e com a extinção da universidade o

grande scholar brasileiro precisou ministrar aulas de língua portuguesa para o

ensino secundário.

No período em que trabalhou nas escolas secundárias, Mattoso

aproveitou para organizar o material utilizado em suas aulas na Universidade do

Distrito Federal, e esse material, segundo Rodrigues (2005), é que foi convertido no

conteúdo da primeira edição do Princípios de Linguística Geral em 1942. Rodrigues

(2005) ressalta que:

Dos escritos de Mattoso, o que teve maior divulgação no Brasil e que tem contribuído para disseminar conhecimentos científicos sobre a linguagem é o que intitulou de Princípios de Linguística Geral, cuja primeira edição em livro saiu em 1942, mas que já fora em parte publicado parceladamente na Revista de Cultura durante os anos de 1939 e 1940 (RODRIGUES, 2005, p.15)

Altman (2004) explica que, com a saída de Mattoso da Universidade e,

consequentemente, nesse período, a eliminação da linguística geral do currículo das

faculdades de Letras, o ensino de linguagem não foi o mesmo:

60

[...] eliminar todo um conjunto de problemas e metodologias inovadoras no tratamento da linguagem da formação de jovens profissionais que, pela primeira vez no país, se graduavam em curso de língua e literatura. As futuras gerações de linguistas brasileiros estavam indelevelmente fadadas, de antemão, a perder o bonde da história. (ALTMAN, 2004.)

8

Outro ponto importante é o prefácio da primeira edição do livro

Princípios, elaborado por Sousa da Silveira, o qual esclareceu que o trabalho de

Mattoso era útil tanto aos professores quanto aos estudantes, pois nele havia uma

proposta inovadora para o ensino de língua por meio dos aspectos sociais e

linguísticos.

Quando estudou fora do país, Mattoso teve contato com grupos de

linguistas que já estudavam a língua como estrutura e, por esse motivo, ele tinha as

condições intelectuais necessárias para ser um líder intelectual de uma geração que

já praticava Estruturalismo como modo de descrever e analisar língua. Esse contato,

essencialmente norte-americano, segundo Altman (2004), iniciou-se nos primeiros

anos da década de 1940 no momento do encontro do linguista brasileiro com Roman

Jakobson em Nova Iorque, e foi a partir dessa proximidade que Mattoso começou a

se interessar pela análise sincrônica. Ressaltamos, com Altman (2004), que o

estudioso brasileiro conhecia a visão sincrônica por meio das leituras do Cours

(1916) de Ferdinand de Saussure, de Language (1921) de Edward Sapir e Die

phonologischen Vokalsysteme (1929) de Trubetzkoy.

Durante a sua permanência nos Estados Unidos nos anos de 1943 e

1944, Mattoso foi um espectador assíduo das conferências proferidas por Jakobson

com a temática em linguística geral, esses encontros aconteciam, conforme Altman

(2004), “tanto na École Libre, quanto na Universidade de Colúmbia”. Ainda

frequentou vários cursos de sânscrito, de grego e de línguas africanas, mas a sua

preferência era participar dos debates dos pesquisadores ligados ao grupo de

Jakobson e do Círculo Linguístico de Nova Iorque. Ainda em Altman (2004), temos a

informação de que o estudioso brasileiro também teve contato com outros cientistas

da linguagem, como Leonard Bloomfield, Edgar H. Sturtevant e Franklin Edgerton,

Zellig S. Harris, Clarence Parmenter. Ainda é preciso ressaltar que a estada de

Mattoso Câmara em solo norte-americano em momento de efervescência da

8 Cristina Altman: artigo publicado na Revista Delta – Vol. 20 – 2004: Título do artigo “A conexão americana: Mattoso Câmara e o círculo linguístico de Nova Iorque”: revista online e por isso sem numeração de páginas.

61

linguística estruturalista e sua ida a Praga o levaram a propor, em 1949, a sua tese

de doutoramento, cujo assunto era a descrição fonêmica do português do Brasil. O

próprio tema desse trabalho de grau nos indicia a presença da vertente estruturalista

no pensamento de Mattoso.

Um prefácio do livro Princípios de Linguística Geral elaborado por Silvio

Elia, na edição de 1976, indica que a publicação apresentava elementos certos para

um movimento de descontinuidade num panorama diacrônico de estudos sobre a

língua:

Como já se tem observado, a primeira edição dos Princípios revê, em especial a influência da Escola Francesa e a das correntes europeias de maneira geral, Meillet, Vendryès, Saussure, Grammont, Jespersen são os autores mais citados. Contudo, já ocorrem nomes de nortes americanos, como Bloomfield e Sapir, mais este do que aquele, o que é sintomático. (ELIAS, 1976)

9

Percebemos, por meio do prefácio, que Mattoso buscava algo

diferente, na época, para explicar os conceitos ligados à linguagem, em uma direção

que se opunha ao discurso do grupo que até então dominava os conceitos e

técnicas ligados ao ensino da linguagem. Uchôa (2004)10 comenta essa oposição

“[...], opondo desse modo ao discurso dominante dos filólogos, de orientação

atomista, que no estudo da língua, sobretudo a literária, quer no estudo diacrônico

do vernáculo”. Essa posição, de acordo com Altman (1998), do linguista brasileiro

demarcava o início da ruptura com um grupo de especialidade que privilegiava os

estudos filológicos e os estudos históricos sobre a língua em suas feições fonético-

fonológica e morfológica.

Tendo em vista a sua importância para o cenário acadêmico e

principalmente por ter sido Mattoso o introdutor da linguística estrutural no Brasil,

escolhemos o artigo programático “O novo Estruturalismo no Brasil”, publicado em

1967 na revista Tempo Brasileiro. Nesse artigo, o linguista brasileiro apresentou

correntes do Estruturalismo.

9 Prefácio do Livro Princípios da Linguística Geral, de J. Mattoso Câmara Jr., de 1989- 7ª ed. O prefácio é de autoria de Silvio Elias e não há numeração de página. 10 Carlos Eduardo Falcão Uchôa: artigo publicado na Revista Delta – Vol. 20 – 2004: Título do artigo “Mattoso Câmara: um novo discurso sobre o estudo da linguística no Brasil”: revista online e por isso sem numeração de páginas.

62

No ano da publicação do artigo, o Brasil passava por várias mudanças

tanto na área educacional quanto na área política, e foi nesse momento conturbado

que Mattoso, nome já consolidado no meio acadêmico, redigiu um texto marcando

sua posição sobre as pesquisas linguísticas relacionadas ao Estruturalismo. Nesse

período, o Estruturalismo já era bem visto, já havia grupos de especialidade

discutindo e escrevendo sobre o Estruturalismo linguístico em vários países.

Mattoso abriu seu artigo citando Joseph Hrabák, estudioso tcheco.

Nessa citação, Hrabák salientou que o Estruturalismo era um ponto de vista

epistemológico. Já aqui percebemos um argumento de influência para demarcar

posições científicas em comunidades de pesquisa. Logo após a citação, Mattoso

(1967, p. 5) diz que “o Estruturalismo é uma posição científica geral para todos os

campos do conhecimento humano”. Ao usar o pronome indefinido “todo” com o

artigo “o”, o linguista esclareceu que a linguística estrutural poderia ser usada para

explicar os fenômenos de todas as áreas, apresentando a noção de inteiro. O

linguista brasileiro, ainda nesse artigo, fez um percurso histórico do movimento

estruturalista, no qual citou vertentes do Estruturalismo, discutiu também que mesmo

dentro dos grupos que seguiam a Linguística Estrutural havia momentos de

divergência entre os pesquisadores, como, por exemplo, a discussão entre russos e

tchecos. Segundo Mattoso Câmara (1967):

Refiro-me a um vasto e complexo movimento, de origens eslavas. Teve a sua expressão definitiva no Círculo Linguístico de Praga, aonde afluíram duas correntes distintas – uma russa e outra tcheque. (MATTOSO CÂMARA, 1967, p.17)

Além dessas duas visões estruturalistas, havia também o grupo que,

conforme Mattoso Câmara (1967, p.18), “enveredou pelas diretrizes saussurianas”

(1967, p.18), comandado por Roman Jakobson e N. Trubetzkoy, grandes nomes

para a fonologia estruturalista.

Ainda nessa visão de ruptura dentro do grupo dos estruturalistas,

houve também uma divergência entre os grupos da Europa e o grupo dos Estados

Unidos, e o nome que despontou, naquele momento, foi o de Edward Sapir. Sapir,

segundo Mattoso Câmara (1967, p. 20), não se ligara a outros estruturalistas, pois

era “todo voltado para o seu próprio pensamento, não procura ligá-lo a

63

predecessores, e provavelmente não se fazia ele próprio uma ideia de background

mental imanente”.

Sapir discutiu em suas obras aspectos linguísticos e antropológicos e

trabalhou nas áreas da linguística indígena e indo-europeia. Em 1925, publicou um

artigo no periódico da Linguistic Society of America definindo o conceito de fonema e

fazendo uma separação entre fonética e fonologia. Discutiu ainda em seus trabalhos

o papel do significado na forma gramatical. Participou do grupo de estudiosos que

defendiam que a linguagem estava ancorada em um nível mental. Sapir

desenvolveu um Estruturalismo diferente do Estruturalismo europeu, pois este ainda

era, em sua visão, muito ligado às considerações de Saussure.

Outro linguista estruturalista citado por Mattoso Câmara em seu artigo

foi Leonard Bloomfield, e foi este quem apresentou o chamado “Estruturalismo

behaviorista”. De acordo com Mattoso, os estudos de Bloomfield foram inovadores

tanto na visão behaviorista quanto no chamado “mecanicismo”. O estudioso

brasileiro se posicionou primeiramente em relação ao behaviorismo e depois em

relação ao mecanicismo. Segundo ele:

[...] pesou sobre Bloomfield a influência da psicologia do behaviorismo, lançada com esse nome por John Watson e continuada por Max Meyer e Albert Weiss, principalmente. Bloomfield fez-se um convicto behaviorista em psicologia, e à luz do seu behaviorismo filosófico passou a considerar a linguagem. (MATTOSO CÂMARA, 1967, p. 23)

Ora, como sabemos, a filosofia do comportamento, ou behavior, desiste de explicar os fenômenos mentais em si mesmos. Concentra-se no estudo do comportamento humano, em que aqueles fenômenos se refletem. (MATTOSO CÂMARA, 1967, p. 23)

Bloomfield transpôs essa atitude para a linguística. (MATTOSO CÂMARA, 1967, p. 23)

Pelas considerações de Mattoso Câmara a respeito da concepção

inovadora apresentada por Bloomfield, percebemos que o linguista estadunidense

apresentou uma novidade para os estudos da Linguística Estrutural, além da visão

behaviorista, outro direcionamento está no chamado mecanicismo. O mecanicismo

era visto como:

64

[...] a estruturação de que resulta o sistema fônico de uma língua e o mecanismo das suas combinações mórficas e sintáticas. Dos segmentos fônicos, providos de valor gramatical, excluía os conceitos, que lhe dão esse valor e criam semânticas. A própria frase ou unidade de uma comunicação, era apreciada behavioristicamente pelos seus efeitos sobre o ouvinte, e não por qualquer conteúdo imanente. (MATTOSO CÂMARA,1967, p. 23)

Mattoso Câmara (1967, p.29) ao comentar a linha estruturalista

apresentada por Louis Hjelmeslev nos informa que a glossemática “não ficou

cabalmente desenvolvida” e que, mesmo inacabada, teve um enorme impacto na

comunidade linguística. A base principal dos estudos ligados à Glossemática,

segundo Mattoso (1967, p.29), era “elaborar uma linguística que se baste a si

mesma, e separá-la nitidamente da psicologia”. Além disso, a Glossemática de

Hjelmeslev propôs mudanças nos conceitos apresentados por Saussure. Mattoso

explicou a mudança apresentada por Hjemeslev:

A oposição entre a langue e parole de Saussure é substituída por uma divisão tripartida, em que, ao lado da parole, figura o uso (fr. usage) e a norma (fr. norme). O uso é a atualização da norma, que aqui é o termo equivalente à estrutura. Assim, a linguística, fixando a sua atenção na norma, pode abstrair melhor da concreticidade do uso as relações imanentes. Estas em seu conjunto, associando-as implicitamente às relações matemáticas, ele vai chamar afinal, em vez de norma, calculus. (MATTOSO CÂMARA, 1967, p. 29)

Outra corrente ligada aos estudos da Linguística Estruturalista é o

chamado funcionalismo linguístico, e sua concepção está ligada à compreensão do

funcionamento da língua. Ainda nessa vertente linguística é verificado o

desempenho de seus termos opositivos no processo da comunicação. O

funcionalismo, na época, e segundo a visão de Mattoso, visava à frase numa visão

sintagmática, e essa perspectiva, ainda segundo Mattoso, não pertencia ao

Estruturalismo puro.

Mattoso ainda se posicionou a respeito de uma nova tendência

linguística que iria abalar o espaço do Estruturalismo como dimensão moderna de

estudos linguísticos, já no final da década de 1960, no mesmo momento em que o

Estruturalismo advogava esse espaço intelectual (cf. ALTMAN, 1998; BATISTA,

2007, 2011). Ao comentar essa nova perspectiva para os estudos linguísticos usou a

palavra “lucubrações”, ao caracterizar o trabalho do gerativista Noam Chomsky. Ao

fazer esse comentário, Mattoso posicionou-se contrariamente à visão de Chomsky a

respeito do funcionamento da língua. Ainda a respeito da Gramática Gerativa,

65

Mattoso Câmara (1967, p. 32) indicou duas implicações: “reação contra o

mecanismo behaviorista” e “retorno aos objetivos da ‘gramática geral’ francesa do

século XVIII, cuja crítica, por parte da linguística do século XIX, parece a Chomsky

equivocada”. Temos aqui um posicionamento de ruptura em relação à Gramática

Gerativa.

Essa reconstrução histórica que Mattoso fez da área nos permite

identificar, no discurso do linguista, marcas da tentativa de exposição de um

pensamento que definitivamente se distanciava do grupo de especialidade que

considerava a linguagem em perspectiva diacrônica. O momento era de inovação,

uma vez que o próprio modo de pensar linguagem como estrutura, em perspectiva

sincrônica, estabelecia descontinuidade. Nesse sentido é que se encaminha a longa

história da linguística feita por Mattoso em seu discurso. Ao defender uma nova

perspectiva, e assim marcar uma retórica de ruptura, ele se alicerçou em torno de

fortes argumentos de influência, deixando claro para o leitor, em sua apresentação

da nova teoria, que o que se via em termos de tratamento linguístico estava

solidamente reconhecido no exterior e em trabalhos de fôlego. A ruptura, assim,

colocava-se em um panorama qualificado. De maneira até certo modo implícita, a

reconstrução histórica de Mattoso indicia ao leitor a retórica de ruptura ao apontar

nomes importantes que se distanciavam de uma linguística diacrônica com larga

tradição no Brasil.

A linguagem adotada por Mattoso em seu artigo evidencia o seu

posicionamento a favor desse paradigma, pois ao fazer um percurso histórico do

surgimento do Estruturalismo até a chegada do Gerativismo usou termos que

destacavam a novidade no meio acadêmico. Nesse percurso, para defender sua

ideia, Mattoso valeu-se de termos que destacavam a novidade e o rigor do novo

paradigma para se posicionar, tais como:11

A primeira posição, rigorosa e conscientemente estruturalista, é a de Saussure.

(1967,p.11)

11 Esclarecemos que as referências das fontes primárias estão destacadas em quadros.

66

Saussure põe nitidamente em pauta a necessidade de que chamou o “estudo sincrônico”,

em contraposição ao “estudo diacrônico”, dedicado ao eterno devenir das línguas.

(1967, p.12)

Daí depreendeu um fato novo. (1967, p. 15)

O conceito de sintagma, por outro lado, que é uma inovação saussuriana. (1967, p. 16)

Mattoso, depois que teve contato com as ideias de Saussure e dos

estruturalistas, começou a defender a cientificidade para os estudos linguísticos e,

para isso, a langue (língua) tornava-se o centro das pesquisas. É evidente que

nascia o movimento de ruptura, pois começaram a surgir as dicotomias: língua x

fala; sincronia x diacronia; significado x significante; relações associativas x relações

sintagmáticas. Essas dicotomias orientavam, também, formas de análise

teoricamente, estabelecendo paradigmas específicos de acordo com o que se iria

privilegiar a partir dessa perspectiva dicotômica. Por exemplo, ao grupo dos

estruturalistas, interessaria muito mais a língua como sistema do que a fala e o uso

linguístico.

Para que tenhamos ainda uma maior apreensão do pensamento de

ruptura de Mattoso, podemos observar o artigo publicado em 1966 “Para o estudo

descritivo dos verbos irregulares”, no qual o linguista, já na introdução, fazia uma

crítica em relação às gramáticas tradicionais da época. Segundo Mattoso:

A estrutura flexional do verbo, em português, não é analisada em nossas gramáticas descritivas. A exposição tradicional se limita a separar, de maneira nem sempre nítida e coerente o radical e o que chama impropriamente a “terminação”. (MATTOSO CÂMARA, 1966, p.95)

12

12 Artigo publicado no livro Dispersos de J.Mattoso Câmara Jr. de 1972. O artigo foi publicado, em 1966, na Revista Estudos Linguísticos (Revista Brasileira de Linguística Teórica e Aplicada) S.Paulo, Centro de Linguística Aplicada do Instituto de Idioma Yázigi, I (I): 16-27, 1966.

67

Ao usar expressões como “não é analisada”; “a exposição tradicional

se limita”; “nem sempre nítida e coerente”, Mattoso coloca-se contra o ensino da

língua de forma tradicional.

O linguista brasileiro, ao seguir diretrizes consideradas por ele como

mais científicas para os estudos da linguagem, discordou dos parâmetros

dimensionados pelo grupo dos filólogos, por exemplo, que defendiam os estudos

comparativo-históricos e as análises diacrônicas.

A crítica de Mattoso Câmara fica evidente em mais um trecho de “Para

o estudo descritivo dos verbos irregulares” (1966):

Impõe-se, portanto, uma nova orientação, como uma análise mórfica bem elaborada, que faça ver os constituintes elementares da formal verbal. Para tanto, temos de nos colocar na sincronia da língua atual, fixando-nos no que Saussure chamou o “eixo das simultaneidades”. Nenhuma razão histórica deve servir de base para o destaque dos constituintes. No fluir de sua história, eles se unificam, se desintegram, se eliminam, se criam, estabelecendo para cada momento, ou “estado da língua”, um quadro estrutural específico. O descritivista não se deve embaraçar com as possíveis contradições entre as suas conclusões e o que diz, por sua vez, a gramática histórica tradicional. Esta visa à explicação da origem, não à do funcionamento; e as funções de hoje não estão necessariamente ligadas às de um passado que desapareceu. (MATTOSO CÂMARA, 1966, p.96)

Ao posicionar-se em relação à terminação dos verbos irregulares,

Mattoso apontava que no Brasil não havia nas gramáticas brasileiras uma análise

descritiva, o que havia era separação do radical e a terminação do verbo, e isso

dificultava a compreensão da análise dos verbos irregulares. Esse posicionamento

marcou o que o linguista brasileiro pensava sobre os estudos ainda ligados à

Gramática Tradicional, à Filologia e à Gramática Histórico-Comparativa. O método

apresentado pela Gramática Tradicional, segundo Mattoso (1966), não era

transparente e por isso dificultava a compreensão. Ele utilizou o verbo obscurecer

para elaborar a sua crítica:

Esse método obscurece a compreensão da flexão verbal nos verbos ditos regulares, em que a um radical invariável se adjungem “terminações” padronizadas para a expressão das noções gramaticais de pessoa, tempo e modo. Fica indiscriminado a que parte da chamada “terminação” cabe a indicação de cada uma dessas noções gramaticais, e com isso dificulta-se evidentemente, a apreensão e o correto manuseio das formas, que se intenta fazer memorizar em bloco. (MATTOSO CÂMARA, 1966, p.95)

68

Segundo Mattoso (1966, p. 96), o ensino tradicional a respeito de

verbos tornava-se inconveniente principalmente nos chamados verbos irregulares,

pois esses, na visão de Mattoso, quando conjugados não seguiam a padronização

dos verbos regulares: “Aí, as nossas gramáticas apenas enumeram os verbos, que

interpretam (nem sempre acertadamente) como irregulares, em ordem alfabética,

seriando as formas temporais da cada uma”. Ele ainda salientou que esse método

deixava passar “despercebidas realidades de ordem estrutural, cujo conhecimento

tornaria mais compreensíveis as formas irregulares”.

Ao escrever o artigo “O Estruturalismo Linguístico”, o posicionamento

de Mattoso é sutil, pois ele trouxe a história do Estruturalismo, ao defender a

legitimidade acadêmica dessa vertente linguística. O Estruturalismo na década de

1960 já era bem estabelecido no meio científico, e por isso os argumentos de

Mattoso Câmara foram implícitos, não era necessário elaborar uma defesa. Os

trechos a seguir demonstram a sutileza da retórica.

[...] Abrange o estudo do homem em sua criação cultural, e, pois, nesta última também o

estudo linguístico. (1967, p.6)

Assim, a sua famosa dicotomia entre forma externa e forma interna é a primeira afirmação

nítida e coerente do Estruturalismo linguístico. Diga-se de passagem que já nessa

manifestação inicial se admitia a estruturação semântica desmentido prévio à identificação

arbitrária que se faz às vezes entre estruturalismo e anti-mentalismo. (1967, p.11)

É uma asserção que não precisa propriamente ser provada, pois está no consenso geral.

O que importa estabelecer com clareza são as origens dessa posição e o que ela significa

na história do Estruturalismo linguístico. (1967, p. 11)

[...] Sentiu ainda, porém, muito além disso, a outra consequência que advinha dessa

compreensão sociológica. Dela desentranhou o conceito de sistema para língua, em

linhas pela primeira vez estruturalistas em linguística. (1967, p. 13)

69

Ora, a estrutura frasal é, em última análise, um relacionamento de funções. Chega-se

assim a uma modalidade do Estruturalismo linguístico, que é o funcionalismo e mais tarde

apreciaremos em suas variedades. (1967, p. 17)

Ora, como sabemos, a filosofia do comportamento, ou behavior, desiste de explicar os

fenômenos mentais em si mesmos. Concentra-se nos estudos do comportamento

humano, em que aqueles fenômenos se refletem. (1967, p.23).

O que interessa mais propriamente registrar é o caráter estruturalista definitivo de todas

essas abordagens mais ou menos “mecanicistas”. (1967, p. 25)

Como já dito anteriormente, o artigo “O Estruturalismo Linguístico” de

Mattoso Câmara pode ser classificado como artigo programático, ainda que não

apresente novos estudos linguísticos, mas sim a história do Estruturalismo, e, sendo

assim, o linguista brasileiro defendeu a legitimidade dessa área linguística.

Percebemos nos trechos indicados acima que Mattoso Câmara, de forma muito

discreta, defendia a continuidade dos estudos linguísticos relacionados ao

movimento estruturalista. Esse discurso implícito revelava que o programa

estruturalista era o melhor e o mais científico.

Essa reconstrução histórica elaborada por Mattoso Câmara constitui a

sua retórica de ruptura, pois, como já dissemos anteriormente, o artigo “O

Estruturalismo linguístico” não trouxe novos métodos ou técnicas para apresentar

um novo conceito linguístico. A história do Estruturalismo em suas várias etapas por

si só é um discurso de ruptura, pois é por meio da história já consolidada que o

linguista brasileiro advogou por uma descontinuidade com a tradição brasileira dos

filólogos e dos dialetólogos, ou seja, um momento de olhar para os estudos da

linguagem e adotar um novo paradigma com uma história respeitada.

Mattoso Câmara foi um grande intelectual e consequentemente um

grande líder e formador de ideias a respeito dos estudos relacionados à linguagem.

70

Sabemos que o linguista brasileiro não formou um grupo de especialidade que

pudesse debater o Estruturalismo aqui no Brasil, entretanto, foi considerado como

líder intelectual de uma geração que começou a fazer linguística como uma prática

científica, como ele pregava em seu livro Princípios de Linguística Geral, o primeiro

manual de linguística em língua portuguesa publicado no Brasil.

Além disso, foi por meio das aulas de linguística ministradas pelo

professor Mattoso Câmara no Distrito Federal, entre os anos de 1938 e 1939 na

Faculdade de Filosofia e Letras, que essa ciência começou a se articular como

disciplina, tornando-o líder intelectual entre as décadas de 1930 a 1960.

Na década de 1950, Mattoso Câmara retornou à Faculdade Nacional

de Filosofia e também foi contratado pela Pontifícia Universidade Católica de

Petrópolis. Também participou como professor convidado em algumas instituições

acadêmicas por todo o Brasil.

Outro fato que marcou Mattoso Câmara como líder intelectual que

defendia os estudos linguísticos ligados ao Estruturalismo foi o curso ministrado por

ele na Universidade do Distrito Federal. Segundo Altman (1998):

[...] embora efêmero, marcou, ao mesmo tempo, nas décadas seguintes, o que a literatura crítica considerou o início do processo de institucionalização da Linguística no Brasil e o início de uma nova orientação teórica e metodológica para os estudos linguísticos efetuados até então.[...] (ALTMAN, 1998, p.108)

Além de Mattoso Câmara, outros estudiosos da Linguística, nas

décadas de 1960 e 1970, discutiram a questão da língua. Esse grupo tinha como

pesquisadores Aryon Rodrigues, Francisco Gomes Matos, Ataliba Teixeira de

Castilho, Cidmar Pais, Monica Rector, Izidoro Blikstein, Carlos Franchi, e esses

jovens foram considerados a primeira geração de linguistas no Brasil.

Nos anos 1960, a Universidade de Brasília e o Museu Nacional

tentaram formar grupos para discutir a Linguística no Brasil, entretanto não tiveram

êxito. A pesquisa linguística nesse período aconteceu, porém, por iniciativas

individuais e fragmentadas porque nesse momento havia o interesse estava voltado

para a Filologia e a Dialetologia.

71

Segundo Altman (1998) a pesquisa linguística se consolidou no

momento da reunião preparatória para a fundação da primeira sociedade científica

do país em 1968. Para a autora:

O primeiro grupo de profissionais que passou, a partir de então, a se perceber e autodenominar ‘linguista’ surgiu, portanto da polaridade que se havia criado entre o ensino, de um lado, e a pesquisa, de outro. [...] (ALTMAN, 1998, p. 272).

Podemos dizer, em forma de síntese, que Mattoso Câmara, ao

apresentar o Estruturalismo, estabeleceu um discurso de descontinuidade em

relação aos estudos relacionados à Filologia e à Dialetologia, uma vez que ele já

compartilhava de uma perspectiva que partia de uma visão sincrônica da língua, em

oposição aos filólogos e suas pesquisas diacrônicas, por isso consideramos que

houve uma ruptura em relação aos estudos linguísticos diacrônicos no Brasil.

3.2 Gerativismo, Miriam Lemle e a chegada do "novo" na Linguística

Miriam Lemle é a autora do segundo texto programático que iremos

analisar. Ela é atualmente professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) na linha de pesquisa em Gramática Gerativa, da qual é considerada como

pioneira, aqui no Brasil, consequência de sua apresentação da teoria gerativista

desenvolvida por Noam Chomsky, quando publicou em 1967, na revista Tempo

Brasileiro, o artigo programático “O novo Estruturalismo em Linguística: Chomsky”

(cf. BATISTA, 2007; 2010).

A linguista graduou-se em 1959 em Letras Neolatinas pela UFRJ e no

ano de 1962 começou a trilhar o seu caminho na área da Linguística. Defendeu sua

dissertação de mestrado em 1962 pela Universidade da Pensilvânia e, assim que

retornou ao Brasil, participou com outros pesquisadores e docentes da criação da

primeira pós-graduação em Linguística do país, inicialmente no Museu Nacional e

depois na UFRJ. Em 1980, apresentou sua tese de doutoramento pela UFRJ e, logo

em seguida, começou a participar das atividades da Faculdade de Letras da mesma

72

universidade. Coordenou e foi vice-coordenadora do programa de pós-graduação

em Linguística até 1986, já em 1985 foi bolsista do Programa Fullbright e fez seu

pós-doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, onde estreitou seu

contato com Noam Chomsky. No período de 1987 a 1989 foi presidente da

Associação Brasileira de Linguística e, em 2007, recebeu pela UFRJ o título de

Professor Emérito. Pelo percurso apontado fica evidente que o foco de estudo de

Miriam Lemle sempre foi a Gramática Gerativa, nos diferentes modelos

desenvolvidos por Noam Chomsky.

Diferentemente do Estruturalismo, que já estava consolidado no meio

acadêmico no final da década de 1960, o Gerativismo de Chomsky chegava ao

Brasil pelas mãos e pensamentos de Lemle com a publicação do artigo “O novo

Estruturalismo em linguística: Chomsky” em 1967 (cf. BATISTA, 2007; 2010).

Salientamos que nesse mesmo número da revista, Mattoso reafirmava a sua

preferência pelo Estruturalismo linguístico, ou seja, temos na Linguística brasileira

uma superposição de dois programas de investigação diferentes, ao mesmo tempo

reivindicando espaço acadêmico e institucional, clamando no mesmo número da

mesma revista pela adesão de pesquisadores, por meio de dois discursos que não

tinham outro objetivo a não ser convencer os linguistas da validade dos paradigmas

que apresentavam.

Nesse período, linguistas que pertenciam a grupos de especialidade da

Filologia, da Dialetologia e mesmo da Linguística Estrutural começavam a perceber

que iriam dividir espaços institucionais já consagrados com os jovens linguistas que

iniciavam estudos em Gramática Gerativa, muitos deles com passagens em centros

internacionais importantes (cf. BATISTA, 2007; 2010).

Altman (1994) salienta que, no final da década de 1960 e início da

década de 1970, o Estruturalismo começava a ser negado como único e

predominante referencial teórico na Linguística, e muitos dos resultados de

pesquisas estruturalistas passavam a ser rejeitados como modelo adequado de

descrever e analisar fenômenos linguísticos. Estávamos, desse modo, em um

movimento de descontinuidade nos estudos sobre a linguagem no Brasil, pois em

direções opostas começavam a ir, de um lado, jovens pesquisadores que aderiram

73

ao forte discurso de ruptura de Lemle em 1967, tornando positivo o resultado de seu

texto programático, e de outro lado uma geração de pesquisadores que também

estava em busca de um ideal de cientificidade moderno (em contraponto com a

antiga geração de filólogos, dialetólogos e gramáticos tradicionais), mas que de

modo peculiar encontrava um embate já em seu nascedouro. Duas retóricas da

novidade buscando ruptura na Linguística brasileira da década de 1960.

De acordo com Altman (2004), esse conflito de interesses, sem dúvida,

permaneceria a característica de uma Linguística brasileira de recepção e com

feição de pluralidade, subdividida em diferentes grupos de especialidade, cada um

com sua retórica própria, buscando adesão de jovens e talentosos pesquisadores.

Lemle, no artigo publicado na revista Tempo Brasileiro, logo no

primeiro parágrafo, posicionou-se com forte retórica de ruptura a favor das

pesquisas difundidas por Chomsky. Segundo a pesquisadora:

Está se formando, ao redor de Chomsky, uma corrente revolucionária na linguística: é a chamada gramática gerativa-transformacional. Novas questões, novas posições teóricas, novos rumos de investigação, novas formas de descrição vêm sendo propostas. (LEMLE, 1967, p.55)

Percebemos de imediato no discurso, e evidentemente em seu

posicionamento como linguista de um grupo de especialidade no cenário nacional

(cf. BATISTA, 2007; 2010), que se iniciava uma nova perspectiva para os estudos

linguísticos. O adjetivo “novo” utilizado quatro vezes pela linguista demarcou sua

retórica de ruptura em relação ao Estruturalismo, que na visão de Lemle já estava

ultrapassado, já se tornara “velho”. Não podemos nos esquecer da dimensão

ideológica que todo palavra carrega, uma vez que é dos semas de cada item lexical

que saem as camadas de sentido que chegam veiculando ideologia aos receptores.

A insistência na caracterização de novidade das ideias de Chomsky estava marcada

de modo crucial na retórica de Lemle, que já assegurava em sua superficialidade

textual a ruptura com qualquer outra possibilidade teórico-metodológica de pesquisa

linguística.

Outra expressão utilizada por Lemle para marcar o seu posicionamento

foi “uma corrente revolucionária”. Se buscarmos o significado da palavra

“revolucionário” em qualquer dicionário, descobrimos que vem da palavra

“revolução”, termo que surgiu no período do Renascimento entre os séculos XIV e

74

XVI e em princípio foi utilizado nas Ciências Naturais. Já no século XVII assumiu

uma conotação política, momento em que foi usado para indicar acontecimentos que

provocariam mudanças na ordem social de uma nação. O termo também foi usado

nas várias guerras que desejavam romper com os ideais antigos. Ao usar a palavra

“revolucionária”, dando continuidade a essa história dos sentidos da palavra (uma

história ideológica e veiculadora de sentidos que buscam transmitir valores,

portanto), Lemle pontuou uma retórica de ruptura em favor de descontinuidades com

paradigmas presentes na Linguística brasileira, como o Estruturalismo (que na

verdade, como dissemos, era contemporâneo ao programa gerativista) e a

Gramática Tradicional, rompendo assim, programaticamente, com as ideias

linguísticas que perduraram por muito tempo no Brasil. A linguista afirmou que esses

ideais linguísticos, ou melhor, que o novo Estruturalismo, o programa gerativista,

surgia com metas ambiciosas.

Aqui cabe uma breve reflexão: é possível interpretar a escolha de

nomeação do programa gerativista como "novo Estruturalismo" como índice da força

das ideias estruturalistas na ciência da linguagem na época (década de 1960); se a

autora propunha de fato ruptura com o que se entendia como programa

estruturalista em seu viés descritivo (principalmente com influência de uma prática

de análise com orientação behaviorista, presente, por exemplo, no distribucionalismo

norte-americano), também mantinha uma ligação com esse programa, de certo

modo, pois ainda há um "Estruturalismo" em jogo.

Lemle posicionou-se também ao dizer que os estudos em Gramática

Gerativa passavam (como ainda passam) por reformulações em seu processo de

elaboração, e essas alterações deixavam os leitores confusos, além disso, não havia

interesse dos "transformacionalistas" de divulgarem de forma organizada o que seria

a Gramática Gerativa. Esse comportamento era visto pelos estruturalistas

descritivistas de modo crítico, como uma teoria ainda não formatada em definitivo,

ainda em processo. No entanto, na retórica de linguistas pertencentes ao grupo de

gerativistas era exatamente essa constante transformação teórico-metodológica que

garantia a caracterização como ciência, uma vez que esta sempre está em busca de

respostas para problemas, o que não pode, de modo algum, permitir, na visão dos

gerativistas, a ideia de estaticidade e ciência pronta. Mais uma vez, imerso no

75

discurso adotado no texto programático de Lemle, vemos os índices de uma retórica

que indica descontinuidade não só com um paradigma científico como o

Estruturalismo, mas com toda uma forma de conceber o que é ciência.

Outro posicionamento de ruptura apresentado no artigo de Lemle

(1967) é o que diz respeito à sua vinculação à Gramática Gerativa:

[...] Chomsky visa a uma meta mais ambiciosa de teorização do que a de estipular meramente um instrumental terminológico e notacional capaz de descrever a forma externa dos dados das línguas. Querem eles que a terminologia, a simbolização e as operações efetuadas com os símbolos empregadas nas descrições linguísticas, constituam uma representação forma das aptidões e conhecimentos intuitivos do falante [...](LEMLE, 1967, p.56)

A escolha lexical, ideológica por consequência (como apontamos),

pelas palavras e expressões como “meta ambiciosa” e "estipular meramente" indicia

sentidos e orienta o leitor para a compreensão de que o linguista norte-americano

apresentava algo inovador e não mais pesquisas meramente descritivas, pois o que

estava em voga era discutir uma gramática da competência, ou seja, um projeto

ambicioso para a época, buscando ruptura inclusive com o que se considerava como

nível de análise linguística adequado, não somente a fonética, a fonologia e

morfologia, mas também os componentes sintáticos e semânticos (o que provocava

uma ruptura epistemológica com o que o programa descritivista de base

estruturalista definia como níveis preferenciais de análise). Além disso, o discurso de

descontinuidade de Lemle apresentava uma nova vertente linguística, que colocava

no centro de observação o conhecimento inato do falante.

O grupo de especialidade, ao qual Lemle se vinculava por meio de sua

retórica, destacava o papel de Chomsky (lembre-se de que estamos diante, na

verdade, de uma resenha da obra do autor norte-americano), que desconstruía, na

proposição teórico-metodológica gerativista, o que fora proposto pelas teorias

mecanicistas da língua, principalmente com uma Linguística estrutural tal como

praticada por Leonard Bloomfield.

Na perspectiva da teoria gerativista, segundo Lemle (1967, p.58), “o ser

humano nasce dotado de um mecanismo formador de conceitos já inerentemente

bem especificado”. Esse conhecimento deixa de ser indutivo e passa a ser dedutivo.

76

Está nesse deslocamento teórico a diretriz para a construção de um outro programa

de investigação, caracterizado como de correspondência, distante do que propunha,

como dissemos, um programa descritivista.

Desse modo, e tal como ressaltado na retórica adotada por Lemle, o

conceito de “língua” apresentado pelos gerativistas veio para desestruturar o que

fora dito anteriormente por outros programas, estabelecendo não mais análises

isoladas de línguas, mas um objetivo mais amplo e ambicioso em busca de

universais linguísticos:

[...] determinar a forma geral das gramáticas, ou seja, o conjunto de traços comuns a todas as línguas naturais do mundo, em oposição às gramáticas possíveis para sistemas simbólicos arbitrários. Esses traços comuns são os chamados universais linguísticos. (LEMLE, 1967, pp. 58-59)

A linguista brasileira (1967, p.59), ao se posicionar em relação aos

chamados “universais linguísticos”, mais uma vez utiliza-se de um adjetivo para

destacar a visão dada por Chomsky: “notável diferença de conceitos”. Além disso,

afirma categoricamente que os estudos de Chomsky se diferenciavam de tudo que

fora apresentado desde a “primeira metade do século".

Lemle (1967, p. 64) também destaca as alterações metodológicas que

a Gramática Gerativa estabelecia. A apresentação formal da estrutura, nas análises

sintáticas, por exemplo, também era vista como inovadora, na forma de diagramas

em árvore para descrever a base da oração e suas transformações. Da oração, saía

a parte conhecida como locução nominal e locução verbal. Outro fato discutido: as

noções funcionais de sujeito, predicado, objetos entre outras, que para Chomsky

apresentavam “noções relacionais, que estão implícitas nas regras de estrutura

frasal, e não devem ser confundidas com noções categoriais”. Ao apresentar essa

forma de analisar a sentença, Lemle afirmava que Chomsky considerava uma falha

conceitual presente nas gramáticas então conhecidas e divulgadas, que ignoravam a

necessidade de explicações abrangentes e universais para fenômenos de natureza

sintática, mais uma vez, movimento de ruptura e estabelecimento de

descontinuidade, elementos reforçados na retórica de Lemle:

77

[...] Mostra como, assim usados, são redundantes e desnecessários e como, na verdade, estão implícitos nelas, delas derivando-se por definição. E estas definições não pertencem às gramáticas de cada língua em especial e sim às convenções terminológicas da teoria gramatical em geral. (LEMLE, 1967, p. 64)

Lemle salientou em seu artigo que a teoria gerativista ainda estava em

processo, e a apresentação dos resultados dessa pesquisa ainda não indicava

“soluções prontas”, pois a cada discussão surgiam outras possibilidades, que eram

debatidas. Abordou ainda os pontos fracos da teoria, como por exemplo, a

incapacidade de “expressar certo tipo de relações semânticas íntimas que se

encontram dentro de subsistemas conceituais estruturados” (LEMLE, 1967, p. 66), e

mencionou a linguagem do pesquisador norte-americano ao expor sua teoria, para

Lemle a linguagem chomskyana “não é simples”, pois era comum o uso de termos

matemáticos para explicar a nova teoria. De acordo com Lemle:

[...] Não é sensato esperar que se possa tratar por meio de um arsenal teórico simples um fenômeno complexo. Nessa luz, não há alterativa mais adequada para a descrição do fenômeno linguístico do que uma teoria rica e a linguagem algébrica. A algebrização, na verdade, passou a ser uma necessidade de princípios para a linguística, uma vez dado o passo para o Estruturalismo, isto é uma soma arbitrária de fatos isolados (nomes de coisas) como vê o filólogo tradicional e sim um sistema simbólico de um poder infinito e altamente estruturado. (LEMLE, 1967, p. 67)

[...] Imagine-se o que não seria de disperso e pouco revelador uma equação de segundo grau expressa em palavras em vez que em números e símbolos de incógnitas. (LEMLE, 1967, p. 67)

A linguista brasileira tornou-se grande aliada para disseminar, aqui no

Brasil, a Gramática Gerativa e, por meio do artigo publicado em Tempo Brasileiro,

transmitiu para vários estudiosos aquilo que ainda era desconhecido no cenário

nacional. A partir daí, em crescente processo de institucionalização e afirmação de

legitimidade acadêmica, alguns nomes como Lúcia Lobato, Mary Kato, Leila

Barbara, Mário Perini, Eunice Pontes despontaram em suas universidades como

divulgadores e formadores de pesquisadores em Gramática Gerativa (cf. BATISTA,

2007, 2010).

A linguista continuou nesse percurso, por exemplo, em 1974, em seu

artigo, "Analogia na morfologia: estudo de um caso". Nesse texto, a retórica de

78

ruptura também destacou a descontinuidade e a novidade. Segundo Lemle (1974, p.

19): “Observe-se que a condição acima corrobora uma das assertivas mais

importantes da moderna fonologia gerativa: o componente fonológico leva sua

informação gramatical”. Ao se valer da expressão “mais importantes da moderna

fonologia gerativa”, a autora demarcou um discurso não só de adesão ao

Gerativismo de Chomsky, como também de ruptura com o que se produziu em

matéria de fonologia antes da Gramática Gerativa.

Em 1984, momento em que a Gramática Gerativa já se encontrava

como programa bem estabelecido e reconhecido na Linguística brasileira (cf.

ALTMAN, 2004; BATISTA, 2007; 2010), Lemle publicou pela editora Ática o livro

Análise Sintática – Teoria Geral e Descrição do Português. A obra foi dividida em

duas partes. Na primeira parte foi apresentada a argumentação antiestruturalista,

mais uma vez a evidência de um discurso de ruptura. Lemle (1984, p.7) afirmava

que “é dentro da perspectiva de uma rejeição a um dado status quo científico que os

primeiros escritos de Chomsky devem ser entendidos". Outro trecho em que Lemle

(1984) construiu sua retórica em favor do Gerativismo de Chomsky, estabelecendo

ruptura com a corrente estruturalista ao apontar a relevância e abrangência da

proposta que então reforçava em seus textos:

É importante compreender que a postura aparentemente puramente científica que Chomsky se armou para combater desembocava num corolário de consequências filosóficas que atingiam o plano social e do ético [...] (LEMLE, 1984, p.7)

Ainda nessa linha argumentativa, Lemle (1984) traçou um panorama do

programa estruturalista. Nas palavras da linguista, a presença de uma retórica que,

na década de 1980, já via suas ambições de ruptura darem resultados positivos:

Defrontada com o panorama ideológico global da época, a concepção da estrutura profunda e das transformações trazia consigo não só a negação do modelo estruturalista da gramática, mas também a inviabilidade do modelo behaviorista de aprendizado e comportamento. (LEMLE, 1984, p.11)

Arrisco-me a afirmar que, mais do que as insuficiências estritamente linguísticas do modelo estruturalista de gramática, o que de início pressionou Chomsky a argumentar mostrando a necessidade de uma maior abstração do nível de representação sintática foi a repugnância que lhe causava a visão mecanicista do comportamento humano na perspectiva da teoria behaviorista. Assim, era-lhe mister incompatibilizar linguística e behaviorismo. A proposição da estrutura profunda cumpriu esse fim ideológico. (LEMLE, 1984, p.11)

79

Abaixo, trechos do posicionamento de Lemle no artigo de 1967, para

mais uma vez evidenciarmos elementos de sua retórica de ruptura:

Note-se que, com isto, fica postulada uma hipótese bastante ousada e específica sobre o

mecanismo da aquisição linguística: tanto a criança no aprender a falar quanto o adulto no

aprender novas línguas só poderiam realizar essa tarefa imensamente complexa se, ao se

aproximarem dos dados, já possuíssem um esquema prévio, um pré-conhecimento tácito

dos universais linguísticos. (LEMLE, 1967, p.58)

O modelo do processo psicológico de aprendizagem aí sugerido opõe-se diametralmente

ao processo pelas teorias mecanicistas que veem a aprendizagem como uma fixação de

hábitos baseada na seleção de associações estímulo-resposta, em que ela não passaria

de uma soma arbitrária de reflexões condicionadas. A implicação psicológica mais geral

deste novo ponto de vista é a de que o ser humano nasce dotado de um mecanismo

formador de conceito já inerentemente bem especificado, próprio da espécie, que entra

em funcionamento diante dos dados da realidade e produz aprendizagem de um

determinado tipo e não outra. (LEMLE, 1967, p. 58)

A teoria linguística, ao definir abstrata e formalmente o conceito “língua” estaria não só

apresentando inferências a respeito das estruturas dos dados linguísticos, mas ao mesmo

tempo definido a parte inata da capacidade humana da linguagem. (LEMLE, 1967, p.58)

Por meio desse discurso a favor da Gramática Gerativa, Lemle

tornou-se líder intelectual de um grupo, que de fato se institucionalizou na linguística

brasileira nas décadas de 1970 e 1980, sinal de que a retórica de Miriam Lemle teve

sucesso e ganhou adeptos.

80

3.3 Construturalismo, Mattos e Back e a ruptura total pretendida:

Passamos a analisar o discurso apresentado pelo movimento

construturalista. Para tanto, vamos considerar um texto programático escrito por um

dos seus propositores, Geraldo Mattos, no entanto, deve-se entender que o

movimento construturalista é obra de uma dupla, Mattos e Eurico Back. Desse

modo, fazemos a seguir alguns comentários sobre o percurso de Mattos e de Back

também para uma compreensão maior do que foi a proposta construturalista,

apresentada no artigo programático que em seguida é objeto de nossa análise

historiográfica.

Geraldo Mattos Gomes dos Santos (1931-2014) concluiu seus cursos

de Letras e de Direito em 1958, e em 1962 tornou-se doutor em Letras. Ministrou

aulas a convite de Eurico Back na Universidade Católica em Curitiba, estabelecendo

uma longa parceira na vida acadêmica e nas publicações didáticas e teóricas. Foi

com Back que Mattos propôs na década de 1970 um programa de investigação que

seria reconhecido como Gramática Construtural (cf. BATISTA, 2011; 2013b). Os dois

escreveram a Gramática Construtural da Língua Portuguesa em 1972, obra

fundamental para a proposição e explicitação da Gramática Construtural, ou

Construturalismo, composta por dois volumes e dividida em quatro partes:

Comunicação, Léxica, Semântica e Estilística.

Back e Mattos também publicaram livros para escolarização básica.

Geraldo Mattos escreveu a coleção “Nossa cultura”, destinada para o ensino do 2.º

Grau. Em 1974, novamente com Back, publicou o livro Prática de Ensino de Língua

Portuguesa, destinado à formação de professores. Os autores, evidenciando uma

parceria sólida, publicaram ainda obras destinadas à preparação para concursos

públicos e para redação.

Em 1973, foi publicado o primeiro volume de um periódico que teria

como função principal divulgar a teoria que Mattos e Back então propunham, no sul

do país: a Construtura – Revista de Linguística, Língua e Literatura.

De todas as obras publicadas pelos autores, a Gramática Construtural

da Língua Portuguesa foi a que mais repercutiu no meio acadêmico, principalmente

81

no sul do país, uma vez que é inegável o espaço de polêmica - aceitação ou não -

em que a proposta construturalista esteve envolvida (cf. BATISTA, 2013). Segundo

Mercer (2013), Back e Mattos, ao elaborar essa gramática, pretendiam:

[...] construir uma alternativa em dois campos: no estudo da língua portuguesa, apresentando um modelo de descrição em bases científicas, que superasse as limitações da gramática tradicional, e no ensino da língua materna, propondo uma metodologia baseada no enriquecimento das habilidades linguísticas em lugar da esterilidade das práticas gramaticalizantes. (MERCER, 2013, p.11)

O Construturalismo sofreu influência da Glossemática de Louis

Hjelmslev e também das propostas da Tagmêmica, uma das vertentes do

Estruturalismo norte-americano. No entanto, Back e Mattos, em sua retórica de

ruptura com paradigmas de investigação linguística não só nacionais como os

clássicos internacionais já consagrados na década de 1970, rejeitaram qualquer

influência em sua proposta construturalista, divulgada insistentemente por eles como

inovadora e distante de diálogos muito próximos com outros programas de pesquisa

linguística. No entanto, a ampla análise que Batista (2013b) faz do movimento nos

possibilita verificar que, na verdade, a retórica adotada pelos dois deixava de

apontar com mais propriedade diferentes influências, principalmente da Linguística

norte-americana estruturalista (de base behaviorista), que estavam, sim, presentes

em seu trabalho.

Em um Manifesto, publicado no periódico Construtura, em 1973, Back

e Mattos apresentaram os conceitos da Gramática Construtural, determinando com

forte retórica de ruptura seu espaço em relação a outros paradigmas de pesquisa

linguística (já institucionalizados e reconhecidos na época), e elaboraram um quadro

comparativo entre o Construturalismo e o Estruturalismo. Nessa atitude dos

linguistas, é inegável a presença de um desejo de descontinuidade com o que se

produzia em Linguística na época.

Na comparação, os autores afirmaram que a Linguística Construtural

opunha-se a uma Linguística Estruturalista. Segundo Back e Mattos (1973, p.112),

“o Construturalismo se opõe diametralmente ao Estruturalismo (ou Estruturalismos)

em pontos fundamentais”. Percebemos por meio do uso do plural “Estruturalismos”

82

que a nova teoria linguística apresentada pelos pesquisadores brasileiros era única

e, por isso, não poderia ser comparada com as várias vertentes dos estudos

estruturalistas. Aqui fica caracterizado o discurso de ruptura com um movimento que

também estava em evidência na época.

O quadro apresentado pelos autores da Linguística Construtural é o

seguinte:

Estruturalismo Construturalismo

Método indutivo. Método dedutivo.

Articulatório: dos menores elementos às

formas maiores.

Analítico: das formas maiores aos menores

elementos.

Desprezo da semântica: limita-se ao estudo

do significante; ou em outra corrente

estruturalista, análise com base no

significado.

Valoração da semântica: importante é a

mensagem; o significante é apenas veículo.

Sistema: conceito de conjunto de elementos

opositivos.

Sistema: conceito de conjunto de elementos

constantes.

Conceito de língua como um “corpus”, um

estoque: insistência na imitação, repetição.

Conceito de língua como estoque e como estilo:

insistência no domínio passivo e no domínio ativo.

Quadro 5 – Quadro comparativo Estruturalismo x Construturalismo - Fonte: Construtura, ano 1. nº 1 (1973, p.113)

Nessa comparação, por exemplo, os autores foram enfáticos ao dizer

que o Estruturalismo apresentava “desprezo” pela semântica; em contrapartida, na

proposta construtural, havia uma “valoração” dos estudos do significado linguístico.

Nessa mesma linha, Back e Mattos elaboraram também um quadro

comparativo com a Gramática Transformacional. As comparações apresentadas

pelos autores são estas:

83

Transformacionalismo Construturalismo

O ponto de partida. Escolha de “sentenças

básicas”: todas as estruturas são

transformações “básicas”.

Tal escolha é arbitrária. Existem transformações

(históricas e estilísticas); mas nem toda língua é

transformação.

Desenvolvimento dedutivo das “sentenças”

derivadas.

Desenvolvimento dedutivo das formas maiores até

os elementos menores com base na Comunicação.

Estruturas superficiais e estruturas

profundas: explicação daquelas por

intermédio destas.

As “estruturas profundas” são a construção do

trajeto semântico. As “estruturas táticas”, que

devem ser explicadas a) como significantes: b)

como portadores possíveis “estruturas profundas”

diferentes; pois o sinal é convencional”.

Predomínio da semântica sobre as

estruturas de superfície.

Separação do estudo semântico do estudo lexical: o

significante é vagão, cuja estrutura deve ser

explicada, independentemente da eventual carga

que possa estar transportando.

Maior insistência na “performance” do que

na “competence”; não há o levantamento

total dos níveis de articulação existentes na

língua e de suas variantes.

Insistência no estoque (“competence”) e na

atuação, domínio ativo, em três graus, um de

imitação e dois de criatividade (“performance”).

Quadro 6 – Quadro comparativo Transformalismo x Construturalismo Fonte: Construtura, ano 1. nº1 (1973, p.113-114)

Outro ponto discutido nesse mesmo artigo foram as características do

Construturalismo. São quatorze itens que enaltecem, por exemplo, os conceitos

relacionados à fonologia, morfologia e sintaxe. Em sua retórica, utilizaram termos

como “nova concepção” e “divisão diferente da Gramática”, ou seja, nessa vertente

linguística seria apresentada uma nova ideia para o ensino de língua e esse ensino

também seria diferente.

Na apresentação do primeiro volume do periódico Construtura, Geraldo

Mattos já nos informava o motivo da proposta:

Atendendo essa dinâmica de descoberta, o Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Católica do Paraná lançou-se, também, à conquista do futuro. Uma década de pesquisas no campo da linguística assegurou-nos novos métodos e novas técnicas de entrada nas ciências e na arte da linguagem. (MATTOS, 1973)

13

Nessa apresentação, Mattos utilizou adjetivos como “novos” e “novas”

para dizer que o Construturalismo apresentaria aos pesquisadores da Linguística um 13 Não há indicação de página na apresentação do periódico da revista Construtura (1973).

84

olhar inovador para os estudos da linguagem, isso denota que todos os estudos

anteriores tornavam-se, a partir de então, velhos.

Para destacar a importância da proposta construturalista, também

buscou apontar a necessidade da formação de um grupo de especialidade no

momento em que usou a expressão “a conquista do futuro”. Ao usar esses termos,

o linguista vislumbrava a formação de um grupo que o apoiasse para expandir a

Linguística Construtural; o que de fato não ocorreu de modo tão abrangente quanto

Mattos e Back desejavam.

Segundo Altman (1998), essa expansão não aconteceu, entre outros

fatores, por conta da aproximação de propostas construturalistas com princípios do

Estruturalismo (ainda que Mattos e Back negassem essa característica de sua

proposta), e isso, para aquele momento, não seria visto com bons olhos, diante da

novidade da Gramática Gerativa:

[...] o modelo, enquanto tal, foi rejeitado pelo restante da comunidade acadêmica que o percebeu fortemente vinculado a princípios estruturalistas (tagmêmicos), incompatíveis com o novo ideal de cientificidade gerativista (chomskiano) que começava a entrar em evidência. (ALTMAN, 1998, p.281)

Em busca de um posicionamento de descontinuidade, nos dizeres de

Mattos e Back apareceram expressões como “não nos filiamos a nenhuma das

correntes existentes”. Em um trecho como esse percebemos que os autores não

queriam unir-se a grupos ligados a outros movimentos linguísticos, pois na visão de

Mattos e Back (1973), ainda na apresentação dos seus objetivos:

a) Nenhuma escola ou corrente da Linguística Moderna conseguiu fazer uma descrição coerente de todos os fatos de uma língua. (Apenas fatos isolados ou de fatos muito delimitados.)

b) Todas as escolas trabalham fundamentadas em algo científico (parte de suas afirmações são verdadeiras); mas ou se baseiam em premissas falsas e têm procedimentos científicos, ou o procedimento é truncado por falta de uma visão total e coerente dos fatos linguísticos, ou os estudos são tremendamente incompletos por não terem encontrado os meio adequados.

c) Nenhuma corrente conseguiu, por isso, estabelecer a Linguística num

corpo de doutrina global e coerente, sistematizando todos os fatos da linguagem. (BACK e MATTOS, 1973, p.1)

85

Ao escolher os artigos indefinidos “nenhuma” e “toda” os autores

negaram as pesquisas realizadas anteriormente, além disso, outras expressões

como “premissas falsas”, “procedimentos científicos truncados”, “falta de uma visão

total e coerente dos fatos linguísticos” demonstram que os autores da Linguística

Construtural vieram para criar polêmicas com outros grupos que discutiam a

linguagem na mesma época.

No artigo “A linguística construtural” publicado na Revista Brasileira de

Linguística em 1974, Mattos defendeu a questão da cientificidade para os estudos

relacionados à linguagem. Para ele era necessário “ter assunto, postulados e

instrumento de trabalho” (1974, p. 22-23). Postulados para o linguista seriam “as

verdades essenciais em que se baseiam todas as outras conclusões” (1974, p. 22-

23).

Mattos no decorrer de seu artigo explicou que “a boa escolha dos

postulados e da estrita obediência a eles decorre a coerência da pesquisa. O bom

postulado nem se comprova nem se refuta” (1974, p.27).

Para justificar o assunto da pesquisa, Mattos buscou usar termos

diferentes daqueles que eram usados nas gramáticas tradicionais. Segundo o autor:

É preciso, portanto, criar uma nova linguagem que nos sirva de instrumento de pesquisa. A essa linguagem chamamos de metalinguagem. (MATTOS, 1974, p.29)

Ao criarmos a metalinguagem, esta passa a ser o assunto da nossa pesquisa: é preciso uma terceira linguagem, que se possa empregar como instrumento desta nova pesquisa, que nos há de fornecer a metalinguagem. A esta terceira linguagem chamamos paralinguagem.

(MATTOS, 1974, p.29)

Além das expressões apresentadas na Gramática Construtural, houve

também a inserção de novo conceito para texto:

[...] Um barulho, um gesto ou um toque podem alcançar o outro: o barulho, o gesto e o toque atingem respectivamente a audição, a visão e o tato. Qualquer um desses é um texto (auditivo, visual ou táctil) empregado para alcance de outro indivíduo. O texto é físico e pode ser reproduzido mecânica ou eletronicamente. (MATTOS, 1974, p.23)

86

Outro conceito desenvolvido por Back e Mattos foram as cláusulas. A

cláusula é composta pelos elementos de um diálogo envolvendo dois indivíduos, ou

seja, o ponto de partida para o início de uma conversa. Ela foi dividida em três tipos:

a) cláusula de pergunta;

b) cláusula de comando;

c) cláusula de notícia.

No artigo “Processamento Sintático” publicado em 1973 na Revista

Construtura, ano 1 – nº 2, Geraldo Mattos logo na introdução afirmou que o indivíduo

que estuda uma língua teria a oportunidade de optar por duas técnicas: a síntese do

emissor ou a análise do receptor. Percebemos claramente que o linguista fez uma

crítica ao ensino tradicional. Ele justificou o seu posicionamento apontando a

criatividade do emissor e que não seria possível determinar uma regra. Conforme

Mattos:

A desvantagem é formidável, porque o trabalho do emissor é eminentemente criativo e nenhuma regra pode dar-se para ele. Mais cômodo é proceder por análises, porque para esta é possível um procedimento rigoroso, inteiramente dedutivo, baseado em regras primeiras e que podemos chamar de postulados. (MATTOS, 1973, p.133)

Batista (2013b, p. 43) aponta que o discurso dos linguistas da proposta

construtural foi de ruptura, pois propuseram “formas discursivas e propostas

metodológicas próprias na visão de seus autores, contra abordagens da língua

baseadas na Gramática Tradicional, na Gramática Gerativa-Transformacional e no

Estruturalismo [...]”.

O projeto da Gramática Construtural não foi bem aceito pela

comunidade acadêmica da época. A rejeição, segundo Batista (2013b, p.45),

“refletiu-se principalmente na ausência de continuidades das propostas”.

Abaixo, apresentamos trechos da retórica de ruptura utilizada por Back

e Mattos no prefácio da Gramática Construrural da Língua Portuguesa, volume I, de

1972:

Este é um trabalho científico; e, neste debate, também é necessário que os interessados

estejam de acordo com as regras do jogo. (BACK e MATTOS)

87

Descartamos imediatamente a Lógica Filosófica: é consenso unânime não mais fundir ou

confundir Análise Sintática com Análise Lógica. [...] Abandonamos também a Gramática

Transformacional, os Constituintes Imediatos (a Sintagmática), a Gramática Imanente,

por não concordamos com seus postulados. (BACK e MATTOS)

Segundo Batista (2013b, p.64), o discurso dos autores não foi eficaz

porque o projeto inicial “perdeu em termos de continuidade histórica, tendo ficado

confinado a um período específico em que seus propositores atuaram de modo mais

incisivo”.

Ao finalizar as análises dos artigos programáticos, esclarecemos que

os parâmetros externos foram contemplados, pois descrevemos os grupos de

especialidade específicos de cada corrente linguística analisada, mapeamos os

centros de pesquisa de cada período e apontamos os líderes intelectuais, sendo

Mattoso Câmara relacionado ao Estruturalismo, Miriam Lemle referente à Gramática

Gerativa, Geraldo Mattos e Eurico Back referente à Gramática Construtural. Em

relação aos parâmetros internos contextualizamos cada autor e seu artigo em

programas de investigação científica específicos, analisamos a retórica utilizada

pelos linguistas pertencentes a diferentes grupos e, por último, discutimos a retórica

de ruptura. Ao analisar o discurso desses linguistas, notamos que todos eles

apresentaram propostas de descontinuidade em relação aos movimentos que lhes

eram anteriores ou mesmo contemporâneos.

88

Conclusão

Os estudos relacionados à Linguística Brasileira iniciaram-se de

modo institucional a partir da década de 1960, e nesse momento diferentes

programas de investigação em ciências da linguagem, com diferentes propostas

teórico-metodológicas, lutavam para demarcar o seu território. Essa busca por

reconhecimento, autonomia e espaço social reconhecido entre os pares pode ser

evidenciado, por exemplo, pela publicação de artigos programáticos, que refletem

em uma dimensão mais ampla a formação de grupos de especialidades, com

pesquisadores se reunindo em torno de uma proposta específica de descrição e

análise linguística.

Esses grupos de especialidade que começavam a se articular no

espaço acadêmico brasileiro nas décadas de 1960 e 1970 adotaram retóricas de

descontinuidade em relação a trabalhos ou que lhe eram anteriores, ou que lhe eram

contemporâneos, porém considerados como opostos, em relação ao modo e formas

de tratamento de fenômenos linguísticos. Foi exatamente essa retórica de ruptura

que permitiu mapear movimentos de descontinuidade na linguística brasileira que

ensaiava seus primeiros passos. Como toda palavra carrega sua carga ideológica,

foram os posicionamentos discursivos de linguistas que delinearam espaços sociais

em busca de reconhecimento na academia e na produção em pesquisa linguística

no Brasil.

Como vimos, um dos primeiros grupos a ter destaque foi o formado por

pesquisadores que se reuniram em torno do Estruturalismo. Nesse período, os

trabalhos estavam direcionados ao Estruturalismo da corrente europeia. A visão

norte-americana, segundo Altman (1998), não fora bem recebida pelos

pesquisadores brasileiros, ainda que tenha havido discussão e divulgação dos

trabalhos de Edward Sapir. O Estruturalismo, como já citado anteriormente, foi

disseminado, aqui no Brasil, por Mattoso Câmara e os objetivos desse movimento

vieram para romper com a Filologia, Dialetologia e também com o ensino da

Gramática Tradicional. Na argumentação retórica desse grupo, destacou-se a

89

vinculação a um paradigma já consolidado, exatamente por isso que a manifestação

discursiva de Mattoso em seu artigo se dá por meio de um reexame histórico do

programa que divulgava. Destacavam-se a busca por uma análise descritiva

sincrônica e a busca por métodos explícitos de análise, contrapondo-se, assim, a

estudos de base histórica e que não consideravam língua exatamente como uma

estrutura a ser descrita em seus componentes formais, relacionados

sistematicamente. Em seu artigo, Mattoso Câmara apresentou a descrição da língua

ao citar os vários linguistas que se debruçaram para descrever elementos de várias

línguas, tais como as indígenas. Além disso, o Estruturalismo analisou as relações

associativas e sintagmáticas do uso da língua, estabeleceu relações com os

elementos das formas linguísticas e as funções comunicativas.

Já o artigo “A linguística construtural", de Geraldo Mattos, que também

foi publicado nas décadas de 1960 e 1970, apresentou um discurso de

descontinuidade em relação à Gramática Gerativista, à Gramática Tradicional e ao

Estruturalismo. Tentou apresentar, em uma retórica de destacada ruptura, uma nova

visão para o ensino da língua, porém, pode-se argumentar, considerando a

descontinuidade da proposta na história da linguística brasileira, que o grupo não

obteve êxito, ainda que tenha ficado na memória da ciência da linguagem nacional

como uma proposta inovadora de descrição e análise de língua em todos os seus

componentes, desde o mais estrutural e sistêmico, como o fonema, até o mais

relacionado ao processo comunicativo, como o texto e os fenômenos semânticos.

Em seu artigo programático, Geraldo Mattos fez a descrição da língua ao apresentar

o modelo linguístico da Gramática Construtural, analisou, entre outros elementos, a

sequência de sílabas em relação à prosódia, estabeleceu relações com os

elementos das formas linguísticas e as funções comunicativas ao explicar o código,

mensagem, paralinguagem. Quanto aos representantes dessa vertente linguística,

os autores afirmaram que buscaram “um novo modelo” para descrever a língua,

porém, no início, buscaram na Tagmêmica de Kenneth L. Pikes para organizar a

Gramática Construtural.

Outro exemplo de ruptura na linguística brasileira pode ser observado

pela retórica de ruptura adotada por Miriam Lemle, ao publicar a resenha “O Novo

Estruturalismo em Linguística: Chomsky”, na qual, como vimos, apresentou as ideias

90

de Noan Chomsky. O discurso apresentado pela pesquisadora brasileira era

marcado pela novidade que a gramática gerativista traria para as análises

linguísticas. A retórica foi de descontinuidade, pois o Gerativismo, no

posicionamento discursivo de Lemle, tinha vindo para alterar o rumo das pesquisas

em linguagem, ancoradas que estavam na gramática tradicional e no estruturalismo

de base saussuriana. Logo após a publicação do artigo de Lemle, houve outros

trabalhos relacionados à Gramática Gerativista tanto nacionais quanto outros

traduzidos, livros com instruções gerativistas e assim formou-se um grupo que

aceitou o caminho desenhado por Chomsky. Pode-se argumentar, nesse sentido,

que a retórica de Lemle encontrou adesão por parte de muitos dos jovens linguistas

que começavam suas carreiras na época, possibilitando, assim, a formação de um

grupo de especialidade ainda atuante com destaque na ciência linguística nacional.

Fica evidente que nessas décadas houve um turbilhão de ideias

linguísticas, e cada grupo defendia o ponto de vista apresentado por meio da adoção

de retóricas de descontinuidade. A observação pretendida nesse trabalho tinha

como objetivo evidenciar duas linhas centrais de reflexão para a compreensão da

história da linguística brasileira:

a) Em primeiro lugar, apresentar a contribuição da Historiografia da Linguística para

as reflexões a respeito do tipo de ciência de linguagem que se faz no Brasil. Para

tanto, trabalhar com categorias de análise como retórica e grupos de especialidade

permitiu demonstrar que a prática científica não é desvinculada de elementos de

natureza histórica e social, pois pesquisadores, cientistas, professores articulam-se

em grupos, no qual o reconhecimento dos pares é condição fundamental para que

se produza pesquisa. Desse modo, analisar a história de uma disciplina e de um

campo de conhecimento como a Linguística é procurar também delinear as relações

sociais, históricas e ideológicas em sua própria constituição, que permitem que

cientistas trabalhem em determinados temas, que professores ensinem

determinados assuntos;

b) Em segundo lugar, evidenciar como a retórica adotada por pesquisadores em

determinado momento da história de uma disciplina deve ser observada pelo

91

historiógrafo como importante elemento de análise, uma vez que os dizeres de

pesquisadores e professores revelam, por detrás de uma superfície textual-

discursiva, fatores em atuação na constituição e no desenvolvimento de uma

disciplina. Nesse sentido, dizer não é apenas dizer, ou, como apresentamos neste

trabalho, defender um programa de pesquisa, um modelo de análise e um ponto de

vista de sobre a língua e seus fenômenos não é apenas escrever um texto

programático. Muito pelo contrário, está nesses dizeres, circunscritos a espaços

sociais de atuação específicos, o ideal de conquistar um lugar reconhecido pelos

pares. Uma retórica que se mostra como de descontinuidade revela, em suas

palavras, a busca pela demarcação de um modo de entender a linguagem que não

encontra reconhecimento, na visão dos que constroem esse tipo de discurso, em

práticas científicas correntes. Ou seja, ser revolucionário na retórica, abrindo espaço

por uma ruptura, é antes de qualquer coisa negar uma série de saberes em curso

num determinado recorte histórico. Cabe ainda ao historiógrafo analisar se essa

retórica de fato rompeu com modos de análise de fenômenos da linguagem ou se

não encontrou receptividade o suficiente para de fato modificar o cenário das

pesquisas científicas. Como vimos, não ficou apenas na retórica os dizeres de

Mattoso e Lemle, ao passo que todo o desejo de descontinuidade da Gramática

Construtural, por falta de articulação de diferentes elementos sociais que

garantissem reconhecimento, ficou encerrado em suas próprias palavras

revolucionárias.

92

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