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IX Seminário Internacional Redes Educativas e Tecnologias. Rio de Janeiro, de 05 a 08 de junho de 2017 1 RETALHOS ANIMADOS: Tapetes tridimensionais de histórias nas narrativas e produções audiovisuais das crianças Daniela Fossaluza Do livro ao tapete, do manuseio à performance, da costura ao diálogo, da câmera às telas, do projeto à ação. O intuito desta pesquisa é refletir sobre os impactos que a linguagem dos tapetes tridimensionais criados e confeccionados artesanalmente com panos e retalhos a partir de livros de literatura infanto-juvenil pode ter na produção de vídeos de narração de historias elaborados pelas crianças. Tenho como objetivo identificar as apropriações feitas por elas e a relevância de processos dessa natureza, apostando num diálogo entre um fazer apoiado numa lógica artesanal, mas que se utiliza das tecnologias. Esse artigo apresenta as primeiras aproximações tecidas a partir da inserção no campo de pesquisa e as questões que se evidenciaram na interação com as crianças. O TAPETE DE HISTÓRIAS UMA LINGUAGEM PARTICULAR A ideia de transpor uma proposta literária ricamente ilustrada em livro para cenários de pano interativos concretizados como tapetes tridimensionais foi da educadora Clotilde Hammam, em meados da década de 1980. "Para ajudar as crianças a se familiarizarem com o livro, procuramos um meio lúdico, estético, afetuoso e tátil, que facilitasse essa aproximação e fizesse com que elas descobrissem a felicidade da leitura-prazer. Assim nasceram os Raconte-Tapis." (Hammam, 1998). A Arte de Contar Histórias com Tapetes consiste num alinhavo entre o teatro, a música, a literatura e as artes plásticas. É uma prática que teve origem na França e que encontrou sensível e promissor terreno no Brasil para se desenvolver com resultados positivos em seus propósitos desde 1998, estimulando o interesse pelo livro através de uma linguagem dinâmica, poética e interativa, uma prática apoiada na oralidade, na performance, nos materiais têxteis e nos conteúdos dos livros. A iniciativa vem sendo difundida como projeto de fomento à leitura em vários países da Europa através do pedagogo, diretor teatral e artista plástico Tarak Hammam, filho de Clotilde. Dando continuidade ao trabalho da mãe, o artista ministrou estágios e oficinas sobre a linguagem nos anos de 1998 a 2001 através do Departamento de Extensão do Centro de Letras e Artes da Uni- Rio, introduzindo o Raconte-Tapis no Brasil, um projeto do qual participei ativamente como

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IX Seminário Internacional Redes Educativas e Tecnologias. Rio de Janeiro, de 05 a 08 de junho de 2017 1

RETALHOS ANIMADOS: Tapetes tridimensionais de

histórias nas narrativas e produções audiovisuais das

crianças

Daniela Fossaluza

Do livro ao tapete, do manuseio à performance, da costura ao diálogo, da câmera às telas, do

projeto à ação. O intuito desta pesquisa é refletir sobre os impactos que a linguagem dos tapetes

tridimensionais criados e confeccionados artesanalmente com panos e retalhos a partir de livros de

literatura infanto-juvenil pode ter na produção de vídeos de narração de historias elaborados pelas

crianças. Tenho como objetivo identificar as apropriações feitas por elas e a relevância de processos

dessa natureza, apostando num diálogo entre um fazer apoiado numa lógica artesanal, mas que se

utiliza das tecnologias. Esse artigo apresenta as primeiras aproximações tecidas a partir da inserção

no campo de pesquisa e as questões que se evidenciaram na interação com as crianças.

O TAPETE DE HISTÓRIAS – UMA LINGUAGEM PARTICULAR

A ideia de transpor uma proposta literária ricamente ilustrada em livro para cenários de pano

interativos concretizados como tapetes tridimensionais foi da educadora Clotilde Hammam, em

meados da década de 1980.

"Para ajudar as crianças a se familiarizarem com o livro, procuramos um meio lúdico,

estético, afetuoso e tátil, que facilitasse essa aproximação e fizesse com que elas

descobrissem a felicidade da leitura-prazer. Assim nasceram os Raconte-Tapis."

(Hammam, 1998).

A Arte de Contar Histórias com Tapetes consiste num alinhavo entre o teatro, a música, a

literatura e as artes plásticas. É uma prática que teve origem na França e que encontrou sensível e

promissor terreno no Brasil para se desenvolver com resultados positivos em seus propósitos desde

1998, estimulando o interesse pelo livro através de uma linguagem dinâmica, poética e interativa,

uma prática apoiada na oralidade, na performance, nos materiais têxteis e nos conteúdos dos livros.

A iniciativa vem sendo difundida como projeto de fomento à leitura em vários países da

Europa através do pedagogo, diretor teatral e artista plástico Tarak Hammam, filho de Clotilde.

Dando continuidade ao trabalho da mãe, o artista ministrou estágios e oficinas sobre a linguagem

nos anos de 1998 a 2001 através do Departamento de Extensão do Centro de Letras e Artes da Uni-

Rio, introduzindo o Raconte-Tapis no Brasil, um projeto do qual participei ativamente como

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integrante e como aluna bolsista, uma vivência tão significativa que fiz da experiência a minha

profissão.

Com inspiração no modelo francês, porém introduzindo aspectos particularmente

significativos de nossa cultura como: as específicas musicalidades brasileiras, as histórias de

tradição oral, mitos indígenas, contos e poemas de autores brasileiros, entre eles Guimarães Rosa,

Ruth Rocha, Fabio Sombra, Ana Maria Machado, Silvia Ortof, Vinicius de Moraes, Cecília

Meirelles e outros, idealizei o projeto artístico-pedagógico Costurando Histórias. Ao longo de

quinze anos de atividades dirigindo o grupo composto por atores, músico e pedagogos, aperfeiçoei-

me no trabalho com os tapetes, aprofundando-me nos aspectos que envolvem a técnica de criação

dos cenários, a dramaturgia, as encenações e às interações com os públicos. Em nossa prática

regular, visitamos intensamente instituições de ensino públicas e privadas, feiras e festivais

literários, teatros e espaços culturais, realizando sessões de histórias, exposições interativas e

oficinas, atendendo crianças e jovens dos segmentos de educação infantil e ensino fundamental.

Hoje, a prática é também desenvolvida em vários estados brasileiros, através de artistas e

professores, como desdobramentos das capacitações que realizamos.

No primeiro estudo acadêmico tendo como objeto o tapete de histórias, finalizado em 2008,

argumentei teoricamente sobre os impactos positivos que a linguagem em questão pode exercer nos

processos de alfabetização e formação de jovens leitores. A monografia elaborada teve o título “A

Arte de Contar História com Tapetes: um alinhavo entre leitura de mundo e mundo da leitura” e foi

orientada pela Profª Dra. Mônica Amim (UFRJ). Argumentei, além de apresentar informações sobre

a origem da ideia, seu desenvolvimento e sobre os processos de criação dos tapetes, principalmente,

sobre os impactos positivos que o oferecimento desta linguagem pode exercer na primeira infância,

servindo como estímulo não apenas no despertar e no interesse relacionado ao processo de

letramento, mas também sobre a percepção das narrativas e dos livros como fonte de conhecimento

e inspiração a ser buscada e compartilhada durante toda a vida, numa perspectiva ampla de

desenvolvimento.

O livro infanto-juvenil (em sua rica e diversificada produção nacional e estrangeira) é parte

integrante, propulsora e fundamental na produção artística do trabalho que desenvolvo. Os livros,

assim apresentados às crianças, de forma lúdica, mostram-se como ótimos mestres e amigos,

capazes de nos conduzir nos percursos imaginários, ajudando na elaboração do pensamento,

aguçando a curiosidade e o interesse pelo mundo e pela vida que nos cerca. Os livros (texto e

ilustração) também podem apresentar novas perspectivas, indagar sobre antigos pontos de vista e,

acima de tudo, a leitura de diferentes obras exercita o olhar e o pensar.

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O tapete-cenário nasce da sugestão do livro, concretiza-se através dos panos e formas, e

desenvolve-se como se os personagens saltassem das páginas dos livros, ganhando vida nas mãos,

corpos e vozes dos narradores. O tapete é apresentado como um ambiente onde ela pode brincar,

elaborando narrativas, a serviço do imaginário.

O que é um raconte-tapis? Cada tapete de histórias é um espaço organizado, uma porção do

mundo em miniatura que contém a promessa de uma história a ser descoberta no livro que o

acompanha. Essa combinação - mundo em miniatura e promessa de história - age como

uma alavanca na relação criança-livro-adulto: ela instiga o interesse em ler, oferecendo ao

adulto um meio simples de conduzi-las também ao domínio da língua oral, sendo ela um

apoio suplementar ao apetite literário e ao prazer que a criança prova nos livros de imagens

e, finalmente, na escrita. (Hammam, 1998)

A proximidade estabelecida entre artistas e o público - que se dispõe sentado em torno dos

tapetes, formando uma roda e sendo convidado a participar ativamente, expressando-se, é fator a ser

destacado. O público não interage passivamente, o próprio modo como a situação se configura e o

narrador convida seus ouvintes permitem essa troca. As reações do público influenciam o contador

de histórias, numa via de mão dupla. As reflexões de Walter Benjamim em relação à especificidade

das situações de transmissão oral e a possível “aura” dessas experiências únicas, não reproduzíveis

tecnicamente (BENJAMIM, 1935), podem embasar a relevância de eventos dessa natureza, onde as

trocas acontecem através da materialidade dos encontros, onde o “toque” é peculiar. A possibilidade

de, após cada apresentação (momento de maior contemplação), os públicos manipularem os

materiais de cena (interação motora), possibilita que novos sentidos sejam elaborados através da

brincadeira coletiva, numa perspectiva de aprendizado, onde cada participante treina a fala, a escuta

e a ação.

É nesse momento, em que identifiquei o embrião para uma nova pesquisa, ou seja, no

instante em que a criança toma a cena, segura os personagens nas mãos e mergulha na linguagem,

reproduzindo, ao seu modo, as narrativas que acabaram de escutar ou ler. A criança se apropria dos

materiais, tomando para si o sentido da brincadeira, uma experiência que deve ser permitida e

apoiada. Nas palavras de Paulo Freire:

(...) conhecer não é o ato através do qual um sujeito transformado em objeto recebe dócil e

passivamente os conteúdos que outro lhe dá ou lhe impõem. O conhecimento, pelo

contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação

transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e

reinvenção. (FREIRE, 1983)

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Oficina oferecida para crianças de 6 a 9 anos – SESC Paraty. Janeiro de 2016

Foto: Marcus Prado. Fonte: www.facebook.com/grupocosturandohistorias/

Por se basear na transmissão oral realizada “olho no olho”, contar histórias usando materiais

artesanais é uma arte que navega na contracorrente do cânone vigente, já que estamos frente a uma

modernidade onde o audiovisual e as trocas virtuais tomam cada vez mais volume na formação de

crianças. Porém, as crianças não se conformam mais em apenas serem espectadoras ou leitoras

tradicionais, elas querem produzir e se comunicar inclusive através dos meios tecnológicos e das

redes sociais. Novas formas de produção e transmissão de conhecimento estão emergindo,

principalmente nos ambientes urbanos.

FILMAR AS PERFORMANCES COM OS TAPETES: UMA NOVA PROPOSTA DE

INTERAÇÃO

Nas apresentações e oficinas que realizo em instituições de ensino e espaços culturais, atesto

o interesse das crianças que querem participar das experiências, filmando e fotografando

intensivamente as atividades quando isto é permitido. Ao indagar a elas sobre os motivos,

identifiquei em seus relatos o desejo de registrar para poder compartilhar e rever as experiências e

conteúdos, além de perceber que elas têm especial interesse por brincarem com as câmeras,

exercitando ângulos e discursos. Gostam de assistir ao que filmam. Identifico, também, que ao

manusearem os cenários e personagens, após ouvirem as histórias contadas pelos artistas e

professores, as crianças reproduzem as narrativas incorporando gestos e falas próprias, dando novos

sentidos à experiência e aos enredos.

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Em diversas ocasiões, crianças questionam-me sobre os finais das narrativas, sugerindo

outros desdobramentos ou identificando elementos presentes nos livros ou nos cenários e que os

contadores “esqueceram” de apresentar, ou detalhes que lhes pareciam fundamentais, mas que não

foram abordados ou explicados. Muitas vezes, esses elementos não revelados e identificados, estão

presentes nas ilustrações dos livros ou são frutos das livres associações que as crianças fazem,

preenchendo, aos seus modos, os espaços vazios da linguagem. Na roda de histórias, todas essas

contribuições são bem vindas, sendo oportunidades para exercitar diferentes leituras. São

indagações, informações e impressões que circulam através de gestos, palavras, sonoridades, letras,

desenhos e objetos, inúmeras conexões possíveis. Nas palavras de Canclini,

A cultura como processo de interação foi, em primeiro lugar, algo evidente para cientistas

sociais (os interagentes simbólicos, entre outros), e, nas artes e na literatura, para aqueles

que viram a relação literária como um diálogo (Bakhtin), o texto incompleto como um

“mecanismo preguiçoso” (Eco) que precisa ser atualizado pelo leitor e espera sua

cooperação. Os textos e as imagens vão existindo à medida que o leitor ou o espectador os

usam ou reinterpretam. Todo texto prevê seu leitor e não pode abrir mão dele: procura-o

“gastronomicamente” para que tenha prazer, suspire ou chore, identificando-se com o que

lhe contam ou “com fins estéticos”, não esperando que tenha tanto prazer com a história

contada como o modo pelo qual é contada. (CANCLINI, 2008)

Podemos perfeitamente dizer que a mesma incompletude que Canclini aponta ao texto

literário, encontramos em maior ou menor grau no texto cênico e na performance, com seu

potencial dramatúrgico e simbólico confeccionado com muitos retalhos e fios de linguagens

(sonora, plástica, corporal, imagética e etc). Os espaços não excessivamente preenchidos, guardados

para os diferentes “leitores”, podem ser o lugar da comunicação e do aprendizado, onde há certa

liberdade e criação.

O que percebo em minha prática como artista e contadora de histórias são crianças que

participam não só como ouvintes, com interesse nas transmissões dos adultos, mas com ânsia de

trocar e contar histórias a partir de seus próprios pontos de vista. Porém, nem sempre essa

oportunidade à voz é oferecida a elas, ou suas falas são apoiadas e fortalecidas em suas próprias

elaborações e pensamentos.

Podemos supor, portanto, que escrever é ler, ler é escrever. Escutar é falar e falar é escutar.

O som evidencia o silêncio e o silêncio evidencia o som. Nesse caminho de reflexão, aprender é

ensinar e ensinar é aprender. É no exercício da fala e da escuta, no reconhecimento da alteridade do

outro, que o processo comunicativo em sua dimensão de comunicação e não de extensão acontece,

como defende Freire.

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(...) no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do

aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso mesmo, reinventá-lo;

aquele que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas.

Pelo contrário, aquele que é “enchido por outros de conteúdos cuja inteligência não

percebe, de conteúdos que contradizem a própria forma de estar em eu mundo, sem que

seja desafiado, não aprende (FREIRE,1983)

Participando de eventos em diferentes espaços dedicados a infância e a formação da criança,

o que vejo são processos excessivamente conduzidos e controlados, tanto em ambientes escolares

onde os conteúdos são programados para não desviarem-se de seus propósitos (projetos e metas

pedagógicas), como em ambientes onde o caráter de entretenimento e a diversão são valorizados em

demasia. Caminhos mais livres ou leituras mais aprofundadas não são permitidos ou valorizados

porque fogem aos planejamentos institucionais, propósitos mercantis ou ao controle físico, não se

adequando aos ambientes organizados e direcionados para determinados fins. Assim, por exemplo,

coordenações pedagógicas e organizações de eventos não permitem histórias com determinados

conteúdos que abordem temas como: tristeza, perdas, mortes, violência, ou questionamentos mais

problematizadores de ordem social e política, por exemplo. As crianças não são encorajadas a

fugirem muito das “cartilhas temáticas” ou não encontram apoio para uma interlocução que

considere suas angústias e respeite suas necessidades particulares. Dentro desses cenários, podemos

identificar vários movimentos que vão desde ao controle excessivo até a total falta de orientação e

cuidados. Podemos, então, indagar sobre a importância de práticas como a roda de histórias e os

momentos de criação artística e investigação de linguagens, onde o convite seja o de uma

participação que não esteja amarrada a necessidade de produtividade, que possam caminhar por

trajetos mais livres ou menos vinculados aos temas e a lógica do progresso, num tempo que possa

desenrolar menos automático e autoritário.

Em seu livro “Crescer na Era das Mídias Digitais”, David Buckingham analisou e abordou

diferentes entendimentos do conceito de infância surgido na modernidade e que se evidenciam no

mundo contemporâneo. Abordou, principalmente, as diferentes compreensões que os adultos têm de

quais seriam suas funções e das instituições nos processos de educação e formação das crianças.

Segundo ressalta o autor, a partir de suas análises, numa perspectiva mais romântica e idealizada, as

crianças são como folhas em branco onde projetamos comportamentos e valores humanos e sociais

considerados adequados ou, ao contrário, são seres que nascem com características límpidas e puras

que podem ser alimentadas ou corrompidas culturalmente. Ou, ainda, numa perspectiva da criança

considerada como direta ou indiretamente consumidora, num mercado cada vez mais globalizado e

voraz, de intensas trocas e conexões, venda e o consumo de produtos industrializados e serviços em

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que o lucro é o valor máximo que orienta as relações. Nesse sentido, minhas observações no campo

de trabalho condizem com os diferentes modos dos adultos se posicionarem em relação às crianças,

numa perspectiva que vai da ideia defendida por Neil Postmam e outros autores sobre uma possível

“morte da infância” até o otimismo excessivo e, segundo Buckingham, ingênuo em relação aos

comportamentos das crianças e seu poder de renovação e invenção - uma crença fortemente

influenciada pelo domínio técnico que as novas gerações apresentam com as tecnologias e mídias

de comunicação (BUCKINGHAN, 2000).

Nesse sentido, num contexto atual de intensas trocas midiáticas e avanços tecnológicos,

torna-se evidente a necessidade de propor práticas e experiências que permitam as crianças

interações mais dialógicas e que exercitem processos discursivos, tanto na função de produção

como na de recepção. A pesquisadora Mônica Fantin, ao debater sobre o recente campo e área da

mídia-educação como fundamental espaço de pesquisa e produção, defende: “(...) uma abordagem

mais ampla da mídia-educação pode ser entendida a partir de três perspectivas: educar sobre/ para

os meios (perspectiva crítica), com os meios (perspectiva instrumental) e através dos meios

(perspectiva expressivo-produtiva)” (FANTIN, 2011).

Entre as apostas que as atividades de pesquisa propõem está a apresentação de livros

literários como enredos e argumentos para os roteiros, o incentivo à produção criativa e crítica, a

descoberta das etapas de uma produção de vídeo (roteiro, performance, gravação, sonoplastia e

edição), a alfabetização nos meios tecnológicos, estímulo ao exercício da atenção em relação aos

conteúdos e formas de transmissão, aos discursos produzidos, crianças na posição não apenas de

ouvintes, mas principalmente como autoras, narradoras e videomakers e o alinhavo entre um fazer

artesanal frente ao uso das tecnologias e tudo o que isso possa implicar são alguns dos objetivos que

destaco como relevantes e que estão sendo testados e observados nas atividades de campo.

AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES DO CAMPO E A ELABORAÇÃO DE UMA

METODOLOGIA

Em 2016, com a proposta de construir uma forma de pesquisar com as crianças, a partir de

suas perspectivas, interações e relatos, e com o intuito de dialogar com a linguagem audiovisual,

utilizando a metodologia de narração construída por mim e pelos artistas do coletivo que integro - o

Costurando Histórias - em 15 anos de investigação e produção e apoiada nas tradições da oralidade

e da costura, realizei uma primeira etapa do campo de pesquisa no Instituto Solar Meninos de Luz1.

1 O Solar Meninos de Luz é uma organização civil, filantrópica, que promove educação integral, cultura, esportes, apoio

à profissionalização, cuidados básicos de saúde e de assistência social às famílias com maior nível de desestruturação

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Participaram dessa fase de investigação 25 crianças, com idades entre 9 e 11 anos. O grupo de

crianças foi selecionado a partir da faixa etária e da indicação da coordenação da instituição.

Considerou-se a fase de alfabetização e letramento consolidada e o comportamento disciplinar da

turma, cursando o terceiro ano do ensino fundamental. Desde 1983, a instituição atende a crianças e

jovens dos morros do Cantagalo e Pavão Pavãozinho, na Zona Sul carioca. As oficinas e atividades

de pesquisa aconteceram em contraturno escolar e foram conduzidas por mim, com a colaboração

da artista Denise Gonçalves Neves, integrante do coletivo Costurando Histórias.

Durante as primeiras atividades realizadas, aconteceram rodas de conversa, dinâmicas de

teatro e contação de histórias, criação de desenhos e exercícios de filmagem. Foram 5 encontros,

totalizando 10h de carga horária. Durante o processo, contamos algumas histórias, sempre

utilizando os tapetes-cenários com o objetivo de apresentar e convidar as crianças para a linguagem.

Proporcionamos momentos onde eles puderam manipular livremente os cenários e recontar as

narrativas aos seus modos. Desde o primeiro dia, as crianças se revezaram com a função de

registrar os exercícios e captar imagens das atividades. Com esse intuito, foram disponibilizados

dois aparelhos celulares com câmera digital. O objetivo foi conhecer as habilidades dos

participantes com o uso das câmeras. Nos momentos de conversa mais livre, opiniões, desejos e

observações das crianças foram registrados. Entre os temas que surgiram e nortearam as conversas

estão: histórias, literatura, filmes, jogos, internet, redes sociais, brincadeiras, prazer.

Algumas observações dessa etapa da pesquisa me parecem relevantes:

Algumas crianças expressaram o desejo de interferir nos enredos inicialmente

propostos através dos livros e que inspiraram a criação dos tapetes, sugerindo e

apresentando outras situações para os personagens e contextos e, inclusive,

comunicando o desejo de não somente contar histórias e produzir vídeos, mas

também de escrever narrativas “inéditas” e costurar novos cenários e elementos, o

que não era a proposta inicial.

Manifestaram interesse em criar um canal no YouTube com o intuito compartilharem

suas produções.

Propuseram a inserção de personagens de desenhos animados, jogos e músicas

conhecidas por eles e sugeriram a referência de situações presentes em seus

das comunidades do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo na cidade do Rio de Janeiro. Fonte:

http://www.meninosdeluz.org.br/

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cotidianos, sejam estas provenientes de suas experiências, ou fruto de sua

imaginação.

Notamos, assim, considerável número de solicitações por parte das crianças de “interação”

nos “enredos” do que podemos chamar de processos educativos, uma vontade expressa em exercitar

autorias a partir também de suas propostas e uma grande disponibilidade para o aprendizado e a

criação coletiva. As crianças mostraram-se colaborativas umas com as outras durante as oficinas.

Ao perceberem que suas opiniões e ideias eram consideradas, o envolvimento aumentava,

proporcionalmente. Quando indagadas pelo consumo de vídeos e desenhos e sobre as plataformas

de acesso a eles, ficaram muito empolgadas, contando detalhes. Nomes de jogos e desenhos, canais

do YouTube, identificação de youtubers mirins, e contaram sobre suas trocas nas redes sociais

Facebook e Instagram. Somente uma das crianças disse possuir um computador e nenhuma disse

ter um celular. Os aparelhos utilizados são de familiares e contaram ser a utilização negociada. Na

instituição, é proibida a utilização de celulares, mas as crianças podem acessar conteúdo da internet

nos computadores disponibilizados na biblioteca e durante os horários onde não têm aulas ou

atividades planejadas.

É considerável a curiosidade pelos meios tecnológicos, o que não implica necessariamente

na falta de interesse pelos formatos tradicionais de leitura, como o livro, por exemplo. As atividades

aconteceram na biblioteca da instituição e, em várias circunstâncias, em meio às dinâmicas, alguma

criança pegava um livro ou gibi, ficando imersa na leitura ou folheando páginas com interesse. Não

interferimos nesses momentos. Após participarem como ouvintes das narrações realizadas com o

apoio dos tapetes, seja por mim, ou pela oficineira Denise, ou ainda por eles próprios, o interesse

pelo livro que inspirou a confecção de cada obra foi imediato e identificável em quase todas as

crianças.

Porém, nas atividades em que as crianças precisaram interagir com os livros para

descobrirem as narrativas dos tapetes com o convite de, em seguida, contarem umas as outras, a

dificuldade na fluência da leitura compartilhada contribuiu para que algumas crianças passassem a

inventar as próprias histórias, descartando os livros ou, simplesmente, se desmotivassem e

começassem a brincar pelo espaço. Os grupos com integrantes que dominavam melhor a leitura

através da expressão oral, tranquilamente, utilizaram o livro como “mapa”, numa situação em que

um ou dois liam em voz alta e os demais escutavam atentamente, enquanto outros ainda

manipulavam os personagens no cenário. Os leitores, de algum modo, orientaram a brincadeira de

contar. Nos grupos em que as crianças tinham uma dificuldade maior na leitura e compreensão do

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texto, o livro acabou sendo descartado e a invenção de narrativas próprias ou o improviso de

diálogos e situações passavam a ser a brincadeira principal.

Essas questões, em especial, nos fazem refletir sobre a dimensão mais solitária que a leitura

literária e a plataforma do livro propõem, além da necessidade de um processo de formação do

leitor que implica na prática, no exercício e na paciência, como nos disse uma criança, uma

interação que não acontece somente através dos botões automáticos e cliques. Essa mesma criança

fez um paralelo entre ler um livro e costurar um tapete, diferenciando essas funções identificadas

por ela como “difíceis” da função de gravar um vídeo, por exemplo, atividade que lhe pareceu

“mais fácil”.

Em relação a esses graus de dificuldades colocadas por ela, podemos refletir sobre as

competências específicas que a leitura literária implica, diferenciadas nos processos de recepção

audiovisual, o que não quer dizer necessariamente que assistir a um vídeo não seja uma atividade

que pressuponha certa alfabetização e exercício nessa tarefa. Essa fala da criança, apoiada no

momento por outras que participavam da conversa, nos instiga a indagar sobre a percepção de

dificuldade proposta pelas atividades de ler e costurar. Produzir e editar vídeos também pressupõe

uma participação “artesanal”, não imediata, mas a utilização das tecnologias digitais talvez pareça

ser mais acessível às crianças.

A presença e proposta dos livros como norteadores das descobertas geraram alguns

conflitos, no sentido de que uma determinada criança, na posição de leitora, detinha a “narrativa” e

ficava com o compromisso de conduzir a atividade e brincadeira, por vezes, silenciando ou

impedindo a participação de outras. Determinada questão evidenciou-se para mim como relevante

na própria condução das atividades da pesquisa: como conduzir uma ação ou atividade permitindo a

participação do outro? Esses comportamentos nos parecem fortemente influenciados pelos

temperamentos individuais e pré-disposições das crianças, além de, provavelmente, serem frutos

também das vidas de cada uma em seus contextos familiares. Porém, isso me faz pensar em como

essas funções de condução, de falar e de ouvir, precisam ser discutidas e exercitadas, tanto pelos

adultos como pelas crianças. Optou-se pela não interferência da pesquisadora e da oficineira nas

situações de conflito. Observamos, assim, que as próprias crianças encontraram formas de resolvê-

los, salvo em uma única situação, em que orientamos para que o grupo fosse reorganizado com a

sugestão de mudança de duas integrantes, o que se mostrou satisfatório para o desenrolar da

atividade.

Entre o grupo, poucas crianças não se interessaram pelos livros, entre elas, uma que decidiu

escrever uma própria história em vez de participar das dinâmicas de ler e contar. Curiosamente, essa

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criança apresentou-se como youtuber, o que foi afirmado pelos colegas. Observamos que ela não

participou de quase nenhuma atividade em grupo e preferiu escrever e desenhar sozinha, trazendo

até nós algumas produções de texto e imagens que fez em sua casa. Ela se interessou pelos

momentos de ouvir histórias e pelas rodas de conversa, pedindo sempre para expressar-se.

Mostrou-se bastante comunicativa, relacionando-se bem com os colegas, porém disse que preferia

fazer as coisas solitariamente. Relatou escrever roteiros, gravar vídeos, editar e postar no seu canal

no YouTube. Disse contar com a pontual ajuda da mãe. Nos indicou programas de narração de jogos

eletrônicos, relatando detalhes de alguns jogos, o que gerou intensa participação de outras crianças

do grupo que também sugeriram jogos e canais, fazendo inclusive sugestões de enredos para a

criação de tapetes inéditos, sugestões de personagens e dicas para a criação de um canal da turma.

Somente essa criança do grupo todo disse saber mexer em programa de edição.

O grupo, em geral, solicitou que pudessem fazer desenhos a serem costurados por nós, com

eles, apresentando muitas ideias. A necessidade de expressarem-se através de imagens gerou uma

atividade em torno da elaboração de desenhos. Surgiram sugestões de personagens do jogo

minecraft, monstros inventados, sereias e pokémons. Fizeram desenhos coletivos com bastante

interesse e sem maiores conflitos, negociando espaços nos cartazes e influenciando-se mutuamente.

Foram observados temas como: paz, monstros, castelos, máquinas e super heróis. Surgiram poucos

bichos e elementos da natureza, o que pode expressar o ambiente urbano em que vivem.

PROJETANDO O CENÁRIO DE PESQUISA, OU TAPETE DESSA HISTÓRIA

As observações apresentadas nesse artigo suscitam muitas reflexões e merecem ser

analisadas com maior profundidade no decorrer da pesquisa que está em andamento. Entre elas,

chamou-me atenção o modo diferenciado de interação e recepção que a leitura literária propõe e a

necessidade de formação desse leitor específico. Em relação a não habilidade com as câmeras e

programas de edição, percebo considerável diferença em relação às crianças de outros contextos

sociais e melhores condições econômicas, que apresentam grande habilidade nesses meios.

A questão trazida pelas crianças em torno da “paciência necessária” nos faz pensar sobre

conceito de “tempo” e como as crianças o percebem na fase da infância e na contemporaneidade.

Como essas crianças estão vivenciando o tempo e o seu desenrolar? Como constroem ou não a

compreensão sobre a dedicação necessária que atividades como a costura e a criação de trabalhos

artesanais solicitam? As atividades relatadas por elas de consumo e produção de formatos e

conteúdos através das mídias eletrônicas podem estar influenciando na percepção da “falta de

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tempo”? Como elas relatam e unem os fragmentos de suas “experiências”, sejam elas relatos de

jogos, elaborações imaginárias ou destaques de suas vidas cotidianas?

Com certeza, essas falas e comportamentos aqui destacados nos trazem reflexões sobre os

contextos em que essas crianças vivem suas infâncias, aspectos macro e micro sociais. Em todo

caso, fica evidente a necessidade de “tempo suficiente” e “formação” para o desenvolvimento de

atividades mais artesanais e manuais e sobre o hábito, fluidez e interesse na leitura literária, funções

que exigem treinamento e dedicação. Também fica evidente a necessidade de adequar práticas e

propósitos as dinâmicas de suas interações e anseios, exercitando diferentes envolvimentos, sejam

numa proposta mais artesanal de fazer, como a do desenho manual ou da costura, ou da própria

elaboração da fala e dos discursos, seja na utilização de aparelhos tecnológicos e investigações de

suas possibilidades e amplitudes. “Falas e gestos” que antecedem as máquinas, mas que se

potencializam com elas.

Apoiar as crianças em seus caminhos de estruturação de autonomia, oferecendo narrativas e

memórias, mas também reconhecendo as histórias e particularidades de cada uma, sem perder as

dimensões de jogo e brincadeira, e, além disso, possibilitando que exercitem também a autoria e o

compromisso com seus próprios processos de aprendizado constitui-se em ação que me parece

fundamental para a construção de suas leituras de mundo e capacidade de ação, especialmente no

contexto atual de intensas conexões. Qual o lugar da fala, do silêncio, da reflexão, da escuta e da

conexão? Qual a relevância de cada um nesse processo? Essas questões antecedem os processos de

comunicação via tecnologias e mídias e integram o campo da mídia-educação antes mesmo do uso

mais intensivo desses meios e plataformas. Na atualidade, esses raios de ação e comunicação,

tornam-se maiores do que o espaço concreto da sala de aula, do pátio da escola, do quintal da casa,

das paredes do quarto ou praças. Essas fronteiras estão se desconfigurando para dar espaço a novas

formas de interação. Seria o movimento de reconhecê-las um modo de compreender suas

inconstâncias e transitoriedades? Quais limites de ação e conexão que uma criança pode

estabelecer? Quais os limites de compreensão sobre os próprios processos de comunicação que esse

grupo de crianças pode atingir?

A exclusão digital e o preconceito em relação às culturas das favelas é uma fronteira bem

delineada e que pode limitar as realizações dessas crianças. É evidente na fala desse grupo a

vontade de criar e de se comunicar. Esse movimento precisa ser ampliado e apoiado. Crianças que,

através de suas apropriações, proposições e criações, têm muito a nos falar sobre práticas e

organizações sociais, sobre produtos culturais, sobre a riqueza cultural de seus contextos e

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perspectivas cotidianas, com toda a sua diversidade e senso de coletividade, aspectos claramente

percebidos nos modos colaborativos com que as crianças se relacionam.

“Sou galo e não me calo!”, como diz a autora Silvia Ortof em seu livro homônimo e que foi

apresentado às crianças nos primeiros encontros, narrando à história de um galo que morava em

Copacabana e foi expulso pelos moradores intransigentes por cantar livremente nas manhãs de sol,

importunando modos protegidos de viver. As crianças não devem ser expulsas de si mesmas com

vergonha de suas culturas e posições na sociedade e precisam fortalecer-se em seus

desenvolvimentos para que cada uma encontre trajetória singular, social e economicamente digna.

A primeira fase da pesquisa de campo, aqui relatada, apoiada nas interações presenciais das

crianças com as mídias envolvidas - o tapete e o livro - alimenta reflexões mais profundas sobre a

relevância dessas experiências nas produções de vídeos a serem realizados por elas no decorrer das

atividades, num segundo momento e fase da experiência.

Para finalizar minhas observações, deixo aqui as palavras de Benjamin que remetem aos

diferentes processos de produção do conhecimento proporcionados pelas atividades de ler e

transcrever, remetidas no trecho do livro “Rua de Mão Única” (1928). Elas me fazem refletir sobre

as diferentes perspectivas de abordar uma história como ouvinte e espectador, passeando a visão no

cenário de história que se apresenta a frente com o tapete e sua geografia, e a de recontar uma

narrativa através da narração e manipulação dos elementos, um processo de velar e desvelar

reentrâncias que são descobertas nos percursos de interação com o contexto projetado da história,

ambiente materializado através das costuras, junções e justaposições e alinhavado com as palavras

da história.

“A força da estrada do campo é uma se alguém anda por ela, outra se a sobrevoa de

aeroplano. Assim é também a força de um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve.

Quem voa vê apenas como a estrada se insinua através da paisagem, e, para ele, ela se

desenrola segundo as mesmas leis que o terreno em torno. Somente quem anda pela estrada

experimenta algo de seu poder e de como, daquela mesma região que, para o que voa, é

apenas a planície desenrolada, ele faz sair, a seu comando, a cada uma de suas voltas,

distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas, assim como o chamado do comandante faz

chamar soldados do front. Assim unicamente o texto transcrito comanda a alma daquele

que está ocupado com ele, enquanto o mero leitor nunca fica conhecendo as novas

perspectivas de seu interior, tais como as abre o texto, essa estrada através da floresta

virgem interior que sempre volta a adensar-se: porque o leitor obedece ao movimento de

seu eu no livre reino aéreo do devaneio, enquanto o que transcreve o faz ser comandado. A

arte chinesa de copiar livros foi, portanto, a incomparável garantia de cultura literária, e a

transcrição uma chave para os enigmas da China.”

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Entre as novas possibilidades tecnológicas que viabilizam edições, perguntamos qual a

relevância e especificidade das transmissões que envolvem as mãos em conexão com o intelecto e

os sentimentos? Qual o lugar das atividades artesanais em nossas vidas contemporâneas? Qual o

espaço para essas experiências nos cotidianos das crianças?

Atividade de pesquisa no Instituto Solar Menino de Luz - 2016

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Fonte: Registro de campo

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RESUMO

O presente artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado que está sendo realizada dentro do grupo de

pesquisa CACE 2desde 2016. O intuito da pesquisa é refletir sobre os impactos que a linguagem dos tapetes

tridimensionais criados e confeccionados a partir de livros, técnica e iniciativa de fomento à leitura que teve

origem na França e é desenvolvida no Brasil desde 1997, pode ter na produção de vídeos de narração de

historias a serem realizados pelas crianças. A pesquisa, em fase de desenvolvimento, trabalha com autores

que discutem experiência e narrativa, em suas relações com o artesanal e o tecnológico (Walter Benjamin,

Canclini) e o que isso implica nos processos de comunicação e expressão e as relações entre crianças e mídias

na atualidade (Buckingham, Fernandes entre outros). A proposta da metodologia em construção é

proporcionar a experiência da contação de histórias com vídeo para as crianças, a partir da proposta e

linguagem dos tapetes, e perceber e analisar as apropriações realizadas por elas, numa perspectiva dialógica

(Freire), refletindo sobre a importância de oferecer oportunidades para o exercício da expressão, elaboração

dos discursos e processos de comunicação com o uso das mídias e tecnologias.

Palavras-chave: Narrativas. Crianças. Mídias. Tapetes Tridimensionais.

2 Grupo de Estudos e Pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação. Coordenação da Prof Dra. Adriana

Hoffmann Fernandes.