resumo - uece.br o currÍculo das escolas... · as concepÇÕes que fundamentam a politica de ......

12
O CURRÍCULO DAS ESCOLAS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL (EEEPS) DO CEARÁ: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS Maria José Camelo Maciel Professora da Universidade de Fortaleza - UNIFOR Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará E-mail: [email protected] Resumo: Este artigo apresenta um estudo de caso realizado numa Escola Estadual de Educação Profissional do Ceará (EEEP). Enfoca as concepções e princípios que orientam a política educacional de integração do ensino médio com a educação profissional estabelecendo uma comparação com aquelas que embasam a implementação dos currículos na EEEP, a partir do que evidencia que a opção feita na implantação dos currículos dessa escola, não favorece a integração pretendida e se apresenta contradita a noção de formação humana integral. A Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional TESE, enquanto modelo de gestão adotado nas EEEPs fora alçada a posição de principal diretriz orientadora da proposta pedagógica. Por conseguinte, se por um lado, as premissas da TESE não tem legitimidade para respaldar um projeto com elevada complexidade pedagógica como a do ensino médio integrado, por outro lado, funciona como estratégia de conformação da escola e de seu currículo a lógica utilitarista do mercado. Palavras-chave: Currículo Integrado; Escola Estadual de Educação Profissional; TESE. 1. INTRODUÇÃO O Programa Brasil Profissionalizado tem como meta a diversificação qualitativa da oferta e dos resultados do ensino médio. Com ênfase na educação científica e humanística, por meio da articulação entre formação geral e educação profissional, o programa prevê o repasse de recursos do governo federal para que os estados invistam em suas escolas técnicas, possibilitando a modernização e a expansão das redes públicas de ensino médio integrado à educação profissional. Em tese, trata-se de uma proposta de política educacional distinta para o ensino médio, cuja ideia força encontra-se explícita no conjunto de documentos normativos para esse tipo de oferta, o qual adota a concepção de formação humana integral numa perspectiva em que a formação geral e a profissional são partes integrantes de um mesmo processo que é contextualizado historicamente e eticamente comprometido com a transformação social. Considerando que a criação das Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs) se situa no âmbito dessa política, as quais foram implantadas a partir de 2008 pelo Governo do Estado do Ceará numa opção que congrega a oferta do ensino médio integrado a educação profissional em tempo integral, analisamos neste artigo o modo como a concepção de ensino médio integrado se manifesta no interior dessas escolas. Nos chama a atenção a ênfase que foi dada a gestão pela Secretaria da Educação do Estado do Ceará na ocasião da implantação das EEEPs, quando a gestão assumiu a Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 02809

Upload: lamphuc

Post on 10-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O CURRÍCULO DAS ESCOLAS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO

PROFISSIONAL (EEEPS) DO CEARÁ: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS Maria José Camelo Maciel

Professora da Universidade de Fortaleza - UNIFOR

Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará

E-mail: [email protected]

Resumo: Este artigo apresenta um estudo de caso realizado numa Escola Estadual de Educação

Profissional do Ceará (EEEP). Enfoca as concepções e princípios que orientam a política

educacional de integração do ensino médio com a educação profissional estabelecendo

uma comparação com aquelas que embasam a implementação dos currículos na EEEP, a

partir do que evidencia que a opção feita na implantação dos currículos dessa escola, não

favorece a integração pretendida e se apresenta contradita a noção de formação humana

integral. A Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional – TESE, enquanto modelo de

gestão adotado nas EEEPs fora alçada a posição de principal diretriz orientadora da

proposta pedagógica. Por conseguinte, se por um lado, as premissas da TESE não tem

legitimidade para respaldar um projeto com elevada complexidade pedagógica como a

do ensino médio integrado, por outro lado, funciona como estratégia de conformação da

escola e de seu currículo a lógica utilitarista do mercado.

Palavras-chave: Currículo Integrado; Escola Estadual de Educação Profissional; TESE. 1. INTRODUÇÃO

O Programa Brasil Profissionalizado tem como meta a diversificação qualitativa

da oferta e dos resultados do ensino médio. Com ênfase na educação científica e

humanística, por meio da articulação entre formação geral e educação profissional, o

programa prevê o repasse de recursos do governo federal para que os estados invistam

em suas escolas técnicas, possibilitando a modernização e a expansão das redes públicas

de ensino médio integrado à educação profissional.

Em tese, trata-se de uma proposta de política educacional distinta para o ensino

médio, cuja ideia força encontra-se explícita no conjunto de documentos normativos para

esse tipo de oferta, o qual adota a concepção de formação humana integral numa

perspectiva em que a formação geral e a profissional são partes integrantes de um mesmo

processo que é contextualizado historicamente e eticamente comprometido com a

transformação social.

Considerando que a criação das Escolas Estaduais de Educação Profissional

(EEEPs) se situa no âmbito dessa política, as quais foram implantadas a partir de 2008

pelo Governo do Estado do Ceará numa opção que congrega a oferta do ensino médio

integrado a educação profissional em tempo integral, analisamos neste artigo o modo

como a concepção de ensino médio integrado se manifesta no interior dessas escolas.

Nos chama a atenção a ênfase que foi dada a gestão pela Secretaria da Educação

do Estado do Ceará na ocasião da implantação das EEEPs, quando a gestão assumiu a

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302809

centralidade na proposta em detrimento dos aspectos filosóficos e pedagógicos inerentes

a concepção e a prática do currículo integrado.

O modelo de gestão denominado de Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional –

TESE foi adotado a partir da parceria da Secretaria de Educação com o Instituto de Co-

responsabilidade pela Educação – ICE de Pernambuco, cujas premissas fundamentais são

o protagonismo juvenil, a formação continuada, a atitude empresarial, a co-

responsabilidade e a replicabilidadei. Trata-se, de acordo com Andrade, (2010, p.12) de

“uma proposta de gestão escolar fundamentada no modelo gerencial empresarial,

especificamente baseada na Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO)”.

Os fundamentos da TESE estão circunscritos na teoria das organizações, a qual

toma de empréstimo os princípios da Gerência da Qualidade Total (GQT) e das teorias

que lhe dão sustentação para formular seus princípios e premissas.

A TESE, portanto, não se deriva das teorias da educação, se apresentando, por

esse motivo, vazia de fundamentos para dar sustentação a um projeto educacional, mas,

contraditoriamente acabou sendo erigida a condição de referência basilar para a

organização das atividades curriculares, uma vez que seus princípios e concepções

passaram a compor o currículo como disciplinas.

Nessa perspectiva, o presente artigo propõe-se a colocar em tela os conceitos e

premissas do ensino médio integrado e as práticas efetivadas, evidenciando que existem

discrepâncias que não nos permitem afirmar que as expectativas sociais expressas nos

documentos de referência para a implantação do currículo do ensino médio integrado a

educação profissional se apresentem atendidas nas práticas pedagógicas que se efetivam

nas EEEPs sob as premissas da TESE.

A análise se apoia no pressuposto que as concepções da TESE não dão conta da

especificidade do fenômeno educativo e acabam funcionando unicamente como

mecanismo de submissão da educação a lógica do mercado, cuja racionalidade é

incompatível com a noção de qualidade social da educação.

Utilizamos como metodologia a pesquisa documental e bibliográfica através de

fontes primárias (documentos e decretos que estabelecem a educação profissionalizante

integral da esfera estadual e federal) e fontes secundárias (através de publicações

científicas sobre o tema estudado). A pesquisa foi complementada por um estudo de caso

em uma das EEEPs, através da técnica de observação participante, com a realização de

observações e entrevistas, que objetivaram analisar a compreensão dos atores do processo

educativo sobre as concepções que orientam sua prática no âmbito do currículo integrado.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302810

2. AS CONCEPÇÕES QUE FUNDAMENTAM A POLITICA DE

INTEGRAÇÃO DO ENSINO MÉDIO A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Se entendermos o currículo sob a perspectiva das teorias críticas, mormente as de

vertente neomarxista, iremos entendê-lo como um terreno em que se manifestam as lutas

em torno dos diferentes significados sobre o social e o político, se constituindo em

instrumento em que os diferentes grupos sociais expressam sua visão de mundo e

defendem os projetos educacionais requeridos pela dinâmica da sociedade em cada etapa

histórico ou os projetos necessários a transformação dessa sociedade. O currículo se

constitui, assim, num território no qual os diversos sujeitos disputam encaminhamentos

para efetivação dos projetos de educação que advogam e se efetiva mediante as escolhas

feitas sobre determinados projetos em detrimento de outros.

A distinção fundamental entre esses projetos se localiza acerca da questão das

concepções de homem, de educação e sociedade defendidas. São os diferentes enfoques

dados a essas concepções que direcionam o currículo a se efetivar, definindo o que deve

ser ensinado e como deve ser ensinado. A questão sobre “o que” ensinar conforme destaca

SILVA (2004, p. 14), associa-se outra questão: “o que eles ou elas devem ser”, ou melhor,

“em que eles ou elas se devem tornar” em função do currículo prescrito, implementado e

avaliado, o que remete para o tipo de ser humano ou de sociedade desejado, razão pela

qual se evidencia a estreita correlação entre o currículo, a ideologia e o poder.

A disputa que se trava na definição do tipo de homem e sociedade pretendidos não

se circunscreve simplesmente ao campo epistemológico de luta ou competição entre

concepções, mas está implicada ativamente na busca de hegemonia no campo social ou,

como se refere SILVA, no “campo epistemológico social”, motivo pelo qual se inscreve

no centro de um “território contestado” (2004, p. 15).

As concepções que se tem de currículo, portanto, se refletem na configuração das

práticas pedagógicas realizadas na escola, uma vez que são elas que informam a práxis

escolar através da construção de esquemas explicativos da realidade e atribuição de

sentido a ação que se efetiva no cotidiano escolar. As concepções ao serem incorporados

pelos atores pedagógicos ocupam o lugar de sentido dominante, se constituindo, pois,

como base, alicerce e fundamento para sustentação do projeto pedagógico.

As concepções que se tem do tipo de ser humano ou de sociedade desejado,

portanto, associam-se ao sentido de causa defendida no coletivo dos educadores, de

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302811

princípio do qual partem e que também aciona os fundamentos que irão nortear a sua

práxis.

Devemos entender, baseados nesses pressupostos que a opção feita pela Secretaria

da Educação do Ceará (SEDUC) na definição do currículo das EEEPs não é neutra por

se encontrar inscrita no território de disputa de sentidos e significados para o referido

currículo em que, de um lado, há a concepção de currículo integrado, de matriz

epistemológica eminentemente crítica, e de outro, há o currículo implementado, de

orientação claramente mercadológica.

A análise da concepção de currículo integrado nos permite observar que entre os

contornos que são idealizados ao currículo pretendido nos documentos de orientação para

implantação da política de integração curricular do MEC e os contornos do currículo

prescrito para as EEEPs há uma clara oposição de concepções, o que confirma, na prática,

a disputa de hegemonia entre dois projetos distintos com diferentes pretensões sobre o

tipo de ser humano a ser formado.

A concepção de formação humana integral, explícita no documento base

construído pelo MEC para nortear as propostas pedagógicas do ensino médio integrado a

educação profissional, se funda na relação trabalho e educação e tem como pano de fundo,

os princípios da escola unitária que pretendia ser omnilateral no sentido de formar o ser

humano na sua integralidade física, mental, cultural, política, científico-tecnológica.

(Brasil, 2007)

A ideia de currículo integrado, coerente com essa concepção, se gesta no bojo da

teoria crítica de currículo, o qual preconiza como finalidade da escola, oferecer uma

educação que contemple todas as formas de conhecimento produzidas pela atividade

humana. Trata-se de uma visão crítico-dialética de educação à medida que não separa o

conhecimento acumulado pela humanidade na forma de conhecimento científico daquele

adquirido pelos educandos no cotidiano das suas relações culturais e materiais. Por essa

razão, possibilita uma abordagem da realidade como totalidade, permitindo um cenário

favorável a que todos possam ampliar a sua leitura sobre o mundo e refletir sobre ele para

transformá-lo.

Os estudos que analisam os processos pedagógicos implicados no trabalho com o

currículo integrado como os realizados por FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS (2005),

KUENZER (1989), SAVIANI (1989; 2003; 2007), entre outros, apontam que esta

perspectiva implica em desenvolver um percurso educativo em que estejam presentes e

articuladas em todos os momentos da formação duas dimensões, a teórica e a prática,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302812

contemplando ao mesmo tempo uma sólida formação científica e a formação tecnológica

de ponta, ambas sustentadas em um consistente domínio das linguagens e dos

conhecimentos sócio históricos. Isto significa afirmar que a proposta político-pedagógica

que se advoga terá como finalidade o domínio intelectual da tecnologia a partir da cultura.

Equivale dizer: contemplará, no currículo, de forma teórico-prática, os fundamentos, os

princípios científicos e as linguagens das diferentes tecnologias que caracterizam o

processo de trabalho contemporâneo, tomados em sua historicidade.

Sinteticamente, é esse o embasamento que dá sustentação teórica às propostas

brasileiras de currículo integrado, gerando, assim, um significado social distinto às

práticas de formação no ensino médio que, em última instância, tem a emancipação e a

humanização como horizontes.

Contraditoriamente, a análise do modelo de currículo prescrito pela SEDUC para

as EEEPs tanto revela seu distanciamento dessa perspectiva como evidencia a sua

aproximação de uma lógica mercadológica e utilitarista, que pela sua racionalidade,

representa uma contraposição a práticas pedagógicas que visem à educação humana

integral, conforme passamos a analisar a seguir.

3. OS CAMINHOS TRILHADOS NA ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DAS

EEEPS

O currículo das EEEPs foi definido pela SEDUC por ocasião da implantação das

referidas escolas. Esse currículo que deve ser comum a todas as escolas estaduais de

educação profissional do Ceará, estabelece a rotina dos estudantes de ensino médio

incluindo aulas das 7h às 17h.

A matriz curricular, com previsão de 5.400 horas de atividades a serem

desenvolvidas em três anos, é composta por todas as disciplinas da base nacional comum

do Ensino Médio, complementada pelas disciplinas profissionalizantes da habilitação a

qual o curso se vincula. Além disso, há uma parte diversificada composta por atividades

pedagógicas com abordagens, tais como: Projeto de Vida, Formação para Cidadania,

Mundo do Trabalho, Empreendedorismo, Tese e Aprendizagem Cooperativa.

Emergem dessa organização curricular questões de diversas ordens a serem

enfrentadas. Todavia, nessa análise nos deteremos nos aspectos relativos a integração

curricular, a forma como os sujeitos da prática pedagógica enxergam a proposta e as

concepções que subjazem às práticas implementadas.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302813

No que tange a construção curricular, a opção se deu pela justaposição de

disciplinas de formação geral e formação profissional, complementada por um conjunto

de disciplinas e abordagens coerentes com as premissas do modelo de gestão – TESE.

Essa proposição não favorece a integração curricular, pois conforme lecionam

FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, a sobreposição de disciplinas consideradas de

formação geral e de formação específica ao longo de um curso não é o mesmo que

integração, (...). A integração exige que a relação entre conhecimentos gerais e específicos

seja construída continuamente ao longo da formação, sob os eixos do trabalho, da ciência

e da cultura. (2005, p.1093/94)

A ideia de eixos integradores que também é reforçada no documento base do MEC

para a política de ensino médio integrado a educação profissional, o qual sugere os temas

trabalho, ciência, cultura e tecnologia como estratégia da integração curricular não foi

considerada na proposta. Ao contrário, observamos através de nossa imersão nas práticas

pedagógicas dessas escolas que fatores de diversas ordens inviabilizam a integração

curricular.

O currículo, os conteúdos, seu ordenamento e sequenciação, suas hierarquias e

cargas horárias, conforme ARROYO (2007 p. 18) “são o núcleo fundante e estruturante

do cotidiano das escolas, dos tempos e espaços, das relações entre educadores e

educandos, da diversificação que se estabelece entre os professores”.

Reconhecendo que as lógicas sobre as quais se estruturam as atividades e as

disciplinas nos currículos determinam as formas de trabalho na escola, a autonomia ou a

sua falta, percebemos que o controle exercido pela SEDUC sobre as escolas para cumprir

as “grades curriculares” estabelecidas, acompanhado da prescrição sobre como se devem

organizar os tempos e espaços escolares engessa os sujeitos escolares, tirando sua

autonomia até mesmo para criar no espaço escolar momentos de reuniões e planejamento

coletivos, até porque os planejamentos são feitos por área, em momentos previamente

estabelecidos pela SEDUC.

Ora, um currículo integrado requer autoria dos professores, participação dos

sujeitos envolvidos na aprendizagem, para desvelar suas relações e suas especificidades.

Para isso, mais do que práticas de cooperação entre as disciplinas, é necessário a

integração entre os educadores, o compartilhamento de propósitos educacionais comuns,

o planejamento coletivo, de modo a propiciar a inter-relação entre as abordagens. As

disciplinas devem ser colocadas numa perspectiva relacional, na qual as fronteiras se

tornam pouco nítidas, promovendo maior autonomia de professores e alunos, mais

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302814

integração dos saberes escolares com os saberes científicos e os saberes cotidianos

(BERNSTEIN, 1996), numa abordagem inter e transdisciplinar (MORIN, 2002).

Na EEEP, além do controle da SEDUC sobre a escola, há também o modo de

contratação dos professores das disciplinas profissionalizantes que contribui para a

divisão do grupo de professores se constituindo em mais um entrave a integração

curricular. Esses professores são selecionados e terceirizados pelo instituto Centro de

Ensino Tecnológico - CENTEC, em sua grande maioria, sem licenciatura para a docência.

Isso contribui para se estabelecer na escola dois grupos distintos de professores: os

professores das disciplinas da base comum nacional e os professores da “área técnica”

(grifos nossos para destacar a expressão utilizada na escola para categorizar esses

professores). Inclusive, na escola pesquisada, devido a forma de organização dos tempos

pedagógicos e das aulas, não existe prática de planejamento envolvendo os dois grupos

de professores.

O trabalho que a escola autonomamente poderia realizar para propiciar a

integração curricular mediante o desenvolvimento de projetos, temas geradores, eixos

integradores, entre outras possibilidades, fica comprometido devido aos aspectos aqui

analisados se mantendo a linearidade e o isolamento das disciplinas.

Além disso, a concepção de currículo integrado não está devidamente disseminada

entre os educadores da EEEP, não há o compartilhamento de conceitos e princípios

pedagógicos coerentes com a referida concepção. Há professores que partindo do

entendimento que deveria haver uma unidade entre as abordagens do currículo,

reconhecem que a perspectiva da integração curricular não está posta para seu trabalho,

enquanto há outros professores que não souberam precisar o que é um currículo integrado,

se reportando a TESE como o elemento integrador das ações, uma vez que seria a filosofia

de convergência dos propósitos do projeto. Na visão daqueles professores que defendem

uma unidade nas abordagens curriculares, o currículo da sua escola não está devidamente

integrado e a forma como o currículo dos cursos está organizado dificulta essa integração,

pois se tratam de dois cursos distintos ocorrendo simultaneamente, um de ensino médio

e outro profissionalizante.

Indagados sobre como acontece a definição do programa curricular das diferentes

disciplinas da base comum, os professores reconhecem que há a reprodução de um

currículo do ensino médio regular que é multiplicado para todos os cursos, inclusive com

a mesma carga horária, variando apenas a parte profissionalizante, o que revela

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302815

nitidamente a ausência da preocupação de integrar os conhecimentos gerais e específicos

de cada habilitação profissional na arquitetura do currículo.

Sobre a possibilidade de trabalhar estratégias pedagógicas de integração

curricular, os professores reconhecem que como as disciplinas e suas cargas horárias já

estão prescritas e em cima dessa prescrição é feito o controle acadêmico, fica meio difícil

propor algo diferente do que já se encontra definido. Mas acreditam que seria possível

trabalhar os projetos interdisciplinares para criar um mínimo de convergência entre as

diversas abordagens. Todavia, para tanto defendem uma maior aproximação dos

professores da “área técnica” com os das disciplinas do ensino médio e momentos para

apropriação teórica das concepções que embasam essa prática pedagógica.

Cabe frisar, portanto, que a integração curricular, ideia força da política de ensino

médio integrado não se encontra organicamente articulada na proposta. A introdução de

diversos temas compatíveis com as premissas da TESE na parte complementar, ao

contrário do que pensam alguns, não é capaz de promover essa integração, se mantendo,

portanto, a organização disciplinar, linear e estanque.

Quanto às concepções mais disseminadas no cotidiano escolar, identificamos nas

nossas observações que são aquelas que fundamentam as disciplinas da parte

complementar do currículo. Talvez até porque elas sejam trabalhadas de forma

metodológica mais dinâmica, se tornando mais agradáveis ao aluno que assiste a nove

aulas por dia, em sua grande maioria baseadas na tendência tradicional, com metodologia

invariavelmente expositiva, numa sala em que os alunos se sentam em fileiras, cujos

lugares são previamente demarcados conforme método do Projeto Diretor de Turma,

denominado “mapeamento de sala de aula”.

Essas disciplinas, descritas sinteticamente, apresentam as seguintes

características: A disciplina TESE é modelada de acordo com a TEO (Tecnologia

Empresarial Odebrecht), e toma como parâmetro seus princípios, conceitos e critérios.

Com base nesses princípios, diversas temáticas são desenvolvidas sob a forma de

atividades como oficinas, seminários, projetos e outros, visando atingir os objetivos

contidos nos pilares do conhecimento no Relatório de Jacques Delors, quais sejam:

Aprender a conhecer, Aprender a fazer, Aprender a viver juntos (conviver) e Aprender a

ser. A disciplina Formação para a cidadania que se dá através do Projeto Professor Diretor

de Turmaii visa a educação emocional e também toma por princípios básicos os quatro

pilares da educação de Jacques Delors.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302816

O componente curricular denominado Horário de Estudo é desenvolvido através

da metodologia da Aprendizagem Cooperativaiii.

Os componentes curriculares Projeto de Vida e Mundo do trabalho, são

trabalhados a partir de uma proposta metodológica desenvolvida no âmbito da parceria

Instituto Aliança/SEDUC, os quais tem como princípio básico o foco no jovem: “como

ator, co-autor, interlocutor e agente e estimula a descoberta e o desenvolvimento do seu

potencial do jovem.”(CEARÁ, 2010). Os dois componentes são trabalhados através de

dinâmicas e vivências que buscam desenvolver a autodeterminação dos jovens para

atingir metas e resultados.

As Temáticas, Práticas e Vivências (TPV) visam a integração da formação escolar

de nível médio com a formação em Empreendedorismo, desenvolvida através da parceria

SEDUC/SEBRAE.

Os conceitos de competências, autodeterminação, empreendedorismo, foco em

resultados, protagonismo, entre outros, são basilares nessas disciplinas. Não nos cabe aqui

analisar a carga ideológica impregnada nesses conceitos nem seus usos sociais, mas vale

ressaltar que sua função na abordagem curricular é o de conformar a proposta pedagógica

as premissas da TESE. Esse direcionamento introduz nas práticas curriculares diversas

concepções e orientações mercadológicas, que apesar de não integrar juntamente com as

demais abordagens curriculares um todo consistente e coerente, concorre como a parte

mais expressiva do currículo para a formação da identidade dos jovens.

As premissas da TESE, portanto, não deixam de cumprir o seu papel de

estabelecer uma vinculação mais estreita do currículo com os fins e valores do mercado

de trabalho, bem como, de conformar a própria forma de gerenciamento das EEEPs aos

moldes de uma empresa capitalista moderna e aos critérios de produtividade eficácia e

eficiência dos processos produtivos.

Mesmo que a gestão não seja o foco de discussão desse trabalho, destacamos que

as dimensões relacional, pedagógica e administrativa da escola se pautam por uma

racionalidade de gestão diferente daquela das organizações empresariais. Não reconhecer

isso significa desprezar a luta e os avanços na defesa que se consolida desde os anos de

1980 pela democratização e autonomia da escola pública. No bojo dessa mesma luta,

frisamos que a qualidade social defendida para a educação é diferente daquela referente

aos padrões de eficiência e competitividade empresarial.

Da submissão das instituições de educação a esses padrões decorrem várias

consequências como, por exemplo, novos conceitos vão sendo postos em prática para

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302817

criar outras representações da realidade mais compatível com o que o mercado quer. Os

termos e conceitos da pedagogia vão sendo substituídos pelos termos e conceitos da

retórica pragmática do mercado, o que, por seu turno, vai também demandando uma nova

postura dos educadores, mais coerente com a filosofia do mercado.

Trata-se, de acordo com ARROYO, (2007, p. 24) de uma visão dos alunos “como

recursos humanos a serem carimbados para o mercado segmentado e seletivo.” Para o

autor, nessa perspectiva, nós educadores “perdemos a autoria, estreitamos o leque de auto-

escolhas, renunciamos à possibilidade de ter outro projeto de sociedade, de formação

humana, de educação”.

Mesmo que essas determinações no interior das EEEPs não ocorram de maneira

linear e que os sujeitos do ato educativo encontrem espaço para negá-las em suas práticas,

elas se apresentam como contraponto a adoção de conceitos e categorias como formação

humana integral, humanização, emancipação. É obvio também que elas têm

consequências nas culturas educacionais, como por exemplo, o enfraquecimento da

identidade pedagógica formativa e o fortalecimento de uma identidade empresarial

mercadológica que melhor se coaduna com a pedagogia pragmática de inspiração liberal

a qual preconiza a necessidade de formação de indivíduos cuja característica subjetiva

principal seja a aptidão para a competitividade do setor produtivo e a adequação

incontestável as novas demandas do mercado de trabalho capitalista.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pedagogia implantada nas Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará

revela o modo como a educação atualmente tem sido condicionada, ou mesmo

determinada pelas forças econômicas globais num contexto em que o mercado é erigido

ao patamar de modelo ideal para orientar as ações nas instituições educacionais.

Nesta perspectiva, o currículo das EEEPs vem tentando conformar os sujeitos da

ação educativa – docentes e alunos a uma concepção pragmatista, utilitarista, cientificista

e positivista de educação, cuja referência principal é o modelo de gerenciamento

empresarial expresso em mecanismos como a TESE.

A análise da proposta das EEEPs evidencia que uma pedagogia prescritiva que

tem o mercado como referência além de ser vazia de fundamentos para os fazeres

pedagógicos também é contrária a propostas educativas comprometidas com a verdadeira

formação humana.

Havemos de reconhecer que o currículo integrado conforme preconizado nas

abordagens críticas pressupõe, antes de tudo, um conjunto de compromissos político-

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302818

ideológicos que norteiam a defesa da sua realização. Pressupõe também que a

organização dos componentes curriculares e das práticas pedagógicas, vise corresponder,

nas escolhas, nas relações e nas realizações, ao pressuposto da totalidade do real como

síntese de múltiplas determinações. O diálogo, a problematização da realidade, a

pesquisa, ganham destaque como metodologia na qual a autoria dos educandos e

educadores no processo de ensinar e aprender é fundamental.

Se reconhecermos a implicação mútua existente entre educandos e currículo

somos obrigados a reconhecer a necessidade de repensar o currículo das EEEPs e a

respectiva lógica em que estão estruturados. Esta lógica tem um peso muito mais

significativo na conformação das identidades dos alunos do que as lições que nós

educadores transmitimos.

A política de ensino médio integrado inaugura uma nova realidade educativa no

contexto educacional da escola pública do Ceará, a qual se reveste de sentido especial em

termos de possibilidade de oportunizar uma formação de qualidade social para a nossa

juventude. Por se tratar de uma política muito recente, ainda são poucos os trabalhos que

se dedicam a sua análise, portanto, esperamos que a reflexão aqui brevemente traçada se

constitua em provocação para que os educadores e pesquisadores do campo da educação

acrescentem outras reflexões que contribuam na construção de outras práticas

pedagógicas nas EEEPs.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, F. R. B. A política de educação profissional no Brasil e no Ceará: o desafio

da articulação do ensino médio com a educação profissional. In: Associação Nacional de

Política e Administração da Educação. Disponível em:

http://www.anpae.org.br/iberolusobrasileiro2010/cdrom/40.pdf. p. 9

ARROYO, Miguel. Indagações sobre currículo. Educandos e educadores: seus direitos e

o currículo. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. 52 p.

BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle.

Vozes: Petrópolis, 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Educação Profissional Técnica de Nível Médio

Integrada ao Ensino Médio – Documento Base. Brasília, 2007. Disponível em:

http://portal.mec.gov.br/setec

_________. Secretaria de Educação a Distância. Ensino Médio integrado a Educação

Profissional. Boletim Salto para o Futuro, nº 7 . Maio/Junho 2006. Disponível em:

http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf2/boletim_salto07.pdf

CEARÁ. Secretaria da Educação. Documento Referenciais Para a oferta do Ensino Médio

Integrado à Educação Profissional da Rede Estadual de Ensino do Ceará. Fortaleza, 2010

FRIGOTTO, G. CIAVATTA, M. e RAMOS, M. A política de educação profissional no

governo Lula: um percurso histórico controvertido. In: Revista Educação & Sociedade.

V. 26, no 92. Outubro de 2005 (Número Especial). P. 1092-1093. Disponível em:

http://www.cedes.unicamp.br.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302819

KUENZER. Acácia Z. O trabalho como princípio educativo. Cadernos de Pesquisa. São

Paulo: 21-28, Fevereiro de 1989.

MORIN, Edgar. Enfoque globalizador e pensamento complexo. Porto Alegre: Artes

Médicas. 2002.

RAMOS, Marise N. (Org.); FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.); CIAVATTA, Maria (Org.)

Ensino Médio Integrado: Concepção e Contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas, SP:

Autores Associados, 2003.

______. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: FIOCRUZ / Politécnico de

Saúde Joaquim Venâncio, 1989.

______. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista Brasileira

de Educação, [S. l.], v. 12, n. 34, jan./abr. 2007.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do

currículo. 4. ed. Belo horizonte: Autêntica, 2004

i Cf. Documento Referenciais Para a oferta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional da Rede Estadual de Ensino do Ceará, o conceito de protagonismo compreende a participação ativa e construtiva

do jovem na vida da escola. Portanto, o jovem como partícipe em todas as ações da escola e construtor do seu projeto de vida. A formação continuada se inscreve no âmbito da dinâmica atual do mundo do trabalho

que coloca o conhecimento como questão central, tornando a formação continuada como uma das principais exigências. A atitude empresarial diz respeito ao compromisso de manter o foco no alcance dos objetivos e resultados pactuados. A corresponsabilidade significa responsabilidade compartilhada.

Educadores, pais, alunos, SEDUC e outros parceiros comprometidos com a qualidade do ensino e da aprendizagem, garantindo a eficiência nos processos e a eficácia nos resultados e a replicabilidade diz

respeito à aplicação da Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional – TESE em outras escolas, assim como práticas pedagógicas consolidadas inerentes a educação profissional.

ii Cf. Documento Referenciais Para a oferta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional da Rede Estadual de Ensino do Ceará, é um projeto de execução simples, em que um professor que ministre qualquer disciplina, assume o compromisso de responsabilizar-se pelos alunos de uma única turma. A exigência imprescindível é que tenha perfil adequado para assumir a função. Dentre outras qualidades, precisa ser: bom líder, incentivador, ativo, responsável, sensível, prudente e apaixonado pela educação. Esses professores são denominados Diretores de Turma.

iii Cf. Documento Referenciais Para a oferta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional da Rede

Estadual de Ensino do Ceará, os grupos de estudo pensados a partir da aprendizagem cooperativa baseiam-se numa interdependência positiva entre os membros do grupo, onde as metas são estruturadas, visando a necessidade de todos trabalharem pelo rendimento de todos os membros do grupo, ao mesmo tempo em que trabalha pelo seu próprio rendimento.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302820