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Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 87-110 www.fabelnet.com.br/ensinagem 87 O PREÇO DO AÇAÍ NA IMPRENSA PARAENSE: DO ENQUADRAMENTO AO AGENDAMENTO THE PRICE OF THE AÇAÍ PARAENSE PRESS: THE FRAMEWORK TO SCHEDULE EL PRECIO DEL AÇAÍ EN LA IMPRENSA PARAENSE: DEL ENCUADRAMIENTO AL AGENDAMENTO Danilo Miranda Caetano 1 RESUMO O artigo discute questões referentes aos processos de enqua- dramento e agendamento das notícias relacionadas ao preço do suco do açaí na cidade de Belém. Apresenta pesquisa realizada com 62 trabalhadores da cadeia produtiva do açaí e demonstra a relação exis- tente entre o tipo de cobertura jornalística promovida sobre assunto e o entendimento dos trabalhadores sobre as causas e motivações das variações no preço do produto. Palavras chave: Agenda-Setting. Enquadramento. Açaí. Preço. ABSTRACT This article discusses issues related to framing processes and 1 Manuscript rst received /Recebido em: 13/03/2014 Manuscript accepted/Aprovado em: 04/06/2014 Mestrando em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia. Especialista em Jornalismo, Políticas Públicas e Cidadania pela Universidade da Amazônia, 2013. Especialista em Planejamento e Gestão Empresarial pela Universidade Católica de Brasília, 2002. Graduado em Comunicação Social, habilitação em Publicidade e Propaganda pela Universidade da Amazônia, 2000. Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém Ensinagem: Faculty of Belém Journal V. 3, n.2, Julho/Dezembro 2014, p. 87- 110 ISSN 2238-4871

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O PREÇO DO AÇAÍ NA IMPRENSA PARAENSE: DO ENQUADRAMENTO AO AGENDAMENTO

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O PREÇO DO AÇAÍ NA IMPRENSA PARAENSE: DO ENQUADRAMENTO AO AGENDAMENTO

THE PRICE OF THE AÇAÍ PARAENSE PRESS: THE FRAMEWORK TO SCHEDULE

EL PRECIO DEL AÇAÍ EN LA IMPRENSA PARAENSE: DEL ENCUADRAMIENTO AL AGENDAMENTO

Danilo Miranda Caetano1

RESUMO

O artigo discute questões referentes aos processos de enqua-dramento e agendamento das notícias relacionadas ao preço do suco do açaí na cidade de Belém. Apresenta pesquisa realizada com 62 trabalhadores da cadeia produtiva do açaí e demonstra a relação exis-tente entre o tipo de cobertura jornalística promovida sobre assunto e o entendimento dos trabalhadores sobre as causas e motivações das variações no preço do produto.

Palavras chave: Agenda-Setting. Enquadramento. Açaí. Preço.

ABSTRACT

This article discusses issues related to framing processes and

1 Manuscript fi rst received /Recebido em: 13/03/2014 Manuscript accepted/Aprovado em: 04/06/2014

Mestrando em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia. Especialista em Jornalismo, Políticas Públicas e Cidadania pela Universidade da Amazônia, 2013. Especialista em Planejamento e Gestão Empresarial pela Universidade Católica de Brasília, 2002. Graduado em Comunicação Social, habilitação em Publicidade e Propaganda pela Universidade da Amazônia, 2000.

Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém Ensinagem: Faculty of Belém Journal V. 3, n.2, Julho/Dezembro 2014, p. 87- 110ISSN 2238-4871

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scheduling of news related to the price of açaí juice in Belem. It presents survey of 62 workers in the production chain of the açaí juice and demonstrates the relationship between the type of promo-ted media coverage of subject and the workers’ understanding of the causes and motivations of changes in the product price.

Keywords: Agenda-Setting. Framing. Açaí juice. Price.

RESUMEN

El artículo discute cuestiones referentes a los procesos de en-cuadramiento y agendamiento de las noticias relacionadas al precio del jugo del “açaí” en la ciudad de Belém. Presenta pesquisa realizada con 62 trabajadores de la cadena productiva del “açaí” y demuestra la relación existente entre el tipo de cobertura periodística promovida sobre asunto y el entendimiento de los trabajadores sobre las causas y motivaciones de las variaciones en el precio do producto.

Palabras clave: Agenda-Setting. Encuadramento. Açaí. Precio.

1 INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objeto a cobertura jornalística realizada pelos jornais O Liberal e Diário do Pará sobre os aspectos sociais, políticos e econômicos da formação do preço do suco do açaí na cida-de de Belém. Objetiva demonstrar a relação entre essa cobertura e a visão dos 62 maquineiros¹ pesquisados entre os dias 2 e 30 de abril de 2013.

Os dados levantados foram obtidos através do preenchimento de questionários impressos, onde cabia ao pesquisador fazer as per-guntas e marcar as repostas após a manifestação dos pesquisados. As impressões orais ouvidas durante este processo também foram consi-deradas, mesmo não computadas do ponto de vista estatístico. Obser-vações diárias, realizadas na “feira do açaí”, no mercado do Ver-o-Pe-

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so, em Belém, durante dois anos e meio, período compreendido entre outubro de 2010 e abril de 2013, acompanhando um maquineiro com mais de vinte anos de atividade no ramo, durante o processo de negociação e compra do insumo, foram associadas à experiência na venda do suco do açaí – o autor possui um ponto de venda do produto – e se mostraram imprescindíveis para conhecer a “dinâmica da feira” e para o entendimento de como o preço do suco do açaí se constrói ao longo de sua cadeia de comercialização.

A escolha do material noticioso analisado, por sua vez, foi baseada na importância dos dois jornais estudados e no fato de as duas reportagens representarem uma síntese do conteúdo jornalístico impresso, existente sobre o tema. Outras questões, relacionadas ao tamanho e ao formato das matérias, localização dentro do caderno de notícias e utilização de elementos característicos do jornalismo impresso (infográfi cos, fotografi as, gravuras e olhos), também foram importantes durante o processo de escolha.

Para a delimitação do tema considerou-se o fato de o açaí, para o paraense, não representar apenas o isotônico que patrocina even-tos esportivos mundo afora e que é tomado por atletas e lutadores em suas academias, ou somente o alimento fruto da palmeira Euterpe oleracea², que é extraído dos caroços macerados pelas mãos dos ribei-rinhos ou pelas máquinas batedeiras³ espalhadas pelos milhares de “pontos de venda” dessa região. O açaí por essas “bandas” é também, e principalmente, a cor da morena que anda pelas ruas e o símbolo de distinção e força do caboclo amazônico. Múltiplas signifi cações difíceis de serem tratadas de uma única vez e que exigiram deste tra-balho a priorização das implicações e relações políticas, econômicas e comunicacionais da construção do discurso jornalístico sobre o preço do suco do açaí na cidade de Belém.

O estudo inicia na apresentação e discussão dos conceitos re-lacionados ao Frame e Agenda-Setting, na visão de autores como Ma-xwell McCombs e Danilo Rothberg. Segue analisando as notícias

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selecionadas à luz desses referenciais teóricos e verifi ca se os seus con-teúdos e discursos fazem, ou não, justiça aos conceitos de compreen-são múltipla e geral do tema e principalmente se são reapropriados e reutilizados pelos trabalhadores da cadeia produtiva do açaí em suas relações comerciais e simbólicas.

2 A AGENDA E O QUADRO

Teorias e hipóteses mais contemporâneas, como as formatadas pelos norte-americanos MacCombs e Shaw (1972), inspiradas pelos insights de Walter Lippmann em seu livro Public Opinion de 1922, revelam que é com o passar do tempo que os efeitos do conteúdo pau-tado acabam sendo incorporados como assunto relevante pelo públi-co. A hipótese é de que a imprensa “pode, na maior parte das vezes, não conseguir dizer às pessoas como pensar, mas tem, no entanto uma capacidade espantosa para dizer aos seus próprios leitores sobre que temas devem pensar qualquer coisa” (COHEN, 1963 apud WOLF, 2003, p. 145).

As pessoas tem tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que refl ete de perto a ênfase atribuída aos mass media aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas (SHAW, 1979 apud WOLF, 2003, p. 144).

Assim, a busca por orientação, fator essencialmente psicológi-co, pode ser estimulada pelo efeito de agendamento (SOUSA, 2006). A opinião pública neste sentido é conduzida através de um proces-so premente guiado pela relevância e incerteza causadas por toda a gama de acontecimentos que a circundam e que ajudam a explicar a “saliência da agenda da mídia à agenda da sociedade” (McCOMBS, 2009, p. 90). Todavia, a hierarquização do conteúdo agendado parece

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decorrer muito mais em função de processos que passam desde as ro-tinas produtivas e pelos direcionamentos empresariais dos grupos de comunicação, até critérios pessoais dos jornalistas e seus elementos socioculturais precedentes, do que por motivações meramente ma-nipulatórias.

E isso, mesmo considerando autores como Roberts (apud WOLF, 2003, p. 145) que lembram que quando o receptor não con-segue decodifi car criticamente uma mensagem jornalística a imagem que, através dela, ele passa a fazer do fato narrado acaba por ser ma-nipulada, distorcida e estereotipada.

A hipótese do Agenda-Setting é realmente controversa. Não pode ser considerada uma teoria acabada, pois se assim o fosse não comportaria incrementos ou complementos capazes de contribuir para o desenvolvimento de sua perspectiva teórica (HOHLFEDT, 2001). Em mais de 40 anos de pesquisas e uma grande quantidade de trabalhos, quase sempre, a encontrar e demonstrar novas correlações e novas aplicações dentro do aparato social contemporâneo, ainda pro-voca atração em uma parcela signifi cativa dos estudiosos, o que acaba contribuindo para um debate heterogêneo e nem sempre convergen-te. Wolf (2003) diz que o Agenda-Setting ainda é muito mais um conjunto de temas e conhecimentos passiveis de serem organizados do que um “modelo de pesquisa defi nido e estável”.

Existe, assim, uma clara percepção de que a hipótese do agen-da-setting é permeada, de acordo com o autor estudado, por vários conceitos complementares (Enquadramento, Gatekeeper, Newsmaking, etc.) e que esta porosidade em sua epistemologia realça a necessidade de se encontrar um modelo de pesquisa que siga caminhos e constan-tes previamente percorridos, gerando uma maior unidade, evitando o descarte dos esforços em pesquisas realizados anteriormente como ressalta Formiga (2006) em sua dissertação sobre o quadro evolutivo da hipótese.

A questão do enquadramento ou frame, por outro lado, foi in-

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corporada dentro dos estudos das comunicações por Gaye Tuchman, utilizando o conceito cunhado por Erving Goffman em seu estudo Frame analysis4 (1974) e também a noção de sinais metacomunica-tivos5 de Gregory Bateson e tem se tornando cada vez mais utiliza-do na compreensão e na crítica sobre as maneiras como a realidade é recortada, emoldurada e apresentada pelos mass media. Dentro do jornalismo, alude aos processos produtivos e operacionais que acar-retam a escolha de um determinado enfoque e a maneira pela qual este tomará um lugar “mais propício ao fl orescimento de certas visões dos fatos e processos políticos, e não outras” (ROTHBERG, 2010, p. 55). Assemelha-se a moldura de uma imagem nos dizendo “toma atenção àquilo que está dentro e não tomes atenção àquilo que está fora” (BATESON, 1972 apud GONÇALVES, 2005, p. 158).

Para Porto (2004, p. 78) também citado no livro de Rothberg (2010, p. 54) os enquadramentos são caracterizados por atividades capazes de promover a escolha, edição, supressão, ênfase ou redução de determinadas características da notícia a fi m de privilegiar um de-terminado tipo de entendimento a outros. Já para Carvalho (2010) o enquadramento no jornalismo não emoldura apenas a realidade, mas ajuda a construí-la contribuindo com aspectos específi cos e indisso-ciáveis da sua própria gênese. Em outras palavras o enquadramento seria um refl exo da própria instituição (jornalista e jornal) que o pro-move, carregando em si pedaços dela.

O autor reforça a necessidade da compreensão real da dimensão do processo de enquadramento no jornalismo, excluindo qualquer redução ou superestimação sociológica que possa vir a embaçar o seu papel na construção da realidade.

Autores como Danilo Rothberg (2010) falam de cinco tipos padrão de enquadramentos utilizados na construção de matérias so-bre políticas públicas. São eles: jogo, estratégico, confl ito, episódico e temá-tico. Para este estudo importa apenas dois deles: os enquadramentos episódicos e os temáticos. O primeiro por estar na base do problema

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da cobertura sobre o preço do açaí e o segundo por se caracterizar em uma das soluções para a melhoria da cobertura sobre o tema.

No tipo episódico a construção do discurso se dá de manei-ra desconectada e sem encadeamentos prévios, capazes de construir um percurso histórico até as conclusões ou indicações oferecidas pelo conteúdo noticiado. Tipifi cação que opta por tratar a ocorrência jor-nalística como um fato isolado no espaço e no tempo, sem o devido tratamento das questões mais complexas que perpassam o problema descrito, privilegiando apenas questões superfi ciais. Iyengar (1991 apud ROTHBERG, 2010, p. 21) diz que “a exposição a notícias epi-sódicas torna os espectadores menos suscetíveis a cobrar responsabi-lidades das autoridades públicas pela existência de um problema e, também, a considerá-las responsáveis por minorá-lo”.

Os enquadramentos temáticos, por sua vez, são caracterizados pela utilização de diferentes perspectivas, matizes e abordagens para tratar um determinado tema e por elaborar um quadro complexo e aprofundado sobre cada temática, considerando os resultados e suas possíveis consequências para todos os atores envolvidos. Este tipo de enquadramento possibilita aos jornalistas dar notoriedade a ideias distintas ou mesmo divergentes sem ater-se apenas a discricionarie-dade dos elementos confl itantes, explicando os motivos da discor-dância e apresentando pontos de convergência que contribuam para a elucidação do problema.

Rothberg (2010) diz ainda que estudos empíricos realizados por Iyengar nos Estados Unidos demonstram clara relação entre os tipos de enquadramentos realizados pelas notícias de TV e a atitude do público perante os assuntos abordados. Essa constatação, mesmo considerando o foco deste trabalho no jornalismo impresso, ajuda na compreensão sobre como a construção das notícias pode defi nir parte da realidade e também a maneira como ela é enfrentada.

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3 O AÇAÍ NOS JORNAIS

As duas matérias escolhidas como recortes para análise pos-suem tamanhos e formatos semelhantes e dispõem suas informações utilizando recursos também similares. Ambas foram publicadas ocu-pando meia página do caderno de notícias e representam uma síntese do material jornalístico normalmente publicado sobre o tema “preço do açaí”.

A matéria “Reajustes nos preços do açaí continuam”, publi-cada no Diário do Pará em 19 de janeiro de 2013 no caderno Belém A6, um sábado, ocupando meia página, logo de início, na retranca da notícia (“Diz o Dieese”), apresenta o que parece ser a mais importan-te fonte sobre o preço do açaí para os jornais paraenses. É quase sem-pre o Dieese - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - e sua pesquisa mensal de preços em 25 pontos de venda do suco do açaí em Belém, a instituição a apresentar os núme-ros sobre a variação e cotação do preço do produto na capital do Pará.

Impressiona a quantidade de notícias que trazem apenas este instituto como fonte ofi cial sobre o assunto. Apenas nesta matéria, além da referência na retranca, a palavra “Dieese” aparece outras cin-co vezes ao longo do texto. A construção do discurso é toda baseada em levantamentos estatísticos. Há referências aos dados do Dieese na sub-retranca (“... Este ano, o Dieese/PA já constatou novos rea-justes”) e também no sub-lead (“... A pesquisa é do Departamento de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese-PA)...”). Números e percentuais estão por toda parte, inclusive no miolo da matéria: “De novembro, até atualmente, os valores só crescem. Segundo o Dieese--PA, o açaí médio em dezembro de 2011 custava em média R$10,28; iniciou 2012 a R$ 10,30; em novembro do ano passado foi comer-cializado em média a R$ 10,27 e no mês passado aumentou para R$ 11,05. Hoje é possível encontrá-lo a R$ 14”.

No lide, parte primordial da notícia, fi ca claro por onde o texto

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seguiria: “Consumir açaí custou mais caro em 2012. Em alguns pon-tos, os reajustes chegaram a quase 9%. A maior alteração está no tipo mais consumido, o açaí médio, que fi cou cerca de 7,49% mais caro; e o açaí papa , com 8,57% em média de reajuste”. O enquadramento utilizado direciona o olhar do leitor sobre a questão da alta dos preços do suco do açaí apenas para “dentro do ponto de venda”, uma vez que é esse o locus da pesquisa realizada pelo Dieese. No caso da matéria em questão isto ainda é reforçado pela apresentação segmentada dos preços pelo “local de processamento” do produto - feiras, supermer-cados, etc.

A consequência lógica desta segmentação é o possível enten-dimento de que o preço varia conforme a vontade dos donos dos “pontos” ou em função dos diferentes perfi s de consumo dos estabe-lecimentos descritos. E não por um encadeamento estrutural de ele-mentos. Discurso este que tem correspondência direta com a noção de mercado como “Mito Inteligente” proposta por Bourdieu (2007) e que atribui ao conceito de mercado toda e qualquer carga ideológica e simbólica capaz de explicar magicamente fatos determinados por lógicas muito mais complexas.

No cerramento do quadro utilizado pela matéria do Diário do Pará, nenhum representante do executivo, da secretaria de agricul-tura, foi ouvido ou questionado sobre a existência de programas ou ações de governo capazes de refrear os preços do produto. Por exem-plo, se há políticas de distribuição de sementes para o cultivo do açaí em terra fi rme6 e linhas de crédito especiais para o aumento da produção e escoamento do fruto até os pontos de comercialização, principalmente durante o inverno amazônico.

Dentre os elementos escolhidos para enquadrar o tema não há citação sobre a inexistência de padronização nos cestos que transpor-tam os caroços até os portos de Belém. Essa discussão quase sempre é enquadrada como questão sanitária (se devem ser usados cestos de plástico ou de cipó de arumã7) e ignora o fato de se constituir tam-

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bém um viés importante na construção do preço do açaí processado, uma vez que o fruto que entra em Belém não passa por nenhum en-treposto comercial e por isso não é pesado.

Não há fi scalização na entrada desses barcos nas feiras e os grandes produtores e também os ribeirinhos sabem disso e por isso não fazem questão alguma de padronizar o tamanho de seus cestos. O tamanho reduzido de alguns deles, principalmente durante a en-tressafra, diminui a quantidade produzida e acaba pressionando os preços ao consumidor fi nal uma vez que os “maquineiros” trabalham tentando compensar as perdas na produção.

O governo municipal, por outro lado, também não foi e ge-ralmente não é ouvido sobre a existência de estudos para equipar as feiras do açaí no Ver-o-peso e na Conceição com estrados de elevação e lonas de cobertura para evitar o contato dos cestos com o solo e com a água da chuva. Fatos que a despeito da óbvia e importantíssima questão sanitária envolvida, também possui forte correlação com a precifi cação do produto, já que as condições insalubres de comer-cialização do fruto aumentam sua perecividade e diminuem a sua produtividade.

O processo de agendamento causado por conta desse tipo de abordagem faz com que pesquisadores de instituições como EM-BRAPA, UFRA e UFPA, não tenham seus trabalhos conhecidos e discutidos pela sociedade. Jamais são procurados para falar sobre a aplicação de técnicas ou mesmo inovações capazes de aumentar a pro-dutividade dos açaizais paraenses.

Pesquisadores como Maria Jucirene M. Nascimento, econo-mista e pesquisadora associada do Núcleo de Altos Estudos Ama-zônicos – NAEA – da Universidade Federal do Pará, simplesmente são ignorados pelas matérias aqui analisadas. Ainda que facilmente possam apontar problemas oriundos da relação perniciosa existente entre os grandes produtores, seus atravessadores e a variação de preço e de quantidade de açaí ofertada nos portos de comercialização em

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Belém. Justifi cativas comuns utilizadas na feira pelos comerciantes e repetidas pelos veículos de comunicação seriam facilmente descons-truídas analisando o trabalho de Nascimento.

Comparando-se a entressafra de produção de frutos de açaí com a de outros produtos do setor primário da economia, pode-se afi rmar que na entressafra do açaí – fi nal do verão de 1994 e início do inverno de 1995 – ocorre uma não correspondência entre o comportamento da quantidade ofertada e dos preços, que difere em essência da correlação de ambos na comercialização já observada e teorizada para o caso de produtos agrícolas e pecuários, que também experimentam o fenômeno da entressafra da na produção (NASCIMENTO, 2000, p. 4).

Nas observações realizadas para este estudo também foram percebidos acordos tácitos entre os “marreteiros”, produtores e atra-vessadores para manutenção de um preço único em toda a feira, além de uma forte elevação de preço graduada dia após dia, capaz variar em proporções impensáveis para qualquer segmento em um espaço temporal tão pequeno.

Foi verifi cado, por exemplo, que no meio do mês fevereiro de 2013 os maquineiros pagavam cerca de R$ 25,00 pelo paneiro de “14kg” de açaí. E apenas 20 dias depois, R$ 110,00 pelo mesmo cesto. Passados outros quinze dias, já no mês de março, o preço do paneiro havia caído para cerca de R$ 45,00. Essa alta volatilidade demonstra um forte componente de especulação na construção do preço do paneiro do açaí. Parece haver uma lógica equivocada e dis-torcida da clássica relação entre demanda e oferta, peremptoriamente ignorada pelos meios de comunicação, especialmente pela matéria analisada. Os atravessadores e marreteiros “comportam-se como se vendessem um produto de origem industrial, com custo de produção rigorosamente defi nido e contabilizado” (NASCIMENTO, 2000).

Com tantos elementos a explorar, a matéria analisada apresenta

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e recorta apenas a entressafra como principal elemento a justifi car os altos preços do suco do açaí. A primeira aparição dessa questão sa-zonal é na fala de um “maquineiro” que possivelmente há cinquenta anos ofereça a mesma explicação, calcada talvez na ausência de uma visão mais complexa e menos “agendada” do fato ou simplesmen-te pela falta de elementos discursivos capazes de fazê-lo expressar verbalmente outros fatores. Note: “Estou há 50 anos no ramo e sei que em janeiro acontece isso. É a entressafra e o preço eleva muito”. A segunda aparição é na legenda da imagem que ilustra a matéria: “Entressafra contribui para o aumento dos preços em janeiro”.

A entressafra e a exportação – a exportação será tratada mais adiante - formam uma díade comumente responsabilizada nos jor-nais pelos aumentos no preço do suco do açaí. Ao tabular as respostas da pesquisa com os maquineiros, verifi cou-se uma forte correlação entre o tipo de enfoque dado pelos jornais e o entendimento dos tra-balhadores sobre os principais fatores para a alta dos preços. Em um cenário com cinco opções, em média cerca de 50% das respostas con-vergiam para a mesma ordem: em primeiro lugar a entressafra, em segundo a exportação, terceiro os atravessadores e em quarto o poder público, simbolizado na fi gura do governo, conforme demonstrado na tabela 1:

Tabela 1 - Variáveis sobre preço mais citadas por posição (%)Resultado geral para os 62 questionários respondidos.

POSIÇÃO 1º 2º 3º 4º 5º

VARIÁVEIS

Entressafra 45% 21% 26% 8% 0%Exportação 24% 56% 11% 6% 2%

Atravessador 11% 13% 48% 21% 6%Governo 19% 3% 10% 42% 26%

Maquineiro 0% 6% 5% 23% 68%Total 100% 100% 100% 100% 102%

Fonte: Pesquisa realizada entre os dias 02 e 30 de abril com 62 trabalhadores da cadeia do açaí

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Considerando apenas as citações para as duas primeiras posi-ções, a díade “entressafra / exportação”, variando apenas na ordem em que aparecem, correspondem, também em média, por cerca de 70% das citações. Em situação idêntica o governo aparece apenas com pouco mais de 10%.

Os trabalhadores não se veem como responsáveis pelo aumen-to dos preços, ainda que as relações indiretas entre a divulgação da pesquisa do Dieese e o entendimento sobre a responsabilidade deles pareça fazer algum sentido. Isso talvez seja explicado por questões relacionadas à autopreservação ou pela aparição constante de fatores mais signifi cantes e catalisadores das atenções – entressafra e expor-tação – ou simplesmente porque a opinião pública pode prevalecer, em alguns sentidos, sobre a cobertura noticiosa (COLLING, 2001).

É importante ressaltar que dentre os 62 pesquisados 38 deles citaram em primeiro ou segundo lugares o “jornal” como o veículo mais utilizado para se manterem informados. Fato determinante se for lembrado que há referências de vários autores e pesquisadores sobre o maior efeito de agenda promovido pelos meios impressos em detrimento dos eletrônicos, principalmente os da televisão. Mc-Combs (2009) ao falar sobre essa questão revela que “o noticiário de televisão parece mais com a primeira página do jornal” e por isso mais superfi cial que este.

Outro dado que chamou atenção e que pode indicar na direção de um possível agendamento também dos consumidores e não apenas dos trabalhadores, foi o relacionado aos assuntos publicados e mais comentados pelos compradores nos pontos de venda. Foram ofere-cidas quatro opções para que os maquineiros ordenassem de acordo com suas experiências no atendimento de seus clientes quais assuntos eram os mais citados por eles na hora da compra do produto. Dentre os pesquisados, 49% afi rmaram ser o preço o primeiro assunto e 43% indicaram na mesma posição o mal de chagas. Contudo, quando são considerados os dois primeiros lugares juntos, a questão do preço do açaí chega a 85%, contra 64% da doença de chagas. (ver tabela 2):

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Tabela 2 - Temas mais citados pelos clientes por posição (%)Resultado geral para os 62 questionários respondidos.

POSIÇÃO 1º 2º 3º 4º

ASSUNTOS

Preço 49% 36% 13% 2%Chagas 43% 21% 20% 16%Falta 7% 33% 41% 20%

Benefícios 2% 10% 26% 62%Total 100% 100% 100% 100%

Fonte: Pesquisa realizada entre os dias 02 e 30 de abril com 62 trabalhadores da cadeia do açaí

É importante lembrar que a pesquisa foi realizada durante a entressafra do ano de 2013, no mês de abril, período de forte alta dos preços do suco do açaí. Fato que pode ter infl uenciado, decisiva-mente, as respostas dos entrevistados e que, por outro lado, ajuda na conclusão de que pode haver realmente um efeito de agenda tanto no público pesquisado, quanto nos consumidores em geral, uma vez que foi exatamente entre os meses de janeiro e julho (período da entressa-fra) que foi encontrada a maioria das matérias relacionadas ao preço, inclusive as duas analisadas neste estudo.

A segunda matéria, “Açaí tem aumento histórico de 25%” foi publicada em uma terça-feira, em O Liberal, em 12 de junho de 2012, ocupando meia página do caderno “Poder”. A questão da ex-portação e a inserção de referências ao aumento do açaí in natura nas feiras são as duas únicas e importantes diferenças entre este e o pri-meiro material. No mais, tal qual o outro, volta a trazer referências à pesquisa de preços do Dieese e seus excessos numéricos. Um fato que se repetiria outras seis vezes durante o decorrer do texto, a contar daquela inserida logo na sub-retranca da notícia: “Foi o 5º aumento consecutivo este ano, segundo o Dieese/PA”.

Sobre a exportação do fruto há um trecho da matéria onde en-contramos referência a respeito: “Segundo o Dieese os valores alcan-

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çados pelo produto no mês passado batem um recorde histórico de preço e se deve à entressafra do produto e a falta de uma política de abastecimento interno, já que grande parte da produção 600 mil to-neladas ao ano é exportada”.

Percebe-se que o discurso dos media oferece uma dupla respon-sabilidade pela alta dos preços: a entressafra e a exportação. Sendo a última associada à responsabilidade do governo pela falta de uma po-lítica de abastecimento. Um ponto positivo, porém efêmero no texto.

De toda maneira, pesquisas junto aos órgãos ofi ciais (SAGRI, MAPA e IBGE) sobre os números da exportação (para fora do país) e importação (para outros estados brasileiros) da polpa do fruto do açaí, apontam uma grande variação nos percentuais entre um instituto e outro. Oscilam entre 15% e 35% de toda a produção do estado. O que permite dizer, ao menos por estes números que, na pior das hipó-teses, cerca de 65% da produção ainda é comercializada e consumida no mercado local.

Alfredo Homma, economista da Embrapa Amazônia Oriental, em documentário exibido pela TV Cultura no ano de 2007, diz que houve um crescimento muito grande no consumo interno nas duas últimas décadas e lembra que após a introdução de práticas como a industrialização e o congelamento da polpa e também da melhoria dos processos de benefi ciamento do fruto, o suco do açaí, antes con-sumido basicamente durante a safra, também passou a ser procurado nos outros meses do ano, aumentando a demanda interna em duas ou três vezes.

O “pequeno detalhe” lembrado por Homma certamente se constitui no dado mais importante pra quem deseja relacionar e ava-liar o peso da entressafra e da exportação na construção do preço do açaí. Observando o aumento da demanda interna durante o período do inverno amazônico, fi ca mais fácil perceber que a entressafra e a exportação começam a se constituir problemas para a questão do preço suco do açaí a partir do momento em que, ano após ano, a

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atividade fi cou relegada a um segundo plano pelo poder público. Pa-rece que durante todo esse período foi mais fácil justifi car a falta de políticas públicas de incentivo à produção de açaizais em terra fi rme, por exemplo, do que agendar e discutir verdadeiramente todos os “gargalos” da atividade e não somente a construção dos “monstros entressafra e exportação”. A preocupação, nesse sentido, é a de que cada vez mais a realidade se construa de maneira incompleta sobre o problema, perpetuando olhares poucos críticos sobre os maiores responsáveis em minorá-los.

Ao mal tocar em questões políticas ligadas ao fato e às comple-xidades das escolhas envolvidas em determinada opção a ser adotada ou rejeitada pela gestão pública, acentuam-se apenas os aspetos cir-cunstanciais dos temas enfocados (ROTHBERG, 2010, p. 52). “A perspectiva da responsabilidade social do jornalismo relaciona-se à ideia de que a condição de existência primeira deste é o interesse público” (LAGO, 2010, p. 165). Os jornais devem ter em mente, assim, que boa parte da sociedade toma suas decisões e constrói seus entendimentos através do conteúdo por eles veiculados e que qual-quer descuido na produção da notícia pode acabar gerando impactos relevantes para a vida de inúmeros indivíduos e mesmo da socieda-de como um todo. O lugar privilegiado que o narrador jornalístico (individual e institucional) ocupa entre as demais narrativas sociais, aumenta a sua responsabilidade, uma vez que suas práticas são carre-gadas de valores, referências comportamentais e de modelos de iden-tidades (ROSA, 2001, p.287).

Como exemplo é possível citar o resultado das respostas dos maquineiros sobre o impacto nas vendas do suco do açaí, quando de uma cobertura ostensiva sobre o tema do “Mal de Chagas” nos jornais analisados. Através das respostas, percebe-se a centralidade que os medias têm na construção da realidade e na mobilização social/políti-ca em temas fortemente agendados como este.

Em um universo de 62 entrevistados, 65% deles disseram ter

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suas vendas diminuídas em 50% ou mais; e apenas 13% responde-ram sentir pouco ou nenhum impacto. (Ver tabela 3):

Tabela 3 - As notícias sobre o Mal de Chagas prejudicam em quantos %Resultado geral para os 62 questionários respondidos.

Índice Até 10% Até 25% Até 50% Mais de 50% TotalImpacto 13% 22,5% 48,5% 16% 100,0%

Fonte: Pesquisa realizada entre os dias 02 e 30 de abril com 62 trabalhadores da cadeia do açaí

Sob a ótica jornalística, uma série de matérias ajudaria na cons-trução de uma visão mais complexa sobre a formatação do preço do suco do açaí. Um trabalho que contasse, por exemplo, com a presença de um jornalista alguns dias na “feira do açaí” acompanhando o pro-cesso de negociação, compra e venda do produto in natura para veri-fi car alguns dos elementos especuladores envolvidos nessa trama. No entanto é preciso considerar, por outro lado, que existem difi culdades importantes e comuns ao processo de produção das notícias que pas-sam desde as rotinas produtivas e direcionamentos empresariais dos grupos de comunicação até por critérios pessoais dos jornalistas e seus elementos socioculturais precedentes.

Ou seja, jornais, revistas e rádios tem uma quantidade limitada de espaço e de tempo, pelo que só uma fração das notícias do dia acaba por ser publicada. É o processo de edição orientado pelos valores – notícia que acaba por fazer com que a atenção do público seja orientada e convocada para certos assuntos considerados como sendo de maior importância (CORREIA, 2011, p. 187).

Consideradas as difi culdades técnicas e funcionais, um esfor-ço maior por parte dos veículos de comunicação tornaria mais fácil observar que a questão da exportação, além da quantidade verdadei-ramente signifi cativa de produto retirado do mercado interno, pode

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estar contribuindo muito mais no status que conferiu ao produto através de uma publicidade ostensiva de seus impactos, do que pro-priamente pelo desequilíbrio causado em sua balança comercial. A divulgação a que foi submetido este fruto e seus benefícios, atraiu agentes especulativos de toda ordem para dentro da sua cadeia pro-dutiva elevando também as expectativas de ganho daqueles que já atuavam no segmento. Uma espécie de “bolha” especulativa prestes a estourar.

Os atravessadores, por exemplo, são agentes especulativos por natureza (NASCIMENTO, 2000). Eles atuam entre produtores, marreteiros e maquineiros leiloando e elevando os preços dos caroços in natura, independentemente da época do ano.

O método de arrecadação do açaí pelo atravessador é o seguinte: passam de casa em casa distribuindo paneiros de três tamanhos diferentes, depois voltam recolhendo os paneiros com frutos de açaí e pagando os proprietários. Até aí tudo muito simples. Todavia, o segundo atravessador ao chegar à casa de um ribeirinho/proprietário de açaí e encontrar paneiros lá deixados por outro atravessador oferece um preço superior ao acertado antes entre o primeiro atravessador e o proprietário. O ribeirinho cede e o primeiro atravessador fi ca sem o produto... Na próxima rodada é o próprio dono do açaí que toma a iniciativa de colocar um preço superior ao ofertado anteriormente pelo segundo atravessador. O primeiro que chega aceita e o segundo eleva ainda mais a sua oferta, resultando em novo aumento de preço. E quando há um terceiro atravessador, o preço passa assumir feições de infl ação galopante (NASCIMENTO, 2000, p. 12).

Todavia, algum nível de percepção sobre os equívocos come-tidos pelos jornais na cobertura do tema foi auferido pela pesquisa. Isso fi cou claro quando os entrevistados responderam sobre como eles gostariam que as notícias sobre o assunto fossem abordadas. A grande

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maioria, 73% dos entrevistados, disse querer que os jornais trouxes-sem conteúdos mais complexos e que abordassem todos os lados do problema. Outros 18% colocaram o governo como pauta principal.

Neste ponto é preciso ressaltar a importância do papel do mediador no entendimento correto dos temas existentes na agenda pública. Pela sequencia do questionário aplicado os trabalhadores já haviam respondido sobre a ordem de responsabilidade dos vários agentes envolvidos na questão do preço do açaí. Naquele momen-to apenas cerca de 10% deles, em média, posicionavam o governo como primeiro ou segundo colocados nessa hierarquia de responsa-bilidades. Porém, após lerem a questão sobre como gostariam que as matérias abordassem o tema, observando a alternativa que dizia “cobrando do governo medidas que regulem o mercado”, parecem ter compreendido o papel importante do poder público nessa questão, atribuindo, em média, 33% ao “governo” como a primeira ou segun-da pauta para a abordagem dos jornais. Cerca de três vezes mais que na questão anterior. (Ver tabela 4):

Tabela 4 - Tipos de matérias por posição (%)Resultado geral para os 62 questionários respondidos

POSIÇÃO 1º 2º 3º 4º

NOTÍCIAS

Complexas 73% 14% 9% 3%Governo 18% 49% 24% 10%

Atravessador 8% 32% 50% 8%Maquineiro 0% 5% 17% 78%

Total 100% 100% 100% 100%Fonte: Pesquisa realizada entre os dias 02 e 30 de abril com 62 trabalhadores da cadeia do açaí

Ainda sobre a percepção dos trabalhadores, parece haver uma acentuada preferência pelo jornal Diário do Pará sobre O Liberal quando o assunto é quem trabalha melhor o tema açaí em suas pá-ginas. 59% dos entrevistados apontaram o Diário do Pará e 34% o

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jornal O Liberal. Outros 7% não viam diferença entre os dois. A par-tir dessa questão foi solicitado que em uma única palavra defi nissem o que achavam das notícias sobre o açaí nesses dois jornais. Cerca de 80%, em média, disseram considerá-las basicamente como regula-res e péssimas, transparecendo um entendimento por parte desses trabalhadores de que há algo errado na cobertura noticiosa sobre o “preço do açaí”. E apesar do claro efeito de agenda provocado por esses veículos, não há como negar que esses trabalhadores percebem a ausência de elementos importantes no material jornalístico publi-cado. (Ver tabela 5):

Tabela 5 - Jornal preferido sobre açaí / Adjetivos sobre as notícias (%)Resultado geral para os 62 questionários respondidos.

JORNAIS PREFERÊNCIA ADJETIVOSPéssimas Regular Boas Ótimas Total

Diário 59% 25% 47% 22% 6% 100%Liberal 34% 48% 38% 10% 5% 100%Ambos 7% 25% 0% 50% 25% 100%

Fonte: Pesquisa realizada entre os dias 02 e 30 de abril com 62 trabalhadores da cadeia do açaí.

4 NOTAS CONCLUSIVAS

O tema açaí, apesar do seu inequívoco caráter de interesse público (cerca de trezentas mil pessoas envolvidas em uma cadeia produtiva que se constitui na quarta atividade econômica mais im-portante do estado do Pará8) não tem na cobertura noticiosa sobre o seu preço um enquadramento que construa um caminho histórico ao longo do tempo ou mesmo de cada ano. Aparece sempre de maneira episódica e agendado como se fosse simples decorrência de fatores naturais ou da dinâmica do mercado, fácil de ser explicado e sem as devidas correlações e aprofundamentos. O tema não é tratado à luz dos enquadramentos temáticos capazes de adentrar no coração do problema.

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A relação direta que a cobertura jornalística tem na mobiliza-ção social, de setores ou grupos, pressionando governos e o aparato público para implementação de políticas que apontem para o atendi-mento de determinada demanda não é nova nem tão pouco irrelevan-te. Dentro da própria cadeia produtiva do açaí é possível encontrar como exemplo claro a questão da proliferação do Mal de Chagas ad-vindo da falta de higiene e do trato sanitário correto do insumo. Ao agendar essa questão a imprensa ajudou a modifi car comportamentos e colocou na ordem do dia dos governos estadual e municipal a apro-vação de leis e procedimentos de controle e fi scalização sanitária da atividade no estado.

Especialmente sobre a questão do preço do suco do açaí, os mesmos meios de comunicação têm preferido adotar discursos es-tereotipados, marginalizando elementos imprescindíveis para o en-tendimento das questões principais que recaem sobre o assunto. Ao enquadrarem o tema do preço do açaí partindo de suposições e refe-renciais excessivamente técnicos e óbvios, suprimindo construções históricas mais humanas e experienciais, os jornais analisados, através das matérias selecionadas, distanciam o olhar dos trabalhadores (e porque não da sociedade também), dos elementos capazes de con-tribuir para a diminuição ou mesmo resolução dos problemas en-frentados pela atividade, agendando o tema de maneira superfi cial e estereotipada.

Dessa forma, os dados levantados e os autores pesquisados aju-daram na conclusão de que há, sim, um processo de transferência de agenda dos jornais para os trabalhadores da cadeia produtiva do suco do açaí artesanal, que tem ajudado a perpetuar olhares equivocados e estreitos sobre a temática estudada.

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NOTA

1 Nomenclatura utilizada pelos trabalhadores para diferenciar os que “ba-tem” e processam o açaí nos pontos de venda daqueles que produzem o fruto em suas propriedades – os produtores açaizeiros.

2 Nome científi co da árvore que produz o fruto do açaí.

3 Máquinas utilizadas pelos maquineiros para processar o fruto e extrair o suco do açaí.

4 Frame analysis constitui a obra teoricamente mais ambiciosa de Goffman; sua proposta “é isolar algumas das estruturas (frameworks) básicas dispo-níveis em nossa sociedade para conferir sentido aos eventos e analisar as vulnerabilidades especiais a que esses quadros de referência estão sujeitos” (1974, p. 10).

5 O conceito de sinais metacomunicativos provém dos estudos etológicos de Gregory Bateson (2002): são mensagens, explícitas ou não, que ajudam o recipiente a compreender as intenções no quadro (frame). (NUNES, 2004, p. 270).

6 Inserir dados do anuário de fruticultura sobre a distribuição de sementes efetuada pela Sagri.

7 Da família das matantáceas; uma espécie de cana de colmo liso e reto, que oferece superfícies planas, fl exíveis e que suportam o corte em talas milimé-tricas, perfeitas para fabricação dos cestos que transportam o açaí.

8 PARÁ. Secretaria de Estado de Agricultura. A importância do açaí no contexto econômico, social e ambiental do estado do Pará: 27ª Reu-nião ordinária da câmara setorial – MAPA. Brasília, DF, 2011.

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