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Reminiscências

jurídicas na obra de

Machado de Assis

Departamento de Cultura e Eventos

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Copyright da organização © Marcus Vinicius Cordeiro – Departamento de Cultura e Eventos, OAB/RJCopyright de “A retórica de Bento Santiago, um advogado” © 2008, Gustavo Tadeu Alkmim

Todos os direitos desta edição reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência do Departamento de Cultura e Eventos OAB/RJ.

COORDENAÇÃO DE PROJETO

Bruno Pacheco

PRODUÇÃO EDITORIAL

Cristhiane Ruiz

PRODUÇÃO GRÁFICA

Liciane Corrêa

REVISÃO TÉCNICA

Mário Feijó

REVISÃO

Taisa FonsecaMelissa Lopes Leite

CAPA

Dupla Design

ILUSTRAÇÃO DA CAPA

Loredano

DIAGRAMAÇÃO

Abreu’s System

IMPRESSÃO

Geográfica Editora

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R324 Reminiscências jurídicas na obra de Machado de Assis / [organizador Marcus Vinicius Cordeiro]. - Rio de Janeiro : [S.n.], 2008.

Inclui bibliografia

1. Assis, Machado de, 1839-1908 - Conhecimentos - Direito. 2. Direito na literatura. I. Cordeiro, Marcus Vinicius. II. Ordem dos Advogados do Brasil. Secção do Estado do Rio de Janeiro. III. Petrobras.

08-3848 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

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Sumário

Apresentação { 7 }

A retórica de Bento Santiago, um advogado { 9 }

Suje-se gordo! (1906) { 45 }

Virginius (narrativa de um advogado) (1864) { 51 }

Uns braços (1885) { 69 }

Almas agradecidas (1871) { 79 }

Pílades e Orestes (1903) { 105 }

Teoria do medalhão (1881) { 115 }

Biografia { 125 }

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{ 7 }

Apresentação

Uma homenagem da OAB/RJ a Machado de Assis

O s tempos idos e vividos não passaram para Machado de

Assis. Cem anos após sua morte, é notável a importância

do Bruxo do Cosme Velho – alcunha dada por Carlos

Drummond de Andrade – no círculo literário nacional e

internacional. Seus livros são discutidos como só acon-

tece aos clássicos; seus escritos ensejam fonte inesgotá-

vel de dissertações. E no centenário de sua morte serão

inúmeras as homenagens, das áreas acadêmicas, dos

círculos literários e do meio intelectual para exaltar a

genialidade do nosso escritor. E a seccional do Rio de

Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, por iniciati-

va de seu Departamento de Cultura e Eventos, também

deseja tecer loas a Machado.

Nós, os advogados, fomos privilegiados nos enredos

machadianos. Não raro as figuras do bacharel ou do so-

licitador protagonizam os contos e os romances do escri-

tor. Basta dizer que Dom Casmurro tem como persona-

gem principal o advogado Bento Santiago, cuja retórica

– exposta pelo próprio causídico – esmera-se em tentar

nos convencer da legitimidade de suas atitudes, ditadas

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{ 8 }

pelo ciúme e pela desconfiança em relação a sua mulher, a Capitu

de olhos oblíquos e dissimulados, e ao próprio filho. E quando não há

um advogado como personagem, é a atmosfera do mundo do Direito

que serve de cenário para as histórias. Assim, de uma ou outra forma,

vemo-nos incluídos no universo criativo de Machado de Assis.

A nossa retribuição vem por intermédio da presente edição. Reu-

nimos alguns contos de Machado, marcados pela presença, ainda que

por vezes en passant, do ambiente jurídico e de seus protagonistas.

Não se trata de obra analítica ou acadêmica, para o que, em face de

empreendimento de tamanha envergadura, nos faltaria a formação ne-

cessária. Mas fica lançada a idéia, se é que dela alguém já não este-

ja cuidando. De nossa parte, participamos dos eventos que marcarão

este Ano Nacional Machado de Assis, instituído oficialmente pela Lei

11.522/2007, entreabrindo aos advogados do Rio de Janeiro a porta

que os levará a um universo de conhecimentos tão necessários ao cres-

cimento intelectual quanto importantes na formação profissional. Afi-

nal, no ensinamento perpassado pela fina ironia do Mestre em “Teoria

do medalhão”, sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocar-dos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação ou de agradecimento... e, permitimo-nos

emendar, para as lides forenses também.

Rio de Janeiro, setembro de 2008.

Marcus Vinicius Cordeiro

Diretor de Cultura e EventosWadih Damous

Presidente

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{ 9 }

A retórica de Bento Santiago, um advogado

GUSTAVO TADEU ALKMIM1

A retórica forense e a verdade

L ê-se Machado de Assis de muitas maneiras. Há quem se

deixe inebriar pela fina ironia, pela galhofa ou pela pena

apurada; há quem busque na narrativa os sintomas das

mazelas sociais de uma época; muitos se vêem envolvi-

dos pelos conflitos psicológicos dos personagens ou pela

grande comédia humana que eles vivem. Há leitores-pes-

quisadores que procuram inserir a obra num determinado

contexto histórico, revelador do cotidiano de vidas priva-

das; outros centram sua atenção no caminhar do flâneur

machadiano pelas ruas do Rio. Não faltam aqueles que

se deixam levar por um aparente pessimismo; por outro

lado, não são poucos os que destacam a sensibilidade

feminina do autor; em contrapartida, há quem critique a

ausência do negro e da escravidão na obra de Machado;

e são muitos os que aplaudem a falta de patriotice, do

ufanismo aos símbolos nacionais, à natureza paradisía-

ca e a um indígena tão brasileiro quanto idealizado. Há,

ainda, os críticos que se afastam da narrativa “aparente”

e buscam uma outra narrativa, oculta nas entrelinhas

e muito mais genial, como se estivessem diante de um

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palimpsesto. Há, enfim, quem lê Machado considerando todas essas

maneiras e ainda outras, muitas outras, que não se esgotam neste ar-

rolamento meramente ilustrativo.

Machado de Assis, em suma, admite várias possibilidades de lei-

tura. Foi assim no seu tempo, continua a ser assim passados 100 anos

de sua morte. O crítico literário Alexei Bueno, ao apresentar, na con-

dição de curador, a exposição Machado vive, promovida pela Academia

Brasileira de Letras, lembrou que o escritor Paul Valéry conceituou o

grande homem como o autor que após sua morte deixa todos confusos

em relação a ele, e que, nesse caso,

Machado de Assis cumpriu e cumpre brilhantemente essa

tarefa, característica dos espíritos inesgotáveis, das almas

irrepreensíveis, por sua multiplicidade, em alguma des-

crição sucinta, dos seres poliédricos que espalham luzes e

sombras por todos os lados.

E um dos aspectos da genialidade de Machado talvez seja exata-

mente essa multiplicidade, que, na sua complexidade, confunde críti-

cos e leitores, afasta a superficialidade e evita uma só leitura, unísso-

na, uniforme, pronta e acabada.

Num ponto, entretanto, não há discrepância: Machado lidava ba-

sicamente com relações cotidianas, sociais e urbanas; humanas, enfim.

O olhar sobre essas relações é que depende basicamente do ponto de

vista do leitor, considerando, evidentemente, o foco narrativo. E falar

em relações humanas cotidianas, sociais e urbanas implica falar no Di-

reito, em relações jurídicas, necessariamente. Por isso, de uma forma

ou de outra, o mundo jurídico está presente na obra de Machado de

Assis. Estão ali, como protagonistas ou coadjuvantes, o advogado, o

juiz, o promotor, o escrivão, o meirinho. Não são poucas as referências

a processos, a testamentos, a lides judiciais, à Justiça. Vira e mexe,

os personagens se vêem embrenhados no universo das leis, envolvi-

dos com alguma pendenga legal ou judicial. Por vezes, essa referência

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aparece de forma explícita, em que a Justiça é o próprio palco no qual

a trama se desenrola, como no conto “Suje-se gordo!”, passado num

Tribunal do Júri. Outras vezes, o “elemento jurídico” não é percebido

à primeira vista, requer uma leitura atenta às entrelinhas, ao não-dito,

àquilo que aparenta ser irrelevante ou apenas um detalhe. Como acon-

tece no consagrado romance Dom Casmurro, em que a única evidência

jurídica é o fato de ser um advogado o narrador da história, sendo isso

tratado como um pequeno e pouco importante detalhe.

O mundo jurídico está tão presente em Machado que já foi objeto

de estudo. Vejamos o que diz o professor de Direito Administrativo da

UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo (2007):

Em dois dos seus principais romances, Machado elegeu

advogados como narradores. Brás Cubas, formado na Uni-

versidade de Coimbra, e Bento Santiago, na Faculdade do

Largo de São Francisco (São Paulo). Não parece ser aleató-

ria essa escolha, visto que tanto em Memórias póstumas de

Brás Cubas quanto em Dom Casmurro a visão que prevalece

é a da elite rural proprietária, que, embora escravocrata,

mantém a aparência moderna e liberal européia. Nada mais

natural, portanto, que os narradores, para bem representar

o ponto de vista dominante, fossem ambos bacharéis. O

mesmo se verifica em quase metade dos duzentos contos

que Machado escreveu, quando a figura do operador ju-

rídico aparece como personagem principal ou secundário,

narrador ou não. São estudantes de Direito, bacharéis, juí-

zes, desembargadores, procuradores, escrivães, oficiais de

fóruns e de cartórios. Como salientou Silviano Santiago, so-

mente um advogado experiente nas lides forenses poderia

atuar como defensor de Bentinho e redigir uma peça de

oratória na qual tentasse comprovar que o ex-seminarista

de Matacavalos agiu não por vingança, mas pura e simples-

mente em defesa da honra.

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Fiquemos, então, com Dom Casmurro. Agora, mais atentos, pode-

mos perceber outras situações e figuras bastante familiares aos profis-

sionais do Direito: o advogado em causa própria, cuja narrativa consiste

numa peça acusatória; a suposta vítima, a ré que, também suposta-

mente, teria agido dolosamente, e ainda um terceiro, causador da qua-

se tragédia; os ciúmes e a (suposta) traição, elementos ate nuantes ou

agravantes; e o juiz, que é o leitor, a quem o narrador a todo instante se

dirige pedindo a condenação daquela que o teria traído. É ao leitor-juiz

que o narrador-advogado pede deferimento. E, para tanto, se vale da re-

tórica, que, juntamente com a oratória, representa outra característica

familiar e íntima àqueles que circulam nos foros e nos tribunais.

Leiamos, pois, Dom Casmurro a partir da retórica, analisando o

quanto ela é utilizada pelo narrador. Isso, por certo, nos levará a des-

confiar do narrador, o advogado Bento Santiago, mas sem prejulgá-lo

por isso ou só por isso – ou melhor, sem prejulgar o mérito da sua causa

só por conta da utilização da retórica.

O crítico literário Silviano Santiago já trilhou por este caminho no

seu festejado texto Retórica da verossimilhança, em que ele ressaltou a

tolerância do brasileiro diante da falta de compromisso do advogado com

a verdade, característica que ele chamou de “benevolência retórica”. E o

fez suspeitando do causídico que contava a sua versão da história – uma

história de ciúme. É como se o crítico, diante do despudorado retoricis-

mo, ficasse ressabiado com a versão apresentada pelo narrador.

Qualquer uma das duas atitudes tomadas na leitura de Dom

Casmurro (condenação ou absolvição de Capitu) trai, por

parte do leitor, grande ingenuidade crítica, na medida em

que ele se identifica emocionalmente (ou se simpatiza) com

um dos personagens, Capitu ou Bentinho, e comodamente

já se sente disposto a esquecer a grande e grave proposição

do livro: a consciência pensante do narrador D. Casmurro,

esse homem já sexagenário, advogado de profissão, ex-semi-

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narista de formação, consciência pensante e vacilante, que

tem a necessidade de reconstruir na velhice a casa de Mata-

cavalos onde viveu sua adolescência. O romance de Ma-

chado é antes de tudo um romance ético (...). No caso espe-

cífico de Dom Casmurro, identificar-se com Bentinho ou

com Capitu é não compreender que a reflexão moral exigida

pelo autor requer certa distância dos personagens ou do nar-

rador, aliás, a mesma distância que Machado, como autor,

guarda deles. (Ibid., p. 32)

Observe-se que o renomado pensador destaca a profissão de Ben-

to, o narrador: ele é um advogado. E este é o ponto de partida escolhido

pelo crítico para explicar a intimidade com que ele, Bento, exercita a

retórica ao longo de toda a narrativa. Feito isso, lido o texto como uma

peça confeccionada por um advogado, uma dúvida logo brota para o

leitor: a falta de compromisso com a verdade, aludida por Silviano San-

tiago, faz dele, causídico, per se, um impostor? Com a mesma rapidez

que surge, a dúvida pode ser logo desfeita se o mesmo leitor conside-

rar que o compromisso de um advogado é com a verdade do seu cliente

e seu ofício consiste em persuadir os outros dessa verdade. Pode se di-

zer que, com isso, ele se afasta da “verdade verdadeira” – objetiva. Por

outro lado, a experiência nos revela que nem sempre essa verdade é

tão objetiva assim. Como, aliás, acontece com o chamado “sentimento

de justiça” (que, em tese, busca a verdade). Há, em ambos, justiça e

verdade, uma certa e inevitável subjetividade, tanto por parte do advo-

gado como por parte daquele que julga. Subjetividade atenuada pelo

rigor do devido processo legal e dos preceitos constitucionais.

Ou seja, se, por um lado, temos a convicção de que a retórica guar-

da um descompromisso com a verdade objetiva, não há a mesma certe-

za de que o outro lado dessa moeda estampa um compromisso do reto-

ricismo com a mentira “objetiva”. Essa ausência de dicotomia torna-se

mais evidente se colocarmos no palco a figura do advogado diante da

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sua relação com o (suposto) direito de seu cliente e da necessidade

que ele tem de convencer o julgador desse direito, utilizando-se, para

tanto, de certos instrumentos legais e legítimos, dentre eles, a retórica.

Há que se ver com olhos críticos e severos a utilização do retoricis-

mo desenfreado, superficial e floreado – como faz Silviano Santiago e

como faz Machado –, mas essa severidade não importa, por si só, na

condenação ou na negação do direito defendido pelo retoricista.

Pontuo tais questões para que elas fiquem estabelecidas como uma

premissa para a análise acerca das verdades – objetivas e subjetivas – con-

tidas em Dom Casmurro. Trocando em miúdos: a retórica é instrumento-

mor de trabalho do advogado, o profissional da retórica, e almeja (junta-

mente com a oratória) convencer o outro da sua verdade. Há uma intenção

clara por parte do narrador (culpar Capitu, alçando-a à condição de ré)

que não se confunde com a intenção do autor, como veremos adiante.

Interessante para o advogado-leitor contemporâneo é ver ali que o

narrador está aparentemente defendendo um direito, o seu direito, na

condição de vítima, e até onde ele pode lançar mão do retoricismo sem

que esse se transmute em mero exercício ludíbrio.

Esta é a proposta que faço.

Bento usa e abusa da retórica. Usa da retórica para convencer o

leitor, para se convencer, para escrever um livro, para iludir e ludibriar,

para mascarar a verdade, para falar a verdade, para acusar Capitu, pa-

ra ser singular no modo de narrar, para ironizar, para expurgar suas

culpas, para contar a sua história, para atar as duas pontas da vida e

restaurar na velhice a adolescência, ou simplesmente para interpretar

os conflitos humanos e sociais.

Bento, ao fazer isso, não estava inovando. Estava apenas se valendo

de um certo “hábito” largamente aceito, e difundido, na cultura brasi-

leira, principalmente partindo de um advogado, o bacharel, aquele que

possuía um “canudo”, instrumento que, por si só, distinguia, e ainda dis-

tingue, os filhos de uma elite. Estamos falando do fenômeno do bacha-

relismo, que ocupa lugar de destaque na nossa cultura. O bacharelismo

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brasileiro é fruto de um processo histórico que, de alguma maneira, tal-

vez explique a sempre boa impressão causada ao ouvinte brasileiro pela

oratória, digamos assim, “bem-construída”, pelo floreio e pela aparente

erudição, que no fim acabam mais valorizados do que a mensagem em

si do orador. Parece que a forma (oratória e retórica) é mais importante

que o conteúdo. Historicamente, sempre foi assim – seja num comício

político, numa reunião de amigos, ou num júri.

E não parece que, atualmente, essa nossa “benevolência” (que mui-

to lembra a cordialidade à moda brasileira de que trata Sergio Buar que

de Hollanda) esteja dando sinais de esgotamento. A propaganda e o

marketing a serviço do consumo e os “marqueteiros” a serviço de polí-

ticos deram à retórica aparência mais sofisticada e informatizada, mas,

no fundo, trabalham com a premissa de que o invólucro é mais impor-

tante que a mensagem, confundindo realidade com ficção. São pro-

fissionais “pós-modernos” que se preocupam apenas com a “verdade”

contida no produto a ser vendido, o que os tornam mais importantes

do que o produto em si mesmo.

Temos, então, uma histórica tolerância com o retórico. Cabe, pois,

nos dias de hoje, visualizar a tênue linha que divide o exercício regular

do abuso, a arte do convencimento do bacharelismo vazio. Distinguir

aquele que persuade para mentir ou ludibriar daquele que, sem dispor

de outros meios, ilude para convencer de uma verdade objetiva, de uma

realidade. Segundo Sócrates, “a retórica é o princípio da persua são, mas

não da verdade”. (Apud SANTIAGO, 2000, p. 43) Em suma, a retórica,

embora tenha a aparência de artimanha, pode ser apenas uma forma de

convencimento que se baseia naquilo que é verossímil (e não naquilo

que é verdadeiro ou que é falso). Tudo depende dos limites traçados

para o uso dessa retórica. No caso dos advogados, os limites são a lei, a

Constituição, a conduta ética e os princípios democráticos.

Separar o joio do trigo – realidade e ficção – é o grande desafio. É

assim para o leitor de Dom Casmurro; é assim para o consumidor con-

temporâneo. Daí, no centenário de morte, a imortalidade de Machado.

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Os advogados e a retórica

A questão da retórica merece um capítulo especial. Aristóteles a

distinguiu da poética; definiu a retórica como arte da persuasão, e

a poética como arte da imitação ou representação. Mais tarde, o renas-

centismo e as tradições medievais fizeram da retórica a arte da eloqüên-

cia; no século XIX, ela “passou a ser vista como um artifício divorciado

das atividades genuínas do pensamento ou da imaginação poética e

caiu em desgraça”, segundo ensinamento do professor de literatura

Jonathan Culler. (1999, p. 72) No fim do século XX, ela foi ressuscitada

como estudo dos poderes estruturadores do discurso.

Método de convencimento que se serve da eloqüência e da pro-

babilidade, daquilo que é verossímil – verdadeiro ou não –, a retórica

admite, até, o discurso vazio de conteúdo, desde que seja insinuante e

valorizado na forma. É prima-irmã do sofisma (argumento concebido

com o objetivo de produzir a ilusão da verdade, embora simulada na

lógica, apresenta, na realidade, estrutura interna incorreta e inconsis-

tente e deliberadamente enganosa). Tanto que Sócrates sublinha “a

sua indiferença com relação à busca da verdade exatamente porque o

texto sofista se baseia no verossímil”. (SANTIAGO, 2000, p. 43)

Por isso a retórica é tão valorizada na oratória forense. Essa ha bilidade

de convencimento – capacidade de induzir, sugerir, iludir, convencer – é

considerada uma qualidade, uma poderosa ferramenta, em certas comu-

nidades jurídicas. É quando o advogado, se valendo das circunstâncias

preexistentes e criando outras, busca naquilo que é convincente a tábua

de salvação para dizer a verdade do seu cliente, o seu suposto direito.

É o seu ofício. E, frise-se, às vezes, um “bom direito” se perde porque

esse ofício não foi exercido de forma convincente; outras vezes, dá-se

o inverso, um direito duvidoso, polêmico, ou não cabalmente provado,

prevalece diante do exercício da (boa) arte de convencimento. Não por

outro motivo, Sócrates há muito sentenciou: “Vejam que, nos tribunais,

ninguém tem o menor interesse pela verdade, mas apenas por aquilo

que é convincente”. (Op. cit.)

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Não resta dúvida, portanto, que a retórica tem um particular apelo

na Justiça. Durante muito tempo, prevaleceu no universo jurídico a

máxima “não está nos autos, não está no mundo”, limitando, assim,

a área de atuação do juiz. Este, ilhado, deveria decidir apenas com ba-

se na interpretação da prova dos autos do processo – fazendo com que

a argumentação “formal” dos causídicos ganhasse força e prioridade.

Por essa visão, o julgador deveria abrir mão de sua experiência de vida

e dos “conhecimentos gerais”, como forma de preservar uma suposta

(e, convenhamos, inatingível) neutralidade. Supervalorizava-se a retó-

rica. Vem daí o conceito que muitos ainda carregam, o de que ganha o

processo o litigante que tiver o patrocínio do advogado mais compe-

tente, com maior poder de persuasão.

Verifica-se, nos dias de hoje, no meio forense, um enfraquecimento

dessa visão positivista e formalista, mas isso não implica o desuso da re-

tórica como forma de convencimento. Ela ainda é largamente difundida

e aceita com muito beneplácito pela sociedade brasileira, que, de mo-

do geral, ouve, com bom grado e embevecida, aqueles oradores “de

mão cheia”, ainda que eles nada digam, nada aprofundem.

Artistas do convencimento. Assim são os oradores. Desligados da

realidade e de olho na forma, sua fonte de preocupação é o ouvinte. Na

concepção de Piero Calamandrei, notável jurista italiano, “a presença

do público que ouve é, para certos oradores, uma espécie de droga

estupefaciente, que causa um imediato desdobramento de personali-

dade”. (1995, p. 94-95) Esse fascínio é que impele o orador a seduzir

o público, a convencer não necessariamente com provas concretas –

pois, isso qualquer um faria –, mas com aquilo que é apenas provável,

plausível e crível. “É, na verdade, a verossimilhança que, percorrendo

o discurso de uma extremidade a outra, constitui a totalidade da arte

oratória”, decretou Sócrates. (Op. cit.)

Assim são os oradores – leia-se: os narradores. E os advogados são

narradores por excelência.

Bentinho tinha, quem sabe, os dotes e as manhas do ofício, um

advogado advogando em causa própria. “Persuade a si de sua inocência

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e, ao mesmo tempo, persuade aos outros”, frisou Silviano Santiago.

(2000, p. 43) Age como um orador forense, que, da tribuna, busca

convencer os jurados, o público – o leitor, em suma. Age, também,

para se convencer:

No caso de Machado, a reconstituição do passado obedece

a um plano predeterminado (cujo exemplo concreto den-

tro do tecido narrativo seria a reconstrução real da casa de

Matacavalos, que mostra em si toda a artificialidade do pro-

cesso machadiano) e sobretudo um arranjo convincente e

intelectual de sua vida. Frisemos os dois últimos adjetivos:

convincente porque pretende persuadir alguém, o leitor, de

alguma coisa; intelectual, porque depende da reflexão cons-

tante do narrador e não trai um desejo de se deixar invadir

passivamente pelo passado, por impressões fugidias e pas-

sageiras, delicadas. (sant iago, 2000, p. 36)

Temos, então, um técnico, um causídico que usa da técnica em

favor da própria causa. O problema torna-se mais complexo porque

o técnico convive simultaneamente com o ciumento, o emotivo, que

precisa convencer a si mesmo da própria causa. Isso nos leva, leitor e

juiz, a desconfiar, por um lado, da narrativa, e a crer, por outro lado,

nos sentimentos do narrador. Qualquer julgamento, afinal, é que será,

sim, motivo para desconfianças acerca da efetiva justiça.

A retórica de Dom Casmurro

Insisto nesta colocação preliminar para fugir do lugar-comum e da

leitura simplista de Dom Casmurro que leva ao dilema Capitu-traiu-

ou-não-traiu. Ou Bento-mentiu-ou-disse-a-verdade. É para esse cami-

nho que o retórico Bentinho tenta conduzir o leitor desavisado; o leitor

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atento perceberá que há algo mais entremeado na narrativa. A impor-

tância de colocar a questão da retórica como ponto de partida está, a

meu ver, em percebermos a singularidade de uma narrativa que usa da

mesma retórica como forma de ironicamente criticar o uso dela mes-

ma. É como a bruxa – ou melhor, o Bruxo2 – que prova do pró prio ve-

neno para demonstrar que é veneno.

A análise dessa “singularidade” envolve, por conseqüência, a aná-

lise da própria narrativa de Machado de Assis, o autor verdadeiro – e

não de Bento, o autor suposto –, o que, por sua vez, atrai tantas e tan-

tas vertentes interpretativas. Uma delas diz respeito à intenção do au-

tor (verdadeiro), ou seja, uma leitura feita com o “necessário pé atrás”

de que fala Roberto Schwarz (1991, p. 85), a saber: uma leitura menos

inocente e mais desconfiada, pressupondo que a narrativa contém algo

mais do que aparenta.

Vamos por partes, porém.

Comecemos por Silviano Santiago, que foi quem melhor focou a

questão da retórica:

Machado de Assis – podemos concluir – quis com Dom

Casmurro desmascarar certos hábitos de raciocínio, certos

mecanismos de pensamento, certa benevolência retórica – há-

bitos, mecanismos e benevolência que estão para sempre en-

raizados na cultura brasileira, na medida em que foi ela baliza-

da pelo “bacharelismo”, que nada mais é, segundo Fernando

Azevedo, do que “um mecanismo de pensamento a que nos

acostumara a forma retórica e livresca do ensino colonial”, e

pelo ensino religioso. Como intelectual consciente e probo,

espírito crítico dos mais afilados, perscrutador impiedoso da

alma cultural brasileira, Machado de Assis assinala ironica-

mente nossos defeitos. (SANTIAGO, 2000, p. 46)

Veja que o crítico exalta que Machado de Assis tinha plena ciên-

cia e consciência desses mecanismos e hábitos enraizados na cultura

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brasileira, e que, em vez da crítica explícita, óbvia e panfletária, deci-

diu, com peculiar ironia, usar dos mesmos mecanismos de pensamen-

to que está criticando para falar dessa “tolerância benévola”. Sendo

assim, ele usa a voz de um narrador para convencer o leitor acerca

de um fato, argumentando simplesmente com possibilidades e sem

uma única prova concreta ou um único elemento palpável. O próprio

autor-narrador narra sugerindo – sugerindo de forma sub-reptícia que

está envolvendo o leitor numa teia, como que induzindo-o a trilhar um

único caminho.

Para Silviano Santiago, o narrador faz as vezes de um farsante que

monta armadilhas envolventes e insinuantes para convencer o leitor da

sua verdade. Não por acaso, se dirige a ele, leitor, a todo instante, e

no final (Capítulo CXLVIII), o narrador, exaurido e aliviado, instiga esse

mesmo leitor a com ele concordar. E mais: a intenção de Machado não

é que o leitor caminhe por uma trilha aparentemente inexorável; em vez

disso, é que perceba a fragilidade dos argumentos “bentianos”, frutos da

retórica da verossimilhança. Ou seja, mais que contar uma história de

amor, Machado, no fundo, usando luva de pelica, descortina as mazelas

de seu meio social.

Retórico, o narrador tenta convencer o leitor. Desnudar essa per-

suasão implica revelar a verdadeira sociedade daquela época, mostran-

do não apenas a complacência como também a aprovação daqueles

hábitos de raciocínio – que, em síntese, deixavam de lado a verdade e

consagravam ornamentos vazios – por parte do brasileiro.

Dizer isso – denúncia social – é tocar num ponto sensível para a

crítica especializada em Machado de Assis.

A idéia de que os textos de Machado tratam, ou não, das desigualda-

des sociais, denunciando-as, sempre mobilizou, e mobiliza até hoje, seus

críticos. Fiquemos, por exemplo, com a frase final da transcrição supra

de Silviano Santiago: perscrutador impiedoso da alma cultural brasileira,

Machado de Assis assinala ironicamente nossos defeitos. Veja que o crítico

revela, neste trecho, estar convicto de que o Bruxo do Cosme Velho tinha

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a intenção de tocar nas feridas da sociedade de sua época, aflorando as

chagas sociais, e fazia isso ironicamente – narrando ironicamente.

É certo que, tal qual Silviano, a crítica contemporânea de modo

geral admite que o pano de fundo dos textos de Machado mostra a

sociedade (carioca) e, com ela, suas desigualdades. Não é esta a po-

lêmica. Hoje, os estudiosos de Machado debatem em torno de outras

questões. O pano de fundo é tão importante a ponto de passar de aces-

sório a principal? Queria o autor ser um crítico social? A singularidade

de suas obras está na crítica social ou seria reducionismo falar nela?

Como Machado pode ser um cânone “universal” se suas obras forem

lidas unicamente a partir do prisma da realidade brasileira?

Tais questões fogem do debate puramente acadêmico. Por exemplo:

dependendo do ponto de vista, o simples fato de Bentinho ter por pro-

fissão a advocacia é algo relevante e revelador não só para uma com-

preensão de determinada realidade social como também para uma re-

flexão sobre as banalidades e os sentimentos humanos, tudo inserido

dentro de um padrão estético irretocável. Em síntese, nesse contexto,

a advocacia como profissão do protagonista pode ser algo relevante e

revelador – ou não, a depender do ponto de vista do leitor.

Ser considerado um “milagre literário” em nosso meio, um corpo es-

tranho, consagrado até mesmo fora do país, é algo que aguça, na crítica

em geral, a necessidade de uma explicação sobre esta figura quase mito-

lógica que é Machado de Assis. Roberto Schwarz, em entrevista ao jor-

nal Folha de S.Paulo (28.6.2008), sintetizou esse dilema com precisão:

O leitor estrangeiro culto, conhecedor dos clássicos inter-

nacionais do romance, percebe que Machado faz parte da

lista dos grandes. Para isso, não precisa do Brasil. Ao passo

que uma parte dos leitores brasileiros, preocupada com as

nossas peculiaridades e limitações, enxerga a força genial

do escritor na profundidade com que soube configurar

as questões locais, transcendendo o provincianismo. Ele

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entrava para aquela mesma lista dos grandes, mas por outra

razão. O conflito entre as duas leituras tem substância his-

tórica e merece ser discutido.

Mas nem sempre foi assim; já se leu Machado de forma bastante

diversa. Seus contemporâneos viram nele um escritor recatado (Ara-

ripe Júnior) ou com tom estrangeirado (Sílvio Romero) – a primei-

ra vertente interpretativa das três tríades formadas pelos estudiosos

que se dedicaram de modo mais constante e sistemático ao estudo de

suas obras, segundo definição de Hélio de Seixas Guimarães, no artigo

“Presença inquietante”, publicado no caderno Mais (Folha de S.Paulo,

27.1.2008). Num segundo momento, a crítica destacou o estilo refi-

nado, a ironia, os eufemismos e o pessimismo, as sentenças morais,

um Machado, enfim, “filosofante” (Oliveira Lima, Alcides Maya, Al-

fredo Pujol, Graça Aranha). Segue-se a etapa psicológica, compreen-

são recíproca de vida e obra. Surgia um Dostoiévski à moda brasileira

(Augusto Meyer). Sobre esse momento, leiamos Antonio Candido:

Disso tudo resulta algo positivo para a crítica: a noção de

que era preciso ler Machado, não com olhos convencionais,

não com argúcia acadêmica, mas com senso do despropor-

cionado e mesmo o anormal; daquilo que parece raro em

nós à luz da psicologia de superfície e no entanto compõe

as camadas profundas de que brota o comportamento de

cada um. Nessa nova maneira de ler avulta sem dúvida Au-

gusto Meyer, que, inspirado na obra de Dostoiésvski e na

de Pirandello, foi além da visão humorística e “filosofante”,

mostrando que na sua obra havia muito do “homem sub-

terrâneo”, do primeiro, e do ser múltiplo, impalpável, do

segundo. Ele e Lucia Miguel-Pereira chamaram a atenção

para os fenômenos de ambigüidade que pululam na sua fic-

ção, obrigando a uma leitura mais exigente, graças à qual a

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normalidade e o senso das conveniências constituem ape-

nas o disfarce de um universo mais complicado e por vezes

turvo. (candido, 1970, p. 20)

A transcrição do texto de Candido se justifica para destacarmos a

“nova leitura”, com olhos não-convencionais, que os críticos passaram

a fazer da obra de Machado, buscando as ambigüidades, aquilo que

estava disfarçado, não explicitado, nem percebido, numa superficial

vista-d’olhos por parte do leitor. Era a obviedade dando lugar à sutile-

za. Daí Lucia Miguel-Pereira ter detectado ocultos dados biográficos,

“temas comuns aos vários romances, que no seu conjunto acompanha-

riam a ascensão social do homem Joaquim Maria Machado de Assis”.

(GUIMARÃES, op. cit.)

Longe da linha psicológica e da linha biográfica, Astrogildo Pereira

– crítico literário e não por acaso um dos fundadores do Partido Comu-

nista Brasileiro – chamou a atenção para os aspectos sociais presentes

nos textos machadianos. Mas, coerente com sua ideologia sociológica,

Astrogildo não via o fator social como simples pano de fundo; em vez

disso, dava-lhe certo exclusivismo, servindo a obra de mero instrumen-

to para descrever a realidade socioeconômica, “e, portanto, dissolven-

do-a no documento eventual”. (CANDIDO, 1970, p. 21)

Na década de 1960, dá-se a grande virada, notadamente com o li-

vro de Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de Assis, que

marcou o início de leituras baseadas na desconfiança com relação aos

narradores, principalmente dos romances da “segunda fase”. Nessa

mesma fonte beberam o inglês John Gledson e Roberto Schwarz, cuja

importância para a consolidação de tal vertente crítica é inegável:

Na crítica de Roberto Schwarz, as formas dos grandes ro-

man ces machadianos imitam processos históricos e sociais,

rompendo com o quadro local na medida em que as contra-

dições vividas na periferia do capitalismo e condensadas na

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fatura dos narradores são entendidas como a expressão tal-

vez mais desconjuntada, se não monstruosa, das contradi-

ções e falsas promessas do capital. Gledson, por sua vez,

tem desentranhado dos romances e das crônicas do escritor

uma interpretação sistemática e conseqüente da história

brasileira, que o escritor teria intencionalmente cifrado em

sua ficção. (GUIMARÃES, op. cit.)

Vê-se que chegamos ao problema da “intenção oculta” do autor.

Na contramão dessa leitura feita com um pé atrás, aparece o crí-

tico português Abel Barros Baptista, que busca um Machado uni-

versal, contrapondo-se às leituras que enfatizam os aspectos sociais

nacionais:

Comecemos por recordar a pressuposição implícita nas lei-

turas do romance no quadro do paradigma do pé atrás: a con-

vicção de que a intenção do autor suposto é determinável.

De Caldwell a Gledson, parece não haver qualquer dúvida a

respeito da intenção com que Bento Santiago, tornado Dom

Casmurro, se põe a escrever um livro, e de que essa intenção

única determina o andamento e a feição do livro como um

todo (...). Dedicarei os primeiros passos desta seção final

para lançar dúvida sobre a ausência de dúvidas sobre a in-

tenção de Dom Casmurro. (bapt ista, 2003, p. 430)

Para Abel Barros, Dom Casmurro é o paradigma da ficção do livro

na ficção machadiana, é o romance que mais solicita o livro e a ques-

tão do livro. Segundo ele, a ficção do livro no processo de se escrever

atinge um ponto em que o autor suposto (Bento), colocado diante da

exigência de uma resposta, decide responder pelo livro, e constata a

impossibilidade de responder por ele. Esta distância, entre Dom Cas-

murro e o próprio livro, anuncia a distância entre o autor suposto e

Machado de Assis.

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Não é possível anular qualquer dessas distâncias: tal como

Dom Casmurro não pode responder pelo seu livro, posto o

faça, também Machado não poderia responder pelo livro de

Dom Casmurro, e por isso não o faz. (BAPTISTA, 2003, p. 430)

Com isso, o crítico português anula a hipótese da intenção de Ma-

chado sobre o livro de Bento Santiago. Vã será a tentativa de descobri-

la, segundo ele.

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo (28.3.1999), Abel Barros

Baptista repele a idéia de que sua crítica à noção de intenção acabaria

por anular a própria idéia da ironia, tão cantada e decantada na obra

de Machado. Barros Baptista não nega que haja uma intenção autoral,

que uma obra literária é intencional e sua leitura pressupõe uma noção

de intenção, necessária à própria idéia de leitura. Contudo, esse fato,

segundo ele, não o torna um “intencionalista”, como boa parte dos “pa-

radigmas do pé atrás”, que acreditam ser possível descobrir a verdadei-

ra intenção do autor e, feito isso, supõem ter descoberto o verdadeiro

sentido do livro:

Acho que a intenção do autor existe, não pode ser negada,

até certo ponto tem que ser procurada, mas nós não temos

meio de acesso viável a ela, porque não há uma atualidade

da intenção do autor que nos garanta um acesso àquilo que

ele realmente quis. No caso do Machado, o livro está cons-

truído de uma forma a exatamente colocar esse problema,

de dizer para o leitor “tens aqui um problema da minha in-

tenção, mas ao mesmo tempo tens um processo de constru-

ção que te impede o julgamento a partir da minha intenção;

é um problema teu, por um lado, procurar a minha intenção

e, por outro, não ter meio de adquiri-la”. Isso pode, inicial-

mente, parecer aporético, mas na verdade é a partir daí que

nos lemos. Tentar resolver esta aporia é o que nos faz ler

Dom Casmurro com a paixão que se lê em 1999.3

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Vale dizer, todavia, que a polêmica em torno da intenção a partir do

enfoque da retórica (e da ironia) na obra de Machado, particularmente

em Dom Casmurro, não se resolve de maneira simplista, nem à luz da

clássica metáfora da morte do autor, que levou Umberto Eco a prescre-

ver que “o autor deveria morrer depois de escrever, para não perturbar o

caminho do texto”. (1993, p. 12) O uso da retórica numa narrativa que,

por mero acaso ou por intencional ironia, é feita por um advogado, exige

uma leitura que ultrapassa não só os limites sobre os reais intentos do

autor suposto (que só estaria escrevendo um livro), como também sobre

a verdadeira intenção do autor “verdadeiro” (que, de fato, escreveu um

livro). A retórica, nesse caso, se faz presente tanto para se compreen-

der o pensamento de Bento como para compreender o pensamento de

Machado – e ainda assim não chegaremos à verdade sobre ambos. Isso

porque, repetindo, a retórica não guarda maiores compromissos com

a verdade, com a realidade – como, em contrapartida, não correspon-

de necessariamente à mentira, à ficção. Logo, é caso de afastarmos a

idéia de procurar a verdadeira intenção de Machado (até porque não

a encontraríamos, como bem definiu Abel Barros), mas, por outro lado,

podemos perceber que aquela narrativa, aquele texto, ao exercitar a

retórica, criticava, em si e por si, o próprio uso, a própria difusão, da

mesma retórica; ou seja, a narrativa oculta outra narrativa, ou admite

que haja outra narrativa oculta, um texto dentro do outro. E isso pode,

ou não, ter sido intencional – a essa altura, pouco importa.

Note-se, então, que, como regra, a polêmica em torno da intenção

autoral é centrada em torno daquilo que é verdadeiro, em torno da ver-

dade objetiva, da realidade objetiva. E nunca se chega a lugar algum;

ou melhor, chega-se a meras presunções sobre o que o autor “verdadei-

ro” pretendia dizer, o que, nesse caso, levaria à pesquisa do seu pensa-

mento, logo, à sua história, de indivíduo, homem e cidadão – enfim, à

sua biografia; o que, no caso de Machado, implicaria uma crítica bio-

gráfica que se pretende superada. Ou seja, no particular, Abel Barros

Baptista parece estar com a razão, pois será vã a tentativa de se saber

as intenções de Machado, por mais que se tente. O crítico português,

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entretanto, por conta disso, parte de outra verdade: “A verdade é que

ele começa a escrever o livro dizendo que quer passar o tempo, e acho

que não há razão nenhuma para querer desconfiar disso.” (Folha de

S.Paulo, op. cit.) Pode ser... Mas se considerarmos que Bento era um

advogado, e que os advogados usam a retórica como instrumento de

trabalho, e que a retórica não admite “verdades absolutas”, mas sim

verossimilhanças, pode não ser...

Aliás, essa questão da “intenção autoral” equipara-se à da “in-

tenção do legislador”, algo que, muitas vezes, tem importância para

o intérprete da lei no caso concreto, e outras vezes é condição a ser

desconsiderada, indiferente para o julgador – é quando a norma jurí-

dica ganha vida própria, independentemente da mens legis. E noutras

vezes, ainda, a interpretação ganha complexidade: é quando a vontade

(intenção) do legislador é um dos fatores a ser considerado, não exclu-

sivamente, mas com alguma relevância.

Mal comparando, a questão da intenção em Dom Casmurro tam-

bém não se resolve de maneira simplista, e nem mesmo com a fórmula

interpretativa clássica, diante da complexidade que a narrativa assu-

me, com o exercício retórico tanto por parte do autor suposto como do

autor verdadeiro.

A intenção do autor-narrador

V oltemos à questão da intenção. Há uma premissa importante a se

colocar: trata-se da obra de um ciumento. É o ciúme que move o livro

(o livro dentro do livro, aquele que Bento escreve enquanto se prepa-

ra para outro livro, a História dos subúrbios, que “exigia documentos e

datas, como preliminares”). É o ciúme que faz Bento reviver o passado,

refletir, para se apaziguar, considerar e convencer: “Talvez a narração

me desse a ilusão e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao

poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas som-

bras?...” (Capítulo II) O que são as sombras se não o passado? É o passado

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que o inquieta; o passado que traz a dúvida, a pergunta que não quer

calar: a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou

houve algum incidente que a transformou? Um passado marcado pelo

ciúme, e é isso que o assombra – e para exorcizar essas sombras decide

por reviver as reminiscências (imagens lembradas do passado) narrando-as;

ou seja, reescrevendo-as, reescrevendo seu passado, a seu modo e com sua

versão, para aquietar a inquietude: “vou deitar ao papel as reminiscên-

cias que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a

mão para alguma obra de maior tomo.” (Capítulo II)

Esse reviver revela um Bentinho vacilante, frágil, temeroso e apaixo-

nado, e revela suas relações familiares e sociais. “Trata-se de uma his-

tória de amor, suspeita, ciúme e desejos de vingança, e não de uma crô-

nica de casos sensuais e saciedades entremeada de comentários

cínicos, como a de Brás Cubas”, ressalta o crítico Alfredo Bosi. (2007,

p. 41) O mesmo crítico diz, num outro momento, que “o narrador

Bento Santiago não se poupa a si mesmo aos olhos do leitor, confes-

sando-se inteiro nas suas fraquezas e tentações”. (Op. cit., p. 37)

Mas isso não responde à dúvida: será esta confissão sincera ou

trata-se de uma autocomiseração com o fim de sensibilizar o leitor

para sua causa?

Temos, pois, uma narrativa, por um lado (i), de alguém que só

quer escrever um livro e contar a sua história, e, por outro (ii), esse

mesmo alguém passional, vingativo e persuasivo sobre as suas razões.

Estamos, então, de volta à dicotomia interpretativa acerca das reais

intenções dessa narrativa, se persuasiva ou se apenas literária.

Vejamos o que diz Alfredo Bosi quando fala dos romances em pri-

meira pessoa de Machado, tanto Memórias póstumas, como, particu-

larmente, Dom Casmurro:

Uma vertente da crítica machadiana formulou uma hipóte-

se controversa, mas crucial; haveria nesses romances uma

dissociação da perspectiva em duas dimensões: de um lado,

o foco narrativo explícito; de outro, a consciência autoral.

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O foco explícito não corresponderia ao verdadeiro olhar do

autor e assumiria o papel de narrador trapaceiro capaz de

confundir o leitor, dizendo ou sugerindo o que o autor não

diria, pensando o que o autor não pensaria e omitindo as

reais intenções do seu criador. (Op. cit., p. 38)

O próprio crítico paulista rechaça tal hipótese se ela não for re-

lativizada: “Quem engana não o faz sistematicamente, caso em que

bastaria pensar o inverso do que está dito para conhecer o certo”. (Op.

cit., p. 39) E ressalta que a solução do dilema não pode ser pensada

em termos genéricos; ao contrário, cada obra, cada episódio deve ser

examinado sem nenhum a priori interpretativo.

De fato, esse não-apriorismo interpretativo desarma o intérprete e

possibilita uma maior fruição do texto em si, inclusive nos seus aspec-

tos estéticos. Contudo, não se pode exigir que esse mesmo intérprete-

leitor não busque certos conceitos (ainda que, às vezes, munido de

pré-conceitos), que vão do estético ao ideológico. E a obra machadiana,

por sua extrema complexidade, fornece ao leitor várias alternativas e

possibilidades. Basta nos determos em alguns exemplos: Abel Barros

Baptista considera que a grande originalidade de Dom Casmurro não

é questão da suspeita, se Capitu traiu ou não, mas, sim, saber se Ben-

tinho viveu ou não uma tragédia4; Silviano Santiago centra no ponto

de vista de Casmurro; Bosi ainda faz uma leitura centrada em Capitu,

assim como Roberto Schwarz. Bosi, aliás, não se limita ao “ponto de

vista”, que, segundo ele, é fixo, e por isso procura a abordagem do

olhar, que é móvel e dinâmico.

Em suma, a abrangência de Dom Casmurro não pode ser restrita a

uma interpretação dualista que nos leve a considerar se o autor suposto

ou o autor verdadeiro tinha ou não tinha alguma intenção, escondia ou

não o jogo – estaríamos minimizando um grande autor, o verdadeiro.

E uma das propostas de leitura é aquela que se faz a partir da

simples leitura de uma narrativa, considerando a formação profissional

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do narrador e sua desesperada tentativa de angariar simpatias para sua

causa, sua tragédia, sendo que nesse desenrolar acaba revelando que

ele próprio não sabe se viveu de fato uma tragédia ou o ridículo de uma

condição humana – curiosamente, tanto numa como noutra situação,

com elas o leitor se identifica, e aquelas pretendidas simpatias termi-

narão angariadas.

Não creio que a abordagem da retórica de Casmurro – desde que

feita a partir de não-irrelevante dado: ele era um advogado – caia na

armadilha de que ele, autor suposto, tenha forjado o tempo todo, de

forma desprezível e mentirosa, e que, no fundo, seja um sujeito frio,

calculista e premeditado. Se considerarmos que ele era um causídico

atuando em causa própria, justificados ficam seus medos demonstra-

dos ao longo da narrativa – sua timidez e fragilidade, sua paixão e seu

desejo de vingança, e também suas dúvidas, suas suspeitas; enfim, sua

ambigüidade: de um lado, um técnico que deseja convencer; do outro

lado, um apaixonado ciumento que precisa se convencer; no meio, o

leitor-juiz, sem saber o que é mentira e o que é verdade, em dúvida

sobre a justiça.

Ao recontar (reescrever) sua história, a técnica jurídica e a passiona-

lidade de Bento andam juntas. Para convencer e se convencer, ele se

vale das suas lembranças, uma subjetividade que põe em cena apenas

probabilidades e conjecturas, além de minúcias incomuns para um sexage-

nário. O tempo todo ele lida com a verossimilhança, com insinuações e,

quiçá, uma boa dose de imaginação. Desde logo, ele sabia o que queria

provar: a culpa de Capitu. Tanto que termina o livro apelando para a

cumplicidade do leitor, para que concorde com ele: “se te lembras bem

da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra,

como o fruto dentro da casca” (Capítulo CXLVIII) – e que não foi seu con-

fesso ciúme que criou a malícia na Capitu mulher; a malícia já existia na

menina. Bento, assim, termina o livro como quem termina uma petição

em que requer ao juiz-leitor seja a ré declarada culpada.

Abramos aqui um parêntese. Existe um antigo expediente no meio

forense (felizmente, em desuso) em que o advogado, para demonstrar

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o direito (bom ou não) de seu cliente, procura desqualificar a ré. Sem

provas concretas e na ânsia de não perder a causa, o causídico procu-

ra denegrir a imagem do adversário, agindo quase sempre de forma

implícita, criando um ambiente envolvente em que tudo é sugerido e

subliminar, a ponto de tornar aquilo que era mera probabilidade algo

verossímil, viável e verdadeiro. Fechando o parêntese, devemos frisar

que é difícil dizer se Bento procurou conscientemente esse expedien-

te. Silviano Santiago acha que sim: “Dom Casmurro aplica em sua

prosa as regras e leis que aprendeu no (mau) ofício de sua profissão.”

(Op. cit., p. 43) Difícil dizer...

Toda a crítica de Silviano Santiago está situada no campo da retórica

e do uso da verossimilhança, o que faz o crítico concluir que Casmurro

incorre em falácias e sua reconstituição do passado é egoísta e interes-

seira, medrosa e complacente para consigo mesmo. (Op. cit., p. 39) Res-

salto, contudo, que apesar de toda retórica própria de seu ofício, Bento

não necessariamente era um mentiroso. A seu modo – tecnicista e emo-

tivo – pode ter sido verdadeiro. Talvez tenha apenas se deixado trair pelo

cacoete retórico. Afinal, se estamos no campo das probabilidades, vale

aquilo que é plausível. Até mesmo a verdade e as “meias-verdades”.

O advogado age sobre a realidade como um historiador, que

recolhe os fatos de acordo com um critério de escolha por

ele preestabelecido e despreza os que, à luz desse critério,

parecem-lhe irrelevantes. Também o advogado, como o his-

toriador, trairia seu ofício se alterasse a verdade contando

fatos inventados; não o trai enquanto se limita a colher e

coordenar na realidade bruta apenas aqueles aspectos van-

tajosos à sua tese. (CALAMANDREI, 1995, p. 128)

Silviano condena essa benevolência da retórica. Contudo, tal pos-

tura, per se, é insuficiente para dizer se o narrador era um impostor,

não basta para concluirmos que tudo não passa de ornamento vazio

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do narrador. Não é essa a questão, ou então iremos retomar, por vias

transversas, o julgamento de Capitu. A idéia é outra: a partir da análi-

se crítica acerca do uso da retórica pelo narrador, não mais focarmos

nas pendengas (i) sobre a inocência de Capitu e (ii) sobre a intenção

autoral. O interesse passa a ser outro, mais voltado para as condições

pessoais e sociais que Machado ironicamente assinala. Julgar Capitu é

questão menor e equivocada. Mais que isso, é uma falsa questão.

Bento era um advogado, é certo; mas também era um ciumento,

logo, alguém que agia (também) pela emoção, o que talvez explique sua

necessidade de desqualificar Capitu, inclusive se valendo de frases que

continham a aparência de insinuações mas que estavam carregadas de

certezas – tal qual o advogado matreiro que circula no meio forense –,

mas também expondo as próprias fragilidades e dúvidas. Essa mistura

de técnica jurídica com emoção mostrou-se menos paradoxal e mais

explosiva, levando o narrador, ao longo do texto, a ressaltar, com aque-

las “insinuações recheadas de certezas”, que Capitu tinha uma malícia

adulta e diabólica; e mais, a sua (dele, narrador) honra tinha sido ul-

trajada. Nesse momento, ele procura uma identificação com o leitor

– aproximando-se perigosamente do machismo patriarcal encravado na

sociedade brasileira –, ao mesmo tempo em que deprecia a imagem

daquela que lhe ofende. Em suma, era preciso criar condições propí-

cias que levassem, necessariamente, a uma só conclusão. E, no final, o

narrador realça seu lado “bondoso” e cordial, garantindo a sobrevivência

(econômica) de Capitu na Suíça; embora, ali, ficasse mais evidente sua

necessidade de manter as aparências numa sociedade que prioriza a su-

perficialidade.5 São, enfim, aspectos do real presentes na narrativa que

não merecem ser excluídos, mesmo numa leitura não exclusivamente

economicista ou realista.

Bento escreve o livro (com começo, meio e fim premeditados) com

finalidade prévia, com apriorismo técnico, conceituado por Silviano

como o “traço mais saliente da retórica do advogado-narrador”, em-

bora recheado de emoção. Esse olhar interpretativo desvia o foco do

livro-pelo-livro e debruça a atenção para o narrador e seu modo de

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narrar, acompanhado, de modo óbvio, do seu drama, sem resumi-lo

ao dilema de condenar ou absolver Capitu. É um olhar voltado para

a pessoa moral de Dom Casmurro e para a construção de um texto

tão belo quanto irônico. Longe de ser explícito, o autor verdadeiro se

vale do autor suposto, travestido de advogado, usa do mesmo expe-

diente – a retórica – para, narrando, criticar o retoricismo e tudo mais

que ele simbolizava naquela sociedade: a superficialidade, o jogo das

aparências, a tolice humana, a hipocrisia – tudo aquilo, enfim, que

Machado repisa, quiçá de forma ainda mais irônica, no conto “Teoria

do medalhão”. Dom Casmurro apresenta deliberadamente argumen-

tos que iludem, simulando uma certa lógica, mas que ocultam uma

realidade inconsistente. Somente descortinando esse sofisma pode-

mos ver a realidade como ela é. Ou seja, há um texto dentro de outro.

Algo implícito.

Vale lembrar, Bentinho era um ex-seminarista. E não por mera

coincidência, o remorso assombra Bentinho. E não apenas nas “últimas

horas”. Antes, ele, num lampejo, tinha desejado a morte da mãe, “...o

centésimo de um instante, ainda assim, o suficiente para complicar a

minha situação com um remorso” (Capítulo LXVII). Não custa lembrar

que remorso – culpa – é filho dileto da religião católica. Ou seja, a lógica

de Dom Casmurro está sustentada em duas pilastras, uma jurídica (per-

suasão no verossímil) e outra moral-religiosa (justificativa pelo prová-

vel), acrescentando, do ponto de vista da narrativa, maior complexidade

aos aspectos técnicos e emotivos do suposto autor, enquanto, ao mesmo

tempo, traz à tona dois sintomas da cultura brasileira: a proteção dos

bacharéis e o beneplácito moral dos jesuítas.

Ora, Machado de Assis usou do método da retórica (com todas

as suas nuances) para criticar esse mesmo método inserido na socie-

dade brasileira, denunciando o bacharelismo e o moralismo religioso

presentes na nossa cultura. E o fez de forma implícita, carregada de

ironia. Ah!, a ironia... Este “jogo metalingüístico, enunciação elevada

ao quadrado”, como ensina Umberto Eco, que alerta: “Existe sempre

quem tome o discurso irônico como se fosse sério.” (1993, p. 59)

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Machado era assim mesmo – alguém para ser levado a sério, mes-

mo que isso fosse a mais fina ironia. Numa época em que a família

patriarcal reunia-se, na hora do chá, para ler romances em voz alta,

Machado de Assis sabia ser sutil, irônico e um crítico feroz. “Longe

dele a patriotice”, ressalta o jurista e crítico literário Raymundo Faoro

(1989), explicando que “ele vivia seu país e o compreendia; seus leito-

res não o conheciam e o louvavam, em todas as suas cores ufanistas.

Era preciso, portanto, sem mostrar o jogo, revelar as cartas”.

A crítica social em Machado

D izer que Machado revelava criticamente as mazelas da sociedade

de sua época não significa que sua obra seja só isso. A própria comple-

xidade da obra machadiana e toda sua abrangência para as coisas do

ser humano não admite uma análise exclusivamente sociológica – se-

ria minimizar demais tudo que Machado produziu. Essa constatação,

entretanto, não autoriza o intérprete a desconsiderar os aspectos so-

cioeconômicos que brotam da pena irônica do escritor. Vale, nesse

particular, o alerta de Alfredo Bosi:

O que a sociologia determinista da literatura faz é uma ope-

ração até certo ponto simples de raciocínio generalizante. O

pressuposto é conhecido: os tipos sociais existem, absolu-

tamente, fora e dentro do texto. Se o autor transpôs para o

plano simbólico alguns esquemas de conduta que se encon-

tram previamente na sociedade (sinônimo, aqui, de “reali-

dade”), por que não conceber toda a esfera da obra ficcional

como uma vasta rede tipológica? A teoria do reflexo não

pede outra coisa à literatura: o externo que vira interno é

considerado por Lukács a pedra de toque do pensamento

materialista. (bosi, 2007, p. 16)

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Se, por um lado, o determinismo a que alude Bosi torna míope

o olhar para obras carregadas de criatividade, ficcionalidade, artifício

– arte, enfim –, reduzindo-as a meros documentos, por outro lado, a

literatura, como um todo, não pode ser dissociada da realidade social

e das relações nela desenvolvidas, ainda que sob a ótica particular e

subjetiva do narrador. Repetindo, dizer isso não implica, em absoluto,

supervalorizar ou dar exclusividade ao fato social como determinan-

te para a análise do texto literário, nem ignorar os aspectos estéticos

presentes na obra. Contudo, por mais paradoxal que possa parecer, a

postura de minimizar a influência socioeconômica equivale a tornar

o intérprete “refém da imagem ideal projetada pelos setores hegemô-

nicos da sociedade”, nas palavras de João César Castro Rocha (2004,

p. 139), professor de literatura da UERJ.

Há que haver um meio-termo capaz de desatar o nó paradoxal.

Silviano Santiago, noutra obra, Para além da história social, citando

Schwarz, ressalta que o texto artístico, produto de uma história e de uma

sociedade, paradoxalmente foge dos limites da história e da sociedade

que o originaram, “independente mesmo dos sucessivos leitores que o

reorganizam racionalmente, para afirmar-se universal”. (Op. cit., p. 255)

Se a leitura realista circunscreve questões de relevo para a leitura

do texto nas suas relações com a história e a sociedade, deixa no en-

tanto de compreender o que nele o torna transitório e, por isso mesmo,

crítico e prazeroso. Isto é, o que do texto é capaz de substantivamente

proporcionar saber e prazer aos leitores de outras partes do mundo e

de outras épocas da história. (SANTIAGO, 2002, p. 255)

O próprio Silviano cita uma enigmática frase de Marx – “A história

mundial não surge na história como resultado da história mundial”

(Uma contribuição para a crítica da economia política) – para concluir

que, embora de forma aparentemente paradoxal, “a verdadeira obra de

arte é historicamente eterna”.

Assim sendo, esclareço que, sem perder de vista os valores estéti-

cos presentes na obra e sem ler a obra machadiana como se fosse um

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simples documento sociológico, é impossível desvinculá-la totalmente

da sua dimensão social e da crítica ironicamente nela embutida. Não

vislumbro nessa vinculação uma rejeição à universalidade de Machado

de Assis, pois que na crítica social se destaca o homem com todos os

seus conflitos, inclusive pessoais e psicológicos.6

Outro respeitado crítico literário, Nicolau Sevcenko, lembra que,

nos dias de hoje, é quase um truísmo afirmar a interdependência es-

treita existente entre estudos literários e ciências sociais, sem que isso

implique, per se, o menosprezo aos valores esteticistas:

A exigência metodológica que se faz, contudo, para que não

se regrida a posições reducionistas anteriores, é de que se

preserve toda a riqueza estética e comunicativa do texto li-

terário, cuidando igualmente para que a produção discursi-

va não perca o conjunto de significados condensados na sua

dimensão social. (SEVCENKO, 2003, p. 28)

Podemos dizer, então, que a liberdade de criação do autor é, de

certa forma, “condicional”, uma vez que seus temas, seus valores, sua

perspectiva ou as normas que a cercam são fornecidas ou sugeridas

pela sua sociedade e pelo seu tempo:

Fora de qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada

um produto artístico, destinado a agradar e a comover; mas

como se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou como

pode a qualidade dos seus frutos não depender de caracte-

rísticas do solo, da natureza do clima e das condições am-

bientais? (Idem, 2003, p. 29)

Alfredo Bosi, por exemplo, faz questão de registrar sua discordância

com Roberto Schwarz, cujos textos, a seu ver, confirmam a vigência da

concepção tipológica do personagem ficcional, idéia comum às leituras

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sociológicas, a ponto de atribuir, no artigo “A poesia envenenada de

Dom Casmurro”, uma “modernidade” a Capitu decorrente de “suas

expressões de paixão e sagacidade, contrapondo-as simetricamente ao

caráter de Bentinho, que seria paternalista, logo, atrasado, ciumento,

vingativo e, para tudo dizer, abjeto”. (BOSI, 2007, p. 23) No mesmo sen-

tido, seu questionamento anos antes, em entrevista para o jornal Folha

de S.Paulo (28.3.1999): “Quem sofre o preconceito é moderno e quem

demonstra preconceito é tradicional? Desse ângulo, a tipificação de

Bentinho está forçada e enfraquece a leitura do romance, cuja história

envolve duas pessoas complexas.”

Bosi vê, nessa análise, uma sobreposição dos traços ideológicos e

tipológicos a um contraste em que pesaram sobretudo certas diferen-

ças individuais que um mesmo sistema social comporta.

E, de fato, essa sobreposição restringe e apaga a ficção e o artifí-

cio. Contudo, a leitura desses mesmos traços “ideológicos e tipológi-

cos” como pano de fundo e como auxiliar (e não-exclusivista) na com-

posição dos personagens ficcionais torna a leitura enriquecedora sob

certo ponto de vista e menos subserviente aos aspectos formais que

valorizam o livro pelo livro em si. Leiamos o próprio Schwarz, na mes-

ma obra citada por Bosi, “A poesia envenenada de Dom Casmurro”:

Examinada nas suas relações, a população de Dom Casmur-

ro compõe uma parentela, uma destas grandes moléculas so-

ciais características do Brasil tradicional. No centro está um

proprietário mais considerável – inicialmente Dona Glória

– cercado de parentes, dependentes, aderentes e escravos,

todos mais ou menos atados à vontade e aos obséquios da-

quele. A dominação toma a forma de autoridade paternal, e

a subordinação, de respeito filial, ambas tingidas de devoção

religiosa, já que o bom exemplo vem da relação com Deus

Padre. A preeminência dos motivos católico-familiares em-

purra para uma decorosa clandestinidade as razões estrita-

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mente individuais e econômicas, que nem por isso deixam

de existir, na forma mesma que o capitalismo e o liberalismo

oitocentista haviam criado. (SCHWARZ, 1991, p. 91)

A transcrição de Schwarz é informativa e nos permite colocar em

seu contexto os personagens ficcionais, a começar pelo narrador, com-

preendendo não apenas seu drama pessoal, mas também o ambiente

social em que ele está envolvido, revelando seus focos mais candentes

de tensão e mágoa, tudo isso valorizado pela escrita de Machado.

“Localizar o romance em seu contexto não limita, ou não deve-

ria limitar, seu significado ou significados”, frisa John Gledson (2006,

p. 282), a meu ver com muita precisão. Conclui, nesse passo, o crítico

inglês: “minha própria experiência tem sido a de que compreender

seus numerosos contextos e o espírito e inteligência extraordinários

que os moldaram pode ajudar a dar nova vida a Dom Casmurro e ajudar

os críticos e professores a torná-lo tão interessante hoje quanto era há

mais de um século.” (Op. cit., p. 282)

P or tudo isso, Machado de Assis é tão complexo, e Dom Casmurro

o mais complexo de seus romances. Não se fica passivo na leitura da

obra machadiana. Dom Casmurro é totalmente polifônico. Toda retóri-

ca de Bento encobre conflitos psicológicos e contradições do cotidiano

social, que coexistem simultaneamente, obrigando os personagens a

se confrontar com seus próprios diálogos e suas próprias personalida-

des. A história do ciúme de Bento não se explica pela fórmula dialé-

tica tese-antítese-síntese, que dá ao narrador a última palavra. Aliás,

é curioso notar que Bentinho sugere que esta seja a fórmula adotada

pelo leitor, procedimento que resultará, inevitavelmente, na conclusão

advogada por ele, narrador. É exatamente esta a perspicácia de Bento,

que astuciosamente conduz o leitor a pensar pela sua lógica, que leva-

rá ao resultado pretendido pelo advogado.

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Como todo mundo sabe, este romance [Dom Casmurro] é

um quebra-cabeça refinadíssimo, inventado para não ter so-

lução num certo plano, o que noutro plano é uma solução

muito instrutiva. Capitu teria traído Bentinho, conforme ele

mesmo sugere? A traição será fantasia dele, que é um mari-

do suspeitoso, desequilibrado pelo ciúme? Em quem acre-

ditar? De quem duvidar? O adultério serve de isca. Atrás da

curiosidade um pouco boba e malsã de saber se fulano foi

ou não foi com beltrano, vão surgindo as questões da socie-

dade brasileira, que dão originalidade e altura artística ao

conflito central. (schwar z, Folha de S.Paulo, 28.6.2008)

Uma das questões da sociedade brasileira que surge é a crítica ácida

aos hábitos de raciocínio da época. Hábitos que permanecem até hoje e

que transformam a retórica em verdade, em justiça; mecanismos que ilu-

minam discursos vazios, persuadindo aquele que ouve, fazendo de orado-

res ilusionistas, prestigiando o superficialismo. Basta olharmos ao nosso

redor, para o nosso país, para percebermos a força da retórica – que con-

clui, decide e julga com base na verossimilhança. Não é preciso retroa-

gir ao fim do século XIX para constatarmos o bacharelismo tão criticado

nas entrelinhas em Dom Casmurro; a sua atualidade é gritante. Não por

acaso, Raymundo Faoro decretou que “nenhum outro escritor brasileiro

arrancou, com tanta lucidez e coragem, a gaze que encobre um corpo

doente, herdeiro da miséria, filho da escravidão, explorado, na cabeceira,

pela elite que o oprime e o humilha”. (Op. cit.) E isso, acrescente-se, é

dito de forma, digamos, “não-dita”, anos-luz à frente do panfletarismo.

Ao ler Machado, ao ler Dom Casmurro, percebemos que há coisas,

coisas não ditas explicitamente – como, por exemplo, o uso da retórica

para criticar a retórica, um uso natural, como se não houvesse alguma

coisa ali; uma narrativa dentro da narrativa – e isso é singular. Uma

singular ocorrência, tão presente na obra machadiana, como lembra

Renato Cordeiro Gomes, professor da PUC-RIO:

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Talvez não fosse exagero dizer que Machado explora em

sua ficção singulares ocorrências, tanto no nível do enredo

como na narração e seus modos. A exemplo dos contos (...)

“A cartomante” ou “Noite de almirante”, em que a singu-

lar ocorrência não são especificamente os casos de traição,

mas a maneira como são narrados e interpretados na pró-

pria narrativa. Cria-se um efeito de ilusão “como se entre

ambos não houvesse mais que uma narração de episódio”.

Mas há, além disso “coisas” que desafiam o narrador e o

leitor. (O Globo, 14.6.2008)

O descortinar, a descoberta dessas coisas, depende do leitor – só

e exclusivamente do leitor. Buscam-se coisas no episódio, a condi-

ção humana na tragédia, o fato social no drama, a ironia na escrita.

Buscam-se coisas no livro; e assim (essa busca) deve ser. Ou não. As

coisas, por outro lado, podem ser mais simples, mais visíveis. Como

bem disse Abel Barros Baptista, “para qualquer leitor comum, o cerne

do livro [Dom Casmurro] é colocado, numa forma tão visível e, si-

multaneamente, tão amarga, no problema da felicidade e da busca da

felicidade nesta vida”. (Folha de S.Paulo, 28.3.1999)

Sem embargo desse exercício simplesmente prazeroso de que fala

Barros Baptista, ler Dom Casmurro com os olhos de hoje – neste mun-

do contemporâneo rotulado de “pós-moderno”, marcado, dentre ou-

tros, (i) pela cibernética que transmite um excesso de informações su-

perficiais que nada aprofundam, (ii) pelo marketing que vende tolices

como sendo indispensáveis para o nosso cotidiano, (iii) pelo discurso

que prega o fim das utopias – pode nos levar (além do prazer de ler)

a uma reflexão sobre até que ponto o exercício da retórica abusada e

desenfreada não coloca em segundo plano a “verdade objetiva”. Uma

reflexão que serve, particularmente, para o mundo jurídico, para o ofí-

cio da advocacia e para exercício da judicatura, onde a tão almejada

justiça é a grande utopia dos profissionais do Direito.

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A retórica, por si só, como forma de persuasão e convencimento, é

instrumento legítimo – desde que aplicada nos limites que nos garan-

tem o Estado Democrático de Direito e a Constituição da República,

base ética e legal para o ofício da advocacia. Quando ultrapassa estes

limites e passa a ser mais importante do que o Direito em si, ela incor-

re em formalismos e superficialismos, bem ao gosto do nosso bachare-

lismo, historicamente tolerado pela cordialidade brasileira.

Esta é uma leitura que o advogado, o profissional da retórica, e

leitor de Dom Casmurro pode (e deve) fazer, utilizando a lupa da au-

tocrítica. Uma leitura, enfim, que depende apenas do advogado-leitor

– atento – e do seu compromisso com os princípios democráticos.

É perda de tempo procurar essas coisas explicitamente em Ma-

chado de Assis. Nada é explícito em Machado. Mas o mundo jurídico

está ali, o Direito está ali, ao longo de sua obra, entremeado, implícito,

diluído no universo dos personagens, advogados ou não, e em toda a

complexidade dos seus conflitos humanos. O leitor-advogado atento

saberá vê-lo, saberá ver o Direito na sociedade brasileira de mais de

cem anos atrás. E sairá da leitura com um olhar mais crítico e mais

consciente acerca do nosso mundo jurídico contemporâneo.

Por estas e por outras é que Machado de Assis é tão especial.

1 Gustavo Tadeu Alkmim é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, foi presidente da AMATRA (Associação dos Magistrados do Traba-lho do Rio de Janeiro) e da ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho), é Mestre e Doutorando em Literatura Brasileira pela PUC-RIO.2 Machado de Assis é conhecido como o Bruxo do Cosme Velho, bairro do Rio de Janeiro onde fixou residência. Para uma melhor compreensão da referência, recomenda-se a leitura do poema “A um bruxo, com amor”, de Carlos Drum-mond de Andrade. 3 Ano da entrevista (28.3.1999).4 “A grande originalidade de Machado, o que considero o aspecto mais radical

do livro, é pôr a personagem com esse problema e não haver ninguém que

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diga: ‘Tu viveste uma tragédia’. Porque no Otelo, de Shakespeare, há alguém

que dê essa garantia; no Édipo, há alguém que garanta que ele é filho da Jo-

casta. No Dom Casmurro, entretanto, não há ninguém para garantir nada. Não

é só o romance que é ambíguo, o próprio personagem como herói trágico não

tem ninguém que o diga se ele foi enganado pelo destino ou se ele foi enga-

nado pelo ciúme. E essa ambigüidade, que no fundo é entre a grande tragédia

da ironia do destino ou o ridículo de uma condição humana comum a todos

nós, essa ambigüidade não tem solução dentro do romance, porque não tem

solução no nosso tempo.” (BAPTISTA, Folha de S.Paulo, 1999)5 “Capitu viverá na Suíça até o seu último dia e criará o filho como uma rica

dama sul-americana, dando-lhe educação refinada a ponto de torná-lo um ar-

queólogo orientalista. Bento não a desampara e cuida de salvar as aparências

viajando regularmente para a Europa. Para os mores de uma sociedade ma-

chista e patriarcal, temos que admitir que o arreglo final valeu à acusação de

um atestado público de respeitabilidade com todos os benefícios decorrentes.”

(BOSI, 2007)6 Indagado sobre o conflito universalidade x brasilidade presente na interpre-

tação da obra de Machado, Roberto Schwarz respondeu, cuidando especi-

ficamente da leitura feita por Abel Barros Baptista: “Quanto a Baptista, até

onde vejo, ele é pouco dialético quando busca incompatibilizar a reflexão com

base brasileira e a reflexão com base no Ocidente, para preferir a segunda. As

duas têm que ser complementares, sem prejuízo da distância que as separa,

na qual de fato se reflete a fratura do mundo, e não apenas o acanhamento

local. A recomendação dele à crítica, de que não relacione a obra machadiana

à sociedade e à literatura brasileiras, sob pena de empobrecê-la e impedir

conexões de ‘alcance mais vasto’, é ela mesma empobrecedora ao extremo.

Por que excluir a hipótese – tão plausível – de que a originalidade do romance

machadiano e da literatura brasileira tenham algo a ver com a peculiaridade

da experiência histórica do país? Por que privar os brasileiros de se buscarem

na obra do maior autor, ou de seus autores em geral? A renúncia histórica seria

um passo à frente?” (SCHWARZ, O Globo, 14.6.2008)

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Suje-se gordo!

Publicado originalmente em Relíquias da Casa Velha, 1906

Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no

terraço do teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o

segundo e o terceiro ato da peça A sentença ou O tribu-

nal do júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título

que nos levou a falar da instituição e de um fato que

nunca mais me esqueceu.

– Fui sempre contrário ao júri, – disse-me aquele

amigo, – não pela instituição em si, que é liberal, mas

porque me repugna condenar alguém, e por aquele pre-

ceito do Evangelho: “Não queirais julgar, para que não

sejais julgados.” Não obstante, servi duas vezes. O tribu-

nal era então no antigo Aljube, fim da rua dos Ourives,

princípio da ladeira da Conceição.

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi to-

dos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram

provados; um ou dois processos eram muito malfeitos. O

primeiro réu que condenei era um moço limpo, acusado

de haver furtado certa quantia, não grande, antes peque-

na, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem

podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou

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inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse

modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os

corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso

sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez

que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a

confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimen-

to e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do

promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia

ódio e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a cir-

cunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos

esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera.

O discurso foi admirável, e teria salvo o réu se ele pudesse ser salvo,

mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois

anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredi-

te, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando

morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do

promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os

debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do con-

selho, que era eu.

Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto

o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor

ficasse também calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro ato

não tarda.

Um dos jurados do conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais

que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi

examinado, os quesitos lidos e as respostas dadas (11 votos contra 1);

só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem

a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou

coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o

que votara pela negativa, – proferiu algumas palavras de defesa do moço.

O ruivo, – chamava-se Lopes, – replicou com aborrecimento:

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– Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

– Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

– Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou

Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega porque todo

réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade!

Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-

se? Suje-se gordo!

“Suje-se gordo!” Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que

entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e

foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à

porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do conselho e o

réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada

ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pare-

ceu-me entendê-la. “Suje-se gordo!” era como se dissesse que o con-

denado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada.

Achei essa explicação na esquina da rua de S. Pedro; vinha ainda pela

dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes

para lhe apertar a mão; nem sombra do Lopes. No dia seguinte, lendo

nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a

pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida,

como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as pági-

nas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava

assim, mas não me lembra a forma dos versos.

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia fal-

tar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não

compareceria e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um

dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse

podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado,

o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que

os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias

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de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos

réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pare-

ceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não po-

deria reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor

dos cabelos e da barba, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo

nome: Lopes.

– Como se chama? perguntou o presidente.

– Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mes-

mo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me

tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui

com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acom-

panhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam.

Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava

com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira

que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo

nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos

da boca.

Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de

cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime

nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instru-

mentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me im-

pressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do

caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento

das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também

ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o

teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para

mim, não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia

aos outros.

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal

como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado.

O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado

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mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer

aquela paz de espírito.

Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade

de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a con-

denação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: “Não

queirais julgar, para que não sejais julgados.” Confesso-lhe que mais

de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum

desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou

ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora jul-

gado também.

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lo-

pes: “Suje-se gordo!” Não imagina o sacudimento que me deu esta

lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe

ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: “Suje-se gordo!” Vi que não

era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo

é que definia duramente a ação: “Suje-se gordo!” Queria dizer que o

homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura

da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se?

Suje-se gordo!

Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar

pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha aca-

bado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe

aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o

desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma

carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos

leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados.

Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi

lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. À diferença da votação era

tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser

que não. Agora mesmo sinto uns repelões da consciência. Felizmen-

te, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do

meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os

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repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir

a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer!

O mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para

as nossas cadeiras.

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Virginius(narrativa de um advogado)

Publicado originalmente no Jornal das Famílias, agosto, 1864

I

N ão me correu tranqüilo o S. João de 185...

Duas semanas antes do dia em que a Igreja celebra

o evangelista, recebi pelo correio o seguinte bilhete, sem

assinatura e de letra desconhecida:

O Dr. *** é convidado a ir à vila de... tomar conta de um

processo. O objeto é digno do talento e das habilitações

do advogado. Despesas e honorários ser-lhe-ão satisfeitos

antecipadamente, mal puser pé no estribo. O réu está na

cadeia da mesma vila e chama-se Julião. Note que o Dr. é

convidado a ir defender o réu.

Li e reli este bilhete; voltei-o em todos os sentidos;

comparei a letra com todas as letras dos meus amigos e

conhecidos... Nada pude descobrir.

Entretanto, picava-me a curiosidade. Luzia-me um

romance através daquele misterioso e anônimo bilhete.

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Tomei uma resolução definitiva. Ultimei uns negócios, dei de mão ou-

tros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à porta um cavalo e

um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a

sair, entrou-me em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me um

rolo de papel contendo uma avultada soma, importância aproximada

das despesas dos honorários. Recusei apesar das instâncias, montei a

cavalo e parti.

Só depois de ter feito algumas léguas é que me lembrei de que

justamente na vila a que eu ia morava um amigo meu, antigo compa-

nheiro da academia, que se votara, oito anos antes, ao culto da deusa

Ceres como se diz em linguagem poética.

Poucos dias depois apeava eu à porta do referido amigo. Depois de

entregar o cavalo aos cuidados do camarada, entrei para abraçar o meu an-

tigo companheiro de estudos, que me recebeu alvoroçado e admirado.

Depois da primeira expansão, apresentou-me ele à sua família,

composta de mulher e uma filhinha, esta retrato daquela, e aquela re-

tra to dos anjos.

Quanto ao fim da minha viagem, só lho expliquei depois que me

levou para a sala mais quente da casa, onde foi ter comigo uma chave-

na de excelente café. O tempo estava frio; lembro que estávamos em

junho. Envolvi-me no meu capote, e a cada gota de café que tomava

fazia uma revelação.

– A que vens? a que vens? perguntava-me ele.

– Vais sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. Há quin-

ze dias recebi no meu escritório, na corte, um bilhete anônimo em que

se me convidava com instância a vir a esta vila para tomar conta de

uma defesa. Não pude conhecer a letra; era desigual e trêmula, como

escrita por mão cansada...

– Tens o bilhete contigo?

– Tenho.

Tirei do bolso o misterioso bilhete e entreguei-o aberto ao meu

amigo. Ele, depois de lê-lo, disse:

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– É a letra de Pai de todos.

– Quem é Pai de todos?

– É um fazendeiro destas paragens, o velho Pio. O povo dá-lhe o

nome de Pai de todos, porque o velho Pio o é na verdade.

– Bem dizia eu que há romance no fundo!... Que faz esse velho

para que lhe dêem semelhante título?

– Pouca coisa. Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fun-

didas em uma só pessoa. Só as grandes causas vão ter às autoridades

judiciárias, policiais ou municipais; mas tudo o que não sai de certa

ordem é decidido na fazenda de Pio, cuja sentença todos acatam e

cumprem. Seja ela contra Pedro ou contra Paulo, Paulo e Pedro sub-

metem-se, como se fora uma decisão divina. Quando dois contendores

saem da fazenda de Pio, saem amigos. É caso de consciência aderir ao

julgamento de Pai de todos.

– Isso é como juiz. O que é êle como homem caridoso?

– A fazenda de Pio é o asilo dos órfãos e dos pobres. Ali se encon-

tra o que é necessário à vida: leite e instrução às crianças, pão e sosse-

go aos adultos. Muitos lavradores nestas seis léguas cresceram e tive-

ram princípio de vida na fazenda de Pio. É a um tempo Salomão e S.

Vicente de Paulo.

Engoli a última gota de café, e fitei no meu amigo olhos incrédulos.

– Isto é verdade? perguntei.

– Pois duvidas?

– É que me dói sair tantas léguas da Corte, onde esta história

encontraria incrédulos, para vir achar neste recanto do mundo aquilo

que devia ser comum em toda a parte.

– Põe de parte essas reflexões filosóficas. Pio não é um mito: é

uma criatura de carne e osso; vive como vivemos; tem dois olhos, co-

mo tu e eu...

– Então esta carta é dele?

– A letra é.

– A fazenda fica perto?

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O meu amigo levou-me à janela.

– Fica daqui a um quarto de légua, disse. Olha, é por detrás da-

quele morro.

Nisto passava por baixo da janela um preto montado em uniu

mula, sobre cujas ancas saltavam duas canastras. O meu amigo debru-

çou-se e perguntou ao negro:

– Teu senhor está em casa?

– Está, sim, senhor; mas vai sair.

O negro foi caminho, e nós saímos da janela.

– É escravo de Pio?

– Escravo é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem

amigos. Olham-no todos como se fora um Deus. É que em parte algu-

ma houve nunca mais brando e cordial tratamento a homens escravi-

zados. Nenhum dos instrumentos de ignomínia que por aí se aplicam

para corrigi-los existem na fazenda de Pio. Culpa capital ninguém co-

mete entre os negros da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio

aplica apenas uma repreensão tão cordial e tão amiga, que acaba por

fazer chorar o delinqüente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre os seus

escravos uma espécie de concurso que permite a um certo número

libertar-se todos os anos. Acreditarás tu que lhes é indiferente viver

livres ou escravos na fazenda, e que esse estímulo não decide ne-

nhum dêles, sendo que, por natural impulso, todos portam dignos de

elogios?

O meu amigo continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu

espírito apreendia-se cada vez mais de que eu ia entrar em um romance.

Finalmente o meu amigo dispunha-se a contar-me a história do crime

em cujo conhecimento devia eu entrar daí a poucas horas. Detive-o.

– Não, disse-lhe, deixa-me saber de tudo por boca do próprio réu.

Depois compararei com o que me contarás.

– É melhor. Julião é inocente...

– Inocente?

– Quase.

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Minha curiosidade estava excitada ao último ponto. Os autos não

me tinham tirado o gosto pelas novelas, e eu achava-me feliz por en-

contrar no meio da prosa judiciária, de que andava cercado, um assun-

to digno da pena de um escritor.

– Onde é a cadeia? perguntei.

– É perto, respondeu-me; mas agora é quase noite; melhor é que

descanses; amanhã é tempo.

Atendi a este conselho. Entrou nova porção de café. Tomamo-lo

entre recordações do passado, que muitas eram. Juntos vimos florescer

as primeiras ilusões, e juntos vimos dissiparem-se as últimas. Havia

de que encher, não uma, mas cem noites. Aquela passou-se rápida, e

mais ainda depois que a família toda veio tomar parte em nossa íntima

confabulação. Por uma exceção, de que fui causa, a hora de recolher

foi à meia-noite.

– Como é doce ter um amigo! dizia eu pensando no Conde de

Maistre, e retirando-me para o quarto que me foi destinado.

II

N o dia seguinte, ainda vinha rompendo a manhã, já eu me achava

de pé. Entrou no meu quarto um escravo com um grande copo de leite

tirado minutos antes. Em poucos goles o devorei. Perguntei pelo ami-

go; disse-me o escravo que já se achava de pé. Mandei-o chamar.

– Será cedo para ir à cadeia? perguntei mal o vi assomar à porta

do quarto.

– Muito cedo. Que pressa tamanha! É melhor aproveitarmos a

manhã, que está fresca, e irmos dar um passeio. Passaremos pela fa-

zenda de Pio.

Não me desagradou a proposta. Acabei de vestir-me e saímos am-

bos. Duas mulas nos esperavam à cancela, espertas e desejosas de tro-

tar. Montamos e partimos.

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Três horas depois, já quando o sol dissipara as nuvens de neblina

que cobriam os morros como grandes lençóis, estávamos de volta, ten-

do eu visto a bela casa e as esplêndidas plantações da fazenda do velho

Pio. Foi este o assunto do almoço.

Enfim, dado ao corpo o preciso descanso, e alcançada a necessária

licença, dirigi-me à cadeia para falar ao réu Julião.

Sentado em uma sala onde a luz entrava escassamente, esperei

que chegasse o misterioso delinqüente. Não se demorou muito. No

fim de um quarto de hora estava diante de mim... Dois soldados fica-

ram à porta.

Mandei sentar o preso, e, antes de entrar em interrogatório, em-

preguei uns cinco minutos em examiná-lo.

Era um homem trigueiro, de mediana estatura, magro, débil de

forças físicas, mas com uma cabeça e um olhar indicativos de muita

energia moral e alentado ânimo.

Tinha um ar de inocência, mas não da inocência abatida e receo-

sa; parecia antes que se glorificava com a prisão, e afrontava a justiça

humana, não com a impavidez do malfeitor, mas com a daquele que

confia na justiça divina.

Passei a interrogá-lo, começando pela declaração de que eu ia para

defendê-lo. Disse-lhe que nada ocultasse dos acontecimentos que o

levaram à prisão; e ele, com uma rara placidez de ânimo, contou-me

toda a história do seu crime.

Julião fora um daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sus-

tento e trabalho. Suas boas qualidades, a gratidão, o amor, o respeito

com que falava e adorava o protetor, não ficaram sem uma paga valio-

sa. Pio, no fim de certo tempo, deu a Julião um sítio que ficava pouco

distante da fazenda. Para lá fora morar Julião com uma filha menor,

cuja mãe morrera em conseqüência dos acontecimentos que levaram

Julião a recorrer à proteção do fazendeiro.

Tinha a pequena sete anos. Era, dizia Julião, a mulatinha mais

formosa daquelas dez léguas em redor. Elisa, era o nome da pequena,

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completava a trindade do culto de Julião, ao lado de Pio e da memória

da mãe finada.

Laborioso por necessidade e por gosto, Julião bem depressa viu

frutificar o seu trabalho. Ainda assim não descansava. Queria, quando

morresse, deixar um pecúlio à filha. Morrer sem deixá-la amparada era

o sombrio receio que o perseguia. Podia acaso contar com a vida do

fazendeiro esmoler?

Este tinha um filho, mais velho três anos que Elisa. Era um bom me-

nino, educado sob a vigilância de seu pai, que desde os tenros anos inspi-

rava-lhe aqueles sentimentos a que devia a sua imensa popularidade.

Carlos e Elisa viviam quase sempre juntos, naquela comunhão da

infância que não conhece desigualdades nem condições. Estimavam-

se deveras, a ponto de sentirem profundamente quando foi necessário

a Carlos ir cursar as primeiras aulas.

Trouxe o tempo as divisões, e anos depois, quando Carlos apeou à

porta da fazenda com uma carta de bacharel na algibeira, uma esponja

se passara sobre a vida anterior. Elisa, já mulher, podia avaliar os no-

bres esforços de seu pai, e concentrara todos os afetos de sua alma no

mais respeitoso amor filial. Carlos era homem. Conhecia as condições

da vida social, e desde os primeiros gestos mostrou que abismo sepa-

rava o filho do protetor da filha do protegido.

O dia da volta de Carlos foi dia de festa na fazenda do velho Pio.

Julião tomou parte na alegria geral, como toda a gente, pobre ou reme-

diada, dos arredores. E a alegria não foi menos pura em nenhum: todos

sentiam que a presença do filho do fazendeiro era a felicidade comum.

Passaram-se os dias. Pio não se animava a separar-se de seu filho

para que este seguisse uma carreira política, administrativa ou judiciá-

ria. Entretanto, notava-lhe muitas diferenças em comparação com o

rapaz que, anos antes, lhe saíra de casa. Nem idéias, nem sentimentos,

nem hábitos eram os mesmos. Cuidou que fosse um resto da vida es-

colástica, e esperou que a diferença da atmosfera que voltava a respirar

e o espetáculo da vida simples e chã da fazenda o resta belecessem.

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O que o magoava sobretudo, é que o filho bacharel não buscasse os

livros, onde pudesse, procurando novos conhecimentos, entreter uma

necessidade indispensável para o gênero de vida que ia encetar. Carlos

não tinha mais que uma ocupação e uma distração: a caça. Levava dias

e dias a correr o mato em busca de animais para matar, e nisso fazia

consistir todos os cuidados, todos os pensamentos, todos os estudos.

Ao meio-dia era certo vê-lo chegar ao sítio de Julião, e aí descansar

um bocado, conversando sobranceiro com a filha do infatigável lavra-

dor. Este chegava, trocava algumas palavras de respeitosa estima com

o filho de Pio, oferecia-lhe parte do seu modesto jantar, que o moço

não aceitava, e discorria, durante a refeição, sobre os objetos relativos

à caça.

Passavam as coisas assim sem alteração de natureza alguma.

Um dia, ao entrar em casa para jantar, Julião notou que sua filha

parecia triste. Reparou, e viu-lhe os olhos vermelhos de lágrimas. Per-

guntou o que era. Elisa respondeu que lhe doía a cabeça; mas durante

o jantar, que foi silencioso, Julião observou que sua filha enxugava

furtivamente algumas lágrimas. Nada disse; mas, terminado o jantar,

chamou-a para junto de si, e com palavras brandas e amigas exigiu-lhe

que dissesse o que tinha. Depois de muita relutância, Elisa falou:

– Meu pai, o que eu tenho é simples. O Sr. Carlos, em quem co-

mecei a notar mais amizade que ao princípio, declarou-me hoje que

gostava de mim, que eu devia ser dele, que só ele me poderia dar tudo

quanto eu desejasse, e muitas outras coisas que eu nem pude ouvir,

tal foi o espanto com que ouvi as suas primeiras palavras. Declarei-lhe

que não pensasse coisas tais. Insistiu; repeli-o... Então, tomando um

ar carrancudo, saiu, dizendo-me:

– Hás de ser minha!

Julião estava atônito. Inquiriu sua filha sobre todas as particula-

ridades da conversa referida. Não lhe restava dúvida acerca dos maus

intentos de Carlos. Mas como de um tão bom pai pudera sair tão mau

filho? perguntava ele. E esse próprio filho não era bom antes de ir para

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fora? Como exprobrar-lhe a sua má ação? E poderia fazê-lo? Como

evitar a ameaça? Fugir do lugar em que morava o pai não era mostrar-

se ingrato? Todas estas reflexões passaram pelo espírito de Julião. Via

o abismo a cuja borda estava, e não sabia como escapar-lhe.

Finalmente, depois de animar e tranqüilizar sua filha, Julião saiu,

de plano feito, na direção da fazenda, em busca de Carlos.

Este, rodeado por alguns escravos, fazia limpar várias espingardas

de caça. Julião, depois de cumprimentá-lo alegremente, disse que lhe

queria falar em particular. Carlos estremeceu; mas não podia deixar

de ceder.

– Que me queres, Julião? disse depois de se afastar um pouco do

grupo.

Julião respondeu:

– Sr. Carlos, venho pedir-lhe uma coisa, por alma de sua mãe!...

Deixe minha filha sossegada.

– Mas que lhe fiz eu? titubeou Carlos.

– Oh! Não negue, porque eu sei.

– Sabe o quê?

– Sei da sua conversa de hoje. Mas o que passou, passou. Fico

sendo seu amigo, mais ainda, se me não perseguir a pobre filha que

Deus me deu... Promete?

Carlos esteve calado alguns instantes. Depois:

– Basta, disse; confesso-te, Julião, que era uma loucura minha de

que me arrependo. Vai tranqüilo: respeitarei tua filha como se fôsse

morta.

Julião, na sua alegria, quase beijou as mãos de Carlos. Correu à casa

e referiu a sua filha a conversa que tivera com o filho de Pai de todos.

Elisa não só por si como por seu pai, estimou o pacífico desenlace.

Tudo parecia ter voltado à primeira situação. As visitas de Carlos

eram feitas nas horas em que Julião se achava em casa, e além disso,

a presença de uma parenta velha, convidada por Julião, parecia tornar

impossível nova tentativa da parte de Carlos.

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Uma tarde, quinze dias depois do incidente que narrei acima,

voltava Julião da fazenda do velho Pio. Era já perto da noite. Julião

caminhava vagarosamente, pensando no que lhe faltaria ainda para

completar o pecúlio de sua filha. Nessas divagações, não reparou que

anoitecera. Quando deu por si, ainda se achava umas boas braças dis-

tante de casa. Apressou o passo. Quando se achava mais perto, ouviu

uns gritos sufocados. Deitou a correr e penetrou no terreiro que cir-

cundava a casa. Todas as janelas estavam fechadas; mas os gritos con-

tinuavam cada vez mais angustiosos. Um vulto passou-lhe pela frente

e dirigiu-se para os fundos. Julião quis segui-lo; mas os gritos eram

muitos, e de sua filha. Com uma força difícil de crer em corpo tão pou-

co robusto, conseguiu abrir uma das janelas. Saltou, e eis o que viu:

A parenta que convidara a tomar conta da casa estava no chão, ata-

da, amordaçada, exausta. Uma cadeira quebrada, outras em desordem.

– Minha filha! exclamou ele.

E atirou-se para o interior.

Elisa debatia-se nos braços de Carlos, mas já sem forças nem es-

peranças de obter misericórdia.

No momento em que Julião entrava por uma porta, entrava por

outra um indivíduo mal conceituado no lugar, e até conhecido por as-

salariado nato de todas as violências. Era o vulto que Julião vira no

terreiro. E outros haviam ainda, que apareceram a um sinal dado pelo

primeiro, mal Julião entrou no lugar em que se dava o triste conflito da

inocência com a perversidade.

Julião teve tempo de arrancar Elisa dos braços de Carlos. Cego

de raiva, travou de uma cadeira e ia atirar-lha, quando os capangas,

entrados a este tempo, o detiveram.

Carlos voltara a si da surpresa que lhe causara a presença de Ju-

lião. Recobrando o sangue frio, cravou os olhos odiendos no desventu-

rado pai, e disse-lhe com voz sumida:

– Hás de pagar-me!

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Depois, voltando-se para os ajudantes das suas façanhas, bradou:

– Amarrem-no!

Em cinco minutos foi obedecido. Julião não podia lutar contra

cinco.

Carlos e quatro capangas saíram. Ficou um de vigia.

Uma chuva de lágrimas rebentou dos olhos de Elisa. Doía-lhe na

alma ver seu pai atado daquele modo. Não era já o perigo a que esca-

para o que a comovia; era não poder abraçar seu pai livre e feliz. E por

que estaria atado? Que intentava Carlos fazer? Matá-lo? Estas lúgu-

bres e aterradoras idéias passaram rapidamente pela cabeça de Elisa.

Entre lágrimas comunicou-as a Julião.

Este, calmo, frio, impávido, tranqüilizou o espírito de sua filha,

dizendo-lhe que Carlos poderia ser tudo, menos um assassino.

Seguiram-se alguns minutos de angustiosa espera. Julião olhava

para sua filha e parecia refletir. Depois de algum tempo, disse:

– Elisa, tens realmente a tua desonra por uma grande desgraça?

– Oh! meu pai! exclamou ela.

– Responde: se te faltasse a pureza que recebeste do céu, conside-

rar-te-ias a mais infeliz de todas as mulheres?

– Sim, sim, meu pai!

Julião calou-se.

Elisa chorou ainda. Depois voltou-se para a sentinela deixada por

Carlos e quis implorar-lhe misericórdia. Foi atalhada por Julião.

– Não peças nada, disse este. Só há um protetor para os infelizes:

é Deus. Há outro depois dele; mas esse está longe... Ó Pai de todos,

que filho te deu o Senhor!...

Elisa voltou para junto de seu pai.

– Chega-te para mais perto, disse este.

Elisa obedeceu.

Julião tinha os braços atados; mas podia mover, ainda que pouco,

as mãos. Procurou afagar Elisa, tocando-lhe as faces e beijando-lhe a

cabeça. Ela inclinou-se e escondeu o rosto no peito de seu pai.

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A sentinela não dava fé do que se passava. Depois de alguns minu-

tos do abraço de Elisa e Julião, ouviu-se um grito agudíssimo. A senti-

nela correu aos dous. Elisa caíra completamente, banhada em sangue.

Julião tinha procurado a custo apoderar-se de uma faca de caça

deixada por Carlos sobre uma cadeira. Apenas o conseguiu, cravou-a

no peito de Elisa. Quando a sentinela correu para ele, não teve tempo

de evitar o segundo golpe, com que Julião tornou mais profunda e mor-

tal a primeira ferida. Elisa rolou no chão nas últimas convulsões.

– Assassino! clamou a sentinela.

– Salvador!... salvei minha filha da desonra!

– Meu pai!... murmurava a pobre pequena expirando.

Julião, voltando-se para o cadáver, disse, derramando duas lágri-

mas, duas só, mas duas lavas rebentadas do vulcão de sua alma:

– Dize a Deus, minha filha, que te mandei mais cedo para junto

dele para salvar-te da desonra.

Depois fechou os olhos e esperou.

Não tardou que entrasse Carlos, acompanhado de uma autoridade

policial e vários soldados.

Saindo da casa de Julião, teve a idéia danada de ir declarar à au-

toridade que o velho lavrador tentara contra a vida dele, razão por que

teve de lutar, o conseguira deixá-lo amarrado.

A surpresa de Carlos e dos policiais foi grande. Não cuidavam

encontrar o espetáculo que a seus olhos se ofereceu. Julião foi preso.

Não negou o crime. Somente reservou-se para contar as circunstân-

cias dele na ocasião competente.

A velha parenta foi desatada, desamordaçada e conduzida à fazen-

da de Pio.

Julião, depois de contar-me toda a história cujo resumo acabo de

fazer, perguntou-me:

– Diga-me, Sr. doutor, pode ser meu advogado? Não sou criminoso?

– Serei seu advogado. Descanse, estou certo de que os juízes reco-

nhecerão as circunstâncias atenuantes do delito.

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– Oh! não é isso que me aterroriza. Seja ou não condenado pelos

homens, é coisa que nada monta para mim. Se os juízes não forem

pais, não me compreenderão, e então é natural que sigam os ditames

da lei. Não matarás, é dos mandamentos, eu bem sei...

Não quis magoar a alma do pobre pai continuando naquele diálo-

go. Despedi-me dele e disse que voltaria depois.

Saí da cadeia alvoroçado. Não era romance, era tragédia o que eu

acabava de ouvir. No caminho as idéias se me clarearam. Meu espírito

voltou-se vinte e três séculos atrás, e pude ver, no seio da sociedade

romana, um caso idêntico ao que se dava na vila de***.

Todos conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Dio-

doro de Sicília e outros antigos falam dela circunstanciadamente. Foi

essa tragédia a precursora da queda dos decênviros. Um destes, Ápio

Cláudio, apaixonou-se por Virgínia, filha de Virginius. Como fosse im-

possível de tomá-la por simples simpatia, determinou o decênviro em-

pregar um meio violento. O meio foi escravizá-la. Peitou um sicofanta,

que apresentou-se aos tribunais reclamando a entrega de Virgínia, sua

escrava. O desventurado pai, não conseguindo comover nem por seus

rogos, nem por suas ameaças, travou de uma faca de açougue e cravou-a

no peito de Virgínia.

Pouco depois caíam os decênviros e restabelecia-se o consulado.

No caso de Julião não haviam decênviros para abater nem cônsu-

les para levantar; mas havia a moral ultrajada e a malvadez triunfante.

Infelizmente estão ainda longe, esta da geral repulsão, aquela do res-

peito universal.

III

F azendo todas estas reflexões, encaminhava-me eu para a casa do

amigo em que estava hospedado. Ocorreu-me uma idéia, a de ir à fa-

zenda de Pio, autor do bilhete que me chamara da corte, e de quem eu

podia saber muita coisa mais.

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{ 64 }

Não insisto em observar a circunstância de ser o velho fazendeiro

quem se interessava pelo réu e pagava as despesas da defesa nos tri-

bunais. Já o leitor terá feito essa observação, realmente honrosa para

aquele deus da terra.

O sol, apesar da estação, queimava suficientemente o viandante.

Ir a pé à fazenda, quando podia ir a cavalo, era ganhar fadiga e per-

der tempo sem proveito. Fui à casa e mandei aprontar o cavalo. O

meu hóspede não estava em casa. Não quis esperá-lo, e sem mais com-

panhia dirigi-me para a fazenda.

Pio estava em casa. Mandei-lhe dizer que uma pessoa da corte

desejava falar-lhe. Fui recebido incontinenti.

Achei o velho fazendeiro em conversa com um velho padre. Pa-

reciam, tanto o secular como o eclesiástico, dois verdadeiros solda-

dos do Evangelho combinando-se para a mais extensa prática do bem.

Tinham ambos a cabeça branca, o olhar sereno, a postura grave e o

gesto despretensioso. Transluzia-lhes nos olhos a bondade do coração.

Levantaram-se quando apareci e vieram cumprimentar-me.

O fazendeiro era quem chamava mais a minha atenção, pelo que

ouvira dizer dele ao meu amigo e ao pai de Elisa. Pude observá-lo duran-

te alguns minutos. Era impossível ver aquele homem e não adivinhar o

que ele era. Com uma palavra branda e insinuante disse-me que diante

do capelão não tinha segredos, e que eu dissesse o que tinha para dizer.

E começou por me perguntar quem era eu. Disse lho; mostrei-lhe o

bilhete, declarando que sabia ser dele, razão por que o procurara.

Depois de algum silêncio disse-me:

– Já falou ao Julião?

– Já.

– Conhece então toda a história?

– Sei do que ele me contou.

– O que ele lhe contou é o que se passou. Foi uma triste história

que me envelheceu ainda mais em poucos dias. Reservou-me o céu

aquela tortura para o último quartel da vida. Soube o que fez.

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É sofrendo que se aprende. Foi melhor. Se meu filho havia de espe-

rar que eu morresse para praticar atos tais com impunidade, bom foi que

o fizesse antes, seguindo-se assim ao delito o castigo que mereceu.

A palavra castigo impressionou-me. Não me pude ter e disse-lhe:

– Fala em castigo. Pois castigou seu filho?

– Pois então? Quem é o autor da morte de Elisa?

– Oh!... isso não, disse eu.

– Não foi autor, foi causa. Mas quem foi o autor da violência à

pobre pequena? Foi decerto meu filho.

– Mas esse castigo?...

– Descanse, disse o velho adivinhando a minha indiscreta inquieta-

ção. Carlos recebeu um castigo honroso, ou, por outra, sofre como casti-

go aquilo que devia receber como honra. Eu o conheço. Os cômodos da

vida que teve, a carta que alcançou pelo estudo, e certa dose de vaidade

que todos nós recebemos do berço, e que o berço lhe deu a ele em

grande dose, tudo isso é que o castiga neste momento, porque tudo foi

desfeito pelo gênero de vida que lhe fiz adotar. Carlos é agora soldado.

– Soldado! exclamei eu.

– É verdade. Objetou-me que era doutor. Disse-lhe que devia lem-

brar-se de que o era quando penetrou na casa de Julião. A muito pedi-

do, mandei-o para o Sul, com promessa jurada, e avisos particulares e

reiterados, de que, mal chegasse ali, assentasse praça em um batalhão

de linha. Não é um castigo honroso? Sirva a sua pátria, e guarde a fa-

zenda e a honra dos seus concidadãos: é o melhor meio de aprender a

guardar a honra própria.

Continuamos em nossa conversa durante duas horas quase. O ve-

lho fazendeiro mostrava-se magoadíssimo sempre que volvíamos a falar

do caso de Julião. Depois que lhe declarei que tomava conta da causa

em defesa do réu, instou comigo para que nada poupasse a fim de al-

cançar a diminuição da pena de Julião. Se for preciso, dizia ele, apreciar

com as considerações devidas o ato de meu filho, não se acanhe: esque-

ça-se de mim, porque eu também me esqueço do meu filho.

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Cumprimentei aquela virtude romana, despedi-me do padre, e saí,

depois de prometer tudo o que me foi pedido.

IV

– Então, falaste a Julião? perguntou o meu amigo quando me viu

entrar em casa.

– Falei, e falei também ao Pai de todos... Que história, meu

amigo!... Parece um sonho.

– Não te disse?... E defendes o réu?

– Com toda a certeza.

Fui jantar, e passei o resto da tarde conversando acerca do ato de

Julião e das virtudes do fazendeiro.

Poucos dias depois instalou-se o júri onde tinha de comparecer

Julião.

De todas as causas, era aquela a que mais medo me fazia; não que

eu duvidasse das atenuantes do crime, mas porque receava não estar

na altura da causa.

Toda a noite da véspera foi para mim de verdadeira insônia. Enfim

raiou o dia marcado para o julgamento de Julião. Levantei-me, comi

pouco e distraído, e vesti-me. Entrou-me no quarto o meu amigo.

– Lá te vou ouvir, disse-me ele abraçando.

Confessei-lhe os meus receios; mas ele, para animar-me, entre-

teceu uma grinalda de elogios que eu mal pude ouvir, no meio das

minhas preocupações.

Saímos.

Dispenso os leitores da narração do que se passou no júri. O crime

foi provado pelo depoimento das testemunhas, nem Julião o negou

nunca. Mas apesar de tudo, da confissão e da prova testemunhal, au-

ditório, jurados, juiz e promotor, todos tinham pregados no réu olhos

de simpatia, admiração e compaixão.

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A acusação limitou-se a referir o depoimento das testemunhas, e

quando, terminando o seu discurso, teve de pedir a pena para o réu, o

promotor mostrava-se envergonhado de estar trêmulo e comovido.

Tocou-me a vez de falar. Não sei o que disse. Sei que as mais

ruidosas provas de adesão surgiam no meio do silêncio geral. Quando

terminei, dois homens invadiram a sala e abraçaram-me comovidos: o

fazendeiro e o meu amigo.

Julião foi condenado a dez anos de prisão. Os jurados tinham ou-

vido a lei, e igualmente, talvez, o coração.

V

N o momento em que escrevo estas páginas, Julião, tendo já cum-

prido a sentença, vive na fazenda de Pio. Pio não quis que ele voltasse

ao lugar em que se dera a catástrofe, e fá-lo residir ao pé de si.

O velho fazendeiro tinha feito recolher as cinzas de Elisa em uma

urna, ao pé da qual vão ambos orar todas as semanas.

Aqueles dois pais, que assistiram ao funeral das suas esperanças,

acham-se ligados intimamente pelos laços do infortúnio.

Na fazenda fala-se sempre de Elisa, mas nunca de Carlos. Pio é o

primeiro a não magoar o coração de Julião com a lembrança daquele

que o levou a matar sua filha.

Quanto a Carlos, vai resgatando como pode o crime com que aten-

tou contra a honra de uma donzela e contra a felicidade de dois pais.

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Uns braços

Publicado originalmente em Gazeta de Notícias, 1885

Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, rece-

beu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer,

debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de

vento, estúpido, maluco.

– Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei

de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça

do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau;

sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido!

Maluco!

– Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui,

continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia

com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis

todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro,

troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contí-

nuo. De manhã é o que se vê; primeiro para que acorde é

preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acor-

dá-lo a pau de vassoura!

D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que

acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e

ficou em paz com Deus e os homens.

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Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio

não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos.

Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha,

que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto

sobre um corpo não destituído de graça, ainda que malvestido. O pai é

barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer

que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque

lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-

se isto na rua da Lapa, em 1870.

Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres

e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; inter-

rompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava

logo calado.

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do

prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o

terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arris-

cado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não

esquecesse de si e de tudo.

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus,

constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa,

meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à

mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona,

que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por vi-

verem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por facei-

ra, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De

pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entre-

tanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia

mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não

era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco;

alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça

com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço

escuro; nas orelhas, nada. Tudo isso com 27 anos floridos e sólidos.

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Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos

da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e

guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa

e falou a D. Severina de trinta mil coisas que não interessavam nada

ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia

devanear à larga.

Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole,

alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários,

ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois,

um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas e encaixilhados

em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra

as imaginações católicas; mas com o austero S. Pedro era demais. A

única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro;

passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severi-

na, – ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse

com eles impressos na memória.

– Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.

Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-

se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando,

fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das

duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista

das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o senti-

mento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa

que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade

de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida

era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiên-

cias e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos

escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se

ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava

intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem

Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco

semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs;

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cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na

rua; em casa, nada.

– Deixe estar, – pensou ele um dia – fujo daqui e não volto mais.

Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Se-

verina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que

tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a

princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver

que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, miran-

do e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando,

as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora, toda

a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela

única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.

Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na

rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapi-

tulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou de alguma

coisa. Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da

família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tor-

nam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre

o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço.

Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra

idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os

modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e

mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.

– Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé,

ao cabo de alguns minutos de pausa.

– Não tenho nada.

– Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar,

que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...

E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas

realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau.

D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dor-

mindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde

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o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia

que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visi-

tas de parola; e descompôs a comadre, descompôs o compadre, des-

compôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges,

com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo,

mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: – vadio, e o côvado

e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.

D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o

caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles po-

diam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião a

gás da rua, que acabavam de acender; e viu o clarão dele nas janelas da

casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalha-

dor de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e

deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba-

va de fazer.

Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade,

desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação mo-

ral, que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir

o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar

em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho.

Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que su-

posição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não

era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o aca-

nhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí

a pouco (capciosa natureza!), refletindo que seria mau acusá-lo sem

fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo

melhor e averiguar bem a realidade das coisas.

Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de

Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o

rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar

melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e

temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um

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sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mes-

mo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato,

e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe

um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era

criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda

mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos,

ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é

verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim

como o olhar, geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que,

para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

– Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.

Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina

fechavam-lhe um parênteses no meio do longo e fastidioso período da

vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e

profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar

e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui

como e porquê.

D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rude-

za da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo

e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que

não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças,

cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior in-

quietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir

um dia à mesa, coisa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal

dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém

pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu

que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos

quando ria.

A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-

se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de

noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava

as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao

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perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa,

voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande,

quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de

pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.

Um domingo, – nunca ele esqueceu esse domingo – estava só no

quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem

obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas,

que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’água, ou avoa-

çavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cris-

tão; era um imenso domingo universal.

Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um

dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, com-

prados a tostão, debaixo do passadiço do largo do Paço. Eram duas

horas da tarde. Estava cansado, dormira mal à noite, depois de haver

andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhe-

tos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por-

que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma

cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo

de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde,

cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural

era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras

cerradas, viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede.

Era ela mesma; eram os seus mesmos braços.

É certo, porém, que D. Severina tanto não podia sair da pare-

de, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na

sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas.

Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se

perdeu ao longe, no caminho da rua das Mangueiras. Então entrou e

foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase malu-

ca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador

e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até a porta, deteve-se e

voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez, cinco ou dez

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minutos. De repente, lembrou-se de que Inácio comera pouco ao al-

moço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser

até que estivesse muito mal.

Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto

do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou,

deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto

caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, dei-

xando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso

e de beatitude.

D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou.

Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com

ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante

dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou,

olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à ado-

lescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina,

quase pueril. Uma criança! disse ela a si mesma, naquela língua sem

palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoro-

ço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.

– Uma criança!

E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada,

o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o

bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou

corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira

um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara

uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia

profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara

tanto não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir,

– dormir e talvez sonhar.

Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-

se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da

rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las

ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado

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deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas, cálidas,

principalmente novas, – ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma

que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas, três e quatro ve-

zes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte,

entre gaivotas, ou atravessando o corredor, com toda a graça robusta de

que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos

e cruzava ao peito os braços, até que, inclinando-se, ainda mais, muito

mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.

Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uni-

ram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não re-

cuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até

a porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do

que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o

fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que

ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando.

Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem

os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi

passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer

que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia

de que era uma criança namorada que ali estava, sem consciência

nem imputação; e, meia-mãe, meia-amiga, inclinara-se e beijara-o.

Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida, mal consigo

e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia

apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.

Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar.

Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e

severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez

de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa

que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não

reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; repa-

rou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, é até sábado,

que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar

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com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e

ainda lhe disse à saída:

– Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.

– Sim, senhor. A Sra. D. Severina...

– Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã

ou depois despedir-se dela.

Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a

completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem

nada. Estava tão bem! Falava-lhe com tanta amizade! Como é que,

de repente... Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum

olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera; não era outra coisa;

e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não

importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio

de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou

nunca igual à daquele domingo, na rua da Lapa, quando ele tinha

quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:

– E foi um sonho! um simples sonho!

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A lmas agradecidas

Publicado originalmente no Jornal das Famílias, março, 1871

I

H avia representação no Ginásio. A peça da moda era então

a célebre Dama das camélias. A casa estava cheia. No fim

do quarto ato começou a chover um pouco; do meio do

quinto ato em diante a chuva redobrou de violência.

Quando acabou o espetáculo cada família entrou no

seu carro; as poucas que não tinham esperavam uma es-

tiada, e, mediante os guarda-chuvas, lá saíram com as

saias arregaçadas,

.......... aos olhos dando,

O que às mãos cobiçosas vão negando.

Os homens abriam os seus guarda-chuvas; outros

chamavam tílburis; e pouco a pouco se foi despejando

o saguão, até que só ficaram dois rapazes, um dos quais

abotoara até o pescoço o paletó, e esperava maior estiada

para sair, porque além de não ter guarda-chuva, não via

nenhum tílburi no horizonte.

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O outro também abotoara o paletó, mas tinha guarda-chuva; não

parecia, entretanto, disposto a abri-lo. Olhava de esguelha para o pri-

meiro, que fumava tranqüilamente um charuto.

Já o porteiro havia fechado as duas portas laterais e ia fazer o mes-

mo à porta central, quando o rapaz do guarda-chuva dirigiu ao outro

estas palavras:

– Para que lado vai?

O interpelado compreendeu que o companheiro lhe ia oferecer

abrigo e respondeu, com palavras de agradecimento, que morava na

Glória.

– É muito longe, disse ele, para aceitar o abrigo que naturalmente

me quer oferecer. Eu esperarei aqui um tílburi.

– Mas a porta vai fechar-se, observou o outro.

– Não importa, esperarei do lado de fora.

– Não é possível, insistiu o primeiro; a chuva ainda está forte e po-

de aumentar mais. Não lhe ofereço abrigo até casa porque moro na

Prainha, que é justamente do lado oposto; mas posso cobri-lo até ao

Rocio, onde encontraremos um tílburi.

– É verdade, respondeu o rapaz que não tinha guarda-chuva; não

me havia ocorrido isto, aceito com prazer.

Saíram os dois rapazes e foram até o Rocio. Nem sombra de tílburi

ou caleça.

– Não admira, disse o rapaz do guarda-chuva; foram todos com

gente do teatro. Daqui a pouco haverá algum de volta...

– Mas eu não quisera dar-lhe o incômodo de o reter mais tempo

aqui à chuva.

– Cinco ou dez minutos talvez; esperaremos.

A chuva veio contrariar estes bons desejos do rapaz, caindo com

furor. Mas o desejo de servir tem mil maneiras de se manifestar. O

rapaz do guarda-chuva propôs um meio excelente de escapar à chuva

e esperar condução: era ir tomar chá ao hotel que mais à mão lhes

ficasse. O convite não era mau; tinha só o inconveniente de vir de

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um desconhecido. Antes de lhe responder, o rapaz sem guarda-chuva

deitou um rápido olhar ao seu companheiro, espécie de exame prévio

da condição social da pessoa. Parece que a achou boa, porque aceitou

o convite.

– É levar muito longe a sua bondade, disse ele, mas eu não posso

deixar de abusar dela; a noite está inclemente.

– Eu também costumo esquecer o guarda-chuva, e amanhã estarei

nas suas mesmas circunstâncias.

Foram para o hotel e daí a pouco tinham diante de si um excelente

pedaço de rosbife frio, acompanhado de não menos excelente chá.

– Há de desculpar a minha curiosidade, disse o rapaz sem guarda-

chuva; mas eu desejaria saber a quem devo a obsequiosidade com que

sou tratado há vinte minutos.

– Não somos inteiramente desconhecidos, respondeu o outro; a

sua memória é que é menos conservadora do que a minha.

– Donde me conhece?

– Do colégio. Andamos juntos no colégio Rosa...

– Andei lá, é verdade, mas...

– Não se lembra do Oliveira? Aquele que trocava as réguas por

laranjas? Aquele que desenhava com giz o retrato do mestre nas costas

dos outros meninos?

– Que me diz? É o senhor?

– De carne e osso; eu mesmo. Acha-me mudado, não?

– Oh! muito!

– Não admira; eu era naquele tempo uma criança rechonchuda e

vermelha; hoje como vê, estou quase tão magro como D. Quixote;

e não foram trabalhos, porque eu não os tenho tido; nem desgostos,

que eu ainda não os experimentei. O senhor, porém, é que não mudou;

se não fosse esse pequeno bigode, pareceria o mesmo daquele tempo.

– E todavia não me hão faltado desgostos, acudiu o outro; minha

vida tem sido atribulada. A natureza tem destas coisas.

– Casou-se?

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– Não; e o senhor?

– Também não.

A pouco e pouco começaram as confidências pessoais; cada um

narrou aquilo que podia narrar, por maneira que, ao fim da ceia, pare-

ciam tão íntimos como no tempo do colégio.

Sabemos destas revelações mútuas que Oliveira era bacharel em

Direito e começava a advogar com pouco sucesso. Herdara alguma

coisa da avó, última parenta que conservara até então, tendo-lhe

morrido os pais antes de entrar na adolescência. Estava com certo

desejo de entrar na vida política e contava com a proteção de alguns

amigos de seu pai para ser eleito deputado à assembléia provincial

fluminense.

Magalhães era o nome do outro; não herdara de seus pais dinhei-

ro, nem amigos políticos. Aos 16 anos, achou-se só no mundo; exer-

cera vários empregos de caráter particular, até que conseguira obter

uma nomeação para o Arsenal de Guerra, onde estava atualmente.

Confessou que esteve a ponto de enriquecer casando com uma viúva

rica; mas não revelou as causas que lhe impediram essa mudança de

fortuna.

A chuva cessara de todo. Já uma parte do céu se havia descoberto

deixando aparecer o rosto da lua cheia, cujos raios pálidos e frios brin-

cavam nas pedras e nos telhados úmidos.

Saíram os nossos dois amigos.

Magalhães declarou que iria a pé.

– Não chove mais, disse ele; ou, pelo menos, nesta meia hora; vou

a pé até a Glória.

– Pois bem, respondeu Oliveira; já lhe disse o número da minha

casa e do meu escritório; apareça lá algumas vezes; folgarei de reatar

as nossas relações da meninice.

– Também eu; até breve.

Despediram-se na esquina da rua do Lavradio, e Oliveira enfiou

pela de S. Jorge. Ambos foram pensando um no outro.

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– Parece ser um excelente rapaz este Magalhães, dizia o jovem

advogado consigo; no colégio foi sempre um menino sério. Ainda

o é agora, e até parece um pouco reservado, mas é natural porque

sofreu.

II

T rês dias depois apareceu Magalhães no escritório de Oliveira; falou

na sala a um porteiro, que lhe pediu o cartão.

– Não tenho cartão, respondeu Magalhães envergonhado; esque-

ci-me de o trazer; diga-lhe que é o Magalhães.

– Queira esperar alguns minutos, tornou o porteiro; ele está con-

versando com uma pessoa.

Magalhães assentou-se numa cadeira de braços, enquanto o por-

teiro assoava silenciosamente o nariz e tomava uma pitada de rapé,

que lhe não ofereceu. Magalhães examinou detidamente as cadeiras,

as estantes, os quadros de gravuras, os capachos e as escarradeiras. A

sua curiosidade era minuciosa e sagaz; parecia estar avaliando o gosto

ou a riqueza de seu ex-colega.

Minutos depois ouviu-se um rumor de cadeiras, e não tardou que

viesse da sala do fundo um velho alto e empertigado, vestido com certo

apuro, a quem o porteiro fez largos cumprimentos até o patamar da

escada.

Magalhães não esperou que o porteiro fosse avisar Oliveira; atra-

vessou o corredor que separava as duas salas e foi ter com o amigo.

– Ora, viva! disse este apenas o viu entrar. Estimo que não lhe

houvesse esquecido a promessa. Sente-se; chegou à casa com chuva?

– Começou a chuviscar quando eu me achava a dois passos da

porta, respondeu Magalhães.

– Que horas são?

– Pouco mais de duas, creio eu.

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– O meu relógio está parado, disse Oliveira lançando o olhar de

esguelha para o colete de Magalhães, que não tinha relógio. Natural-

mente, ninguém mais me procurará hoje; e ainda que venham, quero

descansar.

Oliveira tocou a campainha apenas acabou de proferir estas pala-

vras. Veio o porteiro.

– Se vier alguém, disse Oliveira, não estou cá.

O porteiro inclinou-se e saiu.

– Estamos livres de importunos, disse o advogado apenas o portei-

ro virou as costas.

Todas estas maneiras e palavras de simpatia e cordialidade foram

angariando a confiança de Magalhães, que começou a parecer alegre e

franco com o seu ex-colega.

Longa foi a conversa, que durou até às quatro horas da tarde. Às

cinco jantava Oliveira; mas o outro jantava às três, e se o não disse, era

talvez por deferência, se não fosse por cálculo. Um jantar copioso e es-

colhido não era melhor que o ramerrão culinário de Magalhães? Fosse

uma ou outra coisa, Magalhães suportou a fome com admirável deno-

do. Eram quatro horas da tarde quando Oliveira deu acordo de si.

– Quatro horas! exclamou ele, ouvindo as badaladas de um sino

próximo. Naturalmente já você perdeu a hora do jantar.

– Assim é, respondeu Magalhães; eu costumo jantar às três horas.

Não importa; adeus.

– Isso é que não; há de ir jantar comigo.

– Não; obrigado...

– Ande cá, jantaremos no hotel mais próximo, porque a minha

casa é longe. Eu ando com idéia de mudar de casa; estou muito fora

do centro da cidade. Vamos aqui ao Hotel de Europa.

Os vinhos eram bons; Magalhães gostava de vinhos bons. No meio

do jantar tinha-se-lhe desenvolvido completamente a língua. Oliveira

fazia quanto podia para tirar ao amigo da infância toda espécie de aca-

nhamento. Isso e o vinho deu excelente resultado.

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Desta ocasião em diante foi que Oliveira começou a apreciar o ex-

colega. Era Magalhães um rapaz de agudo espírito, boa observação, con-

versador ameno, um pouco lido em obras fúteis e correntes. Tinha além

disso o dom de ser naturalmente insinuante. Com estas prendas juntas

não era difícil, era antes facílimo angariar as boas graças de Oliveira,

que, à sua extrema bondade, reunia uma natural confiança, ainda não

diminuída pelos cálculos da vida madura. Demais Magalhães tinha sido

infeliz; esta circunstância era aos olhos de Oliveira um realce. Finalmen-

te, o seu ex-colega já lhe confiara no trajeto do escritório ao hotel, que

não contava um amigo debaixo do sol. Oliveira queria ser esse amigo.

Qual importa mais à vida, ser Dom Quixote ou Sancho Pança? O

ideal ou o prático? A generosidade ou a prudência? Oliveira não hesi-

tava entre esses dois opostos papéis; nem sequer pensara neles. Estava

no período do coração.

Apertaram-se os laços da amizade entre os dois colegas. Oliveira

mudou-se para a cidade, o que deu azo a que os dois amigos se encon-

trassem mais vezes. A freqüência veio a uni-los ainda mais.

Oliveira apresentou Magalhães a todos os seus amigos; levou-o

a casa de alguns. A sua palavra afiançava o hóspede que, dentro em

pouco tempo, captava as simpatias de todos.

Nisto era Magalhães superior a Oliveira. Não faltava ao advogado

inteligência, nem maneiras, nem dom para se fazer estimado. Mas os do-

tes de Magalhães superavam os dele. A conversa de Magalhães era mais

picante, mais variada, mais atraente. Há muito quem prefira a amizade

de um homem sarcástico, e Magalhães tinha seus longes de sarcástico.

Não se magoava com isto Oliveira, antes parecia ter certa glória

em ver que seu amigo obtinha por seu mérito a estima dos outros.

Facilmente acreditará o leitor que estes dois amigos se fizessem

confidentes de todas as coisas, principalmente de coisas de amo-

res. Nada esconderam a este respeito um ao outro, com a diferença

de que Magalhães, não tendo amores atuais, confiou ao amigo ape-

nas algumas proezas antigas, ao passo que Oliveira, a braços com

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algumas aventuras, não dissimulou nenhuma delas, e tudo contou a

Magalhães.

E foi bem que o fizesse, porque Magalhães era homem de bom

conselho, dava ao amigo pareceres sensatos, que ele ouvia e aceitava

com grande proveito seu e para maior glória da recíproca amizade.

A dedicação de Magalhães ainda se manifestava por outro modo.

Não era raro vê-lo desempenhar um papel de conciliador, auxiliar uma

inocente mentira, ajudar o amigo em todas as dificuldades que o amor

depara aos seus alunos.

III

Um dia de manhã, leu Oliveira, ainda na cama, a notícia da demis-

são de Magalhães, impressa no Jornal do Commercio. Grande foi a sua

mágoa, mas ainda maior que a mágoa foi a raiva que esta notícia lhe

causou. Demitir Magalhães! Oliveira mal podia compreender este ato

do ministro. O ministro era necessariamente tolo ou tratante.

Havia patronato naquilo. Não seria pagamento a algum eleitor solícito?

Estas e outras conjeturas preocuparam o advogado até a hora do

almoço. Almoçou pouco. O estômago acompanhava a dor do coração.

Magalhães devia ir nesse dia ao escritório de Oliveira. Com que

ansiedade esperou este a hora marcada! Esteve a ponto de faltar a um

depoimento de testemunhas. Mas a hora chegou e Magalhães não apa-

receu. Oliveira estava sobre brasas. Qual a razão da falta? Não atinava

com ela.

Eram quatro horas quando saiu do escritório, e sua resolução ime-

diata foi meter-se num tílburi e seguir para a Glória.

Assim o fez.

Quando lá chegou, estava Magalhães lendo um romance. Não pa-

recia abatido pelo golpe ministerial. Todavia não estava alegre. Fechou

o livro lentamente e abraçou o amigo.

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Oliveira não podia conter a sua cólera.

– Lá vi hoje, disse ele, a notícia da tua demissão. É uma patifaria

sem nome...

– Por quê?

– Ainda o perguntas?

– Sim; por quê? O ministro é senhor dos seus atos e responsável

por eles; podia demitir-me e fê-lo.

– Mas fez mal, disse Oliveira. Magalhães sorriu tristemente.

– Não podia deixar de o fazer, disse ele; um ministro é muitas

vezes um amanuense do destino, que só parece ocupar-se em me per-

turbar a vida e multiplicar todos os esforços. Que queres? Eu já estou

acostumado, não resisto; dia virá em que estes golpes terão um termo.

Dia virá em que eu possa vencer a má fortuna de uma vez para sempre.

Tenho o remédio nas mãos.

– Deixa-te de tolices, Magalhães.

– Tolices?

– Mais que tolices; sê forte!

Magalhães abanou a cabeça.

– Não custa aconselhar fortaleza, murmurou ele; mas quem tem

sofrido como eu...

– Já não contas com os amigos?

– Os amigos não podem tudo.

– Muito obrigado! Eu te mostrarei se podem.

– Não te iludas, Oliveira; não te esforces a favor de um homem

que a sorte condenou.

– Histórias!

– Sou um condenado.

– És um fracalhão.

– Acreditas que eu...

– Acredito que és um fracalhão, e que não pareces aquele mes-

mo Magalhães que sabe conservar o sangue-frio em todas as ocasiões

graves. Descansa, eu tirarei desforra brilhante. Antes de quinze dias

estarás empregado.

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– Não creias...

– Desafias-me?

– Não; bem conheço de que é capaz teu coração nobre e genero-

so... mas...

– Mas o quê?

– Receio que a má fortuna seja mais forte do que tu.

– Verás.

Oliveira deu um passo para a porta.

– Nada disso impede que venhas jantar comigo, disse ele, voltan-

do-se para Magalhães.

– Obrigado; já jantei.

– Anda ao menos comigo para ver se te distrais.

Magalhães recusou; mas Oliveira insistiu com tão boa vontade

que não havia recusar.

Durante a noite seguinte, meditou Oliveira acerca do negócio de

Magalhães. Tinha amigos importantes, os mesmos que forcejavam por

lhe abrir carreira política. Oliveira pensou neles como os mais próprios

para levar a cabo a obra de seus desejos. O grande caso para ele era

empregar Magalhães, em cargo tal que despicasse da prepotência mi-

nisterial. O substantivo prepotência era a exata expressão de Oliveira.

Não lhe ocultaram os amigos que o caso não era fácil; mas prome-

teram que a dificuldade seria vencida. Não se dirigiram ao Ministro da

Guerra, mas a outro; Oliveira pôs em campo o recurso feminino. Duas

senhoras de seu conhecimento foram em pessoa falar ao ministro, em

favor do feliz candidato.

Não negou o digno membro do poder executivo a dificuldade de

criar um lugar para dar ao pretendente. Seria cometer a injustiça de ti-

rar o pão a empregados úteis ao país.

Instavam porém os padrinhos, audiências e cartas, pedidos de toda

a sorte; nada ficou por empregar em favor de Magalhães.

Depois de cinco dias de lutas e solicitações diárias declarou o mi-

nistro que poderia dar um bom emprego a Magalhães na Alfândega de

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Corumbá. Já era boa vontade da parte do ministro, mas os protetores

de Magalhães recusaram a graça.

– O que se deseja de V. Ex.ª, disse um deles, é que o nosso afilha-

do seja empregado aqui mesmo na Corte. Vai nisso uma questão de

honra, e uma questão de comodidade.

Tinha boa vontade o ministro, e entrou a cogitar no meio de aco-

modar o pretendente. Havia em uma das repartições a seu cargo um

empregado que durante o ano faltava muitas vezes ao ponto, e na úl-

tima peleja eleitoral votara contra o ministro. Caiu-lhe uma demissão

em casa, e para evitar empenhos mais fortes, no mesmo dia em que

apareceu a demissão do empregado vadio, apareceu a nomeação de

Magalhães.

Foi o próprio Oliveira que levou a Magalhães o desejado decreto.

– Dá-me cá um abraço, disse ele, e reza aí um mea culpa. Venci o

destino. Estás nomeado.

– Quê! Será possível?

– Aqui tens o decreto!

Magalhães caiu nos braços de Oliveira. A gratidão de quem re-

cebe um benefício é sempre menor que o prazer daquele que o faz.

Magalhães exprimia todo seu reconhecimento pela dedicação e per-

severança de Oliveira; mas a alegria de Oliveira não tinha limites. A

explicação desta diferença está talvez neste fundo de egoísmo que há

em todos nós.

Em todo o caso, a amizade dos dois ex-colegas ganhou com isso

maior solidez.

IV

O novo emprego de Magalhães era muito melhor que o primeiro em

categoria e lucro, de maneira que a demissão, longe de lhe ser um gol-

pe funesto do destino, foi um lance de melhor fortuna...

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Passou Magalhães a ter melhor casa e a alargar um pouco mais

a bolsa, pois que a tinha agora mais farta que dantes; Oliveira ob-

servava esta mudança e regozijava-se com a idéia de que contribuíra

para ela.

A vida de ambos continuaria por este teor, plácida e indiferente, se

um acontecimento não a viesse perturbar de repente.

Um dia achou Magalhães que Oliveira parecia preocupado. Per-

guntou-lhe francamente o que era.

– Que há de ser? disse Oliveira. Eu sou um miserável nessas coi-

sas de amores; estou apaixonado.

– Queres que te diga uma coisa?

– O quê?

– Acho que fazes mal em diluir o teu coração com essas mulheres.

– Que mulheres?

– Essas.

– Não me compreendes, Magalhães; a minha atual paixão é séria;

amo uma menina honesta.

– Que mágoas então são essas? Casa-te com ela.

– Esse é o ponto. Creio que ela não me ama.

– Ah!

Houve um silêncio.

– Mas não te resta esperança nenhuma? perguntou Magalhães.

– Não posso dizer isso; não penso que ela seja sempre esquiva ao

meu sentimento; mas por ora nada há entre nós.

Magalhães entrou a rir.

– Pareces-me calouro, homem! disse ele. Quantos anos tem ela?

– Dezessete.

– A idade da inocência; suspiras em silêncio e queres que ela te

adivinhe. Nunca chegarás ao cabo. Tem-se comparado o amor à guerra.

Assim é. No amor querem-se atos de bravura como na guerra. Avança

afoitamente e vencerás.

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Oliveira ouvia estas palavras com a atenção de um homem sem

iniciativa, a quem todo conselho serve. Confiava no juízo de Magalhães

e o parecer dele era razoável.

– Parece-te então que eu devo expor-me?

– Sem dúvida.

O advogado referiu depois todas as circunstâncias do seu encontro

com a moça em questão. Pertencia a uma família com quem esteve

em casa de terceiro; o pai era um excelente homem, que o convidou a

freqüentar a casa, e a mãe uma excelente senhora, que ratificou o con-

vite do marido. Oliveira não tinha ido lá depois disso, porque, segundo

imaginava, a moça não correspondia à sua afeição.

– És um tolo, disse Magalhães quando o amigo acabou a narração.

Vês a rapariga num baile, ficas gostando dela, e só porque ela não te

caiu logo nos braços, desistes de lhe freqüentar a casa. Oliveira, tem

juízo: vai à casa dela, e dir-me-ás daqui a pouco tempo se te não apro-

veita o conselho. Queres casar, não?

– Oh! podias pôr em dúvida?...

– Não; é uma pergunta. Não é casamento romântico?

– Que queres dizer com isso?

– Ela é rica?

Oliveira franziu a testa.

– Não te zangues, disse Magalhães. Eu não sou nenhum espírito

rasteiro; também conheço as delicadezas do coração. Nada vale mais

que um amor, verdadeiro e desinteressado. Não se me há de censurar,

porém, que eu procure ver o lado prático das coisas; um coração de

ouro vale muito; mas um coração de ouro com ouro vale mais.

– Cecília é rica.

– Pois tanto melhor!

– Afianço-te, porém, que essa consideração...

– Não precisas afiançar nada; eu bem sei o que vales, disse Ma-

galhães apertando as mãos de Oliveira. Anda, meu amigo, não te dete-

nho; procura a tua felicidade.

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Animado por estes conselhos, tratou Oliveira de sondar o terreno

para declarar a sua paixão. Omiti de propósito a descrição de Cecília fei-

ta por Oliveira ao seu amigo Magalhães. Não desejava exagerar aos olhos

dos leitores a beleza da moça, que a um namorado parece sempre maior

do que realmente é. Mas Cecília era realmente formosa. Era uma be-

leza, uma flor em toda a extensão da palavra. Todas as forças e fulgores

da mocidade estavam nela, que apenas saía da adolescência e parecia

anunciar longa e esplêndida juventude. Não era alta, mas também não

era baixa. Era acima de meã. Era muito corada e viva; tinha uns olhos

brilhantes e buliçosos, olhos de namorada ou namoradeira; era talvez

um pouco afetada, mas deliciosa; tinha certas exclamações que lhe fica-

vam bem nos seus lábios finos e úmidos.

Oliveira não viu logo todas estas coisas na noite em que lhe falou;

mas não tardou que ela se lhe revelasse assim, desde que começou a

freqüentar a casa dela.

Nisto era Cecília ainda um pouco criança; não sabia dissimular

nem era difícil captar-lhe a confiança. Mas, através das aparências de

frivolidade e volubilidade, descobria-lhe Oliveira sólidas qualidades do

coração. O contato redobrou o seu amor. No fim de um mês Oliveira

parecia perdido por ela.

Magalhães continuava a ser o conselheiro de Oliveira e o seu úni-

co confidente. Um dia pediu-lhe o namorado que fosse com ele à casa

de Cecília.

– Tenho medo, disse Magalhães.

– Por quê?

– Sou capaz de precipitar tudo, e isso não sei se será conveniente

antes de conhecer bem o terreno. Em qualquer caso, não é mau que

eu vá examinar por mim mesmo as coisas. Irei quando quiseres.

– Amanhã?

– Seja amanhã.

No dia seguinte, Oliveira apresentou Magalhães em casa do co-

mendador Vasconcelos.

– É o meu melhor amigo, disse Oliveira.

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Na casa de Vasconcelos já estimavam o advogado; esta apresenta-

ção bastava para recomendar Magalhães.

V

O comendador Vasconcelos era um velho folgazão. Estouvado na mo-

cidade, não o era menos na velhice. O estouvamento na velhice é, por

via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de Vasconcelos tinha

um toque peculiar, um caráter todo seu, por modo que era impossível

compreender aquele velho sem aquele estouvamento.

Contava já seus cinqüenta e oito anos, e andaria lépido como um

rapaz de vinte anos, se não fosse uma volumosa barriga que, desde os

quarenta anos, lhe começara a crescer com grave desdouro das suas

graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a Sra. D.

Mariana houvesse casado com ele.

D. Mariana, antes de casar, professava um princípio seu: o casa-

mento é um estado vitalício; cumpre não precipitar a escolha do noivo.

Pelo que rejeitou três pretendentes que, apesar de suas boas qualida-

des, tinham um defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconce-

los alcançou o seu Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo.

Salvante a barriga, Vasconcelos era ainda um belo velho, uma ruí-

na magnífica. Não tinha paixões políticas: votara alternadamente com

os conservadores e os liberais para contentar os amigos que tinha em

ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem arriscar as amizades.

Quando o acusavam deste cepticismo político, respondia com uma

frase que, se não discriminava as suas opiniões, abonava o seu patrio-

tismo:

– Somos todos brasileiros.

Quadrava o gênio de Magalhães com o de Vasconcelos. A intimi-

dade não tardou muito. Já sabemos que o amigo de Oliveira tinha a

grande qualidade de se fazer querido com pouco trabalho. Vasconcelos

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morria por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. D. Mariana

chamava-lhe a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente

conversador.

Para os fins de Oliveira era excelente.

Não se descuidou Magalhães de sondar o terreno, a ver se podia

animar o amigo. Achou o terreno excelente. Falou uma vez à moça a

respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora esperança. Pare-

ce-me ser, disse ela, um excelente coração.

– Afirmo que o é, disse Magalhães; conheço-o há muito tempo.

Quando Oliveira soube destas palavras, que não eram muita coisa,

ficou muito animado.

– Creio que posso ter esperanças, disse ele.

– Nunca te disse outra coisa, respondeu Magalhães.

Magalhães nem sempre podia servir aos interesses do amigo, por-

que Vasconcelos, a quem caíra em graça, confiscava-o horas inteiras,

ou palestrando, ou jogando o gamão.

Um dia Oliveira perguntou ao amigo se era conveniente arriscar

uma carta.

– Ainda não, deixa-me preparar a coisa.

Oliveira acedeu.

A quem ler estas páginas muito por alto, parecerá inverossímil da

parte de Oliveira semelhante necessidade de um cicerone.

Não é.

Oliveira nenhuma demonstração dera até ali à moça, que se con-

servava ignorante do que se passava dentro dele; e se assim praticava,

era por um excesso de timidez, fruto de suas proezas com mulheres

de outra classe.

Nada intimida mais a um conquistador de mulheres fáceis do que

a ignorância e a inocência de uma donzela de dezessete anos.

Acresce que, se Magalhães era de opinião que ele não se demoras-

se em expor os seus sentimentos, já agora pensava que era melhor não

arriscar golpe sem certeza do resultado.

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A dedicação de Magalhães também parecerá condescendente aos

espíritos severos. Mas a que se não expõe a verdadeira amizade?

Na primeira ocasião que se lhe deparou, tratou Magalhães de

perscrutar o coração da moça.

Era de noite; havia gente em casa. Oliveira estava ausente. Maga-

lhães conversava com Cecília a respeito de um chapéu com que uma

senhora idosa entrara na sala.

Magalhães fazia a respeito do chapéu mil conjeturas burlescas.

– Aquele chapéu, dizia ele, parece-me um ressuscitado. Houve

naturalmente alguma epidemia de chapéus em que morreu aquele,

acompanhado de outros seus irmãos. Aquele ressuscitou, para vir dizer

a este mundo o que é o paraíso dos chapéus.

Cecília reprimia uma risada.

Magalhães continuava:

– Eu, se fosse aquele chapéu, pedia uma pensão como inválido e

como raridade.

Isto era mais burlesco que picante, mais estúrdio que engraçado;

todavia, fazia rir Cecília. Repentinamente, Magalhães ficou sério e

consultou o relógio.

– Já se vai embora? perguntou a moça.

– Não, senhora, disse Magalhães.

– Guarde então o relógio.

– Admira-me que Oliveira ainda não viesse.

– Virá mais tarde. Os senhores são muito amigos?

– Muito. Conhecemo-nos desde crianças. É uma bela alma.

Houve um silêncio.

Magalhães cravou os olhos na moça, que olhava para o chão, e

disse:

– Feliz aquela que o possuir.

A moça não revelou a menor impressão ao ouvir estas palavras de

Magalhães. Ele repetiu a frase, e ela perguntou se não seriam horas de to-

mar chá.

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– Já amou, D. Cecília? perguntou Magalhães.

– Que pergunta é essa?

– É uma curiosidade.

– Nunca amei.

– Por quê?

– Sou muito criança.

– Criança!

Outro silêncio.

– Conheço alguém que a ama muito.

Cecília estremeceu e ficou muito corada; não respondeu nem se

levantou. Para sair, porém, da situação em que as palavras de Maga-

lhães a deixara, disse rindo:

– Essa pessoa... quem é?

– Quer saber o nome?

– Quero. É seu amigo?

– É.

– Diga o nome.

Outro silêncio.

– Promete não ficar zangada comigo?

– Prometo.

– Sou eu.

Cecília esperava ouvir outra coisa; esperava ouvir o nome de Oli-

veira. Qualquer que fosse a sua inocência, tinha percebido naqueles

últimos dias que o rapaz tinha queda por ela. Da parte de Magalhães

não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não foi de

cólera, apenas surpresa.

A verdade é que ela não amava nenhum deles.

Não tendo a moça respondido logo, Magalhães disse com um sor-

riso benévolo:

– Já sei que ama outro.

– Que outro?

– Oliveira.

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– Não.

Era a primeira vez que Magalhães apresentava um aspecto grave;

penalizada com a idéia de que lhe houvesse com o silêncio causado

alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que não sentisse, Cecília

disse ao fim de alguns minutos:

– O senhor está brincando comigo?

– Brincando! disse Magalhães. Tudo quanto quiser, menos isso;

não se brinca com o amor ou o sofrimento. Já lhe disse que a amo;

responda-me francamente se posso nutrir alguma esperança.

A moça não respondia.

– Não poderei viver ao pé da senhora sem uma esperança, embora

remota.

– O papá é quem decide de mim, disse ela desviando a conversa.

– Pensa que eu sou desses corações que se contentam com o con-

sentimento paterno? O que eu desejo possuir primeiro é o seu coração.

Diga-me: posso esperar essa fortuna?

– Talvez, murmurou a menina, levantando-se envergonhada dessa

singela palavra.

VI

E ra a primeira declaração que Cecília ouvia da boca de um homem.

Não estava preparada para ela. Tudo o que ouvira lhe causara um inex-

plicável alvoroço.

Posto que não amasse nenhum dos dois, apreciava ambos os ra-

pazes, e não seria difícil que cedesse ao pedido de um deles e viesse a

amá-lo apaixonadamente.

Dos dois rapazes, o que mais depressa conseguiria vencer, dado o

caso que se declarassem ao mesmo tempo, era sem dúvida Magalhães,

cujo espírito galhofeiro e presença insinuante devia influir mais no espí-

rito da moça.

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Minutos depois da cena narrada no capítulo anterior, já os olhos

de Cecília procuravam os de Magalhães, mas rapidamente, sem se

demorar neles; todos os sintomas de um coração que não se demorará

em ceder.

Magalhães tinha a vantagem de conservar todo o sangue-frio no

meio da situação que se lhe apresentava, e isso era excelente para não

descobrir aos olhos estranhos o segredo que ele tinha interesse em

conservar.

Pouco depois entrou Oliveira. Magalhães deu-se pressa em o cha-

mar de parte.

– Que há? perguntou Oliveira.

– Boas notícias.

– Falaste-lhe?

– Positivamente não; mas encaminhei o negócio de maneira que

talvez em poucos dias tenha a tua situação mudada completamente.

– Mas que houve?

– Falei-lhe de amores; ela pareceu indiferente a essas idéias; dis-

se-lhe então gracejando que a amava...

– Tu?

– Sim. De que te admiras?

– E que disse ela?

– Riu-se. Então perguntei-lhe velhacamente se amava alguém.

E ela a isto respondeu que não, mas por modo que me parecia uma

afirmativa. Deixa o caso por minha conta. Amanhã desfaço a meada;

digo-lhe que eu estava brincando... Mas paremos aqui, que aí vem o

comendador.

Efetivamente, Vasconcelos chegara à janela onde os dois estavam.

Uma das manias de Vasconcelos era comentar durante o dia todas as

notícias que os jornais publicavam de manhã. Os jornais daquele dia

falavam de um casal encontrado morto num quarto da casa em que resi-

dia. Vasconcelos desejava saber se os dois amigos optavam pelo suicídio,

circunstância esta que o levaria a adotar a hipótese de assassínio.

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Foi esta conversa uma completa diversão ao assunto amoroso, e

Magalhães aproveitou o debate entre Oliveira e Vasconcelos para ir

conversar com Cecília.

Falaram de coisas indiferentes, mas Cecília estava menos expansi-

va; Magalhães supôs a princípio que fosse um sintoma de esquivança;

não era. Bem o notou ele quando, ao sair, Cecília correspondeu ener-

gicamente ao seu apertado aperto de mão.

– Pensas que serei feliz, Magalhães? perguntou Oliveira apenas se

acharam na rua.

– Penso.

– Não imaginas que dia passei hoje.

– Não hei de imaginar!

– Olha, nunca pensei que esta paixão pudesse dominar tanto a

minha vida.

Magalhães animou o rapaz, que o convidou a cear, não porque o

amor lhe deixasse largo campo às exigências do estômago, senão por-

que havia jantado pouco.

Eu peço perdão aos meus leitores se entro nestas explicações a res-

pei to da comida.

Quer-se um herói romântico, acima das necessidades vulgares da

vida humana; mas não posso deixar de as mencionar, não por sistema,

mas por ser fiel à história que estou contando.

A ceia foi alegre, porque Magalhães e a tristeza eram incompatí-

veis. Oliveira, apesar de tudo, comeu pouco, Magalhães largamente.

Entendia que lhe cumpria pagar a ceia; mas o amigo não consentiu

nisso.

– Olha, Magalhães, disse Oliveira ao despedir-se dele. A minha fe-

li ci da de está nas tuas mãos; és capaz de dar conta dela?

– Não se devem prometer coisas tais; o que eu te afirmo é que não

pouparei esforços.

– E pensas que serei feliz?

– Quantas vezes queres que to diga?

– Adeus.

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– Adeus.

No dia seguinte, Oliveira mandou dizer a Magalhães que estava

um pouco incomodado. Magalhães foi visitá-lo.

Achou-o de cama.

– Estou com alguma febre, disse o advogado; dize isto mesmo ao

comendador, a quem eu prometi de ir lá hoje.

Magalhães cumpriu o pedido.

Era a ocasião de se manifestar a dedicação de Magalhães. Não

faltou este moço a tão sagrado dever. Passava com Oliveira a tarde e

as noites e só se separava dele para ir, às vezes, à casa de Vasconcelos,

que era isso mesmo o que Oliveira lhe pedia.

– Fala-lhe sempre de mim, dizia Oliveira.

– Não faço outra coisa.

E assim era. Magalhães não cessava de dizer que vinha ou ia para

casa de Oliveira, cuja doença ia tomando um aspecto grave.

– Que amigo! murmurava consigo D. Mariana.

– O senhor é um bom coração, dizia Vasconcelos apertando as

mãos de Magalhães.

– O Sr. Oliveira deve querer-lhe muito, dizia Cecília.

– Como a um irmão.

A doença de Oliveira era grave; durante todo o tempo que durou,

não se desmentiu nunca a dedicação de Magalhães.

Oliveira admirava-o. Via que o benefício que lhe fizera não caíra

em má terra. Grande foi a sua alegria quando, ao começar a convales-

cença, Magalhães lhe pediu duzentos mil-réis, com promessa de os

pagar no fim do mês.

– Quanto quiseres, meu amigo. Tira-os ali da secretária.

– Acredita que isto me vexa imensamente, disse Magalhães, me-

tendo na algibeira duas notas de cem mil-réis. Nunca te pedi dinheiro;

agora, menos que nunca, devia pedir-to.

Oliveira compreendeu o pensamento do amigo.

– Não sejas tolo; a nossa bolsa é comum.

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– Oxalá que esse belo princípio possa ser realizado literalmente,

disse Magalhães rindo.

Oliveira não lhe falou nesse dia a respeito de Cecília. Foi o próprio

Magalhães que encetou a respeito dela uma conversa.

– Queres ouvir uma coisa? disse ele. Apenas saíres, manda-lhe

uma carta.

– Por quê? Crês que...

– Creio que é a hora do golpe.

– Só para a semana poderei sair.

– Não importa, virá a tempo.

Para compreender bem a situação singular em que se achavam

estes personagens todos, é mister transcrever aqui as palavras com

que nessa mesma noite se despediram Magalhães e Cecília à janela

da casa desta:

– Até amanhã, disse Magalhães.

– Virás cedo?

– Venho às oito horas.

– Não faltes.

– Queres que te jure?

– Não precisa; adeus.

VII

Quando entrou a semana seguinte, já na véspera do dia em que

Oliveira se dispunha a sair e visitar o comendador, recebeu uma carta

de Magalhães.

Leu-a com pasmo:

“Meu querido amigo, dizia Magalhães; desde ontem tenho a cabe-

ça fora de mim. Aconteceu-me a maior desgraça que podia cair sobre

nós. Com mágoa e vergonha to anuncio, meu prezadíssimo amigo, a

quem tanto devo.

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“Prepara o teu coração para receber o golpe que já me feriu, e por

muito que ele te faça sofrer, não sofrerás mais do que eu já sofri...”

Saltaram duas lágrimas dos olhos de Oliveira.

Adivinhava mais ou menos o que seria. Cobrou forças e continuou

a leitura:

“Descobri, meu querido amigo, que Cecília (como direi?), que Ce-

cília me ama! Não imaginas como me fulminou esta notícia. Que ela

não te amasse, como ambos desejávamos, era já doloroso; mas que se

lembrasse de consagrar os seus afetos ao último homem que ousaria

opor-se ao seu coração, é uma ironia da fatalidade. Não te contarei meu

procedimento; facilmente o adivinharás. Prometi não voltar lá mais.

“Queria ir eu mesmo comunicar-te isto; mas não ouso contemplar

a tua dor, nem te quero dar o espetáculo da minha.

“Adeus, Oliveira. Se a fatalidade ainda consentir que nos vejamos

(impossível!), até um dia; se não... Adeus!”

Adivinha o leitor o golpe que esta carta descarregou no coração de

Oliveira. Mas é nas grandes crises que o espírito do homem se mostra

grande. A dor do amante superada pela dor do amigo. O final da carta

de Magalhães aludia vagamente a um suicídio; Oliveira deu-se pressa

em ir impedir esse ato de nobre abnegação. Demais, que coração tinha

ele, a quem confiasse todos os seus desesperos?

Vestiu-se apressadamente e correu à casa de Magalhães.

Disseram-lhe que não estava em casa.

Oliveira ia subindo:

– Perdão, disse o criado; eu tenho ordem de não deixar subir

ninguém.

– Razão demais para eu subir, respondeu Oliveira, afastando o

criado.

– Mas...

– Trata-se de uma grande desgraça!

E subiu apressadamente a escada.

Na sala não havia ninguém. Oliveira entrou afoitamente no gabine-

te. Achou Magalhães sentado à secretária inutilizando alguns papéis.

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Perto dele havia um copo com um líquido vermelho.

– Oliveira! exclamou ele quando o viu entrar.

– Sim, Oliveira, que vem salvar a tua vida e dizer-te quanto és grande!

– Salvar-me a vida? murmurou Magalhães; quem te disse que

eu?...

– Tu, na tua carta, respondeu Oliveira. Veneno! continuou ele,

vendo o copo. Oh! nunca!

E despejou o copo na escarradeira. Magalhães parecia atônito.

– Eia! disse Oliveira; dá cá um abraço! Este amor infeliz foi ainda

um lance de felicidade, porque conheci bem que coração de ouro é

esse que te bate no peito.

Magalhães estava de pé; caíram nos braços um do outro. O abraço

comoveu Oliveira, que só então deu largas à sua dor. O amigo conso-

lou-o como pôde.

– Bem, disse Oliveira, tu que foste causa indireta da minha des-

graça, deves ser agora o remédio que me há de curar. Sê eternamente

meu amigo.

Magalhães suspirou.

– Eternamente! disse ele.

– Sim.

– Minha vida é curta, Oliveira; eu devo morrer; se não for hoje,

se-lo-á amanhã.

– Mas isso é uma loucura.

– Não é: eu não te disse tudo na carta. Falei-te do amor que Cecí-

lia me tem; não te falei do amor que lhe tenho eu, amor que me nasceu

sem eu pensar. Brinquei com fogo, queimei-me.

Oliveira curvou a cabeça.

Houve um longo silêncio entre os dois amigos.

Ao cabo de um longo quarto de hora, Oliveira ergueu os olhos ver-

melhos de lágrimas e disse a Magalhães, estendendo-lhe a mão:

– Sê feliz, que o mereces; não tens culpa disto. Procedeste honra-

damente; compreendo que era difícil estar ao pé dela sem sentir o fogo

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da paixão. Casa-te com Cecília, pois que se amam, e fica certo de que

serei sempre o mesmo amigo.

– Oh! tu és imenso!

Magalhães não ajuntou nenhum substantivo a este adjetivo. Não

nos é dado perscrutar o seu pensamento interior. Caíram os dois ami-

gos nos braços um do outro com grandes exclamações e protestos.

Uma hora depois de ali haver entrado, saía Oliveira triste mas con-

solado.

– Perdi um amor, dizia ele consigo, mas ganhei um verdadeiro

amigo, que já o era antes.

Magalhães veio logo atrás dele.

– Oliveira, disse ele, passaremos o dia juntos; receio que faças

alguma loucura.

– Não! O que me ampara nesta queda és tu.

– Não importa; passaremos o dia juntos.

Assim aconteceu.

Neste dia não foi Magalhães à casa do comendador.

No dia seguinte, apenas lá apareceu, disse-lhe Cecília:

– Estou zangada contigo; por que não vieste ontem?

– Tive de sair da cidade em serviço público e por lá fiquei a noite.

– Como passaste?

– Bem.

Seis semanas depois uniam eles os seus destinos. Oliveira não com-

pareceu à festa com grande admiração de Vasconcelos e de D. Mariana,

que não compreendiam essa indiferença da parte de um amigo.

Nunca houve a menor sombra de dúvida entre Magalhães e Oli-

veira.

Foram amigos até a morte, posto que Oliveira não freqüentasse a

casa de Magalhães.

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Pílades e Orestes

Publicado originalmente em Almanaque Brasileiro Garnier, 1903

Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que

davam os dois juntos, não que se parecessem. Ao contrário,

Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves comprido,

o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro, e

a expressão total divergia inteiramente. Acresce que eram

quase da mesma idade. A idéia da paternidade nascia das

maneiras com que o primeiro tratava o segundo; um pai não

se desfaria mais em carinhos, cautelas e pensamentos.

Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram ba-

charéis do mesmo ano. Quintanilha não seguiu advocacia

nem magistratura, meteu-se na política; mas, eleito depu-

tado provincial em 187..., cumpriu o prazo da legislatura

e abandonou a carreira. Herdara os bens de um tio, que

lhe davam de renda cerca de trinta contos de réis. Veio

para o seu Gonçalves, que advogava no Rio de Janeiro.

Posto que abastado, moço, amigo do seu único ami-

go, não se pode dizer que Quintanilha fosse inteiramen-

te feliz, como vais ver. Ponho de lado o desgosto que lhe

trouxe a herança com o ódio dos parentes; tal ódio foi que

ele esteve prestes a abrir mão dela, e não o fez porque o

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amigo Gonçalves, que lhe dava idéias e conselhos, o convenceu de que

semelhante ato seria rematada loucura.

– Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros pa-

rentes? Não foi você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto,

como os outros. Se ele deixou tudo a você, é que o achou melhor que eles;

fique-se com a fortuna que é a vontade do morto, e não seja tolo.

Quintanilha acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram

reconciliar-se com ele, mas o amigo mostrou-lhe a intenção recôndita

dos tais, e Quintanilha não lhes abriu a porta. Um desses, ao vê-lo

ligado com o antigo companheiro de estudos, bradava por toda parte:

– Aí está, deixa os parentes para se meter com estranhos; há de

ver o fim que leva.

Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indig-

nado. Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não

valia a pena irritar-se por ditinhos.

– Uma só coisa desejo, continuou, é que nos separemos, para que

se não diga...

– Que se não diga o quê? É boa! Tinha que ver, se eu passava a

escolher as minhas amizades conforme o capricho de alguns peraltas

sem-vergonha!

– Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus parentes.

– Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as pes-

soas que me forem designadas por meia dúzia de velhacos que o que

querem é comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você qui-

ser, menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu cora-

ção. Ou você está... está aborrecido de mim?

– Eu? Tinha graça.

– Pois então?

– Mas é...

– Não é tal!

A vida que viviam os dois era a mais unida deste mundo. Quinta-

nilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam

juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no tea-

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tro. Se Gonçalves tinha algum trabalho que fazer à noite, Quintanilha

ia ajudá-lo como obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-os,

copiava-os, carregava os livros. Gonçalves esquecia com facilidade,

ora um recado, ora uma carta, sapatos, charutos, papéis. Quintanilha

supria-lhe a memória. Às vezes, na rua do Ouvidor, vendo passar as

moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos que deixara no escritório.

Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão contente que

não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o ansio-

samente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga.

– São estes?

– São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá.

– Deixa, eu levo.

A princípio, Gonçalves suspirava:

– Que maçada que dei a você!

Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para

não o molestar, não se acusou de mais nada; concordou em receber os

obséquios. Com o tempo, os obséquios ficaram sendo puro ofício. Gon-

çalves dizia ao outro: “Você hoje há de lembrar-me isto e aquilo.” E o

outro decorava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algu-

mas dependiam de horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava

aflito, à espera que chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os

negócios ao amigo. E levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respos-

tas, procurar as pessoas, esperá-las na estrada de ferro, fazia viagens ao

interior. De si mesmo descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons

espetáculos. Gonçalves já não tinha liberdade de falar de um livro novo,

ou somente caro, que não achasse um exemplar em casa.

– Você é um perdulário, dizia-lhe em tom repreensivo.

– Então gastar com letras e ciências é botar fora? É boa! concluía

o outro.

No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves aca-

bou aceitando, e o prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a

Petrópolis. Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura, Quinta-

nilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dois, e

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mandou fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pôde deixar de lhe

dizer que não prestava para nada. Quintanilha ficou sem voz.

– É uma porcaria, insistiu Gonçalves.

– Pois o pintor disse-me...

– Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou

a ocasião para meter a espiga. Pois isto é cara decente? Eu tenho este

braço torto?

– Que ladrão!

– Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem

o sentimento da arte, nem prática, e espichou-se redondamente. A

intenção foi boa, creio...

– Sim, a intenção foi boa.

– E aposto que já pagou?

– Já.

Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo.

Quintanilha, vexado e aborrecido, olhava para a tela, até que sacou de um

canivete e rasgou-a de alto a baixo. Como se não bastasse esse gesto de

vingança, devolveu a pintura ao artista com um bilhete em que lhe trans-

mitiu alguns dos nomes recebidos e mais o de asno. A vida tem muitas de

tais pagas. Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu dali a dias e

que este não pôde pagar, veio trazer ao espírito de Quintanilha uma diver-

são. Quase brigaram; a idéia de Gonçalves era reformar a letra; Quintani-

lha, que era o endossante, entendia não valer a pena pedir o favor por tão

escassa quantia (um conto e quinhentos), ele emprestaria o valor da letra,

e o outro que lhe pagasse, quando pudesse. Gonçalves não consentiu e

fez-se a reforma. Quando, ao fim dela, a situação se repetiu, o mais que

este admitiu foi aceitar uma letra de Quintanilha, com o mesmo juro.

– Você não vê que me envergonha, Gonçalves? Pois eu hei de

receber juro de você...?

– Ou recebe, ou não fazemos nada.

– Mas, meu querido...

Teve que concordar. A união dos dois era tal que uma senhora

chamava-lhes os “casadinhos de ferro”, e um letrado, Pílades e Ores-

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tes. Eles riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma

coisa parecida com lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida. Outra

diferença é que o sentimento de Quintanilha tinha uma nota de entu-

siasmo, que absolutamente faltava ao de Gonçalves; mas, entusiasmo

não se inventa. É claro que o segundo era mais capaz de inspirá-lo ao

primeiro do que este a ele. Em verdade, Quintanilha era mui sensível a

qualquer distinção; uma palavra, um olhar bastava a acender-lhe o cé-

rebro. Uma pancadinha no ombro ou no ventre, com o fim de aprová-

lo ou só acentuar a intimidade, era para derretê-lo de prazer. Contava

o gesto e as circunstâncias durante dois e três dias.

Não era raro vê-lo irritar-se, teimar, descompor os outros. Também

era comum vê-lo rir-se; alguma vez o riso era universal, entornava-se-

lhe da boca, dos olhos, da testa, dos braços, das pernas, todo ele era

um riso único. Sem ter paixões, estava longe de ser apático.

A letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo de seis meses. No dia

do vencimento, não só não pensou em cobrá-la, mas resolveu ir jantar

a algum arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado à reforma.

Gonçalves destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro.

O primeiro gesto de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o guar-

dasse, podia precisar dele; o devedor teimou em pagar e pagou.

Quintanilha acompanhava os atos de Gonçalves; via a constância

do seu trabalho, o zelo que ele punha na defesa das demandas, e vivia

cheio de admiração. Realmente, não era grande advogado, mas na me-

dida das suas habilitações, era distinto.

– Você por que não se casa? perguntou-lhe um dia; um advogado

precisa casar.

Gonçalves respondia rindo. Tinha uma tia, única parenta, a quem

ele queria muito, e que lhe morreu, quando eles iam em trinta anos.

Dias depois, dizia ao amigo:

– Agora só me resta você.

Quintanilha sentiu os olhos molhados, e não achou que lhe res-

pondesse. Quando se lembrou de dizer que “iria até a morte” era tarde.

Redobrou então de carinhos, e um dia acordou com a idéia de fazer

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testamento. Sem revelar nada ao outro, nomeou-o testamenteiro e her-

deiro universal.

– Guarde-me este papel, Gonçalves, disse-lhe entregando o tes-

tamento. Sinto-me forte, mas a morte é fácil, e não quero confiar a

qualquer pessoa as minhas últimas vontades.

Foi por esse tempo que sucedeu um caso que vou contar.

Quintanilha tinha uma prima-segunda, Camila, moça de vinte e

dois anos, modesta, educada e bonita. Não era rica; o pai, João Bastos,

era guarda-livros de uma casa de café. Haviam brigado por ocasião da

herança; mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher de João Bastos, e

este ato de piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu facilmen-

te alguns nomes crus que dissera do primo, chamou-lhe outros nomes

doces, e pediu-lhe que fosse jantar com ele. Quintanilha foi e tornou a

ir. Ouviu ao primo o elogio da finada mulher; numa ocasião em que Ca-

mila os deixou sós, João Bastos louvou as raras prendas da filha, que

afirmava haver recebido integralmente a herança moral da mãe.

– Não direi isto nunca à pequena, nem você lhe diga nada. É mo-

desta, e, se começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim, por exem-

plo, nunca lhe direi que é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a

idade dela; pode ficar vaidosa. Mas a verdade é que é mais, não lhe

parece? Tem ainda o talento de tocar piano, que a mãe não possuía.

Quando Camila voltou à sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade

de lhe descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quis ouvi-

la ao piano; ela respondeu, cheia de melancolia:

– Ainda não, há apenas um mês que mamãe faleceu, deixe passar

mais tempo. Demais, eu toco mal.

– Mal?

– Muito mal.

Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou à moça

que a prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo,

era certo que apenas passara um mês; todavia era também certo que a

música era uma distração natural e elevada. Além disso, bastava tocar

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um pedaço triste. João Bastos aprovou este modo de ver e lembrou

uma composição elegíaca. Camila abanou a cabeça.

– Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos são capazes de in-

ventar que eu toquei uma polca.

Quintanilha achou graça e riu. Depois concordou e esperou que

os três meses fossem passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sen-

do as três últimas visitas mais próximas e longas. Enfim, pôde ouvi-la

tocar piano, e gostou. O pai confessou que, ao princípio, não gostava

muito daquelas músicas alemãs; com o tempo e o costume achou-

lhes sabor. Chamava à filha “a minha alemãzinha”, apelido que foi

adotado por Quintanilha, apenas modificado para o plural: “a nossa

alemãzinha”. Pronomes possessivos dão intimidade; dentro em pouco,

ela existia entre os três – ou quatro, se contarmos Gonçalves, que ali

foi apresentado pelo amigo; – mas fiquemos nos três.

Que ele é coisa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou

gostando da moça. Como não, se Camila tinha uns longos olhos mor-

tais? Não é que os pousasse muita vez nele, e, se o fazia, era com tal

ou qual constrangimento, a princípio, como as crianças que obedecem

sem vontade às ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles

eram tais que, ainda sem intenção, feriam de morte. Também sorria

com freqüência e falava com graça. Ao piano, e por mais aborrecida

que tocasse, tocava bem. Em suma, Camila não faria obra de impulso

próprio, sem ser por isso menos feiticeira. Quintanilha descobriu um

dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à noite que pensara

nela todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava e era amado.

Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimi-lo nas folhas públicas.

Quando menos, quis dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu ao escritório

deste. A afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor.

Quase a abrir a boca, engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo

nesse dia nem no outro.

Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a

revelação por uma semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois

de muitas hesitações, disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.

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– Você aprova, Gonçalves?

Gonçalves empalideceu – ou, pelo menos, ficou sério; nele a serieda-

de confundia-se com a palidez. Mas, não; verdadeiramente ficou pálido.

– Aprova? repetiu Quintanilha.

Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a boca para responder,

mas fechou-a de novo, e fitou os olhos “em ontem”, como ele mesmo

dizia de si, quando os estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou

em saber o que era, o que pensava, se aquele amor era asneira. Estava

tão acostumado a ouvir-lhe este vocábulo que já lhe não doía nem

afrontava, ainda em matéria tão melindrosa e pessoal. Gonçalves tor-

nou a si daquela meditação, sacudiu os ombros, com ar desenganado, e

murmurou esta palavra tão surdamente que o outro mal a pôde ouvir:

– Não me pergunte nada; faça o que quiser.

– Gonçalves, que é isso? perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas

mãos, assustado.

Gonçalves soltou um grande suspiro, que, se tinha asas, ainda ago-

ra estará voando. Tal foi, sem esta forma paradoxal, a impressão de

Quintanilha. O relógio da sala de jantar bateu oito horas, Gonçalves

alegou que ia visitar um desembargador, e o outro despediu-se.

Na rua, Quintanilha parou atordoado. Não acabava de entender

aqueles gestos, aquele suspiro, aquela palidez, todo o efeito misterioso da

notícia dos seus amores. Entrara e falara, disposto a ouvir do outro um ou

mais daqueles epítetos costumados e amigos, idiota, crédulo, paspalhão, e

não ouviu nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma

coisa que pegava com o respeito. Não se lembrava de nada, ao jantar, que

pudesse tê-lo ofendido; foi só depois de lhe confiar o sentimento novo

que trazia a respeito da prima que o amigo ficou acabrunhado.

– Mas, não pode ser, pensava ele; o que é que Camila tem que não

possa ser boa esposa?

Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Adver-

tiu então que Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora, nada.

Quis entrar outra vez, abraçá-lo, interrogá-lo... Não teve forças; enfiou

pela rua fora, desesperado. Chegou à casa de João Bastos, e não viu

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Camila; tinha-se recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe

tudo, e aqui é preciso explicar que ele ainda não se havia declarado à

prima. Os olhares da moça não fugiam dos seus; era tudo, e podia não

passar de faceirice. Mas o lance não podia ser melhor para clarear a

situação. Contando o que se passara com o amigo, tinha o ensejo de

lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai. Era uma consolação no

meio daquela agonia, o acaso negou-lha, e Quintanilha saiu da casa,

pior do que entrara. Recolheu-se à sua.

Não dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso,

senão para agitação maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte

velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu surdir debai-

xo um vulto e fincar os pés defronte dele. Era Gonçalves. “Infame, disse

este com os olhos acesos, por que me vens tirar a noiva de meu coração,

a mulher que eu amo e é minha? Toma, toma logo o meu coração, é mais

completo.” E com um gesto rápido abriu o peito, arrancou o coração e

meteu-lho na boca. Quintanilha tentou pegar da víscera amiga e repô-la

no peito de Gonçalves; foi impossível. Os queixos acabaram por fechá-

la. Quis cuspi-la, e foi pior; os dentes cravaram-se no coração. Quis falar,

mas vá alguém falar com a boca cheia daquela maneira. Afinal o amigo

ergueu os braços e estendeu-lhe as mãos com o gesto de maldição que

ele vira nos melodramas, em dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe

dos olhos duas imensas lágrimas, que encheram o vale de água, atirou-se

abaixo e desapareceu. Quintanilha acordou sufocado.

A ilusão do pesadelo era tal que ele ainda levou as mãos à boca, para

arrancar de lá o coração do amigo. Achou a língua somente, esfregou os

olhos e sentou-se. Onde estava? Que era? E a ponte? E o Gonçalves?

Voltou a si de todo, compreendeu e novamente se deitou, para outra

insônia, menor que a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas.

De dia, rememorando toda a véspera, realidade e sonho, chegou à

conclusão de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima dele,

era talvez amado por ela... Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas

horas cruéis. Afinal pegou em si e foi ao escritório de Gonçalves, para

saber tudo de uma vez; e, se fosse verdade, sim, se fosse verdade...

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Gonçalves redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fitá-

lo um instante, erguer-se, abrir o armário de ferro, onde guardava os papéis

graves, tirar de lá o testamento de Quintanilha, e entregá-lo ao testador.

– Que é isto?

– Você vai mudar de estado, respondeu Gonçalves, sentando-se à

mesa.

Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na voz; assim lhe pareceu, ao me-

nos. Pediu-lhe que guardasse o testamento; era o seu depositário na-

tural. Instou muito; só lhe respondia o som áspero da pena correndo

no papel. Não corria bem a pena, a letra era tremida, as emendas mais

numerosas que de costume, provavelmente as datas erradas. A consulta

dos livros era feita com tal melancolia que entristecia o outro. Às vezes,

parava tudo, pena e consulta, para só ficar o olhar fito “em ontem”.

– Entendo, disse Quintanilha subitamente; ela será tua.

– Ela quem? Quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava,

escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas razões de

embargo.

Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se adivinha

nem se crê; mas a alma humana é capaz de esforços grandes, no bem co-

mo no mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo à prima, com

a condição de desposar o amigo. Camila não aceitou o testamento, mas

ficou tão contente, quando o primo lhe falou das lágrimas de Gonçalves,

que aceitou Gonçalves e as lágrimas. Então Quintanilha não achou me-

lhor remédio que fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo.

O final da história foi dito em latim. Quintanilha serviu de tes-

temunha ao noivo, e de padrinho aos dois primeiros filhos. Um dia

em que, levando doces para os afilhados, atravessava a praça Quinze

de Novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase

instantaneamente. Está enterrado no cemitério de S. João Batista; a

sepultura é simples, a pedra tem um epitáfio que termina com esta pia

frase: “Orai por ele!” É também o fecho da minha história. Orestes vive

ainda, sem os remorsos do modelo grego. Pílades é agora o personagem

mudo de Sófocles. Orai por ele!

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Teoria do medalhão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, 1881

– E stás com sono?

– Não, senhor.

– Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela.

Que horas são?

– Onze.

– Saiu o último conviva do nosso modesto jantar.

Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um

anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854,

vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem,

longos bigodes, alguns namoros...

– Papai...

– Não te ponhas com denguices, e falemos como dois

amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas

importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos,

algumas apólices, um diploma, podes entrar no parla-

mento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na in-

dús tria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infini-

tas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz,

formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os

mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram

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tudo aos 21 anos. Mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o

meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que

te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enor-

me loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os

suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto

é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integral-

mente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.

– Sim, senhor.

– Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para

a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício

para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficiente-

mente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia

da tua maioridade.

– Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?

– Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser

medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as ins-

truções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo

moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu

querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor,

a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os

de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no

regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: “a gravidade é um

mistério do corpo”, definiu a compostura do medalhão. Não confundas

essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um

puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do

corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de

quarenta e cinco anos...

– É verdade, por que quarenta e cinco anos?

– Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capri-

cho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão

começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos,

conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os

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sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros

mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares.

Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.

– Entendo.

– Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr

todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e

próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entende-

rás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um

braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos

olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se

dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até a

morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço

conviria ao exercício da vida.

– Mas quem lhe diz que eu...

– Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inó-

pia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto

à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa

esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência

de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória.

Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender

francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um

colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas no-

vas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto,

podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas

idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de

sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas

irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é

extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão

incompleto.

– Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.

– Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante,

ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete,

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o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara

vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada

da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da

ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo

que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas.

O bilhar é excelente.

– Como assim, se também é um exercício corporal?

– Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente

a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as esta-

tísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habi-

tuados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas

ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição

de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias,

e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode

adquirir uma tal ou qual atividade.

– Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?

– Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmató-

rios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por cau-

sa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa,

não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência

em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às

escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali

falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de

uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras

interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Maza-

de; setenta e cinco por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão

as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável.

Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses – suponhamos dois

anos, – reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à

disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele

está subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples,

tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

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– Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...

– Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra

de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as

asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam

sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos,

versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los

contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação ou de agradeci-

mento. Caveant, consules é um excelente fecho de artigo político; o

mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar

o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela,

mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças ve-

tustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero

adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas

consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública.

Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço

inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o

mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pen-

sar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma

hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal.

Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo

a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e

observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possí-

veis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza

do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação;

matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e des-

varios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu

dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! – E esta

frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, re-

solve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro

súbito de sol.

– Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de

processos modernos.

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– Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O

mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-

la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude

de deus Término e as ciências sejam obra do movimento humano,

como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu

tempo. E de duas uma: – ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a

trinta anos, ou conservar-se-ão novas; no primeiro caso, pertencem-te

de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para

mostrar que também és pintor. De oitiva, com o tempo, irás sabendo a

que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o

método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus

livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo

de inocular idéias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia

em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas,

serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual come-

dimento, como a costureira – esperta e afreguesada, – que, segundo

um poeta clássico,

Quanto mais pano tem, mais poupa o corte,

Menos monte alardeia de retalhos;

e este fenômeno, tratando-se de um medalhão,

é que não seria científico.

– Upa! que a profissão é difícil!

– E ainda não chegamos ao cabo.

– Vamos a ele.

– Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade

é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pe-

quenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes ex-

primem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que

D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heróicas ou custo-

sas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão

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tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação

dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de

um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos.

Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante

os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agra-

ciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e

assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegé-

ticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca

monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a

tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano além

do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em

si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às

afeições gerais. Percebeste?

– Percebi.

– Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas

há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o

sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam

à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada

obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a

sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante

caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato

ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem

em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa;

os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão

inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura

das feições o autor dessa obra grave, em que a “alavanca do progresso”

e o “suor do trabalho” vencem as “fauces hiantes” da miséria. No caso

de que uma comissão te leve a casa o retrato, deves agradecer-lhe o

obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d’água: é uso

antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os

parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação.

Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas,

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decentemente, recusar um lugar à mesa aos repórteres dos jornais. Em

todo caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte,

podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da

festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não

queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos

dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.

– Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.

– Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo,

leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra

prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os

que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó

ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado.

Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura

obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar oca siões, co-

missões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru

de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opa-

cas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos,

o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o

adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O subs-

tantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.

– E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente

para os deficits da vida?

– Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.

– Nem política?

– Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obriga-

ções capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conserva-

dor, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar

nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhes somente

a utilidade do scibboleth bíblico.

– Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?

– Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública.

Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: – ou os negócios

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miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negó-

cios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de

bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a

metafísica; – é mais fácil e mais atraente. Supõe que deseja saber por

que motivo a 7ª Companhia de Infantaria foi transferida de Uruguaia-

na para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da Guerra,

que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a

metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente

os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não

obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos

tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os

alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites

de uma invejável vulgaridade.

– Farei o que puder. Nenhuma imaginação?

– Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.

– Nenhuma filosofia?

– Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada.

“Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que deves empre-

gar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões

que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar

a reflexão, originalidade, etc., etc.

– Também ao riso?

– Como ao riso?

– Ficar sério, muito sério...

– Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de so-

freá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não

quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expan-

são alegre. Somente, – e este ponto é melindroso...

– Diga...

– Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto

da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência,

contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria

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dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa cha-

laça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que

se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o

sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça.

Que é isto?

– Meia-noite.

– Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás

definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que

te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite

vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.

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Biografia

J oaquim Maria Machado de Assis é o nome completo do

maior escritor brasileiro, mais conhecido pelo sobrenome

Machado de Assis. A maioria dos seus leitores, porém,

o trata com certa intimidade: apenas Machado. Daí o

adjetivo tão usado por estudiosos e críticos: machadiano.

“A fina ironia machadiana”, por exemplo, é expressão que

se tornou comentário filosófico para diver sas situações.

O escritor, jornalista e funcionário público de carrei-

ra foi folhetinista, cronista, contista, dramaturgo, poe ta,

novelista, romancista, crítico, ensaísta e tradutor. Nas ceu

na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839. Fi-

lho de Francisco José de Assis, um humilde pintor de pa-

redes mulato, e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis,

portuguesa dos Açores. A mãe morre cedo e o menino é

criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata. Pouco

se sabe sobre sua infância e início de juventude.

Nascido e criado no morro do Livramento, no Cen-

tro, muda-se com a madrasta para o bairro de São Cristó-

vão após a morte do pai, em 1851. Maria Inês emprega-se

como doceira num colégio do bairro, então um dos me-

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lhores da capital; a nova moradia devia estar associada ao novo tra balho.

Machadinho, como era chamado, torna-se vendedor de doces. No co-

légio, tem contato com professores e alunos e é até provável que as-

sistisse às aulas nas ocasiões em que não estava trabalhando, o tipo de

oportunidade que o autodidata sempre sabe aproveitar.

Mesmo sem ter acesso a cursos regulares, empenhou-se em apren-

der. Consta que, ali mesmo em São Cristóvão, conheceu uma senhora

francesa, proprietária de uma padaria, cujo forneiro lhe deu as primei-

ras lições de francês.

Começa a carreira literária aos 16 anos, publicando o poema “Ela”

na Marmota Fluminense, revista do editor Francisco de Paula Brito,

também dono de livraria e tipografia. Paula Brito acolhia os novos talen-

tos da época e foi o primeiro a acreditar no potencial do jovem autor.

Com 17 anos, Machado consegue emprego como aprendiz de ti-

pógrafo na Imprensa Real (a Imprensa Nacional é sua sucessora) e

começa a escrever durante o tempo livre. Conhece o então diretor do

órgão, Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de um sargento

de milícias, que se torna seu protetor.

Em 1858, torna-se revisor de provas na tipografia de Paula Brito e

também colaborador da Marmota. Seu círculo de amigos é construído

em torno da revista, e dele faziam parte Joaquim Manoel de Macedo,

José de Alencar e Gonçalves Dias. Começa a publicar obras românti-

cas seguindo a tendência da época.

Em 1859, estréia no jornal Correio Mercantil. Em 1860, a convite

de Quintino Bocaiúva, passa a fazer parte da redação do jornal Diário

do Rio de Janeiro. Além desse, escrevia também para as revistas O Es-

pelho e A Semana Ilustrada, bem como para o Jornal das Famílias.

O primeiro livro data de 1861, com o texto da peça Queda que

as mulheres têm para os tolos. Atuou como censor teatral, cargo que

não rendia qualquer remuneração, mas o possibilitava a ter acesso

livre aos teatros. Publica seu primeiro livro de poesias em 1864, sob

o título de Crisálidas.

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Conhece Faustino Xavier de Novais, de quem será grande amigo,

mas que morrerá pouco tempo depois, em agosto de 1869. Menos de

três meses depois, em 12 de novembro de 1869, casa-se com Carolina

Augusta Xavier de Novais, a irmã de Faustino. D. Carolina, mulher

culta, apresenta Machado aos clássicos portugueses e a vários autores

da língua inglesa.

Seu casamento com Carolina foi feliz, mas sem filhos. Sua última

obra, Memorial de Aires, de 1908, traz referências diretas a essa situa-

ção de felicidade incompleta.

Seu primeiro romance, Ressurreição, foi publicado em 1872. Com

a nomeação para o cargo de primeiro oficial da Secretaria de Estado

do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, sua carreira

burocrática consolida-se. O serviço público será seu principal meio de

subsistência durante toda a vida.

Na Gazeta de Notícias, no período de 1881 a 1897, publica aque-

las que foram consideradas suas melhores crônicas.

Em 1881, com a posse do poeta Pedro Luís Pereira de Sousa como

ministro interino da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Machado

assume o cargo de oficial de gabinete. Publica, nesse ano, um livro extre-

mamente original, pouco convencional para o estilo da época: Memórias

póstumas de Brás Cubas, um marco do realismo na literatura brasileira.

Machado de Assis sempre apoiou a idéia de Lúcio de Mendonça

de criar uma Academia Brasileira de Letras e freqüentava reuniões de

intelectuais que compartilhavam do mesmo ideal, principalmente as

que aconteciam na redação da Revista Brasileira, dirigida por seu gran-

de amigo José Veríssimo, escritor e jornalista paraense. Quando, em

28 de janeiro de 1897, instalou-se a Academia, Machado ocupou a

cadeira número 23. Foi eleito presidente da instituição, cargo que ocu-

pou até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro em 29 de setembro de

1908. Sua oração fúnebre foi proferida pelo acadêmico Rui Barbosa.

Por sua importância, a Academia Brasileira de Letras passou a ser

chamada de Casa de Machado de Assis.

Dom Casmurro é sua obra-prima.

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Este livro foi composto nas tipologias Fairfield LH e JaneAusten

e impresso em papel Chamois Bulk Dunas 80g/m2, na Geográfica Editora.

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