resolucao-de-conflitos-e-educacao-em-valores.pdf

5
 Telma Pileggi Vinha Artigo Resolução de conflitos e educação em valores O desenvolvimento da autonomia e de relações mais justas e so- lidárias são umas das metas encontradas na maioria dos projetos pedagógicos das instituições escolares. Diversos estudos têm con- rmado que o desenvolvimento moral está relacionado à qualidade das relações que se apresentam nos ambientes sociais nos quais a criança interage e, obviamente, essas relações não ocorrem apenas na família. Aliás, é preciso que a criança possa ter experiências de vida social para aprender a viver em grupo, e a escola é um local muito apropriado para essa vivência. Pesquisas nacionais e inter- nacionais 1  indicam que as escolas inuenciam de modo signicati- vo na formação moral das crianças e dos jovens, quer eles queiram, quer não. Quanto mais o ambiente oferecido for cooperativo, maior será o desenvolvimento da autonomia, e quanto mais autoritário, maior os níveis de heteronomia. Nos objetivos dos projetos pedagógicos de diferentes escolas analisados em nossas pesquisas não encontramos, de maneira ex- plícita, a formação de pessoas obedientes, acríticas, submissas ou heterônomas. Nenhum educador pretende formar pessoas que se-  jam reguladas por mecanismos exteriores, seguindo ou não deter- minado princípio moral ou regra dep endendo do contexto (contudo, se os valores morais não estiverem alicerçados numa convicção pessoal, os alunos não estarão prontos para seguirem as regras e os princípios, especialmente na ausência de uma autoridade). Po- rém, o que ocorre frequentemente é que, no cotidiano da escola, os adultos utilizam procedimentos que levam as crianças e os jovens a se submeterem a essas normas porque uma autoridade (diretor, professores etc.) assim o quer ou “sabe o que é melhor para elas e para a instituição”. Na prática, valorizam a obediência às normas e regras denidas previamente, nem sempre se preocupam em ex- plicar às crianças e jovens as razões destas nem consultá-los acerca do assunto, atuando, por conseguinte, por caminhos que promovem mais a obediência do que a autonomia. Nessa complexa rede de interações, na escola há um fenômeno que está sempre presente e interfere signicativamente na constru- ção dos valores pelas crianças e jovens: os conitos 2  interpessoais. Atualmente, muitos professores sentem-se impotentes e inseguros ao se depararem com problemas cada vez mais frequentes de indis- ciplina ou de conitos, tais como agressões físicas e verbais, furtos, insultos, desobediência às normas, bullying, entre outros. Um exem- plo é uma recente pesquisa realizada por Biondi (2008) com base em questionários respondidos por diretores de todo o Brasil na realização do Saeb 3 . A autora vericou que a indisciplina por parte dos alunos é 1 Bagat, 1986; Araújo, 1993; DeVries e Zan, 1995; Vinha, 2000 e 2003; Tognetta, 2003. 2 Os conitos, tanto os que ocorrem no interior do sujeito (cognitivos e morais) como entre os indivíduos (interpessoais), possuem um lugar relevante na teoria de Piaget. Por meio dos conitos é que o processo de equilibração ou autorregula ção é desencadeado. Ao utilizar simplesmente o vocábulo “conito”, estamos referindo-nos às interações entre as pessoas em que há algum desequilíbrio gerando afetos negativos, questão primária desse trabalho. 3 Sistema de Avaliação da Educação Básica.

Upload: silvana-nunes

Post on 06-Oct-2015

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Telma Pileggi VinhaArtigo

    Resoluo de conflitos e educao em valores

    O desenvolvimento da autonomia e de relaes mais justas e so-lidrias so umas das metas encontradas na maioria dos projetos pedaggicos das instituies escolares. Diversos estudos tm con-firmado que o desenvolvimento moral est relacionado qualidade das relaes que se apresentam nos ambientes sociais nos quais a criana interage e, obviamente, essas relaes no ocorrem apenas na famlia. Alis, preciso que a criana possa ter experincias de vida social para aprender a viver em grupo, e a escola um local muito apropriado para essa vivncia. Pesquisas nacionais e inter-nacionais1 indicam que as escolas influenciam de modo significati-vo na formao moral das crianas e dos jovens, quer eles queiram, quer no. Quanto mais o ambiente oferecido for cooperativo, maior ser o desenvolvimento da autonomia, e quanto mais autoritrio, maior os nveis de heteronomia.

    Nos objetivos dos projetos pedaggicos de diferentes escolas analisados em nossas pesquisas no encontramos, de maneira ex-plcita, a formao de pessoas obedientes, acrticas, submissas ou heternomas. Nenhum educador pretende formar pessoas que se-jam reguladas por mecanismos exteriores, seguindo ou no deter-minado princpio moral ou regra dependendo do contexto (contudo, se os valores morais no estiverem alicerados numa convico pessoal, os alunos no estaro prontos para seguirem as regras e os princpios, especialmente na ausncia de uma autoridade). Po-rm, o que ocorre frequentemente que, no cotidiano da escola, os adultos utilizam procedimentos que levam as crianas e os jovens a se submeterem a essas normas porque uma autoridade (diretor, professores etc.) assim o quer ou sabe o que melhor para elas e para a instituio. Na prtica, valorizam a obedincia s normas e regras definidas previamente, nem sempre se preocupam em ex-plicar s crianas e jovens as razes destas nem consult-los acerca do assunto, atuando, por conseguinte, por caminhos que promovem mais a obedincia do que a autonomia.

    Nessa complexa rede de interaes, na escola h um fenmeno que est sempre presente e interfere significativamente na constru-o dos valores pelas crianas e jovens: os conflitos2 interpessoais. Atualmente, muitos professores sentem-se impotentes e inseguros ao se depararem com problemas cada vez mais frequentes de indis-ciplina ou de conflitos, tais como agresses fsicas e verbais, furtos, insultos, desobedincia s normas, bullying, entre outros. Um exem-plo uma recente pesquisa realizada por Biondi (2008) com base em questionrios respondidos por diretores de todo o Brasil na realizao do Saeb3. A autora verificou que a indisciplina por parte dos alunos

    1 Bagat, 1986; Arajo, 1993; DeVries e Zan, 1995; Vinha, 2000 e 2003; Tognetta, 2003.

    2 Os conflitos, tanto os que ocorrem no interior do sujeito (cognitivos e morais) como entre os indivduos (interpessoais), possuem um lugar relevante na teoria de Piaget. Por meio dos conflitos que o processo de equilibrao ou autorregulao desencadeado. Ao utilizar simplesmente o vocbulo conflito, estamos referindo-nos s interaes entre as pessoas em que h algum desequilbrio gerando afetos negativos, questo primria desse trabalho.

    3 Sistema de Avaliao da Educao Bsica.

  • Telma Pileggi VinhaArtigo

    apontada como problema por 64% dos diretores das escolas estadu-ais, 54% das municipais e 47% das instituies particulares.

    Apesar desses dados, alguns educadores parecem acreditar que os conflitos so ocorrncias atpicas, que no fazem parte do cur-rculo, de seu trabalho como professor e ainda concebem harmo-nia ou paz como ausncia dos mesmos. Diante das brigas e atritos, esses educadores sentem-se inseguros e desconhecem como pode-riam intervir de forma construtiva. Basta observar a forma como os conflitos so resolvidos que se percebem indcios dessa insegu-rana; como, por exemplo, quando um aluno comunica que algum furtou algo diferente do material escolar, como suas figurinhas. Alguns professores acabam por responsabilizar a vtima, alegando que a culpa dela por trazer material estranho aula. Os educado-res constatam, angustiados, que as brigas esto sendo resolvidas de forma cada vez mais violenta, mas sentem-se despreparados para realizarem intervenes diferentes de conter, punir, acusar, censu-rar, ameaar, excluir, ou mesmo ignorar... Assim, acabam por educar moralmente agindo de maneira intuitiva e improvisada, pautando suas intervenes principalmente no senso comum.

    Os conflitos so inevitveis em salas de aula em que a interao social e o trabalho em equipe so valorizados. Obviamente, numa escola cujo ambiente sociomoral cooperativo, ou seja, numa classe em que as interaes sociais entre os pares so favorecidas, onde os alunos tomam decises, realizam atividades em grupos, assumem pequenas responsabilidades, fazem escolhas etc., haver bem mais situaes de conflitos do que na escola tradicional, onde os alunos, em geral, interagem muito pouco uns com os outros. Portanto, po-de-se desconfiar de uma classe de alunos silenciosos e que possui poucas desavenas.

    Mesmo em classes tradicionais, uma grande parte dos profes-sores dedica entre 21% e 40% do seu dia escolar aos problemas de indisciplina e de conflitos entre alunos (Fante, 2003). Apesar do tem-po significativo dispensado pelo professor a tais fenmenos, rara-mente os cursos de formao estudam essas questes preparando o futuro profissional em educao para lidar com mais segurana ao defrontar-se com situaes de conflitos que ocorrem em qual-quer instituio educativa. Por conseguinte, acabam por ter reaes impulsivas que, no raro, somente pioram o problema ou apenas contm o conflito no espao escolar.

    A concepo sobre os conflitos do professor e, consequente-mente, o tipo de interveno realizada por ele ao deparar-se com desavenas entre as crianas e jovens, interfere nas interaes entre os alunos e no desenvolvimento socioafetivo dos mesmos, transmitindo mensagens que dizem respeito moralidade. Em nossa pesquisa (Vinha, 2003) comprovamos que, em geral, en-

  • Telma Pileggi VinhaArtigo

    contram-se duas grandes concepes sobre os conflitos interpes-soais entre os educadores.

    Em uma viso tradicional, os conflitos so vistos como sendo ne-gativos e danosos ao bom andamento das relaes entre os alunos. Tal concepo evidencia-se porque os esforos so, em geral, aponta-dos para duas direes: a primeira delas, seria evit-los. Para isto, ela-boram regras e mais regras, controlam os comportamentos por meio de filmadoras ou atravs de vigilncia sistemtica dos alunos, tran-cam armrios e salas de aula para evitar furtos, ameaam, coagem....

    A segunda direo ainda bastante prezada pela escola a resolu-o rpida desses conflitos. Deste modo, os educadores transferem o problema para a famlia ou um especialista; do as solues pron-tas; utilizam mecanismos de conteno e punies; incentivam a delao; culpabilizam; admoestam; associam a obedincia regra ao temor da autoridade, ao medo da punio, da censura e da perda do afeto. So mecanismos de controle utilizados cotidianamente na escola, que funcionam temporariamente, mas que, alm de refor-ar a heteronomia, no raro contribuem para agravar o problema. Em longo prazo, contribuem para formar jovens que possuem baixo ndice de habilidade social, apresentando dificuldades para: emitir opinies, argumentar e ouvir perspectivas diferentes sem sentir-se ameaados; tomar decises, expor e discutir seus sentimentos e co-ordenar perspectivas em aes efetivas.

    Na resoluo de seus prprios conflitos, empregam mecanis-mos ainda primitivos tais como as reaes impulsivas, submissas ou agressivas; a no interao; as solues unilaterais; a mentira... Como so privados de entender as justificativas para os valores e normas nas relaes, esses jovens tendem a orientar suas aes de modo a receberem gratificaes, evitarem castigos ou por mero con-formismo, demonstrando que os valores morais foram pobremente interiorizados. O fato de fazer com que um comportamento no seja mais apresentado no significa que a criana ou jovem percebeu as consequncias de tal ato e est aprendendo outras formas mais elaboradas de proceder; pode significar, simplesmente, que est sob controle por temor ou por interesse.

    Para o professor que possui uma perspectiva construtivista, os conflitos so compreendidos como naturais em qualquer rela-o e necessrios ao desenvolvimento da criana e do jovem. So vistos como oportunidades para que os valores e as regras sejam trabalhados, oferecendo pistas sobre o que precisam aprender. Por conseguinte, suas intervenes no enfatizam a resoluo do conflito em si, o produto (como resolver?), mas sim o processo, ou seja, a forma com que os problemas sero enfrentados (o que eles podero aprender com o ocorrido?).

  • Telma Pileggi VinhaArtigo

    De acordo com essa perspectiva, ao invs de o professor gastar seu tempo e energia tentando preveni-los, deve-se aproveit-los como oportunidades para auxiliar os alunos a reconhecerem as perspectivas prprias e as dos outros e aprenderem, aos poucos, como buscar solues aceitveis e respeitosas para todas as par-tes envolvidas. Ao agir assim, o educador demonstra reconhecer a importncia de desenvolverem-se nas crianas habilidades que as auxiliem na resoluo de conflitos interpessoais e, consequente-mente, favorecer a formao de pessoas autnomas. Por exemplo: situaes de mentira constituem-se em oportunidades para refletir sobre a necessidade da veracidade para manter o elo de confiana; circunstncias em que h agresses fsicas ou verbais entre os alu-nos podem ser aproveitadas para trabalhar o reconhecimento dos sentimentos e a resoluo das desavenas de forma no violenta e mais eficaz, por meio do dilogo; e assim por diante.

    Quando se tem a concepo de que harmonia no significa au-sncia de conflitos, pois estes so situaes necessrias para a apren-dizagem e que lidar com eles no algo desviante da funo de educador, modificam-se, inclusive, os sentimentos diante dos mes-mos. Compreende-se que os problemas ou desavenas, por serem na-turais em qualquer relao, devem ser administrados, no sofridos. A angstia ou a insegurana levam o sujeito a resolv-los rapidamente, de forma improvisada, para livrar-se daquilo que gera esses senti-mentos; assim, muitas vezes as intervenes so autoritrias e, no raro, desastrosas. Concebendo-os como inerentes s relaes e ne-cessrios ao crescimento individual ou de um grupo, lida-se com os conflitos de forma mais serena, percebendo a necessidade de, muitas vezes, planejar o processo de resoluo dos mesmos (O que o conflito est indicando? O que os alunos precisam aprender? Como trabalhar essa questo?), compreendendo que os procedimentos que sero empregados, as situaes promovidas ou as regras que sero elabo-radas no devem apenas atuar sobre as consequncias de um proble-ma, mas sobre as causas. Uma resoluo considerada eficaz em um conflito aquela que minimiza ou elimina as causas que o geraram.

    A obteno de relaes equilibradas e satisfatrias (o que no sig-nifica que os conflitos estaro ausentes) no so frutos de um dom gratuito ou de desenvolvimento maturacional, mas decorrentes de um processo de construo e aprendizagem. A criana ou jovem no ir aprender por si mesmo uma questo que muito complexa e para a qual no foram previstas boas intervenes e oferecidas situaes que lhe auxiliassem a aprender o que necessita. Porm, raramente se percebe a preocupao das instituies escolares com as possibilidades pedaggicas dos conflitos, sendo que seus esforos nesta rea esto mais voltados para conseguir um bom comporta-mento do aluno (muitas vezes por medo ou conformismo) e para a conteno do conflito do que para a aprendizagem.

  • Telma Pileggi VinhaArtigo

    Telma Pileggi Vinha doutora em Psicologia da Educao pela Unicamp e professora da Faculdade de Educao da mesma universidade. Pesquisadora da rea de relaes interpessoais e desenvolvimento moral e membro do Laboratrio de Psicologia Gentica da Unicamp e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educao Moral da Unesp.

    *Bibliografia:

    Arajo, U. F. Um estudo da relao entre o ambiente cooperativo e o julgamento moral na criana. Dissertao de mestrado, Faculdade de Educao, Unicamp. Campinas, 1993.

    Bagat, M. P. Annotazzioni e riflessioni sullautonomia morale. Attualit in Psicologia, vol. 1, n 2. Roma, Itlia, 1986, pp. 49-56.

    Biondi, R. Saeb. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (INEP)/Ministrio da Educao e do Desporto. Braslia, MEC/SEF, 2008. Disponvel em Acesso em: 12 mar. 2008.

    Devries, R.; Zan, B. Creating a constructivist classroom atmosphere. Revista Young Children, nov. , 1995, pp. 4-13.

    Devries, R.; Zan, B. A tica na educao infantil. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1998.

    Fante, C. Fenmeno bullying: Estratgias de interveno e preveno da violncia entre escolares. So Jos do Rio Preto: Ativa, 2003.

    La Fabrica Do Brasil Escola e Famlia: instituies em conflito. Observatrio do Universo Escolar e Ministrio da Educao, 2001. Disponvel em Acesso em: 10 out. 2002.

    La Taille, Y. A indisciplina e o sentimento de vergonha. In AQUINO, J.G. (org.). Indisciplina na escola: Alternativas tericas e prticas. So Paulo, Summus, 1996.

    Nakayama, A. M. A. 1996. Disciplina na escola: o que pensam os pais, professores e alunos de uma escola de 1 Grau. Dissertao. Mestrado, IP/USP. So Paulo, 1996.

    Piaget, J. O julgamento moral na criana. So Paulo: Mestre Jou. (ed. orig. 1932), 1977.

    Rego, Teresa C. R. A indisciplina e o processo educativo: Uma anlise na perspectiva vygotskiana. In AQUINO, J.G. (org.). Indisciplina na escola: Alternativas tericas e prticas. So Paulo: Summus, 1996.

    Tognetta, L. R. P. A construo da solidariedade e a educao do sentimento na escola: uma proposta de trabalho com as virtudes numa viso construtivista. Campinas: Mercado de Letras, 2003.

    Vasconcelos, M. S. Indisciplina no contexto escolar: estudo a partir de representaes de professores do ensino fundamental e mdio. Apresentao de trabalho. ANPEPp. Florianpolis, 2005.

    Vinha, T. P. (2000). O educador e a moralidade infantil numa viso construtivista. Campinas: Mercado de Letras, 2000.

    Vinha, T. P (2003). Os conflitos interpessoais na relao educativa. Tese de doutorado, Faculdade de Educao, Unicamp. Campinas, 2003.