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Resgatando Emília Freitas: As Questões Canônicas e os Aspectos Trágicos em A RAINHA DO IGNOTO Por Viviane Jesus da Silva Aluna do Curso de Mestrado em Teoria Literária (Ciência da Literatura) Dissertação de Mestrado em Teoria Literária apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós- Graduação em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador : Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares. Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Pós Graduação em Ciência da Literatura Rio de Janeiro, 1º semestre de 2007

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Resgatando Emília Freitas: As Questões Canônicas e os Aspectos Trágicos em

A RAINHA DO IGNOTO

Por

Viviane Jesus da Silva

Aluna do Curso de Mestrado em Teoria Literária

(Ciência da Literatura)

Dissertação de Mestrado em Teoria Literária apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador : Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares.

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Pós Graduação em Ciência da Literatura

Rio de Janeiro, 1º semestre de 2007

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DEFESA DE DISSERTAÇÃO

SILVA, Viviane Jesus da. Resgatando Emília Freitas: A questão Canônica e os aspectos trágicos em A Rainha do Ignoto. Rio de

janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2007. [Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura.]

Banca Examinadora:

_________________________________________________________

Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares Orientadora

_________________________________________________________

Professora Doutora Elódia Formiga Xavier

_________________________________________________________

Professora Doutora Helena Gomes Parente Cunha

_________________________________________________________

Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens

_________________________________________________________

Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho

Defendida a dissertação:

Conceito:

Em: / / 2007.

3

DEDICATÓRIA A Deus que me ergueu, amparou e acompanhou durante todo o

mestrado.

A toda mulher que se apaixonou pela obra de Emília Freitas, A

Rainha do Ignoto.

4

AGRADECIMENTOS A Deus, pois sem Ele nada disso seria possível; A minha orientadora e amiga Angélica Soares; A minha família; Ao meu querido “pai” Miracildo, que me ensinou diariamente que tudo é possível quando acreditamos em nós mesmos; A Rosângela, que nos últimos momentos contribuiu com a tradução em inglês do meu resumo; A minha irmã Vanice, que muito contribuiu com questões levantadas sobre o trágico e A Rainha do Ignoto; A Helaine que muito contribuiu com diversas sugestões e observações.

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SINOPSE Contextualização histórica do romance A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas. A questão do cânone e a urgência em dar visibilidade à literatura de autoria feminina do século XIX. Breves reflexões sobre a tragédia e o sentimento trágico da atualidade. Traços do trágico em A Rainha do Ignoto.

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... De ouvidos fechados seguirei desassombrada no dificultoso caminho da Literatura Pátria. Emília Freitas

7

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO------------------------------------------------------------------------------- 08

2. QUESTÕES HISTÓRICAS E CANÔNICAS EM TORNO DE A RAINHA DO IGNOTO----------------------------------------------------------------------------------------- 10

2.1. A PROBLEMÁTICA DA LITERATURA DE AUTORIA FEMININA NO SÉCULO XIX---------------------------------------------------------------------------------- 18

2.2. CÂNONE CANONIZADO X ANTICÂNONE-------------------------------------- 21

2.3. REPENSANDO OS PARADIGMAS CANÔNICOS ATRAVÉS DO OLHAR FEMININO-------------------------------------------------------------------------------------- 25

3. REFLEXÕES SOBRE O TRÁGICO E O TRÁGICO ATÉ A ATUALIDADE------- 33

4. ASPECTOS TRÁGICOS EM A RAINHA DO IGNOTO---------------------------------- 37

4.1.A SUPERIORIDADE DO PERSONAGEM TRÁGICO------------------------------ 37

4.2. A POLARIDADE TRÁGICA-------------------------------------------------------------44

4.3. A FATALIDADE TRÁGICA----------------------------------------------------------- 48

5. CONCLUSÃO--------------------------------------------------------------------------------- 53

6. BIBLIOGRAFIA------------------------------------------------------------------------------ 55

8

1-INTRODUÇÃO

Alguns olhares já observaram os dois mundos presentes em A Rainha do

Ignoto, de Emília Freitas . O romance apresenta uma visão que converge para os

seguintes pontos: a ruptura com os paradigmas patriarcais e canônicos do século XIX e o

ruir de verdades construídas ou mesmo adquiridas durante a trajetória da

protagonista, a Rainha do Ignoto. O inconformismo e ao mesmo tempo o desejo de seguir

os preceitos da sociedade patriarcal manifestam-se paradoxalmente na obra.

Nesta dissertação, serão focalizados a presença, na referida obra, de aspectos

trágicos através do confronto de dois mundos divergentes: a sociedade patriarcal da época e a

Ilha do Nevoeiro; o que conduz ao desmoronar do mundo da protagonista. Desse modo, a

autora trabalha com aspectos peculiares do trágico moderno.

O contexto histórico da obra é a segunda metade do século XIX quando, o

homem não está mais à espera da justiça humana nem da divina. Ele está entregue a seus

próprios atos e às conseqüências imprevisíveis destes. Nos tempos modernos, as indagações

sobre solidão, impotência e espanto encontram-se sem respostas. Desse modo, o trágico

desenvolve sua trajetória, chegando à modernidade. A sociedade moderna vive revoltas e

contradições, que caracterizaram o homem desse período como indivíduo e ser histórico.

Com o advento da ciência positivista, intensifica-se a visão do homem como

resultado da evolução de uma espécie e não criação Deus. Assim, a base cristã é questionada e

ocorre uma busca para preencher o vazio provocado por essas idéias.

Desponta, nessa época, a acentuação do descrédito do homem em relação a ele e

ao mundo, onde uma boa parte das pessoas não crê mais no progresso e nem na igualdade de

9

chances para todos. Apesar de haver um avanço do conhecimento, isso não controla o

pessimismo que se instaura no meio urbano.

Na modernidade, o trágico torna-se presente no cotidiano e a literatura não será

mais centrada em clássicas tragédias, mas passa a se inserir em outros gêneros textuais,

especialmente no romance. E, embora o cânone oficial não tenha incluído, no século XIX,

romancistas mulheres, muitas deixaram obras que precisam ganhar visibilidade, não só por seu

valor estético, mas também por recriarem a condição feminina daquela época.

Existe uma busca de reflexão sobre a condição da mulher e de outras facções

sociais excluídas na segunda metade do século XIX, em A Rainha do Ignoto de Emília Freitas.

Aspectos trágicos estão presentes na trajetória da protagonista, A Rainha do Ignoto, e na vida

de outros personagens como, por exemplo, Virgínia, que guarda um mundo particular e

interior,que não exterioriza e prossegue sem perspectiva de liberdade, fato que outras

personagens também enfrentam.

Emília Freitas é polêmica e complexa, escreve sobre questões inquietantes da

natureza humana e afronta a sociedade de seu tempo. É uma autora que expõe uma realidade

sufocada, camuflada de personagens verossímeis, demonstrando aspectos trágicos ocultos, pela

aparente organização da sociedade patriarcal. Alguns desses aspectos serão contemplados

nesta dissertação e todas as citações de A Rainha do Ignoto serão feitas pela edição de 2003

através das iniciais RI e da página citada.

10

2 – QUESTÕES HISTÓRICAS E CANÔNICAS EM TORNO DE A RAINHA DO IGNOTO

Para que se possa fazer o resgate da obra de Emília Freitas, A Rainha do Ignoto,

se faz necessário observar que o século XIX, como um todo, foi marcado por profundas

transformações no campo econômico, devido ao advento do capitalismo, e no social, com

o despontar da burguesia. Essas mudanças influenciaram a mentalidade e os costumes

da sociedade brasileira, reorganizando as vivências do cotidiano familiar, atribuindo

novos significados à família, ao amor e à felicidade, e marcando, decisivamente, o

papel da mulher nesse novo contexto.

A família tem, nesse novo olhar, como pilar de sustentação, a maternidade. E

assim, vai conquistando um papel social fundamental para a classe burguesa, tornando-se a

base da organização da sociedade, de acordo com o ideário positivista. Assim, a

“felicidade” familiar, uma casa acolhedora, filhos educados e uma esposa virtuosa estão

entre os valores a serem buscados e ostentados como patrimônio social pelo chefe do

grupo familiar, cabendo à mulher a função de zelar para que a casa, onde o homem é o

senhor absoluto, seja aconchegante e acolhedora.

Dessa forma, a mulher desse período estava muito presa às tarefas do lar, que

a impediam de realizar qualquer outra atividade em decorrência da organização ideológica

patriarcal.

Apesar de toda essa repressão, a mulher do final do século XIX é uma mulher

presente na vida pública, com produção literária que contava com muitos nomes expressivos,

dentre os quais está o de Emília Freitas. Essa militância feminina na vida pública traz

11

conflitos, pois colocava a mulher entre a casa e a rua. As obrigações de mãe e mulher,

confrontavam-se com a sua participação como cidadã.

Ao resgatar Emília Freitas, podem-se observar os sinais do gesto transgressor de

desafio ao modelo vigente o que está bastante presente em A Rainha do Ignoto.

A ausência, na atualidade, dos nomes das mulheres que, através da escrita,

tiveram a coragem de transgredir o modelo da época, se deve ao progressivo silenciamento

a respeito da produção literária feminina do século XIX, pois, de acordo com sociedade

desse período , a mulher deveria se restringir às tarefas domésticas. A Rainha do Ignoto

aparece, justamente, criticando esse ideário de sociedade pretensamente perfeita, onde o

homem é o rei absoluto e a mulher sua serva.

Antes de se fazerem observações sobre essa obra se faz necessário, para o resgate

de Emília Freitas, saber mais sobre a própria. Para isso recorro à bibliografia da autora

organizada por Constância Lima Duarte na citada edição de A Rainha do Ignoto.

Emília Freitas nasceu em Aracati (CE), em 11 de janeiro de 1855, filha do

Tenente Coronel Antônio José de Freitas e Maria de Jesus Freitas. Com o falecimento do pai,

em 1869, a família se transferiu para Fortaleza, onde a menina Emília pôde estudar francês,

inglês, geografia e aritmética, numa conceituada escola particular, e, mais tarde,

freqüentar a Escola Normal.

Desde 1873, Emília Freitas colaborava em diversos jornais literários,

como Libertador, Cearense, O Lyrio e A Brisa, de Fortaleza, e o Amazonas Commercial e

Revolução, de Belém do Pará. Muitas poesias, então publicadas, foram reunidas no volume

intitulado Canções do Lar (1891) , que trazia uma curiosa introdução dirigida “Aos

Censores”.

12

Em 1892, após a morte da mãe, mudou-se para Manaus em companhia de um

irmão, onde exerceu o magistério no Instituto Benjamin Constant, destinado à instrução

primária e secundária de meninos. Em 1900, casou-se e retornou ao Ceará com o

marido, o jornalista Antônio Vieira, redator do Jornal Fortaleza.

Antes, em Fortaleza, havia participado ativamente da “Sociedade das

Cearenses Libertadoras”, de caráter abolicionista. Na sessão solene de instalação dessa

sociedade, inclusive, em 1883, Emília Freitas ocupou a tribuna com um vibrante discurso

que foi muito aplaudido, segundo notícias encontradas em jornais. Apesar de ser uma

escritora respeitada nos meios literários da cidade, ela inicia o discurso justificando a ousadia

de falar em público, que , no seu caso, (e no de outras intelectuais da época) soa como uma

formalidade necessária para justificar o rompimento dos padrões sociais de

comportamento, então estabelecidos para as mulheres:

Antes de manifestar minhas idéias, peço desculpas à ilustre

Sociedade Cearense Libertadora para aquela que, sem títulos ou

conhecimentos que a recomendem, vem felicitá-la pela

primeira vitória alcançada na ditosa vila do Aracape.

Depois imploro ainda permissão para, à sombra de sua imortal

bandeira, aliar os meus esforços aos dessas distintas e

humanitárias senhoras, oferecendo-lhes com sinceridade os

únicos meios de que disponho: os meus serviços e minha

pena que, sem ser hábil, é em compensação guiada pelo

poder da vontade [....] As flores de nossos prados querem

expulsar de seu Solo esse monstro detestável [a escravidão] que e

em nossa pátria querida infama e enegrecia as risonhas cenas

da natureza! [....] Seja o prêmio de nossos esforços, veremos

em breve os nossos caros patrícios voltarem do campo da

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ação, coroados de louros, agitando triunfantes o pendão da

Liberdade!

(RI, 12-13)

Em 1889, a escritora publicou seu principal livro, A Rainha do Ignoto, a que deu o

subtítulo de ‘Romance Psicológico”. Tal subtítulo se impôs pelo fato de a autora ter

consciência das peculiaridades que ele continha. Trata-se, no caso, de uma trama novelesca

absolutamente inusitada, com ousados traços ficcionais, que deve ser considerada entre as

pioneiras do gênero fantástico, no Brasil. A dedicatória, inclusive pode ser lida quase como

uma profissão de fé e de modernidade para a época, além de conter algumas indicações da

opinião da autora acerca dos escritores contemporâneos e da consciência autoral da

originalidade de seu trabalho.

Meu livro não tem padrinho, assim como não teve molde. Tem

afeição que lhe é própria sem atavios emprestados do pedantismo

charlatão. Não é, tampouco, o conjunto das impressões recebidas

nos salões, nos jardins, nos teatros e nas ruas das grandes cidades,

porque foi escrito na solidão absoluta das margens do Rio

Negro, entre paredes desguarnecidas duma escola de subúrbio. É,

antes, a cogitação íntima dum espírito observador e concentrado

que (dentro dos limites de sua ignorância) procurou numa coleção

de fatos triviais estudar a alma dada mulher, sempre, sensível

e muitas vezes fantasiosa. [.....]

(RI, 15-16)

14

Emília Freitas consegue, com muita habilidade, acomodar o fantástico num plano

de regionalidade, e faz no romance uma série de incursões pelo imaginário, do palpável ao

mais inverossímil. Utilizando-se de técnicas narrativas bem modernas para a época, o clima

fantástico se instaura no enredo e assume, naturalmente, o predomínio da atmosfera, ora com

ingredientes de um fantástico medievo, ora lembrando narrativas inglesas de terror,

transportando magicamente o leitor e a leitora de um para o outro extremo, até o final,

surpreendente.

Em outubro de 1908, Emília Freitas faleceu em Manaus, para onde havia

retormado após a morte do marido.

Sua obra A Rainha do Ignoto é um romance psicológico. O novo apresentado de

muitas maneiras, ora alia-se a lendas fantásticas (muito comum no interior do nordeste), ora à

hipnose e à parapsicologia, ou seja, trabalha com o pouco convencional. Também , faz uso de

um conteúdo fantástico bastante original e inovador para um romance da época. A autora,

penetrando no imaginário atinge, ao inverossímil, misturando terror e narrativas do fantástico

medieval.

A narrativa conta a história de um jovem chamado Edmundo, que é seduzido por

uma líder de um grupo de mulheres conhecida como Rainha do Ignoto, que se utiliza da magia

e da hipnose para conseguir realizar suas missões, observe o trecho abaixo:

Os primeiros capítulos vão narrar a busca do rapaz para

penetrar os domínios da Rainha do Ignoto e desvendar-lhes

os mistérios. Ele consegue seu intento, quando um dos

servos da Rainha, chamado Probo, possibilita a sua entrada

na Ilha do Nevoeiro, fazendo-se passar por uma das

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paladinas, que havia morrido na casa de Probo. Neste

mesmo disfarce, permanece três anos com o final de sua

viagem, com a curiosidade satisfeita, Edmundo volta para a

Passagem das Pedras decidido a casar-se com Carlotinha,

moça da cidade que havia sido apaixonada por ele

antes de sua partida, optando pela tranqüilidade da união

nos moldes burgueses, casando-se com uma mulher

virtuosa e prendada, capaz de velar bem por sua família. A

Rainha do Ignoto, que vive torturada pela tristeza e

angústia, apesar do poder e da riqueza que possui, acaba se

suicidando e com sua morte a Ilha do Nevoeiro desaparece

no mar.

(BERNARDINO, 2001, 137)

Ao lado da história da Rainha do Ignoto acontece a vida da povoação da

Passagem das Pedras, que enfrentava as mesmas questões e impasses do Brasil daquele período

que tentava abafar valores regionais, valorizava a vida urbana, o casamento de interesse, o

poder, o dinheiro e a posição social.

[....] – Explica-se, dizia consigo: Virgínia nada possuía

e provavelmente Alice lhe trouxe um dote de trinta ou

quarenta contos de réis, isso para um moço que acaba de se

formar à custa de sacrifícios é uma espécie de sorte grande

[....]

(RI, 46)

O mundo da Rainha do Ignoto era o da solução e da justiça para os problemas

sociais, principalmente das mulheres daquele período, porém a figura da Rainha é paradoxal;

16

ao mesmo tempo que rege uma sociedade na qual consegue solucionar diversos problemas,

vive frustrada por não se sentir completa, por ser só. Esses fatores culminam com o seu

suicídio no fim da narrativa. Logo, o romance, de certo modo, preserva os valores da sociedade

patriarcal, demonstrando isso através da frustração da protagonista por ser diferente dos

padrões exigidos para uma mulher. Isso confirma o conflito vivenciado pela mulher desse

período, focalizado por Sônia Bernardino, em A casa da indecisão: algumas reflexões sobre A

Rainha do Ignoto de Emília Freitas:

A verdade é que além do projeto de proteger os fracos,

amparar os abandonados, cuidar dos doentes, a Rainha procura

substituir a insatisfação que lhe é característica, na tentativa

frustrada de banir a solidão e a angústia. Aquela que procura livrar

as pessoas do desespero é o ser mais desesperado da Ilha do

Nevoeiro. Talvez porque a autora, ainda presa à ideologia do

patriarcado, mostrasse sua protagonista carente do amor da família,

apesar das rupturas já praticadas.

(BERNARDINO, 2001, 145)

A narrativa trabalha com a questão da liberdade e da autonomia, sua escritura

também funciona como um meio de descrever e propagar papéis sociais, valores, ações e

sentimentos legitimados e tidos como um padrão pela sociedade da qual é fruto. Um exemplo

disso ocorre com o personagem Edmundo. Compreendendo o casamento de interesse do amigo

Gustavo, reflete através da escrita, que a situação era extremamente justificável para a época:

17

Mas porque seria a preferência de Gustavo por Alice, menos

bela, estouvada e namoradeira? Explica-se, dizia ele consigo:

Virginia nada possuía e provavelmente Alice lhe trouxe um dote de

trinta ou quarenta contos de réis. Isto para um moço que acaba de

se formar à custa de sacrifícios, é uma espécie de sorte grande [....]

Pensando bem nesses formosos anos do alvorecer de mocidade, o

Dr Edmundo acusava o amigo de falta de caráter e até ambicioso,

mas reflexionando bem, veio a concluir Gustavo teve razão, e fez

o que faria outro, em caso semelhante, visto não ser com amor que

se manda ao mercado, às lojas de modas, ao joalheiro, ao

empresário de teatro e a todos mais que fornecem o que há de útil

no mundo elegante.

(RI, P. 46)

O universo narrativo ainda aparece muito preso aos ideais formulados pelo

patriarcado, segundo os quais a realização da mulher seria plenamente satisfeita no lar. Essa

idéia é claramente expressa no fragmento do ensaio citado de Sônia Bernardino, Na Casa da

Indecisão: algumas reflexões sobre A Rainha do Ignoto de Emília Freitas:

Contudo, apesar da riqueza e da liberdade manifesta, não havia

felicidade propriamente dita naquele lugar, o que pode ser oriundo

da ausência do lar, pois não havia organização familiar na Ilha

do Nevoeiro, a não ser pelo sentimento maternal denunciado

na proteção que a Rainha dispensa as suas paladinas e aos

infelizes que abriga.

(BERNARDINO, 2001 , 142 )

18

A casa da Rainha não pode ser entendida como um reflexo da sociedade

brasileira do século XIX, mas como representação particular de um universo de criação

feminino. Essa casa é porta-voz de uma realidade descrita e subvertida em que está presente o

discurso da ruptura, embora não levado às últimas conseqüências.

Isso constrói um universo inverossímil, contrariando os padrões sociais da época;

serve como uma forma de escapar aos mecanismos opressores.

De certo modo, a autora reduplica a ideologia da época porque, no romance,

também a visão apresentada é de que a felicidade possível só se concretiza na família. Porém,

não deixa de ser um romance desafiador, pois traz uma crítica às exigências da classe burguesa,

que tornava ainda mais acentuadas as desigualdades e as injustiças sociais.

2.1 – A PROBLEMÁTICA DA LITERATURA DE AUTORIA FEMININA NO SÉCULO XIX

Para fazer uma análise da produção literária do século XIX, é preciso conhecer

melhor como funcionava o contexto social - cultural do período e levar em conta que as

características culturais variam conforme a região.

Como já comentado, o século XIX foi marcado por profundas transformações em

todos os campos, principalmente no campo econômico por conta da ascensão do capitalismo e

no social, com o despontar da burguesia. Essas mudanças influenciaram a mentalidade e os

costumes da sociedade brasileira, reorganizando as vivências do cotidiano familiar, atribuindo

19

um grande valor à família, ao amor e à felicidade e marcando decisivamente o papel da mulher

nesse novo contexto histórico e sócio-cultural.

A sociedade dessa época, de um modo geral, é influenciada pela burguesia, que

valoriza o casamento, a instituição familiar, onde havia um modelo pré-estabelecido de lar

perfeito, que se constituiu de uma mulher que tinha a função de ser uma dona de casa zelosa e

mãe cuidadosa, enquanto ao homem cabia o papel de provedor e “senhor” absoluto da casa.

Essa padronização não se restringe ao modelo familiar, mas era voltada

principalmente para a conduta feminina na sociedade e isso também se refletia na literatura,

que padronizava a forma dos textos, sendo um pretexto para excluir e calar as vozes femininas.

Por isso, a mulher desse período se via dividida entre aquilo que a sociedade determinava para

ela e o que ela desejava para si. Dessa forma, muitas escritoras, como Emília Freitas, foram

esquecidas por fugirem do padrão estabelecido para elas.

O século XIX pode ser resumido como um século onde o poder patriarcal se

destacou, pois as mulheres realmente eram caladas e a elas restavam exclusivamente os

serviços domésticos.

Desse modo, muitos textos de autoria feminina refletiam, através de suas

subjetividades, o aspecto cultural de uma determinada localidade e faziam emergir a opressão e

a angústia das mulheres, demonstrando uma complexidade ideológica. Em A Rainha do

Ignoto, se fala do Nordeste brasileiro. A situação social da mulher era um dos fatores que

ocultavam a verdadeira razão de omissão do cânone das obras de autoria feminina.

Pode-se traduzir o resgate que vem sendo feito por pesquisadores os brasileiros de

tais textos, como uma história de resistência a idealizações construídas pelo código burguês,

que marginalizou a voz feminina, usando ainda o argumento de falta de padrão estético ou

20

temático desejados. Os livros românticos dos primeiros escritores finalizavam suas histórias

com o casamento de seus personagens que geralmente viviam para o lar e a família; o não

seguimento desse modelo gerava uma recriminação. Isso se dava porque, como vimos, a

família nesse novo olhar vai conquistando um papel fundamental para a classe burguesa,

tornado-se a base para a organização da sociedade, de acordo com o ideário positivista.

Assim, os autores tinham, como base, todo um discurso hegemônico, que ultrapassava a

questão estética e temática, servindo também de justificativa para a discriminação da produção

literária das escritoras. As escritoras desconstroem esse discurso expondo, justamente, o

contrário, que o matrimônio era feito por uma conveniência social e gerador de diversos

problemas. Destacavam também a divergência de comportamento e as relações de poder entre

o homem e a mulher, apesar do domínio da cultura patriarcal.

A dificuldade de assumir, de imediato, o estilo realista-naturalista também era

enfrentada pelos escritores, que tentavam dosar tanto o romantismo quanto o realismo. Logo,

entende-se que é um equívoco a tese baseada na não ciência das autoras dos acontecimentos no

cenário literário, pois se já havia uma certa resistência da crítica em relação aos autores, com as

mulheres a vigilância e a repressão seriam bem maiores.

Um outro dado desse resgate literário era demonstrar que as obras de autoria

feminina dialogavam com as dos homens, através de um discurso romântico, que não era

gratuito, o qual funcionava como suplemento, com o intuito de dar respostas ao código burguês

masculino dominante. Assim, o romantismo, nos textos de autoria feminina, agia como uma

espécie de armadilha ou disfarce contra o sistema vigente, uma vez que uma mudança de estilo

vinda de uma mulher não seria aceita naturalmente. Uma outra peculiaridade dos textos de

muitas autoras era a não fixação na figura de uma mulher romanticamente idealizada, ao

contrário, eles mostram as diferentes subjetividades das personagens femininas.

21

Desse modo, justifica-se a durabilidade de traços estéticos do romantismo em

textos de autoria feminina até o século XX, contribuindo para a defasagem entre a escrita de

autoria masculina e de autoria feminina. Mas, mesmo com as diversas dificuldades

encontradas, percebem-se muitas particularidades na exposição de temas como Ivia Iracema

Alves comenta no final do seu ensaio Suaves, mas resistentes.

Percebe-se que lendo, analisando a produção ficcional

escrita pelas autoras do século XIX, muitas delas

conseguiram ultrapassar/apreender o paradigma hegemônico

e passam a dialogar com esse discurso. Muitas delas abriam

sérios diálogos sobre a imagem idealizada da mulher e

representada pela literatura bem como discutiram os

problemas atinentes ao seu universo, como a conveniência. A

separação e a dignidade da mulher separada vêm a ser tema

central de alguns romances ou tramas desenvolvidas através

de personagens secundárias. Também o lugar da mulher na

sociedade e mesmo a igualdade entre os sexos integram o

arsenal arquitetônico de seus escritos.

(ALVES, 1997, 25)

2.2 – O CÂNONE CANONIZADO X ANTICÂNONE

O ensaio intitulado Como se fosse um diário: Anotações sobre o cânone, de

Eduardo Portella é iniciado mostrando os diferentes olhares da historiografia e da história para

22

o cânone. A história, como é descrita pelo autor, não se preocupa em descrever os fatos

oficiais, ao contrário, prioriza os acontecimentos omitidos, os não divulgados pela

historiografia, que se detém nos escritos oficiais.

O cânone universal valoriza a historiografia, pois esta se fundamenta em critérios

pré-estabelecidos, em verdades absolutas, para conceituar algo. Fazendo uma comparação da

visão histórica de Portella com o materialismo histórico marxista, descrito no ensaio Sobre o

conceito de história, de Walter Benjamin, consegue-se compreender, de modo mais claro o

tipo de história privilegiada pelo autor.

A história proposta no ensaio de Portella, sugere o resgate do passado. Isso

significa fazer uma reminiscência, reter, na memória, a imagem do passado o mais próximo do

que ele foi e não como relatado pela história universal.

Assim, estruturas tradicionais, como o cânone, sofrem uma comoção, quando a

reflexão passa a ser o elemento mais importante. A partir do momento em que se deu lugar a

um repensar, várias vozes antes caladas surgem no cenário histórico.

Conseqüentemente, esse ato poderoso se reflete em diversos campos culturais,

como a literatura, que se torna liberta de paradigmas impostos. Desse modo, várias obras

excluídas, como as literaturas de autoria feminina, estão sendo resgatadas, e, finalmente,

autoras como Emília Freitas, entre outras, passam a ser conhecidas.

Com o repensar dos critérios impostos pelo cânone, notou-se que obras literárias

não são somente aquelas seguidoras de um determinado padrão. Vale ressaltar que a arte

literária propõe uma reelaboração da linguagem. E isso deve ser natural e não limitado a regras.

Vários argumentos foram usados para a inclusão e a exclusão de alguns trabalhos

literários, entre eles o do modelo estético, que deveria ser seguido para que a obra fosse

considerada literária.

23

Algumas obras eram automaticamente banidas por não estarem inseridas dentro

desse modelo pré-estabelecido, mesmo que tivessem um certo reconhecimento do público. A

forma estética já era uma boa justificativa para a segregação dessas literaturas. Claro que, atrás

desses fatores, o que, na verdade, existia era uma poderosa sociedade patriarcalista, a qual

impunha regulamentos em diversos meios, usando, inclusive, instrumentos culturais como o

cânone.

O cânone, como já foi argumentado, com normas para canonização de obras

literárias, na realidade, estava-se procurando limitar o poder libertário da linguagem literária. A

literatura , no entanto, não resulta de um trabalho submetido a regras, pois o que a torna

benéfica é a inovação incontestável que faz da própria linguagem. Comentário análogo a este é

feito por Roland Barthes, em seu livro Aula.

Pode-se dizer que a terceira força da literatura, sua força

propriamente semiótica, consiste em jogar com os signos em vez de

destruí-los, em colocar luz numa maquinaria de linguagem cujos

breques e travas de segurança arrebentaram, em suma, em instituir no

próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das

coisas.

(BARTHES, 1978, 28-29)

Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite

ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução

permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.

(BARTHES, 1978, 15)

24

Para que haja um trabalho libertário da linguagem é necessária uma combinação da

violação, da desordem e do labor intenso. Tal pacto é reprovado pelo cânone, que se utiliza de

um discurso hegemônico, cujo objetivo é excluir obras que não estivessem em acordo com as

exigências canonizadas. Mas, um sistema julgatório desse tipo tem muitas possibilidades de

ser injusto e de fazer análises equivocadas. Barthes também já havia feito afirmação parecida

em Aula:

(...) chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e,

por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe.

(BARTHES,1978, 11)

O sistema canônico defende que a arte deve ser legitimada, mas o que ocorre é

uma fragmentação no processo de criação estética, entre a arte e sua legitimidade. Os critérios

adotados pelo cânone se agravaram ainda mais com a desconstrução da estética na atualidade.

A forma foi substituído pelo formato, ou seja, pelo estilo. Tais fatores estão gerando uma

mudança radical no sistema representativo do cânone que, na pós-modernidade, tem perdido

seu valor, pois o poderio veloz da mídia tem detido o seu poder.

A partir da segunda metade do século XX, com a dissolução da

hegemonia dos critérios hierarquiza que excluíam a obra literária e

artística produzida pelos segmentos autoritários, abriu-se o espaço

para que se fizessem ouvir as vozes marginalizadas, inicialmente

de negros e mulheres ao lado da emergência dos escritos

terceiromundistas, além dos demais grupos excluídos da cultura

dominante. No Brasil, ao sabor do fluxo daquelas águas, floresceu a

25

produção literária feminina, tendo sido as autoras logo

reconhecidas, sem que precisassem mais se defrontar com críticas

desairosas, chacotas e difamações que tantas de suas antecessoras

foram obrigadas a suportar. Os tempos haviam mudado e a mulher

já estava começando a ocupar o seu lugar no mundo regido pelos

critérios masculinos.

(CUNHA, 2001,22)

Uma perspectiva não canônica, um anticânone, possibilitará e, felizmente já vem

possibilitando, dar visibilidade a obras que, por imposição de valores estéticos restritivos, de

preconceitos sociais ou mesmo de demonstração de poder, permaneceram desconhecidas,

como se nunca tivessem sido publicadas. O desafio do cânone vem permitindo o resgate de

obras, como A Rainha do Ignoto, em trabalhos críticos voltados para sua construção e não para

a emissão de julgamentos de valor, baseados em comparação com a produção canonizada.

2.3 – REPENSANDO OS PARADIGMAS CANÔNICOS ATRAVÉS DO OLHAR FEMININO

A sociedade patriarcalista do século XIX com sua hegemonia, durante muitos

anos, silenciou a voz da mulher, excluindo-a do meio sócio-cultural e priorizou o discurso

masculino, tendo-o como modelo.

26

Graças às pesquisas de diversas correntes de estudos culturais contemporâneos, as

obras de autoria feminina, principalmente aquelas desconhecidas, como A Rainha do Ignoto de

Emília Freitas, vêm sendo remidas e divulgadas. Outro fator que colaborou para o

conhecimento dessas obras foi a reflexão sobre os critérios adotados pelo cânone. Uma dessas

ponderações está no ensaio já citado Como se fosse um diário: anotações sobre o cânone, de

Eduardo Portella, onde se mostra como a historiografia e a história observam a entidade

canônica.

A historiografia preserva, com todo zelo, o cânone canonizado.

Abraça, sem muito escrúpulo e com alguma firmeza a

concepção apropriativa e patrimonial do mundo e dos entes. Já a

história emerge de inesperada trama do tempo, muito mais

simultânea do que sucessiva.

(PORTELLA, 1997, 5)

A historiografia preserva os fatos ocorridos sucessivamente, enquanto a tendência

pós-moderna tem priorizado a história, que faz emergir, de modo inesperado, os fatos,

resgatando eventos até então desconhecidos, os quais ficaram “congelados” no tempo.

Devido a essa recente propensão, tem-se possibilitado uma nova leitura das diversas áreas do

conhecimento. Assim, o valor sustentado pelo cânone está passando por um processo de

questionamento, dando-se prioridade ao trabalho de se visibilizarem produções até então

desprezadas pela crítica e, por isso ocultadas.

Cânone, do grego Kanon, significou originariamente a vareta que servia como

instrumento de medida. Essa idéia foi resgatada posteriormente, acrescentando-se o valor de

27

regra, lei, ou seja, critérios pré-estabelecidos que serviam para selecionar uma listagem dos

melhores autores. Porém, atualmente, diversos questionamentos são levantados quanto a esse

tipo de seleção. Quem escolhe? Qual a principal função deste sistema de exclusão? Várias

outras perguntas podem surgir, quando se pensa na grande repulsa à produção de autoria

feminina, promovida pelo discurso patriarcal.

Com a chegada dos anos 70, ocorre uma mudança no ambiente sócio-cultural.

Surgem, nesse momento, diversos movimentos como: anticoloniais , étnicos, ecológicos,

feministas, homossexuais e novas tendências políticas. No âmbito cultural, devido a essas

várias mudanças no cenário social, o cânone literário vai aos poucos perdendo sua força , fato

que se torna mais evidente quando se descobre o conceito de alteridade , o qual proporciona

um novo olhar para o aspecto cultural.

Dentro desse contexto, a análise da questão do feminino se torna necessária ; era

preciso fazer uma abordagem teórica e metodológica que não tivesse como base perspectivas

essencialistas ou calcadas em conceitos biológicos.

O modelo patriarcal utilizava um discurso hegemônico, cujo objetivo era

perpetuar uma relação de poder e , desse modo, fazia uma clara demarcação social , onde aos

homens cabia o lugar público e para as mulheres o privado cárcere familiar. Tal situação

obviamente era refletida no mundo literário; caso ocorresse, nos escritos de autoria feminina,

uma ousadia a mais , isso levaria a sérias penalizações. Assim, repensando sobre os modos

como se construíam as histórias literárias pode-se, até mesmo, refletir a respeito da

construção do termo feminilidade e, de certo modo, sobre a normatização da figura da mulher,

através de oposições binárias entre o masculino e o feminino e ainda sobre diversos rótulos

repressores do desejo da mulher, por não querer ser qualificada apenas como mãe e rainha do

lar.

28

Para que ocorra um resgate de discursos discriminados e perdidos no tempo,

Maria de Lourdes Pinto cita três proposições:

(...) a reescritura da história da literatura ocidental demanda três

atividades distintas:

1. A desconstrução da história literária tradicional como parte do

discurso das ciências humanas.

2. A reconstrução das diversas tradições da cultura feminina

marginalizadas e/ ou silenciadas.

3. A construção de uma nova história literária , como produto de

diversos sistemas socioculturais inter-relacionados, marcados pelas

relações de gênero.

(PINTO, 199, 33)

Hoje o olhar para literaturas não sacralizadas permite uma representação de novos

e criativos posicionamentos , sem se estar preso ao padrão dito eurocêntrico, ou seja , a visão

das metrópoles. Baseado nessa idéia se desenvolve o ensaio O cânone ocidental (vide Bloom)X

multiculturalismo, de autoria de Luiz Carlos Moreira Rocha do qual se ressalta que:

O cânone europeu vem sendo bombardeado nos últimos anos por

uma série de vozes caladas pela história oficial. Escritores, poetas

e críticos das nações consideradas "periféricas" vêm questionando

os valores estabelecidos pelo eurocentrismo, valores estes que

colocam a cultura das ex-colônias, com exceção da americana e

canadense, em planos secundários, tentando perpetuar de forma

autoritária a "supremacia" da arte do velho mundo e de seus

herdeiros americanos , calcando-se no estético. As maiores evidências

29

acerca desses abalos se encontram no mundo britânico e espanhol,

onde os escritores das ex-colônias estão transformando o cânone

com cores brilhantes e cadências outras, além de um olhar

estrangeiro. As obras de autores indianos , colombianos, nigerianos,

mexicanos e caribenhos, entre outros , estão empreendendo uma

grande revolução nas línguas inglesa e espanhola , bem como em

suas respectivas literaturas."

(ROCHA, 1997,13)

Luiz Carlos Moreira discorre sobre diversas literaturas de ex-colônias excluídas

por esse cânone europeu. Tal análise inclui textos de autoria feminina do século XIX também

banidos. E, além disso, demonstra a cisão entre mulheres nos diferentes contextos periféricos ,

umas emancipadas e outras subalternas.

Independente das características atribuídas a essas mulheres, elas ainda se

encontravam sem um foco, ou seja, sua voz não era permitida no meio social e seu saber

desprestigiado. Conseqüentemente , os valores do mundo masculino se cristalizavam e eram

reproduzidos por elas, que acabavam, de certo modo, tendo uma postura inferiorizada e

refletindo indiretamente esses princípios em suas obras.

Tais fatores podem ser percebidos claramente no prólogo de Constância Lima

Duarte ao romance, que será aqui focalizado, intitulado A Rainha do Ignoto ou a

impossibilidade da utopia, que cita uma fala da Emília Freitas quando participava de uma

sessão solene da "Sociedade das Cearenses Libertadoras " em janeiro de 1883 e ainda na

sinopse de sua obra A Rainha do Ignoto, quando a autora continuava a demonstrar este

sentimento de inferioridade incutido nas mulheres daquele período.

30

Aos gênios de todos os países e, em particular , aos Escritores

Brasileiros

Vós , que brilhais como estrelas de primeira grandeza no

firmamento alteroso da Ciência , da Literatura e das Artes ,

podereis estranhar o meu oferecimento, e chamá-lo de ousadia , se

não reflexionares que o mais poderoso monarca pode sem

humilhação aceitar um ramalhete de flores silvestres das mãos

grosseiras de uma camponesa , que ao oferecê-lo curve o joelho e

incline a cabeça em sinal de respeito, estima e admiração. Minha

oferta não vos deslustra . Ei-la dilapidada como um diamante

arrancado do seio da terra e oferecido por mão selvagem.

A autora.

(RI, 2003, 28)

Essa estratificação dos princípios e valores da sociedade patriarcal do século XIX

é também sentida no cerne das obras de algumas autoras, como Emília Freitas em A Rainha do

Ignoto , cujo desfecho trágico , mostra uma protagonista que se suicida por não estar inserida

dentro dos padrões hegemônicos. Sônia Bernardino elucida muito bem tal contexto em seu

ensaio Na casa da indecisão : algumas reflexões sobre A Rainha do Ignoto de Emília

Freitas.

No romance , entre a casa da repressão e a casa do desejo não chega

a haver uma opção. A satisfação do desejo permanece no horizonte

do inverossímil, atacando apenas perifericamente o modelo, visto

que a ruptura com a estrutura vigente manifesta no mundo

lendário não se consolida no espaço urbano. Como já foi exposto , a

mulher segura que encanta e hipnotiza, que governa um clã de

mulheres tão poderoso e que promove a felicidade das pessoas que

encontra, não encontra a realização pessoal. A errância , a angústia,

31

a ausência do sentido familiar marcam decisivamente a trajetória da

Rainha do Ignoto , imprimindo em sua figura a melancolia

da impossibilidade. O desejo de transgressão, assinalado na história

da Rainha do Ignoto não chega a ultrapassar a fronteira do

inverossímil, permanecendo na esfera mítica, impossibilitado de

manifestar-se de forma plena . Trata-se , portanto de um livro que

apesar de desafiador , traz como marca do seu tempo , a insegurança

e a indecisão a respeito dos valores que defende.

A mulher que escapa ao destino doméstico e ganha o

mundo, cujo reino é surpreendentemente suntuoso e o domínio é

vasto , só encontra como direção para sua trajetória o suicídio

. Sem lar, sem familiares para cuidar e estabelecer os laços do

modesto convívio doméstico, não sobrevive à própria dor, incapaz de

lutar.

Caberia aí perguntar: a felicidade , no romance, consiste em ter um

lar estruturado e acolhedor? Por que a história narrada que, em

tantos episódios, desafiou paradigmas cristalizados , volta ao

modelo familiar estrutural sustentado pelos valores tradicionais da

sociedade burguesa? Esse sinal de contradição revela o impasse que

marca a escritura de Emília Freitas. O advento da modernidade, que

exige o desafio e a desconstrução no seu romance, esbarra num

modelo de mulher onde há avanços e recuos, confirmando sua

escritura, como casa de indecisão. Seria esta a marca de autoria

feminina da época?

(BERNARDINO, 2002, 146-147)

Atualmente, as mulheres participam ativamente do meio intelectual e artístico,

tendo grande peso nas discussões estético-teóricas. Porém, ainda há várias outras conquistas

que se devem adquirir.

Vários nomes como Nísia Floresta , Maria Firmina dos Reis , Narcisa Amália

dentre outros, como Emília Freitas, já vieram à luz , porém outros ainda se encontram

32

totalmente omitidos . Muitas indagações são pensadas sobre Emília Freitas. Quem foi esta

autora? Sua produção é realmente valorosa? Vale enfrentar o cânone para ela ser conhecida? A

essas perguntas centram-se as reflexões desta parte da dissertação.

33

3 - REFLEXÕES SOBRE A TRAGÉDIA E O TRÁGICO ATÉ A ATUALIDADE

As elucidações das causas do conflito trágico não são as dificuldades essenciais

para a compreensão da tragédia; o principal obstáculo é proveniente da resistência que envolve

o próprio fenômeno trágico, cujas análises feitas sejam reduzidas a conceitos e âmbitos

estéticos. Deve-se ter a percepção de que o trágico na obra de arte só é possível porque ele é

próprio da realidade humana. Ainda pode-se dizer que, pelo fato do homem ser finito, existe a

possibilidade do trágico.

É bom destacar, todavia, segundo Gerd Bornheim, que o homem em si não é

trágico e sim a falta de consciência de uma finitude é o seu apartamento ontológico, que

contribui, de modo significativo, para que o trágico se manifeste. Assim, a realidade pode ser

vivida de uma maneira trágica, porém não é, em si mesma, desse modo a experiência trágica

exige a existência de um homem trágico chamado por Aristóteles de herói trágico. Não se

pode, no entanto, concentrar o entendimento do trágico no herói. Tal análise seria limitadora.

Logo, não só o homem é fundamental, seu horizonte existencial também é de suma

importância. A partir da junção desses dois pressupostos, a ação trágica se torna

compreensível. Por isso, Aristóteles acerta, pois rejeita entender a tragédia tendo como foco

somente o caráter do homem. Ele a entende como um somatório das ações e das experiências

humanas. Assim, quando surge um conflito entre o homem e seu universo, delineia-se uma

ação trágica. E seu ponto culminante não, é necessariamente, a morte do herói, embora tal

característica cause grande impacto. Mas, não há empecilho algum para que haja um “final

feliz”, pois sua morte não é o fator mais importante e sim a reconciliação ou a suspensão do

conflito, não importando o modo como isso vai se dar.

34

Portanto, é o conflito e a reconciliação que resolvem a situação do herói e o sentido

da ordem. No capítulo treze da Poética, Aristóteles faz uma análise do herói trágico e

especifica a causa do trágico. Ele utiliza um termo chamado amartia que significa erro, falta.

Muitos questionamentos já se levantaram sobre o caráter dessas significações, sendo a

especificação intelectual e não a moral muito mais priorizada pela maioria dos autores,

inclusive defendida pelo próprio Aristóteles.

Tal análise, segundo ainda Gerd Bonheim, tende a subjetivar o erro, tornando-a, de

certo modo, problemática. Ele, contrariamente, deve ser visto com objetividade, conseguindo

atingir tanto aspectos celestiais quanto terrenos, como a vida pública, por exemplo. Já nos

livros de Heráclito se encontram, nitidamente, os dois pólos do conflito trágico: de um lado a

hybris (a desmedida) e de outro a justiça, a harmonia, a medida.

Bornheim lembra que para Karl Rinhardt, o ser e a aparência entrelaçam devido ao

conflito com que a existência humana se depara na tragédia. A vida do herói trágico se

equilibra entre o princípio certo e a mentira. O objetivo principal da tragédia não está contido

na aparência que circunda toda existência humana e sim na progressiva descoberta da verdade

que desenvolve a ação trágica. A aparência do herói é descoberta, mostrando sua própria

natureza, através dos equívocos da situação mundana onde se revela a verdade. Uma outra

particularidade desse herói é que possui algo parecido com um falso semblante. Tal

característica faz com que ele transcenda e se depare com uma mentira. Então sua vida perde o

sentido.

Ao voltar-se para o entendimento do trágico na atualidade, Bornheim prioriza o valor

excessivo que se atribui à subjetividade, quando relacionada ao aspecto moral. A prioridade

crescente da vida interior tira o viço do trágico e reduz sua extensão. Assim, a tragédia se

35

torna menos possível à medida que o subjetivismo se torna mais evidente, nos tempos

modernos.

Para o autor de O sentido e a máscara , o pensador Kierkegaard, de certo

modo esclarece a crise da tragédia na modernidade com sua análise sensível dos valores

individuais do subjetivismo moderno, pois, segundo ele: “O herói trágico (moderno) é

subjetivamente refletido em si, e esta reflexão não expulsa apenas de todo o contato direto

com o Estado, a família e o destino, mas freqüentemente o desliga de sua própria vida anterior”

(BORNHEIM,1969,86).

Para Kierkegaard, o sofrimento era mais profundo e a dor era menor na tragédia

antiga, enquanto na moderna ocorre o contrário. Na modernidade, o sofrimento é sempre mais

significativo do que a dor; pois esta propõe um repensar sobre o sofrimento. Assim, a

experiência trágica é enfraquecida com a atuação da subjetividade em detrimento do sentido de

uma ordem objetiva, metafisicamente estável.

Embora sejam várias as interpretações feitas sobre o trágico, uma acepção é, para

Bornheim, a máxima: a de que ele se alicerça em um mundo pleno de sentido e não combina

com o absurdo; isso é válido para o mundo e para a existência humana. A proporção que é

dada ao absurdo na literatura hoje possui a tendência de expulsar o trágico, mas isto não é

totalmente incompatível com o trágico.

O herói absurdo transmite o sem – sentido da existência, por isso é trágico. Até

mesmo a subjetividade contida na culpa, por exemplo, pode se tornar uma espécie de pecado

original, que leva o indivíduo a uma passividade.

Portanto, verifica-se que o trágico não foi excluído da modernidade, pois é

fundamental ao humano, apenas seu estado puro não é mais possível. Tudo isso permite

perceber o quanto a tragédia, em seu sentido próprio, esta distante; porém tal divergência não

36

pode impossibilitar a compreensão e a experiência do trágico. Bornheim comenta sobre a

situação trágica:

(...)A situação trágica, deve-se reconhecer, é freqüentemente mera

nostalgia, saudosismo do melhor dos mundos possíveis e do

trágico; nostálgica ou não, inspira-se no próprio fenômeno trágico.

(BORNHEIM, 1969, 91-92)

37

4 – ASPECTOS TRÁGICOS PRESENTES EM A RAINHA DO IGNOTO 4.1 – A SUPERIORIDADE DO PERSONAGEM TRÁGICO

Como já referido, a Poética de Aristóteles é o referencial para se falar sobre a

tragédia e sobre o sentimento do trágico, pois este está nela, primeiramente recriado. Para este

pensador, tal gênero dramático está calcado numa ação apresentada por atores, que provoca

compaixão e terror, conseqüentemente, leva à purificação (catarse) desses sentimentos. A

tragédia precisa ter este resultado catártico. O destino do protagonista é alterado

conforme os acontecimentos trágicos que se produzem com a verossimilhança e são os

sentimentos de terror e de compaixão que dão uma particularidade à tragédia, pois eles não

estão ligados somente às personagens, interagem também com a platéia, que compartilha de

tal sofrimento, porque também tem a tendência de se alienar. E isso faz com que ocorra um

esvaziamento do sofrimento sentido pelo público, que conclui que seus problemas são menos

graves.

Tais sentimentos provocam um episódio patético (phatos), gerando morte ou

muito sofrimento em cena . Conduzido pelo phatos os protagonistas das tragédias caem em

desgraça, apesar de não terem uma essência má, ao contrário são “homens melhores do que

nós” (ARISTÓTELES, 1966, p.85) desejam a salvação de todos, porém cometem uma falha

inconsciente. E, por isso, ocorre a tragédia que, desde a tragédia antiga, compõem o trágico,

esses aspectos são claramente observados na obra A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas,

pois a personagem que dá título ao romance, é construída com traços de caráter superiores,

que reúnem bondade e justiça. A narrativa do romance, cheia de traços ficcionais que

beiram o absurdo, é iniciada com a aparição da Rainha do Ignoto descendo pelas águas do

38

Rio Jaguaribe em seu pequeno bote com seu fiel orangotango e um moleque que tinha

aparência medonha, ´uma figura negra e peluda´ com uma cauda grande. Essa cena é vista

por Dr. Edmundo, rapaz rico, que depois de sua formatura em Recife volta aos sertões do

Ceará. Encantado e curioso com o que viu, Edmundo procura levantar informações sobre

aquela mulher e fica obcecado em desvendar o segredo daquela que os nativos

denominavam “Funesta” ou “Fada do Arerê”. Com a ajuda de um cativo da Rainha

chamado Probo, Edmundo consegue entrar em um mundo dominado por mulheres e

testemunha os diversos feitos em favor dos humildes e injustiçados como os descritos

abaixo:

A Rainha do Ignoto fitou-a por alguns instantes acompanhando

seus finos dedos sobre o marfim do teclado, e disse:

- Pobre menina! Receio muito que tu não sejas feliz; mas eu serei o

teu anjo da guarda.

- Parece descender de boa família, ponderou Clara Benício.

- Descende de certo, tornou a Rainha do Ignoto; mas de que vale

isto para ela, se foi renegada por seus pais?

Ergue a fronte com mais orgulho a filha de um sapateiro que lhe

deu nome honrado, embora humilde, que a filha de um prícipe que

se oculta na sombra para que ela não lhe chame pai.

- Mas isto é uma injustiça da sociedade, replicou a doutora Clara

Benício, Helena vale por si: é formosa, bem educada, e tem um

belo caráter. O que lhe falta para ombrear com as outras que andam

por aí a ostentar grandeza, sem possuírem nem metade de seu valor

moral?

- Falta-lhe o nome que a sociedade egoísta mesma lhe roubou,

volveu a Rainha do Ignoto. Quase ninguém ignora os erros e

preconceitos desarroazoados da sociedade; mas é raríssimo o ser

39

que o despreza e os arrosta sem temor. Sou a primeira a

reconhecer o mérito de Helena , contudo, tenho a certeza de que nas

altas rodas terá muitas vezes de ser ferida em seu amor próprio, e

eis por que acabo de dizer que receio que não seja feliz.

(RI,223)

A Rainha do Ignoto escutou de pé junto ao portal, e disse:

- Roberta, parece que houve aqui alguma desgraça, ouço gemer,

chorar e às vezes gritos abafados, ais dolorosos.

- Empurre a porta, senhora.

E ela, sem mais considerações, empurrou e entrou, seguida por sua

companheira.

Na sala não havia ninguém; mas no corredor, estendida no chão,

uma rapariga de cor escura tinha a cabeça rachada, e estava com os

cabelos sujos de sangue, que lhe corria pelos vestidos.

- Mas o que foi isto? Perguntou a Rainha do ignoto inclinando-se

para ela.

- Cacetada! Respondeu Roberta, está se vendo que foi uma enorme

cacetada!

- É preciso estancar este sangue, Roberta, veja algodão para

queimar, trouxe o frasco de arnica?

- Tudo está aqui pronto, senhora, respondeu Roberta, procurando na

cesta que trouxera enfiada no braço.

Em poucos minutos estava feito o tratamento, e elas não vendo

outras pessoas na casa conduziram a doente para o quarto, cujo

ladrilho estragado lhes fazia dar topadas aqui e ali.

Não havia leito, puseram-na numa rede ordinária.

- Nem ao menos uma almofada para calçar-lhe a cabeça! Disse a

Rainha do Ignoto, correndo a vista pelo quarto.

- Ali estão dois baús, observou Roberta, talvez haja neles algum

pano.

- Nada senhoras, sou miserável, disse a rapariga falando pela

primeira vez.

- Quem lhe pôs nesse estado ? perguntou a Rainha do Ignoto.

40

A rapariga caiu em pranto e não respondeu.

- Queremos protegê-la, diga-nos tudo sem receio.

- As senhoras não apitam, não o mandam prender? Interrogou ela

com olhos suplicantes.

- Se não sabemos de quem fala como poderemos denunciá-lo?

Disse a Rainha do Ignoto. Conte-nos a sua estória e descanse que

não faremos nada que não seja para aliviá-la.

(RI, 262-263)

Esse mundo surreal, desconhecido por todos, é formado por uma sociedade secreta

onde as mulheres ocupam cargos de chefia em todos os segmentos. Serviam à Rainha do

Ignoto mulheres chamadas Paladinas.Vejamos trechos da obra que atestam a nobreza de

caráter da protagonista:

Secretária falou assim:

Irmãs na fé, irmãs no desterro, a soberana do Ignoto, a musa do

Nevoeiro, vos faz saber que a sessão de hoje não é Sessão ordinária ,

adstrita às cerimônias da lei, é uma sessão livre , extraordinária , na

qual ela deseja dizer algumas palavras a muitas de suas paladinas.

Dentro de três dias partiremos para os assaltos do bem, vamos

guerrear a injustiça, proteger o fraco contra o forte entrar nos cárceres

para curar os enfermos, lançar-nos às ondas para salvar os náufragos

e atirar-nos aos incêndios para lhes arrebatar vítimas! Quem não

estiver pronta a perder a vida pela fé jurada, pode assinar seu nome

no livro da covardia.

(RI, 188 )

41

-Tende, por vós ou por vossas companheiras, disse esta, alguma

queixa a fazer-me ou alguma queixa a fazer-me ou alguma graça a

pedir-me?

- A graça que tenho a pedir por mim e por minhas companheiras,

disse ela, é a de continuar a vos servir por toda nossa vida.

- Voltai, disse a rainha com bondade, e trabalhai por ganhar o

primeiro grau da segunda ordem – Trabalho e Coragem.

(RI, 189 )

- É o Purgatório, asilo de todas as criaturas inutilizadas pelo

sofrimento, que a rainha recolhe e protege, procurando curar as que

têm cura, e consolar as desenganadas, disse Roberta.

(RI, 201)

Vemos que a protagonista tem como principal intuito fazer o bem, tanto que é uma

espécie de salvadora dos oprimidos. Em alguns momentos são usadas até doutrinas religiosas

para reforçar seu caráter redentor. Várias passagens da diegese de A Rainha do Ignoto o

narrador descreve os grandes feitos da protagonista e ao mesmo tempo tem domínio do seu

interior, passando a ver toda intimidade e a aflição que vivia e que levou ao desmoronamento

de seu mundo. A própria Rainha se vê como alguém que está predestinada à prática do bem,

embora isso não a faça feliz:

- Essas paladinas , posso chamá-las minha família ?

- Não, porque apesar de haver entre elas verdadeiras heroínas, estão

ligadas a mim, umas por interesse próprio, outras por deveres

comuns, pelo gênio, pelo caráter e nenhuma pelo coração. Dizem que

a prática do bem traz a felicidade, é mentira! É ilusão! Aqui estou eu

que, desde de criança, não tive pensamento que não fosse nobre e

digno! Não fiz uma ação que não fosse em favor dos meus ou em

42

benefício dos estranhos, e o que tive em paga? Injustiças e

ingratidões!

Ah!mas o bem já é para mim um vício Corro para aliviar uma

miséria, arrisco a vida para evitar uma desgraça, como o jogador

incorrigível atira-se a uma banca de jogo, onde sempre perde.

Ah! Eu amo esta humanidade injusta , ingrata e egoísta ...Faço o bem

maquinalmente , por um destino, uma tendência, como a do que se

embriaga pelo desespero!

(RI, 248)

Depois ficou absorta: seus olhos, que deixavam ainda ver o poder dos

seus primeiros encantos, tinha uma expressão meiga e triste. Em seus

lábios pairava um sorriso amargo em seu semblante espalhava-se a

resignação do mártir.

Com menos agitação que da primeira vez, tirou de um pequeno

estojo de veludo carmesim uma navalha de cabo de ouro com

cravação de diamantes e abriu o corpete do vestido, cortou a pele

sobre o coração. E entre esta a víscera palpitante de seu peito,

colocou o pedaço de cartão, o atestado de sua fraqueza, da fraqueza

nativa de todas as mulheres do mundo, embora assinaladas pelo gênio

ou pela religião dos claustros.

Depois ela tirou de um frasquinho de ouro um líquido com que

Estancou o sangue que corria sobre a pele de carneiro que ela tinha

estendida ao colo. Não haveria estóico com mais coragem. Tão

sensível às dores morais, parecia não sentir a violência daquela dor

física.

E foram as pedras do rochedo as únicas confidentes da sua vida.

Nunca tivera outras , além das flores da campina , do espelho dos

lagos, do vai-vem das ondas e do cintilar das estrelas. Ainda assim

fugiu dali receosa, ao canto de um rouxinol.

O sol ia declinando, e já metade dele desapareceria por trás de um

monte.

(RI, 408-409, 2003)

43

Na mutação psicológica, que é base do trágico, se manifesta a consciência do homem

trágico e se expressa o conflito, que deve ser solucionado, pois é a base de toda tensão

dramática, que gera compaixão e terror de todos. Isto porque o herói, no desfecho sai

derrotado e como vítima. Assim é também no romance de Emília Freitas, em que

dramaticamente, vão-se pondo em tensão os sentimentos paradoxais da Rainha , que constroem

sua desilusão, como se identifica na auto-avaliação que ele envia do Dr. Edmundo:

O Dr. Edmundo, como nos dias anteriores, revistou os sítios

conhecidos e achou nos galhos de um cardeiro a carta seguinte:

Senhor:

Não começo respondendo, começo analisando o primeiro ponto de

vossa carta. Dizeis: “ Formossísima visão do Monte! Linda

bateleira!”

Teria me rido, e rido muito, se a tristeza já não me tivesse selado os

lábios, há dez longos anos! Eu formosa?!É verdade que nos primeiros

anos da existência cansei de ouvir está mentira que me fez vaidosa,

quando, atravessando as ruas de minha cidade natal, via todas as

vistas cravadas em mim, e choveram exclamações das portas e

janelas depois reconheci que tudo não passava de uma ilusão de ótica.

Eu era feia! Mas feia ! Era disforme! Do contrário... No segundo

ponto está a vossa curiosidade pelo extraordinário de minha vida.

Quereis a história de minha desventura existência? Ah! Senhor

perguntai aos cardos porque nasceram tão eriçados de espinhos!

Perguntai aos mochos quem os colocou ao lado dos túmulos e não me

pergunteis porque me afasto da realidade e transponho as raias do

impossível! No terceiro ponto me patenteais vosso coração ferido de

súbito... à moda de faísca elétrica! Confesso, senhor, se estivesse no

vosso caso me sucederia o mesmo... Pois chegar a uma aldeia, e na

mesma noite, ao clarão da lua, fora das horas, ver passar um bote com

uma moça vestida de branco, tocando harpa, e além disso, cantando

uma canção francesa, é para impressionar; mas felizmente não estou,

44

vi só uma povoação que sonhava adormecida, em descanso das lidas

do dia. Sou filha da natureza, noiva do infinito! Senhor, não olheis

para a voragem!... Ao pé de vós existe um lago azul, tranqüilo como a

luz dos olhos de um recém-nascido, navegai por ele que encontrareis

o porto da bonança, e não velejai por esses mares de visão .

(RI, 139)

4.2 – A POLARIDADE TRÁGICA

Os sentimentos paradoxais, por sua vez, se manifestam em decorrência de dois

pressupostos fundamentais para ocorrer o trágico: o homem e o sentido existencial do homem.

Quando o homem já não encontra um sentido para sua existência, cria-se uma polaridade tal

que se vivência como um desmoronamento de seu mundo. Para Bornheim “A polaridade dos

presupostos é uma exigência indispensável; é ela que torna viável a ação trágica”

(BORNHEIM, 1969, 74). O diálogo, que se segue, entre Probo e o Dr. Edmundo, explicitam o

caráter revolucionário da rainha que, assim, se coloca à frente de seu tempo, política e

ideologicamente:

- Que são?! Exclamou Probo exaltado, veja, examine o que leva teve

petulância de declarar em um discurso que fez, na última sessão do

Nevoeiro: “A pena última é o recurso dos governos impotentes para

regenerar o criminoso pela instrução e pelo trabalho.”

- Bem pensado! Senhor Probo.

45

-Bem pensado também incutir no ânimo dos que a rodeiam, que o rei

é o produto da ignorância dos povos antigos , que ainda não estavam

em estado de governarem-se , e formar uma república.

- Bravo!Uma rainha republicana!

- Como Robespierre!ou com Danton! Acrescentou Probo.

- E o senhor quer-lhe mal por isso?- Não é só por isso, senhor

Edmundo, é por muitas outras idéias subversivas ... Para não faltar-

lhe mais nada do que subleva – é espírita!

- Espírita! Mais este crime! Disse o Dr. Edmundo zombando.

- O senhor zomba porque não conhece os males que ela causa às

mais santas instituições, como sejam: ao direito de propriedade dos

senhores, à monarquia e à religião.

- E que faz ela para destruir esta trindade?

- O senhor há de ver como eu tenho visto. Olhe, aqui na ilha não há

templo católico nem de religião alguma, há somente sessões espíritas,

na biblioteca, onde ela possui todas as obras de Alan Kardec, de

Flammarion e outros malucos como ela. Enfim, o senhor verá.

(RI,198)

Essa polaridade pode ser ilustrada tanto em relação ao mundo interior da protagonista,

de A Rainha do Ignoto, quanto em relação a Probo, personagem que representa o contexto

conflituoso e preconceituoso, no qual a Rainha está inserida. O erro trágico está concentrado ,

levando a um conflito entre o interior da personagem e o seu universo, pois há uma tensão

subjetiva entre dois modelos : o transgressor e o reduplicador do patriarcalismo. Isso faz com

que a Rainha do Ignoto, apesar de viver um mundo particular bem-sucedido, sinta-se infeliz ,

porque, de certo modo, inveja aquelas mulheres que vivem segundo o modelo patriarcal da

época. Tudo isso ocasiona um final catastrófico, com seu suicídio e o conseqüente

46

desaparecimento da Ilha do Nevoeiro e de tudo que dava sentido a vida das paladinas. Assim

são as declarações da Rainha:

- Não sei . Julgo apenas que fora do amor não há para mulher

grandeza nem felicidade possível! Julgo também que a mais

ambiciosa de ouro e de glória, não trocaria por uma coroa de

louros a grinalda de flores de laranjeira do dia de seu noivado.

(RI, 341)

Com relação ao contexto patriarcal, as observações de Probo espelham o direito que se

dá ao homem, de julgar as ações femininas desqualificando-as para justificar a oposição

que faz a ela:

O que tem o governo com elas? Tem muito; ele não autorizou

esta sociedade secreta...Este tesouro acumulado na mão deste

diabo deve ser considerado um crime! Ela não podia explorar as

minas da ilha e explora; não contente com isso, funda com nomes

imaginários casas comerciais, fábricas, engenhos, centros de

lavoura e grande criação de gado; de forma que tem em todas ou

em quase todas as províncias do Brasil, um rendimento

fabuloso!E para que?Para desperdiçar em fantasias loucas!Em

benefícios extravagantes! Em fazer mal à propriedade alheia; pois

rouba ao senhor para dar ao escravo. Que absurdo!É

abolicionista! Já eu a ouvi dizer que não há lei alguma de direito

humano que possa ecravizar um cidadão, que a condição de um

abuso da força contra a fraqueza, e urge reagir...

(RI, 197)

47

Para Borneheim “ A Polaridade dos pressupostos é uma exigência indispensável,

é ela que torna viável a ação trágica” (BORNHEIM, 1969, 74). Esta polaridade encontra-se

presente em A Rainha do Ignoto como já foi citado anteriormente. Para Aristóteles é a ação que

determina o trágico, pois está calcada na polaridade, que já foi referida por Borneheim. Este

ainda afirma que, quando o homem e o mundo estão em conflito, temos a ação trágica. Em A

Rainha do Ignoto podemos encontrar diversas passagens onde o homem e seu mundo entram

em conflito, gerando diversas ações trágicas. Por isso, também, pode-se afirmar que existem

diversos aspectos trágicos presentes na obra, como os ilustrados nos trechos abaixo:

Inclinou-se e saiu sem voltar as costas. A médica entrou

logo depois: tinha pouco mais ou menos a idade da

primeira; era morena , e posto que não fosse tão bonita, não

podia haver mais simpática! Muito alegre, e pelos modos

familiares com que entrou parece-nos ser a predileta da

rainha. Sentou-se diante dela e começou assim: - É triste,

muito triste a minha mensagem! O ano passado quando a

Vossa Bondade deixou-me nesta cidade encarregada

daqueles doentes, eu achei-me despachada delas logo

depois dum mês: uma estava tísica e morreu-me nos braços

pronunciando baixinho como um suspiro o nome do

marido ingrato, que no clube, sentado à banca do jogo, já

nem se lembrava do amor e da fidelidade que lhe jurou ao

pé do altar; a outra restabeleceu-se depressa, ou esqueceu o

seu Sireno, ou se consolou; deu na mania religiosa entrou

para um convento. Mas quando tratava de partir e pensava

gozar da vossa companhia e da de nossas amigas eis que

me aparece um caso novo mais terrível que os precedentes.

(RI, 163-164)

48

Através de outras personagens secundárias do romance são retratadas situações em que

precipitam as mulheres em decorrência dos papéis sexuais e sociais e a elas impostos pelo

sistema social de sexo-gênero. Tudo isso reforça a opressão que a mulher do século XIX sofria,

um exemplo e que se via obrigada a entrar num matrimônio sem amor

Os trechos referidos recriam ficcionalmente, como vimos, opressão da mulher do

século XIX, que se via obrigada a entrar num matrimônio sem amor; apenas para seguir um

padrão social patriarcalista da época. O complexo de inferioridade também era constante em

algumas mulheres daquele período, que aparentemente se mostram autoconfiantes, mas

interiormente se sentiam inferiorizadas, devido à grande marginalização social, em que eram

mantidas pelas leis patriarcais. Na obra, como já comentado, personagens como Probo recriam

o olhar masculino preconceituoso, que repudia atitudes como a da rainha, repletas de

características, que para o período, seriam uma aberração: uma mulher republicana, espírita e

abolicionista. Na obra, a reconciliação entre os dois pólos conflituosos se dá através da morte

da protagonista, que se suicida no final do romance, suspendendo, desse modo, o conflito.

4.3 – FATALIDADE TRÁGICA

A fatalidade trágica é, primeiramente, recriada na tragédia Clássica Grega.

Naquele contexto, tem-se a fatalidade como uma catástrofe final e inevitável, toda vez que se

vê destruída a razão de uma existência. Tal fato é resumido no livro Gêneros Literários, de

49

Angélica Soares. Trata-se de uma fatalidade justamente pela impossibilidade de se fugir do

destino, uma vez que a falta cometida inconsciente.

No capítulo VI de sua Poética Aristóteles conceitua a tragédia

como a mímesis de uma ação de caráter elevado (importante e

completa), num estilo agradável, executada por atores que

representam homens de mais forte psique , tendo por finalidade

suscitar terror e piedade e obter a catarse (libertação) dessas

emoções.

Para que um herói caia em desgraça é necessário que vivencie

um desequilíbrio, uma desmedida , um valor negativo: a hybris

que o coloca em erro inconsciente (Falha Trágica) e que, se

vinculando ao destino, conduz à destruição de seu mundo.

(SOARES, 1997, 61)

Na obra de Emília Freitas, em diversas passagens, há exemplos claros da presença

dos aspectos trágicos da fatalidade. Uma dessas passagens é a morte de Virgínia, que foi

abandonada pelo homem que amava e que supostamente a amava também, pois ele, recém-

formado em Direito, trocou Virgínia por sua prima, por conta do dote. Virgínia, que já tinha

um histórico infeliz de vida, adoeceu e acabou morrendo por ver destruída a razão de sua

existência . Senão vejamos:

(...) – Sempre pensei, observou Edmundo timidamente, que Gustavo

casasse com Virgínia , falava-me dela com tal entusiasmo que eu o

julgava verdadeiramente apaixonado

(RI, 58-59)

50

- Explica-se, dizia ele consigo: Virgínia nada possuía e

provavelmente Alice lhe trouxe um dote de trinta ou de quarenta

contos de réis, isso para um moço que acaba de se formar à custa de

sacrifícios, é uma espécie de sorte grande.

(RI, 63)

(...) De repente, elevou-se da sala, que os convivas haviam

abandonado, uma voz triste como o do cisne em seu derradeiro canto

o som que modulava a voz fraca da cantora, saudosa como um adeus

à vida.

Ela cantava uma modinha brasileira em voga naquela época. Dizia

assim:

Como é triste morrer na flor dos anos

Quando vejo que o mundo é um paraíso...

Sinto que me abre a sepultura...

Vejo da morte um irônico sorriso. (...)

(RI, 104)

Para que o trágico apareça como verdadeira catástrofe, é necessário inferir um

mundo e compreendê-lo como ordem generalizada, contra a qual não se pode lutar, pois não se

tem força suficiente para vencê-la. Para que cause efeito e espalhe sua força fatal, deverá

atingir um homem que tenha uma idéia e acredite cegamente nela, preocupando-se

exclusivamente com seu problema e abandonando o que não se relaciona com a sua verdade.

No livro Conceitos Fundamentais da Poética Emil Staiger cita o exemplo de Goethe:

(...) o príncipe de Homburg, que obscecado por seu objetivo

negligência a ordem do marechal , não atenta com o conselho do

príncipe eleitor e não percebe a situação da cabeça de ponte em

51

Rhyn . Com isso procuro mostrar a fatalidade do trágico

percebida por Goethe, e rearfimada pelo fim funesto de Kleist.

(STAIGER, 1972, 149-150 )

Em A Rainha do Ignoto, tal aspecto aparece nas frustrações vividas pelos refugiados do

Ignoto, que, como fruto da queda daquilo em que acreditavam ou que desejavam,

enlouqueceram ou puseram as suas forças em uma nova idéia ou crença. A Rainha do

Ignoto constrói um palácio para si e, juntamente, com suas paladinas, acredita estar fazendo

justiça , mas parece estar marcada por uma “fraqueza nativa de todas as mulheres do mundo”,

pois transgredir todas leis patriarcais seria o mesmo que estar fadada a um triste fim, numa

sociedade hierarquicamente organizada e totalmente fechada à qualquer tipo de poder que as

mulheres ousassem assumir. Daí os diversos disfarces sob a rainha oculta sua verdadeira

identidade para que possa atuar como agente social transformador. O episódio de libertação

dos escravos ilustra bem os ideais revolucionários da Rainha. Vejamos um trecho:

Quando chegou ao sítio combinado, apareceram os ciganos que

pondo cerco à tropa dos pretos agarraram-nos repentinamente, e

foram sacudindo-os nos barcos que se faziam logo ao largo, em

busca do Grandolim, preparado com antecedência para receber a

carregação de pretos. (...) Os pretos deviam ser distribuídos como

trabalhadores livres nas fábricas e nos estabelecimentos rurais que a

Rainha do Ignoto possuía nos Estados de Alagoas, Sergipe, Bahia,

Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.

(RI, 340)

52

Paralela a uma sociedade de base patriarcal, que limita o espaço social feminino à

intimidade domestica, o narrador nos apresenta um modelo de sociedade onde há a valorização

da mulher, fundamentado no altruísmo. São mulheres que dominam a natureza, a ciência e

ocupam cargos e funções como general, almirante, médico, etc, que são, à época, de

competência masculina e que, por isso ou se exilam no Nevoeiro ou age de forma anônima.

Cria-se uma situação ao mesmo tempo insustentável e inabalável; que também contribui para

o desaparecimento da Ilha do Nevoeiro, ao final do romance. A Rainha do Ignoto faz emergir,

no bojo de de seu projeto artístico/utópico de emancipação humana, a resistência das mulheres

e a história silenciada dos negros no quadro da prepotência e da opressão, marcas registradas

do funcionamento institucional e social das elites dominantes do Brasil do século XIX.

53

4 – CONCLUSÃO

Uma questão que tem que ser sempre enfrentada, nos trabalhos críticos sobre obras de

autoria feminina do século XIX é a questão do cânone responsável por padronizar os textos que

eram escritos na época, tanto de autoria feminina quanto de autoria masculina, calou os escritos

de autoria feminina, sob o pretexto de estarem fora do padrão. O que acontecia, na realidade, é

que se vivia numa sociedade fortemente patriarcal, que considerava que as atribuições

femininas deveriam se restringir ao casamento e ao seu futuro lar.

O trabalho de resgate de escritoras que vem sendo desenvolvido no Brasil, já permite o

estudo de obras literárias então desconhecidas, que possibilitam um enfoque não apenas

literário, mas também do contexto sócio-cultural recriado.

Muitas mulheres daquele período não se conformavam com os padrões que lhes

eram impostos e procuravam rompê-los. A Rainha do Ignoto de Emília Freitas é um bom

exemplo disso, pois difere das obras de autores reconhecidos, que valorizavam um final feliz,

com a idealização do casamento como ponto máximo de felicidade e realização. Em A Rainha

do Ignoto, a protagonista se suicida ao término da história e esse episódio acaba por conduzir

esta Dissertação de Mestrado para a possibilidade de se descobrirem traços trágicos na referida

obra uma vez que, com o suicídio da protagonista desmorona-se todo um mundo de realizações

das mulheres da Ilha do Nevoeiro.

A protagonista de A Rainha do Ignoto, na qual se evidencia a nobreza de

sentimentos e atitudes, vivencia o trágico por se encontrar em uma tensão subjetiva , que gera

o paradoxo e a leva à fatalidade, pois não consegue livrar-se da força historicamente de

cumprir um “destino de mulher”. Assim, ao se desfazer de certezas e se encontrar entre forças

54

opostas, ela se constrói como uma personagem trágica. Isso não faz com que a obra de Emília

Freitas seja uma reprodução do trágico clássico, mas, em muitos momentos, fica clara a

presença de aspectos trágicos, dos quais a tensão entre sentimentos opostos e a fatalidade são

os mais explícitos.

A escolha por viver isolada na Ilha do Nevoeiro, indo contra os costumes da

sociedade da época e ao mesmo tempo sentindo-se só e insatisfeita com sua própria vida,

muitas vezes reproduzindo as mesmas atitudes que critica, caracteriza um cenário de tensão

que a tornava um ser altamente paradoxal. O inconformismo e ao mesmo tempo o desejo de

seguir os preceitos da sociedade patriarcal manifestam-se paradoxalmente na obra, através do

confronto de dois mundos divergentes: a sociedade patriarcal da época e a Ilha do Nevoeiro; o

que conduz ao desaparecimento desta.

A falta inexplicável e sem nome que a Rainha vivia, remetida a fatores psicológicos, a

levou para o suicídio: o episódio enfatizado através da Introdução no texto “A Força do

Destino” Ópera de Verdi, caracteriza a fatalidade em seu desfecho.

55

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RESUMO

O presente trabalho destaca, dentre os escritos de autoria feminina do século XIX, a

obra A Rainha do Ignoto de Emília Freitas. Para tal se faz um apanhado histórico-social do

século XIX e que se caracterizou por uma grande transformação na sociedade como um todo.

Essas transformações foram resultantes da ascensão capitalista e burguesa que subordinou a

mulher e destinou-a a atividades meramente domesticas. Observou-se também a existência ,

nesse período, de um cânone literário que determinava regras, para que as obras tivessem

visibilidade crítica e reconhecimento de valor. Devido ao cânone, muitas mulheres, como

Emília Freitas, permaneceram quase desconhecidas. Graças ao trabalho de pesquisadores,

houve o resgate de muitas obras, o que também é abordado nesta Dissertação. Seu tema

central é a presença de aspectos trágicos em A Rainha do Ignoto dos quais se destacam: a

superioridade da protagonista, a fatalidade e o paradoxo. Assim, pretende-se apontar também

a permanência do trágico na modernidade, embora ele não se apresente mais na forma da

tragédia clássica.

64

SILVA, Viviane Jesus da. Resgatando Emília Freitas: A questão Canônica e os aspectos trágicos em A Rainha do Ignoto. Rio de

janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2007. [Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura.]

ABSTRACT

This work points out, among the writings of the 19th century feminine authorship, the

book “A Rainha do Ignoto”, by Emilia Freitas, for which a historic-social overview of the

19th century is done, marked by a great transformation in the society as a whole.

These transformations were the result of the capitalist and bourgeoisie rise that

submitted woman and limited her to mere holsehold activities.

Also, in this period a literary canon has been observed which set rules so that works

could have crictical visibility and value acknowledgement. Because of the canon, many

women such as Emilia de Freitas remained almost unknown. Thanks to the effort of some

researchers, many works have been rescued, fact also approached in this dissertation. Her

central theme is the presence of tragic aspects in “A Rainha do Ignoto”, which main features

are: the superiority of the main character, the fatality and the paradox. This way, there is a

intention to present the permanence of the tragic in the modernity, although it is no more

presented in the models of classical tragedy.