resenha fundamentos da teologia prática

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Fundamentos da Teologia Prática, Júlio Zabatiero 1 Introdução Fundamentos da Teologia prática é o que o próprio nome já sugere: teologia em ação. A seu ver todo fazer teológico deve ser prático, ou seja, toda reflexão teológica tem como alvo missão: a ação cristã em resposta ao agir de Deus. Não é possível fazer teologia isolado das realidades da igreja, ela perde a sua essência, razão de ser, quando se torna um alvo em si mesma. Sem o adjetivo prática à teologia o fazer teológico perde sua finalidade: a Igreja. (cap. 1). Desenvolvimento do livro Teologia prática é a teologia da ação em discernimento. Isso significa que teologia prática pode ser caracterizada como a atividade reflexiva da ortopráxis. Segundo Zabatiero “compreender o discernimento como processo integrante da ação missional do povo de Deus é corresponder ao próprio discernir de Jesus Cristo” (pg.37). E isso se dá em basicamente três momentos: 1. Elaboração de conceitos (conhecendo a situação e a realidade); 2. Análise crítica de conhecimento e práticas; 3. Deliberações concretas para a ação cristã (cap. 2). O autor baseia seu livro em um estudo sobre as cartas do Apóstolo Paulo e, mais especificamente, na carta aos Colossenses. O efeito produzido por este pressuposto não poderia ser outro senão que Deus é o grande agente da missão o qual nos move para a ação cristã: “O ser humano não tem, por si só, energia para agir de conformidade com a vontade de Deus. Ser cristão é, nesse caso, depender de Deus para agir, e agir energizado pelo Espírito de Deus” (pg. 44). Qual então será nosso modelo de ação? O modelo é o Deus encarnado, Jesus Cristo. No fim do livro ele nos explica este porquê: “a partir do discernimento e seu exercício, constatamos que a primazia pertence a Jesus, o Messias, o Cristo. Ele é o exemplo cabal e perfeito da pessoa que pratica a vontade de Deus. Em sua completa humanidade, Jesus é a expressão mais adequada de como pode ser a vida humana em resposta ao amor, à vontade e ao agir de Deus” (pg.126). Zabatiero, a partir daí, formula quatro grandes doutrinas bíblicas sob sua proposta de uma teologia prática. A primeira delas é uma cristologia prática: o senhorio de Jesus. Nesse capítulo o autor delineia os atributos de Jesus Cristo na

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Resenha do livro Fundamentos da Teologia Prática de Júlio Zabatiero.

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Page 1: Resenha fundamentos da teologia prática

Fundamentos da Teologia Prática, Júlio Zabatiero 1

Introdução

Fundamentos da Teologia prática é o que o próprio nome já sugere: teologia

em ação. A seu ver todo fazer teológico deve ser prático, ou seja, toda reflexão

teológica tem como alvo missão: a ação cristã em resposta ao agir de Deus. Não é

possível fazer teologia isolado das realidades da igreja, ela perde a sua essência,

razão de ser, quando se torna um alvo em si mesma. Sem o adjetivo prática à

teologia o fazer teológico perde sua finalidade: a Igreja. (cap. 1).

Desenvolvimento do livro

Teologia prática é a teologia da ação em discernimento. Isso significa que

teologia prática pode ser caracterizada como a atividade reflexiva da ortopráxis.

Segundo Zabatiero “compreender o discernimento como processo integrante da

ação missional do povo de Deus é corresponder ao próprio discernir de Jesus

Cristo” (pg.37). E isso se dá em basicamente três momentos: 1. Elaboração de

conceitos (conhecendo a situação e a realidade); 2. Análise crítica de conhecimento

e práticas; 3. Deliberações concretas para a ação cristã (cap. 2).

O autor baseia seu livro em um estudo sobre as cartas do Apóstolo Paulo e,

mais especificamente, na carta aos Colossenses. O efeito produzido por este

pressuposto não poderia ser outro senão que Deus é o grande agente da missão o

qual nos move para a ação cristã: “O ser humano não tem, por si só, energia para

agir de conformidade com a vontade de Deus. Ser cristão é, nesse caso, depender

de Deus para agir, e agir energizado pelo Espírito de Deus” (pg. 44). Qual então

será nosso modelo de ação? O modelo é o Deus encarnado, Jesus Cristo. No fim do

livro ele nos explica este porquê:

“a partir do discernimento e seu exercício, constatamos que a primazia pertence a Jesus, o Messias, o Cristo. Ele é o exemplo cabal e perfeito da pessoa que pratica a vontade de Deus. Em sua completa humanidade, Jesus é a expressão mais adequada de como pode ser a vida humana em resposta ao amor, à vontade e ao agir de Deus” (pg.126).

Zabatiero, a partir daí, formula quatro grandes doutrinas bíblicas sob sua

proposta de uma teologia prática. A primeira delas é uma cristologia prática: o

senhorio de Jesus. Nesse capítulo o autor delineia os atributos de Jesus Cristo na

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Fundamentos da Teologia Prática, Júlio Zabatiero 2

intenção de torna-lo visível e possível para a igreja e o mundo. Ele afirma que o

Novo Testamento destaca a visibilidade da revelação de Deus nas ações de Jesus.

O Pai não apenas pode ser ouvido, como também visto e, em Cristo pode ser tocado

(cap. 3).

Seu segundo exemplo de doutrina sob o ponto de vista prático é a

soteriologia. Nesta seção ele desenvolve em linhas curtas qual é o projeto de vida

do salvo em Cristo Jesus. Gálatas, agora, é sua base referencial, pois vê o pecado

como escravidão e a conversão como liberdade. Porém esta escravidão e liberdade

não se restringe a esfera individual, pelo contrário, tanto a escravidão (pecado)

como a liberdade são sistemas que envolvem o indivíduo, o meio, a sociedade e o

cosmos todo (cap. 4).

Zabatiero propõe uma espiritualidade cristocêntrica. Ele parte de Colossenses

para demonstrar o equívoco de uma espiritualidade egocêntrica e narcisista,

reduzida àquilo que eu posso fazer para cumprir todas as obrigações da lei ou até

mesmo uma mística individualista e extática. Nosso autor propõe, então, uma

espiritualidade integral envolvendo nosso intelecto e ação bem como a vida

comunitária repensando nosso projeto de vida à luz dos valores “do alto”, Cl 3.1-4

(cap. 5).

Ainda lidando com espiritualidade, Zabatiero volta ao tema da comunhão ou

de uma vida em grupo apresentando-nos uma espiritualidade solidária. Esse termo

designa o nosso jeito de viver acolhedor; compadecendo-nos dos pecadores, sendo

solidário com os problemas universais, encarando os desafios da vida em comunhão

com Deus e uns com os outros (cap. 6).

No último capítulo do livro somos apresentados a missiologia integral paulina.

Como Paulo enxergava a missão da Igreja? E por incrível que pareça a resposta não

é das mais animadoras: sofrimento. Zabatiero trabalha como o sofrimento faz parte

da missão à medida que vislumbramos a sublimidade da glória vindoura e não como

sadismo ou coisa do gênero. Em suas palavras: “o ministério de toda igreja cristã é

uma oikodomia (escravo que administra os bens, especialmente na ausência do

dono), um serviço a ser realizado no mundo em cumprimento ao projeto salvífico de

Deus”. E, por fim, disserta sobre a missão que integra judeus e gentios, missão que

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Fundamentos da Teologia Prática, Júlio Zabatiero 3

integra a natureza criada, os poderes celestiais e sociais, todo o universo e o ser

humano como um todo (cap. 7).

Crítica

Eu acredito que a tese de Júlio Zabatiero é expressivamente pertinente para o

cenário teológico brasileiro. Estar sintonizado em como Deus tem agido na história e

como a Igreja tem participado junto a Deus em missão é uma opção teológica que

nos poupa especulações vazias e nos move para uma prática efetivamente

redentora a respeito da condição dos seres humanos e nosso estado como cidade,

país e mundo.

Em relação a sua teologia bíblica, o fato de Zabatiero escolher o Apóstolo

Paulo – o maior conceituador da fé no N.T. – como seu referencial de teologia

prática é de saltar os olhos. Foi a partir principalmente do estudo das cartas de

Paulo que nasceram eruditos teólogos que escreveram milhares de páginas, muitas

delas a quilômetros de distância de orientar uma ação concreta dos cristãos no

mundo. O livro, então, a meu ver é uma crítica a esse escolasticismo teológico que

vê o teólogo como aquele que se isola da comunidade e vive em meio a livros,

textos, computadores cujo alvo último de sua teologia não é orientar a ação da igreja

na sociedade, mas, especular.

Quanto aos seus pressupostos é notória a tradição reformada em Zabatiero

quando este afirma que não tem como fundamento da teologia prática a ação

humana, antes, a ação de Deus. Esse conceito teocêntrico da práxis cristã é

trabalhado em todo o livro feito com base na ação de Deus em Cristo. E a partir

desta ação iniciadora e energizadora de Deus, toda ação cristã é consequentemente

uma resposta a esse agir.

Além da tradição reformada (Soberania de Deus) o livro exibe a diversidade

de tendências teológicas do próprio autor e como ele as arrola ou critica sem,

contudo, colidí-las. As principais em minha leitura foram: 1. Ênfase evangélica das

Escrituras; 2. Missão Integral (FTL, Lausanne 1974); 3. Aspectos sociais práticos da

Teologia da Libertação (Libertação social, citação de católicos e protestantes); 4.

Movimento de Espiritualidade (Houston, Nouwen, Carmona, Barbosa).

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Fundamentos da Teologia Prática, Júlio Zabatiero 4

De fato, não conheço quais são os pressupostos de Zabatiero, mas

percebemos certa fusão de pressupostos. Creio que isso mostra maturidade na

teologia de Zabatiero. Um único apontamento a esse respeito que vale à pena

salientar é o amaziamento feito de autores/teólogos em oposição como Dunn e

Finney, Comblin e Houston, Gutiérrez e Guthrie e etc. Parece que Zabatiero faz isso

propositalmente para instigar a nossa reflexão e criar um diálogo entre as diversas

teologias.

Pensando na abrangência pública do livro é de reconhecer que o livro foi

escrito para um público seleto. Fundamentos da Teologia Prática para muita gente

pode não ser nem um pouco prático. Para um leitor iniciante em teologia da mesma

forma por desconhecer diversos temas e conceitos como escatologia, apocalíptica,

platonismo, epifanias, missiologia integral, espiritualidade entre outros termos

abstratos. Isso ao mesmo tempo enriquece a leitura, mas a torna de curto alcance. É

um livro que eu recomendaria para seminaristas, presbíteros, pastores ou em um

discipulado, mentoria, etc.

O livro embora não seja muito “público” é assaz atual. É um livro quase que

proeminentemente baseado em autores latino-americanos, o que o torna

significativo para a nossa realidade. Amplia nossa visão missionária para com a

criação (ecologia); adverte-nos a respeito da tendência espiritualista-individualista

contemporânea; abre os nossos olhos para a crise social latino-americana; resgata

os valores reformados da Soberania de Deus e a ênfase na Escritura; critica a onda

platônica-dualista medieval ainda existente; propõe Jesus como matriz única e

suficiente para reflexão teológica; liga à espiritualidade a ação; mostra-nos a

guinada da sociologia em detrimento da filosofia nos círculos teológicos, o que vejo

com muito entusiasmo.

Em termos de aplicabilidade, embora o livro seja intelectualmente para um

público seleto, eu com certeza o usaria para um discipulado cristão em minha igreja,

ele não deixa de ser aplicável embora seja de certa forma abstrato. É um livro texto

que lida com questões práticas de quem é responsável por pregar a palavra de Deus

com fidelidade. Todo estudante sério de teologia comprometido com a edificação do

Corpo de Cristo e com os sinais do Reino de Deus entre nós deve ler este livro.

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Fundamentos da Teologia Prática, Júlio Zabatiero 5

Conclusão

Com base nestes critérios fico feliz em perceber que a reflexão teológica de

Zabatiero compromete-se com a práxis da igreja no mundo. Eu acredito que o Brasil

evangélico, ainda que em sua minoria, tem entendido essa realidade. Fazer teologia

é raciocinar biblicamente para a Igreja pensando em como ela pode desenvolver seu

papel de glorificar a Deus enquanto transforma as realidades espirituais-sociais do

mundo sem Cristo. É bom ler que Deus não delegou essa missão apenas para nós,

pelo contrário, Deus é o missionário por excelência; cremos que ele realizará sua

obra a despeito da nossa infeliz negligência.

Termino com uma frase impactante do livro que tem muito a nos ensinar

como igreja em ação: “O segredo da espiritualidade não está no que fazemos, mas

no permitir que Deus seja a energia que nos capacita para agir”. A ele seja toda a

glória!