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Mutações no Direito Administrativo

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  • Nmero 2 junho/julho/agosto de 2005 Salvador Bahia Brasil

    MUTAES DO DIREITO ADMINISTRATIVO NOVAS CONSIDERAES

    (AVALIAO E CONTROLE DAS TRANSFORMAES)

    Prof. Diogo de Figueiredo Moreira Neto

    Doutor em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ps-graduado em Direito Administrativo pela

    Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da

    Universidade Cndido Mendes.

    I INTRODUO

    Por certo no remanescem dvidas sobre a existncia e a importncia do fenmeno que se revisita neste ensaio. inegvel que o direito administrativo no mais aquele que as vrias geraes de bacharis, e at mesmo, muitos das mais recentes, aprenderam nos bancos universitrios. H, indubitavelmente, um novo direito administrativo, que emergiu e ainda est se definindo no torvelinho das transformaes que continuam a surpreender-nos por serem incrivelmente cleres e profundas.

    Embora, com a mesma denominao, continue a ser, fundamentalmente, aquela disciplina que romagnosi e laferrire fundaram cientificamente, a que otto mayer, orlando e santi-romano conferiram magnfica estrutura sistemtica e que chegou aos anos de maturao silenciosa, em que despontaram as genialidades contemporneas de eduardo garca de enterra e de massimo severo giannini, ainda com as caractersticas doutrinrias quase originais, ela hoje uma disciplina jurdica muito mais extensa, complexa e importante do que o foi no passado.

    No curso de dois sculos de evoluo, o direito administrativo deixou de ser o ramo secundrio, acessrio e excepcional, derrogatrio do direito privado, para em poucas dcadas, parafraseando aqui a expresso de Enterra, amadurecer e anunciar sua presena, ascendendo em importncia no estado contemporneo, at ombrear-se com o milenar direito civil, hoje disposto como

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    um estatuto paralelo, afirmando-se como o direito comum das relaes das pessoas com o estado, neste compreendidos os seus desdobramentos, personalizados ou no, e os seus delegatrios de toda ordem.

    Essas mudanas, transformaes ou mutaes, qualquer que seja a denominao que se empreste ao fenmeno, foram detectadas por alguns autores de direito administrativo a partir do segundo ps-guerra, tratando-as, porm, eventual e fragmentariamente, mas o mrito de vir a estud-las integradamente, j com a preocupao cientfica de identificar-lhes as causas e definir-lhes as tendncias, coube, para nosso orgulho, destacada jurista brasileira odete medauar, que, em 1992, pioneiramente, publicou a obra direito administrativo em evoluo1.

    Seu inovador ensaio ecoava preocupaes que j as nutria no final da dcada anterior, com notvel antecipao sobre os mestres europeus, que viriam, nos anos seguintes, a se ocupar tambm do tema em obras que ganharam com justia bastante notoriedade, como, por exemplo, a do francs jacques chevalier2, em 1993, e a do italiano sandro amorosino3 em 1994.4

    Esquematicamente, pode-se estudar este fenmeno sob trs aspectos, embora de algum modo, reciprocamente interferentes: o sociolgico, o terico e o metodolgico.

    A abordagem sociolgica situa as transformaes do direito administrativo no contexto cultural das sociedades contemporneas, com suas razes fincadas na concepo ps-moderna do prprio homem diante do estado, o que revitaliza o discurso tico liberal e antropocntrico.

    Ainda que no se lhe confira a necessria profundidade, com a preocupao de no alongar o discurso de um ensaio que se pretende breve, essa viso essencial para entender como o curso dos acontecimentos histricos tem infludo sobre a vida em sociedade e as instituies do poder: a poltica e o direito.

    A abordagem terica, que segue a linha evolutiva da dogmtica jurdica sedimentada ao cabo de duzentos anos, procura identificar os institutos do sistema jurdico in fieri, que se vem estruturando sobre o declnio do dogmatismo jurdico positivista e refazendo conceitos bsicos tradicionais, tais como os de legalidade, imperatividade, supremacia do interesse pblico, insindicabilidade do mrito administrativo e vrios outros, que, como esses, resistiram intocados por muito mais de um sculo, para serem agora alterados com a introduo de novas e instigantes referncias, tais como as da

    1 So Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, com 2 edio, aumentada, em 2003. 2 Que organizou a obra Le Droit Administratif en Mutation (Paris, PUF). 3 Que organizou a obra Le transformazione dil diritto amministrativo (Milo, Giuffr). 4 A modesta coletnea de minha lavra, Mutaes do Direito Administrativo, somente

    viria luz em 2000 (Rio de Janeiro, Editora Renovar, com 2 edio no ano seguinte).

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    legitimidade, da licitude (moralidade), da consensualidade e da confiana legtima, entre outras, voltadas ao balizamento do agir do estado.

    A abordagem metodolgica se concentra nas mudanas ocorridas nos relacionamentos entre o estado e os administrados, caracterizando-se pelo estudo das aberturas formais, tais como a publicidade obrigatria dos atos do poder pblico, os institutos de participao do administrado, notadamente no controle de seus atos, a processualidade administrativa, que torna seguro esses relacionamentos e outros institutos do mesmo jaez.

    Este discurso, como se indicar a seguir, procurar no se cingir exclusivamente a nenhuma dessas abordagens, mas combin-las, visando a oferecer um panorama diversificado sobre o tema, de modo a fundamentar satisfatoriamente a concluso pretendida.

    Essa concluso, antecipada em rpidos traos, sustenta que esses estudos voltados s transformaes ou mutaes de certos fenmenos sociais, so e sero, cada vez mais importantes para, pouco a pouco, possibilitarem a superao do acaso e o desenvolvimento crtico das cincias.

    No caso do direito administrativo, esses estudos contribuiro para que no seu desenvolvimento mais se limite ao acompanhar os acontecimentos apenas para acudir e prover a posteriori as solues demandadas, mas, dando um passo adiante, para que se criem as condies de pesquisa prospectiva, cada vez mais necessria para a conduo do o desenvolvimento cientfico pela previso dos problemas, que se esboam na evoluo das tendncias identificadas, de modo a que se possa antecipar as solues institucionais pela orientao de seu prprio progresso, de forma criativa, ordeira e disciplinada.

    II - METODOLOGIA DA EXPOSIO

    O estudo de tendncias nos vrios ramos do conhecimento se firmou com a introduo da avaliao tecnolgica, a partir da dcada de sessenta do sculo passado, surgida com a finalidade de acompanhar o progresso das pesquisas e das invenes delas decorrentes, de modo a se prever at que ponto elas concorrem para o atendimento de aspiraes sociais ou, inversamente, at que ponto as prejudicam.5

    So recordadas, por isso, algumas noes sociolgicas propeduticas sobre esse complexo contexto em que operam essas transformaes, envolvendo basicamente a sociedade, o estado e o direito, aproveitando como discurso de exemplo paradigmal o histrico das mutaes tecnolgicas, por serem essas por mais tempo estudadas, mais visveis e por serem

    5 Na dcada de setenta surgiram muitas obras sob esta perspectiva, destacando-se aqui, para aprofundamento, a publicada pela OECD, em Paris, no ano de 1973, sob o ttulo Society and the Assessment of Technology, de FRANOIS HETMAN.

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    responsveis por profundos e duradouros impactos na convivncia e no progresso da humanidade.

    Adotar-se- tambm, como concepo central das transformaes ou das mutaes a serem estudadas, as mudanas crticas relevantes porque passam ou possam passar os trs referidos elementos propeduticos a sociedade, o estado e o direito aceitando como conceito de crise aquela situao em que uma instituio existente perde vigncia por no mais atender ao que dela se espera, possibilitando o surgimento de uma nova, mais apta a preencher as necessidades sem respostas: portanto, uma situao de perigo que desperta a inventividade.

    O ensaio se completa com a classificao e o exame de alguns vetores das mudanas em curso, que serviro para lastrear algumas breves concluses sobre essa mutao crtica de segundo grau, que aqui mais interessa sublinhar, que a atua sobre a prpria concepo que se tem do progresso e do desenvolvimento.

    III - SOCIEDADE, DIREITO E ESTADO FENMENOS INTERFERENTES

    So elementos propeduticos do discurso sociolgico: o poder, a segurana, a ordem, o direito e a organizao poltica, esta ltima, entrelaando-os e dirigindo-os a resultados pretendidos.

    A Histria do desenvolvimento social a Histria do poder, um atributo da vontade, conatural ao homem, fenmeno original das sociedades e vetor da socializao.

    Porque existe o poder, emerge, em contrapartida, a permanente necessidade de segurana individual ou coletiva na convivncia psicolgica com o meio humano, ou seja, na convivncia entre as pessoas, o que se torna tanto ou mais essencial quanto a segurana na convivncia fsica com o meio ambiente.

    Ora, para que se alcance um nvel aceitvel de segurana na vida social, necessrio previsibilidade do curso dos acontecimentos, seguindo-se, assim, o conceito objetivo de ordem, como a disposio espontnea que evolui no meio social para nele organizar os fenmenos do poder, de modo a assegurar um razovel nvel de previsibilidade dos comportamentos individuais e coletivos.

    Mas, desde cedo, a Histria demonstra a insuficincia da ordem, enquanto disposio espontnea, e a necessidade de estabelecer-se uma ordem artificialmente criada, dotada de autoridade e de imposio coativa em todo o meio social. Cria-se assim o Direito, como essa expresso cultural, desenvolvida a partir do ethos prprio dos grupos humanos superiormente evoludos, para proporcionar os fundamentos de ordem e de segurana nas

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    relaes humanas, que se sintetizam, a partir de seu aparecimento, no conceito de ordem jurdica.

    Esse novo tipo de ordem, possibilita, por sua vez, o surgimento de um outro tipo de ordem superior discilinadora dos fenmenos do poder - a organizao poltica que, em sua culminao histrica, produziu a modalidade institucional do Estado: o fenmeno poltico que atingiu o mais completo desenvolvimento, postando-se ao centro do discurso juspoltico.

    O dado novo, ao cabo dessa evoluo da organizao poltica, que o Estado passa a ser no apenas produto de uma ordem jurdica, como toma a sim a funo de, ele prprio, produzir e assegurar a ordem por ele criada.

    Em conseqncia, Estado e Direito passam a ser um binmio, duas realidades reciprocamente causais: o Estado cada vez um Estado de Direito e o Direito cada vez mais a essncia do Estado, como inexcedivelmente ensinado na conhecida sntese de NORBERTO BOBBIO.

    A partir dos conceitos desses megafenmenos interferentes, que se apresentam com recproca causalidade, torna-se possvel, perscrutando sua ntima e complexa interao, analisar as transformaes ocorridas na Histria prxima, para nela estreitar o foco no Direito Pblico e neste, no Direito Administrativo.

    IV - TRANSFORMAES EM CURSO NA SOCIEDADE

    Do panorama sociolgico passa-se ao histrico, para destacar, a partir do exemplo do progresso cientfico-tecnolgico, uma compreenso de como, nessa perspectiva, se processam as transformaes, considerando o impacto de um avano qualquer sobre o subseqente e, assim, o papel do acaso espontneo e o da pesquisa induzida no desenvolvimento.

    Trs so os fenmenos bsicos tomados como referncias dessas transformaes:

    1 - o fenmeno histrico da acelerao do progresso;

    2 - o fenmeno histrico da revoluo cientfico-tencolgica; e

    3 - o fenmeno histrico da revoluo das comunicaes e do surgimento da Era da Informao.

    Quanto ao primeiro fenmeno, no curso da Pr-histria e da Histria, observa-se que o progresso comea muito lento e sempre o acaso que determina os avanos.

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    Com efeito, entre os primeiros registros da presena dos homindeos sobre a terra, que remontam a 4.500.000 AC, at a descoberta do fogo, provavelmente cerca de 450.000 AC, mediaram mais de 4.000.000 de anos.

    Da descoberta do fogo ao seguinte grande avano tecnolgico, a prtica da agricultura e da criao de animais, que possibilitou o sedentarismo, com o estabelecimento dos grupos nmades em terras frteis, e, da, a existncia de vilas e, depois, das primeiras cidades, passaram-se mais 440.000 anos, ou seja, um lapso de tempo dez vezes menor entre um e outro avano.

    Da agricultura at a descoberta da tecnologia do cobre e o incio da Era que levou seu nome, foram mais 4.000 anos; at a Era do bronze, mais 2.000 anos; e at a inveno da clepsidra, que permitiu a medio do tempo, transcorreram mais 1.600 anos.

    Como se observa, os imensos lapsos de tempo entre os grandes avanos desde a Pr-histria, passando pela Antigidade, se vo reduzindo progressivamente, at que, a partir do Sculo X da Era Crist, poca em que a Civilizao ocidental passou a contar com a inveno da numerao, desenvolvida na ndia, com a do papel, na China, e com a redescoberta da riqueza do pensamento grego, trazidas todas pelos rabes e divulgadas pelas proto-universidades criadas na Pennsula Ibrica, dispuseram-se as condies para mais uma importante etapa da acelerao do progresso: a proporcionada pelo Renascimento.

    Mas de se notar que, at ento, o avano da cincia e da tecnologia ainda dependiam quase que exclusivamente do acaso. Seria necessrio uma derradeira superao desse constrangimento, para que o avano se tornasse rotineiro, como fruto da aplicao do esprito humano na pesquisa; faltava mais um passo, que seria a introduo de um avano metodolgico, o que finalmente ocorreria com a Revoluo Cientfico-Tecnolgica.

    Pode-se remontar o seu incio ao final do sculo VIII, com a inveno da mquina a vapor, ganhando paulatina acelerao durante o sculo XIX, para alcanar uma inimaginvel velocidade no sculo XX, quando praticamente se anulou, em termos histricos, a distncia entre a pesquisa, o invento e a aplicao de uma nova tcnica e, em conseqncia, o tempo preciso para produzir impacto sobre a vida humana.

    Com efeito, introduzida a rotina da pesquisa cientfica e tecnolgica, o progresso deixava de vir ao acaso, mas seria planejado e induzido, de modo que, a partir de ento, as descobertas comearam a se incorporar cada vez mais rapidamente ao quotidiano, passando a alterar profundamente a vida em sociedade em ritmo mais rpido do que era possvel ordenar os seus efeitos e evitar os inconvenientes colaterais que escapam s previses ordinrias.

    Por evidente, como essas mudanas no so nem esto sendo objeto de qualquer sistema regular de previso, disso resulta que o progresso social

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    passou, cada vez mais, a carecer de respostas preventivas e atempadas por parte ordem jurdica, voltadas a evitar ou a minimizar os efeitos indesejveis que ele possa produzir sobre a convivncia humana.

    Exemplos desse outro tipo de defasagem - a que se d entre a velocidade das transformaes sociais resultantes do progresso cientfico e tecnolgico e a da adaptao dos institutos jurdicos, que devem assegurar a manuteno da supremacia dos valores e da ordem deles decorrente - passaram a se multiplicar na vida contempornea e, por isso, a deixar mais evidente que o Estado, como instrumento da sociedade, cada vez mais falha na preveno e superao das crises, tornando os pases e o mundo mais inseguros.

    Como culminncia dessa crise, e, destacadamente, como subproduto da Revoluo Cientfico-teconolgica, irrompe em meados do sculo XX, a Revoluo das Comunicaes, inaugurando o que MANUEL CASTELLS batizou em sua festejada trilogia como a Era da Informao.

    Com ela, os impactos sobre a vida humana se aceleraram a nveis jamais sonhados: surge a aldeia global; d-se a integrao da civilizao pela grande rede mundial da informtica; reduzem-se as distncias fsicas, ao alcance da velocidade do pensamento... mas, em compensao, cada vez maior a busca da identidade ameaada e a ecloso de conflitos, para os quais inexistem pois sequer foram pensados metodicamente os instrumentos preventivos de uma ordem mundial, que se vem fazendo cada vez mais necessria.

    Como seria de se esperar, essa formidvel difuso da informao possibilitou uma real difuso do poder, (lembrvel sempre a advertncia de FRANCIS BACON, de que conhecimento poder), multiplicando-se as poliarquias nas sociedades do planeta, uma indissocivel e inevitvel conseqncia das demandas democrticas de populaes cada vez mais politicamente conscientes.

    Nem por outra razo, findos os holocaustos blicos, ergue-se auspiciosamente, no segundo Ps-guerra, uma onda planetria de afirmao da dignidade humana, como reao longa dominao do Estado sobre a sociedade.

    Abre-se esta poca, que se poderia definir como uma Idade da Democracia, afirmando-se simbolicamente com a queda do muro de Berlim e se expressando pelo progressivo isolamento das ditaduras, pela crtica s formas autocrticas e concentradoras de poder e por um insopitvel anseio de participao difcil de ser ignorado por parte das estruturas polticas tradicionais que haviam sido desenvolvidas sob as premissas do estatismo e das ideologias estatizantes, que dominaram a primeira metade do sculo XX.

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    Para efeito do presente estudo, essa nova situao se caracteriza, entre outros, pelos seguintes fenmenos, aqui apenas alinhados por convenincia expositiva:

    1 - conscincia dos prprios interesses; 2 - maior nitidez dos valores; 3 - globalizao (nela includos os interesses e os valores); 4 - pluralizao e crescimento das demandas; 5 - desenvolvimento do conceito de interesses transindividuais; 6 - surgimento do pblico no estatal; e 7 - reivindicao de maior participao

    V - O QUE VEM MUDANDO NO ESTADO

    Expostos alguns dos vetores das mudanas da sociedade de nossos dias, observe-se agora o que, em razo delas, as sociedades passaram a exigir dos respectivos Estados.

    Desde logo, sobressai a demanda por eficincia uma bvia conseqncia da pluralizao e da maior nitidez das demandas, potenciada, por sua vez, pelo efeito demonstrao das comunicaes. Em sntese, no mais basta o simples desempenho dos entes e rgos pblicos (eficcia), para ser exigido o bom desempenho (eficincia), aquele que leva satisfao dos usurios dessas atividades.

    Em conseqncia, surge a demanda por subsidiariedade, ou seja, passa a ser necessrio que o atendimento prestado pelo Estado, seja atribudo racionalmente aos entes ou rgos mais aptos a atuar com racionalidade, presteza e proximidade, sendo que esta desejvel sempre que possvel.

    A subsidiariedade desempenha um papel at certo ponto paradoxal, pois, de um lado, leva criao de blocos de Estados, capazes de atuar com mais poder e maior competitividade na rbita externa, mas, de outro lado, provoca a reduo de poderes de rgos de maior envergadura poltica em benefcio das reivindicaes de autonomia das unidades intermdias e das comunas, na rbita interna.

    Para sublinhar a referida intercausalidade, cite-se ainda a demanda por democracia substantiva, que reivindica o incremento do dilogo e da participao, visando sobretudo criao e aplicao do direito, forando a abertura dos processos decisrios e a instituio de instrumentos polticos e administrativos de interao de vrios tipos e em vrios nveis polticos e administrativos.

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    Esses e outros dados so os que levam assim denominada crise do modelo de Estado, multiplicando-se as demandas de reformas e de redimensionamentos juspolticos para adequ-lo s novas circunstncias, que se sucedem e que deve enfrentar.

    Historicamente, considerando as recentes passagens do modelo liberal ao do bem-estar e, ainda, ao socialista e, mais proximamente, destes ao atual modelo do Estado Democrtico e Social de Direito, tudo indica que esse ciclo de mudanas na instituio estatal ainda no se fechou, mas j parece certo que o sdito se tornou cidado e o Estado, seu instrumento.

    Por derradeiro, duas observaes se acrescem ao cabo desta apreciao sobre as transformaes do Estado.

    A primeira, aponta o declnio do tradicional Estado-Nao, com a desmonopolizao do poder, que lhe era generosamente atribudo pelas sociedades, e o empalidecimento do conceito bodiniano de soberania, com a pluralizao das fontes do Direito e a formao de novas organizaes polticas extra e supra-nacionais.

    A segunda observao a constatao de que o sculo XX atingiu e marcou o apogeu do poder estatal e da submisso da sociedade e o incio de uma busca de profcuo reequilbrio entre esses dois protagonistas Estado e sociedade.

    VI - O QUE VEM MUDANDO NO DIREITO

    Como, j se sublinhou, Estado e Direito so fenmenos reciprocamente interferentes e reciprocamente causais, de modo que as alteraes do primeiro provocam mudanas no universo jurdico, sendo de se destacar os seguintes quatro aspectos: o enriquecimento tico do Direito; a perda de expresso do direito positivo; a emergncia de uma principiologia dotada de eficcia; e a afirmao do constitucionalismo, como fonte direta de direito.

    Na raiz dessas tendncias, registra-se o ocaso do sonho positivista, a quimera de um Direito puro, assptico, sem transcendncia. Em seu lugar, o novo Direito volta a ampliar seus fundamentos filosficos e a abeberar-se na metodologia das Cincias, especialmente na Epistemologia crtica, desvendando um amplo universo de possibilidades para que os seus formuladores e no apenas estes, como os seus aplicadores atinjam, cada vez mais e melhor, os ideais de segurana e de justia.

    Nesse caminho, destaque-se exemplarmente o vigor do magistrio transformador de um KARL LARENZ, como o fez desde o prefcio de 1960 sua Metodologia, s suas profcuas lies na ctedra da Universidade de Munique, em que lanava o desafio ao estudante de optar entre a enganosa facilidade do rechao do novo e a perplexidade estimulante de aceitar uma

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    compreenso imperfeita, mas que tinha a imensa potencialidade de amadurecer, como de fato ocorreu.

    Com essas e outras decisivas contribuies, tanto na tradio doutrinria romano-germnica, como na anglo-saxnica, ficava desanuviado o horizonte dogmtico para a o brilho da alvorada de uma nova tica do poder, marcando a transio de um Direito do Estado sobre o Homem, para um Direito do Homem no Estado.

    Juridiciza-se o conceito de Estado-instrumento, como contribuio compensatria das duras lies polticas sobre a insuficincia da legalidade estrita na conceituao da juridicidade e da passagem da referncia jurdica da lei ao Direito.

    Assim ocorreu a entronizao da legitimidade como elemento referencial integrante da juridicidade, como brilhantemente vem exposto em livro de PAULO OTERO, culto autor de expresso portuguesa, sob o ttulo suficientemente explicativo de Legalidade e Administrao Pblica O sentido da vinculao administrativa juridicidade.6

    Mas um segundo aprofundamento tico do Direito ainda sobreviria, para fechar o sculo XX, com a revivescncia do conceito de licitude com relao atuao do Estado - o vis da moralidade, a somar-se aos dois outros elementos, a legalidade e a legitimidade, para integrar a idia de juridicidade, rejuvenescendo o velho, tormentoso, mas fascinante debate sobre as relaes entre moral e direito.

    Portanto, constatada a impossibilidade de uma cincia jurdica assptica e geomtrica, erguida apenas sobre uma dogmtica de conceitos e expressa por uma infinidade de preceitos, embora cada vez mais desgastados por uma persistente inflao legislativa, pelas disfunes de linguagem, pelo distanciamento dos legisladores e pela banalizao do descumprimento, tantas vezes sem alternativa, tornou-se fatal a perda de unidade e de coerncia entre as fontes e a superposio de ordenamentos concorrentes de diversos tipos, apressando-se, com isso, o esgotamento do positivismo e a abertura de espao para um ressurgimento impetuoso dos valores no Direito.

    Recolheram-se as velhas lies de flexibilidade e de adaptao, prprias da common law, para a recriao de um Direito no mais apenas obra de legisladores, olmpicos e distantes, mas tambm a de juzes e de juristas, de operadores do Direito, no dia a dia de sua interpretao e aplicao.

    D-se ento uma parcial regresso a um Direito tambm jurisprudencial, com reminiscncias do pr-moderno, marcado pelo colapso da capacidade reguladora exclusiva das lei e a revivescncia do papel integrativo dos operadores - o juristenrecht, do qual, na atualidade, o mais eloqente

    6 Porto, Editora Almedina, 2003.

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    exemplo, a criativa jurisprudncia desenvolvida pelo Tribunal Europeu das Comunidades.

    Comenta, por isso, o atento jurista italiano, LUIGI FERRAJOLI: Assim a racionalidade da lei, que Hobbes havia contraposto juris prudentia ou sabedoria dos juzes desordenados do velho direito comum, foi dissolvida por uma legislao obra de legisladores ainda mais desordenados....7

    Tudo, portanto, com ganho de proximidade, de preciso e de justia, mas com perda de certeza e de segurana jurdica a serem reconquistadas nesse novo contexto pela preparao de geraes de profissionais de Direito para tarefas muito mais demandantes que as que enfrentavam no passado recente.

    Como conseqncia, reintroduz-se no Direito o patamar dos princpios, que passam a ser entendidos no apenas como expresso de ncleos de valor ou de referncias doutrinrias integrativas, mas como normas dotadas de eficcia prpria, aptas a operarem de vrios modos os seus efeito.s

    Entre outros benficos resultados de sua reentronizao, os princpios proporcionaram o rpido desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, erguida sobre a noo transcendental da dignidade da pessoa, incorporada noo jurdica de cidadania e, desse modo, contribuindo decisivamente para que o Direito Pblico deixasse de ser apenas um Direito do Estado para ser primacialmente um Direito do Cidado.

    Por derradeiro, mas no sem menor importncia, a mutao alcana as Constituies, que passam a desempenhar um novo papel, qual seja o de oferecer a superior referncia positiva de princpios fundamentais, aos quais se vo acrescentando princpios gerais e at setoriais, para vrios ramos do Direito, tais como, e.g., os da Constituio Econmica, da Constituio Cidad, da Constituio Social, de um proto-estatuto para o Servidor Pblico e outro, para Magistratura, e at de um, para os servios pblicos, que atraem a si a referncia aplicativa do Direito e possibilitam a sua aplicao direta, rompendo a metodologia geomtrica da pirmide normativa kelseniana.

    Enfim: est encetada a marcha, aparentemente irreversvel, da constitucionalizao do Direito, desvendando ricos desdobramentos aplicativos da Lei Maior a serem garimpados e ainda por serem desenvolvidos: um fenmeno sobre o qual muito j se tem escrito ultimamente sob a designao de neo-constitucionalismo.

    Com a ampliao da cidadania, dilargam-se tambm os espaos de autonomia normativa, que se combina de vrias formas com os institutos tradicionais da tradio heteronmica no Direito Pblico, transfundindo-se em

    7 Nuevos tiempos para el constitucionalismo, in Neoconstitucionalismo. Edio de

    Miguel Carbonell, Madri, Editorial Trotta, 2003, pg. 20.

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    novas dimenses constitucionais para as funes do Estado, no mais confinadas trilogia clssica.

    VII - MUTAES NO DIREITO ADMINISTRATIVO

    As transformaes no Direito Administratrivo, uma Cincia jovem, com pouco mais de duzentos anos, tanto quanto as dos demais ramos do Conhecimento, como se exps na introduo deste ensaio, comeam com lentido e ganham impulso medida em que superam a inrcia e o conservadorismo, que opem resistncia s mudanas, e desenvolvem uma metodologia prpria para absorv-las e at mesmo, em uma segunda etapa, para desenvolv-las controladamente.

    Assim, lentas no seu primeiro sculo, as transformaes no Direito Administrativo tambm comeam a ganhar impulso na primeira metade do sculo XX e, tanto quanto a Cincia do Direito e as Cincias em geral, ganharam uma vertiginosa velocidade a partir do final da Segunda Guerra Mundial, o que torna, por vezes, quase impossvel at mesmo acompanh-las todas satisfatoriamente.

    Seguem-se, portanto, algumas notas, limitadas apenas a dois importantes vetores de mudana, destacados desta ltima fase: a emergncia do Estado Democrtico de Direito e a modernizao da Administrao Pblica.

    Quanto ao Estado Democrtico de Direito, passa a ser este o novo dado juspoltico com vocao ecumnica a ser considerado: no mais basta que o Estado se submeta ao Direito conformado pelas leis, que seu prprio produto; necessrio que estas leis se submetam ao Direito, que produto da sociedade.

    Por outro lado, o grande objetivo a que passa a servir o aparato estatal a atualizao da atividade de administrao pblica, na linha dos princpios liberais e democrticos revividos, recuperando o atraso que apresentava, no particular, em relao s suas atividades estatais coirms, de legislao e de jurisdio, com a finalidade de levar eficincia de desempenho, sem incorrer em deficincia de juridicidade.

    Para que se logre alcanar esses complexos patamares em que se conjugam eficincia e juridicidade, o Direito Administrativo precisou varrer os focos de atraso acumulados, que eram, em lista incompleta:

    1 a imperatividade sem limites, outrance;

    2 a intangibilidade de atos polticos da Administrao Pblica;

    3 a insindicabilidade da discricionariedade administrativa;

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    4 a excluso do administrado das decises, inclusive por deficincias processuais; e

    5 a persistncia mtica do conceitos de razes de Estado e de supremacia do interesse pblico.

    Vrios temperamentos foram necessrios para superar esses cinco pontos crticos (oferecidos tambm em lista exemplificativa):

    1 a introduo da consensualidade sempre que possvel;

    2 a submisso jurdica ao controle de qualquer ato da Administrao Pblica;

    3 os controles de realidade e de razoabilidade do ato discricionrio;

    4 as garantias de crescente participao do administrado; e

    5 a afirmao da supremacia dos direitos fundamentais, notadamente do megaprincpio da dignidade da pessoa humana.

    Outros vetores podem ainda ser acrescentados a este quadro, tais como a multiplicao dos aportes tcnicos da Cincia da Administrao, da Economia e da Sociologia, bem como os de inmeros outros ramos do Conhecimento, exigindo necessrias e permanentes filtragens para que ingressem solidamente na ordem jurdica, o que a torna cada vez mais complexa, especializada e exigente em termos de interpretao.

    So princpios elementares dessa filtragem autopoitica aqueles que mais eloqentemente exprimem as novas exigncias cidads, destacadamente os da eficincia, da transparncia (melhor dito, da visibilidade) e da participao.

    Primo, na linha da eficincia, o conceito de administrao por objetivos passa a ser mais bem atendido com a aplicao de novas tcnicas de descentralizao e de delegao, especialmente a de deslegalizao, que contribui para a existncia de regramentos mais flexveis e adequados aos fenmenos setoriais a que se dirigem.

    Ainda na linha da eficincia, atende-se ao conceito de desburocratizao com a distino entre deciso poltico-administrativa e deciso tcnica

    Secundo: na linha da transparncia, sobressai o avano da processualidade administrativa, inclusive da admisso da processualidade aberta, em hipteses de interesses difusos, interesses coletivos ou mesmo de interesses individuais homogneos, que possibilitam a abertura de processos administrativos a um atendimento mais amplo e mais clere dos administrados.

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    Tertio: na linha da participao e da consensualidade, destaca-se o desenvolvimento da negociao referida ao atendimento do prprio interesse pblico, o que possibilita aperfeioar-se a sua satisfao alm e melhor do que o previsto nos preceitos.

    Essa negociao da execuo do interesse pblico tanto pode ser substantiva como modal, dependendo do tipo de abertura legal que a suporte, comportando, ainda, modalidades individuais ou coletivas, neste caso, com a possibilidade de abertura para a variedade atualssima da normatividade substitutiva (os acordos substitutivos).

    Ainda na linha da participao, assume magna importncia o papel reservado s funes essenciais justia na promoo e cura dos distintos interesses da sociedade a elas cometidos, que so, fundamentalmente, alm dos interesses dos particulares, cometidos advocacia privada, os interesses indisponveis, os interesses pblicos e os interesses dos hipossuficientes, cometidos aos trs ramos da advocacia pblica, respectivamente: aos membros do ministrio pblico, procuradores estatais e defensores pblicos.

    Trata-se, em suma da releitura cidad dessas trs funes estatais acima referidas, na qual se reafirma que aqueles interesses no so exclusividade de nenhuma expresso, seja funcional ou orgnica, do Poder do Estado, mas que todas elas concorrem, em seus respectivos campos, mesmo com alguma superposio, para promov-los, ampar-los e defend-los, pois a afirmao de superiores interesses da cidadania se sobrepe a feudos e a formas.

    VIII. CONCLUSES

    As mutaes do Direito Administrativo obedecem a necessidades, alm das teorias e das doutrinas polticas e jurdicas que procuram explic-las: trata-se, antes de mais nada, de um sistema de ordem destinado atender s necessidades prticas da poca.

    Ora, como uma das necessidades mais em destaque em nossos tempos tem sido a de que essa ordem venha impregnada de valores ticos, hoje, mais do que nunca, as mutaes seguem tambm busca da legitimao.

    Como o atendimento de necessidades o mbil da busca do Conhecimento, seja emprico, cientfico ou filosfico, h que descobrir-se a melhor maneira de realiz-lo, da o desenvolvimento de tcnicas de toda natureza, inclusive de tcnicas sociais, dentre as quais o Direito a mais importante.

    Todavia, no passado, essa busca se processava aleatoriamente, isolada, rarefeita e dificilmente concentrada em termos de meios e de objetivos, de modo que os avanos assim mesmo alcanados se deviam mais ao acaso

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    que aplicao em encontrar essas respostas para as indagaes e solues para os problemas.

    Ora, como se exps, durante toda a Histria foi muito lenta a passagem de uma tecnologia rotineira para uma rotina tecnolgica, ou seja: da repetio de antigas solues experimentao de novas solues.

    A diferena crucial entre ambas est em que a rotina da repetio s podia ser alterada pelo acaso, enquanto que a rotina da experimentao, uma vez introduzida, alterou o modo pelo qual os homens satisfazem suas necessidades desde as mais elementares, como alimentao, abrigo e defesa, at as mais sofisticadas, como essa de que aqui se cogita, que a necessidade derivada de as sociedades se prevenirem diante da possibilidade de eclodirem novas necessidades.

    Assim, estudo prospectivo, experincia e pesquisa, so as atividades derivadas, que a humanidade desenvolve ao atinar que a preveno sempre soluo melhor que a correo, da a necessidade de o progresso passar a incorporar essas atividades, vocacionadas ao atendimento daquelas necessidades de segundo grau.

    Mas, no Direito, a prospeco cientfica, primeiramente, no era conhecida e, depois, no foi reconhecida. Enquanto nas disciplinas da natureza logo se assentou a necessidade de antecipar-se aos problemas, a Cincia do Direito, como tradio, se mantinha reativa, mais voltada ao passado, ou seja, aguardando a ecloso das crises para s ento desenvolver solues.

    A mudana de atitude s viria com as primeiras tentativas de induo de condutas pelo Direito Pblico, no sculo XIX; a princpio, timidamente, de modo quase exclusivamente indicativo, praticamente restrito a enunciar princpios e regras programticas, para, somente pouco a pouco serem expressos em institutos preventivos e de fomento pblico que pudessem ser imediatamente eficazes.

    Hoje, os conceitos de previso e de preveno encontram-se incorporados ao dia-a-dia do Direito Pblico e, at mesmo, j abundantemente empregado no Direito Tributrio, com a finalidade de estimular condutas no apenas para atender a necessidades atuais, como para poder atender a futuras necessidades, estas, por certo, desde que razoavelmente previsveis.

    Mas h muito ainda o que fazer para explorar amplamente este veio promissor, e no apenas na atividade de fomento pblico, mas tambm nas de polcia, de servios pblicos, de ordenamento econmico e de ordenamento social, pois em todas elas se pode produzir frutuosos exerccios de prospectiva cientfica, para definir tendncias, uma tarefa cada vez mais fcil nesta era em que as informaes abundam sobre praticamente qualquer setor da atividade humana.

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    Esse trabalho prospectivo mais fcil e estimulante se apresenta, ao se considerar a inevitvel internacionalizao da administrao pblica e do Direito Administrativo, sobre o que AGUSTN GORDILLO tem dado seu depoimento, fato que propicia no apenas maior riqueza de elementos comparveis, at mesmo para a conformao de um banco de dados sobre tendncias, como a possibilidade de permanente acompanhamento das experincias e dos trabalhos prospectivos desenvolvidos em outros pases.

    Outro argumento que concorre para estimular-se a prospeco cientfica no campo do Direito Administrativo vem a ser a despolitizao paulatina da atividade estatal de administrao pblica.

    Com efeito, com a separao, cada vez mais ntida, entre, de um lado, a atividade de planejamento, formulao e conduo de polticas e, de outro, a de gerenciamento da execuo dessas polticas, possibilita-se a reduo das interferncias daquela atividade, por natureza conflituosa e de corte voluntarista (poltica), sobre a outra distinta atividade, por natureza regrada e predominantemente tcnica (administrativa), embora se tenham mantido ambas, por tradio, no mbito do, assim denominado, tambm tradicionalmente, de Poder Executivo, muito embora, na prtica, sua mais importante funo no seja a administrativa, mas a poltica: a de governo.

    No se imagine, porm, como alguns observadores propalaram, que essa dicotomia de funes, ao produzir adiante uma clivagem mais ntida entre Governo e Administrao, como alis j se mostra mais evidente nos pases de regime parlamentarista, levar ao amesquinhamento do campo e da importncia do Direito Administrativo.

    A tendncia exatamente a contrria a esse equivocado anncio, alis, bem mais jornalstico do que cientfico, como concorrem em confirmao respeitados autores, que se debruaram sobre essas idias, para criticar essa propalada tendncia de fuga para o Direito Privado ou de anunciada retrao do Direito Administrativo 8, como quer que se denomine essa concluso aligeramente extrada como uma conseqncia das privatizaes ocorridas nas ltimas dcadas.

    A realidade bem outra, pois jamais o Direito Administrativo enriqueceu-se tanto, ampliou-se tanto e diversificou-se tanto, quanto nestas ltimas dcadas, sob o benfico influxo das mutaes, aqui revisitadas.

    Tal afirmao j era concluso de nossa autora pioneira, ODETE MEDAUAR, como se depreende do que averbou em consideraes escritas em 1990, portanto, quando estava em preparo a primeira edio de sua obra, nas concluses lidas em seu Captulo 8 (item 9. p. 267 e ss.)9:

    8 Como exemplos, o francs Jean Bernard Auby e o italiano Marco dAlberti. 9 Obra citada na Nota 2, supra, pgina 267/268.

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    O administrativista contemporneo tem conscincia da diversificao e capilaridade das funes do Estado atual, realizadas, em grande parte, pela atuao da Administrao Pblica. Por conseguinte, o direito administrativo, alm da finalidade de limite ao poder e garantia dos direitos individuais ante o poder, deve preocupar-se em elaborar frmulas para a efetivao dos direitos sociais e econmicos, de direitos coletivos e difusos, que exigem prestaes positivas. O direito administrativo tem papel de relevo no desafio de uma nova sociedade em constante mudana. A transformao sociopoltica propcia mudana de contedo e de forma do direito administrativo para que se torne mais acessvel nos seus enunciados, para traduza vnculos mais equilibrados entre Estado e sociedade, para que priorize o administrado, isolado ou em grupos, e no a autoridade. O enfoque evolutivo do direito administrativo significa, sobretudo, o intuito de seu aprimoramento como tcnica do justo e, por isso, da paz social. (n/ grifos)

    Esta observvel ascenso do Direito Administrativo e a sua projeo natural como um dos mais importantes instrumentos da ordem jurdica do nosso e de qualquer outro pas, assim como, do mesmo modo e at com maior clareza, de qualquer bloco poltico de pases, em que impere o conceito de Estado Democrtico de Direito, mais se consolidar e, em conseqncia, ainda mais antecipativas sero as palavras acima recolhidas, medida em que as suas transformaes levem adiante um contnuo aperfeioamento institucional. No mais, porm, se dando apenas de forma reativa, como fruto de acaso histrico ou da eventual vontade poltica deste ou daquele governo de planto, mas de forma metdica, criativa e preventiva, voltada previso de necessidades e de crises, que podero ser, assim, evitadas ou superadas menos traumaticamente para a sociedade.

    Eis a nova misso - que se franqueia para o Direito Administrativo e para sua doutrina frtil e estuante - como se apresenta nesta virada de sculo e de milnio, que , agora e para adiante, a de orientar o progresso das relaes entre o homem e o Estado e, no coletivo, entre a sociedade e os centros de poder pblico: sempre e cada vez mais, no sentido da afirmao do imprio dos valores sobre quaisquer outros interesses.

    Terespolis, outono de 2004.

    Referncia Bibliogrfica deste Trabalho (ABNT: NBR-6023/2000): NETO, Diogo Figueiredo Moreira. Mutaes do Direito Administrativo: novas consideraes (avaliao e controle das transformaes). Revista Eletrnica sobre a Reforma do Estado, Salvador, Instituto de Direito Pblico da Bahia, n. 2,

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    junho/julho/agosto, 2005. Disponvel na Internet: . Acesso em: xx de xxxxxxxx de xxxx Obs. Substituir x por dados da data de acesso ao site www.direitodoestado.com.br

    Publicao Impressa: Informao no disponvel