republica de ladroes

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As eleições do conselho dos magos se aproximam e as facções precisam de alguém para fazer o trabalho sujo, manipulando votos. Se Locke aceitar, o veneno será purgado de seu corpo com o uso de magia – mas o processo será tão excruciante que ele vai desejar morrer. Locke acaba cedendo ao saber que o partido da oposição contará com uma mulher do seu passado: Sabeta Belacoros, a única pessoa capaz de se igualar a ele nas habilidades criminosas e mandar em seu coração. Novamente em uma disputa para ver quem é o mais inteligente, Locke precisa se decidir entre enfrentar Sabeta ou cortejá-la, e a vida dos dois pode depender dessa decisão. - See more at: http://www.pdflivros.com/2015/05/republica-de-ladroes.html#sthash.GdR0KmB1.dpuf

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  • O Arqueiro

    Geraldo Jordo Pereira (1938-2008) comeou sua carreira aos 17 anos, quando foi trabalhar com seu pai, o clebre editor Jos Olympio, publicando obras marcantes

    como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida, de Charles Chaplin.

    Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propsito de formar uma nova gerao de

    leitores e acabou criando um dos catlogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992,

    fugindo de sua linha editorial, lanou Muitas vidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro

    que deu origem Editora Sextante.

    F de histrias de suspense, Geraldo descobriu O Cdigo Da Vinci antes mesmo de ele ser

    lanado nos Estados Unidos. A aposta em fico, que no era o foco da Sextante, foi certeira:

    o ttulo se transformou em um dos maiores fenmenos editoriais de todos os tempos.

    Mas no foi s aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o prximo, Geraldo

    desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixo.

    Com a misso de publicar histrias empolgantes, tornar os livros cada vez mais acessveis

    e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro uma homenagem a esta figura

    extraordinria, capaz de enxergar mais alm, mirar nas coisas verdadeiramente importantes

    e no perder o idealismo e a esperana diante dos desafios e contratempos da vida.

  • Para Jason McCrayum homem que em seu temporepresentou muitos papis

  • mapa

  • 9PRLOGO

    A inspetora

    1

    Coloque dez dzias de ladres rfos numa toca mida feita de abbadas e tneis embaixo do que antes havia sido um cemitrio, deixe-os sob a superviso de um velho parcialmente aleijado e logo voc descobrir que control-los se torna um negcio delicado.

    O Aliciador, eminncia carrancuda no reino dos rfos sob o Morro das Sombras na velha Camorr, ainda no estava decrpito a ponto de algum de seus pequenos aprendizes sujos ter esperana de enfrent-lo sozinho. Mesmo assim, ele permane-cia alerta perdio que espreitava nas mos vidas e nos impulsos lupinos de uma turba que ele treinava para ficar mais predatria a cada dia. A ordem da qual sua vida dependia era frgil como papel molhado, na melhor das hipteses.

    Sua presena era capaz de forar a obedincia num certo raio, claro. Onde quer que sua voz chegasse e seus sentidos captassem um mau comportamento, os rfos estavam controlados. Mas, para manter o grupo desregrado na linha quando ele es-tava bbado, dormindo ou mancando pela cidade a negcios, era essencial que se tornassem vidos parceiros de sua prpria sujeio.

    Ele moldava a maioria dos garotos e garotas mais velhos no Morro das Sombras, formando uma espcie de guarda de honra, garantindo-lhes pequenos privilgios e algumas migalhas de quase respeito. Mais importante, trabalhava duro para que sempre o temessem. Nenhum fracasso era recebido sem dor ou a promessa de dor, e os seriamente insubordinados acabavam desaparecendo. Ningum nutria qualquer iluso de que eles tivessem ido para um lugar melhor.

    Assim ele garantia que seus poucos escolhidos, impregnados de medo, no tives-sem qualquer alvio a no ser ao dar vazo s frustraes sobre as crianas um pouco mais novas, que, aterrorizadas, oprimiam a classe de vtimas ainda mais fracas. Nvel a nvel, o sofrimento era compartilhado e a autoridade do Aliciador cascateava at os limites mais submissos de sua massa de rfos.

    Era um sistema admirvel, a no ser que, claro, por acaso voc fizesse parte dessa margem externa os pequenos, os excntricos, os que no tinham amigos. Nesse caso, a vida no Morro das Sombras era como um chute na cara a cada hora do dia.

    Locke Lamora tinha 5 ou 6 anos. Ningum sabia ao certo, nem se importava com

  • 10

    isso. Era extremamente pequeno, inegavelmente excntrico e vivia perpetuamente sem amigos. Mesmo quando arrastava os ps em meio a um grande aglomerado fe-dorento de rfos, um entre dezenas, estava sozinho e sabia muito bem disso.

    2

    Hora da reunio. Um momento ruim embaixo do Morro. A multido de rfos cercava Locke como uma floresta desconhecida, escondendo problemas em toda parte.

    A primeira regra para sobreviver nessas circunstncias era evitar chamar ateno. Enquanto o exrcito murmurante de rfos ia em direo grande cmara no centro do Morro das Sombras, para onde o Aliciador os chamara, Locke olhava de relance para os dois lados. O truque era identificar valentes conhecidos a uma distncia segura sem fazer contato visual no havia nada pior do que isso, era o erro dos erros , do modo mais casual possvel, mover-se para colocar crianas neutras entre si mesmo e cada ameaa at que ela passasse.

    A segunda regra era evitar reagir quando a primeira regra fosse insuficiente, o que acontecia com frequncia.

    A multido se dividiu atrs dele. Como todos os animais que temem ser presas, Locke possua um instinto afiado para o mal que se aproximava. Teve tempo sufi-ciente para se encolher antes de receber o soco, rpido e forte, bem entre as duas omoplatas. Locke se chocou contra a parede do tnel e mal conseguiu ficar de p.

    Risos familiares seguiram-se ao golpe. Era Gregor Foss, anos mais velho e 13 quilos mais pesado, to alm dos poderes de represlia de Locke quanto o Duque de Camorr.

    Pelos deuses, Lamora, que sujeitinho fraco e desajeitado voc ! Gregor ps a mo na nuca de Locke e o arrastou pela parede mida e suja, at que sua testa ri-cocheteou dolorosamente num dos velhos suportes de madeira do tnel. No tem fora nem para ficar de p sozinho. Diabos, se voc tentasse foder uma barata, ela iria virar voc de costas e meter no seu rabo.

    Todo mundo que estava perto riu, uns poucos por diverso genuna, o resto por medo de ser visto srio. Locke continuou andando aos tropeos, furioso mas em silncio, como se fosse uma coisa perfeitamente natural ter o rosto coberto de terra e um latejamento na testa. Gregor o empurrou mais uma vez, porm sem vigor, depois bufou e abriu caminho pela turba adiante.

    Bancar o morto. Fingir que no se importa. Era sua forma de impedir que alguns instantes de humilhao se tornassem horas ou dias de dor, de impedir que os hema-tomas se tornassem ossos quebrados ou coisa pior.

    A procisso de rfos seguia para uma reunio rara e grandiosa que congregava quase todo o Morro; na cmara principal, o ar j estava mais pesado e ranoso do

  • 11

    que o usual. O Aliciador estava sentado em sua cadeira de espaldar alto, a cabea quase imperceptvel acima da multido de crianas, enquanto os sditos mais ve-lhos abriam caminho para ocupar os lugares costumeiros perto dele. Locke procurou uma parede distante e ficou grudado nela, fazendo seu melhor papel de sombra. Ali, no conforto bem-vindo das costas protegidas, tocou a testa e cedeu a um beicinho momentneo: seus dedos estavam escorregadios de sangue.

    Depois de alguns instantes, o fluxo de rfos diminuiu at parar, e o Aliciador pigarreou.

    Era um Dia da Penitncia durante o Septuagsimo Stimo Ano de Sendovani, um dia de enforcamentos, e, fora das cavernas imundas embaixo do Morro das Sombras, o pessoal do Duque de Camorr dava ns em cordas sob um luminoso cu de primavera.

    3

    um negcio lamentvel disse o Aliciador. isso que . Ter alguns dos nossos irmos e irms arrancados para os braos implacveis da justia do Duque. tremendamente deplorvel que eles tenham sido relapsos a ponto de serem apanha-dos! Infelizmente. Como sempre, me esforcei para lembrar a vocs, meus amados, que nossa profisso delicada, nem um pouco apreciada por aqueles com quem a praticamos.

    Locke limpou a terra do rosto. Era provvel que a manga de sua tnica tivesse de-positado mais sujeira do que removido, porm o ritual de se arrumar era calmante. Enquanto ele cuidava de si mesmo, o senhor do Morro continuava falando:

    Dia triste, meus amores, uma verdadeira tragdia. Mas, quando o leite azeda, ns podemos esperar um queijo, no ? Ah, sim! Oportunidade! L fora est fazendo um tempo lindo para enforcamentos, pouco comum nesta estao. Isso significa multi-des com bolsas para gastar, e os olhos delas estaro fixos no espetculo, certo?

    Com dois dedos tortos (quebrados muito tempo atrs e mal curados), ele fez a mmica de uma pessoa chegando a uma borda e saltando frente. Ao fim da queda, os dedos se sacudiram espasmdicos e algumas crianas mais velhas deram risadi-nhas. Algum no meio do exrcito de rfos soluou, mas o Aliciador no pareceu se importar.

    Todos vocs iro em grupos assistir aos enforcamentos. Que isso ponha medo em seus coraes, meus amores! Indiscrio, falta de jeito ou de confiana... hoje vocs vero as nicas recompensas possveis para tais coisas. Para viver a vida que os deuses lhes deram, vocs devem roubar com esperteza e fugir. Fugir como os ces do inferno ao sentir o cheiro de um pecador! assim que nos livramos da forca. Hoje vocs olharo pela ltima vez para alguns amigos que no conseguiram fazer isso. E, antes de retornarem acrescentou ele, baixando a voz , cada um de vocs ser

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    melhor do que eles. Tragam de volta um belo bocado de moedas ou coisas de valor, no importa o risco. Mos vazias rendem barrigas vazias.

    A gente precisamos ir? perguntou algum em um gemido desesperado.Locke viu que quem falava era Tam, um recm-apanhado, um dos mais baixos

    dos mais baixos, que mal havia comeado a aprender sobre a vida no Morro das Sombras. E devia ser ele que estava soluando antes.

    Tam, meu cordeirinho, voc no precisamos fazer nada respondeu o Alicia-dor numa voz que parecia veludo mofado. Ele foi andando pela multido de rfos, afastando-os como hastes de trigo sujas at que sua mo pousou no crnio raspado de Tam. Mas eu tambm no preciso fazer nada se voc no trabalhar, certo? Tudo bem, fique fora desta excurso grandiosa. Um suprimento ilimitado de terra fria de cemitrio espera voc para o jantar.

    Mas... eu no posso, tipo, fazer outra coisa? Ora, voc poderia polir minha bela prataria de ch se eu tivesse uma. O Alicia-

    dor se ajoelhou, sumindo brevemente da viso de Locke. Tam, esse o trabalho que eu tenho, portanto o trabalho que voc vai fazer, certo? Bom garoto. Garoto forte. Por que esses riachinhos escorrendo dos olhos? S por causa dos enforcamentos?

    Eles... eles era nossos amigos. O que s significa... Tam, seu mijozinho idiota, enfie o choro nesse rabo estpido!O Aliciador girou e o garoto que havia falado se encolheu ao levar um tapa na la-

    teral da cabea. Houve uma agitao entre os rfos espremidos enquanto o alvo in-feliz cambaleava para trs e era posto de p outra vez por empurres de seus amigos que davam risinhos. Locke no conseguiu conter um sorriso. Seu corao sempre se aquecia ao ver um valento mais velho levando pancada.

    Veslin disse o Aliciador com um bom humor perigoso , voc gosta de ser interrompido?

    N-no... no, senhor. Fico feliz ao ver que pensamos do mesmo modo a esse respeito! C-claro. Desculpe, senhor.O olhar do Aliciador voltou-se para Tam, e seu sorriso, que havia se evaporado

    como nvoa ao sol um momento atrs, retornou de sbito. Eu estava falando sobre nossos amigos, nossos amigos lamentados... uma

    pena. Mas no um grande espetculo que eles vo oferecer para ns, pendurados l? Eles no esto convocando uma multido suculenta como uma ameixa madura? Que tipo de amigos ns seramos se nos recusssemos a aproveitar essa oportuni-dade? Bons? Corajosos?

    No, senhor murmurou Tam. Isso mesmo. Nem bons nem corajosos. Por isso vamos aproveitar essa chance,

    certo? E vamos lhes dar a honra de no desviar os olhos quando eles carem, no ?

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    Se... se o senhor diz, senhor... o que acontecer. O Aliciador deu um tapinha mecnico no ombro de Tam.

    Faam isso. Os enforcamentos comeam ao meio-dia; os Mestres das Cordas so as nicas criaturas pontuais nesta maldita cidade. Se vocs se atrasarem, tero que tra-balhar dez vezes mais, garanto. Inspetores! Chamem seus provocadores e pegadores. Mantenham os irmos novatos em rdea curta.

    Enquanto os rfos se dispersavam e as crianas mais velhas chamavam por seus parceiros e subordinados, o Aliciador arrastou Veslin at uma das paredes de terra da cmara para trocarem uma palavra em particular.

    Locke deu um risinho e se perguntou de quem seria parceiro na aventura do dia. Do lado de fora do Morro, havia bolsas para afanar, truques para colocar em prtica, furtos para realizar. Mesmo sabendo que seu entusiasmo pelo roubo era parte do que o tornava uma curiosidade e um pria, ele era to desprovido de comedimento nesse aspecto quanto de asas nas costas.

    Essa meia-vida de abusos sob o Morro das Sombras era apenas algo que ele pre-cisava suportar nos intervalos entre aqueles momentos luminosos em que poderia trabalhar, com o corao martelando, correndo depressa para a segurana e levando os pertences de outra pessoa apertados nas mos. Pelo que seus 5, 6 ou 7 anos haviam lhe ensinado, roubar os outros era a melhor sensao em todo o mundo e a nica liberdade verdadeira que ele possua.

    4

    Acha que pode melhorar minha liderana, , garoto? Apesar de sua limitada capacidade de segurar, o Aliciador ainda tinha os braos de um adulto e espremeu Veslin contra a parede de terra como um carpinteiro a ponto de pregar um enfei-te. Acha que eu preciso de seu humor e sua sabedoria quando estou falando em voz alta?

    No, excelncia! Perdo! Veslin, minha joia, eu no perdoo sempre? Com um gesto falsamente casual,

    o Aliciador empurrou de lado uma lapela de seu casaco pudo e revelou o cabo do cutelo de aougueiro que mantinha pendurado no cinto. O brilho dbil da lmina reluziu na escurido. Eu perdoo. Eu lembro s pessoas. Voc vai lembrar, garoto? Vai lembrar muito bem?

    Vou, sim, senhor. Por favor... Maravilha. O Aliciador soltou Veslin e deixou o casaco cair de novo sobre a

    arma. Que concluso feliz para ns dois, ento. Obrigado, senhor. Desculpe. s que... Tam estava choramingando a manh

    inteira. Ele nunca viu ningum ser pendurado na corda.

  • 14

    Houve um tempo em que isso era novidade para todos ns. O Aliciador suspi-rou. Deixe o garoto chorar, desde que ele roube uma bolsa. Se no roubar, a forca um instrutor maravilhoso. Mesmo assim, vou coloc-lo com mais dois outros pro-blemas num grupo com superviso especial.

    Problemas? Tam, por causa da delicadeza. E Banguela. Pelos deuses disse Veslin. , , o bostinha desmiolado to burro que no conseguiria cagar nas prprias

    mos nem se elas estivessem costuradas no cu. Mesmo assim ser ele. Tam. E mais um.O Aliciador lanou um olhar significativo para um canto distante, onde um me-

    nininho carrancudo estava encostado com os braos cruzados, olhando os outros rfos formarem suas matilhas.

    Lamora sussurrou Veslin. Superviso especial. O Aliciador roeu com nervosismo as unhas da mo es-

    querda. H um bom dinheiro a ser arrancado dele se algum o mantiver sensato e discreto.

    Ele quase queimou metade da porcaria da cidade, senhor. S os Estreitos, cuja falta no seria muito sentida. E recebeu um tremendo cas-

    tigo por isso, sem se encolher. Considero o assunto encerrado. O que ele precisa de um sujeito responsvel para mant-lo sob controle.

    Veslin no conseguiu conter a expresso de desprazer, e o Aliciador deu um sorrisinho.

    No voc, garoto. Preciso de voc e do seu macaquinho, o Gregor, num servio de distrao. Se algum for descoberto, vocs devero fazer a cobertura. E voltem para mim imediatamente se algum rfo for apanhado.

    Obrigado, senhor, muito obrigado. Voc deve agradecer mesmo. Tam choro... Banguela burro... e um dos prprios

    diabos do inferno vestindo calas curtas. Preciso de uma vela luminosa para vigiar esse grupo. V acordar algum do Janelas para mim.

    Ah. Veslin mordeu a bochecha. O grupo Janelas, chamado assim porque era especializado em roubo tradicional de residncias, era a verdadeira elite entre os r-fos do Morro das Sombras. Seus membros eram poupados da maior parte das ta-refas, habitualmente trabalhavam no escuro e tinham permisso de dormir at bem depois do meio-dia. Eles no vo gostar.

    No ligo a mnima para o que eles gostam. Eles no tm trabalho esta noite, de qualquer modo. Traga-me um que seja esperto. O Aliciador cuspiu uma lasca de unha suja e limpou os dedos no casaco. Diabos, traga-me Sabeta.

  • 15

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    Lamora!O chamado veio finalmente, e era do prprio Aliciador. Locke foi andando com

    cautela pelo cho de terra at onde o senhor do Morro estava sentado, sussurrando instrues para uma criana mais alta de costas para Locke.

    Diante do Aliciador aguardavam dois outros garotos. Um era Tam. O outro era Banguela, um pirralho infeliz cujas surras dadas por crianas mais velhas acabaram lhe garantindo o apelido. Um sentimento premonitrio se aninhou nas entranhas de Locke.

    C estamos, ento disse o Aliciador. Trs garotos corajosos e aptos. Vocs trabalharo juntos numa tarefa especial, sob uma autoridade especial. Conheam sua inspetora.

    A criana mais alta se virou.Estava suja, como todos eles, e, apesar de ser difcil dizer luz plida e prateada das

    lanternas alqumicas da cmara, parecia cansada. Usava cales marrons sujos, uma tnica longa e larga que em algum passado distante fora branca e uma boina de couro sobre um leno apertado, de modo que nem um fio de cabelo era visvel.

    Mas no havia dvida de que era uma ela. Pela primeira vez na vida de Locke, algum instinto animal destreinado se esgueirou debilmente para alert-lo desse fato. O Morro estava cheio de garotas, mas Locke nunca havia parado para pensar em uma garota. Ele inspirou bruscamente e percebeu que podia sentir um pinicar de nervosismo nas pontas dos dedos.

    Ela tinha pelo menos um ano e uns bons 15 centmetros a mais do que ele e, mesmo cansada, sua postura natural fazia com que os meninos pequenos se sentis-sem como um inseto embaixo de um calcanhar. Locke no tinha a eloquncia nem a experincia para perceber a situao dessa forma. S sabia que perto dela, diferente-mente de todas as garotas que ele vira no Morro das Sombras, sentia-se tocado por algo misterioso e muito mais vasto do que ele prprio.

    Sentia vontade de pular de alegria. Sentia vontade de vomitar.De repente, se ressentiu da presena de Tam e Banguela, ressentiu-se da implicao

    da palavra inspetora e ansiou por fazer alguma coisa, qualquer coisa, para impres-sionar a garota. Suas bochechas arderam ao pensar na possvel aparncia do calombo em sua testa e no fato de estar na mesma equipe de dois moleques inteis e chores.

    Esta Beta apresentou o Aliciador. Ela vai cuidar de vocs hoje, garotos. Rece-bam o que ela disser como se viesse de mim. Mos firmes, cabeas controladas. Nada de vagabundagem nem de cabriolas. A ltima coisa de que precisamos que vocs se tornem ambiciosos concluiu o Aliciador, lanando um olhar glido a Locke.

    Muito obrigada, senhor agradeceu Beta, sem nada que se assemelhasse a gra-tido verdadeira. Em seguida, empurrou Tam e Banguela para uma das sadas da

  • 16

    cmara. Vocs dois, esperem na entrada. Preciso trocar uma palavrinha com o seu amigo aqui.

    Locke ficou espantado. Uma palavrinha com ele? Ser que ela havia adivinhado que ele sabia se virar pegando e provocando, que no era nem um pouco parecido com os outros dois? Beta olhou ao redor, depois colocou as mos nos ombros dele e se ajoelhou. Algum animal nervoso nas entranhas de Locke deu cambalhotas quando os olhos dela ficaram no mesmo nvel dos olhos dele. A antiga compulso de recusar contato visual no foi apenas posta de lado, mas vaporizou de sua mente.

    Ento aconteceram duas coisas.Primeiro, Locke se apaixonou ainda que fossem se passar anos at ele perceber

    que aquilo era amor e que complicaria totalmente a sua vida.Segundo, ela falou diretamente com ele pela primeira vez, e Locke se lembraria das

    palavras com uma clareza que abalaria seu corao muito depois que os outros inci-dentes daquela poca se desbotassem numa nvoa de meias verdades em sua memria:

    Voc o Lamora, certo?Ele assentiu, ansioso. Bom, olhe aqui, seu merdinha. J ouvi tudo sobre voc, ento cale a boca e

    mantenha essas mos bobas nos bolsos. Juro por todos os deuses: se voc me causar um mnimo de encrenca, vou jog-lo de uma ponte e isso vai parecer um maldito acidente.

    6

    Era desagradvel sentir-se de repente com 1 centmetro de altura.Atordoado, Locke acompanhou Beta, Tam e Banguela para fora da escurido das

    cmaras do Morro das Sombras, saindo ao sol do fim da manh. Seus olhos ardiam e o motivo era apenas parcialmente a luz do dia. O que tinha feito (e quem havia contado a ela?) para merecer o desprezo da nica pessoa a quem ele agora queria impressionar mais do que qualquer outra no mundo?

    Seus pensamentos se desviaram inquietos para o ambiente ao redor. Ali fora, no espao aberto e sempre mutvel, havia tanta coisa para ver, tanta coisa para ouvir! Seus instintos de sobrevivncia foram assumindo aos poucos o controle. No fundo, sua mente estava toda ligada em Beta, mas ele forou os olhos para a situao presente.

    Naquele dia, Camorr estava luminosa e movimentada, aproveitando ao mximo a folga das chuvas cinzentas e duras da primavera. Janelas estavam escancaradas. As pessoas mais prsperas haviam trocado de pele, substituindo as capas impermeveis e os xales por roupas de vero. Os pobres continuavam enrolados nos mesmos trapos ftidos que usavam em todas as estaes. Como o pessoal do Morro das Sombras,

  • 17

    eles precisavam manter as roupas s costas para no correrem o risco de perd-las para os ladres de trapos.

    Enquanto os quatro rfos cruzavam a ponte do canal que ia do Morro das Som-bras para os Estreitos Lamora sentia-se ao mesmo tempo orgulhoso e incrdulo com o fato de o Aliciador estar to convencido de que um pequeno ardil de sua autoria podia ter queimado todo o bairro , Locke viu pelo menos trs barcos de pescadores de cadveres usando ganchos para puxar corpos inchados de debaixo de molhes e pilastras do cais. s vezes, eles permaneciam ignorados durante dias no tempo frio e ruim.

    Beta guiou os garotos pelos Estreitos, esgueirando-se por escadas de pedra e peque-nas pontes precrias de madeira, evitando os becos mais apinhados e sinuosos onde bbados, cachorros vadios e perigos menos bvios certamente espreitavam. Tam e Locke seguiam logo atrs, mas Banguela vivia se desviando ou se retardando. Quando saram dos Estreitos e atravessaram os caminhos com mato crescido do Mara Camor-razza, o antigo parque da cidade, Beta estava arrastando Banguela pelo colarinho.

    Seu crebro de ervilha, fique grudado nos meus calcanhares e pare de causar encrenca!

    No t causando encrenca murmurou Banguela. Quer estragar tudo e passar fome esta noite? Quer dar desculpa a algum bru-

    tamontes feito o Veslin para arrancar algum dente seu que ele ainda no tenha arrancado?

    No. Banguela alongou a palavra com um bocejo entediado, olhou em volta como se notasse o mundo pela primeira vez, depois se soltou bruscamente da mo de Beta. Quero usar o seu chapu.

    Locke engoliu em seco, nervoso. J tinha visto Banguela ter um daqueles ataques sbitos e irracionais. Alguma coisa no estava em seu devido lugar na cabea do ga-roto. Com frequncia, ele sofria por chamar a ateno para si dentro do Morro, onde individualidade sem fora significava dor.

    No pode retrucou Beta. Controle-se. Eu quero. Eu quero! Banguela bateu os ps no cho e fechou os punhos. Eu

    prometo que vou me comportar. Me d seu chapu! Voc vai se comportar porque eu estou mandando!Banguela saltou e arrancou a boina de couro da cabea de Beta. Puxou-a com

    tanta fora que o leno tambm saiu e um jorro desgrenhado de cachos castanho--arruivados se derramou at os ombros. O queixo de Locke caiu.

    Havia algo to indefinivelmente adorvel, to certo em ver aquele cabelo livre ao sol que ele se esqueceu por um momento que seu fascnio no era recproco e que isso no era nem um pouco conveniente para a tarefa deles. Locke notou que s a parte perto das pontas era castanha. Acima das orelhas, os fios ganhavam um tom ruivo-ferrugem. Ela havia tingido o cabelo, mas ele j crescera.

  • 18

    Assim que o choque passou, Beta foi ainda mais rpida do que Banguela e, antes que o garoto pudesse fazer qualquer coisa, o chapu estava de volta nas suas mos. Ela bateu com ele vigorosamente no rosto de Banguela.

    Ai!Ainda no satisfeita, Beta o golpeou de novo e ele se encolheu. Locke recuperou o

    tino e assumiu a expresso vazia usada no Morro pelos que no estavam envolvidos quando algum por perto levava uma surra.

    Para! Para! gritava Banguela, soluando. Se voc algum dia puser a mo neste chapu de novo sibilou Beta, sacudindo-o

    pelo colarinho , juro por Aza Guilla que conta os mortos: vou entreg-lo direto a ela. Seu imbecilzinho idiota!

    Eu prometo! Eu prometo!Ela soltou-o, fazendo cara feia e, com alguns movimentos hbeis, os cachos ruivos

    sumiram de novo sob o leno apertado. A boina lacrou-os e Locke ficou um pouco desapontado.

    Voc tem sorte porque mais ningum viu disse Beta, empurrando Banguela para a frente. Os deuses amam voc, sua lesminha. Depressa, agora. Nos meus calcanhares, vocs dois.

    Locke e Tam a acompanharam sem dizer nada, to perto quanto patinhos nervo-sos grudados cauda da me.

    Locke tremia de empolgao. Ficara horrorizado com a incompetncia dos com-panheiros designados para ele, mas agora imaginava se os problemas deles poderiam ajudar a torn-lo melhor aos olhos de Beta. Ah, sim. Que eles choramingassem, que tivessem chiliques, que fossem para casa com as mos abanando. Diabos, que eles chamassem a ateno dos guardas da cidade e fossem perseguidos pelas ruas ao som de apitos e ces latindo. Ela teria que preferir qualquer coisa a isso, inclusive ele.

    7

    Finalmente saram do Mara Camorrazza e adentraram um redemoinho de sons e confuso.

    De fato aquele era um clima de beleza rara para um dia de enforcamentos, e os arredores normalmente lgubres da Antiga Cidadela, o local onde era exercida a justia do Duque, estava agitado como um parque de diverses. A plebe se compri-mia nas pedras do calamento, enquanto aqui e ali as carruagens dos ricos passavam chacoalhando, com guardas contratados correndo ao lado, fazendo ameaas e dando empurres. Em alguns sentidos, Locke j sabia, o mundo fora do Morro era bem parecido com o mundo l dentro.

    Os quatro rfos fizeram uma corrente humana para abrir caminho atravs do

  • 19

    tumulto. Locke se segurava com fora em Tam, que por sua vez se segurava em Beta. Ela estava to disposta a no perder Banguela de vista que o empurrava frente de todos como um arete. De sua perspectiva, Locke vislumbrava alguns rostos adultos; o mundo se tornava uma procisso interminvel de cintos, barrigas, abas de casacas e rodas de carruagens. Foram para o oeste devido sorte e perseverana, na direo da Via Justia, o canal usado para enforcamentos havia quinhentos anos.

    Na margem do canal, um muro baixo de pedras impedia o mergulho direto na gua que ficava 2 a 3 metros abaixo. Essa barreira estava desmoronando, mas ainda era suficientemente slida para crianas se sentarem em cima. Beta no deixou de segurar Banguela nem por um segundo enquanto ajudava Locke e Tam a subir, esca-pando da presso da turba. Locke tentou sentar-se ao lado de Beta, mas foi Tam que se espremeu contra ela; no havia como afast-lo sem provocar uma cena. Tentou esconder a frustrao adotando uma expresso objetiva e olhando ao redor.

    Dali, pelo menos, tinha uma viso melhor das coisas. Havia multides dos dois la-dos do canal e vendedores em barcos apregoando po, salsichas, cerveja e suvenires. Eles usavam cestos presos em varas para recolher as moedas e entregar as mercado-rias aos que estavam acima.

    Locke podia identificar grupos de vultos pequenos se esgueirando na floresta de casacas e pernas colegas rfos do Morro das Sombras trabalhando. Avistava tam-bm as casacas amarelo-escuras da guarda citadina movendo-se em meio ao povo em esquadres com escudos pendurados s costas. Aconteceria um desastre se esses elementos opostos se encontrassem e se misturassem como alquimia malfeita, mas at agora no houvera gritos, apitos dos guardas nem sinais de qualquer coisa errada.

    O trfego fora interrompido na Ponte Negra. As lmpadas que salpicavam o grande arco de pedra estavam cobertas com panos pretos e um pequeno grupo de sacerdotes, prisioneiros, guardas e autoridades ducais se encontrava atrs da pla-taforma de execuo que se projetava da lateral da ponte. Dois barcos de casacas--amarelas haviam ancorado, um em cada margem do canal, para manter livre a gua embaixo dos prisioneiros que seriam pendurados.

    A gente no temos que fazer nosso negcio? perguntou Banguela. A gente no temos que pegar uma bolsa, um anel ou alguma coisa...

    Beta, que havia tirado as mos dele por meio minuto, agarrou-o de novo e sussur-rou com rispidez:

    No fale sobre isso enquanto a gente estiver no meio do povo. Boca fechada! Vamos ficar sentados aqui, atentos. Vamos trabalhar depois do enforcamento.

    Tam estremeceu e pareceu mais arrasado do que nunca. Locke suspirou, con-fuso e impaciente. Era triste que alguns colegas do Morro das Sombras fossem en-forcados, mas, afinal de contas, era triste que eles tivessem sido apanhados pelos casacas-amarelas. Pessoas morriam por toda parte em Camorr, em becos, canais e casas pblicas, em incndios, pestes que devastavam bairros inteiros. Tam era rfo

  • 20

    tambm; ele no havia percebido tudo isso? Morrer parecia quase to rotineiro para Locke quanto jantar ou mijar, e ele no conseguia se sentir mal porque isso estava acontecendo com algum que mal conhecera.

    Parecia que a coisa ia acontecer logo. Um rufar de tambores soou na ponte, ecoando sobre gua e pedra, e aos poucos o murmrio empolgado da multido foi cessando. Nem mesmo os servios religiosos podiam deixar os camorris to respeitosamente atentos quanto o estalar de pescoos em pblico.

    Leais cidados de Camorr! Agora chega o meio-dia, este dcimo stimo instante, este ms de Tirastim no nosso Septuagsimo Stimo Ano de Sendovani! gritou de cima da Ponte Negra um arauto de barriga enorme usando plumas negras. Esses criminosos foram considerados culpados de crimes capitais contra a lei e os costu-mes de Camorr. Pela autoridade de Sua Graa, o Duque Nicovante, e pelos sinetes de seus honorveis magistrados da Cmara Vermelha, eles foram trazidos aqui para receberem a justia.

    Houve um movimento atrs dele na ponte. Sete prisioneiros foram empurrados, cada um acompanhado por dois guardas com capuzes escarlates. Locke viu que Tam estava mordendo os ns dos dedos. Beta passou o brao pelos ombros do garoto e Locke trincou os dentes. Ele estava executando seu servio, comportando-se, recu-sando-se a fazer um espetculo, e era Tam que recebia a ternura de Beta?

    Voc se acostuma, Tam disse Beta baixinho. Honre-os agora. Mantenha-se firme.

    Na plataforma da ponte, os Mestres das Cordas apertaram os ns em volta do pescoo dos condenados. As cordas tinham mais ou menos o tamanho de cada pri-sioneiro e estavam presas em elos logo atrs do p dos criminosos. No havia me-canismos inteligentes ali, nenhum truque chique. No estavam em Tal Verrar. No leste, as pessoas eram simplesmente empurradas pela borda.

    Jerevin Tavasti! gritou o arauto, consultando um pergaminho. Incndio crimi-noso, conspirao para receber mercadorias roubadas, ataque a um oficial do Duque! Malina Contada, falsificao e uso indevido do nome e da imagem de Sua Graa, o Duque. Caio Vespasi, invaso de residncia, pantomima maliciosa, incndio criminoso e roubo de cavalo! Lorio Vespasi, conspirao para receber mercadorias roubadas.

    E acabaram os adultos. O arauto seguiu at as trs crianas. Tam soluou e Beta sussurrou:

    Sshhh.Locke notou que Beta permanecia numa calma fria e tentou imitar seu ar de de-

    sinteresse. Olhos cautelosos, queixo erguido, boca praticamente fechada numa car-ranca. Sem dvida, se ela o encarasse durante a cerimnia, iria notar e aprovar...

    Mariabella, sem sobrenome! continuou o arauto. Roubo e desobedincia imoderada! Zilda, sem sobrenome. Roubo e desobedincia imoderada!

    Os Mestres estavam amarrando pesos extras nas pernas desse ltimo trio de pri-

  • 21

    sioneiros, j que seus corpos magros poderiam no puxar a corda o suficiente e re-tardar o processo.

    Lars, sem sobrenome. Roubo e desobedincia imoderada. Zilda era boa comigo sussurrou Tam com a voz embargada. Os deuses sabem. Quieto agora. Pelos crimes do corpo vocs sofrero a morte do corpo prosseguiu o arauto.

    Sero suspensos acima da gua corrente e ficaro pendurados pelo pescoo at a morte. Seus espritos inquietos sero carregados sobre a gua at o Mar de Ferro, onde no podero causar mais mal a qualquer alma ou habitao no domnio do Duque. Que os deuses recebam suas almas com misericrdia, em bom tempo. O arauto baixou o rolo de pergaminho e encarou os prisioneiros. Em nome do Du-que, eu lhes dou justia.

    Tambores rufaram. Um dos Mestres das Cordas desembainhou uma espada, para o caso de algum prisioneiro lutar contra os guardas. Locke j vira um enforcamento e sabia que os condenados tinham apenas uma chance de manter alguma dignidade que lhes restasse.

    Naquele dia, as cordas correram fceis. O rufar foi silenciado. Cada par de casa-cas-amarelas encapuzados avanou e empurrou seu prisioneiro da plataforma.

    Tam se retraiu, como Locke imaginara que faria, mas nem ele estava preparado para a reao de Banguela quando as cordas se retesaram com os estalos que podiam ser do cnhamo, dos pescoos ou das duas coisas.

    Aaaahhhh! Aaaaaaaahhhhhhh! AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHH!Cada grito era mais longo e mais alto do que o anterior. Beta tapou a boca de

    Banguela e lutou contra ele. Sobre a gua, quatro corpos grandes e trs menores balanavam como pndulos em arcos que rapidamente ficavam cada vez menores.

    O corao de Locke martelava. Todo mundo ali perto devia estar olhando para eles. Ouviu risinhos e comentrios de desaprovao. Quanto mais ateno atrassem, mais difcil seria fazer seu trabalho de verdade.

    Sshhh fez Beta, esforando-se para manter Banguela sob controle. Quieto, seu desgraado. Quieto!

    Qual o problema, garota?Locke ficou consternado ao ver que uma dupla de casacas-amarelas havia aberto

    caminho pela multido logo atrs deles. Pelos deuses, isso era pior do que qualquer coisa! E se eles estivessem procurando rfos do Morro das Sombras? E se fizessem perguntas difceis? Conteve o impulso de pular na gua e ficou imvel, com os olhos arregalados.

    Beta manteve um dos braos cobrindo o rosto de Banguela, mas de algum modo conseguiu se virar e baixar a cabea para os guardas.

    Meu irmozinho nunca tinha visto um enforcamento explicou ela, ofegando. No queremos criar confuso. Eu calei a boca dele.

  • 22

    Banguela parou de lutar mas comeou a soluar. O guarda que havia falado, um homem de meia-idade com o rosto cheio de cicatrizes, olhou para ele com desagrado.

    Vocs quatro vieram aqui sozinhos? Mame mandou respondeu Beta. Queria que os garotos assistissem a um en-

    forcamento. Para verem o que se ganha com a vagabundagem e as ms companhias. Uma mulher que pensa direito. Nada melhor do que um bom enforcamento

    para arrancar a maldade de um moleque. O casaca-amarela franziu a testa. Por que ela no est aqui com vocs?

    Ah, mame adora um enforcamento disse Beta e acrescentou, baixando a voz at um sussurro: Mas, ah, ela est mal das tripas. O negcio est feio. O dia inteiro ela ficou sentada na...

    Ah. Tudo bem, ento. O guarda tossiu. Que os deuses lhe deem sade. me-lhor voc no trazer esse a de novo para a cerimnia do Dia da Penitncia durante um tempo.

    Concordo, senhor. Beta baixou a cabea outra vez. Mame vai arrancar o couro dele por causa disso.

    Ento vo andando, garota. No precisamos de mais escndalos. Claro, senhor.Os guardas se afastaram pela multido, que retornava vida. Beta deslizou do muro

    de pedras sem muito jeito, pois segurava rigidamente Banguela e Tam se recusava a soltar seu outro brao. Ele no havia gritado como Banguela, mas Locke viu seus olhos marejados e notou que ele estava mais plido do que antes. Locke passou a lngua pelo cu da boca, que tinha ficado seco sob o escrutnio dos casacas-amarelas.

    Venham ordenou Beta. Para longe daqui. J vimos tudo que havia para ver.

    8

    Outra passagem pelo mar de casacos, pernas e barrigas. Sentindo a empolga-o crescer de novo, Locke se agarrou de leve nas costas da tnica de Beta para no perd-la e ficou ao mesmo tempo satisfeito e desapontado quando ela no reagiu. Beta levou-os de volta para as sombras verdes do Mara Camorrazza, onde a solido silenciosa reinava a menos de 40 metros de uma multido de centenas de pessoas, e assim que estavam abrigados em segurana num nicho escondido, ela empurrou Tam e Banguela para o cho.

    E se outro grupo do Morro visse aquilo? Pelo amor dos deuses! Desculpa gemeu Banguela. Mas eles... mas eles... eles foram mor... As pessoas morrem quando so enforcadas. por isso que as enforcam! Beta

    torceu a frente de sua tnica com as duas mos, depois respirou fundo. Agora

  • 23

    se recuperem. Cada um de vocs deve roubar uma bolsa ou outra coisa antes da gente voltar.

    Banguela irrompeu num novo ataque de soluos, rolou de lado e mordeu os ns dos dedos. Tam, parecendo mais cansado do que Locke imaginaria possvel, disse:

    No posso, Beta. Desculpe. Eu vou ser apanhado. No posso mesmo. Vai ficar sem janta esta noite. Tudo bem. Me leve de volta, por favor. Maldio. Beta esfregou os olhos. Preciso levar vocs de volta com alguma

    coisa para mostrar, seno vou ficar to encrencada quanto vocs, entenderam? Voc do Janelas murmurou Tam. No tem com que se preocupar. Se ao menos fosse assim! Vocs dois precisam se manter firmes... No posso, no posso, no posso!Locke pressentiu uma oportunidade gloriosa. Beta os salvara de uma encrenca na

    beira do canal e ali estava um momento perfeito para ele retribuir. Sorrindo ao pen-sar na reao dela, empertigou-se o mximo que pde e pigarreou.

    Tam, no seja idiota ralhou Beta, ignorando totalmente Locke. Voc vai pegar alguma coisa ou criar uma distrao para algum poder pegar. No vou lhe dar outra chance...

    Desculpe interrompeu Locke, hesitante. O que voc quer? Cada um deles pode ficar com uma coisa minha. O qu? Beta se virou para ele. Do que voc est falando?De debaixo da tnica, Locke pegou duas bolsas de couro e um belo leno de seda

    s um pouquinho manchado. Trs peas. Ns somos trs. Apenas diga que cada um pegou uma e a gente pode

    ir para casa agora. Onde diabos voc conseguiu... Na multido. Voc estava com o Banguela... estava prestando tanta ateno nele

    que no deve ter visto. Eu ainda no mandei voc roubar nada! Bom, voc no disse para no roubar. Mas isso ... Eu posso devolver cortou Locke, muito mais petulante do que havia pretendido. No seja malcriado comigo! Ah, pelo amor de Deus, no faa tromba. Beta se

    ajoelhou e ps as mos nos ombros dele. Com o toque e a ateno dela, Locke sentiu subitamente um tremor incontrolvel. O que foi? Qual o problema?

    Nada. Nada. Deuses, que garotinho estranho voc ! Beta olhou de novo para Tam e Ban-

    guela. Um bando de desastrados, vocs trs. Dois no querem trabalhar. Um tra-balha sem receber ordem. Acho que no temos escolha.

  • 24

    Beta pegou as bolsas e o leno. Seus dedos roaram nos de Locke e ele estremeceu. Os olhos de Beta se estreitaram.

    Voc bateu com a cabea antes? Bati. Quem empurrou voc? Eu s ca. Claro que caiu. Srio! Isso parece estar perturbando voc. Ou talvez voc esteja doente. Voc est tre-

    mendo. Eu... estou bem. Tudo bem, ento. Beta fechou os olhos e massageou-os com as pontas dos

    dedos. Acho que voc me poupou um bocado de encrenca. Quer que eu... olhe, quer que eu d um jeito na pessoa que est incomodando voc?

    Locke ficou espantado. Uma garota mais velha, essa garota mais velha, logo ela, e ainda por cima membro do Janelas, estava lhe oferecendo proteo? Ser que ela po-deria fazer isso? Ser que poderia colocar Veslin e Gregor em seus devidos lugares?

    No. Locke forou os olhos a se afastarem do rosto fascinante de Beta para se obri-gar a voltar terra. Sempre haveria outros Veslins, outros Gregors. E se eles ficassem mais ressentidos ainda por causa da interferncia dela? Beta era do Janelas; ele era do Ruas. Seus dias e noites eram invertidos. Locke nunca a vira antes daquele dia; que tipo de proteo poderia obter? Continuaria bancando o morto. Evitando chamar ateno. Primeira e segunda regras. Como sempre.

    Eu s ca repetiu ele. Tudo bem. timo replicou ela com um pouco de frieza. Como quiser.Locke abriu e fechou a boca algumas vezes, tentando desesperadamente imaginar

    algo que pudesse dizer para encantar aquela criatura aliengena. Tarde demais. Ela se virou e puxou Tam e Banguela de p.

    Nem acredito, mas vocs dois, idiotas, devem um jantar ao incendirio dos Es-treitos aqui. Entendem o inferno que a gente vai sofrer se vocs disserem uma pala-vra disso a algum?

    Entendo respondeu Tam. Eu ficaria muito chateada se sofresse alguma coisa continuou Beta. Qualquer

    coisa! Ouviu, Banguela?O pobre coitado assentiu, depois chupou os ns dos dedos outra vez. De volta ao Morro, ento. Beta deu um puxo no leno de cabea e ajeitou o

    chapu. Vou ficar com as coisas e entregar pessoalmente ao chefe. Nenhuma pala-vra sobre isso. A ningum.

    Continuou segurando Banguela at voltarem ao cemitrio. Tam a seguia junto aos calcanhares, parecendo exausto mas aliviado. Locke ia atrs, tramando com toda a

  • 25

    extenso de sua experincia totalmente inadequada. O que ele tinha dito ou feito de errado? O que avaliara mal? Por que ela no o estava adorando por ter lhe poupado tanta encrenca?

    Beta no lhe disse nada durante toda a volta para casa. Ento, antes que ele pudesse encontrar uma desculpa para falar com ela de novo, a garota foi embora, sumiu nos tneis que levavam ao domnio particular do Janelas, onde ele no poderia segui-la.

    Naquela noite, Locke ficou mal-humorado, comendo pouco do jantar que seus dedos geis haviam feito por merecer, furioso no s com Beta, mas consigo mesmo por t-la afastado de algum modo.

    9

    Dias se passaram, mais longos do que qualquer um que Locke j vivera, agora que tinha algo com que se preocupar alm da breve empolgao dos crimes cotidia-nos e das tarefas constantes de sobrevivncia.

    Beta no saa dos seus pensamentos. Ele sonhava com ela, sonhava com seus cabe-los se derramando de debaixo da boina, captando a luz que se filtrava pelo verde en-trelaado do Mara Camorrazza. Estranhamente, nos sonhos, o cabelo era todo ruivo, das pontas s razes, intocados pela tintura ou pelo disfarce. O preo dessas vises era que ele acordava com desapontamentos frios e duros e ficava deitado na escurido, debatendo-se com emoes misteriosas que nunca o haviam incomodado antes.

    Teria que v-la outra vez. De algum modo.A princpio, alimentou a esperana de que ficaria no grupo de encrenqueiros per-

    manentemente, de que Beta poderia ser a inspetora deles de novo. Infelizmente, o Aliciador no parecia ter esses planos. Locke percebeu aos poucos que, se quisesse ter outra chance de impression-la, precisaria se arriscar.

    Era difcil quebrar as rotinas que havia estabelecido para si mesmo, sem falar das rotinas esperadas de algum em sua posio subalterna. Porm, comeou a andar com mais frequncia pelas cmaras e tneis de seu lar, ansioso por um vislumbre de Beta, expondo-se a abusos e ridicularizao das crianas mais velhas e entediadas. Bancava o morto. No reagia. Primeira e segunda regras. Quase conseguia gostar de ganhar hematomas com um objetivo genuno.

    Os rfos mais inferiores do Ruas isto , quase todos dormiam em massa no piso de cmaras laterais, como em um abrigo de refugiados, vrias dzias em cada cmodo. Agora, quando seus sonhos o acordavam noite, Locke tentava ficar acor-dado, apurar os ouvidos para escutar alm dos murmrios e dos movimentos dos que estavam ao redor, para detectar as idas e vindas do Janelas em suas tarefas secretas.

    Antes, sempre dormira em segurana no meio de seus colegas que roncavam, ou encostado numa parede boa e reconfortante. Agora se arriscava em posies na

  • 26

    borda da massa comprimida, onde poderia captar vislumbres de pessoas nos tneis. Cada sombra que passava e cada passo que ouvia poderia ser dela, afinal de contas.

    Os xitos foram poucos. Viu-a na hora do jantar vrias vezes, mas Beta nunca falava com ele. Na verdade, se o notava, no demonstrava nem um pouco. E quanto a puxar papo por iniciativa prpria, com ela cercada por seus amigos do Janelas, perto dos valentes mais velhos do Ruas... nenhuma presuno poderia ser mais fatal. Assim Locke se esforava ao mximo, debilmente, para se esconder e espion--la, adorando o arrepio no estmago sempre que captava ao menos meio segundo de vislumbre. Os vislumbres e as sensaes o recompensavam por muitos dias de saudade frustrada.

    Mais dias, mais semanas transcorreram no presente eterno e nebuloso do perodo da infncia. Os breves momentos que havia passado na presena de Beta, falando com ela e ouvindo-a, ganhavam cada vez mais refinamento em sua memria, at que a prpria vida poderia ter se iniciado naquele dia.

    Em algum momento daquela primavera, Tam morreu. Locke ouviu os murmrios. O garoto foi apanhado tentando roubar uma bolsa e a vtima arrebentou seu crnio com uma bengala. Esse tipo de coisa no era incomum. Se o homem tivesse testemu-nhas da tentativa de roubo, provavelmente perderia um dedo de sua mo mais fraca. Se ningum confirmasse a histria, ele seria enforcado. Camorr era civilizada, afinal de contas; havia momentos aceitveis e inaceitveis para matar crianas.

    Banguela se foi pouco depois, atropelado por uma carroa em plena luz do dia. Locke imaginou se no teria sido melhor assim. Ele e Tam sofriam no Morro e tal-vez os deuses pudessem encontrar algo melhor para fazer com os dois. De qualquer modo, isso no era da sua conta. Locke tinha sua prpria obsesso para perseguir.

    Alguns dias depois da morte de Banguela, Locke chegou em casa aps uma tarde longa e quente trabalhando no bairro do Canto Norte, vigiando e roubando barracas de vendedores no mercado chique de l. Sacudiu a chuva da capa improvisada, que era o mesmo pedao de couro fedorento que lhe servia de cobertor toda noite. Foi encontrar o grupo dos mais velhos, comandado por Veslin e Gregor, que arrocha-vam as crianas todo dia quando elas chegavam com os ganhos.

    Em geral eles gastavam a maior parte da energia provocando e ameaando os cole-gas de Locke, mas naquele dia estavam falando empolgados sobre outra coisa. Locke captou trechos da conversa enquanto esperava sua vez de sofrer abusos.

    ... ele est bem infeliz... ela era uma das que mais ganhavam. Sei que era. E ainda assim no era metida a besta. Mas, pra voc, o Janelas tudo assim, no ? Eles no tudo igual? Bom, essa

    uma coisa que eles no vo gostar. Isso prova que eles mortal que nem a gente. Eles faz merda do mesmo jeito.

    Foi um ms ruim pra gente. Aquele pobre coitado que teve a cabea arreben-tada... aquele merdinha que a gente deixou sem dente... e agora ela.

  • 27

    Locke sentiu um aperto nas tripas. Quem? perguntou.Veslin encarou Locke como se estivesse espantado com o fato de que as pequenas

    criaturas do Ruas tinham capacidade de falar. Quem o qu, seu coador de cu? De quem vocs esto falando? Voc no ia querer saber, porra. QUEM?Os punhos de Locke haviam se fechado por conta prpria e seu corao martelava

    enquanto ele gritava de novo a plenos pulmes: QUEM??Veslin s precisou de um nico chute para derrub-lo. Locke viu o p do valento

    subindo em direo ao seu rosto, mas ainda assim no pde evitar o golpe. Teto e cho se inverteram e, quando voltou a enxergar, estava de costas, com o calcanhar de Veslin no peito. O sangue quente, com gosto de cobre, escorria pelo fundo da sua garganta.

    Aonde ele vai parar falando com a gente assim? perguntou Veslin em tom afvel.

    No sei. uma porra triste, mesmo falou Gregor. Por favor pediu Locke. Diga... Dizer o qu? Que direito voc tem de saber alguma coisa? Veslin se ajoelhou

    no peito de Locke, revistou suas roupas e pegou as coisas que ele conseguira roubar naquele dia: duas bolsas, um colar de prata, um leno e alguns tubos de madeira com cosmticos jereshtis. Sabe de uma coisa, Gregor? Acho que no me lembro de ter visto o Lamora aqui chegar em casa com alguma coisa esta noite.

    Nem eu, Ves. . Est vendo s que coisa triste, seu mijozinho? Se quiser jantar, pode comer

    sua prpria bosta.Locke estava acostumado demais ao tipo de gargalhada que brotou no tnel para

    prestar ateno a ela. Tentou se levantar e foi chutado no pescoo. Eu s quero saber o que aconteceu... disse, ofegando. Por que voc se importa? Por favor... por favor... Bom, se voc vai ser respeitoso... Veslin largou os ganhos de Locke num saco

    de pano sujo. O Janelas teve uma noite ruim. Foram apanhados direitinho, foram mesmo completou Gregor. Pegos roubando uma casa grande. Nem todos se livraram. Perderam um no

    canal. Quem? Beta. Ela se afogou. Vocs esto mentindo sussurrou Locke. VOCS ESTO MENTINDO!

  • 28

    Veslin chutou-o na lateral da barriga e Locke se retorceu. Quem disse... quem disse que ela...

    Eu digo, porra. Quem contou a voc? Eu recebi uma carta do Duque, seu retardado da porra. Foi o chefe, foi ele! Beta

    se afogou ontem noite. Ela no vai voltar para o Morro. Voc est caidinho por ela ou o qu? Que piada!

    V para o inferno sussurrou Locke. V voc para o...Veslin o interrompeu com outro chute forte no mesmo lugar. Gregor, temos um problema de verdade aqui. Esse a no bate bem. Esqueceu o

    que pode e o que no pode dizer a pessoas como a gente. Eu tenho a coisa certa para isso, Ves.Gregor chutou Locke entre as pernas. A boca de Locke se abriu, mas no saiu

    nada, a no ser um chiado seco de agonia. Vamos acabar com o merdinha. Veslin sorriu e, junto com Gregor, comeou a

    dar em Locke chutes fortes, mirados cuidadosamente. Gosta disso, Lamora? Gosta do que voc ganha quando fica metido a besta com a gente?

    S a proibio de assassinato, imposta pelo Aliciador entre os rfos, salvou a vida de Locke. Sem dvida os garotos o teriam destroado se seus prprios pescoos no fossem o preo pago pela diverso e, mesmo assim, quase foram longe demais.

    Passaram-se dois dias at que Locke pudesse se mover o suficiente para trabalhar de novo e, nesse intervalo, sem ter amigos para cuidar dele, foi atormentado pela fome e pela sede. Mas no sentiu satisfao em se recuperar e nenhum jbilo na volta ao trabalho.

    Estava de novo bancando o morto, de novo se escondendo nos cantos, de volta primeira e segunda regras. Mais uma vez estava totalmente sozinho no Morro.

  • LIVRO I

    A SOMBRA DELA

    NO POSSO lhe dizer agora.Quando a fora e os redemoinhos do vento

    No me soprarem mais,E o vento for finalmente um sussurro...

    Talvez ento eu lhe conteem outra ocasio.

    Carl Sandburg, The Great Hunt

  • 30

    Captulo Um

    As coisas pioram

    1

    A luz fraca do sol em suas plpebras o arrancou do sono. A claridade se intro-meteu, cresceu, fez com que ele piscasse, grogue. Uma janela estava aberta, deixando o ar ameno da tarde entrar com um cheiro de gua doce. No era Camorr. Som de ondas batendo numa praia de areia. Definitivamente no era Camorr.

    Estava de novo embolado nos lenis, atordoado. O cu da boca parecia couro seco ao sol. Lbios rachados se descolaram quando ele grasnou:

    O que est... Sshh. Eu no queria acordar voc. O quarto precisava de um pouco de ar.Um borro escuro esquerda, mais ou menos da altura de Jean. O piso rangeu

    quando a sombra se moveu. O farfalhar suave de tecido, o estalar de uma bolsa de moedas, o tilintar de metal. Locke se apoiou nos cotovelos, preparado para a tontura. Ela chegou pontualmente.

    Eu estava sonhando com ela murmurou. A poca em que... quando a gente se conheceu.

    Ela? Ela. Voc sabe. Ah. A ela cannica.Jean se ajoelhou ao lado da cama e estendeu um copo dgua, que Locke pegou

    com a mo esquerda trmula e bebeu agradecido. O mundo estava entrando lenta-mente em foco.

    To ntido... disse Locke. Achei que podia tocar nela. Dizer... como lamento. Isso o melhor que voc consegue? Sonha com uma mulher daquela e a nica

    coisa que consegue pensar em fazer com seu tempo pedir desculpas? No estava sob meu controle... Os sonhos so seus. Tome as rdeas. Eu era s um garotinho, pelo amor dos deuses. Se ela aparecer de novo, avance dez ou quinze anos. Quero ver um pouco de

    rubor e voz gaguejando na prxima vez que voc acordar. Voc vai sair? Um pouco. Fazer a ronda.

  • 31

    Jean, no adianta. Pare de se torturar. Acabou? Jean pegou o copo vazio. Nem de longe. Eu... No vou demorar muito. Jean pousou o copo na mesa e espanou descuida-

    damente as lapelas do casaco enquanto se dirigia at a porta. Descanse mais um pouco.

    Voc no escuta a voz da razo, no ? Voc sabe o que dizem sobre imitao e lisonjas.A porta se fechou e Jean sumiu, seguindo para as ruas de Lashane.

    2

    Lashane era famosa por ser uma cidade onde qualquer coisa poderia ser com-prada ou deixada para trs. Pela graa do regio, a mais alta e rarefeita ordem de nobreza da cidade na qual um ttulo que remontasse a mais de duas geraes qualificava algum como pertencente velha guarda , praticamente qualquer um com dinheiro na mo e pulso suficiente para manter a semiconscincia podia ter o sangue trans-mutado numa imitao razovel de azul.

    Vinham de todo canto do mundo terim: mercadores e criminosos, capites mer-cenrios e piratas, jogadores, aventureiros e exilados. Ainda plebeus, entravam na crislida de uma casa de contabilidade, entregavam enormes quantidades de metal precioso e emergiam luz do dia como recm-nascidos pares de Lashane. O regio cunhava semibares, bares, viscondes, condes e at algum marqus ocasional, com estilos que eram em grande parte de sua prpria inveno. Os ttulos honorficos eram tirados de uma lista e tinham custo extra: Defensor da Duodcupla F era bastante popular. Tambm havia meia dzia de ordens de cavalaria sem importncia que pareciam maravilhosas numa lapela de casaca.

    Como essa respeitabilidade comprada era algo novo para aqueles que as adqui-riam, Lashane vinha a ser a cidade mais violentamente cnscia das boas maneiras que Jean Tannen j visitara. Eles no tinham sculos de ascendncia aristocrtica para garantir seu valor, por isso os nefitos lashanis compensavam exageradamente com a cerimnia. Suas regras de precedncia eram como frmulas alqumicas e os jantares formais matavam mais deles a cada ano do que as vtimas combinadas das febres e dos acidentes. Parecia que pouca coisa poderia ser mais empolgante para os que haviam acabado de comprar seus nomes de famlia do que arrisc-los (para no mencionar sua carne mortal) por causa de pequenos insultos.

    O recorde, pelo que Jean ouvira dizer, era de trs dias desde a casa de contabi-lidade at a rea de duelos e a carruagem fnebre. O regio, claro, no devolvia o dinheiro aos parentes do falecido.

  • 32

    Em resultado desse absurdo, era difcil, para quem no possua ttulos, indepen-dentemente da cor das suas moedas, obter acesso aos melhores galenos da cidade. Eles se tornavam smbolos to grandes de status devido sua clientela nobre que raramente precisavam procurar ouro em outras fontes.

    O sabor do outono estava no vento frio soprando do Amatel, o Lago das Joias, que se estendia at o horizonte ao norte de Lashane. Jean estava vestido de modo conservador para os padres locais, com uma casaca de veludo marrom e sedas que no valeriam mais do que, digamos, trs meses de pagamento para um comerciante mediano. Isso o identificava de imediato como um empregado e servia sua tarefa atual. Nenhum cavalheiro importante esperava pessoalmente no porto do jardim de um galeno.

    O Erudito Erkemar Zodesti era considerado o melhor galeno de Lashane, um prodgio com a serra de ossos e o cadinho de alquimista. Demonstrara completo desinteresse, durante trs dias seguidos, pelos pedidos de consulta feitos por Jean.

    Naquele dia, Jean se aproximou de novo do porto de barras de ferro nos fundos do jardim de Zodesti, por trs do qual um servial idoso o espiava com insolncia reptiliana. Na mo estendida de Jean, um envelope de pergaminho e um quadrado de carto branco, como nos trs dias anteriores. Jean estava ficando irritado.

    O servial estendeu a mo entre as barras sem dizer uma palavra e pegou tudo o que Jean oferecia. O envelope, contendo a propina costumeira, composta de uma quantidade grande demais de moedas de prata, sumiu no casaco do servial. O velho leu ou fingiu ler o carto, arqueou as sobrancelhas para Jean e se afastou.

    O carto dizia o mesmo de sempre: Contempla va cora frata eminenza. Ou seja, Considere o pedido de um amigo eminente em trono terim; essa era a afetao edu-cada para esse tipo de gesto. Em vez de dar o nome do aristocrata, a mensagem indi-cava que algum poderoso desejava pagar anonimamente para que outra pessoa fosse examinada. Era um modo comum de fazer com que os ricos resolvessem o problema de, digamos, uma amante grvida, sem revelar a identidade de algum importante.

    Jean passou os longos minutos de espera examinando a casa do galeno. Era um local bom e slido, mais ou menos do tamanho de uma pequena manso no Al-cegrante, em Camorr. Porm, era mais nova e seu estilo imitava o de Tal Verrar, esforando-se para proclamar a importncia dos habitantes. A cobertura era de te-lhas de vidro vulcnico e as janelas tinham molduras com relevos decorativos mais adequados a um templo.

    Vindos do corao do jardim propriamente dito, isolado das vistas por um muro de pedras de 3 metros de altura, Jean podia ouvir os sons de uma festa animada. Copos tilintando, gargalhadas agudas e, ao fundo, o zumbido de uma viola de nove cordas e outros instrumentos.

    Lamento informar ao seu senhor que no momento o Erudito incapaz de acei-tar seu pedido de consulta.

  • 33

    O servial reapareceu atrs do porto de ferro com as mos vazias. O envelope, uma garantia de seriedade, havia sumido, claro Jean no sabia se nas mos de Zodesti ou do velho.

    Talvez o senhor pudesse me dizer quando seria mais conveniente o Erudito re-ceber a petio do meu senhor, j que obviamente o meio da tarde ao longo de meia semana foi inadequado.

    No sei dizer. O servial bocejou. O Erudito est tomado de trabalho. De trabalho. Jean ficou furioso ao ouvir aplausos na festa. mesmo. Meu

    senhor tem um caso que exige a maior capacidade e discrio possveis... O seu senhor poderia contar com a discrio do Erudito. Infelizmente, a capaci-

    dade dele exigida com urgncia em outro local neste momento. Maldio, homem! O autocontrole de Jean se evaporou. Isso importante! No admito que falem comigo de modo vulgar. Bom dia.Jean pensou em enfiar as mos atravs das barras de ferro e agarrar o velho pelo

    pescoo, mas isso seria contraproducente. No estava usando couros de luta por baixo das roupas finas e seus sapatos decorativos seriam piores do que ps descalos. Apesar do par de machadinhas escondido embaixo da casaca, no estava equipado nem mesmo para invadir uma festa de jardim.

    O Erudito se arrisca a ofender um cidado de importncia considervel ros-nou Jean.

    O Erudito j est ofendendo, seu sujeito simplrio. O velho deu um risinho. Vou lhe dizer claramente: ele tem pouco interesse por negcios arranjados deste modo. No acredito que um nico cidado nobre seja to pouco familiarizado com o Erudito a ponto de temer ser recebido na porta da frente.

    Voltarei amanh avisou Jean, esforando-se para manter a compostura. Tal-vez eu possa falar sobre uma quantia que penetrar at mesmo na indiferena do seu senhor.

    O senhor merece elogios pela persistncia, ainda que no pela percepo. Ama-nh o senhor deve fazer o que seu senhor pede. Por hora j me despedi.

    Bom dia. Que os deuses protejam a casa onde reside tamanha gentileza.Inclinou-se rigidamente e saiu.No havia mais nada a fazer no momento naquela cidade amaldioada onde nem

    mesmo jogar envelopes cheios de moedas garantia a ateno para um problema.Enquanto voltava pisando forte sua carruagem alugada, Jean xingou Maxilan

    Stragos pela milsima vez. O filho da me tinha mentido sobre coisas demais. Por que, no fim das contas, o maldito veneno fora a nica coisa sobre a qual ele optara por dizer a verdade?

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