representações sociais de dois grupos de professores de biologia

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE ANDREA VIANNA CERQUEIRA REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE DOIS GRUPOS DE PROFESSORES DE BIOLOGIA SOBRE O ENSINO DE ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: ASPIRAÇÕES, AMBIGÜIDADES E DEMANDAS PROFISSIONAIS RIO DE JANEIRO 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE

ANDREA VIANNA CERQUEIRA

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE DOIS GRUPOS DE PROFESSORES DE BIOLOGIA SOBRE O ENSINO DE ORIGEM DA VIDA E

EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: ASPIRAÇÕES, AMBIGÜIDADES E DEMANDAS PROFISSIONAIS

RIO DE JANEIRO 2009

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ANDREA VIANNA CERQUEIRA

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE DOIS GRUPOS DE PROFESSORES DE BIOLOGIA SOBRE O ENSINO DE ORIGEM DA VIDA E

EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: ASPIRAÇÕES, AMBIGÜIDADES E DEMANDAS PROFISSIONAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisitos parcial à obtenção do título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde.

Orientadora: Eliane Brígida Morais Falcão Laboratório de Estudos da Ciência – NUTES- UFRJ

RIO DE JANEIRO 2009

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ANDREA VIANNA CERQUEIRA

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE DOIS GRUPOS DE PROFESSORES DE BIOLOGIA SOBRE O ENSINO DE ORIGEM DA VIDA E

EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: ASPIRAÇÕES, AMBIGÜIDADES E DEMANDAS PROFISSIONAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisitos parcial à obtenção do título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde.

Rio de Janeiro, ___ de _______ de 2009. Professora Eliane Brígida Morais Falcão, Doutora, NUTES/UFRJ Professor Ricardo Moreira Chaloub, Doutor, Instituto de Química/UFRJ Professora Naara Lúcia de Albuquerque Luna, Doutora, NUTES/UFRJ

4

Para as minhas filhas.

5

“How many roads must a man walk down Before you call him a man? Yes, 'n' how many seas must a white dove sail Before she sleeps in the sand? Yes, 'n' how many times must the cannon balls fly Before they're forever banned? The answer, my friend, is blowin' in the wind, The answer is blowin' in the wind. How many years can a mountain exist Before it's washed to the sea? Yes, 'n' how many years can some people exist Before they're allowed to be free? Yes, 'n' how many times can a man turn his head, Pretending he just doesn't see? The answer, my friend, is blowin' in the wind, The answer is blowin' in the wind. How many times must a man look up Before he can see the sky? Yes, 'n' how many ears must one man have Before he can hear people cry? Yes, 'n' how many deaths will it take till he knows That too many people have died? The answer, my friend, is blowin' in the wind, The answer is blowin' in the wind.” (Bob Dylan, Blowin' In The Wind)

6

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos aqueles que, de alguma forma, colaboraram para a realização deste

trabalho:

À Universidade Federal do Rio de Janeiro, que me ofereceu formação ao longo da

licenciatura e do mestrado.

Ao NUTES, por boa parte das descobertas que fiz nos dois últimos anos, pelos novos

amigos da turma de mestrado 2007 e pela possibilidade de revigorar minha prática

pedagógica.

À Profa. Dra. Eliane Brígida Morais Falcão, minha orientadora, pela paciência, pelos

inúmeros ensinamentos e pelas oportunidades de exercício intelectual que me propôs.

Ao Prof. Dr. Flávio Farias, pela revisão cuidadosa dos conteúdos específicos da

Biologia.

A todos aqueles que estiveram ao meu lado: minha mãe Consuelo; Marcinha e

Fernanda, minha super-irmã; Joana, Renata, Déia e Juju, amigas desde sempre e mesmo que

distantes; Guilherme; à família Werneck Vianna, especialmente Maria Lucia, e também aos

seus muitos agregados. Agradeço ainda à querida e saudosa amiga Michele.

Ao amado Dô, meu companheiro de tantas aventuras, que sempre me incentivou.

Obrigada, querido, por caminhar ao meu lado.

À Aurora e Estela, meus maiores tesouros, que me fazem despertar todo dia para um

mundo repleto de amor.

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RESUMO

Cerqueira, Andrea Vianna. Representações sociais de dois grupos de professores de biologia

sobre o ensino de Origem da Vida e Evolução Biológica: aspirações, ambigüidades e

demandas profissionais. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo

de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2009.

O encontro das crenças religiosas com as explicações científicas nas salas de aula do

ensino médio é tema controverso, que sempre constitui um desafio ao professor. Trabalhos

anteriores reportaram a influência religiosa nas dificuldades de aprendizagem de alguns temas

científicos, embora deficiências no ensino tenham sido algumas vezes sugeridas. Nesta

dissertação, optou-se por investigar as representações sociais sobre o ensino de Origem da

Vida e Evolução Biológica de vinte professores de Biologia atuantes na rede pública de

ensino do município do Rio de Janeiro. Os dados qualitativos foram trabalhados seguindo-se a

metodologia de análise do Discurso do Sujeito Coletivo. Foram identificadas dificuldades

relacionadas: (i) à falta de conhecimentos de Química por parte dos estudantes para a

aprendizagem de Origem da Vida; (ii) à desarticulação de conteúdos científicos apresentados

aos estudantes; (iii) a ambivalências na postura educacional dos professores; (iv) a problemas

na abordagem das crenças religiosas dos estudantes no espaço escolar; e (v) a formas e limites

da atuação das coordenações pedagógicas nas escolas pesquisadas. Os dados da pesquisa

sugerem que o ensino dos temas Origem da Vida e Evolução Biológica apresenta problemas

associados a limites na reflexão sobre a natureza da ciência na sala de aula e a uma possível

formação insuficiente dos professores nos conteúdos científicos e pedagógicos referentes a

esses importantes temas.

PALAVRAS-CHAVE: 1. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS; 2. PROFESSORES DE BIOLOGIA; 3. ORIGEM DA VIDA; 4. EVOLUÇÃO BIOLÓGICA; 5. ENSINO MÉDIO.

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ABSTRACT

Cerqueira, Andrea Vianna. Representações sociais de dois grupos de professores de biologia

sobre o ensino de Origem da Vida e Evolução Biológica: aspirações, ambigüidades e

demandas profissionais. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo

de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2009.

The confrontation of religious believes and scientific explanations in classrooms is a

controversial issue, often challenging teachers. Former recent studies reported the association

between the influence of religion and the difficulties of learning certain scientific contents;

clues about failures in the teaching science activity were also eventually found. The present

dissertation investigates the social representations about the teaching Biological Evolution

and Origin of Life activity by twenty teachers of Biology working in public institutions of Rio

de Janeiro. Qualitative data were analyzed according to the Collective Subject Discourse

methodology. The identified problems were related: (i) to an almost inexistent background

knowledge on Chemistry by students to understand a topic like Origin of Life; (ii) to the

misconnection between the scientific contents presented to students; (iii) to ambivalences in

teacher’s educational attitudes; (iv) to the inability in addressing students religious beliefs

issues at school; and (v) to limited support given by the pedagogical coordination in the

researched schools. Our data show that the Origin of Life and the Biological Evolution

teaching issues have problems related to limits in reflection of science nature in the classroom

and to the insufficient formation, by teachers, on those scientific and educational contents to

present those important themes.

KEYWORDS: 1. SOCIAL REPRESENTATIONS; 2. TEACHERS OF BIOLOGY; 3. ORIGIN OF LIFE; 4. BIOLOGICAL EVOLUTION; 5. HIGH SCHOOL.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................11

I. ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: CIÊNCIA E ENSINO.....................14

I.a) ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA NA ATUALIDADE................................ 14 A vida e sua origem: hipóteses .................................................................................................................... 14 Evolução biológica: um fato científico ........................................................................................................ 19

I.b) PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCN+)..................................................... 23 O ensino de origem da vida e evolução biológica como eixos integradores da biologia, segundo os PCN+:..................................................................................................................................................................... 24

I.c) A CONCEPÇÃO CONSTRUTIVISTA DE ENSINO E APRENDIZAGEM........................... 26

I.d) HISTÓRICO DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO BRASIL ........................................................28

I.e) DIFICULDADES NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA APONTADAS PELA LITERATURA ............................................... 31

II. CULTURA: MUNDO SOCIAL, RELIGIÃO E CIÊNCIA...............................................36

II.a) A CULTURA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE........................................... 36 Representação social: o conceito ................................................................................................................. 39

II.b) A RELIGIÃO COMO INSTITUIÇÃO..................................................................................... 40

II.c) A CIÊNCIA COMO INSTITUIÇÃO ....................................................................................... 42

II.d) RELIGIÃO E CIÊNCIA: CONFLITOS? ................................................................................. 48

III. METODOLOGIA..............................................................................................................53

III.a) DESCRIÇÃO DO UNIVERSO DA PESQUISA.................................................................... 54

III.b) DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO................................................................................. 55

IV. RESULTADOS..................................................................................................................58

IV.a) DADOS QUANTITATIVOS: CARACTERIZAÇÃO DOS GRUPOS DE PROFESSORES ENTREVISTADOS.......................................................................................................................... 58

IV.b) DADOS QUALITATIVOS: REPRESENTAÇÕES DOS PROFESSORES SOBRE OS TEMAS ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA ......................................................... 61

Representações sobre Origem da Vida ........................................................................................................ 62 Representações sobre Evolução Biológica................................................................................................... 68

V. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ...................................................................................81

VI. CONCLUSÃO....................................................................................................................85

VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................87

10

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1: Perfil profissional dos entrevistados (GF + GE)...............................................58

QUADRO 2: Dados relativos ao ensino dos temas Origem da Vida e Evolução Biológica...59

QUADRO 3: DSC da questão ‘Percebe dificuldade dos estudantes na aprendizagem no tema Origem da Vida?’ dirigida a ambos os grupos de entrevistados (GF e GE)...........................62

QUADRO 4: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre a importância do ensino de Origem da Vida na escola..............................................................65

QUADRO 5: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre possíveis dificuldades encontradas no ensino de Origem da Vida..........................................................67

QUADRO 6: DSCs construídos com as respostas do GF e do GE à questão proposta ‘Percebe dificuldade dos estudantes na aprendizagem do tema Evolução Biológica?’..........69

QUADRO 7: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre a importância do ensino de Evolução Biológica na escola.........................................................71

QUADRO 8: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre possíveis dificuldades encontradas no ensino de Evolução Biológica....................................................73

QUADRO 9: DSCs construídos com as respostas dos entrevistados do GF e do GE à questão proposta ‘Você já se deparou com alguma situação extrema de negação aos temas Origem da Vida e/ou Evolução Biológica..................................................................................................76

QUADRO 10: DSCs construídos com as representações sociais dos entrevistados do GF e do GE à questão proposta ‘Você possui alguma explicação pessoal para a Origem da Vida e Evolução Biológica? Quais suas idéias de acaso, aleatório e Deus?’ ....................................79

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INTRODUÇÃO

Após me formar em licenciatura plena em Ciências Biológicas na Universidade

Federal do Rio de Janeiro, realizei concurso para a Secretaria Estadual de Educação e passei a

dar aulas em uma escola no município de Petrópolis. Nessa escola, lecionei para uma turma

de primeiro ano e para uma turma de terceiro ano do ensino médio. Ao abordar o tema

Origem dos Seres Vivos com a turma de primeiro ano deparei-me com concepções

preexistentes dos estudantes bastante diferentes da teoria científica, tendo ficado intrigada

com a diversidade de crenças e opiniões trazidas pelos estudantes para a sala de aula. Tal

observação foi realizada novamente ao abordar o tema Evolução Biológica com a turma de

terceiro ano: os estudantes traziam para as aulas suas idéias e opiniões acerca do tema com

extrema desenvoltura, chegando a promover intensos debates sobre as razões para a

diversidade de seres vivos encontrada atualmente no planeta, geralmente permeados pelas

idéias religiosas por eles conhecidas. Alguns anos mais tarde, lecionei na rede particular do

município do Rio de Janeiro e me deparei mais uma vez com a riqueza de opiniões e

acaloradas discussões sobre como teria surgido a vida no planeta Terra e de que forma teriam

os seres primitivos dado lugar aos seres atuais.

A curiosidade sobre como tais idéias pessoais eram criadas e transformadas dentro de

cada estudante permaneceu latente até que, após oito anos da minha formatura, resolvi buscar

o Mestrado em Educação em Ciências e Saúde do Núcleo de Tecnologia Educacional para a

Saúde (NUTES) na UFRJ. Essa busca deveu-se à necessidade que senti de aprimorar minha

habilidade como professora de Ciências no que tange aos embates e questionamentos que

fazem parte do ensino. Então eu soube da existência do Laboratório de Estudos da Ciência

(LEC/NUTES), voltado à pesquisa de questões relacionadas ao ensino de Ciências,

particularmente no que se refere ao ensino de origem da vida e evolução dos seres vivos. Tive

contato com duas dissertações1 produzidas no contexto daquele laboratório que me instigaram

a pesquisar mais sobre minha antiga questão. A leitura desses trabalhos reforçou minha

percepção de falta do tema Origem da Vida em minha formação universitária em instituição

federal. Embora eu tenha cursado uma disciplina chamada Evolução, obrigatória no ciclo

1 Trigo (2005) e Nicolini (2006).

12

básico2, e outra denominada Evolução Humana como disciplina eletiva, em momento algum

de minha formação superior estudei de maneira sistematizada o tema Origem da Vida.

Desta forma, não foi difícil relacionar as dificuldades que percebi no ensino deste tema

no ensino médio com falhas em minha própria formação como professora de Biologia.

Percebi então a possibilidade e mesmo a importância de investigar o ensino de Origem da

Vida sob a ótica de professores de biologia: será que, assim como eu, manifestam certa

inquietação frente aos desafios gerados por ministrar aulas acerca daquele tema? Será que

teriam carências cognitivas relacionadas ao tema e causadas, ou não, pela ausência da

abordagem do tema em suas formações? Como estariam os seus domínios sobre as hipóteses

científicas da origem da vida? Perceberiam dificuldades na aprendizagem do tema em si

mesmos e/ou nos estudantes?

O ensino do tema Origem da Vida é baseado em hipóteses não completamente

comprovadas no âmbito da ciência. Optou-se por abordar também o tema Evolução Biológica

por este ser considerado fato científico, estando muito bem documentado atualmente, e por ser

abordado obrigatoriamente nos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas. Tais temas são

fundamentos da Biologia Moderna porque uniram os conhecimentos sobre os objetos de

estudo desta ciência (os seres vivos). Por outro lado, têm sido centro do debate sobre as

relações entre educação científica e educação religiosa, uma vez que é um dos tópicos do

Ensino de Ciências que se sobrepõe de maneira mais clara ao conhecimento religioso, e este

compõe parte da cultura brasileira. Quais seriam as percepções dos professores em relação a

tais questões? Que espaço ocuparia em suas percepções a importância do ensino de Origem da

Vida e Evolução Biológica? Quais seus domínios dos conteúdos científicos referentes aos

temas, os quais se encontram previstos nos Parâmetros Curriculares Nacionais? E os aspectos

religiosos envolvidos nos temas investigados entre os professores e seus estudantes? Como

convivem com as explicações científicas ensinadas na escola de nível médio?

Desta forma, e considerando os objetivos destacados pelos Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio (PCN+), proponho investigar as percepções de professores

atuantes no ensino público das esferas estadual e federal no município do Rio de Janeiro em

2 O curso de Ciências Biológicas da universidade em questão é dividido em ciclo básico, composto por disciplinas comuns a todos os estudantes durante quatro semestres (dentre as quais Evolução), e bacharelados ou licenciatura.

13

relação a seus objetivos e práticas pedagógicas no que tange ao ensino dos temas Origem da

Vida e Evolução Biológica.

O capítulo I pretende oferecer ao leitor a base teórica que sustenta a pesquisa. O item

I.a aborda as explicações científicas atuais dos temas em questão: Origem da Vida e Evolução

Biológica. Como complemento, são explicitadas vertentes divergentes das hipóteses

levantadas pela ciência. O item I.b apresenta as orientações e diretrizes previstas nos

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+) para o ensino dos temas Origem da Vida e

Evolução Biológica no ensino médio. Em seguida, no item I.c, apresenta-se a concepção

construtivista de ensino-aprendizagem. A apresentação do histórico do Ensino de Ciências no

Brasil (I.d) e as dificuldades de ensino e de aprendizagem de tais temas detectadas em

pesquisas anteriores (I.e) são realizadas ainda neste capítulo.

O capítulo II analisa alguns componentes da cultura humana, tais como o senso

comum, a religião e a ciência. Nesse capítulo encontram-se descritas as principais posições

encontradas na literatura no debate entre conhecimento científico e religioso.

O capítulo III apresenta a pesquisa e sua metodologia, com a descrição dos sujeitos e

instituições envolvidas, bem como a técnica metodológica desenvolvida: o Discurso do

Sujeito Coletivo (DSC).

O capítulo IV apresenta os resultados em quadros quantitativos (os quais caracterizam

a formação acadêmica e profissional dos professores entrevistados, assim como suas práticas

pedagógicas declaradas no que se refere ao ensino dos temas investigados) e qualitativos

(discursos do sujeito coletivo de ambos os grupos de professores entrevistados sobre as

questões dirigidas que abordaram o ensino e a aprendizagem dos temas em questão).

O quinto capítulo expõe as considerações feitas a partir da observação e análise dos

resultados. E, por fim, o último capítulo apresenta as conclusões da pesquisa e aponta alguns

desdobramentos possíveis.

14

I. ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: CIÊNCIA E E NSINO

Este capítulo trata das bases teóricas do conhecimento humano sobre a Origem da

Vida e a Evolução Biológica3 na atualidade. Inicialmente, são descritas as hipóteses aceitas

pela ciência, as quais devem ser ensinadas nas escolas brasileiras, segundo os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN+). Complementarmente, são apresentadas, de forma sintética,

duas explicações de base religiosa sobre o tema. O capítulo pretende ainda apresentar as

diretrizes propostas pelos PCN+ sobre o ensino dos temas da pesquisa no ensino médio e

apresenta as dificuldades na aprendizagem dos temas investigados, identificadas em pesquisas

anteriores.

I.a) ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA NA ATUALIDADE

Na presente seção, pretende-se configurar o conhecimento humano acerca da Origem

da Vida e da Evolução Biológica na atualidade. Para cumprir tal objetivo, apresentam-se a

seguir as principais vertentes de pensamento sobre os temas em questão.

A vida e sua origem: hipóteses

O problema da definição do fenômeno vida ainda hoje encontra diversas correntes de

pensamento. No século XIX, o naturalista e paleontólogo francês Georges Cuvier propôs uma

definição para a vida baseada na analogia com um ‘vortex’, ou turbilhão, de matéria onde

moléculas continuamente entrariam e sairiam das coisas vivas sem que houvesse alteração de

suas formas. Outros autores (Lamarck, Cournot, etc.) propuseram ainda outras definições para

a vida. Emmeche & El-Hani (2000) discutem duas possibilidades para a caracterização do

fenômeno vida: a essencialista4 e a paradigmática. Segundo tais autores, até o início do século

passado havia uma definição essencialista para a vida, de maneira que, para definir o que é

vida, era necessária a caracterização de um conjunto de propriedades que deveriam ser

listadas e verificadas. Entretanto, ao adotar esse tipo de caracterização para a vida, uma série

de questões relacionadas à quantidade e tipo de propriedades que deveriam ser incluídas na

lista de condições necessárias para aquele fim foi alvo de discussão. De todas as listas

possíveis de propriedades, qual seria a mais correta? Como se poderia garantir que uma

3 Optou-se por grafar os temas de ensino pesquisados com letra maiúscula para destacá-los no corpo do texto. 4 O termo essencialismo foi utilizado para designar as doutrinas filosóficas, metafísicas e ontológicas segundo as quais há propriedades essenciais, e há, por conseguinte, definições essenciais (reais). Alguns importantes autores (p. ex. Karl Popper), no entanto, opõem-se ao essencialismo por defender que tal idéia equivale ao antinominalismo. (Mora, 2001, p. 903)

15

propriedade essencial não foi deixada de fora? Ou que uma propriedade dispensável foi

incluída? Não há como responder a essas perguntas, pelo simples fato de que não se tem

acesso ao que seriam propriedades básicas, imutáveis e indiscutíveis, ou seja, àquilo que

definiria essencialmente um sistema como vivo. E há ainda o problema das chamadas formas

limítrofes, como vírus e outras estruturas moleculares, que apresentam, ao mesmo tempo,

propriedades características da matéria bruta e de seres vivos. Este tipo de abordagem do

problema “o que é vida?”, que exigiria as citadas propriedades, deve ser, portanto, superado,

concluem aqueles autores. Para tal definição, pode-se assumir uma visão alternativa que

reconhece a natureza paradigmática de qualquer definição de conceito (Emmeche & El-Hani

2000).

Segundo a visão paradigmática, os conceitos são definidos em termos de outros

conceitos. Para definir um conceito como parte de um paradigma é necessária a inserção do

conceito em uma rede de conceitos que se auto-suportam e conferem significado uns aos

outros. Emmeche (1997) procurou realizar tal tarefa e propôs que pelo menos três definições

de vida são encontradas na biologia teórica, pois possuem os requisitos da ciência tidos como

fundamentais pelo autor: universalidade; coerência com o conhecimento científico; elegância

conceitual e capacidade de organização cognitiva; e especificidade. Nessa linha de

pensamento, o autor reconhece três programas de pesquisa no campo científico que objetivam

definir vida. São eles: Neodarwinismo, autopoiese e biossemiótica. El-Hani e Kawasaki

(2002) defendem que a definição de vida à luz do paradigma neodarwinista encontra maior

aceitação entre alunos e professores, dada a predominância e divulgação deste paradigma

entre os sujeitos citados. Desta forma, pelo fato de o paradigma neodarwinista ser mais

divulgado e reconhecido entre os sujeitos envolvidos no ensino-aprendizagem dos temas

investigados, optou-se por adotar tal definição na presente pesquisa. No paradigma

neodarwinista, segundo Emmeche (1997), a vida é compreendida como a transmissão de

replicadores (DNA ou RNA) sob a influência da seleção natural. A vida existe quando há

moléculas capazes de guardar informações características dos diversos grupos de seres vivos

(DNA e RNA), tendo capacidade de transmitir as informações aos descendentes através de

um processo reprodutivo. As moléculas que caracterizam a vida (DNA ou RNA) são sujeitas a

mutações aleatórias e à ação da seleção natural.

Independentemente do tipo de definição adotado, o fenômeno vida ocorre. E, se

ocorre, deve ter havido um momento inicial, o surgimento da vida na Terra. Tendo em vista

16

que as condições de formação do planeta não seriam adequadas à vida, tal fenômeno deve ter

iniciado na Terra após seu resfriamento e acomodação. Esse surgimento, ou origem, da vida é,

ainda hoje, uma questão no campo da ciência em processo de investigação. As duas principais

correntes do pensamento científico sobre essa questão são analisadas a seguir.

A Panspermia é uma das duas hipóteses levantadas pela ciência. Segundo essa

hipótese, as primeiras moléculas orgânicas, ou mesmo a vida, teriam se originado em outro

ponto do Universo e chegado a Terra através de meteoritos. Dados relacionados à existência

de uma química orgânica universal dão suporte a esta hipótese. Fred Hoyle, astrônomo

britânico do Instituto de Astronomia da Universidade de Cambridge, foi um dos maiores

defensores da Panspermia. Juntamente com Chandra Wickramasinghe, professor de

Matemática Aplicada e Astronomia na Universidade de Cardiff, formulou a “Nova

Panspermia”, teoria segundo a qual vida se encontra espalhada por todo o universo. Esporos

de vida fariam parte das nuvens interestelares e chegariam a planetas próximos às estrelas,

abrigados no núcleo de cometas.

Hoyle & Wickramasinghe (1978) buscaram identificar os componentes presentes na

poeira interestelar, através de traços que esses componentes possam ter deixado na radiação

infravermelha emitida por essa poeira ou na absorção da luz visível que atravessa essas

nuvens. Essas análises comprovaram a presença de polímeros complexos, especialmente

moléculas de poliformaldeídos5, no espaço. Os autores, a partir de tal comprovação, se

convenceram de que polímeros orgânicos representam uma fração significativa da poeira

interestelar, sugerindo a hipótese de serem os cometas os semeadores dessas moléculas

complexas através do universo.

A análise de meteoritos procurando a identificação de vida fossilizada, tal como

divulgada na década de 1990, através dos estudos realizados sobre o meteorito de nome

EETA79001 (provavelmente originário de Marte), está ainda longe de dar resultados

conclusivos. Wickramasinghe (2005) apresentou resultados da análise de amostras de ar da

estratosfera, colhidas por balões da ‘Organização de Pesquisas Espaciais Indiana’ (ISRO)

onde foram encontradas evidências muito fortes da presença de vida microscópica à altura de

41 km do solo, bem acima do limite máximo (16 km) onde é admitido o alcance natural de ar

e outros materiais das camadas mais baixas da atmosfera. Esses resultados pertencem à tese

5 Moléculas fortemente relacionadas à celulose.

17

da Nova Panspermia, segundo a qual a vida na Terra não apenas teria chegado a bordo de

cometas e material cometário, há bilhões de anos atrás, mas continuaria ainda hoje nos

alcançando em grande quantidade (HOYLE, 1994; WICKRAMASINGHE, 2005). Entretanto,

essa hipótese não explica como as moléculas, ou seres vivos, resistiriam às condições

inóspitas de elevada temperatura existentes nos meteoritos quando cruzam a atmosfera

terrestre. Além disso, a hipótese apenas desloca a questão do surgimento da vida para outro

lugar do Universo.

A Evolução química é a hipótese mais aceita no meio científico. O registro fóssil nos

revela pouco sobre a origem da vida porque, nesta origem, os eventos seriam em escala

molecular. O planeta Terra possui cerca de 4,5 bilhões de anos de existência e, durante as

primeiras centenas de milhões de anos, foi bombardeada por enormes asteróides, que

vaporizaram os oceanos. As temperaturas eram altas demais para permitir o surgimento da

vida. As mais antigas rochas conhecidas datam de cerca de 3,8 bilhões de anos e localizam-se

na Groenlândia. Tais rochas contêm traços estruturais do que podem ser fósseis químicos de

formas de vida. De acordo com a hipótese da evolução química, a vida teria surgido a partir

de interações entre as diferentes moléculas que compunham a Terra primitiva. Inicialmente

teria ocorrido a formação de moléculas orgânicas primordiais que, associando-se, teriam

originado aglomerados orgânicos, dotados de membrana, denominados coacervados. Estes

seriam dotados de capacidade de transmissão de informações e capazes de realizar trocas com

o meio externo e reações químicas no meio interno.

A maior parte das pesquisas sobre a origem da vida não é realizada com base em

fósseis, e sim a partir de pesquisas de laboratório sobre o tipo de reações químicas que

poderiam ter acontecido no planeta há cerca de quatro bilhões de anos. Muitos dos “tijolos”

das construções moleculares da vida (como aminoácidos, açúcares e nucleotídeos) podem ser

sintetizados a partir de uma solução simples de moléculas inorgânicas simples, do tipo que

provavelmente teria existido nos mares primitivos da Terra, se uma descarga elétrica ou

mesmo radiação ultravioleta a atravessasse (RIDLEY, 2006).

Com o surgimento de tais tijolos moleculares orgânicos, o ponto crucial seguinte é a

origem de uma molécula simples replicável, ou seja, que fosse capaz de originar outra

semelhante. Embora não saibamos qual o tipo de molécula replicável mais ancestral, várias

linhas de evidência sugerem que o RNA precedeu o DNA, pelo fato daquele ser composto por

fita simples enquanto o último é composto por dupla fita, sendo portanto mais complexo.

18

Além disso, o DNA necessita de enzimas para ‘abrir’ suas fitas para que as informações de

ambas as fitas sejam lidas ou replicadas. O RNA, de modo inverso, pode interagir com o meio

de forma direta, sem depender de enzimas.

A fase (hipotética) primordial da vida é chamada, portanto, de ‘mundo do RNA’. A

vida passou a usar o DNA mais tarde na história evolutiva, provavelmente pela alta taxa de

mutação que o RNA possui, o que causaria mutações deletérias superiores à da possibilidade

de existência da vida. Isso quer dizer que formas de vida mais complexas não poderiam

evoluir antes que a taxa de mutação se reduzisse. A evolução do DNA teria reduzido a taxa de

mutação, ou a teria levado à redução. As evidências fósseis mais antigas datam de período

entre 3,5 e 3 bilhões de anos atrás, sob a forma de células fósseis (ou estromatólitos6).

Além das explicações científicas abordadas, há inúmeras explicações que permeiam as

sociedades humanas sobre a origem da vida na Terra, desde milhares de anos trás.

Apresentam-se resumidamente a seguir duas abordagens não-científicas da atualidade para o

surgimento da vida no planeta:

• Criacionista: Também chamada de hipótese criacionista. Diversas religiões crêem na

existência de um Deus, força suprema que teria criado o Universo e todos os processos e

elementos que o compõem.

• Design Inteligente (DI): A atual concepção denominada Design Inteligente, ou Intelligent

Design, baseia-se no conceito da ‘Complexidade Irredutível’ e propõe a idéia de uma

intencionalidade objetiva por trás da concepção da vida. Os adeptos do conceito de

‘Complexidade Irredutível’ argumentam que existem estruturas bioquímicas complexas

que não podem ser explicadas pelos mecanismos evolutivos do neodarwinismo. Essas

estruturas complexas teriam que surgir já prontas, caso contrário a existência de cada uma

de suas partes autônomas não poderia ser justificada evolutivamente. Os críticos dessa

idéia afirmam que a existência de estruturas irredutivelmente complexas em sistemas

biológicos não parece ser justificada. Tradicionalmente a comunidade científica

internacional ignora esta teoria, considerando-a um caso de pseudociência e criacionismo.

Em geral, os porta-vozes da comunidade científica alegam que a concepção do design

6 Estromatólitos são registros fósseis obtidos a partir da mineralização causada pelos sedimentos marinhos sobre ou entre células que, ao serem cobertas por minerais, crescem em direção à luz, o que gera uma camada mineralizada abaixo delas. Com a repetição do processo ao longo do tempo, forma-se um estromatólito, que consiste de várias camadas mineralizadas.

19

inteligente busca encobrir o criacionismo com uma roupagem científica e, nesse caminho,

sugere limites ao avanço do conhecimento científico, porque propõe que haveria

componentes dos fenômenos que não podem ser explicados. Tal afirmação é inaceitável

no campo da ciência.

Tais explicações para a origem da vida no planeta Terra compõem o repertório cultural

de grande parte dos estudantes, pois estão presentes na cultura e são bastante divulgadas pela

maioria das religiões.

Evolução biológica: um fato científico

Theodosius Dobzhansky (1973), notável geneticista e biólogo evolutivo ucraniano, no

célebre artigo “Nada em Biologia faz sentido se não for à luz da Evolução”, deixa clara a

importância da Evolução Biológica7 para as Ciências Biológicas. Embora tal afirmação

decorra do próprio paradigma neodarwinista adotado para a definição de vida, para esse autor

e para grande parte da comunidade científica internacional, a Evolução Biológica confere

coesão e vincula, de maneira direta ou indireta, cada um a todos os outros estudos biológicos.

Atualmente, temos consciência da enorme diversidade de seres vivos, algo entre dez e

trinta milhões de espécies, todas elas descendentes de antepassados em comum que viveram

num passado distante. Segundo o biólogo Ayala (1983), até o século XIX o conjunto de idéias

que teorizavam sobre toda esta diversidade era chamado de Teoria da Evolução Biológica, no

sentido de que as explicações elaboradas até então pudessem estar incorretas. O fenômeno da

Evolução Biológica encontra-se hoje descrito com relevante base empírica de comprovação.

Cada novo indício encontrado de organismos viventes em tempos remotos corrobora os

enunciados de tal teoria. O que é observado ainda hoje são divergências quanto a sua

reconstituição histórica ou sobre sua causalidade. Entretanto, tais divergências não colocam

em dúvida a sua existência como um fato científico. O biólogo evolucionista Futuyma (1992)

afirma que a Evolução Biológica é um conjunto de afirmações interligadas sobre seleção

natural e outros processos causais, de acordo com uma grande quantidade de evidências

amplamente aceitas, assim como a teoria atômica e a teoria da mecânica newtoniana.

Embora nem todas as evidências evolutivas possam ser testadas, a Evolução Biológica

é um fato científico, da mesma forma como vemos os movimentos da Terra ao redor do Sol. 7 Evolução biológica é o processo de modificação e diversificação das populações de seres vivos ao longo do tempo.

20

Assim como o heliocentrismo, a Evolução Biológica teve origem como uma hipótese e

modificou seu status para ‘fato científico’ à medida que evidências foram sendo somadas e

contribuíram para corroborar a idéia. Sabe-se que, quando alguém se opõe à idéia da

Evolução Biológica, usualmente são envolvidas crenças subjetivas ou religiosas, sem que haja

para tal oposição fundamentos aceitos pela ciência.

É no amplo panorama da teoria evolutiva que os fenômenos da biologia encontram

compreensão à luz da ciência desde as bases propostas por Charles Darwin, e hoje contam

com conceitos de grande importância desenvolvidos ao longo do século XX, configurando a

visão histórica que deu base ao atual neodarwinismo. Darwin, quando publicou sua principal e

mais conhecida obra sob o título Da origem das espécies por meio da seleção natural, ou a

preservação das raças favorecidas na luta pela vida, que passou a ser conhecida

historicamente apenas como A origem das espécies, defendeu que os organismos são produtos

de uma história de descendência com modificação a partir de ancestrais comuns, e que o

principal processo da Evolução Biológica é o da seleção natural das variações hereditárias.

Em outras palavras, a Evolução Biológica buscaria explicar como teriam ocorrido as

transformações nos seres vivos e os caminhos percorridos até chegar à diversidade atual.

Em “A Origem das Espécies”, Darwin (1859) estabeleceu a teoria da seleção natural

para explicar sua proposição acerca dos processos que deram origem a tamanha diversidade

de formas de vida. Além dos postulados de Darwin sobre seleção natural, outra revolução

dentro da área, incorporada mais tarde à teoria da Evolução Biológica, foi a importante

contribuição da Genética inicialmente elaborada por Johann Mendel a partir de 1910. Através

dos experimentos realizados por Mendel, houve a substituição do antigo conceito de herança

através da mistura de sangue pelo conceito de herança através de entidades particuladas (os

genes). O desenvolvimento da citogenética (por Thomas Hunt Morgan, entre outros), a partir

dos estudos de Mendel, permitiu reinterpretar a teoria da Evolução Biológica de Darwin à luz

das novas descobertas sobre a hereditariedade.

Com a descoberta da estrutura do DNA por James Watson e Francis Crick, em 1953, a

compreensão sobre a natureza e os mecanismos de controle genético aumentou, a ponto de ter

surgido mais uma corroboração científica para a Teoria Sintética da Evolução Biológica8: a

8 A Teoria Sintética da Evolução Biológica apóia-se na análise dos seguintes fatores evolutivos: mutação, recombinação, seleção natural, migração e oscilação genética. É uma complementação da teoria de Darwin em relação às fontes de variabilidade das populações, possibilitada a partir de 1910 com o desenvolvimento da

21

Genética Molecular. Esse novo conhecimento proporcionou maneiras muito sensíveis de

estudar a Evolução Biológica, principalmente em relação às moléculas que participam

diretamente do processo evolutivo biológico. O desenvolvimento das técnicas moleculares de

pesquisa permitiu novas abordagens sobre a Teoria Sintética.

A Teoria proposta por Darwin foi acrescida das descobertas na área da Genética

iniciadas por Mendel e pelas novas descobertas da Genética Molecular e adquiriu maior poder

explicativo a partir das informações somadas aos seus postulados. Portanto, a Teoria Sintética

da Evolução Biológica é um novo paradigma que resultou da síntese das descobertas de várias

disciplinas científicas (Futuyma, 1992).

As ciências geológicas também contribuíram para elucidar pontos da Teoria Sintética

da Evolução Biológica. Através do estudo sobre as características estruturais da superfície da

Terra, e de seu dinamismo, com modificação dos padrões geográficos ainda que muito lentos,

em milhões de anos de história geológica a superfície terrestre modificou profundamente a

configuração das terras e dos mares, de montanhas e de desertos, determinando modificações

importantes nos ambientes. Como a seleção natural adapta os organismos às condições

ambientais modificadas, a história dessas modificações ambientais reflete-se na história

evolutiva da vida.

Para Ridley (2006) a evolução não prossegue ao longo de um curso grandioso e

previsível. Para esse autor, a evolução ocorre de maneira dependente ao ambiente no qual

determinada população vive e das mutações genéticas que surgem dentro daquela população

por um processo aleatório. A diversidade de espécies teria sido criada pela bipartição repetida

de linhagens desde um único ancestral comum de todos os seres vivos (Ridley, 2006). Tal

afirmação é, ainda hoje, controversa. Parte da comunidade científica defende que teria havido

mais de uma forma de vida ascendente, e que a diversidade de espécies encontrada atualmente

não possuiria, portanto, um único ancestral.

Genética e o conhecimento do material hereditário (ácidos nucléicos). A Teoria Sintética da Evolução Biológica considera, conforme Darwin já havia feito, os mecanismos da seleção natural, construindo a escala de evolução de cada geração. Esta teoria aceita a seleção natural como um dos fatores evolutivos, mas não o mais importante, uma vez que se apóia também no estudo da diferenciação genética e da regulação da atividade gênica. Seu principal objeto de estudo é a população, definida por ela como uma comunidade reprodutora e caracterizada por seu polimorfismo genético. O êxito individual de cada membro da população na produção de uma descendência determinará a transmissão de alelos. Assim sendo, cada genótipo irá possuir um valor seletivo que modificará em última instância a freqüência dos diferentes alelos (Goedert, 2004).

22

Os mecanismos da Evolução Biológica, como mutações e isolamento geográfico,

incluem também a seleção natural, que é responsável pelas adaptações dos organismos a

diferentes ambientes. Nem a seleção natural, nem qualquer outro processo evolutivo, como

por exemplo, as mutações, possuem direção ordenada; a seleção natural é meramente a

sobrevivência e maior reprodução de uma população de organismos em comparação a outra,

sob as condições ambientais que prevaleçam naquele momento. Portanto, a seleção natural

não dota uma espécie de características favoráveis em quaisquer ambientes, e sim em um

momento de sua história evolutiva. A seleção natural não possui objetivo, é apenas uma

resposta das populações às variações ambientais. Essas respostas podem ser positivas para a

população, no caso desta sobreviver a uma mudança ambiental por causa de uma

característica que possui, ou negativa, caso seja extinta por causa daquela mudança. Assim

como os ambientes variam, também o fazem os agentes da seleção natural tais como

recombinação e mutação. Ridley (2006) chama a atenção para os dois principais temas da

teoria evolutiva: mudança e bipartição.

Segundo Freire-Maia (1986), na evolução dos seres vivos, influem concomitantemente

fatores estocásticos (acontecimentos causais, que ocorrem ao acaso, como a deriva genética) e

determinísticos (acontecimentos que ocorrem como conseqüência da causalidade, por

exemplo a origem de novas espécies pela atuação da seleção natural).

Para Goedert (2004), a Evolução Biológica, algumas vezes, é

confundida com “progresso” das formas de vida inferiores às superiores, mas é impossível definir quaisquer critérios não arbitrários pelos quais tal “progresso” possa ser medido. A própria palavra “progresso” implica direção, se não mesmo o avanço em relação a um objetivo, mas nem direção nem objetivo são fornecidos pelos mecanismos da Evolução Biológica. (Goedert, 2004:53)

Isso era tão evidente para Darwin que, segundo Futuyma (1992), ele escreveu, em seu

caderno de notas, nunca dizer superior ou inferior, em referência às diferentes formas de vida.

Ainda segundo este autor,

como todos os conceitos importantes, a Evolução Biológica gera controvérsia; como muitos conceitos importantes, ela tem sido usada como uma base ou fundamento intelectual para pontos de vista filosóficos, éticos ou sociais. Em seu sentido mais amplo, a Evolução Biológica é meramente mudança e, deste modo, é uma idéia de ampla penetração - galáxias, linguagens e sistemas políticos evoluem. (Futuyma, 1992:7)

23

Já Morgan (1925) defendeu que fixar todos os tipos de mudanças ao longo do tempo, e

chamá-las de evolução, é afirmar que se acredita em uma série consecutiva de eventos

causalmente conectados. O objetivo da ciência, segundo este autor, é descobrir que causas

especificamente estavam envolvidas quando as estrelas evoluíram no céu, quando o cavalo

evoluiu na Terra, e quando o motor a vapor foi liberto da mente do homem. No caso da

evolução biológica, mais do que traçar uma sequência de organismos de acordo com sua

suposta complexidade, o objetivo da ciência é explicar como as modificações ambientais

atuaram (e atuam) sobre as formas de vida, fazendo-as alterar suas formas ao longo do tempo.

Por concentrar a concordância de grande parte da comunidade científica especializada

no tema e conferir coesão ao conhecimento biológico, o ensino da Teoria da Evolução

Química da Vida e da Teoria Sintética da Evolução Biológica encontra-se previsto nas

diretrizes curriculares para o ensino médio, formalmente organizadas nos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN+), documento oficial proposto pelo Ministério da Educação do

Brasil, a seguir apresentado.

I.b) PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCN+)

O documento, de cunho federal, tem por objetivo orientar as práticas pedagógicas com

a definição de temas estruturadores da disciplina e divulgação de opções metodológicas

desejáveis, de forma a atualizar a educação frente às transformações sócio-culturais da

sociedade contemporânea, levando em conta as leis e diretrizes que redirecionaram a

educação básica.

A nova Lei que hoje rege a educação brasileira tornou possível o abandono do modelo

anterior, onde o ensino médio se dividia em pré-universitário e profissionalizante, e

estabeleceu o ensino médio como etapa conclusiva da educação básica de toda a população

estudantil.

Para que os objetivos do novo ensino médio brasileiro sejam alcançados, os PCN+

foram desenvolvidos e possuem a definição das diretrizes a serem abordadas ao longo da

etapa educacional, assim como sugestões metodológicas para a abordagem dos conteúdos. Os

PCN+ são divididos em três volumes: ciências humanas e suas tecnologias; linguagens,

códigos e suas tecnologias; e ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Com base

24

neste último volume, apresentam-se a seguir as orientações relativas ao ensino de biologia no

ensino médio.

O ensino de origem da vida e evolução biológica como eixos integradores da biologia,

segundo os PCN+:

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+), a prática pedagógica do

professor de biologia deve ter a evolução biológica como eixo integrador de todo o conteúdo

da disciplina durante o ensino médio.

O aprendizado de Biologia no ensino médio visa permitir a compreensão científica do

fenômeno vida, incluindo sua origem e evolução, e também dos limites e diferenças de

formulação existentes nos diferentes sistemas explicativos, tais como religião e ciência. A

natureza da ciência deve ser abordada, a fim de estimular a compreensão de que, nas ciências

biológicas assim como nas demais, não há explicações definitivas, sendo construídas a partir

de questionamentos e transformações de idéias. Deve haver, ainda, a compreensão de que a

ciência pode ser usada para explicar aquilo que podemos observar, como também realizar

inferências sobre os fenômenos; que a ciência é um produto da mente humana, que observa,

reflete, discute e conclui sobre a maneira que os fenômenos ocorrem provisoriamente, que

busca legitimação através de uma realidade observada e de discussões sistematizadas pelos

princípios da metodologia científica (a qual não deve ser confundida com verdade absoluta).

Segundo o documento, a abordagem da história e da filosofia da ciência deve tornar acessível

aos alunos uma visão crítica sobre como a ciência é construída e que existem relações entre a

produção científica e o contexto social, econômico e político, sendo fundamental estimular a

integração entre o conhecimento científico e o momento histórico de sua origem e

transformação.

O PCN+ orienta os professores a partirem do todo para cada uma das partes, ou seja,

iniciar o estudo da biologia pelo meio ambiente, produto das interações entre os fatores

abióticos e os bióticos. A partir destas interações, cada organismo deve ser estudado em

particular como parte do ambiente, pois, segundo o documento, desta forma a aprendizagem

será mais significativa. Cada organismo, por sua vez, deverá ser estudado como fruto de

interações entre sistemas, aparelhos e órgãos, estes últimos formados por conjuntos de células.

As células configuram-se pelas interações entre suas organelas, mediadas por reações

químicas entre moléculas diversas.

25

No PCN+, é sugerida a articulação de conteúdos da biologia como um todo integrado

ao conteúdo relacionado à evolução da vida. Essa integração deve ser abordada

historicamente, ressaltando que, em diferentes épocas e escolas de pensamento, foram aceitas

diversas idéias sobre o surgimento da vida na Terra. É importante relacioná-las ao momento

histórico de elaboração, ressaltando os limites de cada uma das idéias na explicação do

surgimento da vida.

Ao abordar a teoria sintética da evolução, o professor deve destacar a contribuição de

diferentes campos do conhecimento para a sua elaboração (Paleontologia, Embriologia,

Genética e Bioquímica). As relações entre alterações ambientais e modificações dos seres

vivos decorrentes do acúmulo de alterações genéticas devem ser consideradas como eventos

sincrônicos que são, sem que se pense em simples relação de causa e efeito; a variabilidade

genética deve ser abordada como conseqüência aleatória de mutações e de combinações

diversas de material genético, e deve ser compreendida como substrato sobre o qual a seleção

natural atua; a ação da natureza selecionando combinações genéticas que se expressam em

características adaptativas deve ser mencionada, e deve-se considerar a reprodução como fator

que define a permanência ou exclusão de determinados genes na população.

Ainda segundo o PCN+, não é possível e nem desejável tratar, no Ensino Médio, do

conhecimento biológico completo e de todo o conhecimento tecnológico a ele associado. A

maior importância é contextualizar esses conhecimentos, apresentar a história da Biologia

como um movimento não linear e freqüentemente contraditório. É importante que o ensino de

Biologia se proponha ao desenvolvimento de competências que permitam ao aluno interpretar

as informações de forma crítica e adquirir a capacidade de agir com autonomia, fazendo uso

dos conhecimentos adquiridos da Biologia e da tecnologia.

Conforme o PCN+,

A física dos átomos e moléculas desenvolveu representações que permitem compreender a estrutura microscópica da vida. Na Biologia estabelecem-se modelos para as microscópicas estruturas de construção dos seres, de sua reprodução e de seu desenvolvimento. Debatem-se, nessa temática, questões existenciais de grande repercussão filosófica, sobre ser a origem da vida um acidente, uma casualidade ou, ao contrário, a realização de uma ordem já inscrita na própria constituição da matéria infinitesimal.(PCN+, 2008:15)

Um ponto a sublinhar sobre os PCN+ é a importância exposta no documento da

articulação dos conteúdos específicos com a compreensão da natureza da atividade e

26

conhecimento científicos no cenário das culturas humanas. A teoria do construtivismo

sustenta as propostas de enfoque dos conteúdos apresentadas nos PCN+ e será abordada a

seguir.

I.c) A CONCEPÇÃO CONSTRUTIVISTA DE ENSINO E APRENDIZAGEM

Com base na obra de Jean Piaget e Lev Vygotsky, entre outros, a psicologia da

aprendizagem denominada construtivismo apresenta mudanças importantes nas metas que os

professores estabelecem para os alunos, assim como no modo de atingi-las e avaliá-las. Em

vez de comportamentos ou habilidades como meta da instrução – propostos nos paradigmas

behaviorista e maturacionista9- no construtivismo são enfocados o desenvolvimento de

conceitos e a compreensão em profundidade: em vez dos estágios serem compreendidos como

decorrentes da maturação, são entendidos como construções reorganizadoras de um aprendiz

ativo (Fosnot, 1998).

Segundo o construtivismo, a aprendizagem é desenvolvimento, na medida em que

requer do aprendiz invenção e auto-organização. Assim, os professores precisam permitir que

os alunos coloquem suas perguntas, gerem suas próprias hipóteses e modelos como

possibilidades e testem sua validade. Os ‘erros’ devem ser vistos como elementos que

provocam o desequilíbrio e não devem ser evitados ou minimizados em importância. Para

Fosnot (1998), é preciso oferecer investigações abertamente desafiadoras em contextos

significativos realistas, permitindo aos aprendizes explorar e gerar muitas possibilidades,

tanto corroboradoras como contraditórias. As contradições, em particular, precisam ser

esclarecidas, exploradas e discutidas. O diálogo aberto dentro de sala de aula, segundo a

teoria da aprendizagem considerada, engendra mais pensamento. A sala de aula deve ser vista

como uma comunidade discursiva engajada em atividade, reflexão e conversação (Fosnot,

1989). Os alunos, e não o professor, devem ser responsáveis pela defesa, justificativa e

comunicação de suas idéias pois, assim, poderá ocorrer o desequilíbrio necessário para que a

aprendizagem de novos conceitos seja efetivada. À medida que os estudantes se empenham

para produzir significados, mudanças progressivas dos pontos de vista são construídas, as

9 O behaviorismo explica a aprendizagem como um sistema de respostas comportamentais a estímulos físicos. Os educadores que usam o arcabouço behaviorista pré-planejam um currículo dividindo um conjunto de conteúdos em partes que, supostamente, constituem seus componentes –“habilidades”- e então encadeiam essas partes em uma sequência hierárquica, variando da mais simples à mais complexa. (...) Em contrapartida, o maturacionismo é uma teoria que descreve o conhecimento conceitual como dependente do estágio de desenvolvimento do aprendiz, o qual, por sua vez, seria decorrente de programação biológica inata (Fosnot, 1998, p. 27- 28).

27

quais se configuram como princípios organizadores centrais construídos pelo estudante que

frequentemente requerem desfazer ou reorganizar concepções prévias e/ou alternativas.

A Ciência é uma disciplina escolar em grande parte baseada na abstração. Ainda que

alguns de seus conceitos eventualmente pareçam fazer parte de linguagem e do discurso

cultural cotidiano, os conhecimentos científicos e os cotidianos são produzidos por processos

epistemológicos diferentes (Moraes, 2000). Face a tal constatação, como pode o professor de

ciências possuir uma prática construtivista? Para este autor, existem três atitudes ante os

alunos e a situação de aprendizagem que devem ser consideradas: a atitude pesquisadora, no

sentido de que o professor construtivista deve pesquisar sua prática e a de seus alunos para

conhecer suas concepções e motivações prévias; a atitude questionadora, de forma que seja

valorizada prioritariamente a prática do perguntar, ao invés de informar; e a flexibilidade, de

modo que procedimentos e planejamentos rígidos sejam abandonados em troca de um

posicionamento de adaptação às circunstâncias do processo de aprendizagem e às

necessidades dos alunos, sem que tal flexibilidade seja interpretada como um processo não-

direcionado. As conseqüências de tal abordagem são especialmente importantes no ensino de

origem da vida e evolução biológica dado às características de seu estágio de conhecimento

científico e sua relação com outros campos da cultura, como a religião. Os estudantes chegam

às salas de aula com representações de tais temas fortemente influenciados por seus contextos

sociais específicos, nem sempre influenciados pela ótica da ciência. Segundo Fosnot (1998),

para que o professor desenvolva uma prática construtivista, é importante que ao longo de sua

formação tal perspectiva esteja presente.

Assim como os alunos constroem o conhecimento, do mesmo modo o fazem os professores. Os programas de educação de professores fundamentados em uma visão construtivista da aprendizagem precisam fazer mais do que oferecer uma perspectiva construtivista em uma ou duas disciplinas isoladas. As crenças dos professores precisam ser esclarecidas, discutidas e desafiadas. Os professores precisam ser envolvidos em experiências de aprendizagem que confrontem as crenças tradicionais, através de experiências em que eles possam estudar as crianças e seu estabelecimento de sentido, e em trabalhos de campo onde eles possam compartilhar experiências. Apenas através de extenso questionamento, reflexão e construção, ocorrerá a mudança para o novo paradigma em educação – o construtivismo. (Fosnot, 1990, p.238)

Pesquisas sobre as concepções alternativas (ou conhecimentos prévios) encontram-se

bastante difundidas dentro da área de ensino de ciências. Alguns autores têm considerado o

conhecimento prévio como impedimento para alcançar um conhecimento posterior, utilizando

28

a idéia de Bachelard de obstáculo epistemológico10. No entanto, pode-se, segundo pesquisas,

considerar conhecimento prévio como anterior a uma situação de ensino, e não propriamente

como obstáculo, uma vez que dificilmente encontram-se estudantes livres de qualquer

conhecimento prévio. Não existem dúvidas de que aspectos afetivos, motivacionais, sociais e

econômicos, dentre outros, têm papel importante e decisivo nos processos de compreensão de

novos conteúdos estudados em sala de aula. As concepções prévias dos estudantes e seu

desequilíbrio mediado pelo professor mostram-se como possibilidade de abertura ao diálogo

entre aquelas e os novos conceitos trazidos pela escola (COBERN, 1996; MORTIMER,

1996). Em outras palavras, a discussão das concepções prévias trazidas pelos estudantes em

confronto com os novos conceitos apresentados em sala de aula, e mediada pelo professor,

permite que seja estabelecido um diálogo produtivo que favorece a aprendizagem.

A seguir, serão apresentados alguns aspectos do histórico do ensino de ciências no

Brasil que serão úteis pra situar um pouco mais e melhor compreender questões do ensino de

ciências:a reformulação da educação brasileira e a mudança de objetivos que a escola básica e

o ensino de ciências sofreram nas últimas décadas.

I.d) HISTÓRICO DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO BRASIL

Com base nos autores Krasilchik e Arroyo, pode-se dizer que o ensino de ciências no

Brasil sofreu influências políticas através de reformas na legislação ao longo das últimas

décadas, e isso teve reflexos profundos na maneira como as disciplinas científicas são

abordadas. Alguns desses reflexos podem ser encarados como um dos motivos do fracasso

escolar de grande parte dos estudantes no que se refere às disciplinas de caráter científico.

Dessa forma, torna-se pertinente a busca por uma melhor compreensão acerca da construção

dos objetivos do ensino de ciências na escola brasileira.

A primeira influência política abordada refere-se ao argumento da neutralidade da

ciência presente ao longo da década de 1950, de acordo com a qual suas práticas, seus

objetivos, e seus profissionais não seriam afetados por valores, escolhas ideológicas e

influências de contingências históricas. Sob esta perspectiva, em um contexto mundial

marcado pela Guerra Fria entre Estados Unidos e URSS, a ciência era concebida nos meios

acadêmicos como uma atividade neutra, onde os cientistas possuíam a isenção necessária para

10 Obstáculo epistemológico, para Gaston Bachelard, é a dificuldade do indivíduo de romper com o conhecimento naturalizado e aderir a idéias novas, o que inibe o avanço do conhecimento.

29

que pudessem realizar suas atividades de pesquisa sem passarem por julgamento de valores

(Krasilchik, 2000). No Brasil, via-se a necessidade de preparar jovens mais aptos para formar

uma elite baseada nos modelos importados das grandes potências mundiais a fim de

impulsionar o progresso da ciência. Havia então a tentativa de superar a dependência externa

e a busca pela auto-suficiência baseada numa ciência autóctone.

Nesse contexto, a partir da década de 50 do século XX, as ciências exatas passaram a

ter destaque sobre as humanas no âmbito da educação. Segundo Miguel Arroyo,

o pensamento mais comum entre os professores é que o ensino de ciências se relaciona com a preparação para o mundo produtivo. Se lhes perguntarmos para que servirá a física, a química, a biologia e a matemática ensinadas no segundo grau, a resposta será quase unânime: para capacitar os jovens a um trabalho profissional competente. Se fizermos a mesma pergunta aos professores de humanas (no linguajar escolar a condição de ciências não se aplica a humanas), possivelmente a resposta seja: preparar os jovens para a cidadania (Arroyo, 1989:4).

Na década de 60, a partir dos movimentos integradores que estendiam à população

escolar como um todo o ensino de ciências, a dicotomia entre ciências exatas e humanas

tornou-se mais clara. As reformas educacionais de 1968 e 1971 procuravam dar à escola a

função da preparação para o mercado de trabalho, deixando em segundo plano a formação da

cidadania. Essa separação entre as disciplinas exatas e humanas, de certa forma, contribuiu

como para o reforço da crítica a uma formação por demais “livresca” e “humanista”, em

sentido pejorativo, e deu lugar ao que se costumou chamar saber técnico-científico, adequado

ao sistema produtivo. Nas palavras de Arroyo (1989):

No final da década de sessenta e início da década de setenta fez-se uma crítica rígida ao saber transmitido no sistema escolar brasileiro. Tratava-se com desprezo o chamado saber tradicional, visto como livresco, humanista, metafísico, apropriado a uma república de bacharéis diletantes e improdutivos. Propunha-se um saber moderno, técnico-científico, útil, prático, capaz de formar profissionais e trabalhadores eficientes para uma sociedade produtiva (Arroyo, 1989:5).

Desta forma, procurava-se passar uma visão tecnicista e despolitizada para a

sociedade, uma visão que pregava que o importante seria tão somente preparar os jovens para

o mercado de trabalho, pois através dessa preparação o Brasil seria alçado a um posto de

maior competição no mundo produtivo. Invalidou-se a importância de diferentes dimensões

da cultura justamente quando as culturas dos diversos grupos étnicos e sociais do Brasil eram

invadidas e tomadas pelas culturas externas dos países com maior capacidade de exportação,

no momento em que o modo de pensar capitalista e a racionalidade burguesa invadiam o

30

cotidiano, o privado e o público, o legítimo e o ilegítimo, o permitido e o proibido, o

valorizado e o desprezado (Arroyo, 1989:6).

Entretanto, segundo Krasilchik (2000), houve, também durante a década de 60, um

movimento de busca da inclusão escolar que permeou o ensino de ciências. A formação de

uma elite científica no modelo técnico-científico começou a deixar de ser o objetivo do ensino

escolar de ciências e a escola passou a caminhar em direção a uma nova compreensão de seu

papel: os objetivos da educação escolar deveriam incluir todos os cidadãos, e não mais apenas

de um grupo privilegiado. Com isso, houve também a ampliação do ensino das ciências nos

currículos escolares, que passou a ser incluído desde o início da vida escolar, com aumento

substancial de carga horária. Física, química e biologia passaram a ter a função de também

desenvolver o espírito crítico através do exercício do método científico. Os objetivos, nesse

momento, começam a girar em torno da formação de cidadãos-trabalhadores, com propostas

curriculares estaduais, e com a concepção de ciências fundamentada no pensamento lógico-

crítico, esvaziando o sentido de sua neutralidade. Entretanto, quando houve o início da

ditadura militar no Brasil, no ano de 1964, o papel da escola em relação ao desenvolvimento

da cidadania foi desestimulado. Por razões óbvias, naquele momento histórico, o objetivo

primordial da escola não deveria ser o incentivo ao pensamento crítico da cidadania, mas a

formação do trabalhador adaptável ao sistema produtivo, e que era visto como peça

importante para o desenvolvimento econômico do país (Krasilchik, 2000:86).

Formalizando essa opção, a década de 70 trouxe a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação no 5692, com caráter nacional, a qual norteou claramente as modificações

filosófico-educacionais e as propostas de reformas no ensino de ciências. Nesse momento, as

disciplinas científicas passaram a ter caráter profissionalizante altamente voltado para o

mercado de trabalho, segundo a legislação vigente. Entretanto, as escolas privadas

mantiveram sua proposta de preparação para o ensino superior e mesmo a escola pública não

aderiu fielmente à pretensa preparação para o trabalho proposta por aquela legislação. Torna-

se importante contextualizar esse momento histórico. Embora o Brasil estivesse mergulhado

em uma ditadura que se manteve por duas décadas, os acontecimentos mundiais continuaram

a ter importância na elaboração e objetivação do ensino de ciências.

Entre as décadas de 60 e 80 do século passado, a consciência ambiental é provocada

pelo aumento da poluição, crises energéticas etc. e determinou profundas mudanças no papel

das disciplinas científicas. A escola passou a se preocupar com o estudo de conteúdos

31

científicos relevantes para a vida do estudante, com intenção de identificar os problemas

vividos e buscar soluções para estes. Dessa forma, os temas interdisciplinares começam a

ganhar espaço com projetos acerca da poluição, lixo, energia, recursos naturais, crescimento

populacional etc. E ressurge, então, o incentivo à educação escolar ligada ao desenvolvimento

da cidadania.

Por todo o acima exposto, há de se pensar sobre os objetivos atuais do ensino de

ciências no Brasil relacionados tanto ao contexto mais amplo das políticas educacionais

quanto àqueles mais estritos aos processos de ensino-aprendizagem. Sob o contexto atual,

com todos os problemas sociais, econômicos, políticos e ideológicos envolvidos, torna-se

necessário compreender melhor o que se espera da escola e do ensino. Os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN+, 2008) buscaram definir os objetivos e diretrizes da educação

básica brasileira, integrando conteúdos, valores e atitudes. Novos desafios se fizeram

presentes: ver o estudante como alguém a ser ouvido e considerado, o que exigiu

desdobramentos da abordagem educacional. Nessa perspectiva, os estudantes são jovens

culturalmente caracterizados e capacitados a expressar concordâncias e divergências com o

que lhes é apresentado pela escola, aí incluídos os conteúdos e objetivos do ensino de

ciências. Tudo isto abriu espaço para a valorização pedagógica das concepções prévias, isto é,

dos conhecimentos trazidos pelos estudantes de diferentes espaços sociais que nem sempre se

harmonizam com o conhecimento científico oferecido na escola.

I.e) DIFICULDADES NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM DE ORIGEM DA

VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA APONTADAS PELA LITERATURA

Há diversas pesquisas, algumas relacionadas ao ensino de origem da vida e evolução

biológica, que apontam dificuldades à tentativa de se modificar conhecimentos e visões

trazidos pelos estudantes de seus contextos sociais. Especialmente na área de ensino de

ciências, muitos são os relatos de fracasso na aprendizagem de temas que possuem

explicações prévias. Diversos autores que abordam a área de ensino de ciências discutem a

seguinte questão: para a aprendizagem dos conhecimentos científicos é necessária a renúncia

a valores, visões e crenças, ou seja, conhecimentos prévios, que não se enquadram nos limites

da ciência?

Posner (1982) defende a renúncia a concepções prévias como condição de

aprendizagem da ciência, a chamada ‘mudança conceitual’, considerada necessária para que a

32

compreensão científica seja incorporada. Nesta perspectiva, dever-se-ia conseguir que os

estudantes renunciassem às suas explicações prévias. Tal abordagem tem se mostrado não só

de difícil realização, mas mesmo indesejável diante da liberdade de escolha de crenças

religiosas. A partir desta compreensão, outros autores admitem a possibilidade de convivência

entre conhecimentos prévios e aqueles ensinados na escola, tais como Cobern (1996),

Mortimer, (1996), Villani & Cabral (1997) e El-Hani & Bizzo (2002). Considerar os dados

das teorias sociológicas, antropológicas e psicológicas exigiu compreender o estudante como

um sujeito que teve sua identidade construída a partir de sua cultura social e familiar, em

torno de uma visão de mundo, valores e crenças. Nesse contexto, de acordo com aqueles

autores, o objetivo do ensino de ciências limita-se a tornar o conhecimento científico

compreensível aos estudantes. Este entendimento se mostra hoje como uma tendência de

receptividade dos conhecimentos prévios dos estudantes como parte de sua própria

identidade, e não passível obrigatoriamente de sofrer intervenção escolar.

Considerando o tema foco da pesquisa aqui relatada – o ensino de Origem da Vida e

Evolução Biológica - tem sobressaído a presença das crenças religiosas influenciando atitudes

de estudantes na compreensão e receptividade de explicações científicas. Diferentes pesquisas

têm identificado tal fenômeno. Em alguns estudantes protestantes de licenciatura em Ciências

Biológicas, Sepúlveda & El-Hani (2004) observaram que as teorias científicas foram

aprendidas quando se encontravam numa posição de convivência com a crença religiosa que,

por sua vez, continuava a ser o eixo organizador da visão de mundo dos estudantes. Desta

forma, os estudantes daquela pesquisa integraram o conhecimento científico sobre a origem e

evolução da vida com suas crenças religiosas, quando construíram um modelo explicativo

próprio, sem ferir os fundamentos da ciência. Entretanto, essa convivência nem sempre se

torna possível, conforme pesquisa realizada por Trigo (2005) com grupo de estudantes do

ensino médio. Tal pesquisa indicou que houve influência de crenças religiosas na rejeição das

explicações científicas para origem da vida e evolução biológica. Nesse trabalho, foi

observada uma tendência de maior rejeição às teorias da ciência por parte dos estudantes

evangélicos em contraste com os católicos, que apresentaram uma tendência de maior

aceitação dessas explicações, na medida em que avançava o período escolar. Ao final do

ensino médio, a influência das crenças religiosas na aceitação de explicações científicas tinha

diminuído no conjunto de estudantes pesquisados, mas não desaparecido, e a análise dos

processos, atividades e tempo dedicados ao ensino dos temas revelou diferentes falhas, o que

mostrou que a dificuldade de aceitação das explicações científicas para Origem da Vida e

33

Evolução Biológica poderia estar relacionada também com problemas presentes no processo

de ensino-aprendizagem.

Outra pesquisa revelou alguns outros aspectos relacionados ao ensino de ciências que

podem influenciar na aprendizagem do tema origem da vida. Nicolini (2006) demonstrou em

seu trabalho que há um abismo existente entre o que é apresentado no meio acadêmico sobre

origem da vida e o que deve ser debatido na sala de aula. O tema em questão está previsto nos

PCN+, mas nem sempre as licenciaturas o abordam de maneira sistematizada. As divulgações

veiculadas pelos diversos meios de comunicação de massa, e também as religiões, contribuem

para aumentar a complexidade do repertório trazido pelos estudantes. Fato é que as idéias

científicas acabam por ser confrontadas com crenças e atitudes religiosas trazidas pelos

estudantes. Falcão, Santos & Luiz (2008) mostraram a extensa influência da presença de

igrejas evangélicas em contexto socialmente carente: o discurso religioso, na escola

pesquisada, prevaleceu ao longo do ensino médio para origem da vida e evolução biológica.

Também nessa escola foram identificadas fortes e amplas carências pedagógicas.

Cerqueira, Costa & Falcão (2007) realizaram uma pesquisa que teve como objetivos

principais identificar e compreender as concepções científicas e religiosas de dois grupos de

estudantes do ensino médio (1º e 3º ano) de uma escola particular localizada no município de

São João de Meriti/RJ acerca da origem do ser humano. Observou-se uma rejeição de

conceitos científicos sobre a evolução humana em ambos os grupos pesquisados e a

preferência da maioria dos estudantes pela explicação religiosa de origem bíblica, em

detrimento da explicação científica. Mais uma vez, a presença religiosa nas explicações foi

inquestionável. Poder-se-ia, numa primeira interpretação, atribuir à presença da religião a

responsabilidade pelos erros científicos dos estudantes. Mas, diante das condições da escola

investigada, pode-se também pensar que faltaram recursos pedagógicos que favorecessem as

condições de aceitação dos estudantes quanto ao tema pesquisado: evolução humana. O

conjunto dos resultados dessas pesquisas mostrou tanto carências estruturais e pedagógicas

das escolas como o impacto das características sócio-culturais dos estudantes.

A literatura especializada (MOREIRA, 1999) aponta fatores limitantes à relação

ensino-aprendizagem eficaz quando se ignora a cultura dos estudantes que podem dificultar a

compreensão de determinados conteúdos. A exigência de preparo do professor é grande ao

abordar temas que possuem ampla gama de explicações trazidas dos contextos sociais dos

estudantes, o mesmo valendo para os aportes institucionais como bibliotecas e laboratórios. A

34

prática pedagógica no tocante aos temas em tela geralmente limitam-se à explanação por parte

do professor e consulta aos livros didáticos, os quais, em sua maioria, não oferecem recursos

além dos textos. Nesse quadro, pode não ser surpreendente a opção dos estudantes pelas

explicações religiosas. Essas já foram oferecidas ao longo de suas vidas e em contextos

sociais e afetivos de maior poder persuasivo do que aqueles oferecidos por sua escola. Esse

quadro poderia justificar uma maior necessidade de cuidados educacionais especiais que não

estão sendo oferecidos aos estudantes.

Para Falcão, Santos & Luiz (2008), os resultados de sua pesquisa revelaram que

muitos dos estudantes, mesmo com forte envolvimento religioso, estão abertos ao ensino de

ciências. Tal conclusão foi realizada através da observação de que, quando questionados sobre

uma possível interferência entre suas crenças religiosas e o estudo da Biologia, parte dos

estudantes mostrou compreender que religião e ciência referem-se a explicações diferentes, de

naturezas distintas. Segundo os autores,

tal perspectiva vai ao encontro da atitude defendida por autores (...) que expressam seu entendimento de que o objetivo do ensino das ciências não é produzir a extinção de conhecimentos, crenças ou valores prévios que os alunos trazem quando chegam à escola. Ainda que a pesquisa (...) não tenha abordado o padrão de relacionamento pessoal entre estudantes e seus professores de ciências, é importante registrar que, considerando estudos da psicologia e da sociologia, tal relacionamento pode influenciar o processo dinâmico e mutável das representações sociais dos estudantes. Assim, em face da análise do conjunto dos dados obtidos (...), é possível concluir que os efeitos do contexto social adverso aos objetivos escolares de ensino dos conteúdos da ciência não se colocam como absolutos nem parecem irreversíveis. (Falcão, Santos & Luiz, 2008:437)

Tendo em vista os inúmeros relatos e trabalhos anteriormente publicados sobre as

dificuldades enfrentadas pelos estudantes na aprendizagem dos temas, torna-se necessária

uma consciência profunda sobre o papel pedagógico do professor para a compreensão e

aceitação das explicações científicas de seus alunos, especialmente no que se refere aos temas

que possuem explicações religiosas e de senso comum. E para que o professor possua

instrumentos para tornar sua prática mais eficiente, é preciso que sua formação esteja em

constante avaliação e reformulação, se necessária. O professor precisa dominar o conteúdo

específico e compreender a natureza do conhecimento e das práticas da ciência.

35

Para Scheid, Ferrari & Delizoicov (2006),

constatações conduzem a uma reflexão sobre o processo de formação dos professores de ciências biológicas. Possivelmente, um dos entraves no processo ensino-aprendizagem está na visão positivista de ciência, ainda muito presente, que impõe uma racionalidade técnica que torna o professor responsável pela detenção de verdades descobertas, que transmite aos seus alunos como prontas, acabadas, inquestionáveis. A História da Ciência, inserida na educação científica, poderá oportunizar um caminho de orientação aos alunos na apropriação de uma concepção de ciência como atividade humana, construída na interação entre o sujeito cognoscente, o objeto a conhecer e o ‘estado do conhecimento’. (Scheid, Ferrari & Delizoicov, 2006:224)

Conclui-se que a diversidade da cultura humana exige preparação, diálogo e abertura

por parte dos professores de biologia ao abordarem os temas Origem da Vida e Evolução

Biológica em sala de aula. Como as crenças religiosas têm mostrado grande influência nos

temas aqui tratados, é importante lembrar que o processo de secularização mostra nuances,

tendo em vista que ainda hoje se observam muitos elementos da religião permeando a

sociedade. Não obstante o esforço necessário para a separação da educação formal e da

religião no mundo ocidental secularizado, é imperioso observar que a cultura humana não tem

como ser compartimentalizada. Muito se tem discutido acerca da importância da separação

entre escola (educação formal) e religião. Segundo Giumbelli & Carneiro (2004),

hoje, na sociedade brasileira e, particularmente, no Rio de Janeiro, vemos ressurgir uma questão que envolve o Estado e a religião através de uma temática que sempre foi extremamente sensível, a educação, ou melhor, a formação básica oferecida pela escola dirigida aos futuros cidadãos. Essa educação deve ser laica ou religiosa? (Giumbelli & Carneiro, 2004:11)

O aporte teórico das ciências sociais vem sustentando a importância dos

conhecimentos prévios dos estudantes quando da abordagem do conhecimento científico, e

para melhor contextualização serão tratados no capítulo II alguns dos seus principais

elementos.

36

II. CULTURA: MUNDO SOCIAL, RELIGIÃO E CIÊNCIA

O presente capítulo pretende apresentar as bases teóricas das ciências sociais e

sociologia do conhecimento que serão consideradas na pesquisa. Para tal, foram escolhidos

autores representativos das áreas em questão: Clifford Geertz, Serge Moscovici, Denise

Jodelet, Peter Berger e Thomas Luckmann.

II.a) A CULTURA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE

A sociedade é formada por indivíduos que compartilham, ainda que com diversidades,

um mesmo pensamento coletivo, ou seja, que reconhecem uma realidade comum, a qual será

chamada no presente trabalho de cultura, seguindo as linhas propostas por Geertz (1989) e

Berger & Luckmann (2003).

O ser humano possui uma necessidade inerente de transformar o não-familiar em

familiar, de organizar o mundo e criar sentido para as suas experiências. O compartilhamento

das experiências, valores e idéias dos indivíduos dá origem à realidade cotidiana de uma

sociedade. As trocas simbólicas11 formam sistemas de valores e concepções que os indivíduos

reconhecem como realidade.

Segundo Berger & Luckmann,

O que é ‘real’ para um monge tibetano pode não ser ‘real’ para um homem de negócios americano. O ‘conhecimento’ do criminoso é diferente do ‘conhecimento’ do criminalista. Segue-se que aglomerações específicas da ‘realidade’ e do ‘conhecimento’ referem-se a contextos sociais específicos e que estas relações terão que ser incluídas numa correta análise sociológica desses contextos (Berger & Luckmann, 2003:13).

É no contexto dessas realidades típicas que diferentes culturas são desenvolvidas e

reconhecidas. Em seu livro A Interpretação das Culturas, Geertz cita Max Weber para

construir o conceito de que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele

mesmo teceu, ou seja, a cultura é o conjunto de tais teias juntamente com a sua análise. A

cultura, portanto, é pública e, embora uma ideação, não existe na cabeça de ninguém; embora

não-física, não é uma identidade oculta.

11 Troca simbólica é a permuta de símbolos pelos indivíduos humanos. Símbolo, segundo Berger & Luckmann (2003), é o produto social que carrega consigo uma história, ou seja, é gerado num contexto histórico a partir das interações entre os membros de uma sociedade.

37

Na medida em que assumimos que todo o conhecimento humano (ou cultura) é

desenvolvido, transmitido e mantido em situações sociais, através dos aportes da sociologia

do conhecimento, podemos buscar a compreensão do processo através do qual isso acontece,

ou seja, de que maneira uma realidade tida como correta torna-se sólida na mente do homem

comum. É nesta compreensão que será possível identificar diferentes conteúdos que, num

certo momento, prevalecem para explicar fenômenos como Origem da Vida e Evolução

Biológica.

Segundo Berger & Luckmann, o senso comum, ou ‘realidade da vida cotidiana’, está

presente numa sociedade anteriormente à existência dos indivíduos. Quando um ser humano

nasce, já encontra a sociedade formada em torno de fundamentos do conhecimento da vida

cotidiana (ou senso comum). Foi construído no passado e é interpretado por cada um dos

indivíduos componentes de tal sociedade.

Para esses autores, existem dois tipos distintos de realidade: a realidade objetiva e a

realidade subjetiva. A realidade objetiva constitui-se pelo conjunto de crenças, valores e

idéias preexistentes em relação ao indivíduo. A linguagem, seja ela corporal ou vocabular, é o

primeiro contato do homem com a sociedade, ou seja, é o que em primeira instância torna os

homens membros de uma sociedade. Através da linguagem o homem começa a dotar a vida

de sentidos e significados. Desta forma, pode-se dizer que através da linguagem o homem

experimenta a realidade objetiva.

A realidade subjetiva é formada a partir da interpretação individual da realidade

objetiva. Ou seja, a partir do senso comum, o homem é livre para interpretar os

conhecimentos adquiridos. É o que diferencia um homem do outro, diferenças formadas a

partir da interiorização e re-elaboração da realidade objetiva. O processo ontogenético através

do qual isso acontece é chamado de socialização. A socialização consiste na ampla introdução

de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade. Podem-se destacar dois tipos de

socialização: a primária e a secundária. A socialização primária é a socialização

experimentada pelo indivíduo durante a infância, onde se torna de fato membro social. Essa

primeira socialização tem forte apelo junto ao indivíduo, pois se origina a partir da relação

familiar e é dotada de grande valor afetivo. É quando a personalidade do indivíduo se forma, a

partir do reflexo daqueles entes tomados como significativos. A criança interioriza o mundo

das pessoas significativas para ela não como uma das possibilidades de mundo, mas como o

único mundo existente. Por esta razão, o mundo interiorizado durante a socialização primária

38

é muito mais fortemente enraizado em sua consciência do que aqueles outros mundos

descobertos durante a socialização secundária. Por mais que, durante o processo secundário

de socialização, o indivíduo seja colocado frente a informações novas, ainda assim as

informações do mundo social primário permanecem em sua lembrança como certeza aderida.

A socialização secundária ocorre a partir da interiorização pelo indivíduo de

conhecimentos institucionalizados. Os processos formais de socialização secundária devem

pressupor o processo anterior de socialização primária. Assim sendo, na escola, deve-se levar

em conta que os estudantes já possuem uma personalidade formada e determinada bagagem

moldada durante aquele primeiro processo de socialização. Qualquer que seja o conteúdo

abordado, provavelmente já há uma explicação primária obtida. Este conflito pode ser de fácil

solução, ou extremamente difícil. Segundo Berger & Luckmann (2003), para que haja a

possibilidade de questionamento dos conhecimentos adquiridos durante a socialização

primária, e também para que o novo conhecimento encontre terreno fértil, é fundamental que

exista ligação emocional entre os indivíduos que interagem (no caso, aluno e professor).

O ser humano torna-se homem ou mulher a partir da interação com seus pares. O

conjunto de homens e mulheres transforma o ambiente em humano, ou seja, é impossível que

um homem criado isolado desenvolva-se no que chamamos homem, assim como um

indivíduo isolado não cria um ambiente humano. Para Berger & Luckmann (2003), o ser

humano isolado é um ser no nível animal. (...) A humanidade específica do homem e sua

sociabilidade estão inextricavelmente entrelaçadas (pág. 75). O ser humano torna-se homem

ou mulher porque vive sob uma organização artificial12 criada pelo próprio ser humano: a

ordem social. A ordem social é produto da atividade humana e origina-se da exteriorização da

realidade como percebida pelo homem ou mulher. É uma necessidade humana que torna o

ambiente estável para que o indivíduo sinta-se em segurança. Segundo os autores,

A inerente instabilidade do organismo humano obriga o homem a fornecer a si mesmo um ambiente estável para sua conduta. (...) Estes fatos biológicos servem de premissas necessárias para a produção da ordem social. Em outras palavras, embora nenhuma ordem social existente possa ser derivada de dados biológicos, a necessidade da ordem social enquanto tal provém do equipamento biológico do homem (Berger & Luckmann, 2003:77).

O ser humano necessita do hábito, do familiar. As atividades e ações realizadas dentro

de um padrão familiar conservam um caráter significativo que transmite segurança, traz alívio

12 Berger & Luckmann (2003:76) utilizam o conceito de organização artificial no sentido que a ordem social não pode ser considerada inerente à espécie humana de maneira natural (ou parte da natureza humana).

39

psicológico e, por isso, configurações estáveis de convivência social são estabelecidas ou

institucionalizadas, como a família, a escola, a religião. Produzidas na dinâmica das

interações sociais, as instituições implicam a historicidade e o controle sobre as ações. Os

autores em questão apontam, no trecho a seguir, a definição de instituição adotada no

trabalho:

As instituições, também, pelo simples fato de existirem, controlam a conduta humana estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a canalizam em uma direção por oposição às muitas outras direções que seriam teoricamente possíveis (Berger & Luckmann, 2003:80).

As diversas instituições que fazem parte do mundo social de determinada sociedade

contribuem para construir o conjunto de idéias e valores partilhados pelos indivíduos. É nesse

sentido que será apresentada a seguir a noção de representação social.

Representação social: o conceito

O espectro das idéias e valores sobre determinado tema presentes em um grupo social

é denominado ‘representação social’. A Teoria das Representações Sociais (TRS) tem como

formulador Serge Moscovici que, fundamentado no conceito de representações coletivas

desenvolvido por Emile Durkheim, estudou a maneira pela qual os indivíduos buscam

compreender o mundo que os cercam. Desde a primeira publicação de Moscovici sobre a

TRS, estudiosos assistem a uma grande expansão na utilização do seu conceito. Para este

autor, representando-se uma coisa ou uma noção, não produzimos unicamente nossas

próprias idéias e imagens: criamos e transmitimos um produto progressivamente elaborado

em inúmeros lugares, segundo regras variadas (op. cit., p. 63).

Durkheim (1947), no prefácio da segunda edição de seu livro As regras do método

sociológico, cunhou o termo “representações coletivas” a fim de compreender a ideação social

à qual se opõe a representação individual. Este autor aplicou tal conceito em relação a

sociedades estáticas, tradicionais e estabelecidas. Durkheim compreende também como

representações coletivas diversas produções mentais sociais, tais como a ciência, a religião, a

ideologia e os mitos. Observa-se ainda que Durkheim absteve-se de discutir os aspectos

cognitivos da representação da realidade e também sua produção pelos grupos sociais.

No livro A psicanálise, sua imagem e seu público, Moscovici (1961) retoma o ponto

de vista de Durkheim e soma novas especificações a tal perspectiva. A referida obra foi

40

pioneira no estudo das representações sociais como construção de um conhecimento válido

pelo senso comum, o qual é dinâmico e recebedor de idéias e valores de origens diversas, tais

como política, religiosa, científica, filosófica e moral. Em sua obra, o autor estuda como a

visão da psicanálise se modifica na medida em que é apropriada por diferentes grupos da

sociedade. Sua pesquisa mostra que o saber científico é transformado em uma dimensão de

senso comum, conforme é reinterpretado por cada um dos grupos sociais investigados. Em

resumo, o autor procura enfatizar que as representações sociais não são apenas opiniões ou

imagens sobre algo, mas teorias coletivas complexas sobre o real, sistemas que têm lógicas e

linguagens particulares, ou seja, uma rede de valores e conceitos que determinam o campo das

comunicações possíveis sobre os valores ou idéias compartilhadas pelos grupos e regem, desta

forma, as condutas desejáveis ou admitidas (Moscovici, 1978, p.51). Jodelet (2001), no

mesmo sentido, enfatiza que o conhecimento do senso comum é uma maneira de interpretar a

realidade cotidiana e não se constrói no vazio, se desenvolve nas formas e normas da cultura e

é construído ao longo das trocas cotidianas. Por isso, afirma-se que a representação social é

socialmente construída. A partir dos elementos propostos, pode-se definir representação social

como a construção social e dinâmica de um saber de senso comum elaborado por meio das

interações sociais, através dos valores, das crenças, dos estereótipos etc. partilhados por

determinado grupo social no que concerne a diferentes objetos (pessoas, acontecimentos,

categorias, fenômenos, etc.), dando lugar a uma visão comum das coisas.

Por todo o acima exposto, pode-se concluir que, em se tratando de coletividades (por

exemplo, os grupos de professores investigados), a sedimentação das idéias ocorre de forma

intersubjetiva, onde os sujeitos que formam a coletividade experimentam memórias

construídas em comum. É diante das diversas interpretações (representações) sociais

(docentes e discentes) que professores apresentam conteúdos em sala de aula. Laços

familiares, por exemplo, incluem toda uma rede de significados culturais que permeiam os

processos de desenvolvimento de crianças e jovens. Trata-se de um repertório com o qual os

professores irão lidar em suas salas de aula. Influências diversas originadas em conhecimentos

institucionalizados, como aqueles das religiões e das ciências, poderão estar mais ou menos

presentes neste repertório. É disso que tratará a próxima seção.

II.b) A RELIGIÃO COMO INSTITUIÇÃO

A religião se constitui por um sistema de pensamento que busca caracterizar o mundo

e torná-lo familiar segundo crenças específicas. Até os séculos XVII/XVIII, a religião era o

41

sistema de pensamento dominante no Ocidente. A relação estreita que havia entre religião e

Estado contribuía para esta dominância.

Segundo Geertz (2004), há uma articulação entre duas dimensões encontradas em

qualquer grupo social quando a religião é observada: a visão de mundo, que remete à

metafísica, à cosmologia e à ontologia; e o ethos, que define valores, moral e ética, e estilo de

vida de um grupo social. A religião opera a convergência entre essas duas dimensões,

articulando intelecto e emoção, e remetendo para concepções de realidade e valorações morais

construídas culturalmente. Para este autor, a crença religiosa difere do senso comum, na

medida em que a experiência religiosa é algo que ocorre ao religioso além do resto do senso

comum que ele comunga com todos os outros ocupantes de seu grupo social (o qual não é

formado exclusivamente por participantes da mesma religião). Desse modo, a religião tem

impacto sobre o cotidiano, mas não é o cotidiano como um todo.

Segundo Faustino Teixeira, Peter Berger entende a religião como projeção humana,

baseada em infra-estruturas específicas da história humana (Teixeira, 2003:229-230). A

abordagem de Berger na obra O dossel sagrado (1967) para o fenômeno religioso leva em

consideração que a religião exerce para os que aderem a ela, uma ordenação da realidade, de

maneira a protegê-los da anomia. Segundo esse autor, um dos aspectos da religião é exercer

um grande poder de legitimação, o que, em certas condições, pode até promover certa

alienação. Tal alienação seria, neste caso, causada pelo status ontológico da religião, tida

como validade suprema. O indivíduo que vê a religião desta maneira tem sua compreensão

dialética do mundo prejudicada, não enxergando mais sua participação e co-produção na

realidade. Quando confronta o fenômeno religioso com a modernidade, Berger aponta uma

crise de credibilidade da religião causada pelo processo de secularização que surgiu a partir

da Revolução Científica. Este processo ocorreu quando houve a separação entre Estado e

Religião. Na visão de Weber (apud Teixeira, 2003), a secularização atua no subjetivo da

consciência do indivíduo e na sociedade e sua cultura. Assim sendo, observou-se a redução da

religião ao campo subjetivo do indivíduo ou de pequenos grupos, e a elevação do caráter do

Estado como laico. O pluralismo religioso, causado pela quebra do monopólio religioso até

então presente, contribuiu para instaurar a competição ainda maior entre as distintas

definições da realidade.

42

O indivíduo moderno existe numa pluralidade de mundos migrando de um lado a outro entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes contraditórias, cada uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua coexistência involuntária com outras estruturas de plausibilidade. Além dos ‘outros significantes’ que confirmam a realidade, há sempre e em toda parte ‘aqueles outros’, incômodos refutadores, descrentes – talvez o incômodo moderno por excelência (PETER BERGER, In: Teixeira, 2003:235)

Para Karl Marx a religião é tida como produto do mundo dos homens, que por causa

de suas condições materiais de existência buscam na religião alívio para sua miséria. Na

primeira fase de seus trabalhos, como na obra Contribuição à crítica da filosofia do direito de

Hegel (1843), Marx vê a religião como alienação. Posteriormente, na Ideologia Alemã (1845),

considera a religião como ideologia ou ainda falsa consciência que esconde a realidade da

dominação das classes. Para este autor, a religião perderá força dentre os homens quando

estes forem livres, conscientes e donos de seu próprio movimento social.

O homem não é um ser abstrato, fora do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque são um mundo invertido. (...) A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo (Marx, 1974: 93-94)

Èmile Durkheim parte da análise do fenômeno religioso para sua tese fundamental: as

representações coletivas. Para Durkheim, a religião não simplesmente mantém coesa uma

sociedade em torno de seus ritos e símbolos, mas proporciona a um grupo de homens o laço

social primordial. Com o processo de secularização, a multiplicidade de religiões e o

desenvolvimento da ciência, diversos sistemas de significados passaram a coexistir. Na

próxima seção é realizada uma abordagem sintética da história da ciência, assumindo-a como

forma de conhecimento que modificou profundamente as sociedades humanas.

II.c) A CIÊNCIA COMO INSTITUIÇÃO

No século XVII, na Europa ocidental, começou a ser desenvolvida uma maneira

completamente nova de observar os fenômenos da natureza. A base da nova visão está situada

muito antes, mas nos trabalhos de filósofos da natureza como Galileu, Descartes, Newton é

que se encontram os elementos da chamada revolução científica. De fato, hoje percebemos

que estes pensadores sintetizaram correntes de pensamento e iniciaram uma nova forma de

descrição da natureza. Esse momento da história do pensamento ocidental é o marco inicial de

uma nova forma de conhecer o mundo que nos cerca, baseado no saber racional que, hoje,

está claro no que chamamos ciência.

43

Segundo historiadores da ciência como Henry (1998), o momento inicial dessa

mudança é controverso, variando no período que se estende do século XVI ao século XVIII.

Entretanto, o fato do momento denominado revolução científica não possuir data precisa e ser

um conceito histórico e não um marco absoluto não diminui o grau das mudanças observadas

a partir daquela revolução. A própria palavra ‘revolução’ gera debate: a idéia de ruptura

radical com o passado é discutível, uma vez que sobre o conhecimento acumulado durante o

período pré-revolução é que foram construídos os conhecimentos advindos do que chamamos

ciência.

Segundo Marilena Chauí, historicamente são distintas três concepções de ciência: a

racionalista, a empirista e a construtivista. A concepção racionalista (que engloba o período

entre os gregos e o final do século XVII) confere à ciência um caráter racional dedutivo e

demonstrativo como a matemática. A verdade absoluta e universal seria atingida através dos

enunciados e resultados obtidos e se configuraria como a própria realidade, pois seria racional

e inteligível em si mesma. As experiências científicas teriam a função de somente verificar e

confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este

já teria sido conhecido através do pensamento matemático, exato e irrestrito.

A concepção empirista se firma na medicina grega e em Aristóteles até o final do

século XIX e postula que a ciência é baseada em observações e experimentos que permitem

estabelecer induções e realizar inferências sobre os fenômenos. Ao se completar as

observações e induções, pode-se definir o objeto, suas propriedades e leis de funcionamento.

A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência

não tem simplesmente a função de verificar e confirmar conceitos, mas a de produzi-los

(Chauí, 2006: 221). Essa seria a causa da constante preocupação com o método científico

rigoroso, pois dele dependeria a formulação da teoria e a definição dos objetos observados.

Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era espécie de raio X da realidade (Chauí, 2006:221).

A concepção construtivista, iniciada no século XX, confere à ciência o título de

modelo explicativo para a realidade e não uma representação da própria realidade. Não há

mais a visão de que a ciência explicita a realidade absoluta. O cientista confia na aproximação

dos métodos e na capacidade de correção e modificação. A ciência atual é baseada em três

44

exigências, segundo Marilena Chauí: coerência, isto é, falta de contradições entre os

princípios que regem a teoria; observação e experimentação para a construção dos modelos; e

a alteração e modificação de modelos construídos previamente.

Há uma distinção profunda no que se refere à ciência pré-revolução (anterior ao século

XVII, dita antiga) e a ciência pós-revolução científica (clássica ou moderna). A ciência antiga

era uma ciência teorética, contemplativa, que procurava conhecer os seres naturais e os

fenômenos sem a intenção de intervir neles ou sobre eles. Já a ciência moderna visa não só o

conhecimento teórico, mas principalmente possibilidades de intervenção com aplicações

práticas, técnicas ou tecnológicas13. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na

natureza, na idéia de apropriação, controle e domínio. A ciência torna-se o exercício do poder

humano sobre a natureza.

Durante certo tempo, acreditou-se que a ciência evoluiria e progrediria através de uma

sucessão de descobertas e criações científicas, no sentido de aperfeiçoamento e melhoria do

mundo, em sua compreensão e práticas de vida. Para Marilena Chauí, evolução e progresso

são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao

presente (Chauí, 2006:222). Tal forma de pensar influenciou também as ciências sociais

quando, durante bastante tempo, acreditou-se que os povos europeus civilizados fossem mais

evoluídos do que indígenas e/ou africanos, ou mesmo no conceito de países desenvolvidos e

sub-desenvolvidos. Ao realizar tal distinção, tomam-se como referência a continuidade

temporal, a acumulação causal dos acontecimentos, a superioridade do futuro e do presente

com relação ao passado e a existência prévia de uma finalidade a ser alcançada. Entretanto,

na área da filosofia da ciência, comparações foram realizadas em momentos distintos do

conhecimento sobre geometria (clássica e euclidiana), física (Aristóteles, Galileu-Newton e

Einstein) etc. e verificou-se uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias

científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva ou melhor

de fazer ciência, mas como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os

objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar tecnologias (Chauí, 2006:223).

Esses estudos contribuíram para que se compreendam as descobertas científicas e a

construção da ciência moderna como um todo, ou seja, é preciso que se tenha em mente o

contexto específico de surgimento das mudanças. Para John Henry, o empenho por uma

13 Técnica é um conhecimento empírico inicial que elabora uma prática para ação sobre as coisas. Tecnologia, por sua vez, é compreendida como um saber teórico que é aplicado na prática posteriormente.

45

contextualização cada vez mais rica pode ser visto, portanto, como a força propulsora da

atual historiografia da ciência (Henry, 1998:18). Neste caminho, a dimensão social da

produção científica tornou-se foco de diferentes pesquisas trazendo à luz aspectos que deram

base à compreensão construtivista da ciência. Autores como Kuhn, Bloor, Latour, Bourdieu e

Cettina são, hoje, importantes referências para a compreensão do fazer ciência.

Thomas Kuhn considera que a ciência pode ser dividida em ‘ciência normal’ e

‘ revolução científica’. Para este autor, um campo científico é criado quando conceitos,

experimentos, métodos e tecnologias formam uma teoria que permite interpretar vários

fenômenos. A teoria se torna um modelo ou paradigma científico, o qual também pode ser

descrito como o campo no qual uma ciência opera normalmente, sem crises, sendo chamada

de ‘ciência normal’. Durante a vigência do modelo aceito como normal, um cientista, ainda

que diante de um fato novo, utiliza-se de tal modelo para explicá-lo. Entretanto, se o

paradigma disponível (ou modelo normal) não é suficiente para explicar um novo fato ou

fenômeno, torna-se necessário o surgimento de um novo paradigma, o que se constitui como

uma ‘revolução científica’. De acordo com essa proposição, a ciência não caminha de maneira

linear e progressiva, mas sim através de saltos e revoluções.

Influenciado pela visão de dimensão social da ciência, Thomas Kuhn definiu:

paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma

comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma (Kuhn, 1978:220).

Pode-se concluir então que, para Kuhn, a ciência é mais do que a prática da verdade: é o que

um grupo humano estabelecido compreende e partilha como sendo a melhor maneira de

interpretar os fatos e fenômenos. Dentro de um período de ‘ciência normal’, o paradigma é

como uma herança cultural que os cientistas transmitem sucessivamente através das gerações.

Assim como qualquer faceta da cultura, o paradigma é transmitido pelo treinamento,

socialização e controle entre os membros da comunidade científica. Quando se acumulam

fatos e fenômenos que não podem ser satisfatoriamente explicados com o uso do paradigma

normal, ocorre uma instabilidade na comunidade científica. Com o acúmulo de problemas

não-equacionados pela ‘ciência normal’ e a instabilidade da comunidade científica, ocorre a

‘ revolução científica’ onde um paradigma é substituído total ou parcialmente por outro novo e

incompatível com o anterior. No momento de instabilidade, ocorre o surgimento de

competições e conflitos pelo domínio do campo do conhecimento. Porém, após o

estabelecimento do novo paradigma há o decréscimo dos conflitos e o surgimento de uma

46

visão de ciência e de mundo completamente diferentes da anterior. Essa visão de Kuhn, ainda

que comporte diferenças em relação aos autores a seguir apresentados, deixou a marca da

visão sociológica da ciência. Essa visão de diferentes desdobramentos compõe o importante

repertório acadêmico para a compreensão da ciência como instituição.

Pierre Bourdieu introduziu a noção de campo científico em detrimento do conceito de

comunidade científica de Kuhn. A ciência seria um campo de lutas pelo monopólio da

autoridade e competência científicas, ou seja, há luta dentro da comunidade científica pelo

crédito/capital simbólico14. Além disso, a autonomia da comunidade científica e da ciência

deve ser avaliada tendo em vista a sociedade como um todo à qual pertence. Para Bourdieu,

cientistas não são neutros, mas interessados no jogo do mundo social e das possibilidades do

que ele chamou de acúmulo de crédito científico ou capital simbólico. O próprio interesse dos

cientistas por certas áreas de estudo explicariam seus objetos e práticas de pesquisa. Para este

autor, pouco do trabalho do cientista poderia ser incluído no que Kuhn chamava comunidade

científica. Bourdieu refere-se ao grupo como campo, pois defende que haja luta e interesses

incutidos no trabalho relacionado à ciência como em qualquer parcela da sociedade

capitalista. Portanto, diferentemente de Kuhn, que crê na manutenção e ruptura com o

paradigma científico vigente como processo normal de pesquisa, Bourdieu vê tal manutenção

e ruptura como estratégia dos agentes em busca do capital simbólico, e nesse sentido

‘valores’, ‘universalidade’, ‘ética’ podem ter influências muito relativas.

Outros autores que investigaram a sociologia da ciência, como Latour & Woolgar e

Knorr-Cetina, exploraram diferentes aspectos no esforço de contextualizar o trabalho do

cientista para que se possa conhecer sua produção. Para tal fim, Latour & Woolgar (1997)

realizaram pesquisa etnográfica com descrição minuciosa do funcionamento das práticas

científicas e da própria ciência, realizando desta forma uma micro-análise em contraste com

as macro-análises sociais de Kuhn e Bourdieu. Mostraram dados que retrataram formas de

imposição da autoridade científica no campo da luta e interesse por acúmulo de capital

simbólico.

No livro ‘A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos’, Latour & Woolgar

(1997) concluíram que não são as normas inculcadas pelo treinamento que orientam os

14 Crédito científico ou capital simbólico deve ser compreendido como o capital não monetário de autoridade/competência científica que pode ser acumulada, transmitida e até re-convertida em outros tipos de capital no mercado da produção do conhecimento científico.

47

cientistas. O apelo às normas é geralmente instrumental, e a linguagem dos cientistas está

repleta de termos econômico-financeiros como investimento, oportunidades e retorno, sendo

impossível avaliar se tal uso se deve de fato aos motivos reais dos cientistas ou se são

justificativas. A observação de Latour & Woolgar permite questionar a proposição de

Bourdieu, para quem a recompensa pela atividade científica seria o crédito. Tais autores

defendem que haja a ampliação do significado de crédito, associando-o com ‘crença, poder e

business activity’ (1997:194), para o conceito de credibilidade. Essa ampliação mantém os

elementos econômicos da proposição de Bourdieu, mas também considera (como objetivo

primeiro) o re-investimento de recursos acumulados, o que garante ao cientista credibilidade

para obter dinheiro, equipamentos, informações, prestígio, credenciais, áreas de estudo,

argumentos, papers, livros, prêmios, vinculando, assim, o cientista ao mundo exterior ao

laboratório, por exemplo, com agências de financiamento, leitores, fornecedores etc. (Latour

& Woolgar, 1997:200-201).

Em trabalhos posteriores, Bruno Latour desenvolveu a idéia de que não basta

reconstruir e explicitar o contexto social dentro do qual o conhecimento científico deve ser

compreendido, mas é preciso também mostrar como o contexto social é afetado pelos

conteúdos da ciência. Ou seja, a ciência não só é moldada pelo contexto social, mas também

atua neste contexto, modificando e reorganizando a sociedade a partir de suas descobertas e

produtos.

Karin Knorr-Cetina segue a linha construtivista, que percebe os produtos da prática

científica como construções contextualmente específicas que têm como característica a

situação contingente e a estrutura do processo pela qual foram geradas (Knorr-Cetina,

1981:5), ou seja, o produto da ciência não deve ser entendido separadamente das práticas que

o constituíram.

De forma semelhante aos demais autores que abordam a prática científica em

laboratórios, Knorr-Cetina sustenta que as descobertas e os produtos científicos são

selecionados de maneira contingente ao contexto social, sendo permanentemente

descontextualizados e transformados em inovações universais nos trabalhos de divulgação de

resultados. Entretanto, a autora defende que haja a contextualização para que, ao invés de

paradigmas universais, a ciência seja observada como conjunto de métodos e práticas

contingentes e locais, o que torna o exercício científico nada mais do que uma das práticas da

vida social. A diferença fundamental entre Knorr-Cetina e os demais autores (como Kuhn,

48

Bourdieu, Latour e Woolgar) mostra-se na perspectiva lançada por aquela da importância das

relações entre cientistas e não-cientistas na produção do conhecimento.

Os autores apresentados nesta seção são alguns dos muitos que hoje se dedicam aos

micro-estudos apoiados na história, antropologia e sociologia da ciência. Muitos dos

resultados desses estudos não só fazem avançar a compreensão da natureza das práticas que

elaboram o conhecimento científico, como também têm feito avançar a renovação das práticas

de ensino nas salas de aula. Tais práticas sofrem ainda a influência da visão construtivista da

ciência, que exige uma compreensão renovada do mundo social estudantil encontrado nas

salas de aula. Esse mundo social traz tanto jovens curiosos diante dos fenômenos naturais e

sociais, como sua diversificada bagagem cultural ancorada desigualmente nas crenças

religiosas e científicas. A seguir serão apresentadas algumas reflexões sobre o tema: conflitos

entre a ciência e a religião.

II.d) RELIGIÃO E CIÊNCIA: CONFLITOS?

Em todas as sociedades humanas de que se têm notícias, há milhares de anos, a

religião sempre exerceu uma forte influência sobre a vida dos seres humanos. A visão

religiosa e o pensamento racionalista moderno, contudo, vivem em um alarmante estado de

tensão (Giddens, 2005). Em alguns momentos históricos, a religião e a ciência não eram

vistas como divergentes. Entretanto, a partir da modernidade, houve ocasiões onde estiveram

em desacordo entre si. As visões evolucionista e criacionista, por exemplo, enfatizam duas

maneiras bem distintas de interpretar as origens da vida e do ser humano.

As primeiras críticas à religião datam do período da filosofia pré-socrática, segundo

Chauí (2006). Em algumas culturas, a religião ainda se apresenta como sistema explicativo

geral, pretendendo explicar causas e efeitos, relações entre os seres, valores morais etc. No

caso da cultura ocidental, a religião é mais um dos sistemas explicativos disponíveis

permeando a sociedade. Filosofia e ciência elaboraram explicações diferentes das religiosas e,

com isso, a sociedade passou a conviver com explicações diversas sobre os fenômenos da

natureza. Ao instaurar-se a diferenciação entre a religião, a filosofia e a ciência, a cultura

ocidental experimentou a ruptura entre fé e razão. Já na Grécia antiga, através de Pitágoras,

Heráclito e Xenófanes, com as críticas à religião, assinalou-se tal ruptura (Chauí, 2006,

p.266).

49

As relações entre religião e ciência são discutidas desde o surgimento da ciência

moderna. Não há consenso nem ao que se refere a este surgimento: alguns autores sustentam

ter havido uma ruptura com o passado; outros defendem uma forte continuidade; e outros

ainda sugerem um surgimento híbrido. De fato, a ciência moderna foi destacada da religião

em decorrência de seu método de ação. No entanto, isto foi sendo construído aos poucos e

teve início em um passado em que ambas as formas de conhecimento interpenetravam-se.

Segundo Vitória Perez de Oliveira, ao mesmo tempo em que a ‘nova ciência’ que surgiu

representava uma descontinuidade com a tradição, os cientistas que a desenvolveram

estavam imersos e eram parte desta tradição (Oliveira, 2006:147).

No final do século XVII, as fronteiras entre religião e ciência eram traçadas por

homens que estabeleciam os fundamentos da ciência moderna e eram religiosos, tais como

Newton, Hooke, Halley, entre outros. Esses cientistas acreditavam em Deus como criador da

natureza e suas leis, sem deixar de crer que somente a ciência, através de seus métodos e

desempenho, poderia auxiliá-los na compreensão da forma como o mundo funcionava. Assim,

as fronteiras começaram a ser marcadas, sem que houvesse oposição entre os campos. Como

visto anteriormente, tais pensadores buscavam compreender a natureza e suas leis. Com o

surgimento do que denominamos ciência moderna, o intuito passou a ser interferir e dominar

a natureza, e não mais apenas conhecê-la. Tal diferença nada sutil provocou uma mudança

brusca no conceito de ciência, o que pode ter contribuído para a separação dos sistemas de

pensamento.

O Iluminismo, no século XVIII, é tido por Oliveira (2006) como o início da oposição

entre ciência e religião. Vários pensadores iluministas tendiam a encarar a religião como

primitiva frente aos avanços da ciência. Os filósofos deram início a interpretações científicas

para a religião, gerando críticas aos postulados desta última. Já os teólogos e religiosos

passaram a defender a religião como fonte de moral e ética, e não como proposições

cognitivas. Era sobre a questão do cognitivismo na ciência e na religião que se travava a

maior parte dos debates (Oliveira, 2006:149).

O campo da filosofia na idade moderna delimitou ainda mais as diferenças entre

religião e ciência. O ponto primeiramente levantado teve fundamento no empiricismo,

segundo o qual somente pode-se usar como critério para determinar o sentido e a verdade

das proposições os fundamentos empíricos e cognoscíveis da ciência. O segundo ponto

colocado pela filosofia moderna foi a adoção da epistemologia em detrimento da ontologia,

50

ou seja, passou-se à preocupação com o ‘como se conhece’ ao invés do ‘ser’, a partir de Kant.

Com o abandono da ontologia, a metafísica (sobre a qual se apóia a crença religiosa) foi posta

em questão. Oliveira (2006) expõe que a partir de Kant passou-se a entender que nosso

conhecimento se estende apenas até a matemática e a ciência geral da natureza; a razão se

restringe aos limites do sentido e do conhecimento da ciência (p.151).

Diante do acima exposto, percebe-se que há duas maneiras de se observar a religião:

uma apoiada na cognição, segundo a qual a religião tem função de conhecimento, e outra

apoiada na emoção, para a qual a religião é regida pelos sentimentos e atitudes e tem função

moral.

Diante dessa herança moderna, fica a questão ainda hoje: são as proposições de conhecimento possíveis na religião ou apenas na ciência? No século XIX, com o desenvolvimento das ciências naturais, como a biologia, por exemplo, cada vez mais as duas visões de mundo entraram em choque, principalmente com a teoria evolucionista de Darwin. Se, por um lado, o crente comum resiste, com grande veemência e paixão, à evidência científica que pode chegar a contradizer suas crenças, por outro, teólogos e estudiosos buscam estratégias para dar conta e resolver esses conflitos, como aliás sempre fizeram ao longo da história (Oliveira, 2006: 150-151).

Como visto anteriormente, os primeiros pensadores da sociologia acreditavam que a

religião tradicional se tornaria marginal no mundo moderno, através do processo denominado

secularização. Marx, Durkheim e Weber defenderam que, à medida que as sociedades

humanas se modernizassem e passassem a depender mais da ciência e da tecnologia, haveria o

declínio do fenômeno religioso. Ainda hoje, o debate em torno da tese da secularização

permanece como uma das áreas mais complexas da sociologia da religião (Giddens, 2005).

Alguns defensores da tese da secularização acreditam que a religião de fato vem perdendo

força e adesão nas sociedades modernas, enquanto outros defendem que a religião permanece

sendo uma força significativa e presente na cultura de grande parte das sociedades humanas.

Para Dorvillé (2008), o pensamento mágico e/ou religioso não desapareceu e nem se

encontra restrito a pessoas ingênuas ou apenas às camadas menos informadas da população.

Para este autor, o grande avanço da Ciência, sua divulgação ampla no mundo moderno e as

novas tecnologias não causaram o declínio do pensamento religioso. Em sala de aula, nas

visões de mundo dos estudantes, muitos dos conceitos científicos que são abordados já

possuem explicações prévias advindas das religiões e do pensamento mágico (Guerriero,

2003).

51

Falcão (2008) argumenta que, desde a revolução científica do século XVII até os

tempos de hoje, a forma de descrever e teorizar sobre o mundo natural parece rivalizar idéias

científicas e religiosas. Particularmente no século XIX, com a elaboração de hipóteses e

teorias significativas da ciência para a compreensão da natureza (por exemplo, a teoria de

Darwin), os sistemas de pensamento vivem em tensão. Entretanto, sua pesquisa mostrou a

presença de crenças religiosas entre cientistas, e que estes não vêem conflito com suas

atividades profissionais. Tais resultados expõem a complexidade da presença das crenças

religiosas no mundo moderno.

Segundo Wilber (apud Oliveira, 2006), são cinco as posições possíveis de serem

adotadas no tocante ao debate sobre a relação entre ciência e religião.

1. A ciência nega qualquer validade à religião: é a posição associada ao positivismo,

fundamentando-se na crença de que apenas a ciência pode fornecer conhecimento fidedigno.

É uma posição bastante radical, muitas vezes fanática.

2. A religião nega qualquer validade à ciência: posição ligada ao fanatismo religioso,

os que desta crença participam buscam a volta a um passado mítico por acreditarem que o

mundo era melhor antes da modernidade.

3. O pluralismo epistemológico: essa posição entende que há várias formas de

conhecimento, sendo a ciência uma delas e a religião outra diversa, de maneira que o convívio

entre ambas é possível.

4. A ciência pode oferecer argumentos plausíveis para a existência do espírito: essa

posição é encontrada em alguns autores atuais, que buscam explicar a existência do espírito e

justificar argumentos religiosos. No entanto, não é uma posição unânime, já que há autores

mais ligados às tradições religiosas que contestam afirmando que tal ótica promove uma

inversão de hierarquia.

5. A ciência não é conhecimento do mundo, e sim mais uma interpretação sobre ele.

Portanto, sua validade não é maior do que a de qualquer outra área, como poesia, arte

ou religião: essa posição está ligada ao construtivismo e à pós-modernidade. Baseia-se na

premissa de que tudo é construído e temos apenas interpretações, desta forma nenhuma pode

se reivindicar como melhor do que as outras. Incluem-se nessa posição os autores da

Sociologia do Conhecimento Científico, os quais observam a forma como o conhecimento

científico é construído e não a ciência enquanto instituição.

52

Essas cinco posições oferecem o pano de fundo para os debates que hoje permeiam a

reflexão sobre o encontro da religião e da ciência nos espaços acadêmicos e em diferentes

instituições escolares.

Nas salas de aula, muitas questões surgem quando são abordados temas que possuem

explicações de fundo religioso trazidas pelos estudantes, conforme tratado no capítulo I. Mas,

afinal, como o professor de Biologia deve portar-se diante das explicações alternativas

trazidas por seus alunos? Dorvillé (2008) ressalta a importância da comunicação e da troca

dialógica entre professor e aluno para que haja ensino. Segundo este autor, o professor de

Biologia enfrenta em sala de aula muitos enfrentamentos dos conceitos científicos pelas

explicações religiosas, e deve haver espaço para que haja a crítica e o questionamento de

todas as idéias expressas ao longo do processo de ensino-aprendizagem, inclusive a científica.

Acredito que precisamos travar esse embate, no sentido de troca e diálogo e não de disputa, pois antes de tudo não somos cientistas mas professores de Biologia e eles, criacionistas ou não, são nossos alunos. Contudo, não defendo que o espaço acadêmico seja ocupado por conteúdos não científicos mas que o tempo todo a crítica e o questionamento das idéias científicas e não-científicas possam encontrar espaço na sala de aula, senão nas disciplinas mais específicas do currículo, ao menos em campos que discutam a relação da Ciência com a Ética (Dorvillé, 2008)

Conforme visto anteriormente, a contribuição do construtivismo para o estudo do

conhecimento e sua aquisição exigiu uma mudança radical nos papéis tradicionais de

professores e alunos, e na natureza de suas relações. Como a aquisição do conhecimento

passou a ser encarada como um processo pessoal de reestruturação feito pelo aprendiz, o

papel do professor passou a ser auxiliá-lo nesse processo, criando um ambiente investigativo e

as condições necessárias para que ocorram situações que disparem e facilitem o processo de

reestruturação das concepções alternativas dos alunos. Hoje há uma grande tendência a

considerarem-se os estudantes como seres culturalmente construídos, e muitos autores

apontam tal opção como pedagógica e eticamente mais eficaz (Oliveira, 2006; Guerriero,

2003; Falcão, 2008; Dorvillé, 2008;; dentre muitos outros).

Foi nos limites dessas questões e inspirada nos resultados dos estudos até aqui citados

que a presente pesquisa foi desenvolvida. A seguir será apresentado o roteiro metodológico.

53

III. METODOLOGIA

A presente pesquisa teve o objetivo de investigar alguns aspectos do ensino de

ciências relativos à origem da vida e evolução biológica a fim de ampliar a compreensão das

dificuldades relatadas em trabalhos anteriores na aprendizagem do conteúdo científico

referente àqueles temas. As pesquisas anteriores foram centradas prioritariamente nas

representações sociais15 que estudantes tinham da origem e evolução da vida e em seus

contextos sociais. Foi possível identificar algumas relações entre a presença de explicações

científicas, religiosas e os contextos sociais dos estudantes e de suas escolas. Livros didáticos

foram analisados e verificaram-se problemas na abordagem do tema origem da vida. Em tais

pesquisas, por um lado notaram-se influências das crenças religiosas nas dificuldades de

aprendizagem dos estudantes nos temas em questão, mas não foi possível afirmar que aquelas

têm responsabilidade única, visto que questões relativas a falhas na qualidade do ensino

específico foram sugeridas como um dos aspectos que podem influenciar na aprendizagem

(TRIGO, 2005; NICOLINI, 2006; FALCÃO, SANTOS & LUIZ, 2008). Assim, na presente

pesquisa, buscou-se investigar o ensino dos temas origem da vida e evolução biológica a

partir das percepções de dois grupos de professores em seus contextos de trabalho.

A metodologia utilizada foi o estudo comparativo de dois grupos de professores de

biologia das duas redes públicas de ensino - federal e estadual. Optou-se por abordar

professores de ambas as redes, uma vez que cada grupo encontra-se em condições

profissionais distintas, no sentido de investigar se condições de formação e trabalho têm

influência nas representações sobre o ensino, a aprendizagem dos estudantes e as explicações

pessoais para o surgimento e evolução da vida. A escolha de escolas públicas deveu-se, por

um lado, ao interesse de investigar a realidade com a qual interage a grande maioria dos

estudantes da cidade do Rio de Janeiro e, por outro, para responder à exigência metodológica

do controle do cenário social de ocorrência dos comportamentos investigados. Dessa forma

não foram incluídas escolas ou professores da rede privada, no entanto outros estudos

comparativos posteriores são bastante desejáveis. Estou ciente dos limites impostos pelo

número de professores investigados, entretanto ambos os grupos interagem em seus

respectivos contextos escolares de trabalho (3 escolas da rede federal e 3 escolas da rede

15 O conceito de representação social, assumido no trabalho, foi o de Moscovici (2001), onde representando-se uma coisa ou uma noção, não produzimos unicamente nossas próprias idéias e imagens: criamos e transmitimos um produto progressivamente elaborado em inúmeros lugares, segundo regras variadas (op. cit., p. 63).

54

estadual), e estão envolvidos nesses contextos há pelo menos cinco anos, o que permite que,

mediante cuidadosa análise, se obtenham úteis insights a respeito do tema investigado.

III.a) DESCRIÇÃO DO UNIVERSO DA PESQUISA

Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com o universo de pesquisa composto

por 20 professores de Biologia, sendo dividido em um grupo de 10 professores atuantes em

instituições federais de ensino (GF) e outros 10 professores atuantes em instituições estaduais

(GE).

A instituição federal caracteriza-se por um ensino de qualidade, segundo resultado do

Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2007. Possui treze unidades escolares distribuídas

em sua maioria no município do Rio de Janeiro. Participaram da pesquisa três unidades da

instituição localizadas nas zonas sul e norte da cidade, as quais apresentam recursos materiais

e humanos semelhantes. Cada unidade possui, em média, oito professores dedicados ao

ensino de biologia. As turmas são compostas por 30 estudantes, em média. As escolas

funcionam nos turnos matutino e vespertino com ensino regular, e no turno da noite com

educação voltada ao público jovem e adulto (PROEJA). O regime de trabalho dos dez

professores entrevistados é o mesmo do funcionalismo público federal, constando de 40 horas

semanais, sendo distribuídas nas terças e quintas-feiras e, em semanas alternadas, aos

sábados. As horas restantes, fora de sala de aula, são destinadas ao atendimento de alunos

para reforço, ao planejamento pedagógico e às coordenações. Os professores têm

possibilidade de submeter um projeto pedagógico de sua área do conhecimento a uma

comissão competente da própria instituição a fim de receber uma gratificação salarial de 55%

referente à dedicação exclusiva. Semanalmente ocorrem reuniões pedagógicas de cada

disciplina, e não há na agenda escolar reuniões interdisciplinares (as quais possibilitariam a

troca de informações e experiências entre os docentes e o desenvolvimento de um ensino

integrado, previsto nos PCN+). As escolas visitadas são grandes e dotadas de biblioteca, sala

de informática, sala de vídeo, enfermaria, sala de reuniões, sala de professores, salas de aula e

quadras poliesportivas. Há disponibilidade de recursos como retro-projetor de transparências e

datashow para projeção de imagens. O vencimento básico é de cerca de 6 salários mínimos.

As entrevistas foram realizadas nos meses de maio, junho, agosto e setembro de 2008.

Três escolas da rede estadual de ensino (composta por cerca de 1800 unidades

escolares) participaram da pesquisa, sendo que duas funcionam nos três turnos (sendo manhã

55

e tarde, ensino regular e à noite, ensino de jovens e adultos - PEJA) e uma escola funciona

apenas no turno da noite16. A classificação no ENEM 2007 foi mediana para as três escolas.

Todas possuem espaço físico semelhante, sendo dotadas de sala de informática, quadra

esportiva, sala de vídeo, sala de leitura, de professores e salas de aula. Os professores têm

carga horária de 16 horas semanais, sendo que de fato cumprem 12 tempos em sala de aula.

Não há reuniões pedagógicas interdisciplinares ou multidisciplinares periódicas, exceto a de

planejamento no início do ano letivo e os conselhos de classe ao fim de cada bimestre. Cada

unidade investigada conta com média de 3 professores de biologia. As turmas são formadas

por 40 estudantes, em média. O vencimento básico é de 1,5 salários mínimos. As entrevistas

foram realizadas no período entre junho e outubro de 2008.

As duas redes de ensino investigadas diferenciam-se quanto ao número de unidades

escolares agregadas, à média de professores dedicados ao ensino de biologia em cada unidade

e de estudantes por turma, ao regime de trabalho docente, à classificação dos estudantes no

ENEM 2007, à existência de reuniões pedagógicas periódicas, à possibilidade de gratificação

salarial referente a dedicação exclusiva à instituição e ao valor do vencimento básico salarial.

O instrumento utilizado para a coleta de dados foi entrevista semi-estruturada,

escolhida por favorecer a obtenção dos dados qualitativos desejados. A pesquisa desenvolvida

pretendeu alcançar o conjunto de representações sociais que os grupos de entrevistados

professam sobre aspectos do ensino dos temas em questão: Origem da Vida e Evolução

Biológica.

Os dados do perfil profissional e das práticas pedagógicas relativas ao ensino dos

temas pesquisados foram organizados em quadros quantitativos e utilizados como subsídio à

análise comparativa dos grupos pesquisados.

III.b) DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO

Segundo Lefèvre & Lefèvre (2003), quando se trata da pesquisa acerca daquilo que

as pessoas professam, a variável existe de modo apenas virtual necessitando ser reconstruída

durante ou através do próprio processo de investigação (p. 14). Além disso, quando as

pessoas professam um pensamento, uma idéia ou uma opinião, sempre o fazem através de um

16 No município do Rio de Janeiro há uma grande parcela de escolas estaduais que funcionam em espaços de uso comum com a rede municipal. Nos turnos matutino e vespertino o espaço escolar abriga o ensino fundamental da rede municipal e à noite, o ensino médio oferecido pela rede estadual.

56

discurso. Sendo assim, a descrição dos pensamentos e idéias de indivíduos ou de

coletividades será sempre mais rica quando forem coletados, processados e apresentados sob a

mesma forma de sua expressão. Desta forma, o discurso do sujeito coletivo (DSC) apresenta-

se como ferramenta metodológica adequada para organizar os dados coletados através das

entrevistas com os grupos de professores e será apresentado, adiante, de forma detalhada.

As entrevistas foram orientadas de maneira a prover cinco categorias de informação:

1- questões acerca das condições de trabalho e formação profissional; 2- práticas de ensino do

tema Origem da Vida; 3- práticas de ensino de Evolução Biológica; 4- utilização pelos

professores dos objetivos e propostas metodológicas sugeridas pelos Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio (PCN+); 5- por fim, questionaram-se as explicações pessoais

sobre os temas Origem da Vida e Evolução Biológica (aí incluídas possíveis referências

religiosas). Em resumo, as entrevistas objetivaram colher dados relativos: (i) à formação

profissional dos sujeitos e suas condições de trabalho, a fim de investigar se houve

informação sistematizada sobre os temas em questão durante a formação acadêmica e se há

relação entre formação, regime de trabalho e as características do processo de ensino-

aprendizagem dos temas origem da vida e evolução biológica; (ii) às percepções docentes

quanto ao processo de ensino-aprendizagem em relação aos temas Origem da Vida e

Evolução Biológica; (iii) às explicações pessoais dos professores sobre os temas da pesquisa,

para investigar possíveis relações com as percepções dos mesmos em relação ao ensino-

aprendizagem de origem da vida e evolução biológica.

Para a caracterização da formação profissional e das condições de trabalho dos

professores, foram abordados os seguintes pontos: em quantas instituições trabalha; se possui

regime de dedicação exclusiva (DE) à instituição e o números de horas/aula semanais; quanto

tempo de experiência possui no ensino médio; instituição que cursou e presença ou ausência

de pós-graduação; participação em cursos de atualização e/ou congressos científicos;

experiência declarada no ensino de origem da vida e evolução biológica; possíveis lembranças

de haver obtido formação sistematizada sobre origem da vida e evolução biológica durante

graduação.

Com a finalidade de conhecer os objetivos, dificuldades encontradas no processo,

estratégias de ensino e materiais utilizados para a preparação das aulas sobre origem da vida e

evolução biológica, ou seja, suas práticas de ensino, os professores entrevistados foram

interpelados sobre: a percepção de dificuldades encontradas na aprendizagem por parte dos

57

estudantes nos temas em questão; o grau de importância do ensino dos temas; as dificuldades

declaradas no ensino dos temas; as estratégias utilizadas para o ensino dos temas; a

quantidade de aulas dedicadas ao ensino dos temas; os materiais utilizados para o

planejamento das aulas; o uso dos PCN+ e de materiais científicos como fonte de consulta

para a preparação de aulas; declarações sobre situações conflituosas encontradas durante a

prática profissional; e por fim, as explicações pessoais dos professores sobre origem da vida e

evolução biológica.

As respostas obtidas através dos questionamentos abertos foram analisadas segundo a

metodologia de análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), formulado por Lefévre &

Lefévre (2003). Tal metodologia permite uma análise qualitativa das respostas, pois consiste

na construção de discursos que expressam a fala de um grupo social distinto pelas

características que apresenta. Inicialmente, torna-se importante ressaltar que as questões

dirigidas aos entrevistados foram elaboradas de forma aberta a fim de estimular a construção

do discurso individual. Para cada grupo, após a coleta dos dados durante a entrevista, as

respostas foram transcritas e analisadas da seguinte forma: 1- trechos que revelam os

conteúdos básicos dos depoimentos foram assinalados. Tais trechos são denominados

Expressões-chave (ECH) e são a matéria-prima da confecção dos DSC; 2- Cada conjunto de

expressões-chave semelhantes foi agrupado em torno da idéia central que, de forma sintética,

expressa o sentido das ECH, de forma precisa e fidedigna ao sentido dado pelos entrevistados:

são as Idéias-Centrais (IC); 3- O DSC do grupo é construído unindo-se as ECH que possuem

a mesma IC, utilizando-se a primeira pessoa do singular.

O DSC é coletivo, porém formado pela fala de cada um dos indivíduos que participam

de uma mesma idéia, ou seja, partilham um sistema de crenças. Desta forma, segundo Lefévre

& Lefévre, o sujeito coletivo se expressa na primeira pessoa (coletiva) do singular (...) e

sinaliza a presença de um sujeito individual do discurso, de forma concomitante com que

expressa uma referência coletiva na medida em que esse eu fala pela ou em nome da

coletividade (2003:16). O DSC expressa a representação social que um dado grupo possui

sobre determinado tema, ou seja, no caso da presente pesquisa, explicita as idéias, valores e

opiniões sobre os temas Origem da Vida e Evolução Biológica e seu ensino presentes nos

grupos de professores investigados. Os discursos coletivos construídos dos dois grupos

somados ao perfil de formação, condições e práticas de trabalho docente foram base da

pesquisa comparativa realizada.

58

IV. RESULTADOS

Os resultados serão apresentados de duas formas: a) dados quantitativos (quadros 1 e

2); b) dados qualitativos (DSCs), que visam expor as representações dos professores em

relação aos temas investigados. Inicialmente, apresentam-se os dados quantitativos do perfil

profissional e das práticas pedagógicas relativas ao ensino dos temas em questão. A leitura

dos dados sobre as condições de trabalho dos entrevistados, juntamente com os dados

relativos às práticas pedagógicas de ensino dos temas Origem da Vida e Evolução Biológica

(quadro 2), possibilita distinguir os perfis de cada grupo - rede federal (GF) e rede estadual

(GE) - e, desta forma, subsidiar a investigação pautada nesses dois grupos.

IV.a) DADOS QUANTITATIVOS: CARACTERIZAÇÃO DOS GRUPOS DE

PROFESSORES ENTREVISTADOS

QUADRO 1: Perfil profissional dos entrevistados (GF + GE)

DADOS DO PERFIL GRUPO FEDERAL (GF) N=10

GRUPO ESTADUAL (GE) N=10

1- No de escolas em que trabalha Uma escola – 617 Duas escolas – 2

3 ou mais – 2

Uma escola – 1 Duas escolas – 5

3 ou mais – 4

2- No médio de horas/aula semanais 12 a 24 – 5 25 a 35 – 2

Mais de 36 – 3

12 a 24 – 2 25 a 35 – 4

Mais de 36 – 4

3- Titulação acadêmica18

Graduação - 2 lato sensu – 1 Mestrado – 6 Doutorado – 1

Graduação -3 lato sensu – 2 Mestrado – 6 Doutorado – 0

4- Universidade de formação

UFRJ - 4 UERJ - 2

Gama Filho -1 Santa Úrsula -1

UNIG -1 Souza Marques - 1

UFRJ - 3 Gama Filho - 4 Santa Úrsula - 2

FAHUP - 1

5- Participação em cursos e/ou congressos científicos Sim – 6 Não – 4

Sim – 4 Não – 6

6- Obteve estudo sistematizado durante formação acadêmica sobre o tema origem da vida?

Sim –2 Não – 8

Sim – 5 Não – 5

7- Obteve estudo sistematizado sobre evolução biológica? Sim – 10

Não obteve ou não lembra– 0

Sim – 10 Não obteve ou não

lembra– 0

Analisando-se o Quadro 1, destaca-se o regime de trabalho com dedicação exclusiva

dos professores do GF na instituição federal de ensino. Possivelmente, por este motivo e pelo

17 O percentual de professores do GF que trabalha unicamente na instituição é de 60%, sendo que metade deste possui gratificação salarial referente à dedicação exclusiva. 18 Nota-se que a soma das respostas sobre titulação acadêmica pode ser superior a n (10) devido ao fato de haver a possibilidade do entrevistado possuir mais de um tipo de pós-graduação (lato e stricto sensu). Os professores indicados no nível graduação possuem somente esta titulação. Não foi considerado o acúmulo de mestrado e doutorado já que este último pressupõe a conclusão do primeiro.

59

menor número de horas/aula semanais, os professores do GF apresentam mais tempo

disponível para atividades de reforço escolar e de planejamento pedagógico, conforme os

dados do Quadro 2 a seguir parecem confirmar.

Percebe-se que a maioria dos professores de GF cursou universidades públicas, que

possuem os cursos de Biologia mais bem avaliados pelo MEC19, observação inversa no que se

refere ao GE, onde a maioria freqüentou universidades particulares. A titulação acadêmica

(nível de pós-graduação) é semelhante nos dois grupos, assim como a participação declarada

em cursos de atualização e/ou congressos científicos.

Analisando-se as respostas dos professores sobre a obtenção de estudo sistematizado

dos temas da pesquisa, verifica-se que, em ambos os grupos, todos declararam haver estudado

Evolução Biológica durante a formação, sendo o contrário no que se refere ao estudo de

Origem da Vida.

A seguir, são apresentados os dados obtidos em ambos os grupos (GF e GE) com

relação às técnicas de ensino, ao número de aulas previstas para o ensino e aos materiais

didáticos utilizados no planejamento das aulas sobre Origem da Vida e Evolução Biológica.

QUADRO 2: Dados relativos ao ensino dos temas Origem da Vida e Evolução Biológica

DADOS Origem da Vida GF

Origem da Vida GE

Evolução Biológica GF

Evolução Biológica GE

Técnicas de ensino Aula expositiva- 9 Estudo dirigido-1

Mídia20- 6

Aula expositiva- 10 Estudo dirigido- 2

Mídia- 2

Aula expositiva- 9 Estudo dirigido-

0 Mídia- 6

Aula expositiva- 9 Estudo dirigido- 2

Mídia- 3

Número de aulas oferecidas sobre o tema

0 a 4- 4 5 a 8- 3 9 a 12- 2

Mais de 13- 1

0 a 4- 6 5 a 8- 4 9 a 12- 0

Mais de 13- 0

0 a 4- 0 5 a 8- 1 9 a 12- 3

Mais de 13- 6

0 a 4- 2 5 a 8- 4 9 a 12- 1

Mais de 13- 3

Materiais didáticos utilizados no planejamento

Livros de ensino médio-7

Livros de ensino superior-3

Livros paradidáticos- 5 Periódicos- 3

Internet- 7 Nenhum- 2

Livros de ensino médio-10

Livros de ensino superior- 0

Livros paradidáticos- 3

Periódicos- 2 Internet- 6 Nenhum- 4

Livros de ensino médio-6

Livros de ensino superior-4

Livros paradidáticos-0 Periódicos- 3

Internet- 8 Nenhum- 2

Livros de ensino médio-7

Livros de ensino superior-0

Livros paradidáticos- 4 Periódicos- 0

Internet- 4 Nenhum- 2

Leu o PCN+ Sim- 5 Não- 5

Sim- 2 Não- 8

- -

A leitura do Quadro 2 leva a concluir que o tema Evolução Biológica é objeto de

maior investimento docente em relação a Origem da Vida porque a ele são dedicados maior 19 Conforme verificado na página www.enade.inep.gov.br, ambas as universidades públicas citadas possuem conceito máximo de avaliação (5) e as faculdades particulares citadas obtiveram conceito 3. 20 Foram classificados como mídia o uso de jornais e revistas, filmes, datashow, retro-projetor e informática.

60

número de aulas em ambos os grupos. Predomina a opção por aulas expositivas para a

abordagem dos dois temas, sendo que, dentre o GF, há tendência de diversificação de técnicas

de ensino. Pode-se relacionar tal tendência à maior disponibilidade de tempo dentre o GF para

o planejamento pedagógico, uma vez que em ambas as instituições de ensino observaram-se

equipamentos para utilização de mídias. Nota-se ainda a tendência dentre o GF de oferecer

um maior número de aulas e maior diversidade de fontes de informação para o planejamento e

desenvolvimento de ambos os temas investigados. Este grupo não utiliza livros paradidáticos

para o planejamento das aulas sobre Evolução Biológica, possivelmente por haver maior

disponibilidade de textos científicos sobre o tema do que sobre Origem da Vida.

Ainda no Quadro 2, observa-se que metade dos professores pertencentes ao GF leu os

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+) em ocasião profissional vinculada à instituição de

trabalho. Apenas dois professores do GE afirmaram haver lido o documento. Em ambos os

grupos, os comentários concentraram-se nas dificuldades das escolas, dos professores e dos

estudantes de acompanharem as diretrizes propostas pelo documento, como atestam alguns

exemplos: É um material interessante, mas que a escola não acompanha. Talvez porque o

aluno não tem estímulo familiar, não é curioso, cumpre a escola como uma etapa chata da

vida. O professor tem posturas individuais e geralmente não cumpre o que o PCN sugere.

Não existe uma política pedagógica ampla, que estimule e incentive o professor a adotar o

PCN. A escola está muito atrasada (GF). Os professores têm um baita complexo de culpa,

porque parece que tudo é culpa dele, que não é bem formado, que trabalha em 500 lugares,

que não dá atenção... Acho que não existe projeto sério que não leve em conta as condições

de trabalho dos professores. Como é que um professor que trabalha em várias escolas, sem

nenhuma infra-estrutura profissional e nem de formação pessoal, sem que a escola ofereça

materiais e meios, vai colocar em prática aquelas sugestões?(GE). Nota-se nesses discursos a

pluralidade de questões percebidas pelos professores como responsáveis por suas dificuldades

na adoção dos PCN+ e a diferença no teor das críticas entre os grupos investigados. Os

professores do GF apontam como problemas para a adoção das diretrizes propostas nos PCN+

a dificuldade de aprendizagem dos estudantes, as posturas individuais dos professores e a

ausência de uma política pedagógica mais ampla da própria escola. Já os professores do GE

indicaram as condições de trabalho e a falta de infra-estrutura profissional e de formação

acadêmica como agentes que inviabilizam a prática sugerida pelo documento.

61

IV.b) DADOS QUALITATIVOS: REPRESENTAÇÕES DOS PROFESSORES SOBRE OS

TEMAS ORIGEM DA VIDA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA

Os discursos do sujeito coletivo (DSCs) foram organizados em ordem decrescente de

adesão dos sujeitos pesquisados em todos os quadros apresentados a seguir, e o número de

professores que aderiu a cada um dos discursos encontra-se entre parênteses ao final de cada

DSC. Ainda que tal dado não tenha a intenção de subsidiar análises quantitativas, optou-se

por apresentá-lo como dado adicional. Nota-se que a soma do número de professores que

aderiram a cada um dos discursos pode ser maior do que dez em cada grupo, visto que cada

professor pode ter expressado mais de uma idéia central e ter, portanto, contribuído para mais

de um discurso. No entanto, observou-se que, na maioria das questões levantadas, os

professores aderiram a somente uma idéia central, formando, portanto, discursos excludentes.

A seguir, serão apresentados os conjuntos de DSCs dos grupos de professores pesquisados

que revelam as representações sociais sobre Origem da Vida.

62

Representações sobre Origem da Vida

QUADRO 3: DSC da questão ‘Percebe dificuldade dos estudantes na aprendizagem no tema Origem da Vida?’ dirigida a ambos os grupos de entrevistados (GF e GE)

QUESTÃO PROPOSTA

IDÉIA CENTRAL

(IC) DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE

1-Sim,falta conteúdo prévio

de química

1.1-O que é mais difícil é a parte química. Lidamos com termos e detalhes que eles ainda não estão acostumados. Também acho que falta instrumental de conteúdo. Para eles é muito complicado compreender interações moleculares que geraram um ser vivo. O que ocorre pontualmente é uma dificuldade que eu relaciono à seqüência do conteúdo da 1ª série do ensino médio. Acho que, como trabalhamos esse conteúdo no 1º ano, falta bagagem de química para abordarmos de maneira profunda. Percebo que a bioquímica pega um pouco. (6 professores)

1.2-Acho que exige conhecimentos da constituição química, de bioquímica. Acho muito difícil para eles entender a evolução química. Acho que eles têm dificuldades porque damos esse tema no início do 1º ano e falta base de química, aí acaba ficando meio abstrato para eles. É difícil imaginar ligações e formação de moléculas sem conhecimento de química profunda. Faltam informações básicas. Percebo falta de bagagem (conhecimento prévio) de química, física e natureza da ciência. Acho que o currículo proposto pelo MEC não é condizente com a realidade dos alunos. (4 professores)

2-Sim, dificuldade

relacionada à crença religiosa dos estudantes

2.1-Os alunos têm dificuldades de compreender a distinção entre as explicações da religião e da ciência. Eles decoram a estorinha, que para eles parece fantasiosa. É preciso contextualizar. Procuro fundamentar as duas linhas de pensamento e enfatizo que a ciência é do campo da razão e dos experimentos e a religião é do campo da fé, não sendo preciso portanto que uma explicação seja sobreposta a outra. Eles não têm hábito nem mesmo de criticar o que não acreditam.(4 professores)

2.2-Percebo dificuldade de aceitação vinculada a motivos religiosos. Eles têm dificuldade de ouvir a origem da vida fora da religião. Eu não vou discutir religião, porque eu não discuto religião. Não discuto isso, a religião é lá fora, não aqui. A aceitação é difícil. A primeira reação é de negação. (...) sempre friso a diferença entre enigma e mistério. Digo sempre no começo do ano que nos ocuparemos de compreender os enigmas da vida, e deixaremos o mistério para cada um pensar como preferir. A religião dá respostas prontas para algumas questões dos mistérios, mas a ciência decifra os enigmas com muita competência. (4 professores)

3-Sim, dificuldade de

lidar com conhecimento

hipotético

3.1-Sim, sinto dificuldades por causa de serem hipóteses, sem resposta fechada, única. (2 professores)

3.2-Acho que eles têm dificuldades com a abstração do tema. O terreno é muito pouco concreto, é abstrato pensar em uma Terra primitiva, uma Terra que não é essa, ambientes que não são esses que a gente vive hoje, tão diferentes. (...) é um terreno de muito mais perguntas que respostas e os alunos ficam inseguros. Os alunos gostam de respostas prontas, fechadas, ficam inseguros com hipóteses. As hipóteses incomodam muita gente. Já ouvi aluno falando isso.(2 professores)

Percebe dificuldade na aprendizagem do tema

Origem da Vida?

4- Não 4.1-Não percebo dificuldades, trato o assunto de forma superficial.

(2 professores)

4.2-Não, é normal. Se você abrir espaço para debate, a coisa pode tomar outro rumo e dificultar a aula. Hoje, os alunos têm acesso a muita informação e podem te pegar desprevenida. Não, trabalho sempre com aulas que demonstram os experimentos realizados pelos pesquisadores das áreas e não percebo grandes dificuldades. Acho que eles não têm dificuldades porque eu tento facilitar, nunca entro em detalhes químicos. (2 professores)

63

Os discursos de ambos os grupos assemelham-se em identificar dois principais pontos

como principais dificuldades percebidas na aprendizagem da Origem da Vida: a ausência de

conteúdos de química prévios e a presença de crenças religiosas. Quanto ao primeiro, os

professores apontaram a seqüência de conteúdos do primeiro ano do ensino médio, que não

incluiria química, como dificuldade específica de aprendizagem do tema. Entretanto, nos

conteúdos programáticos dos livros didáticos utilizados em ambas as instituições21 (federal e

estadual), o tema Origem da Vida inicia-se após a abordagem da composição química dos

seres vivos e de uma abordagem histórico-científica das teorias de surgimento da vida

(abiogênese e biogênese). Tal observação permite questionar se o momento da abordagem do

tema Origem da Vida sem o estudo da composição química dos seres vivos é uma opção dos

professores.

As coordenações pedagógicas das escolas afirmaram que o planejamento pedagógico

anual é feito em reunião realizada no início do ano letivo, com a participação dos professores

de biologia, onde são definidos os conteúdos a serem abordados. No entanto, não há de fato

uma cobrança do cumprimento de tal planejamento, uma vez que cada professor possui

autonomia para decidir por si próprio como desenvolverá o conteúdo. A sequência dos

conteúdos previstos nos livros didáticos parece permitir a formulação da hipótese da evolução

química da vida, uma vez que o estudo da composição molecular dos seres vivos é essencial

para a compreensão de tal hipótese. Sendo assim, questionam-se os motivos dos professores

perceberem dificuldades de aprendizagem da hipótese da evolução química da vida devido à

sequência de conteúdos: os professores não abordam os conteúdos da composição química

dos seres vivos previamente? Os estudantes não compreendem o conteúdo da química que é

de fato abordado pelos professores? Os professores de biologia têm dificuldades no ensino de

conteúdos de química, pois eles próprios têm pouco domínio do conteúdo? Se os professores

dizem que os conteúdos de química deveriam ser trabalhados antes do tema Origem da Vida,

por que não o fazem, se até os livros didáticos os apóiam?

Trata-se, aqui, de um problema que envolve também a coordenação pedagógica, que

trata o planejamento de forma global e no início do ano letivo, e não prevê acompanhamento

21 As escolas federais pesquisadas adotam o livro didático Bio – volume único, Sônia Lopes, editora Saraiva, e, de acordo com relato dos professores entrevistados, os alunos possuem e fazem uso do material. As escolas estaduais utilizam o livro didático Biologia – volume único, Fernando Gewandsznadjer e Sérgio Linhares, editora Ática, e, segundo os professores do GE, a maioria dos estudantes não tem acesso ao livro já que a escola não disponibiliza o livro gratuitamente.

64

ao longo do ano das dificuldades encontradas pelos professores e seus alunos. Pode-se pensar

ainda que os professores tenham identificado como problemático o fato da química orgânica

(formação de moléculas orgânicas) ser abordada somente ao longo do terceiro ano do ensino

médio, momento posterior à abordagem da teoria da evolução química dos seres vivos. Neste

caso, então, trata-se de uma questão curricular em que haveria a necessidade de se repensar a

organização do programa de ensino de biologia no ensino médio. Assim sendo, pareceria

interessante que o tema Origem da Vida fosse retirado do 1º ano e alocado no período final,

juntamente com o estudo de química orgânica. Assumindo-se quaisquer das opções

declaradas pelos professores investigados, conclui-se que os professores reconhecem os

pontos de dificuldade, os quais não parecem ser obscuros para eles e, tão logo são postos em

situação de reflexão sobre o problema, o abordam com objetividade. Pode-se, portanto, pensar

que em um processo de trabalho docente melhor coordenado, o encaminhamento seria

bastante proveitoso.

Os discursos pautados na idéia da dificuldade de aprendizagem de Origem da Vida

relacionada às crenças religiosas dos estudantes expressam não só a percepção de ambos os

grupos de professores de que tais crenças influenciam o comportamento dos estudantes em

relação ao tema investigado, como também revelam alguns comportamentos docentes que, se

por um lado indicam seus esforços e sensibilidade diante das dificuldades dos alunos, por

outro mostram elementos contraditórios: ‘Eles não têm hábito nem mesmo de criticar o que

não acreditam’ (Quadro 3, DSC 2.1). Na verdade, tratando-se de estudantes de nível médio,

caberia ao professor formar os estudantes em relação a tal hábito e não apenas constatar sua

ausência. Além disso, o professor precisa reconhecer que os estudantes possuem uma

identidade formada a partir de sua socialização primária22, onde visões e valores estão

firmados através da convivência familiar e de religiões, e o papel educacional do professor

perpassa ensinar a distinção das dimensões da ciência e da religião, assim como a importância

da reflexão sobre os conhecimentos adquiridos, uma vez que é uma das funções da escola

moderna fazer dos estudantes “pensadores críticos”. Ou seja, faz parte das atribuições do

professor ensinar os estudantes a criticar. Teriam eles consciência disso? Nos trechos ‘Eu não

vou discutir religião, porque eu não discuto religião. Não discuto isso, a religião é lá fora,

não aqui’(Quadro 3, DSC 2.2) e ‘Se você abrir espaço para debate, a coisa pode tomar outro

22No sentido apresentado por Berger & Luckmann (2003), a socialização primária é a socialização experimentada pelo indivíduo durante a infância, onde se torna de fato membro social. Essa primeira socialização tem forte apelo junto ao indivíduo, pois se origina a partir da relação familiar e é dotada de grande valor afetivo.

65

rumo e dificultar a aula. Hoje, os alunos têm acesso a muita informação e podem te pegar

desprevenida’ (Quadro 3, DSC 4.2) ficam evidentes as dificuldades pedagógicas de

estabelecer o espaço de diálogo e pensamento reflexivo com os estudantes e a falta de clareza

do papel educacional de parte dos professores. Em resumo, nota-se que ambos os grupos de

professores possuem discursos semelhantes, dentre os quais prevalecem aqueles que

expressam a relação entre as dificuldades de compreensão entre os estudantes da hipótese da

evolução química da vida por ausência do domínio de conteúdos prévios, e o discurso que

aborda a influência da religião.

A seguir, no Quadro 4, apresentam-se os discursos do sujeito coletivo (DSCs) dos

grupos de professores sobre a importância do ensino de Origem da Vida durante o ensino

médio.

QUADRO 4: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre a importância do ensino de Origem da Vida na escola

QUESTÃO PROPOSTA

IDÉIA CENTRAL (IC)

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE

1-Sim, pois promove o

confronto com o conhecimento

religioso

1.1-Acho importante para compreender uma visão. Muitos têm apenas uma visão religiosa que diz que um ser superior colocou a gente aqui, mas existem outras explicações alternativas à religiosa. É importante conhecer a hipótese científica para a origem da vida (5 professores)

1.2-Sim, para desmistificar Adão e Eva independente da religião, que deveria ser levada à parte da escola. Hoje a igreja tenta bitolar. É importante questionar, aprender outras explicações, questionar. É preciso aceitar a ciência acima de tudo! (4 professores)

2-Sim, para compreensão da

natureza do conhecimento

científico

2.1-Para discutir hipóteses e o desenvolvimento da ciência. A natureza da ciência também pode ser discutida nessa hora, tipo o que é ciência, que a ciência é temporal etc. Também é importante para abordar as hipóteses, como a ciência se constrói, o método científico e a natureza temporal da ciência. È importante que os alunos saibam que a ciência se modifica, e não pretende ser verdade fechada.’ (3 professores)

2.2-Estimula a pensar, estimula a ver a biologia como ciência, o que é ciência, não só uma ciência descritiva, o que a ciência difere das outras formas de conhecimentos. Quando falo sobre vírus, faço mais uma descrição, não dá muita abertura, fica parecendo que aquele conteúdo é assim, pronto e acabado. É importante para compreender a experimentação científica e entender a ciência como um processo.’ (4 professores)

Acredita ser importante o

ensino de Origem da Vida

na escola de nível médio?

3-Sim, para a compreensão da visão evolutiva dos seres vivos, incluindo o ser

humano

3.1-Ajuda a entender quem somos e de onde viemos como seres vivos. Para integrar o ser humano como algo vivo, que faz parte do processo evolutivo. Existe hoje e pode não existir amanhã. Vai contra o egocentrismo e o antropocentrismo que prega que a espécie humana pode tudo e que tudo está a nosso serviço.’ (2 professores)

3.2-Sim, porque você já coloca o raciocínio evolutivo. É a base do pensamento sobre a biologia.’ (2

professores)

Nota-se que no Quadro 4 os discursos são excludentes, ou seja, cada professor

contribuiu para somente um DSC. Os discursos de maior adesão dentre os entrevistados de

ambos os grupos conferem a importância do ensino de Origem da Vida como um pretexto

para o confronto com as idéias religiosas dos estudantes e para discutir a natureza do

66

conhecimento científico (DSC 1.1, 1.2, 2.1 e 2.2). Tais discursos mostram a preocupação dos

professores com as explicações prévias de caráter religioso trazidas pelos estudantes em

primeiro lugar. Na hipótese insinuada pelos resultados de que os professores não estudaram

Origem da Vida de maneira sistematizada ao longo de suas formações (Quadro 1), pode-se

pensar que os entrevistados conferem a importância do ensino do tema ao confronto com o

conhecimento religioso dos estudantes como alternativa às suas próprias dificuldades na

abordagem de Origem da Vida. Embora a idéia de que o ensino do tema constitui-se como

momento favorável ao debate esteja presente nos discursos 2.1 e 2.2, os professores

expressaram dificuldades de estabelecerem tal debate, uma vez que revelaram em seus

discursos claras controvérsias (Quadro 3, DSC 2.2 e 4.2). Por outro lado e reforçando tais

dificuldades, os professores declararam trabalhar quase somente com aulas expositivas para

ensinar Origem da Vida, o que não parece favorecer o exercício de questionamentos e

reformulações justamente em relação às crenças religiosas e à compreensão da natureza da

ciência (Quadro 2). Ou seja, num certo momento reconhecem a importância do debate e em

outros reagem contrariamente a ele, insistindo no uso de aulas expositivas (possivelmente sem

debates).

Os discursos 2.1, 2.2, 3.1 e 3.2 expressam diretrizes propostas pelo PCN+, ainda que

os discursos 3.1 e 3.2, que ressaltam o papel da Origem da Vida na compreensão da Evolução

Biológica, tenham apresentado a menor adesão dentre os entrevistados de ambos os grupos.

Evolução Biológica, segundo o PCN+, deve perpassar todos os demais conteúdos previstos ao

longo do ensino médio, e a hipótese da evolução química da vida está relacionada ao ensino

de evolução na medida em que busca explicar o surgimento dos primeiros seres vivos. Tal

observação reforça o dado exposto no Quadro 2, onde verifica-se que poucos professores

entrevistados declararam haver lido os PCN+. Trata-se de um dado preocupante: faltaria

clareza aos dois grupos de professores da relevância científica de Origem da Vida para a

compreensão de Evolução Biológica? Ou teriam eles justificativas corretas para não

reconhecerem tal importância, como por exemplo não terem estudado o tema ao longo da

licenciatura? Evolução poderia ser ensinada sem o tema Origem da Vida?

Com a finalidade de explicitar as idéias expressas pelos professores sobre dificuldades

no ensino do tema Origem da Vida, apresentam-se a seguir (Quadro 5) os DSCs construídos

com suas percepções sobre suas próprias dificuldades. Nota-se que algumas idéias centrais

obtiveram adesão em somente um dos grupos de entrevistados.

67

QUADRO 5: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre possíveis dificuldades encontradas no ensino de Origem da Vida

QUESTÃO PROPOSTA

IDÉIA CENTRAL (IC)

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE

1-Não há dificuldade 1.1-Não, não tenho dificuldades com este tema. (8 professores)

1.2-Não, acho tranquilo. (4 professores)

Existem dificuldades no ensino do tema Origem da Vida? 2-Sim, dificuldades de

aprendizagem dos estudantes

2.2-Sim, relação com a dificuldade de aprendizagem. Só a dificuldade de não conseguir atingir os alunos.’ (2 professores)

3-Sim, falta de

material didático específico

3.2-Se tivesse material como animações dos experimentos e filmes acho que incentivaria. Acho que falta material didático. Falta de material visual de apoio. Não tenho como mostrar a evolução química de maneira mais concreta. Na escola, temos sala de informática e laboratório, mas falta tempo para o preparo das práticas, pessoal de apoio etc.’ (2 professores)

4-Sim, falta de conhecimento

4.2-Sinto muita. Muito difícil. Falta base teórica, é bem complexo, tenho certeza que devo falar um bando de bobagem. É difícil mesmo, acho um conteúdo difícil. Ainda mais que eu uso livro de ensino médio para me preparar. O Big Bang ainda é bem vago e acho um pouco difícil abordar a passagem dos coacervados para uma célula viva.’ (2 professores)

5-Sim, falta de tempo

disponível para abordagem do tema

5.1-Acho difícil conseguir o tempo necessário para que os alunos se abrissem e aproveitassem as aulas de melhor maneira. Nessa faixa etária, o pagar mico é um obstáculo pedagógico fortíssimo, e os alunos acabam não expondo nem para si próprios suas convicções e dificuldades. Conteúdos que exigiriam 1 mês de aulas, precisamos abordar em 2 semanas e isso não dá tempo para que os alunos amadureçam as idéias e construam novos conhecimentos.’ (1 professor)

6-Sim, questões ligadas à religião

dificultam

6.1-Mas é interessante que sempre eles perguntam se eu acredito no criacionismo. Aí eu me esquivo para não influenciar, procuro deixar que eles escolham seus caminhos. Acho que meu papel é mostrar como a ciência explica as coisas, e não catequiza-los.’ (1 professor)

Observa-se que no quadro acima os discursos são excludentes. A maior adesão dentre

os entrevistados expressou a ausência de dificuldades no ensino do tema Origem da Vida,

68

resultado inverso à alta percepção de dificuldades na aprendizagem dos estudantes

(Quadro 3). Constata-se que o conjunto desses professores tende a não perceber ensino (do

professor) e aprendizagem (dos estudantes) como um processo articulado no qual o professor

é o principal responsável. Nota-se que tal constatação é mais visível entre os professores do

GF, onde são encontradas melhores condições de trabalho. Pode-se pensar que o tema Origem

da Vida, sendo pouco estudado na licenciatura e também por apresentar características de

controvérsias na ciência (ainda não completamente unificada em suas hipóteses), seja de

difícil compreensão pelos professores, acarretando uma sequência de outras dificuldades

como, por exemplo, enfrentar as crenças religiosas dos estudantes e aspectos da natureza da

ciência. Como tudo isso não é discutido no seu cotidiano, os professores tendem a perceber

dificuldades nos alunos e não neles próprios. Possivelmente, os professores do GE tenham se

sentido mais à vontade para expressar suas dificuldades, uma vez que apresentam condições

mais precárias de exercício docente e nelas podem situar justificativas para suas dificuldades.

Quanto ao tema Origem da Vida, em resumo, os professores percebem que os

estudantes têm dificuldades para aprender as explicações científicas do fenômeno. Essas

dificuldades, segundo eles, estão relacionadas à exigência da compreensão de processos

químicos que os estudantes ainda não dominam ao estudar o tema. Segundo os professores,

haveria um descompasso curricular. Um segundo problema estaria relacionado às crenças

religiosas dos estudantes em relação ao tema e os professores revelaram ter comportamentos

contraditórios ao lidar com tal problema: percebem a necessidade de discutir o tema mas, ao

mesmo tempo, expressam receios e mesmo rejeição ao que seria um confronto de idéias. E

isto também revelou-se quanto aos objetivos percebidos pelos professores como os principais

para o estudo do fenômeno da origem da vida: discutir as crenças religiosas e a natureza da

ciência. Ainda que tenham tais objetivos, expuseram dificuldades para lidar com os mesmos.

Finalmente, não pareceu relevante para os dois grupos o tema Origem da Vida para melhor

compreender a teoria da Evolução Biológica conforme as Ciências Biológicas argumentam e

os PCN+ aderem. Isto merece reflexão cuidadosa, uma vez que contraria não só os princípios

estabelecidos nos parâmetros curriculares, como também os estabelecidos pelo campo das

Ciências Biológicas.

Representações sobre Evolução Biológica

Com relação ao ensino de Evolução Biológica, apresentam-se abaixo os DSCs dos

grupos GF e GE relacionados às possíveis dificuldades percebidas na aprendizagem do tema.

69

QUADRO 6: DSCs construídos com as respostas do GF e do GE à questão proposta ‘Percebe dificuldade dos estudantes na aprendizagem do tema Evolução Biológica?’

QUESTÃO PROPOSTA

IDÉIA CENTRAL (IC) DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DS C) - GF DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE

1-Não percebo dificuldade

1.1-Quando fazemos biologia comparada ao longo do ensino médio, acho que não há dificuldade. Procuro seguir linha evolutiva durante ensino de biologia. Começo com abiogênese, vou lá pra antiguidade... discutimos muito e falamos sobre história da ciência, Pasteur... Lamarck, Darwin, Neodarwinismo... sempre buscando contextualizar, fazer críticas. Acho que quando trabalhado com esse enfoque histórico, de forma gradual, fica muito claro para o aluno. Não, acho que eles gostam muito do tema. (6 professores)

1.2-Evolução é um conceito mais filosófico e histórico, mais bem fundamentado, então acho que fica mais fácil. Eles se interessam. Evolução torna toda a biologia mais fácil. Fazendo estudo comparativo fica mais tranqüilo e concreto. Origem da vida é no 1º ano e evolução no 3º ano, então pode ser que eles tenham mais maturidade e conhecimentos mais complexos. A estratégia de abordagem é fundamental. Se o professor não tiver planejado e não tiver profundidade certa, com estratégias para lidar com isso, abordar as premissas do pensamento evolutivo de maneira não lógica e bem pensada, acho que as chances de fracassar são maiores. (6 professores)

2-Sim, relacionada à complexidade

conceitual e/ou ao entendimento da

natureza da ciência

2.1-Tudo aquilo que mexe com escala de tempo e contingências, para eles é complicado. Eles estão habituados ao processo escolar onde para cada pergunta há uma resposta pronta. Quando eles se defrontam com elos perdidos, fica difícil. Falta o hábito de problematizar para obter respostas. Muitas vezes também, o excesso de informações pode complicar, quando não há tempo para a sedimentação dos conceitos. Está faltando na base uma série de procedimentos pedagógicos que os ensine a pensar cientificamente. Essa coisa do olhar, da curiosidade, está falha nas gerações de hoje. A maior parte dos alunos de escolas públicas não teve estímulos para observar o mundo, e sim para engoli-lo sem ao menos pensar antes. E na escola também não estimulamos o olhar, porque não há tempo. A questão da seleção natural é difícil, entender o papel da manutenção dos genes na linhagem. Vemos que muitos alunos, principalmente fora da nossa escola, vêem Lamarck como oposto de Darwin, e a ciência não deve ser vista assim. A questão do tempo biológico e evolutivo é difícil. Acho que eles têm dificuldade em compreender o fator genético em conjunto com o fator ambiental. A evolução e a seleção não dependem só da mutação, mas também da seleção ambiental. É um conjunto. O que é mais difícil é aceitar o acaso como causa da evolução. Geralmente os alunos pretendem uma causalidade menos abstrata. (3 professores)

2.2-A compreensão da evolução é melhor do que de origem da vida porque o processo evolutivo é mais fechadinho e os alunos também estão mais maduros. Existem evidências, como os fósseis, que são concretas. Os alunos do estado (acho na verdade que todos os alunos) têm muita dificuldade de lidar com o abstrato. Sim, porque trata de uma teoria, muito teórico, muita abstração. Sim, até mais do que em origem da vida. Sinto dificuldades no que se refere a eras geológicas, períodos evolutivos da espécie humana, etc. Com a carga horária que temos não dá para abordar. Prefiro abordar mais ecologia e deixar evolução biológica para lá. Ecologia tem mais a ver com a realidade deles para o vestibular, o ENEM e tal. Para falar a verdade, acabo não abordando nunca evolução. Nunca dá tempo. É o último conteúdo do 3º ano e nunca sobra tempo. É complicado porque os alunos trazem uma visão lamarckista difícil de quebrar, acho que do senso comum ou cotidiano deles Sim, bastante. Difícil entender evolução porque é difícil entender que alguma característica possa surgir ao acaso. (4 professores)

3-Sim, relacionada à compreensão de evolução como

sinônimo de progresso.

3.1-Também tem a questão da dificuldade em diferenciar evolução de melhoria. Muitos alunos acham que evoluído é o mesmo que melhor, acham que o ser

humano é o mais evoluído ser vivo. Também têm dificuldade em compreender o conceito de evoluído como sendo diferente de complexo. (2 professores)

3.2-Evolução quase sempre ligada a uma melhora, é confundida com progresso. (1 professor)

Percebe dificuldade

dos estudantes na aprendizagem

do tema Evolução Biológica?

4-Sim, relacionada ao conhecimento religioso

4.1-Alguns apresentam certa resistência com fundo religioso, isso dificulta um pouco, mas é mais a resistência. (1 professor)

4.2-A aceitação é difícil por causa da religião. (2 professores)

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Os dois grupos apresentaram discursos bastante semelhantes em relação à percepção

de dificuldades dos estudantes com o tema Evolução Biológica. Ambos os grupos percebem

que o estudo da evolução a partir do ponto de vista da biologia comparada não apresenta

dificuldades especiais para a aprendizagem dos estudantes. São citados vários exemplos de

conteúdos a serem apresentados e formas pedagógicas apropriadas, por exemplo ‘Procuro

seguir linha evolutiva durante ensino de biologia. Começo com abiogênese, vou lá pra

antiguidade... discutimos muito e falamos sobre história da ciência, Pasteur... Lamarck,

Darwin, Neodarwinismo... sempre buscando contextualizar, fazer críticas. Acho que quando

trabalhado com esse enfoque histórico, de forma gradual, fica muito claro para o aluno’

(Quadro 6, DSC 1.1), ‘Fazendo estudo comparativo fica mais tranqüilo e concreto’ (Quadro

6, DSC 1.2).

As dificuldades percebidas foram expressas, pelos dois grupos, em relação ao que

consideram complexos aspectos conceituais: seleção natural, mutação, acaso e seus eventos

na escala de tempo, tanto quanto aspectos relacionados à natureza da ciência como hipóteses,

teorias, e mudanças destas ao longo da história da ciência. Certas crenças, como a idéia de

evolução como sinônimo de progresso, foram citadas mas sem a ênfase dos discursos

anteriores. É possível afirmar que, na comparação com o tema Origem da Vida, os professores

mostraram mais desembaraço com o tema Evolução Biológica, já que desenvolveram mais as

relações de conteúdos diversos da teoria com aspectos de seu ensino. Perceberam ainda

menos influência das crenças religiosas durante a abordagem de Evolução Biológica do que

na de Origem da Vida.

A seguir, apresentam-se os discursos através dos quais todos os professores

expressaram ser de grande importância o ensino de Evolução Biológica durante o ensino

médio.

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QUADRO 7: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre a importância do ensino de Evolução Biológica na escola

QUESTÃO PROPOSTA

IDÉIA CENTRAL(IC)

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE

1-Sim, pois promove a

compreensão das bases da Biologia

1.1-Evolução serve para amarrar todo o conteúdo do 2º ano. Não que seja mais importante, mas torna o ensino mais legal. O ensino dos seres vivos não fica fragmentado. Ajuda, é uma ferramenta bacana. Mas é difícil fazer assim, eu mesma não aprendi assim. A genética só é dada no 3º ano, e isso dificulta um pouco a ligação entre genética e evolução. Evolução biológica serve para termos noção histórica, de como chegamos aqui. Não faz sentido estudar a vida sem evolução biológica, ela faz compreender melhor a biodiversidade, como a natureza ficou desse jeito. É importante também para avaliarmos as características de nossa própria espécie. A prepotência do Homem acha que está fora dos seres vivos. Também pode ajudar as próximas gerações a conviver de maneira mais harmônica com o ambiente’ (9 professores)

1.2-Para mim é o mais importante. É a base do pensamento biológico. Sem dúvida, é importante compreender que a Terra não é estática, que há sempre surgimento de novas espécies e extinção de outras. É o principal fundamento da biologia moderna. Origem da vida eu tenho um pouco de dúvidas... Mas a evolução mostra as transformações e as mudanças ao longo do tempo, o que é importante para a vida. Importante porque auxilia a entender ecologia. Também por uma preocupação ambiental. Acho bonito entender que somos todos parentes. Filosoficamente é importante, muda a visão. É uma mudança de paradigma de vida. Talvez mude a postura dos alunos perante os outros seres vivos’. (9 professores)

Acredita ser importante o

ensino de Evolução

Biológica na escola de nível

médio?

2-Sim, pois promove o

confronto com o conhecimento

religioso

2.1-É outro momento para discutirmos o confronto ciência e religião.’ (1

professor)

2.2-É importante para que não fiquem bitolados na mão do pastor, para quebrar os dogmas religiosos’. (1

professor)

Os discursos dos professores para a importância do ensino de Evolução Biológica são

bastante semelhantes para os dois grupos e ambos ressaltam a importância do tema para a

compreensão da base das Ciências Biológicas, como visto nos trechos ‘Evolução serve para

amarrar todo o conteúdo do 2º ano. O ensino dos seres vivos não fica fragmentado. Não faz

sentido estudar a vida sem evolução biológica, ela faz compreender melhor a biodiversidade,

como a natureza ficou desse jeito’ (Quadro 7, DSC 1.1) e ‘É a base do pensamento biológico.

É o principal fundamento da biologia moderna’ (Quadro 7, DSC 1.2). Nota-se também que os

professores fazem uso de diferentes termos que conferem grande importância ao ensino deste

tema, inclusive apontando para algumas dificuldades na forma atual de sua colocação no

programa do ensino médio, por exemplo ‘A genética só é dada no 3º ano, e isso dificulta um

pouco a ligação entre genética e evolução’ (Quadro 7, DSC 1.1). Como em relação aos

discursos que expressaram as percepções dos professores sobre as dificuldades de

aprendizagem dos estudantes em relação a este tema, os entrevistados mostram-se à vontade

com o conteúdo e citam diferentes tópicos e conceitos, como: biodiversidade; conviver de

maneira mais harmônica; a Terra não é estática; surgimento de novas espécies e extinção de

72

outras; ecologia; preocupação ambiental; paradigma (Quadro 7). Os professores

expressaram também sentimentos e valores de apreço ao tema, como observado em ‘É

importante também para avaliarmos as características de nossa própria espécie. A

prepotência do Homem acha que está fora dos seres vivos. Também pode ajudar as próximas

gerações a conviver de maneira mais harmônica com o ambiente. Não que seja mais

importante, mas torna o ensino mais legal’ (Quadro 7, DSC 1.1), ou ainda em ‘Para mim é o

mais importante. Acho bonito entender que somos todos parentes. Filosoficamente é

importante, muda a visão’ (Quadro 7, DSC 1.2).

Secundariamente, os professores expressaram o discurso da importância de confrontar

os estudantes com suas crenças religiosas: ‘É outro momento para discutirmos o confronto

ciência e religião’(Quadro 7, DSC 2.1) e ‘É importante para que não fiquem bitolados na

mão do pastor, para quebrar os dogmas religiosos’ (Quadro 7, DSC 2.2). É possível afirmar

que, mediante os discursos deste Quadro 7 e do Quadro 4, os professores dos dois grupos

reconhecem uma importância ao ensino de Evolução Biológica que não reconhecem para o

tema Origem da Vida. Nota-se que no DSC 1.2 do Quadro 7 está expressa a dúvida em

relação à importância de Origem da Vida no contexto do ensino médio (‘Evolução é o

principal fundamento da biologia moderna. Origem da vida eu tenho um pouco de dúvidas...

Mas a evolução mostra as transformações e as mudanças ao longo do tempo, o que é

importante para a vida’). Em resumo, pode-se notar que, no âmbito dos dois grupos

pesquisados, é conferida maior importância e dedicação ao tema Evolução Biológica do que

ao tema Origem da Vida.

A seguir, estão apresentados (Quadro 8) os discursos relativos à percepção de

dificuldades no ensino do tema Evolução Biológica.

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QUADRO 8: DSCs construídos com as falas dos professores do GF e do GE sobre possíveis dificuldades encontradas no ensino de Evolução Biológica

QUESTÃO PROPOSTA

IDÉIA CENTRAL(IC)

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE

1-Não há dificuldade

1.1-Não, eu gosto desse tema. Como é uma teoria fundamentada, fechadinha, acho

tranquilo’ (8 professores)

1.2-Adoro o tema e vejo que eles também gostam’ (6

professores)

2-Sim, falta de tempo disponível

para abordagem do tema

2.1-A questão do tempo limita. Quanto tempo seria necessário até que o aluno pudesse reconstruir face às novas informações trazidas pelo professor suas idéias sobre origem da vida, principalmente aqueles que trazem explicações com alto grau de afetividade relacionada, como os religiosos? Há uma questão aí de currículo e programa. O que acontece é que o conteúdo do ensino médio é tão extenso que, para que se trabalhe evolução como eixo transversal, não há possibilidade. E ainda há a pressão do vestibular, muito cruel. Além do mais, nossos alunos chegam imaturos ao ensino médio, com mentalidade científica do ensino fundamental. Se a gente tivesse a possibilidade de construir com calma todos os aspectos da teoria sintética da evolução, talvez conseguíssemos mais sucesso pois os alunos estariam mais maduros quando introduzíssemos os conceitos. Tirando aqueles alunos que já possuem uma base familiar, filhos de professores etc., e aqueles excepcionais, o grande grupo precisaria desse apoio a mais e não tem’ (1 professor)

2.2-Ter que resumir o conteúdo todo, muito grande, para

abordar o mínimo, o que não é o ideal. A matéria é muito

extensa e a carga horária é pequena’ (1 professor)

3-Sim, questões ligadas à religião

dificultam

3.1-A dificuldade maior é que ás vezes os alunos podem responder burocraticamente o que eles sabem que o professor quer ouvir, mas nem sempre ele de fato acredita no que

diz’ (1 professor)

Existem dificuldades no ensino do tema

Evolução Biológica?

4-Sim, falta de conhecimento e/ou

defasagem de conteúdos

4.1-Dificuldade pela formação. Alguns pontos são difíceis porque na formação a genética ainda não é conclusiva, alguns

conhecimentos ficam defasados’ (1 professor)

4.2-‘Sinto um pouco por causa da falta de recursos e de

atualização. Planejamento, saber por onde começar, se tem

uma aula que você ouça os alunos dá mais nervoso ainda, porque mesmo que você aborde

os temas eles ainda falam no Lamarckismo’ (3 professores)

Os discursos deste quadro foram praticamente excludentes, apenas um professor

expressou-se com mais de uma idéia central (IC). A tendência é a percepção no conjunto dos

discursos de ambos os grupos de que não há dificuldades especiais no ensino do tema

Evolução Biológica, inclusive os discursos expressam o prazer dos professores de lidarem

com tal tema, conforme os trechos ‘Como é uma teoria fundamentada, fechadinha, acho

tranquilo’ (Quadro 8, DSC 1.1) e ‘Adoro o tema e vejo que eles também gostam’ (Quadro 8,

DSC 1.2). Secundariamente, os professores apontam a necessidade de aperfeiçoamento

curricular quanto à diminuição ou eliminação do tempo para alguns temas e ampliação de

outros importantes como evolução, conforme verificado no DSC 2, onde a falta de tempo foi

74

citada como fator limitante ao desenvolvimento do tema Evolução Biológica. Tal discurso

encontra-se de acordo com o observado no Quadro 5 e revela preocupação com dois aspectos

relacionados ao ensino dos conceitos e conteúdos de Evolução Biológica: a grande extensão

do currículo a ser cumprido ao longo do ensino médio (O que acontece é que o conteúdo do

ensino médio é tão extenso que, para que se trabalhe evolução como eixo transversal, não há

possibilidade.Conteúdos que exigiriam 1 mês de aulas, precisamos abordar em 2 semanas e

isso não dá tempo para que os alunos amadureçam as idéias e construam novos

conhecimentos; Quadro 5, DSC 5.1) e o tempo de amadurecimento dos estudantes (Quanto

tempo seria necessário até que o aluno pudesse reconstruir face às novas informações

trazidas pelo professor suas idéias sobre origem da vida, principalmente aqueles que trazem

explicações com alto grau de afetividade relacionada, como os religiosos? Se a gente tivesse

a possibilidade de construir com calma todos os aspectos da teoria sintética da evolução,

talvez conseguíssemos mais sucesso pois os alunos estariam mais maduros quando

introduzíssemos os conceitos; Quadro 8, DSC 2.1). A percepção recorrente, em diferentes

discursos dos diversos Quadros, quanto aos conhecimentos prévios trazidos pelos estudantes

também se manifesta na questão tratada neste Quadro 8 nas citações do lamarckismo (‘se tem

uma aula que você ouça os alunos dá mais nervoso ainda, porque mesmo que você aborde os

temas eles ainda falam no Lamarckismo’; Quadro 8, DSC 4.2) e das crenças religiosas (‘A

dificuldade maior é que ás vezes os alunos podem responder burocraticamente o que eles

sabem que o professor quer ouvir, mas nem sempre ele de fato acredita no que diz’; Quadro

8, DSC 3.1).

Em resumo, pode-se dizer que, ao contrário de Origem da Vida, o tema Evolução

Biológica é percebido pelos professores como sem dificuldades especiais de aprendizagem e

ensino. É possível notar que os conteúdos deste tema parecem compor o repertório dos

professores de forma mais clara, objetiva e ampla do que Origem da Vida. Assim, eles

expressam um melhor domínio do tema diante dos estudantes: reconhecem a importância do

tema no contexto das ciências biológicas e parecem dominar o conteúdo específico de forma

mais satisfatória do que Origem da Vida. Também não expressaram o confronto com a

religião como forte dificuldade a ser superada. Poder-se-ia pensar que o maior envolvimento

com os conteúdos do tema Evolução Biológica tenham superado a preocupação com as

crenças religiosas, ou seja, com maior conhecimento sistematizado do conteúdo por parte dos

professores, a dificuldade de abordagem do tema parece ser menor. Entretanto, a leitura dos

75

discursos do próximo Quadro sugere que, ainda que de forma menos intensa do que para

Origem da Vida, há enfrentamentos com as crenças religiosas.

Com relação a situações extremas de embate em sala de aula envolvendo os temas

pesquisados, são apresentados a seguir os discursos dos professores do GF e do GE sob a

forma de Quadro contendo os DSCs construídos com suas falas.

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QUADRO 9: DSCs construídos com as respostas dos entrevistados do GF e do GE à questão proposta ‘Você já se deparou com alguma situação extrema de negação aos temas Origem da Vida e/ou Evolução Biológica

QUESTÃO PROPOSTA

IDÉIA CENTRAL(IC) DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GF DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) - GE

1-Não

1.1-Não, porque sempre enfatizo que a religião e a ciência são conhecimentos diferentes, logo não devem se chocar. Mas nas minhas aulas não há espaço para discussões religiosas. Não coloco o conteúdo científico como melhor, mas como uma das faces do conhecimento humano sobre sua

origem e evolução. A concordância e discordância variam com a turma, mas como abordo a questão religiosa com respeito, nunca vivi nada assim. Costumo abordar acaso e Deus sem serem excludentes. Evito embates.

Respeito as idéias prévias dos alunos. Sei que no estado há mais problemas relacionados ao ensino desses temas. Sei que em algumas cidades do interior do estado, com grande quantidade de evangélicos, não costumam abordar os conteúdos curriculares formais que enfrentam grande resistência por parte das igrejas. Isso é um absurdo, é retirar dos alunos a chance de ouvir falar

sobre novas explicações e optar por uma delas. (6 professores)

1.2-Eu, particularmente não, mas lembro sempre de fazer uma separação entre religião e ciência para que os alunos façam distinção entre as duas formas de pensamento. Alguns alunos já colocaram que não acreditam, mas nunca tive problemas durante as aulas. Algumas

vezes percebi que os alunos evangélicos são menos suscetíveis às explicações da ciência, porque trazem explicações muito fechadas

para quase tudo. Mas ainda assim sempre falo que o que estudamos na escola são os enigmas, explicados com base em evidências que são observadas. O mistério, ou seja, porque as coisas acontecem como

acontecem, cada um deve procurar suas explicações para o que chamo de mistério. A ciência nos mostra evidência sobre como as coisas

acontecem. Por que acontecem, é outra estória. Podemos chamar de acaso, de Deus ou do que quer que seja. Eu me ocupo de mostrar

evidências sobre a maneira como a evolução biológica se dá, e não porque se dá. Evito falar sobre evolução humana porque causa muito

conflito. Os alunos percebem que eu não imponho. (6 professores) Você já se deparou

com alguma situação extrema de negação aos temas Origem da Vida e/ou Evolução

Biológica?

2-Sim, relacionada ao conhecimento

religioso

2.1-Uma vez um aluno falou que não acreditava em evolução, aí eu cortei logo a onda dele. Aqui é uma escola laica, que não deve dar abertura para a religião. Ano passado, numa turma de 3º ano, eu estava apresentando idéias

sobre origem da vida, aí falei sobre criacionismo e, na fala, uma aluna se apresentou como testemunha de Jeová e explicou sobre a forma de entender

da sua religião. Aí eu usei isso para ilustrar a tolerância e o pensamento sobre as hipóteses. Todas as vezes que abordei esses temas, sempre ouvi que

foi assim porque Deus quis. Inclusive durante a graduação, ouvi de professores essa frase. Percebo que grupos religiosos possuem mais

dificuldade de compreender as teorias da ciência. Busco perceber a lacuna de conhecimento do aluno. Muitos demonstram negação ao acaso e à

aleatoriedade. Geralmente esses alunos até vão escrever direitinho na prova, mas se você pegar ele distraído, ele vai continuar afirmando acreditar na bíblia. No momento em que você acredita numa mente inteligente que é responsável por uma obra e organiza tudo, fica muito difícil entender e

encaixar aí o acaso e outros fenômenos aleatórios. Enfrentar o desconhecido é para poucos, é mais fácil colocar o destino nas mãos do criador. (4

professores)

2.2-Toda vez que trabalho com esses temas ocorrem situações esquisitas. Acho que o primeiro contato com essas explicações

científicas é meio perturbador (às vezes são até agressivos). Uma vez, um aluno falou assim: - Se você acha que é prima do macaco, o

problema é seu!! Eu é que não sou!! Já aconteceu de uma aluna que pediu licença porque não queria escutar já que não acreditava e

confrontava. Mas na hora da prova ela respondeu de acordo com a aula, deve ter estudado no livro, sei lá. Não quero mudar opinião, só

aumentar as possibilidades de explicações sobre as coisas. Em origem da vida, na minha primeira lotação, um aluno levantou agressivo e

começou a ler em voz alta o gêneses da bíblia. Disse que aquilo que eu estava fazendo era coisa errada, que não devia falar sobre o que eu não sabia. Aí eu disse para ele que quem não devia fazer aquilo era ele, que estávamos em uma escola, que eu ia falar sobre explicações

científicas e não me interessava a religião de ninguém porque escola é que não era lugar daquilo,que eu não estava atacando ele nem sua

religião, mas ele se retirou da sala. Sim, aqui no estado alguns alunos fazem parte de religiões ortodoxas como batistas e etc. e possuem

explicações religiosas. (4 professores)

77

O conjunto dos discursos indica que há percepção pelos professores de problemas

extremos em sala de aula, isto é, de negação ou rejeição das explicações científicas para

Origem da Vida e Evolução Biológica. Os discursos dos professores contêm o relato de

episódios com dificuldades associadas a conflitos com crenças religiosas. A leitura dos

discursos sugere que, de forma mais ou menos intensa, há enfrentamentos e mesmo atitudes

defensivas dos professores diante da presença de crenças religiosas dos estudantes. Os

discursos do Quadro 9 citam diferentes situações vividas: ‘Mas nas minhas aulas não há

espaço para discussões religiosas.’(DSC 1.1); ‘Evito falar sobre evolução humana porque

causa muito conflito.’ e ‘... os alunos evangélicos são menos suscetíveis às explicações da

ciência, porque trazem explicações muito fechadas para quase tudo’ (DSC 1.2); ‘Aqui é uma

escola laica, que não deve dar abertura para a religião’ (DSC 2.1); ‘...um aluno levantou

agressivo e começou a ler em voz alta o gêneses da bíblia’ (DSC 2.2). Esses exemplos, ao

lado de outros expostos no Quadro 9, mostram que os professores oscilam diante do

comportamento dos estudantes: ao mesmo tempo em que argumentam a favor da abertura do

diálogo com os alunos, falam de atitudes de não permissão de tal diálogo. Importante também

é o registro nesses discursos dos pontos onde conflitos são desencadeados: acaso, evolução

humana, aleatoriedade. Tais pontos são conceitos onde as hipóteses da ciência parecem ser

mais confrontadas pelas crenças religiosas.

Merece ênfase e pode ser esclarecedor, no sentido de melhor compreender o

comportamento docente dos dois grupos investigados, articular os diferentes discursos

expressos nos Quadros 4, 7 e 9, os quais abordaram a importância percebida pelos professores

pesquisados em relação à origem e evolução da vida. Nesses quadros estão presentes

expressões como ‘É importante questionar...’ (Quadro 4, DSC 1.2), ‘Para discutir

hipóteses...’ (Quadro 4, DSC 2.1), ‘É outro momento para discutirmos...’ (Quadro 7, DSC2.1)

entretanto, como vimos no Quadro 9, os discursos não apontam para a realização destas

intenções, o que leva à conclusão que os professores não têm clareza quanto à conduta diante

dos alunos quando a demanda é a do diálogo: ‘Mas nas minhas aulas não há espaço para

discussões religiosas.’ (DSC 1.1), ‘Algumas vezes percebi que os alunos evangélicos são

menos suscetíveis às explicações da ciência, porque trazem explicações muito fechadas para

quase tudo. Evito falar sobre evolução humana porque causa muito conflito’ (DSC 1.2).

Considerando tais discursos que se referem à necessidade e disponibilidade para debater e

discutir o conhecimento em sala de aula, pode-se questionar se os professores têm clareza de

78

seu papel de educador e se sentem preparados educacionalmente para realizar tal discussão

entre o conhecimento científico e o religioso.

A última questão da pesquisa deteve-se sobre as explicações pessoais dos professores

sobre os temas Origem da Vida e Evolução Biológica. Encontram-se organizados nos quadros

a seguir os discursos dos dois grupos pesquisados.

79

QUADRO 10: DSCs construídos com as representações sociais dos entrevistados do GF e do GE à questão proposta ‘Você possui alguma explicação pessoal para a Origem da Vida e Evolução Biológica? Quais suas idéias de acaso, aleatório e Deus?’

QUESTÃO PROPOSTA

IDÉIA CENTRAL (IC)

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) – GF DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO (DSC) – GE

1-Acredito que a natureza é dada

por uma seqüência de eventos

aleatórios (acaso) descrita pela

ciência

1.1-Não me considero religioso. Acredito no acaso. Acho que ainda há muito a ser

descoberto, mas acredito que acaso e aleatório são possibilidades bem plausíveis. Não creio

em sobrenatural. Evolução química e biológica são conjuntos de conhecimento que podem ser revistos e reorganizados. A ciência caminha,

mas evolução química e biológica estão estabelecidas. Novas interpretações sobre as causas são possíveis, mas o processo é esse,

não há dúvida. Não acredito em finalidades, em predeterminações. Acredito na ordem do caos. Sou cética e acredito no direito da dúvida. Eu

sou uma pessoa completamente agnóstica, atéia, pragmática científica. (6 professores)

1.2-Acredito piamente na evolução biológica como teoria correta, os vestígios são muito concretos. Em origem da vida, acho que a hipótese da evolução química é a mais aceitável. (1 professor)

Você possui alguma explicação pessoal para a Origem da Vida e Evolução Biológica? Quais

suas idéias de acaso, aleatório e Deus?

2-Acredito no acaso e na

possibilidade de Deus existir, sem serem excludentes

2.1-Acredito no acaso e no aleatório. Mas não nego a possibilidade de que haja um Deus regente. Acho que acaso e aleatório podem ser mais que acaso e aleatório. Acredito na

ciência e também nos seus limites. Eu acredito em Deus e isso nunca me impediu de discutir e

conhecer as explicações outras. Tenho formação católica que não contradiz o

conhecimento científico. Acredito e acho que faz sentido origem da vida e evolução dentro

da ciência, mas também entendo que a ciência se modifica e não é formada por dogmas. Acredito em Deus, pode ser que Deus dê o

dom de questionar e de se fazer ciência... (4 professores)

2.2-Acredito nos experimentos feitos, não dá pra questionar as evidências, a prática. Hoje você pode somar ciência e religião, mas a religião é hipótese. O homem cria a religião, a ciência e tudo o

mais. Sou espírita, embora não pratique e nem freqüente. A religião não compete em nada com a minha aceitação das explicações científicas do mundo. Acho a teoria evolutiva do Darwin muito

lógica, me satisfaz mas eu sei que não é verdade, porque tenho convicção da ausência de verdade. As verdades, na ciência, são provisórias. Nada disso da origem da vida e da evolução negam Deus, deusas, eu não falo isso pros alunos, mas digo que a ciência não nega. Evolução química faz menos

sentido, tem muitas lacunas, como surgem moléculas tão complexas? Um grande ponto de interrogação. Duvido um pouco do acaso. Evolução química é plausível, na medida em que foi

reproduzida em laboratório... Mas talvez tenha algo mais. Leio muito sobre esoterismo e acredito na panspermia. Existem mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia. Eu tenho

religião: católico pela família, kardecista pela ciência e também, com freqüência, vou ao candomblé. Acho que a religião, a filosofia e a ciência são formas de explicar o mundo e podem ser

encaradas como harmônicas. Creio em Deus, na cabala e na ciência. Não tenho religião, mas acredito numa força suprema, inteligência superior que rege toda essa energia, toda a química e a física. Acaso e aleatório existem, mas pode existir um elo com uma força superior, não excluo essa possibilidade. Se as coisas aconteceram como a ciência diz que aconteceram, nunca saberemos,

porque não estávamos lá. Mas eu creio que a religião e a ciência se ocupam de coisas diferentes. Eu sou evangélica (batista) por influência familiar. Utilizo o que me convém de cada uma das formas

de conhecimento. Eu contradigo alguns pontos da religião, mas ela me auxilia em outros. (9 professores)

80

Os professores dos dois grupos incluíram crenças religiosas em suas explicações

pessoais para os temas Origem da Vida e Evolução Biológica. Ainda que prevaleça no GF a

explicação científica sem compatibilizá-la com alguma crença religiosa e, ao contrário,

prevaleça no GE tal compatibilização, é notória a influência da religião nos discursos dos dois

grupos. Tal resultado aponta para diferentes questões relacionadas tanto ao domínio e

aceitação da explicação científica (‘Mas não nego a possibilidade de que haja um Deus

regente’, Quadro 10, DSC 2.1; ‘Acho a teoria evolutiva do Darwin muito lógica, me satisfaz,

mas eu sei que não é verdade’, Quadro 10, DSC 2.2) como a aceitação de diálogos com os

estudantes sobre suas crenças religiosas. Os professores falaram com muito desembaraço

sobre suas visões pessoais para a Origem da Vida e Evolução Biológica, entretanto

expressaram em diversos discursos atitudes que não permitem o mesmo desembaraço em

relação aos seus alunos.

A leitura do Quadro 10 permite dizer que os discursos incluem tanto a base científica

dos temas em questão quanto a justaposição de crenças religiosas em ambos os grupos de

professores entrevistados. Pode-se perguntar se tal configuração compromete o conhecimento

científico dos professores. Se nos detivermos nos discursos sobre Origem da Vida,

encontramos elementos que sugerem aprendizagem limitada em relação ao tema entre os

professores. Se, ao contrário, nos detivermos nos discursos sobre Evolução Biológica,

observamos um quadro diverso: melhor domínio e elaboração dos conteúdos. Em comum a

ambos os temas, verificamos a dificuldade em estabelecer o diálogo com os estudantes sobre

suas questões de ordem subjetiva, ou seja, em torno de aspectos que envolvem crenças e

atitudes não baseadas nos estritos conteúdos escolares, como crenças religiosas e atitudes de

defesa das mesmas. Parece, portanto, faltar ao longo da formação profissional dos

professores: a abordagem de todos os conteúdos a serem ensinados (especialmente Origem da

Vida) de maneira sistematizada e reflexões e aprendizagem de comportamentos

educacionalmente adequados diante da ciência e da religião.

81

V. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Origem da Vida e Evolução Biológica são fundamentos da Biologia, uma vez que

sugerem hipóteses para o surgimento da vida e unificam os conhecimentos sobre todos os

seres vivos em termos das modificações que sofrem ao longo do tempo. Constituem-se, por

este motivo, como temas estruturadores que devem integrar todo o conteúdo apresentado ao

longo do Ensino Médio, segundo os PCN+. Entretanto, os discursos dos grupos de professores

investigados revelaram que os temas não são vistos como articulados. A dificuldade entre os

professores de relacionarem as hipóteses de Origem da Vida à teoria da Evolução Biológica

foi sugerida, embora esta última pressuponha que houve um momento inicial de surgimento

da vida no planeta Terra. A teoria da Evolução Biológica é incompleta sem a discussão sobre

as hipóteses da Origem da Vida, ainda que sejam didaticamente apresentadas em períodos

escolares distintos. Os dados expostos no Quadro 2 e os discursos presentes nos demais

Quadros indicam que a formação acadêmica e profissional dos professores teve foco

diferenciado para Origem da Vida e Evolução Biológica. O primeiro tema parece ter sido bem

menos estudado ao longo de suas formações e os professores claramente demonstraram

melhor domínio do segundo tema.

Os discursos sobre as dificuldades dos estudantes na aprendizagem de Origem da Vida

de ambos os grupos apresentaram maior tendência relacionando-as à falta de conteúdos

prévios de química. Os livros didáticos utilizados em ambas as instituições apresentam

conteúdos programáticos onde o estudo da composição química dos seres vivos é apresentado

anteriormente à hipótese da evolução química da vida. Tal observação permite questionar se

os conteúdos são abordados seguindo-se uma organização programática (do livro didático ou

proposta pela unidade escolar) ou se a autonomia de cada professor permite que, por exemplo,

os conteúdos sejam abordados ou não dependendo do interesse do professor. Esta crítica dos

professores à organização programática dos conteúdos é importante, entretanto pode-se frisar

o seguinte ponto: se os professores conseguem diagnosticar o problema e exemplificar ou dar

base à sua crítica, não parecem ter a decisão de implementar a mudança apontada por eles

como necessária à diminuição das dificuldades de aprendizagem do tema Origem da Vida.

Faltaria a necessária articulação com o ensino de Química? Estariam eles limitados na

tradição de ensino? Pode ser que simplesmente não mudam porque o contexto do

planejamento escolar não sustenta tal mudança, ou não discute esses problemas, estando os

professores imersos nas práticas do cotidiano sem a necessária reflexão. Por um lado, isto

82

explicaria inclusive porque recursos disponíveis para um melhor ensino não serem

comumente utilizados, como equipamentos de mídia etc. Por outro lado, pode-se sugerir que o

grande número de aulas semanais ministradas pelos professores pesquisados, especialmente

os do GE, impeça o planejamento adequado das atividades escolares, a utilização de recursos

diferenciados e a reflexão sobre as práticas pedagógicas. A partir da crítica dos professores à

organização programática do conteúdo curricular do ensino médio presentes nos livros

didáticos, o qual prevê a abordagem do tema Origem da Vida no primeiro ano, momento em

que o estudo da química inicia-se e anterior ao estudo da química orgânica, surgiu um novo

questionamento: é de fato necessário o estudo da química para a compreensão da hipótese da

evolução química da vida, ou tal hipótese baseia-se mais em questões epistemológicas do

conhecimento científico, questões estas que não são usualmente abordadas nos cursos de

licenciatura? Tais pontos merecem investigação e novas pesquisas.

Quanto à importância do ensino da hipótese da evolução química para a Origem da

Vida na escola de nível médio, o discurso de maior adesão em ambos os grupos pesquisados

foi o que relaciona tal importância ao confronto com o conhecimento religioso prévio dos

estudantes. Como o tema Origem da Vida não é abordado em parte dos cursos de licenciatura

(Nicolini, 2006), muitos professores chegam à sala de aula com as concepções sobre a

importância do ensino do tema trazidas de outras fontes que não a científica. Poder-se-ia

pensar que a desvinculação dos temas existiria pelo hábito de segmentação didática dos

conteúdos dentre os professores, mas os discursos revelaram também pouco conhecimento

teórico do tema Origem da Vida. De forma sintética, pode-se dizer que ambos os grupos

percebem a Evolução Biológica como um tema importante da disciplina biologia, e Origem

da Vida como um meio de levar os estudantes a confrontarem seus conhecimentos religiosos

prévios.

Quanto a possíveis dificuldades dos professores encontradas no ensino de Origem da

Vida, notou-se certa diferença entre os discursos do GF e do GE. O GF expressou forte

tendência a não perceber dificuldade alguma no ensino e o GE apresentou discursos que

expressaram dificuldades relacionadas à aprendizagem dos estudantes, à falta de material

didático de apoio (a qual foi interpretada como falta de tempo para planejamento) e à falta de

conhecimento do professor sobre o tema. Analisando-se os discursos do GE, percebe-se que

este grupo tende a se defender em suas respostas apoiados em críticas às condições de

trabalho e salariais. Notou-se ainda a percepção desarticulada do processo de ensino-

83

aprendizagem. Os professores percebem dificuldades no ‘aprender dos alunos’, mas não

‘dificuldades de ensino’.

A importância do ensino de Evolução Biológica mostrou-se relacionada à

compreensão das bases da biologia nos discursos de maior adesão. O confronto com o

conhecimento religioso foi citado com pequena adesão, contrastando com os discursos sobre

Origem da Vida. Tal observação permite sugerir que, segundo os professores pesquisados, a

hipótese da evolução química para a Origem da Vida contrasta mais com as explicações

prévias dos estudantes do que a teoria da Evolução Biológica, assim como parece ser de

menor importância para o ensino de biologia do que esta última. Com relação à aprendizagem

de Evolução Biológica, houve grande adesão ao discurso que expressou não haver

dificuldades, resultado oposto às várias dificuldades percebidas na aprendizagem de Origem

da Vida. Os discursos que expressaram dificuldades as relacionaram à complexidade

conceitual do tema, à confusão entre evolução e progresso e, com menor adesão, ao

conhecimento religioso dos estudantes. O tema Evolução Biológica parece oferecer menos

desgaste durante o ensino do que Origem da Vida.

Notou-se certa incongruência nos discursos quanto à importância do debate para o

ensino de ciências e a disponibilidade dos professores para realizar discussões em sala de

aula. Através da observação de tal oscilação na postura dos professores quanto à necessidade

e disponibilidade para debater e discutir o conhecimento em sala de aula, se pode questionar

se os professores sentem-se confortáveis e preparados para realizar tal discussão entre o

conhecimento científico e o religioso. Embora a importância do pensar criticamente tenha

sido difundida nos DSCs, a habilitação docente de promover tal habilidade intelectual

mostrou-se inconsistente nos discursos, em trechos como “Uma vez um aluno falou que não

acreditava em evolução, aí eu cortei logo a onda dele. Aqui é uma escola laica, que não deve

dar abertura para a religião.” (Quadro 9, DSC 2.1), “Se você abrir espaço para debate, a

coisa pode tomar outro rumo e dificultar a aula.” (Quadro 3, DSC 4.2) e “Eu não vou

discutir religião, porque eu não discuto religião. Não discuto isso, a religião é lá fora, não

aqui.” (Quadro 3, DSC 2.2).

Os discursos de ambos os grupos apresentaram dicotomia entre o ensino e a

aprendizagem dos temas, o que revela problemas específicos de concepção pedagógica nos

professores entrevistados. O processo ensino-aprendizagem é dialético, ou seja,

interdependente. Só há ensino quando houve aprendizagem, e só há aprendizagem com ensino

84

envolvido. A leitura dos discursos revela que os professores não estabeleceram relações entre

o ensino e a aprendizagem, visto que seus discursos expressaram praticamente ausência de

dificuldades no ensino (do professor) dos temas e várias dificuldades na aprendizagem (dos

estudantes). Ou seja, a concepção construtivista não parece familiar a esses professores. As

dificuldades de articular Origem da Vida, Evolução Biológica, ensino e aprendizagem podem

também estar relacionadas a tal desconhecimento. Os professores investigados, sem o

saberem, podem ter convicções que os colocam em divergência com os estudantes e reforçam

o papel transmissor de conhecimento, já tão criticado na área de educação (Moreira, 1999;

Scheid, Ferrari & Delizoicov, 2006). Embora os discursos dos professores argumentem a

favor do pensamento crítico, notou-se que também argumentam contra, o que indica

ambivalência ou contradição. Parece haver dificuldades de realização do objetivo de educar

para o pensamento crítico, e isto pode também estar relacionado com o domínio falho dos

conteúdos específicos. Neste ponto, pode-se ver ainda que, ao mesmo tempo em que há

críticas às crenças religiosas dos estudantes como agentes que dificultam a aprendizagem dos

temas em tela, os próprios professores declararam suas crenças. Portanto, parece haver, além

da questão do domínio dos conteúdos ensinados, também a carência de reflexões dos

professores sobre suas próprias crenças e a relação entre estas e sua prática pedagógica.

85

VI. CONCLUSÃO

Embora o perfil profissional e as condições de atuação profissional do grupo da rede

federal mostrem vantagens em relação àqueles da rede estadual, ambos os grupos investigados

expressaram percepções semelhantes em relação aos temas investigados. Expressaram tanto

dificuldades semelhantes em relação a determinados conteúdos como ambigüidades em

posturas educacionais em relação à formação dos estudantes. Os depoimentos dos professores

que declararam não haver estudado Origem da Vida na licenciatura, somado ao domínio do

tema por parte dos professores, que pareceu aquém do necessário para Origem da Vida,

confirma que licenciaturas em Ciências Biológicas nem sempre abordam este tema, e quando

o fazem parecem não discutir com os futuros professores as diversas questões relacionadas ao

ensino desse assunto.

As escolas investigadas prevêem reuniões de coordenação pedagógica e foi verificada

a presença, em todas as escolas visitadas, de sala de vídeo, de leitura e projetores de imagem.

Tais recursos quase não foram mencionados pelos professores como auxílio para enfrentarem

suas dificuldades. Faltaria tempo para planejamento e execução de atividades diferenciadas?

Haveria desconhecimento ou desinteresse para tal uso? Os dirigentes e coordenadores

ofereceriam precário apoio aos professores para tal desempenho? Sentir-se-iam os professores

sozinhos diante da complexidade dos temas e das situações sociais por eles desencadeadas nas

salas de aula? Os resultados da pesquisa mostraram que não é possível negar a dimensão

religiosa da cultura brasileira que, certamente, envolve professores e estudantes.

Os resultados da pesquisa aqui relatada mostraram ainda que as dificuldades

percebidas pelos professores no ensino de Origem da Vida e Evolução Biológica estão

relacionadas a condições de formação dos professores e de encaminhamento pedagógico no

âmbito das escolas investigadas. Não parece arriscado concluir que, com planejamento

adequado e ensino de Química e Biologia integrado, boa parte das questões apontadas pelos

professores poderia ser solucionada. Some-se a necessidade do ensino sistematizado ao longo

das licenciaturas de todos os conteúdos que serão ministrados nas escolas, claramente

previstos nos documentos oficiais. Verificou-se que a falta desse ensino sistematizado nas

licenciaturas está relacionada com o núcleo das dificuldades dos professores para realizarem

abordagens satisfatórias dos temas em questão.

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À primeira vista, pode-se ter a impressão de que a religião confronta a ciência nas

salas de aula, mas refletindo-se sobre os dados da pesquisa vê-se que, na realidade, os temas

apresentam dificuldades mais pela ausência da ciência na sala de aula e pelas dificuldades,

muitas vezes justificada, de formação insuficiente dos professores nos conteúdos científicos e

pedagógicos necessários à abordagem de temas como Origem da Vida e Evolução Biológica.

Desta forma, não é surpreendente que os alunos, e mesmo os professores, prefiram por vezes

as explicações religiosas, que possuem maior apelo afetivo do que a ciência em suas vidas. O

conjunto de dados e as análises realizadas sugerem, portanto, que podem não estar nas crenças

religiosas dos estudantes (e também dos professores) os principais problemas com o ensino da

Origem da Vida e da Evolução Biológica.

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VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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