representações racistas na revista vistazo 1957 - 1991

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  • 8/8/2019 Representaes racistas na Revista Vistazo 1957 - 1991

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    Me, o Que Ser que o NegroQuer? RepresentaesRacistas na RevistaVistazo,1957-1991*

    Jean Rahier

    Resumo

    O artigo analisa as representaes de negros na revista Vistazo,umadasmaispopularespublicaesdoEquador,desdeoanodesuacria-o, em 1957, at o ano de 1991. Sua tese principal a de que a constru-o da identidade nacional equatoriana priva de humanidade, logo, derepresentatividade, dos afro-equatorianos em prol da valorizao e exal-

    tao dos euro-equatorianos e, secundariamente, dos branco-mestios.A cosmoviso da sociedade e o iderio equatoriano de nacionalidade sointerpretados pelo autor atravs das imagens e dos discursos sobre os ne-gros na revista em questo. Desta forma, os afro-equatorianos so repre-sentados enquanto os ltimos Outros no projeto das elites equatoria-nas de identidade nacional.

    Palavras-chave : representao; afro-equatorianos; identidade nacional;mestiagem; imaginrio.

    Estudos Afro-Asiticos, Ano 23, n 1, 2001, pp. 5-28

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    * No seminrio Entender o Racismo: O Caso do Equador organizado pela FLACSO emnovembro de 1998, no qual foi apresentada uma verso deste trabalho, um participanteequatoriano branco-mestio chegou ao ponto de repetir, em vrias ocasies, que no haviatrao de racismo na imprensa equatoriana. O presente artigo demonstra quo equivocado tal ponto de vista.

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    Abstract

    Mother, What Exactly Does a Negro Want?. RacialRepresentations in the Vistazo Magazine, 1957-1991

    The article analyzes the portrayal of Negroes in the Vistazomaga-zine, one of Ecuadors most popular publications since its inception in1957 until 1991, year of its discontinuity. Its main thesis is that the na-tional Ecuadorian identity deprives Afro-Ecuadorians of humanity,ergo, of representation, in favor of the valorization and exaltation ofEuro-Ecuadorians, followed in second place by White-Mestizos. The

    author interprets the cosmovision of society and the Ecuadorian out-look on nationality through imagery and discussions on Negroes inabove mentioned magazine. Thus, Afro-Ecuadorians are represented asthe ultimate Others in the scheme of the national identity of the Ecua-dorian elite.

    Keywords: representation; Afro-Ecuadorians; national identity; misce-genation; imaginary.

    Rsum

    Mre, quest-ce que le Noir peut bien vouloir? Reprsentations

    racistes dans la revue Vistazo, 1957-1991Dans cet article, on souligne les reprsentations sur les Noirs rele-

    ves dans la revue Vistazo, lun des priodiques les plus populaires delquateur, depuis sa fondation en 1957 jusquen 1991. Lauteur veutmontrer que la construction de lidentit nationale quatorienne tend priver dhumanit et du coup, de reprsentativit, les Afro-quatoriensau profit de la valorisation et de lapologie des Euro-quatoriens et, ensecond lieu, des Blancs-mtis. La cosmovision de la socit et la faonquont les quatoriens denvisager la nationalit sont interprtes tra-vers les images et les discours sur les Noirs de la revue en question. Ainsi,les Afro-quatoriens sont reprsents comme les derniers Autres dansle propos des lites quatoriennes concernant lidentit nationale.

    Mots-cl: reprsentation; Afro-quatoriens; identit nationale; mtissa-ge; imaginaire.

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    N o h mundo que exista independentemente dos discursosde representaes. Estas constituem, em parte, o mundo noqual vivemos. Como explicou Michel Foucault j faz algum tem-po, as formaes discursivas ou modos de pensar, ou modos derepresentaes so utilizadas pelas pessoas para pensar o mundo,para pensar suas prprias existncias, assim como para pensar aexistnciade Outros. Os grupos dominantes produzem e reprodu-zem representaes de si mesmos e representaes dos Outros, que

    justificam sua posio no cume das ordens raciais e espaciais, e aexplorao dos Outros, que aparecem como seres fundamental-mente negativos. De fato, como formula o intelectual ingls negroStuart Hall, o racismo deve ser entendido como uma estrutura deconhecimento e representaes,1 com uma energia simblica enarrativa que trabalha para assegurar nossa posio aqui, em cima,

    assimcomoparaassegurarqueosOutrospermaneamlembaixo,fixando cada um em seu lugar social natural (Hall, 1992). Esta a razo pela qual um aspecto importante da luta dos povos domi-nados consistiu em questionar, manipular, combater, negar e, svezes, at inverter representaes deles reproduzidas no discursodominante de sua sociedade nacional, ou da sociedade em que vi-vem.

    As identidades culturais e/ou tnicas e/ou raciais devem serentendidas dentro dos sempre flutuantes processos polticos, eco-nmicos e sociais inscritos em contextos espao-temporais particu-lares, que so constitudos dentro de dimenses locais, regionais,nacionais e transnacionais. As identidades e suas representaes so

    constantemente imaginadas e re-imaginadas, atuadas e reatuadasdentro de situaes especficas, e dentro de contextos socioecon-micos e polticos que sempre mudam e que fornecem lugares parasuas negociaes e renegociaes, suas definies e redefinies.

    No foi por acaso que me referi, acima, a Stuart Hall. Ele considerado um dos fundadores do movimento dos Cultural Stu-dies, ou Estudos Culturais, na Inglaterra. Os intelectuais queparticipam desse movimento dedicaram uma parte importante de

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    suas pesquisas ao estudo do racismo e de suas vrias formas e ex-presses em culturas populares no mundo inteiro. Evidencia-ram a maneira como o racismo mostra sua cara feia nos lugaresmais surpreendentes, onde ningum o teria esperado, e onde al-guns habitualmente os que no sofrem suas conseqncias atproclamam que no est...2

    No presente artigo, minha ateno concentra-se nas repre-sentaes de pessoas negras na revista Vistazo, desde sua criao,em 1957, at 1991.3 Passei horas procurando representaes denegros em Vistazo, pgina por pgina, tirando slidese copiando ar-tigos e fotos. A focalizao desta pesquisa em Vistazojustifica-se

    pelo fato de tratar-se da revista mais popular do Equador. Vistazo,assim como outros meios de comunicao, proporciona aos gru-posdominantesumespaoprivilegiadoondeexpressarsuacosmo-viso, ou o que se poderia chamar de uma verso oficial do chama-dosensocomumnacional.Qualquerpessoaquejtevenasmosum nmero de Vistazopode perceber que o que a revista vende aseus leitores no seno o olhar branco, ou branco-mestio, sobreosvriospovosdoEquadoredomundo.Obviamente,asrepresen-taes de negros publicadas em Vistazoso produzidas a partir deuma posio elitista, masculina, branca ou branco-mestia, e deuma perspectiva urbana. O ns do Vistazono um ns queinclua as subjetividades negras e indgenas, nem as perspectivasdas populaes rurais. Ao contrrio.4

    As representaes de negros em Vistazomostram que o con-ceito de negro que as el ites equatorianas tm no monoltico.Embora seja quase sempre negativo, ou s vezes agressivamente ra-cista,amaneiracomoessaselitescompreendemonegro,oudeleseaproximam, est enraizada em termos contraditrios: repulsa, mastambm desejo; medo extremo, mas tambm atrao etc. Estascontradies explicam a presena, em diferentes perodos, e em di-ferentes nmeros, de imagens antitticas, como a do gentil cantor,do msico ou desportista, e a do predador social ou criminoso; aimagem do(a) possvel amante extico(a) e a do sujo domsticopreguioso etc. Antes de compartilhar os avanos da minha pes-quisa, preciso primeiro explicar o que entendo pelo conceito deordem racial/espacial.

    A Ordem Racial/Espacial Equatoriana

    Desde o incio da vida republicana do pas, assim comoocorreu em outros pases latino-americanos, a el ite branca e bran-

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    co-mestia reproduziu uma ideologia equatoriana de identidadenacional, que proclama o mestio como prottipo da cidadaniamoderna equatoriana (Clark, 1998a, 1998b; Rahier, 1998; ver,tambm, Anderson, 1991; Arocha, 1998; Gould, 1993; McCal-lum, 1996; Needell, 1995; Prez-Torres, 1998; Radcliffe, 1996).Essa ideologia baseia-se em uma crena na inferioridade da popu-lao indgena e em uma incondicional, s vezes contraditria, ad-mirao e identificao com o que chamam de a civilizao oci-dental (Silva, 1995; Stutzman, 1981; Whitten, 1981).

    Apesar da tentativa hegemnica de homogeneizao racial etnica, esta ideologia equatoriana de identidade nacional temcomoresultadoumaleituraracistadomapadoterritrionacional.Os centros urbanos so associados modernidade e populaobranca e branco-mestia, e as reas rurais so vistas como lugarescaracterizados por inferioridade racial, violncia, atraso de todotipo, selvageria etc. Essas reas, majoritariamente habitadas porno-brancos, ou no-branco-mestios, foram vistas por essas elitescomo imensos desafios para o desenvolvimento nacional rumo aosideais da modernidade. Desta maneira, o Equador tem caracters-ticas comuns com a Colmbia, como colocou Peter Wade em seulivro Blackness and Race Mixture: h um distintivo padro espa-cial na estrutura [...] da nao e de sua ordem racial (Wade, 1993;

    ver, tambm, Ching, 1997; Feld, 1996; Ferguson, 1992; Gupta,1992; Malkki, 1992).Nesta imaginao da equatorianeidade, no h, logicamen-

    te, nenhum lugar para os negros: eles so, e devem permanecer,marginais. Eles constituem o ltimo Outro, uma espcie de aber-rao histrica, um rudo dentro do sistema ideolgico da nacio-nalidade, uma contaminao do patrimnio gentico equatori-ano. No fazem parte dessa mestiagem oficial (Stutzmam,1981:63).

    Representaes da Identidade Nacional em Vistazo

    Vistazopublicou uma srie de artigos, fotografias, imagens eoutras representaes que ilustram a ideologia oficial de identi-dade nacional. Vrias publicidades, por exemplo, codificam a vi-so que as elites tm da equatorianeidade. Estas publicidades socaracterizadas por uma ausncia da populao negra. Tm comotema dominante a mestiagem, que apresentada como a essnciamesma da equatorianeidade. E, quando fazem referncia aos in-

    Me,oQueSerqueoNegroQuer?

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    dgenas, como indivduos que aparecem apenas como vestgiosdo passado: devem ser modificados, civilizados, branqueados(cf. Muratorio, 1994).

    Esta idia, segundo a qual os povos indgenas representamapenas o passado nacional, um tema de muito interesse para osredatores de Vistazo. Um desses artigos intitulado Sondando opassado do homem equatoriano (24/11/1978). Enfoca investiga-es arqueolgicas conduzidas por pesquisadores do Banco Cen-traldoEquadordaSucursaldeGuayaquil,evemacompanhadodeuma fotografia que mostra algumas moas chachis da Provncia deEsmeraldas, de p, com os seios nus, vestindo trajes tradicionais(da cintura para baixo). Abaixo da fotografia l-se a seguinte legen-da: Estas belas mocinhas so cayapas, da provncia de Esmeraldas.Mantm caractersticas que o tempo respeitou (:27). O artigopula do passado arqueolgico ao presente tradicional como se fos-seamesmacoisa.Legendascomoestaapontamparaacontnuain-fluncia de teses evolucionistas do sculo XIX (Darwin, Tylor eoutros) sobre o senso comum branco-mestio. Outro artigo, in-titulado Tribos condenadas morte (15/3/1985:36-41), explicaadegeneraodepovosindgenas,quenopuderamadaptar-secivilizao pelo fato de ainda serem vtimas de velhas tradiesmalss que os levaro morte. Uma frase diz: Os waoranis tm

    uma populao com alto grau de anormalidades por causa do casa-mento endogmico entre pais, filhos e irmos (:41).Outro artigo obviamente paternalista, que apresenta os re-

    sultados de uma pesquisa conduzida por um psiquiatra na Provn-cia de Cotopaxi, proclama uma grande descoberta de 1972: Real-mente h inteligncia superior no ndio (1/1972:100-102). Estadescoberta d mais valor mestiagem porque limita, ou, antes,corrige, a contribuio negativa do ingrediente indgena...

    Estas representaes de indgenas so marcadas pelo con-traste que estabelecem em uma perspectiva branco-mestia do-minante com as imagens de pessoas brancas nacionais, america-nas e europias. Ao contrrio daquelas, estas evocam seres civiliza-dos,modernoserespeitveis.Ascaractersticasdeseuscorposdefi-nem o que se considera belo, atraente, desejvel, ilustrando a ideo-logia do branqueamento tal como argumentada por Normam

    Whitten: branqueamento no quer dizer que o branco se india-niza e sim, ao contrrio, que o ndio que deve se branquear cul-tural e fisicamente.

    Quanto aos negros, no fazem parte da qumica nacionalis-ta. Nem so considerados como um dos ingredientes da mestia-

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    gemoficial.Emvezdeseremsimplesmenteinvisveis,comotantasvezes se argumentou no passado, so, antes, construdos ideologi-camente, atravs de suas representaes, como os ltimos Ou-tros.

    Os Negros como ltimos Outros

    No passado, argumentou-se que, no Equador e em outrospases latino-americanos com propores demogrficas semelhan-tes, os negros eram simplesmente invisveis ou totalmente ausen-tes dos imaginrios branco e branco-mestios das identidades na-cionais. Em parte, este argumento resultado da falta de interessepelos negros, que caracterizou as pesquisas em Cincias Sociais enas Humanidades equatorianas. Ninade Friedemann demonstroua existncia dessa falta de interesse por tudo que se referia ao negrono caso da Colmbia (Friedemann, 1984). Por outro lado, o argu-mento sobre a invisibilidade do negro est inscrito em uma tra-dio relativamente longa de pesquisa sobre os Estados-nao e asnacionalidades modernas. De fato, muitos pesquisadores que es-tudaram o surgimento dos nacionalismos e dos Estados-nao dofinaldosculoXVIIIenosculoXIX,tmemcomumatendncia

    a concentrar sua ateno exclusivamente no que chamaram deprocessos homogeneizadores das ideologias que esto por trsdasnacionalidadesmodernas.precisamenteoquefaz,porexem-plo, Benedict Anderson em seu famoso Imagined Communities(1991[1983]:47-66). Tambm o caso de Stuart Hall, ao escreverque as culturas nacionais ajudam a costurar as diferenas den-tro de uma identidade singular. Embora a tendncia homogenei-zadora das ideologias de identidade nacional seja bem concreta epossa ser observada em vrios lugares do mundo, e no apenas noEquador, essas ideologias de identidade nacional tambm estomarcadas por outro fenmeno que aparece, aps uma primeira lei-tura superficial, como contraditrio a esta ambio homogeneiza-dora. Poderamos referir-nos a esse fenmeno como a necessidadede construir um Outro, os Outros. Vrios pesquisadores preferi-ram focalizar sua ateno sobre esta necessidade que tm os mitosconstituintes das ideologias de identidade nacional de criar umOutro. A premissa desses autores a seguinte: as identidades ja-mais existem por si mesmas, sozinhas. As identidades existem poroposio, ou seja, sua natureza profunda, ou sua condio de exis-tncia, estarem opostas a outras identidades, dentro do espao

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    nacional e fora dele. Sem esta oposio, no haveria necessidade deter nenhuma identidade. Na dcada de 1960, pesquisadores quetrabalhavam sobre o surgimento de nacionalidades, como ErnestGellner (1964; 1983) ou Karl Deutsch (1966), e, mais tarde, pes-soas como Anthony Smith (1986), Walker Connor (1978, 1993),Elie Kedourie (1992) e Anna Triandafyllidou (1998), j estavamtrabalhando com esse conceito. Mais recentemente, um dessespesquisadores, Talal Asad, antroplogo do Oriente Mdio quevive nos EUA, desenvolveu a seguinte argumentao:

    [...]paraassegurarasuaunidadeparafazersuaprpriahistriaospo -

    deres dominantes sempre trabalharam melhor com prticas que diferen-ciameclassificam[...].Nestecontexto,opoderconstrutivoenotantorepressivo. Almdisto, sua capacidade de selecionar ou construir as dife-renas que servem a seus propsitos dependia da explorao dos perigosedasoportunidadesqueassituaesambguascontm(Asad,1993:17).

    Peter Wade, em seu estudo sobre a incorporao de formasmusicais afro-colombianas aos gneros da msica nacional co-lombiana, segue o mesmo argumento (ver, tambm, Moore,1997):

    [...] a diversidade necessria s idias nacionalistas, em parte porque apenas em relao diversidade que a unidade pode ser imaginada, mas

    tambm porque a diversidade quase sempre envolve relaes de poder.

    Assim como nas relaes de poder colonial o colonizadortem um senso de dominao que nutrido por um desejo narcisis-ta de subjugar o subordinado Outro, os construtores de naes de-finem sua prpria superioridade em relao diversidade que ob-servam e constroem e desejam. Distino como excelncia de-pende de distino como diferenciao; discriminao como refi-namento e gosto superior depende de discriminao contra as pes-soas definidas como inferiores e diferentes (Wade, 1998:4).

    As construes de indgenas aparecem de maneira muito vi-svel em comparao com as construes de negros nos mitos deequatorianeidade, desde o incio da vida republicana. Osafro-equatorianos sempre ocuparam um lugar perifrico. Sua visi-bilidade marginal dentro desses mitos no pode ser comparadacom a relativa centralidade dos grupos indgenas. Nas narrativasbrancas e branco-mestias sobre a identidade nacional, nas produ-es artsticas sobre costumes e em outras representaes, os ind-genas foram construdos, como demonstrou admiravelmenteBranca Muratorio, como descendentes dos nobres incaicos, como

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    os selvagens do Oriente ou jvaros, ou como pagos que requeriamo trabalho das misses evangelizadoras e civilizadoras (Muratorio,1994). Mas, aparecem claramente como um dos mais importantescomponentes ou ingredientes da identidade mestia ou bran-co-mestia nacional (conforme o perodo histrico), mesmo espe-cificando-se que tm de ser modificados, evangelizados, civiliza-dos e branqueados. A leitura de textos escritos por intelectuaisequatorianos brancos e branco-mestios evidencia a construodo negro como ltimo Outro. Refiro-me aqui, principalmente,a textos escritos, no incio do sculo XX, por Alfredo Prez Guer-rero, Victor Gabriel Garcs, Julio Moreno, Humberto GarcaOrtiz, Manuel Jos Caicedo, Gabriel Cevallos Garca, LeopoldoBentez Vinueza etc.5 O carter perifrico do negro manifesta-seprincipalmente das seguintes maneiras: habitualmente, nos textosdestinados a desenvolver idias e comentrios sobre o estado dacultura, e/ou identidade e/ou histria nacional, as referncias aosafro-equatorianos so muito escassas e breves. At agora, nunca viessas limitadas referncias sugerirem que eles fossem equatorianosou,senosopensadoscomocidadoscomoosindgenas,aocon-trrio destes no so includos no grupo dos que poderiam tor-nar-se cidados depois de um processo de inculturao ou decivilizao... Os termos utilizados para referir-se a eles africa-

    nos, raa negra, negros ou morenos jamais so precedi-dos como no caso dos ndios, raa ndia ou indgenas dopossessivo paternalista nosso(s), o que os situa clara e definitiva-mente fora do projeto de identidade nacional. Alm disto, quandose faz referncia existncia de negros dentro do territrio nacio-nal, isto ocorre nas partes mais descritivas dos textos, sem voltar aeles, nem sua presena ao escrever-se sobre a soluo a ser dadaaos problemas raciais e culturais do pas (o famoso problemandio ou problema indgena). Segundo esses intelectuais bran-cos e branco-mestios, a soluo do problema racial e cultural dopas s envolve os ndios, jamais inclui os negros sabemos queesto ali, mas tm de ficar de fora, e nem so concebidos comoproblema que afeta a questo nacional... Eis alguns exemplos.Em um texto intitulado La misa de las lanzas, Leopoldo BentezVinueza escreve, em 1950, sobre os acontecimentos de 6 de marode 1845, que ele chama de incio da vida autenticamente nacio-nal, e diz:

    Durou quinze anos a tutela providencial do Caudilho. Quinze anos desangue e lgrimas em que s se ouviu, entre um povo apavorado, o golpe

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    niaslourasdoNorte,comoreparopuritanodeseucontextotnico,tive-ram de admitir o negro robusto e alegre, risonho apesar de suas nostalgi-as ancestrais, para dedic-lo indispensvel tarefa, nas zonas adequadaspara o negro, porm insuportveis para o ingls da Amrica. Por todas asveredas da Amrica Hispnica onde o clima solicitava o negro, esten-deu-se esta contribuio racial trazida do fundo inesgotvel da fricaEquatorial. (Garcs, 1986 [1933]:104)

    A seguir, Garcs justifica a dominao do espanhol sobre ondio e o negro nos seguintes termos:

    O espanhol, conquistador, e depois fazendeiro, industria l, comerciante,homem de mundo, homem de cultura, tinha que superar o ndio e o ne-gro.Ondio,porqueseimpssobreeleeoatemorizouesubjugou.One-gro, porque, apesar de sua altivez caracterstica, no tem suficiente senti-mento de classe, de grupo, que d vigor formal coletividade em que sevive. O espanhol era muito mais apto a aproveitar imediatamente suaenergia, tanto individual como social. E era precisamente ele que haviade formar a hierarquia dominadora no viver coletivo dos povos da Am-rica. Nos campos poltico, social, econmico, em todas as esferas de ati-vidade, o brancoem primeiro lugar. O ndio, superiorem nmero, recu-ou para as quebradas andinas, ou embrenhou-se na imensido virgem daselva. O negro, que chegou por ltimo, no era estorvo maior porque vi-via confinado a determinadas reas territoriai s. Portanto, o branco asse-nhoreou-se de seus domnios. (ibidem:107)

    Norestodeseuartigo,durantequasevintepginas,Garcstendo o Equador em mente trata do tema da mestiagem, e o ne-gro esfuma-se como em um passe de mgica. Claramente, o negrono faz parte dessa imaginao das nacionalidades americanas ide-ais, na perspectiva branca ou branco-mestia de Garcs. Ao con-trrio, Garcs lana-se na outra direo, em um caminho queaponta a Europa como modelo biolgico e cultural, citando os pa-ses do Cone Sul, onde houve uma imigrao mais numerosa de eu-ropeus,o queexplica o estado mais avanado dessas naes. Garcsimagina um processo de branqueamento dos ndios, mas no dosnegros, que continuam confinados a determinadas reas territo-

    riais, ou seja, fora.Os demais autores consultados, que escreveram em vrios

    perodos da histria do pas, dividem-se entre as seguintes tendn-cias: 1. Referir-se aos negros s de passagem, registrando sua pre-sena perifrica, ou antes; 2. fazendo referncias diretas a eles paradepois, quando se trata de comentar ou elaborar sobre o futuro daidentidade, cultura e histria equatorianas, esquec-los onde seu lugar: nas margens (frontier areas).

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    Parece-me interessante frisar aqui o paralelo entre esta mar-ginalidade ou condio de ltimo Outro do negro nos proces-sos imaginativos de intelectuais brancos e branco-mestios de fi-nal do sculo XIX e comeo do XX, e a mesma marginalidade dosnegros nas pesquisas acadmicas equatorianas. Esta ltima con-trasta fantasticamente com a abundncia de pesquisas sobre popu-laes indgenas. Apresentarei aqui duas breves ilustraes, comtextos escritos por pesquisadores que, apesar do presente coment-rio, respeito muito. Em Los mitos de la ecuatorianidad (Silva,1995), Erika Silva nunca menciona a existncia de negros dentrodo territrio equatoriano. Alm disto, ignora a questo e a signifi-cao de sua invisibilidade nesses mitos da identidade equatoria-na. Em um artigo intitulado La cuestin de las identidades enQuito (Ibarra, 1995),Hernn Ibarra trata da histria de Quito naperspectiva dos processos de identidade de suas populaes, emtermos das categorias tnicas de brancos, branco-mestios,indgenas, cholos etc. Atravs de uma anlise muito interes-sante de sucessivas modas musicais, da histria do itinerrio dasfestas de Quito, bem como de vrios textos literrios, procura des-crever o desenvolvimento histrico da problemtica das identida-des em Quito. Mas, sobre os negros no escreve uma s palavra,apesar de uma documentada presena negra desde o incio da fun-

    dao espanhola de Quito e de uma imigrao negra relativamenteimportante durante os ltimos vinte anos, o que levou ao surgi-mento de uma significativa populao quitenha negra (Whittem,1995).

    Infelizmente, muitas das publicaes que enfocam temasafro-equatorianistas tendem a representar os afro-chotenhos e osafro-esmeraldenhos em termos essencialistas e exclusivamentecomo comunidades fundamentalmente rurais, localizadas na peri-feria do espao nacional, que existiram de certa maneira margemda vida moderna. Essas representaes das realidades sociocultu-rais dos negros, com invisibilidade ou presena essencializada,alm de serem incompletas e enganosas, no fazem seno reprodu-

    zirereforaroquechamodeordemracial/espacialequatoriana.Voltando Vistazo, reno as vrias representaes de negros

    em quatro categorias. Na verdade, essas categorias tambm foramutilizadas conscientemente ou no pelos jornalistas e editoresde Vistazo: 1. os africanos; 2. os negros equatorianos; 3. os negrosnorte-americanos; 4. o resto da dispora africana nas Amricas.Estas representaes divulgam a lgica da ordem racial/espacialequatoriana, bem como a viso que as elites nacionais tm do resto

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    do mundo e de sua suposta hierarquia cultural. Assim, pode-se ob-servar em Vistazoque a Europa e a Amrica do Norte encon-tram-se no alto da escala de respeitabilidade cultural comparti-lhada pelas vrias equipes de redao, ao passo que a frica, aocontrrio, jaz a seus ps. Esta escala de respeitabilidade culturaltem condies de existncia, e/ou influncias transnacionais.

    Carter Negativo do que se Refere ao Negro (em Geral) emVistazo

    Vrias representaes de tudo que se refere ao negro nas p-ginas de Vistazono tm especificaes tnicas precisas. No men-cionam negros em particular, como afro-esmeraldenhos,afro-chotenhos, afro-brasileiros, yorubs etc. Estas imagens fun-cionam simplesmente como se estivessem pedindo ao leitor que selembre do significante negro que est profundamente enterradono inconsciente coletivo (branco e branco-mestio) equatorianoe,paraalmdele,noinconscientecoletivoOcidental.Soimagensfundamentalmente estereotipadas e altamente negativas.

    Algumas aparecem sob a forma de piadas. Uma delas, porexemplo, caracteriza os negros como seres estpidos. Representa

    um casal de negros que se encontra no escuro. Pode-se adivinharque so negros pelos esteretipos dos traos de seus rostos: grandesolhos brancos, grandes dentes, lbios enormes. O homem diz mulher: Cortaram a luz! Por fim poderemos fazer nossa poupan-a! (n 66, 11/1962:98). Outra piada representa cinco negrosvestidos apenas com um leno ao redor da cintura. Esto sentadosem torno de uma mesa na qual se encontra um homem branco,sendo cozido... Um dos negros tem uma Bblia nas mos e diz:Obrigado, Senhor, por ter-nos permitido trazer a esta mesa... opo de cada dia. Amm (n 82, 7/1972:138). Em outra piada, onegro evoca a farra descontrolada, a preguia, a sensualidade na-tural,osritmosmusicaisetc.Umhomembranco,queestnapra-

    ia com sua esposa, levanta-se e diz, rodeado por negros com cha-pus de palha e instrumentos musicais: Ins! No sei o que voch de pensar , mas eu no volto para casa . . . (n 125,10/1967:138), como se tivesse decidido trocar o stressda vida mo-derna pela vida fcil dos negros que sabem gozar a vida.

    Outras representaes de negros sem indicaes tnicas sofeitas em artigos que tm o objetivo de tratar da humanidade demaneira relativamente abstrata, em um mbito geogrfico global.

    Me,oQueSerqueoNegroQuer?

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    Um desses, intitulado Morte prematura da humanidade(10/1974:53), discute a tese de Malthus e evoca os negros comoum problema social permanente: no sabem como cuidar-se; sem-pre necessitam ajuda de algum tipo; fazem filhos como coelhosetc. Em poucas palavras, no nos este um ns branco oubranco-mestio, claro deixam em paz... O contedo do artigopoderia ser resumido seguinte citao, que foi publicada abaixodo subttulo Quem perecer primeiro?: Nesta morte coletiva,avanando inexorvel, inicialmente perecero as pessoas de pou-cos recursos, os lares pobres. Morrero primeiro as maiorias des-possudas.... A fotografia que acompanha o artigo apresenta ummenino negro, magrrimo, com a mo direita estendida comopara pedir esmola...

    Outro artigo, intitulado Desaparecer a raa branca?(6/6/1978:82-84), contradiz a argumentao do artigo anterior.Sugere que, dentro de poucas dcadas, as raas negra e amarela do-minaro a populao mundial. Comentando dados demogrficose tambm as crises do petrleo da poca (final da dcada de 1970),o jornalista escreve:

    Por conseguinte, possvel prever, com elevado nvel de certeza, que acrise atual e prxima da energia ter no apenas um efeito sobre a civili-zao industrial, mas tambm sobre a distribuio das populaes e das

    raas humanas. A espcie humana mudar de cor. Os brancos, que ja-mais estiveram em maioria, tornar-se-o uma pequena, e depois muitopequena, minoria... A espcie humana mudar de pele.

    Depois, no mesmo artigo, o jornalista acrescenta com gran-de otimismo utilizando o termo obviamente negativo de infla-o: Mas a proporo das populaes e das raas estar finalmen-te aps uma fase de inflao amarela, ou morena, ou negra pr-xima proporo atual. Estas poucas referncias foram escolhi-das entre numerosas outras. Elas anunciam os maiores temas queso repetidos e tecidos dentro das representaes de negros dasquatro categorias com as que estou trabalhando.

    Representaes da frica e de Africanos

    A frica , definitivamente, um lugar firmemente marcadocomo negativo nas pginas de Vistazo. um lugar onde h desor-dem poltica e golpes de Estado. um lugar onde existe um nme-roimpressionantedetiranos.Africade VistazopareceumConti-nente onde os lderes polticos, muito mais que em qualquer outra

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    parte, portanto, muito mais do que na Amrica Latina, no tmnenhuma considerao por seus povos. um lugar onde, para usaro vocabulrio evolucionista de Vistazo, a vida selvagem e os cultosestranhos ainda ocorrem. um lugar aoitado pela fome e outrasnumerosas calamidades. Em poucas palavras, a frica de Vistazocaracterizada pela irresponsabilidade: os africanos no so nadaalm de crianas imaturas.

    Quanto ao perodo que vai de 1957 a 1991, no encontreium s artigo que apresentasse a frica de maneira positiva. Dos 61artigos sobre a frica publicados entre 1957 e 1991, mais de cin-qenta so sobre algum tipo de desordem poltica: guerra de inde-pendncia, golpes de Estado, excessos de pequenos tiranos, massa-cres polticos etc. Um desses artigos, publicado no nmero de ja-neiro de 1965, relata a guerra civil na Repblica do Con-go-Leopoldville. O jornalista escreve:

    Uma luta selvagem desenrolou-se nas ruas da bela cidade [colonial], tro-pas do governo legal avanavam pelas desertas avenidas semeadas demortos, moscas e carros virados, guerreiros semi-selvagens de Soumialot[o lder rebelde], entoando cantos rituais e frmulasde magia negra,lan-aram-se ao contra-ataque apoiados por abundantes rajadas de metra-lhadoras e fuzis automticos chineses.

    preciso enfatizar aqui o fato de que s os rebeldes so raci-alizados. Alm disto, o jornalista refere-se a eles com todos os ad-jetivos (negativos) atribudos a tudo que negro ou africano:guerreiros, no soldados; semi-selvagens, e magia negra.

    Adicionalmente, a origem dos fuzis automticos tambm satani-zada: so fuzis chineses, o que era muito ruim naqueles temposde Guerra Fria... No possvel entrar aqui nos detalhes destaguerra civil. Mas j se pode indicar que os soldados do chamadogoverno legal (na verdade, era um governo de tteres manipula-do por vrios governos ocidentais, em um contexto claramenteneocolonialista) talvez no estivessem lutando ao lado do bem,como sugere o jornalista.

    Antes de meados da dcada de 1960, no houve reportagenssobreafrica.Depoisdessadata,suapresenalimitadanarevistamarcada por catstrofes. Uma variedade de artigos, da segundametade dos anos 1960 at os anos 1980, referem-se sangrenta se-cessodaregiodeBiafra,naNigria;satrocidadesdoditadorIdi

    AmimDadaquetevegrandevisibilidadenosnmerosdeVistazoda dcada de 19706; s palhaadas de outro ditador, o MarechalBokassa, da Repblica Centro-Africana etc. Muitas das expresses

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    utilizadas pelos jornalistas que relatam esses acontecimentos tra-zem suas interpretaes racistas e essencialistas. A frica Ruge,diz o ttulo de um artigo sobre um massacre poltico na Rodsia(hoje Zimbbue): em vez de culpar os autores do fato lamentvel,culpam a chamada raa africana inteira... frica: corao da

    AIDS (27/3/1987:60) diz outro, sugerindo, de certa maneira,que esses negros selvagens e africanos so responsveis por estenovo mal etc.

    EmumartigosobreafricadoSul(2/1981:58-63),osnegrosafricanos so identificados como gente tradicional, atrasada e exti-ca, ao passo que os brancos sul-africanos, ao contrrio, so clara-mente associados modernidade, vida urbana, aos edifcios altos, civilizao etc. Neste artigo, mulheres negras africanas so apre-sentadas com os seios nus, de p ou de quatro, em uma pgina, en-quanto em outra pgina do mesmo artigo est a fotografia de umamulher branca, da qual s se v o rosto: est de culos e olha para ocu. O fato de divulgar ou esconder o corpo feminino tem muito aver com a distino muito importante na Amrica Latina entreos conceitos de mulher (usualmente de pele mais escura ou negra,associada vulgaridade, falta de educao, de acesso sexual fciletc.), por um lado, e, por outro, de senhora (branca ou de pelemais clara, respeitvel, casada, culta etc.) (ver, tambm, Melhuus,

    1996). Neste sentido, um artigo de 1973 (n 194:80-82) apresentabailarinas africanas, do Senegal, com o busto descoberto. Um subt-tulo do artigo diz Ningum criticou o fato de as bailarinas se apre-sentarem com o busto descoberto. As fotografias foram tiradas du-rante uma turn que o bal nacional do Senegal fez em Guayaquil.Naquela poca, nenhum corpo de mulher branca ainda tinha sidoexposto dessa maneira em Vistazo...

    Representaes de Afro-Equatorianos

    Uma das constantes mais importantes nos artigos de Vistazocom representaes de pessoas afro-equatorianas , sem dvida, adiferena no tom do jornalista quando fala nos textos escritose/ouatravsdomaterialvisualsobrenegrosdazonarural(asPro-vncias de Esmeraldas, Imbabura, Carchi e, mais particularmente,o Vale do Chota) e negros da zona urbana (principalmente Guaya-quil e Quito). Os negros aparecem como fora do seu lugar natu-ral em rea urbana, onde so fundamentalmente interpretadoscomo predadores sociais. So associados a crimes de todo tipo, de-

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    pendncia de drogas, estupro etc. Em reas rurais, ao contrrio, osnegrossorepresentadoscomoassociadosaformasmusicaisexti-cas, marimba, e a outras tradies culturais inofensivas, emboraestranhas. Os negros rurais so representados como se estivessemvivendoemseulocalreserva,comoquemaisprximonatureza,oseu lugar social natural, como diz Stuart Hall. Muitas vezes sovistos como vtimas de catstrofes naturais e outros problemas desade. Imagens de negros equatorianos simplesmente positivasso muito raras na histria de Vistazo. Em alguns casos limitados,aparecem na revista como heris nacionais e atletas que ganhammedalhas e outros ttulos durante eventos esportivos internacio-nais. A maior figura que cumpriu esse papel foi, com certeza,

    Alberto Spencer, nas dcadas de 1950 e 1960. Mais tarde, v-seLupo Quionez, Liliana Chal e inmeros outros. A meno a es-portistas afro-equatorianos sempre est acompanhada do uso deum adjetivo como negro, moreno, de bano etc. Isto denotao mal-estar dos jornalistas brancos e branco-mestios, assim comodos editores da revista, para quem impossvel no racializar umindivduo negro quando aparece em uma fotografia, como se a corde sua pele no pudesse deixar de ser mencionada. claro que es-portistas que no so negros jamais so racializados: a cor de suapele considerada normal... Assim, temos menes como, para

    Liliana Chal, A negra de ouro (19/12/1986:87-88); o negrotalo Estupian que tambm chamado de o gato selvagem...(7/4/1978:92-95); ou, em outro registro, o chins negro, parareferir-se a Jaime Hurtado...

    Imagens negativas de afro-equatorianos referem-se mais ahomens do que a mulheres. As imagens de mulheres afro-equatorianas costumam estar associadas a algum aspecto menosnegativo, mesmo se ele consiste na manipulao delas e de seuscorpos como uma encarnao do mito da Vnus negra, objeto se-xual por excelncia. Isto ocorre, raras vezes, principalmente em re-presentaes em contextos rurais no final da dcada de 1970 e nade 1980. Ser preciso esperar a segunda metade da dcada de 1990

    para ver mulheres negras ocuparem uma posiode mulher desej-vel no contexto urbano. E, mesmo nesse caso Fernanda StalinaHurtado, filha de Jaime Hurtado (18/7/1991:38-40) e MnicaChal (16/11/1995) , a visibilidade criticada por muitos cida-dos brancos e branco-mestios... (ver Rahier, 1998).

    As representaes de afro-equatorianos como perigosos cri-minosos so abundantes e comearam j nos primeiros nmerosda revista. Em 1958, um artigo intitulado Nas garras da erva mal-

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    dita (7/1958:47-48, 85) marcao incio dessa longa histria de di-famaoracialoutnica.Asduasilustraesdemaconheirossohomens negros. Um deles se chama Santos Benigno BlackmanMorales. O jornalista escreve a seu respeito: Santos BenignoBlackmam Morales, tem uma contradio em seus nomes. Real-mente: no deve ser nem muito benigno, nem muito santo, se estondeest.EissodeBlackmanvembemacalhar:suacorpurara-a. A frica ruge. No ms seguinte (8/1958:4-6, 71), outro arti-go continua a saga: 5000 ladres em Guayaquil acompanhadopelafotodetrshomensnegrosnapriso.Noanoseguinte,umar-tigo demonstra que essa imagem negativa do negro est to enrai-zada no inconsciente coletivo branco e branco-mestio que utili-zada para interpretar um acontecimento histrico do sculo XVI,noquehojechamadodeDiadaProvnciadeEsmeraldas.Oar-tigo tem por ttulo O negro que foi rei de Esmeraldas(10/1959:72-74). O subttulo principal diz: De como os negroschegaram ao Equador. Um rei sanguinrio das selvas. A Espa-nhaagediplomaticamente.Otextoqueseseguerelata,demanei-ra distorcida, a histria do grupo de Sebastin Alonso de Illescas yde Antn, no sculo XVI, que foi salva do esquecimento pela cr-nica do padre Miguel Cabello Balboa (ver Cabello Balboa, 1965;Phelam, 1967; Rueda Novoa, 1990, 1992). interessante notar

    que o jornalista jamais questiona a instituio da escravido, suadesumanidade etc. Ao contrrio, parece preocupado em pintar es-ses negros como selvagens que escaparam de sua condio nor-mal ou natural de escravos, que so sanguinrios, que agiramcomo animais e isto particularmente diz o jornalista em um im-pulso paternalista com os grupos indgenas que ocupavam a reaaonde chegaram etc. O jornalista revisita a histria para reforar oesteretipo do negro delinqente... Em nenhum momento querfestejar a valentia desses seres humanos que se rebelaram contra osseus opressores para recuperar sua dignidade e liberdade... O dese-nho que acompanha o artigo sugere a inteno do jornalista e doredator: mostra um negro musculoso com uma faca na mo, de-

    pois de matar um lder indgena que est no cho... Devemos re-cordar que a chegada do grupo de Sebastin Alonso de Illescas deuincio ao que os historiadores chamaram de a Repblica de Zam-bos.

    E os exemplos deste tipo de representaes continuam aolongo da histria da revista. Em 1961, a bestialidade de um prisio-neiro negro enfatizada pela seguinte legenda: Se eu sair, tornareia matar! (7/1961:53-54). Esta histria de difamao entusistica

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    dos homens negros que quando no os apresenta como delin-qentes naturais ou animais selvagens que no podem controlarseus impulsos, apresenta-os como outro tipo de problema social:mes adolescentes, pobres sem escolaridade, homens-rato etc. chega at o presente. Em 1997, Vistazofestejou os seus quarentaanos de existncia com um nmero especial. Nesse nmero, apre-senta entrevistas de vrias pessoas que completaram quarenta anosde idade em 1997. Assim, h entrevistas de um policial, de um m-dico, de um advogado, de uma secretria, de um pescador etc. Napgina 118 do n 715, de 5/6/1997, apresenta-se a entrevista e afotografia de O Delinqente: um afro-esmeraldenho que, diz alegenda, vive h vinte anos na delinqncia e h dezesseis na pri-so...

    Representaes de Negros Norte-Americanos

    Os negros norte-americanos, ao contrrio dos negrosafro-equatorianos, no so representados como delinqentes.Quer dizer, se de vez em quando se faz referncia delinqnciaquando se escreve sobre eles, esta no aparece como sua primeiracaracterstica. Dentro da lgica do que chamo de a ordem raci-

    al/espacial, os negros norte-americanos so muito mais associa-dos civilizao ocidental do que os outros. Portanto, so conside-rados, nas pginas de Vistazo, como nas ruas e mentes do Equador,de maneira muito menos negativa, e em certos casos, positiva. Po-dem at ser pintados como povo que luta, com muito boas razes,contra injustias desumanas, contra uma situao racista que produto de uma longa histria de discriminao baseada na cor dapele e na origem africana. Esta ltima representao feita, sobre-tudo, nos nmeros da revista das dcadas de 1960 e 1970, quandose davam as agora famosas manifestaes pela obteno de uma le-gislao que assegurasse os direitos civis para todos os cidados,qualquer que fosse sua raa.

    interessante notar aqui que, embora os jornalistas e edito-resde Vistazotenham a habilidade, sensibilidade e clarividncia deno apenas relatar, mas tambm condenar o racismo da sociedadeamericana, permanecem totalmente cegos diante dos processosclara e dolorosamente racistas, bem como diante das prticas dis-criminatrias contra as populaes negras equatorianas, desde oincio da Colnia. O racismo algo que se encontra fora, nodentro do espao nacional. Os afro-equatorianos so fundamen-

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    talmente delinqentes urbanos, ou pequenos agricultores que nosabem como se superar em reas rurais. Nada mais... O racismo um mal que s existe no exterior.

    Uma representao muito comum dos negros americanosem Vistazo a que consiste em caracteriz-los como importantesesportistas, atletas e artistas de renome mundial. At o final da d-cada de 1970, a presena de imagens de negros americanos em Vis-tazoera muito limitada, apesar das reportagens sobre os aconteci-mentos dos direitos civis; no entanto, na dcada de 1980 sua pre-sena aumenta consideravelmente atravs da cobertura dos suces-sos de Michael Jackson e seus irmos e irms; do Cosby show; dolanamento na televiso de Razes, escrito por Alex Haley; doator negro de Misso Impossvel etc. Nesses artigos, pode-se ob-servar a surpresa e o fascnio dos jornalistas de Vistazocom o xitoeconmico desses artistas negros dos EUA. Vrios artigos breves,acompanhados de fotografias, so intitulados Os negros mais ri-cos do mundo..., ou Negros milionrios etc., expressando, as-sim, o quanto essas imagens foram surpreendentes sob uma pers-pectiva equatoriana.

    O Resto da Dispora Africana

    Representaes de negros que no sejam afro-equatorianos,africanos, ou negros americanos so relativamente raras ao longoda histria de Vistazo. As poucas que pude encontrar no perodoind i cado apon t am , p r in c ipa lm en t e , p a r a popu l a e safro-caribenhas e para o Brasil. Muito mais do que para os negrosdas outras categorias, e com exceo da repblica do Haiti (ver aseguir) e dos numerosos artigos sobre Pel (o rei brasileiro do fute-bol), as representaes de desejveis mulheres negras so aqui do-minantes,eistodesdeosprimeirosanosdarevista.Noentanto,so-bretudo no que diz respeito a populaes caribenhas, essas repre-sentaes tambm so marcadas por referncias constantes fri-

    ca selvagem, com seus rituais misteriosos e estranhos, que definiti-vamente os marcam como exticos...

    Em 1958, um artigo intitulado Calipso em Guayaquil (n16, 9/1958:71) est acompanhado por duas fotografias: no centroda primeira aparece uma atraente mulher negra danando com aspernas descobertas e movendo sensualmente a cintura entre doishomensnegrosque,dejoelhos,abremosbraoscomoparaprocla-mar e festejar sua beleza. Na segunda, h trs homens negros vesti-

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    dos somente de pedaos de pano na cintura, imitando pele de ti-gre, danando com lanas nas mos.O jornalista, que correspon-dente itinerante do Vistazoem Lima, escreve:

    Vi os negros do Calipso de Trinidad aqui em Lima estrearem no me-lhor teatro da cidade, o City Hall, e depois tornei a aplaudi-los naEmbassy, a melhor boitede Lima. So maravilhosos; quis entrevis-t-los para Vistazoe, com um intrprete, j que s falam ingls, alm doseu dialeto do interior, o que me transportava aos anos da minha juven-tude, quando me emocionavam os filmes de Tarz, rodeado de negros emais negros, consegui uma curta conversa com eles. O que faz de lderme disse: Onossoespetculo nasceu como umaresposta proibio po-

    licial inglesa contra nossas tradicionais bandas africanas. Despertamoscuriosidade e mostramos o nosso folclore, creio que de maneira demasia-do crua.

    Outro artigo, intitulado Com o diabo no corpo (n 443,7/2/1986:42-44), refora essa imagem da mulher afro-caribenhacomo mulher quente capaz das mais extravagantes habilidades se-xuais: a fotografia principal do artigo ocupa uma pgina inteira emostra uma mulher negra de frente, que dana esfregando o trasei-ro contra a plvis de seu colega bailarino, que podemos ver dan-ando atrs dela. A fotografia foi tirada durante um carnaval emTrinidad. Entre outros artigos e fotografias que apontam na mes-

    ma direo, pode-se destacar tambm um texto publicado em5/9/1986, dedicado Miss Brasil 1986. s vezes o jornalista cha-ma-a de a bela mulata. Outras vezes utiliza frases dramticascomo o sonho da Gata Borralheira negra etc. Muitas das fotogra-fias mostram-na em traje de banho. A ltima foto tem a legenda:Gesto de sonho, magia e paixes transbordantes. Miss Brasil umpoema mulato.

    No poderia terminar estaparte sem comentar duas fotogra-fias que me surpreenderam por serem bastante nicas dentro doconjunto de fotografias que compilei.A primeira foi tirada no Bra-sil, durante o carnaval de fevereiro de 1959, e publicada no n 22,de maro do mesmo ano. Acompanha um artigo sobre o carnaval

    do Rio que relata vrios eventos, entre os quais a tentativa de umgrupo de admiradores de desnudar Jane Mansfield. Nessa fotogra-fia pode-se ver um homem negro beijando a boca uma mulherbranca ou branco-mestia, que com algo de ternura correspondecomafetoacariciandoseutorso.Essafotografiaencaixa-se,claro,na reputao do carnaval do Rio, durante o qual tudo poderiaacontecer. Sem dvida, pela sensao que cria na sociedade equa-toriana da poca que foi escolhida pelo jornalista e pelos editores

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    Estudos Afro-Asiticos, Ano 23, n 1, 2001, pp. 25-28

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  • 8/8/2019 Representaes racistas na Revista Vistazo 1957 - 1991

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    da revista. A legenda impressa abaixo da fotografia diz: Um exem-plo para o povo de Little Rock [nos EUA, onde acabava de ocorrerum fato racista], aqui um preto beija uma linda garota. A alegriados cariocas os faz esquecer todo tipo de preconceitos.... A situa-o inversa, quer dizer, um homem brancoou branco-mestio bei-

    jando uma mulher negra, seria certamente menos sensacional. Ahistria de relaes raciais em contextos colonial e neocolonial nas

    Amricas,assimcomonafrica,estcheiadessescasosqueexpres-sam apenas o poder das elites socioeconmicas e polticas. Paracontinuar com o tema, a segunda fotografia segue a ordem natu-

    ral das coisas e, portanto, menos subversiva que a precedente:representa um homem branco e vestido (um sacerdote anglicano)dominando pelo menos com o olhar uma mulher negra nuaque tem apenas um pedacinho de pano sobre as coxas. O leitorpode v-la de costas com o traseiro descoberto. O artigo intitu-la-se: O sacerdote que pinta nus e conta a histria de um sacer-dote anglicano que tem paixo por pintar mulheres nuas.

    Nesta categoria de artigos e fotografias sobre o resto da dis-pora africana, destacam-se as referncias ao Haiti . O Haiti fun-damentalmente representado de maneira muito negativa em Vis-tazo. Assim como o fascnio que a revista teve pelos ditadores afri-

    canos Idi Amin Dada e Jean Bdel Bokassa, a ditadura dos Duvali-ers inspirou sete artigos na revista. Cada um deles enfatiza os as-pectos sanguinrios dos regimes de Papa e Baby Doc, e seus gastosextravagantes contrastando com a pobreza do povo haitiano. Nis-to a imagem do Haiti traa um paralelo na questo coincidentecom a imagem da frica. Particularmente quando se consideramas reportagens sobre as tradies religiosas da ilha: o vodu. Este l-timo no representado como uma religio respeitvel como ou-tras, com uma cosmoviso prpria, um sistema de rituais especfi-cos, um panteo, uma hierarquia religiosa etc., mas como umaprtica selvagem de magia negra. Este preconceito ou imagem es-

    tereotipada no existe apenas no Equador, claro. Vrios artigostm ttulos dramticos que denotam esta viso negativa do vodu,e, com ela, tambm da populao do Haiti: O pas dos mortosque caminham (n 137, 10/1968:49-52); Os vampiros huma-nos do Haiti (n 162, 11/1970:88-92); Duvalier: fim de um im-prio de sangue (8/2/1985:14-17), que contm o subttulo PapaDoc' Duvalier iniciou h 28 anos no Haiti uma ditadura baseadano terror e na magia negra...

    Estudos Afro-Asiticos, Ano 23, n 1, 2001, pp. 26-28

    JeanRahier

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    Concluses

    Assim como o que se pode encontrar profundamente anco-rado no inconsciente coletivo branco e branco-mestio equatoria-no, representaes das pessoas negras foram construdas na Vista-zo, ao longo de sua histria, como para situ-las de maneira defini-tiva como seres marginais em tudo o que se entende por civiliza-o, nao e cultura nacional. Entre as vrias categorias de ne-gros que se encontram em Vistazoe com as quais trabalhei, obser-va-se que os afro-equatorianos so representados como os mais ne-

    gativos de todos, depois dos africanos: no so ricos e civilizados,ou artistas de reputao internacional como os gringosnegros; noso sensual e sexualmente to atraentes (antes da dcada de 1990)como os negros ou, antes, as negras caribenhas e brasileiras.Quando esto em suas zonas rurais (a provncia de Esmeraldas e oVale do Chota), so pintados como africanos (ver, por exemplo, oart igo Um canto da frica nos Andes, na Vistazo de22/6/1984:90-96), com tudo que isso contm de negativo. Emreas urbanas, em compensao, tornam-se perigosos, selvagens esanguinrios delinqentes, tambm parecidos com africanos, mascom o aspecto de seu significado que evoca a violncia (A fricaRuge). Em suma, as representaes de afro-equatorianos mar-cam-nos como seres marginais ao projeto nacional das elites equa-torianas. Essa marginalidade no resultado do nmero relativode negros com que conta o Equador, como foi dito em vrias oca-sies por intelectuais e polticos brancos e branco-mestios. Essamarginalidade a expresso do fato de que as pessoas negras cum-prem o papel de ltimo Outro nos imaginrios de identidade na-cional. Na lgica da ideologia hegemnica de identidade nacionalque define a equatorianeidade, os negros constituem o que nin-gum (os brancos e branco-mestios) quer ser. O ser negro defi-nido como o contrrio de ser civilizado. Os negros no podemencarnar o que se proclama como os ideais da nacionalidade.

    Cumprem o papel de Outro, tanto dentro das fronteiras nacionaiscomo fora delas. Nem so includos nos mitos da equatorianeida-de quando se fala de branqueamento. Este ltimo um processoque leva nacionalidade (imaginada pelas elites) reservada aosindgenas. Esta qualidade negativa de ltimo Outro at repro-duzida por muitos intelectuais equatorianos brancos e bran-co-mestios que nem se do ao trabalho de inclu-los em suaspesquisas e outras preocupaes.

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    Estudos Afro-Asiticos, Ano 23, n 1, 2001, pp. 27-28

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    Esta marginalidade dos negros equatorianos de hoje no mais do que a continuao de uma longa histria de discriminaoque comeou durante a Colnia e no s foi reproduzida, mastambm reforada atravs das dcadas, nos vrios meios de comu-nicao, e no senso comum nacional.

    Notas

    1. Todas as tradues deste artigo so de minha autoria.2. Tenho o projeto de chegar at o ano 1998.3. Para um estudo similar conduzido em outro contexto nacional, ver Lutz (1993).

    4. Trata-se de uma pesquisa em curso. Planejo estender esta lista em um futuro prxi-mo.

    5. Na histria de Vistazo, mais de dez artigos foram dedicados ao ditador Idi AmimDada, como se ele fosse um emblema, uma boa ilustrao do que a frica...

    6. A questo de gnero e raa em Vistazomerece um estudo muito mais detalhado doque o presente.

    Estudos Afro-Asiticos, Ano 23, n 1, 2001, pp. 28-28

    JeanRahier

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