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REPRESENTAÇÕES E LÓGICAS DE AÇÃO DO CONSUMIDOR INSATISFEITO MARIE AGNES CHAUVEL UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ INSTITUTO DE PÓS- GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO – COPPEAD DOUTORADO EM ADMINISTRAÇÃO ORIENTADORA: PROFESSORA ANGELA DA ROCHA Ph.D. EM ADMINISTRAÇÃO RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL 1999

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REPRESENTAÇÕES E LÓGICAS DE AÇÃO

DO CONSUMIDOR INSATISFEITO

MARIE AGNES CHAUVEL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ INSTITUTO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO – COPPEAD DOUTORADO EM ADMINISTRAÇÃO

ORIENTADORA: PROFESSORA ANGELA DA ROCHA Ph.D. EM ADMINISTRAÇÃO

RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL 1999

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Chauvel, Marie Agnes Representações e Lógicas de Ação do Consumidor Insatisfeito/Marie Agnes Chauvel. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 1999. viii, 246 p. Tese de Doutorado – Universidade Federal do Rio de Janeiro, COPPEAD 1. Marketing. 2.Tese (Doutor. – COPPEAD / UFRJ). I. Título.

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Desejo expressar meus sinceros agradecimentos:

. À minha orientadora, Ângela da Rocha, pelo apoio constante e pela dedicação, disponibilidade e compreensão com que sempre pude contar, ao longo do curso de Doutorado e da elaboração dessa tese, . Aos entrevistados que tornaram possível a realização desse trabalho, . Aos professores, funcionários e alunos da COPPEAD, pelo apoio e pela amizade manifestados ao longo do curso e pela ajuda recebida na realização dos trabalhos de campo, . A Maria Ester, Antônio, Nathalie, Pascal e Hamilton, . Aos meus pais, Armand et Anne Chauvel.

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CHAUVEL, M. A., REPRESENTAÇÕES E LÓGICAS DE AÇÃO DO CONSUMIDOR INSATISFEITO, 1999 - Tese de Doutorado apresentada no COPPEAD - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO.

RESUMO A pesquisa procura investigar a insatisfação do consumidor a partir de uma abordagem interpretativa, voltada para a compreensão de suas dimensões social e cultural. Baseada em relatos individuais de experiências de insatisfação, ela busca entender e descrever as representações e as lógicas, que orientam, num determinado contexto (Brasil, Rio de Janeiro), o pensamento e as ações do cliente insatisfeito. Os resultados apontam que o caráter simultaneamente hierárquico e igualitário da sociedade brasileira, bem como os “estilos de navegação social” a ele associados (o jeitinho e o “Você sabe com quem está falando?”), exercem uma influência decisiva sobre os julgamentos e as ações dos consumidores. Ao avaliar suas experiências de compra, os clientes levam em conta sua posição social e o tipo de público-alvo da empresa (classe alta ou baixa). Ao mesmo tempo, eles mobilizam critérios de caráter igualitário. As empresas são acusadas de abusar do seu poder e de discriminar os consumidores. As ações empreendidas em decorrência da insatisfação são, também, norteadas por essas duas lógicas. De um lado, os consumidores relutam diante da perspectiva do conflito. Temem passar por antipáticos ou espertos, ou enfrentar a humilhação de um “não!”. De outro, eles recorrem de forma quase sistemática à divulgação informal de sua experiência e valorizam a iniciativa de apelar aos órgãos de defesa do consumidor, demonstrando assim seu empenho em reforçar a pressão exercida sobre as empresas e em fazer prevalecer os princípios da igualdade e da justiça.

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ABSTRACT

This research attempts to investigate the dissatisfaction of consumers based on an interpretive approach directed toward the comprehension of its social and cultural dimensions. Based on individual reports of experiences of dissatisfaction, it attemps to understand and describe the interpretations and rationales which orient, in a specific context (Rio de Janeiro, Brazil), the thinking and actions of dissatisfied customers. The results indicate that the simultaneous hierarchical and egalitarian character of the Brazilian society as well as the styles of social interaction which are associated to them (the “jeitinho” – getting things done by clever circumventing of the obstacle and by claiming power “Do you know to whom you are speaking”) exercise a decisive influence over the judgements and actions of the consumers. In evaluating their experiences of purchasing, the consumers take into account their social position and the target consumers of the company (higher or lower social-economic class). At the same time, they utilize criteria of an egalitarian nature. The companies are accused of abusing their power and of discriminating between customers. The actions employed as a result of the dissatisfaction are also oriented by these two rationales. On one side, the consumers retreat from the prospect of conflict. They fear that they will be seen as unpleasant people or clever crooks or have to confront the humiliation of a “No”. On the other hand, they resort in na almost systematic manner to informal relating of their experiences to others and they value the recent legal iniciative inviting consumers to appeal to an office for consumer affairs, demonstrating by this, their efforts to reinforce the pressure exercised over the companies by the government and making the principles of iquality and justice prevail.

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SUMÁRIO

1. OBJETIVOS E RELEVÂNCIA DO ESTUDO.....................................................1 2. REVISÃO DE LITERATURA: A SATISFAÇÃO DO CONSUMIDOR NO PENSAMENTO DE MARKETING .................................................................8

2.1. A TEORIA ECONÔMICA ........................................................................9 2.2. A TEORIA BEHAVIORISTA .................................................................13 2.3. A TEORIA COGNITIVISTA ..................................................................20 2.4. A LITERATURA CONTEMPORÂNEA: DISCUSSÕES EM TORNO DO CONCEITO DE SATISFAÇÃO ........................................22

2.4.1. REFERÊNCIAS UTILIZADAS NA AVALIAÇÃO DA COMPRA............................................................22 2.4.2. NATUREZA DO ESTADO PSICOLÓGICO DE SATISFAÇÃO OU INSATISFAÇÃO ...............................................26 2.4.3. RELAÇÃO EXISTENTE ENTRE INSATISFAÇÃO E COMPORTAMENTOS PÓS-COMPRA ......................................28

2.5. O CONCEITO DE SATISFAÇÃO E OS MOVIMENTOS DE CONSUMIDORES ..................................................................................35 2.6. UMA ALTERNATIVA: O PARADIGMA INTERPRETATIVO .........................................................47 2.7. A NOÇÃO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL ......................................58

3. METODOLOGIA DE PESQUISA ....................................................................65

3.1. PROBLEMA DE PESQUISA ................................................................66 3.2. PERGUNTAS DE PESQUISA ..............................................................67 3.3. MÉTODO DE PESQUISA ....................................................................68 3.4. COLETA DE DADOS ...........................................................................81 3.5. INFORMANTES ...................................................................................84

3.5.1. ESCOLHA DOS INFORMANTES ........................................84 3.5.2. DESCRIÇÃO DOS INFORMANTES ....................................85

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3.6. ANÁLISE DOS DADOS .......................................................................89 3.7. LIMITAÇÕES DO ESTUDO ................................................................91

4. DESCRIÇÃO DOS RESULTADOS .................................................................93

4.1. A SITUAÇÃO DE INSATISFAÇÃO ...................................................95 4.1.1. O MEDO DO CONSUMIDOR NA HORA DA RECLAMAÇÃO .......................................................................95 4.1.2. “SOU UM CONSUMIDOR RESPONSÁVEL.” .................106 4.1.3. NÃO BASTA TER RAZÃO, É PRECISO TER PROVAS ...............................................................................111 4.1.4. A QUEIXA COMO CONFLITO .........................................114 4.1.5. A AUSÊNCIA DE CONFLITO COMO EXCEÇÃO ..........121 4.1.6. O JEITO BRASILEIRO DE LIDAR COM O CONFLITO: SOLUÇÃO PARA ALGUNS, PROBLEMA PARA TODOS ........................................................125 4.1.7. O DILEMA DO CONSUMIDOR FRENTE À QUEIXA: “SER OU NÃO SER GERSON?” ..................................................133

4.2. A EMPRESA SEGUNDO O CONSUMIDOR INSATISFEITO ......139 4.2.1. ESPERTOS SÃO ELES: “ELES SÓ QUEREM VENDER” .................................................139 4.2.2. COMPRAR: UM INVESTIMENTO DE RISCO (“PAGOU, DANÇOU!”) ...............................................................152 4.2.3. “AH, SE EU TIVESSE COMPRADO UMA MARCA MELHOR!” ....................................................................................161

4.3. OS SERVIÇOS DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR ............170 4.3.1. CONSUMIDORES FELIZES, CONSUMIDORES FRUSTRADOS .............................................170 4.3.2. O DESAFIO DOS SACS: COMO LIDAR COM A QUEIXA? ..............................................177

4.4. ÓRGÃOS DE DEFESA DO CONSUMIDOR ...................................182 4.4.1. UM CAMINHO PENOSO, UM MEIO DE PRESSÃO VALIOSO.......................................................................................182 4.4.2. “SE A GENTE NÃO BRIGAR, ESSAS EMPRESAS NÃO VÃO SE ACERTAR NUNCA!” .........................................190

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5. DISCUSSÃO ....................................................................................................197

5.1. AS REPRESENTAÇÕES DA RELAÇÃO CONSUMIDOR VERSUS EMPRESA E A AVALIAÇÃO DA COMPRA ........................199

5.1.1. REPRESENTAÇÕES DA RELAÇÃO COMPRADOR VERSUS VENDEDOR...................................................................200 5.1.2. IMPACTO DAS REPRESENTAÇÕES DA RELAÇÃO COMPRADOR VERSUS VENDEDOR SOBRE A AVALIAÇÃO DO CONSUMIDOR ...........................205

5.2. ESTRUTURAS DE REPRESENTAÇÕES E NATUREZA DO ESTADO DE SATISFAÇÃO OU INSATISFAÇÃO ........................209 5.3. LÓGICAS DE AÇÃO DO CONSUMIDOR, INSATISFAÇÃO E COMPORTAMENTOS PÓS-COMPRA ...............................................213

6. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES .....................................................217

6.1. CONCLUSÕES ..................................................................................218 6.2. RECOMENDAÇÕES .........................................................................229

6.2.1. SUGESTÕES PARA FUTURAS PESQUISAS. .................229 6.2.2. RECOMENDAÇÕES ÀS EMPRESAS ...............................232

7. BIBLIOGRAFIA .............................................................................................236

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1. OBJETIVOS E RELEVÂNCIA DO ESTUDO

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1. OBJETIVOS E RELEVÂNCIA DO ESTUDO

“O conceito de marketing requer uma orientação para o cliente, apoiada pelo marketing

integrado, que tenha a satisfação do cliente como elemento-chave para a obtenção de

um volume de vendas lucrativo a longo prazo”1 (Kotler, 1972, p.54). A partir da década

de 50, essa visão, hoje clássica, passa a orientar a teoria e a prática da disciplina

(Cochoy, 1996),. A satisfação do consumidor é, para as empresas, o único meio de

conseguir obter e manter clientes. Constitui, portanto, um objetivo imprescindível para

as organizações (Levitt, 1995).

No Brasil, a promulgação, em 1991, do Código de Defesa do Consumidor, a abertura do

mercado e a crescente competitividade imposta pela globalização da economia vêm

reforçando o interesse da comunidade empresarial pelo tema e suscitando ações voltadas

para o aprimoramento da relação com o cliente. Em especial, um número cada vez

maior de empresas2 vem investindo na implantação de Serviços de Atendimento ao

Consumidor (os chamados SACs).

Embora essas iniciativas tenham suscitado alguns estudos, poucos chegam a abordar

diretamente o consumidor3. Os que o fazem (Pizzutti dos Santos, 1996) baseiam-se nos

registros dos SACs, deixando, portanto, de lado os clientes que, por algum motivo

(inclusive pela falta de um serviço ao qual recorrer), não comunicam sua insatisfação à

empresa. Assim, apesar dos esforços despendidos para melhor administrar essas

1 Grifos do autor.

2 Segundo artigo publicado no Jornal do Brasil em 07/04/96, cerca de 1500 empresas brasileirasofereciam, nessa data, esse serviço aos seus clientes.

3 No Brasil, o único do qual tivemos conhecimento é a dissertação de mestrado Análise doComportamento do Consumidor frente a experiências insatisfatórias com eletrodomésticos, na cidade deSanta Maria-RS, de Cristane Pizzuti dos Santos, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996. Olivro de Zülzke, M.L., Abrindo a Empresa para o Consumidor (Rio de Janeiro: Qualitymark, 1991), alémde apresentar um histórico da questão da defesa do consumidor no Brasil, analisa experiênciasempresariais na implantação de SACs. A dissertação de mestrado Atendimento ao consumidor e decisãoempresarial: o papel do SAC em empresas de bens de consumo , de Ana Luisa Isnard, Coppead, UFRJ,1996, examina, a partir de resultados colhidos através de questionários enviados, por correio, a 197empresas (65 respostas utilizáveis), a questão da importância dos SACs nos processos de decisãoempresarial.

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situações, sabe-se, ainda, muito pouco sobre seu principal alvo. O consumidor

insatisfeito continua sendo, em grande parte, um desconhecido.

O objetivo deste estudo é o de investigar as representações e as lógicas de ação que

orientam o comportamento desse consumidor. De modo geral, prevalece a hipótese de

que o brasileiro adota uma atitude passiva frente aos conflitos com produtores ou

revendedores. A revista Veja escreve, por exemplo, em artigo publicado em março de

1991: “O brasileiro, ..., cresceu numa lei da selva nesse terreno e tornou-se um animal

resignado diante de balconistas distraídos, gerentes enroladores e balconistas marotos”4.

Nada sabemos porém sobre a veracidade, as razões e os limites dessa suposta

passividade. Embora diversos movimentos - entre outros, a marcha da fome (1931), a da

panela vazia (1953), o protesto contra o alto custo de vida (1963), a campanha “Diga

não à inflação”(1972), o boicote à carne (1979), e os episódios do Plano Cruzado

(Zülzke, 1991) - testemunhem contra essa hipótese, a literatura atualmente disponível

não permite examiná-la com maior profundidade.

De um lado, diversos observadores (e consumidores) acusam os SACs de serem

empreendimentos meramente cosméticos, empenhados em atender ligações, mais do

que em efetivamente resolver problemas. De outro, organismos como os Procons5

acabam entrando eles mesmos na lista de instituições que são objeto de reclamações dos

consumidores6. Dentro dessas circunstâncias, a passividade do consumidor brasileiro

4 Grifo nosso.

5 O primeiro Procon foi criado, em 1976, em São Paulo, por iniciativa do Governo Estadual. Seusobjetivos eram: “coordenar e integrar as atividades públicas de proteção ao consumidor, zelando pelocumprimento das leis; receber, analisar e encaminhar reclamações, sugestões ou propostas de entidadesrepresentativas da comunidade; efetuar pesquisas, investigações, testes, ou análise de produtos ou serviços(...); proceder a estudos para elaboração e aperfeiçoamento de recursos institucionais e legais; informar,conscientizar e motivar o consumidor através de programas específicos, e com utilização, inclusive, dosmeios de comunicação de massa.” Essa estrutura serviu de modelo aos Procons posteriormente criados emoutros estados. (Zülzke, 1991, pp. 25 e 26).

6 Ver, por exemplo, o artigo intitulado “Procon entra na Berlinda” de Rosa, A., publicado no Jornal doBrasil de 29/03/98.

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soa mais como uma justificativa apressada do que como uma descrição isenta do seu

comportamento.

A literatura internacional investiga a satisfação há várias décadas7 e oferece

conhecimentos capazes de subsidiar as iniciativas empresariais voltadas para o

aprimoramento da relação com o cliente. Porém, a realidade pesquisada no exterior

(essencialmente em países desenvolvidos) difere em muitos aspectos da nossa. O Brasil

apresenta características históricas, econômicas, sociais e culturais (a começar pelo seu

recente despertar frente ao assunto proteção do consumidor) que, sem dúvida, exercem

uma influência significativa sobre as expectativas do consumidor e sobre o seu

comportamento frente à insatisfação (ver, por exemplo, Zülzke, 1991).

A maioria dos estudos disponíveis dá pouca atenção a essas diferenças. De modo geral,

os trabalhos que investigam o fenômeno da satisfação do consumidor adotam

exclusivamente o ponto de vista da psicologia. Seu objeto de estudo é o indivíduo e este

raramente é investigado em uma perspectiva que leve em conta seu ambiente social. O

meio tende a ser visto como uma constante e o consumidor como um ser submetido a

mecanismos psicológicos, em princípio universais. A dimensão cultural do fenômeno

tende, portanto, a ser deixada de lado. Entretanto, a satisfação ou insatisfação decorre de

uma relação-chave em qualquer organização social: a que liga as atividades de

produção ao consumo.

A sociedade ocidental caracteriza-se pela dissociação dessas duas atividades (Polanyi,

1980). Isso não significa, porém, que o dilema suscitado por essa separação seja

equacionado de modo idêntico em todas as culturas. As relações entre vendedor e

comprador variam de uma cultura para outra e com elas o significado atribuído à noção

de satisfação por cada uma das partes. O exemplo mais freqüentemente citado desse

fenômeno é o do Japão, onde o fornecedor é visto como o “servidor” do cliente, não

podendo, portanto, garantir qualquer satisfação e contentando-se, tão somente, em

esforçar-se para suscitá-la (Johansson, 1996). O consumidor brasileiro, por outro lado,

7 Segundo Evrard (1995), o tema passou a ser estudado mais intensamente a partir da década de 1970.

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convive, por exemplo, com a sensação de que o vendedor lhe faz um favor especial ao

aceitar a troca de uma mercadoria defeituosa.

Esses contrastes evidenciam a necessidade de investigar o fenômeno da

satisfação/insatisfação dentro de uma perspectiva que leve em conta não apenas os

fenômenos psicológicos envolvidos, mas também sua dimensão social e cultural. Não

basta estudar as respostas e os comportamentos, é preciso, também, entender o seu

significado do ponto de vista dos atores envolvidos. Sem essa compreensão, o objetivo

de promover a satisfação do cliente torna-se, na melhor das hipóteses, um jogo de cabra-

cega e, na pior, um empreendimento de fachada.

A pesquisa apresentada a seguir pretendeu investigar a insatisfação do consumidor

utilizando uma abordagem interpretativa. A insatisfação é abordada como um momento

de crise na relação entre vendedor8 e comprador. Partindo da observação de que esse

momento constitui um meio privilegiado de acesso às interpretações que participam,

num determinado contexto sócio-cultural, da construção da relação produção versus

consumo, o objetivo é o de estudar a experiência da insatisfação como uma

manifestação, particularmente significativa, da estrutura dessa relação.

O que pensa e o que faz o consumidor frente a uma decepção nas suas relações com

algum produtor ou revendedor? Procura evitar o prejuízo, amparar-se na legislação,

defender seus direitos, mobilizar terceiros, tirar alguma vantagem da situação, resolver o

problema, esquecê-lo, divulgá-lo? Por trás da opção por uma ou outra dessas

alternativas, há um conjunto de pensamentos que atribui a cada um dos atores

envolvidos determinadas intenções, direitos, deveres, poderes e que orienta as ações do

indivíduo ao lidar com eles. São essas idéias, vistas não apenas como o resultado de

processos psicológicos, mas também como interpretações ativas de uma relação social,

como sínteses individuais da experiência dessa relação, como expressões particulares de

um conjunto de significados socialmente construídos, que queremos estudar.

8 O termo de “vendedor” é aqui entendido no sentido amplo, isto é, no de fornecedor direto ouintermediário de algum bem ou serviço.

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A pesquisa foi organizada em torno de dois eixos:

-O estudo das representações mobilizadas pelos consumidores em caso de

conflito decorrente de uma compra: o termo de “representação” é aqui entendido

no sentido clássico definido por Bouvier como “atribuição e delegação de

significado pelo sujeito a um ou a vários outros sujeitos” (Bouvier, 1984, p.I).

Estamos lidando com a dimensão simbólica do comportamento humano, com as

interpretações construídas pelos indivíduos a partir de suas experiências.

As representações investigadas são as que dizem respeito aos sujeitos envolvidos

na relação produção versus consumo: produtores, revendedores, consumidores,

órgãos de defesa do consumidor. Essas representações constituem sistemas,

fluidos ou cristalizados, únicos ou múltiplos, próximos ou distantes da lógica da

empresa, compatíveis ou conflitantes com ela, coerentes ou não com as políticas

de proteção ao consumidor. Elas “organizam” as relações existentes entre os

diversos atores sociais envolvidos na relação produção versus consumo.

-O estudo das lógicas de ação adotadas pelo consumidor frente à insatisfação:

conforme afirma Kotler (1994), o consumidor insatisfeito pode recorrer a

diversas formas de ação, “públicas”9 ou “privadas”10. Pode queixar-se ao

revendedor, ao fabricante, empreender alguma ação legal , divulgar sua

experiência, boicotar os responsáveis etc.. Embora esses comportamentos não

cheguem, necessariamente, a constituir estratégias, isto é, seqüências planejadas

de ações voltadas para o alcance de um determinado objetivo, eles obedecem a

lógicas, que os orientam. Essas lógicas podem ser mais ou menos conscientes,

mais ou menos explícitas, mais ou menos coerentes. Elas organizam, no entanto,

9 Queixa à empresa envolvida, à justiça ou aos órgãos públicos ou privados de defesa do consumidor.

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as ações dos consumidores em torno das interpretações que estruturam sua

experiência.

10 Boicote individual ao fabricante ou revendedor, divulgação boca-a-boca da experiência negativa.

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2. REVISÃO DE LITERATURA: A

SATISFAÇÃO DO CONSUMIDOR NO

PENSAMENTO DE MARKETING

2. REVISÃO DE LITERATURA: A SATISFAÇÃO DO

CONSUMIDOR NO PENSAMENTO DE MARKETING

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O tema da satisfação do consumidor vem sendo estudado desde os primórdios do

marketing. Procuraremos traçar, a seguir, um panorama das abordagens que foram

sucessivamente utilizadas para investigá-lo. Cada uma dessas abordagens ressaltou

algum aspecto do comportamento do consumidor: sua dimensão econômica,

comportamental, cognitiva e, mais recentemente, emocional. Buscou, também, aos

poucos, integrar, em um modelo descritivo único, essas diferentes dimensões.

Paralelamente, o conceito de satisfação foi, a partir do final da década de 1960, objeto

de discussões teóricas, suscitadas pelo surgimento dos movimentos de defesa dos

consumidores. Embora esses debates tenham apontado a necessidade de um

entendimento mais abrangente do conceito, sublinhando a importância do longo prazo e

da questão social (Kotler, 1972), o exame da literatura mostra que a satisfação do

consumidor continua sendo investigada, essencialmente, como uma resposta à compra,

isto é, como um fenômeno individual desencadeado por uma transação comercial

específica.

2.1. A TEORIA ECONÔMICA

Os economistas foram os primeiros a abordar o tema da satisfação no início do século

XX. A teoria econômica do comportamento do consumidor pressupõe que toda compra

envolve uma escolha, efetuada em função da busca de maximização de sua utilidade.

De acordo com ela, o consumidor distribui seus gastos de modo a obter dos seus

recursos (limitados), o maior “retorno” possível. Aquilo que se retira da compra não

equivale ao valor do objeto e sim à sua utilidade para o comprador. Assim, por

exemplo, o primeiro terno adquirido por um jovem possui uma utilidade maior que o

segundo. Com ele, será possível procurar emprego, comparecer a festas e reuniões

sociais. O segundo acrescenta apenas a possibilidade de trocar de roupa. A busca de

maximização da utilidade é o princípio que orienta as escolhas do consumidor, que, por

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exemplo, optará por adquirir três camisas ao invés de um segundo terno, pois obterá

dessa opção um retorno comparativamente mais favorável.

O conceito de utilidade, originário da economia, tem parentesco com o de satisfação.

Bennett e Kassarjian (1975) escrevem: “Usamos as palavras ‘satisfação’ e ‘utilidade’

para definir aquilo que os consumidores querem maximizar. As duas palavras estão

relacionadas de tal maneira, que podemos falar em utilidade como a medida da

satisfação das necessidades e desejos” (p.24).

Dentro dessa perspectiva, a satisfação resulta de um processo essencialmente racional,

que busca equacionar da melhor forma possível duas variáveis: a renda disponível e o

preço de bens e serviços a serem adquiridos. “(...)O consumidor busca maximizar sua

satisfação total a partir de um certo nível de renda e de um determinado leque de preços

de produtos” (Robertson, 1970, p.8). A satisfação é quantificável, não apenas em

termos teóricos, mas também do ponto de vista do consumidor.

As críticas a esse modelo são numerosas e podem ser encontradas na maioria dos

clássicos da literatura de comportamento do consumidor.

De acordo com Bennett e Kassarjian (1975), tal modelo deveria ser rejeitado por três

motivos:

1.Não é operacional: “tenta explicar como o consumidor deveria comportar-se e não

como ele se comporta” (p.36) e não pode, por isso, ser aplicada a situações reais.

2.Focaliza o produto e não o consumidor: não distingue a meta de satisfazer a

necessidade do “objeto-meta”, através do qual a meta é atingida.

3.É incompleto: considera apenas os fatores de preço e renda, deixando de lado os

demais (percepção, aprendizagem, motivação etc.).

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Robertson (1970) aponta as dificuldades em efetivamente medir a utilidade, bem como

a de observar, na prática, comportamentos que obedecem aos princípios básicos da

teoria. Critica, também, o pressuposto de que apenas dois fatores governariam o

comportamento do consumidor.

Kotler (1970) afirma também: “os fatores econômicos não podem, sozinhos, explicar as

variações nas vendas”. O modelo econômico “ignora a questão fundamental de como as

preferências por produto e marca se formam” (p.27).

A teoria econômica, em suma, embora ofereça a vantagem de descrever em termos

matemáticos variáveis que influenciam o comportamento do consumidor, simplifica

exageradamente a realidade. O pressuposto de racionalidade do consumidor, em

especial, é objeto de duras críticas. Essa hipótese está na base da teoria econômica:

“Uma suposição que permeia as teorias de comportamento do consumidor a serem

discutidas aqui é a de que os consumidores se comportam racionalmente”11 (Green,

1971, p. 22). O economista Green introduz com essas palavras a apresentação da teoria

da utilidade. A hipótese é, porém, contestada por diversos autores e, especialmente, por

psicólogos.

Britt (1966) observa, por exemplo: “Mesmo se tivéssemos todo o conhecimento sobre

qualidade, preço e quantidade de produtos produzidos, provavelmente não agiríamos de

forma racional para obter o melhor preço” (p.10). Isto é, a opção mais racional não é

necessariamente a que escolhemos. Por essa razão, o modelo é visto por alguns autores

como mais prescritivo do que descritivo. É o que sugerem Bennett e Kassarjian, ao

afirmar que a teoria econômica tenta explicar como os consumidores deveriam se

comportar e não como eles de fato se comportam.

Segundo Katona (1995)12, os economistas podem ser divididos em dois grupos. O

primeiro dedica-se à elaboração de modelos capazes de descrever “como as pessoas

11 Grifos do autor.

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deveriam agir sob certos pressupostos”13 (p.126). Ele não está interessado, porém, em

testar suas proposições junto a essas pessoas. Sua posição se opõe a uma segunda

corrente para a qual o modelo é um ponto de partida, que deve ser refinado e

progressivamente aproximado da realidade.

Do ponto de vista do marketing, essa aproximação da realidade não é apenas desejável,

mas sim indispensável. A empresa precisa saber como os consumidores agem e porque

se comportam de determinada forma, sejam seus motivos compatíveis, ou não, com

aquilo que, em termos econômicos, seria considerado racional (ver, por exemplo, as

críticas efetuadas por Walters e Paul,1970). Dentro dessa perspectiva, o modelo

econômico é, no mínimo, incompleto. Como observa Kotler (1970), ele analisa somente

uma pequena parte da “caixa preta”, deixando de lado uma série de fatores

indispensáveis ao entendimento do comportamento do consumidor (aprendizagem,

motivação, personalidade, atitudes, entre outras).

2.2. A TEORIA BEHAVIORISTA

A psicologia introduziu, nesse debate, a dimensão do comportamento humano, visto não

mais do ponto de vista econômico e sim da dinâmica do indivíduo. Segundo Walters e

12 Original publicado em 1953.

13 Grifos do autor.

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13

Paul (1970), “as ciências do comportamento, que incluem psicologia, sociologia,

antropologia, e suas respectivas subdisciplinas de psicologia social e antropologia

cultural, retomam o assunto onde a economia o abandona” (p.25). A escola do

behaviorismo foi a primeira a ingressar na área de “comportamento do consumidor”,

que, não por acaso, conserva até hoje este nome.

O termo behavior ou comportamento possui, dentro dessa área de conhecimento, um

sentido específico. De acordo com a teoria behaviorista, o ser humano é “uma página

em branco”, preenchida, ao longo do seu desenvolvimento, pela interação com o

ambiente. Os estímulos oferecidos por este suscitam respostas que, por sua vez, serão

recompensadas ou punidas, reforçando ou extinguindo determinados comportamentos.

Assim, aprendemos a repetir certos atos, enquanto “desaprendemos” outros, moldando,

aos poucos, um conjunto de comportamentos que, somados, constituem uma espécie de

repertório da nossa conduta frente ao mundo.

A teoria deriva do modelo pavloviano de condicionamento14. Segundo Skinner (1966), o

representante mais célebre dessa abordagem, “(...) reagimos de determinada forma

porque ações similares no nosso passado tiveram conseqüências particulares” (p.22).

Expectativas, personalidade, desejos, emoções, atitudes e outros elementos oriundos de

uma suposta “vida interna” não passariam de ficções criadas pela psicologia

“mentalista”.

Uma análise verdadeiramente científica dispensaria a necessidade de tais explicações:

ela buscaria “(...) entender, explicar e predizer o comportamento humano no mesmo

sentido em que os cientistas entendem, explicam e predizem o comportamento de forças

físicas, de fatores biológicos, ou mais perto de nós, o comportamento de mercadorias e

preços no mercado econômico” (Berelson, 1966, p.21).

Visando alcançar esse objetivo, a teoria behaviorista trabalha exclusivamente com

aspectos diretamente observáveis e registráveis: estímulos fornecidos pelo ambiente e

14 O cão condicionado “aprende” a associar a campainha à comida e saliva ao ouvir a campainha,

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14

respostas comportamentais. O ser humano é reduzido a seu comportamento, única

variável observável e tangível capaz de defini-lo em termos cientificamente aceitáveis.

“A visão estímulo - resposta (E-R) postula que o comportamento (por exemplo, o ato de

compra) é uma resposta a algum estímulo externo ao sujeito (...). Nos desenhos

experimentais baseados nesse paradigma, os atributos do sujeito, físicos e sócio-

psicológicos, são ora considerados como irrelevantes, ora assumidos como sendo

constantes.” (Nicosia, 1966, p.113).

Uma visão mais complexa admite a existência de estímulos físicos internos, que, em

interação com estímulos externos, suscitariam as respostas do sujeito. Em ambos os

casos, de qualquer modo, não se presume que haja qualquer processo psicológico

interno ao sujeito capaz de orientar seu comportamento.

Nicosia (1966) afirma: “Em uma palavra, a pesquisa E-R é análoga à prática médica,

que pode descobrir uma droga (estímulo) para o tratamento (resposta) sem entender a

natureza (isto é, o mecanismo etiológico) da doença” (p.115). Do ponto de vista da

teoria behaviorista, o mecanismo etiológico resume-se a dois elementos: estímulo e

resposta. Tudo o que possa existir entre estes dois elementos observáveis não é passível

de qualquer registro objetivo e não merece, portanto, ser investigado.

Na área de marketing, a satisfação é identificada ao reforço, isto é, à recompensa obtida

em decorrência de determinada transação. Sua obtenção levará à repetição do

comportamento, em busca de nova recompensa, e, portanto, à tão almejada lealdade do

consumidor. Conforme exemplo citado por Kotler (1970): “A dona de casa, por

exemplo, tenderá a adquirir a mesma marca de café todas as vezes em que vai ao

supermercado enquanto esta for recompensadora e a configuração não mudar. Mas se a

resposta aprendida ou o hábito não for reforçado, a força do hábito diminui e pode até

finalmente se extinguir” (p.28).

independentemente da presença de alimento.

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15

A teoria behaviorista substitui o homem racional proposto pela teoria econômica, por

um ser moldado pelo ambiente. Os estímulos, recompensas e punições propiciados pelo

meio constroem a organização de seu comportamento, independentemente de qualquer

processo interno, racional ou não. Longe de avaliar sistematicamente as opções que lhe

são oferecidas, o consumidor apenas aprende, como um animal condicionado, a

responder favoravelmente ou não a determinados estímulos. Seu comportamento é

governado por fatores que escapam ao seu controle (os estímulos), que podem ser

identificados e, eventualmente, manipulados por cientistas.

Buskirk e Rothe (1973) observam que, ao oferecer a possibilidade de controlar

comportamentos através do uso científico de estímulos, a teoria pressupõe que o

consumidor “é incapaz de uma seleção inteligente” (p.112).

Ao defender essa posição, o behaviorismo apresentava-se como indispensável ao

marketing. Como afirma Cochoy (1996) a respeito do nascimento da área de

comportamento do consumidor: “se os consumidores podiam facilmente ser

compreendidos, recorrer à ciência e ao conhecimento especializado se tornava inútil”

(p.286). Mas se eram seres misteriosos e imprevisíveis, movidos por uma lógica

acessível somente a determinada ciência, essa ciência era imprescindível. O consumidor

agia segundo mecanismos estranhos ao universo da economia, e, até mesmo, ao

universo da razão, mas o marketing, com a ajuda da psicologia, podia levá-lo a se

comportar de acordo com os interesses das empresas.

Essa promessa motivou um ataque que marcou a história do marketing. O livro Hidden

Persuaders de Vance Packard, publicado em 1957, empenhou-se em denunciar as

táticas de manipulação das agências de publicidade e pesquisa e despertou a atenção da

imprensa e do público (Zülzke, 1991). Essa reação suscitou, por sua vez, a resposta de

psicólogos envolvidos com a disciplina de marketing.

Em um artigo originalmente publicado na Harvard Business Review em 1958, Bauer

(1966) investe contra a idéia de irracionalidade do consumidor (“uma palavra que eu

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16

detesto”, p.7). Questiona tanto os economistas como seus críticos ao afirmar que a

racionalidade da teoria econômica é indevidamente assimilada à motivação pecuniária.

“(...) uma pessoa pode comprar um determinado carro porque combina com a imagem

que tem de si mesma; ou mesmo porque gosta do sentimento de força que lhe dá o ato

de dirigir um carro potente. Mas não vejo qualquer razão para dizer que um homem é

mais ‘racional’ em querer transporte do que em querer respeito próprio e a estima dos

outros (...)” (p.7). Ser racional não significa necessariamente efetuar escolhas

exclusivamente em função de fatores financeiros. “As pessoas compram muitas coisas

por razões não econômicas (...)” (p.7).

De fato, a teoria econômica, coerentemente com o pensamento dominante no início do

século, atribui ao ser humano como um todo as características de uma determinada

organização social, a do mundo ocidental, comandada pela economia de mercado e pela

lógica da lucratividade (ver Polanyi, 1980 e Rocha, 1984). O dinheiro é o “motor” do

homem, organiza seu pensamento e suas ações. No entanto, como observa Bauer, este é

apenas um dos fatores que levam as pessoas a adquirir determinados bens ou serviços, o

que não significa que os demais sejam irracionais. Apenas obedecem a uma lógica que

escapa ao âmbito da economia.

Ao devolver ao consumidor o qualificativo de “racional”, Bauer defende a posição

atacada por Packard: o alvo das agências de publicidade não é um ser indefeso. Ele sabe

o que quer e somente se deixa persuadir quando isto lhe convém. Dentro dessa

perspectiva, tentar convencê-lo através de “vantagens psicológicas” é legítimo. Não se

trata de manipular os consumidores e sim de oferecer-lhes aquilo que desejam e que não

necessariamente se limita a elementos estritamente materiais.

Bauer (1966) alerta também contra os riscos incorridos ao aceitar a existência de

motivações inconscientes: “Se você chamar os motivos não econômicos de irracionais,

você quer dizer que são não razoáveis, e está no caminho para assumir que são

inconscientes” (p.7). Dentro da perspectiva adotada por Packard, a idéia de inconsciente

é, de fato, especialmente ameaçadora: é possível influenciar o comportamento do ser

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humano através da manipulação de estímulos que não precisam ser conscientemente

reconhecidos para que o seu efeito se manifeste15.

Ao mesmo tempo em que devolve ao consumidor o qualificativo de racional, a

argumentação de Bauer (1966) legitima, portanto, a atuação do marketing. Ela justifica

o uso dos recursos oferecidos pela psicologia, fazendo deles um instrumento de tradução

e não mais de manipulação. Trata-se, contrariando as denúncias de Packard, de entender

o consumidor e não de influenciá-lo. Estamos ainda nos primeiros passos do conceito de

marketing, que substituindo a orientação para vendas, visa promover a “satisfação do

cliente” e não mais apenas levá-lo a comprar mais e mais, independentemente de suas

necessidades.

Leavitt (1966) resume a discussão acerca da racionalidade da seguinte forma: “O

homem é um animal irracional, se por irracional entendermos que ele nem sempre faz

aquilo que pensamos que é melhor para ele” (p.3). Em outras palavras, ao invés de

discutir sobre a ausência ou presença de razão no comportamento do consumidor,

deveríamos tentar entendê-lo melhor, pois estamos chamando de irracional aquilo que

não compreendemos. A afirmação tem o mérito de apontar uma das ambigüidades que

obscurecem o debate: a lógica do consumidor pode ser distinta da que rege a economia,

mas é também suscetível de ser estudada e compreendida.

Leavitt (1966) se distancia dos behavioristas ao admitir a existência de processos

internos: “Embora irracional, há uma lógica interna no comportamento” (p.3). Ele

subentende, porém, que o que deve ser desvendado são mecanismos que escapam ao

alcance do leigo e somente podem ser identificados por cientistas. O consumidor talvez

não saiba o que está fazendo (sua “lógica” é irracional), mas a ciência pode descobrir

porque ele opta por esse ou aquele produto e identificar aquilo que o satisfaz. A hipótese

15 Um dos alvos de Packard é a chamada “propaganda subliminar”, que pretende influenciar osconsumidores através de estímulos que, embora permaneçam abaixo do limite mínimo para umapercepção consciente (por exemplo, expostos durante um tempo insuficiente para serem conscientementeregistrados), seriam capazes de “imprimir” na memória do sujeito um objeto (produto, marca, logotipo),levando-o, posteriormente, a buscá-lo.

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de que o consumidor tenha uma lógica distinta da do produtor, mas orientada tanto

quanto ela por determinados objetivos e interesses (e não apenas por mecanismos

somente acessíveis à ciência), continua distante.

Dentro dessa perspectiva, a psicologia é uma poderosa aliada para a implementação do

conceito de marketing. O consumidor precisa ser compreendido, mas ele por si só não é

capaz de expressar suas necessidades em termos acessíveis à empresa 16. Diferentemente

da visão behaviorista, que pretende influenciá-lo para obter determinada resposta (a de

compra), indo assim ao encontro dos objetivos da orientação para vendas, a nova

abordagem da psicologia promete tão somente traduzir para a empresa seus desejos.

Estes desejos obedecem a uma racionalidade específica, distinta da econômica, mas

passível de ser apreendida através de técnicas psicológicas.

Segundo Buskirk e Rothe (1973), a idéia de soberania do consumidor pressupõe a

existência de racionalidade. A psicologia acata essa postura, optando por uma visão que,

como afirma Cochoy (1996), “fez do consumidor não mais apenas o agente passivo caro

aos behavioristas, mas também um ator racional, fortemente implicado, buscando e

tratando ativamente as informações necessárias à solução dos problemas de compra”

(p.508). Essa proposta devolve ao consumidor o papel de agente conferido pela teoria

econômica e confiscado pelo behaviorismo. É importante, porém, sublinhar que essa

devolução é apenas parcial. A ambigüidade da expressão “lógica irracional” empregada

por Leavitt reflete uma postura ambivalente. O consumidor pode ser traduzido em

termos racionais, mas essa racionalidade não lhe pertence. Ela precisa ser extraída do

seu comportamento por cientistas treinados para encontrar regularidades e leis onde, à

primeira vista, só existe caos.

A satisfação do consumidor torna-se assim objeto de estudo de uma ciência, que

pretende identificar os fatores que contribuem para gerá-la, mas já não promete

simplesmente suscitá-la através da manipulação de estímulos.

16 Veremos adiante que essa hipótese foi duramente abalada pelo surgimento dos movimentos deconsumidores no final da década de 60.

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19

2.3. A TEORIA COGNITIVISTA

Os behavioristas deixam deliberadamente de lado os processos internos (não são

observáveis e, portanto, sua existência não poderia ser cientificamente comprovada). A

teoria cognitivista se contrapõe a essa visão, ao admitir que, entre o estímulo e sua

resposta, existem elementos hipotéticos, característicos do indivíduo, que orientam o

tipo de resposta dado a determinado estímulo.

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20

A reação não seria meramente mecânica. O estímulo, por si só, não explicaria a

ocorrência de determinado comportamento. “A recepção de um estímulo não pode ser

equacionada a uma resposta direta; isto é, raramente há um elo causal direto entre uma

mensagem e uma resposta de compra”17 (Robertson, T.S., 1970, p. 6). O ser humano, ao

longo da sua existência, constrói aprendizados, atitudes, que orientam suas respostas a

determinados estímulos. O estudo destes elementos deveria levar a uma melhor

compreensão e previsão do comportamento.

É importante observar, no entanto, que os processos internos inferidos pela psicologia

cognitivista resultam de uma construção efetuada pelo indivíduo a partir de sua

experiência particular, que, em última instância, poderia, hipoteticamente, ser descrita

como a soma dos estímulos, reforços e punições aos quais foi exposto ao longo de sua

existência. A partir dessa história, única para cada indivíduo, o ser humano adquiriria

comportamentos aprendidos, predisposições, esquemas, que o levariam a reagir de

determinada forma a determinados estímulos. A tarefa do psicólogo cognitivista seria a

de identificar e descrever os mecanismos de atuação destes processos internos. O

conceito de atitude enquadra-se dentro dessa perspectiva. Para a psicologia cognitivista,

atitude é “uma relação não observável entre um estímulo observável e uma resposta

observável”. É uma “variável intermediária hipotética” que intervém entre o estímulo e

a resposta (Fiske e Taylor, 1991, p. 462 e 463).

Dentro dessa perspectiva, a satisfação não se reduz à obtenção do reforço. É o resultado

da comparação entre aspectos internos e pré-existentes com os elementos resultantes da

transação:

“A satisfação (...) se refere ao grau de congruência entre as conseqüências reais

da compra e do consumo de uma marca e aquilo que era esperado pelo

comprador no momento da compra. Se o resultado real for julgado pelo

comprador como pelo menos igual ao esperado, o comprador ficará satisfeito. Se,

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por outro lado, o resultado real for julgado como inferior ao esperado, o

comprador se sentirá insatisfeito e sua atitude será menos favorável.18” (Howard

e Sheth, 1967, p.94).

Essa concepção ainda é a base da que prevalece até os nossos dias. A satisfação é o

resultado do confronto de uma referência interna (intangível) com os

benefícios/prejuízos propiciados por determinada transação.

2.4. A LITERATURA CONTEMPORÂNEA: DISCUSSÕES EM

TORNO DO CONCEITO DE SATISFAÇÃO

O conceito atual mais aceito de “satisfação” pode ser descrito da seguinte forma:

1.A satisfação é uma avaliação (um julgamento),

2.efetuada a posteriori ,

3.relativa a determinada transação.

17 Grifos do autor.

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22

Existem, no entanto, no campo de investigação, uma série de debates que podem ser

agrupados em torno de três grandes temas:

- Quais são os elementos que compõem o quadro de referências a partir do qual

os consumidores avaliam suas compras?

- Qual é a natureza do(s) estado(s) psicológico(s) que deriva(m) dessa avaliação?

- Que relação existe entre o grau de insatisfação e os comportamentos pós-

compra?

Examinaremos, a seguir, as discussões encontradas na literatura acerca desses temas.

2.4.1. REFERÊNCIAS UTILIZADAS NA AVALIAÇÃO DA COMPRA

O termo “avaliação” pressupõe a existência de um parâmetro. De fato, para a maioria

dos autores, o grau de satisfação decorre de uma comparação efetuada pelo consumidor,

comparação esta que confronta o resultado da transação com uma referência

anteriormente existente (Spreng, MacKenzie e Olshavsky,1996). O resultado desse

processo comparativo pode ser positivo, negativo ou neutro, gerando assim satisfação

ou insatisfação. A natureza da referência comparativa é, porém, objeto de discussões.

Segundo Evrard (1995), as diversas tendências podem ser agrupadas da seguinte forma:

-comparação com as expectativas anteriores, isto é, com as crenças do consumidor

sobre o desempenho do produto ou serviço antes de sua acquisição.

18 Grifos do autor.

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23

-comparação com normas baseadas na experiência do consumidor. “Essas normas são o

reflexo de um compromisso entre as necessidades e desejos do consumidor e aquilo que

ele julga possível em função de suas experiências anteriores” (Evrard, 1995, p. 9).

-comparação entre a razão custos (no sentido mais amplo: preço, tempo etc.)/ benefícios

da transação e o valor desta razão para o vendedor. A transação é então julgada como

“justa” ou “injusta” (teoria da eqüidade).

-comparação com desejos e com valores. Nesse caso, os objetivos do comprador

constituem a referência utilizada como termo de comparação. Estas duas últimas

abordagens são mais recentes e menos desenvolvidas.

Para Oliver (1997), expectativas, necessidades, qualidade, iniqüidade e arrependimento

constituem padrões comparativos, que atuam em paralelo (p. 127).

Evrard (1995) engloba o conjunto dessas abordagens no “paradigma da

desconfirmação”. Brookes (1995) e Oliver (1997) preferem reservar este termo à teoria

que adota como referência as expectativas. “Como os primeiros trabalhos em satisfação

do consumidor foram conduzidos com a expectativa preditiva como padrão, a frase

desconfirmação de expectativas passou a aplicar-se a este conceito” (Oliver, 1997, p.

104)19.

Oliver (1980) descreve a teoria da desconfirmação da seguinte forma: as expectativas

“criam um quadro de referência a partir do qual é efetuado um julgamento comparativo.

Assim, resultados menores do que o esperado (desconfirmação negativa) são julgados

como inferiores a esse ponto de referência, enquanto que resultados melhores do que o

esperado (desconfirmação positiva) são avaliados como superiores a ele” (p. 460 e 461).

O modelo prevê, portanto, que “os sentimentos de satisfação ocorrem quando os

consumidores comparam suas percepções do desempenho de um produto às suas

expectativas” (Spreng, MacKenzie e Olshavsky, 1996, p. 15).

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Conforme observam Spreng, MacKenzie e Olshavsky (1996), não há, na literatura, um

consenso claro acerca da definição do conceito de expectativas. Alguns autores, como

Spreng, MacKenzie e Olshavsky (1996), preferem reservar o termo à percepção de

probabilidade de ocorrência de determinado evento. Outros, como Oliver (1980),

advogam que o conceito deve ser ampliado e incorporar a avaliação, positiva, negativa

ou neutra, do evento esperado. Independentemente dessas diferenças, as duas tendências

reconhecem que a expectativa preditiva (isto é, restrita à percepção de probabilidade de

ocorrência do evento) é insuficiente para dar conta do fenômeno da satisfação.

Retomando o exemplo discutido por Oliver (1981) e Spreng, MacKenzie e Olshavsky

(1996), o cliente que entra numa loja pode ter a expectativa de ser imediatamente

atendido por um funcionário, mas isso não significa necessariamente que ele deseja que

isto aconteça (Spreng, MacKenzie e Olshavsky, 1996, p. 16).

Por outro lado, a maior parte dos autores (Evrard, 1995; Oliver, 1997; Spreng,

MacKenzie e Olshavsky, 1996, entre outros) admite que as expectativas são apenas um

dos elementos do quadro de referência a partir do qual os consumidores avaliam suas

experiências:

- Spreng, MacKenzie e Oshlavsky (1996) argumentam que os desejos (enquanto

elemento distinto das expectativas) devem ser incorporados ao modelo proposto pela

teoria da desconfirmação.

- Oliver (1997), embora opte por reservar o termo de desconfirmação à comparação com

expectativas, sublinha que, além destas, “muitas referências trazidas pelos consumidores

à experiência de consumo podem ser desconfirmadas” (p. 104).

- Simintiras, Diamantopoulos e Ferriday (1997) sugerem a existência de uma satisfação

anterior à compra, de natureza emocional, baseada nos sentimentos experimentados a

partir daquilo que é antecipado.

19 Grifos do autor.

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- Evrard (1995) afirma, finalmente, que as expectativas são “um caso particular” de

padrão de referência (p.7).

Independentemente dos elementos incluídos no quadro de referência, a idéia mestra da

teoria da desconfirmação, que descreve a satisfação como resultado de um processo

comparativo, é amplamente aceita. Nesse sentido, o termo de “paradigma da

desconfirmação”, utilizado por Evrard (1995), se justifica. Por trás das diferentes

propostas de descrição dos parâmetros mobilizados pelo consumidor, há um pressuposto

comum: a satisfação deriva de um processo psicológico que confronta uma referência

interna ao resultado da compra20. Conforme afirmam Oliver e Westbrook (1991): “O

julgamento de satisfação é geralmente reconhecido como originando-se da comparação

entre o nível de desempenho, a qualidade ou os outros efeitos percebidos pelo

consumidor do produto ou serviço, com um padrão de avaliação” (p.85).

Em todos os casos, temos a hipótese de uma comparação entre o “antes” e o “depois” e

a avaliação é efetuada após a compra. A satisfação diz respeito a determinada transação.

Por isso, não deve ser confundida com o conceito de atitude (Evrard, 1995; Oliver e

Westbrook, 1991, entre outros).

A satisfação distingue-se da atitude por seu caráter transitório e específico. Constitui

uma resposta a determinada experiência e não uma predisposição em relação a um

conjunto de objetos ou idéias. Isso não impede que sua ocorrência possa ser influenciada

por atitudes previamente existentes ou gerar mudanças de atitudes21. Essa distinção é

importante, pois ela caracteriza a satisfação como um estado psicológico (Evrard, 1995),

e não como uma predisposição relativamente estável e durável.

20 Embora discutam a definição do conceito de “expectativas”, Spreng, MacKenzie e Oshlavsky (1996)afirmam que “virtualmente todos os modelos de processo de formação da satisfação (inclusive o nosso)postulam que os sentimentos de satisfação ocorrem quando os consumidores comparam suas percepçõesdo desempenho de um produto com suas expectativas.” (p. 16, grifos nossos).

21 O cliente pode se decepcionar com um jantar apenas médio em um restaurante que esperava ser deprimeira linha (atitude altamente positiva, que, no caso, contribui para gerar insatisfação) e modificar, em

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A satisfação é, em suma, uma resposta a determinada experiência. Ela resulta de um

processo avaliativo que compara uma referência previamente existente aos efeitos

decorrentes do ato de compra. Em torno dessa definição, a unanimidade é praticamente

absoluta (ver, entre outros, Brookes, 1995; Oliver, 1997; Evrard, 1995; Spreng,

MacKenzie e Olshavsky, 1996). A satisfação é “um estado psicológico, posterior à

compra e relativo” (Evrard, 1995, p. 222). Independentemente dos cortes ou extensões

propostos pelos estudiosos do tema para aperfeiçoar essa definição, essas três

propriedades constituem a base do conceito de satisfação (Evrard, 1995, p. 2). Mas a

natureza desse estado psicológico é também objeto de debate.

2.4.2. NATUREZA DO ESTADO PSICOLÓGICO DE SATISFAÇÃO OU

INSATISFAÇÃO

A discussão sobre a natureza do estado psicológico de satisfação/insatisfação gira em

torno de dois aspectos interligados: seu caráter unidimensional e sua dimensão

cognitiva e/ou afetiva. Alguns autores, como Howard e Sheth, enfatizam a primeira

dimensão ao definir a satisfação como o “estado cognitivo de estar adequada ou

inadequadamente recompensado pelos sacrifícios efetuados em uma situação de

compra” (Howard e Sheth, 1969, p. 145). Para Hunt (1977, apud Evrard, 1995), “a

satisfação não é o prazer retirado da experiência de consumo, é a avaliação resultante de

que a experiência foi, no mínimo, tão boa como se supunha que fosse” (p.2), isto é, não

é a emoção em si, mas envolve a avaliação de emoções. Esse ponto de vista é, até hoje,

amplamente aceito, tanto que, como vimos anteriormente, a satisfação é definida como

uma avaliação, um julgamento, podendo, portanto, ser expressa em uma única

dimensão, indo do extremo positivo ao extremo negativo.

Estudos mais recentes ressaltam, porém, a importância de aspectos afetivos tais como a

seguida, sua opinião sobre o estabelecimento (geração de atitude negativa decorrente da insatisfação).

22 Grifos do autor.

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emoção. Oliver e Westbrook (1991) verificaram empiricamente que “experiências

afetivas qualitativamente diferentes coexistem e estão relacionadas com o continuum

comum e unidimensional da satisfação” (p. 89). Seus resultados sugerem a existência de

dois estados qualitativamente distintos de satisfação, um envolvendo surpresa (a

experiência de consumo é uma surpresa agradável) e o outro um grau elevado de

interesse (a experiência de consumo desperta o interesse do consumidor), sendo que, no

primeiro caso, o grau de interesse é baixo, enquanto que, no segundo, a surpresa

raramente ocorre. Assim, embora os dois estados compartilhem algumas características

(a alta freqüência da emoção alegria e a baixa incidência de emoções negativas), eles

têm configurações diferentes, sugerindo a existência de “tipos” diferentes de satisfação.

Os autores não chegam a discutir a unidimensionalidade do conceito de satisfação.

Entretanto, como observa Brookes (1995), a coexistência de elementos cognitivos e

emocionais durante a experiência pós-compra sugere que o uso de um eixo único pode

não ser suficiente para avaliar o grau de satisfação/insatisfação.

De fato, a existência de estados psicológicos qualitativamente distintos sugere que a

experiência de compra pode não se resumir a algo passível de ser traduzido em uma

única dimensão. Duas pessoas podem declarar-se extremamente satisfeitas e, no entanto,

estarem experimentando emoções distintas: surpresa, interesse, mas também alívio,

orgulho, apego, ou mesmo paixão. Da mesma forma, a insatisfação pode comportar

sentimentos diversos, que vão da decepção à raiva, passando pelo medo, a vergonha, a

culpa, a irritação, fato este confirmado pelo estudo de Oliver e Westbrook (1991), que

investigou algumas destas emoções (tristeza, raiva, desgosto, medo, vergonha, culpa,

desprezo).

Mas a questão é, provavelmente, ainda mais complexa. Oliver e Westbrook (1991)

identificaram emoções que podem ser positivas ou negativas. É o caso da surpresa.

Além disso, podemos nos perguntar sobre as possibilidades de coexistência de emoções

positivas e negativas, tais como, por exemplo, alegria e culpa, interesse e vergonha,

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alívio e raiva. Até que ponto a oposição satisfação/insatisfação pode dar conta de

estados emocionais ambivalentes? Esta poderia ser uma das razões que contribuem para

o fraco desempenho da escala bipolar satisfeito(a)/insatisfeito(a) registrado por Oliver e

Westbook (1991).

É bom lembrar que, como observam Goldman e Mac Donald (1987), escalas e

formulários estruturados em geral dificilmente conseguem captar aspectos ambígüos do

pensamento. Mas, além disso, vale a pena indagar se o próprio conceito de satisfação

não tende a reduzir a experiência de consumo a uma dimensão única, que talvez seja

insuficiente para apreender sua complexidade.

2.4.3. RELAÇÃO EXISTENTE ENTRE INSATISFAÇÃO E

COMPORTAMENTOS PÓS-COMPRA

A relevância da questão é evidente: trata-se de identificar e prever as ações do

consumidor insatisfeito. Kotler (1994) divide as formas possíveis de ação por parte do

consumidor insatisfeito em duas categorias: as “públicas” (queixa à empresa envolvida,

aos órgãos fiscalizadores públicos ou privados, ações legais para obter ressarcimento

etc.) e as “privadas” (boicote individual ao fabricante ou revendedor, divulgação boca-a-

boca da experiência negativa etc.).

Diversos autores (Blodgett, 1995; Singh e Pandya, 1991, entre outros) distinguem duas

categorias de ações públicas: a que chamaremos de “ação direta”, isto é queixa ao

vendedor ou produtor23 e a de “ação indireta” (ou “ação através de terceiros”), que

designa a queixa a órgãos públicos ou privados de defesa do consumidor.

Uma parte significativa das pesquisas desenvolvidas na área dedica-se ao objetivo de

identificar variáveis independentes (da empresa, do produto ou do consumidor),

associadas à ocorrência de um ou de ambos os tipos de ação.

23 Chamada por esses autores de “voice action” ou ação verbal.

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Broadbridge e Marshall (1995) investigaram o comportamento de compradores de

aparelhos eletrodomésticos. De acordo com seus resultados, tais produtos dão origem a

um elevado percentual de queixas, sendo que a ocorrência de queixas públicas é mais ou

menos freqüente de acordo com o tipo, a complexidade, a expectativa de vida e o preço

do aparelho adquirido (quanto mais alto, maior a probabilidade de queixa).

Blodgett, Wakefield e Barnes (1995) verificaram, em outro estudo, que o fator que mais

influencia o comportamento de queixa pública é a percepção da probabilidade de

sucesso da ação. Compradores que estimam que suas chances de sucesso são reduzidas

tendem a optar pela divulgação boca-a-boca de sua insatisfação e a abandonar o

fornecedor, sem lhe dar a oportunidade de remediar o problema.

Kolodinsky (1995) procura estabelecer a probabilidade de quatro categorias de resposta

(nenhuma ação, ação privada, ação pública, ação privada e pública) em função de quatro

variáveis (aprendizagem anterior com queixas, restrições de recursos e/ou tempo do

consumidor, personalidade/atitude do consumidor, relação custo/benefício da ação),

para consumidores de serviços médicos e de reparo de automóveis. De acordo com seus

resultados, os fatores de aprendizagem e restrições de tempo ou recursos são os que

respondem pela maior parte da variabilidade de comportamento para as duas indústrias

estudadas.

Em todos os casos, supõe-se que a insatisfação é o ponto de partida para diversas

alternativas de comportamento. De modo geral, o esforço de pesquisa consiste em

identificar, para cada uma das ações possíveis, variáveis independentes que possam dar

conta da variabilidade de comportamento encontrada na população. Tais variáveis

podem ser externas, isto é, relacionadas a aspectos que independem do consumidor

(produto, preço, atendimento etc.), ou internas (características do consumidor, atitudes,

aprendizagem, percepções etc.).

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Independentemente dos tipos de variáveis selecionados, parece haver um consenso cada

vez mais amplo em torno da necessidade de abordar o problema a partir de uma

perspectiva multidimensional. A maioria dos estudos recentes (década de 90) considera

simultaneamente diversas variáveis e tende a excluir a possibilidade de se aprender algo

significativo sobre o assunto a partir da investigação de um único fator (Broadbridge e

Marshall, 1995; Kolodinsky, 1995; Blodgett et al., 1995; Swan e Oliver, 1989; Richins,

1983).

Até aqui, estamos falando de variáveis associadas a determinados comportamentos. A

questão, entretanto, não se esgota nesse ponto. É preciso entender o elo que liga a

insatisfação ao comportamento, isto é, compreender os mecanismos internos através dos

quais os indivíduos “processam” a insatisfação. Essa compreensão, implícita ou

explicitamente, orienta o esforço de pesquisa e a seleção de variáveis a serem

estudadas. No entanto, poucos estudos a abordam diretamente.

Duas teorias desenvolvidas pela psicologia são freqüentemente mencionadas e

utilizadas: a teoria da atribuição e a teoria da dissonância cognitiva.

A teoria da atribuição descreve o processo pelo qual o indivíduo identifica as causas da

insatisfação, atribuindo-as a si próprio ou a agentes externos e responsabilizando estes

últimos em maior ou menor grau de acordo com três categorias: a fonte do problema

(“locus”) interna ou externa (do comprador ou de um agente externo); a estabilidade

(trata-se de um acidente ou de um problema estrutural) e o controle (o problema foi

causado intencionalmente ou não).

Diversos estudos comprovam a influência do processo de atribuição sobre o

comportamento pós-compra do consumidor (ver Evrard, 1995 e Oliver, 1997). Richins

(1983) observou, por exemplo, que o esforço despendido em divulgação boca-a-boca da

experiência negativa aumentava com a atribuição de responsabilidade a instituições de

marketing (versus atribuição interna). Dentro dessa perspectiva, a relação entre o grau

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de insatisfação e os comportamentos subseqüentes seria mediada pelo processo de

atribuição.

Oliver (1997), ao rever as pesquisas que investigam o tema, afirma: “o processo de

atribuição é um fenômeno mediador entre as observações de desempenho (do produto

ou serviço) e diversos comportamentos de pós-compra que têm conseqüências imediatas

para os profissionais de marketing” (comportamentos de queixa, busca de reparação,

comunicação boca-a-boca da experiência negativa etc., p. 278). Ele sublinha, porém,

que o processo de atribuição nem sempre ocorre. De modo geral, a satisfação não

costuma desencadeá-lo. “Sucessos podem não gerar processos de atribuição porque são,

na maior parte dos casos, conclusões pré-concebidas na mente dos consumidores” (p.

278). Fracassos também não suscitam necessariamente atribuições, especialmente

quando não são significativos (Oliver menciona, como exemplo, o fósforo que não

acende), ou quando são esperados (“não ganhar na loteria”). Em suma, “a atribuição

requer um estímulo motivador” (p. 278). A literatura aponta que esse estímulo é

habitualmente fornecido por eventos não usuais. Frente a um fato inesperado, o

indivíduo tende a procurar suas causas, recorrendo então aos processos descritos pela

teoria da atribuição (Oliver, 1997).

A teoria da dissonância cognitiva se baseia na observação de que uma pessoa que atua

contra sua própria atitude pode, posteriormente, modificar cognições ou

comportamentos de modo a adaptá-los ao comportamento incongruente. Segundo

Festinger (1975), as hipóteses básicas da teoria são as seguintes:

“1.A existência de dissonância, ao ser psicologicamente incômoda, motivará a

pessoa para tentar reduzi-la e realizar a consonância.

2.Quando a dissonância está presente, a pessoa, além de procurar reduzi-la,

evitará ativamente situações e informações suscetíveis de aumentar a

dissonância.” (p.12)

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Assim, o comprador insatisfeito buscará informações que confirmem o acerto de sua

escolha e evitará as que apontam o erro, de modo a evitar o desconforto causado pela

dissonância. Dentro dessa perspectiva, um desnível moderado entre as expectativas e os

resultados de uma compra levaria à satisfação e teria como conseqüência uma alteração

até favorável ao fornecedor na atenção seletiva do cliente (busca de informações que

reforçam o acerto da escolha). Nesse caso, a relação entre o grau de desconfirmação e o

de insatisfação deixaria de ser linear. Existiria, em volta do grau neutro de

desconfirmação, uma zona que toleraria desníveis positivos ou negativos, e que

conduziria às avaliações mais favoráveis por parte dos compradores.

As teorias da atribuição e da dissonância cognitiva questionam, cada uma ao seu modo,

a existência de uma relação direta entre desconfirmação, insatisfação e comportamento.

Uma pesquisa realizada por Singh e Pandya (1991) dedica-se especificamente a este

tema e investiga a própria relação existente entre insatisfação e comportamento de

queixa. De acordo com estudos empíricos citados por estes autores, tal relação não é tão

direta quanto sugere o bom senso. Os resultados obtidos em uma pesquisa realizada a

partir dessa hipótese, junto a consumidores de serviços bancários que tinham tido

experiências de insatisfação (survey por correio, 104 respostas utilizáveis), confirmaram

essa hipótese. Evidências de linearidade somente puderam ser registradas no caso de

ações verbais (queixa ao vendedor ou produtor). Em compensação, comportamentos de

abandono do fornecedor e divulgação negativa boca-a-boca mostraram não ter uma

relação linear com o grau de insatisfação do consumidor. Os autores sugerem, ao

discutir os resultados, que a intensidade da insatisfação poderia atuar na forma de

limiares que, uma vez ultrapassados, desencadeariam determinados tipos de ação.

De modo geral, o conjunto de pesquisas anteriormente descrito sugere que a modelagem

do fenômeno da satisfação/insatisfação ainda constitui uma tarefa problemática. Se a

teoria da desconfirmação oferece um paradigma amplamente aceito, as relações entre

desconfirmação, satisfação e comportamentos de pós-compra continuam em grande

parte obscuras. Resultados como os obtidos por Oliver e Westbrook (1991) e Singh e

Pandya (1991) colocam em xeque elementos essenciais no conceito de satisfação: sua

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característica unidimensional e a natureza de sua relação com os comportamentos de

pós-compra. É interessante notar, porém, que nenhum destes autores chega a examinar a

possibilidade de uma revisão do conceito de satisfação.

Esses dois aspectos são, para a prática do marketing, de fundamental importância. Trata-

se de medir a satisfação e de monitorar seus efeitos. Mas até que ponto podem ser

analisados como tópicos isolados? Será que as dificuldades encontradas para equacioná-

los não derivam, também, de uma abordagem que, visando atender a necessidades

gerenciais, focaliza determinadas características do fenômeno da satisfação, retirando-as

do contexto mais amplo da experiência do cliente?

Woodruffe (1997), ao resumir as críticas recentemente dirigidas à disciplina de

comportamento do consumidor, aponta que as questões investigadas, de modo geral,

“tendem a alinhar-se com os interesses dos profissionais de marketing” e que “os

interesses dos consumidores, mais do que os dos profissionais de marketing, deveriam

estar na base da investigação” (p. 671). Em se tratando de satisfação, essa observação é

especialmente pertinente. Afinal, o fenômeno a ser estudado é justamente o da avaliação

que o cliente faz de suas experiências de compra. Como compreender essa avaliação

sem procurar abordá-la a partir do seu ponto de vista ?

O conceito de satisfação, tal como vem sendo estudado pela disciplina de

comportamento do consumidor, privilegia aspectos psicológicos. Estudam-se os

mecanismos que geram reações positivas ou negativas, mas a existência de conflitos de

interesses é deixada de lado. De fato, reconhecer a existência desses conflitos equivale a

abandonar uma posição confortável, a de provedor, para uma mais problemática e mais

complexa: a de produtor, em uma sociedade comandada pela economia e dividida por

interesses conflitantes. Esta é, provavelmente, a razão do predomínio, na literatura

dedicada ao tema, de uma visão “atomística e individual” (Wensley, 1989, p. 54) do

fenômeno. A satisfação é abordada como um processo psicológico. Sua ocorrência

depende de mecanismos identificáveis e controláveis. Ela diz respeito ao cliente

enquanto indivíduo, mas não envolve a relação entre produtores e consumidores. Como

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observam Knights, Sturdy e Morgan (1994) a respeito do conceito de necessidade, ela

não é tratada como resultado desta relação, mas sim como “traço psíquico individual”

dotado de “uma existência autônoma” (p. 47).

2.5. O CONCEITO DE SATISFAÇÃO E OS MOVIMENTOS DE

CONSUMIDORES

Significativamente, os questionamentos mais sérios ao conceito de satisfação têm

ocorrido, sobretudo, fora da área de comportamento do consumidor propriamente dita.

Uma das discussões mais relevantes teve início no início da década de 70 e foi

desencadeada pelo surgimento dos movimentos de consumidores nos Estados Unidos.

Os relatos da época indicam que o consumerismo surpreendeu teóricos de marketing e

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empresários. De fato, estes já haviam adotado o conceito de satisfação do consumidor

como lema. Como podia, então, este consumidor que, supostamente, estava no centro de

suas preocupações, rebelar-se e voltar-se contra os profissionais e as organizações que

estavam empenhados em atendê-lo? Alguma coisa estava errada com o conceito de

marketing? Buskirk e Rothe (1973) declararam: “se o consumerismo existe, o conceito

de marketing não funcionou” (p. 112). Drucker (1973) definiu o consumerismo como “a

vergonha do marketing” e afirmou: “é essencialmente um sinal do fracasso do conceito”

(p.15). Quais eram as razões deste fracasso?

Ao buscar respostas a essa questão, Kotler (1972) sugeriu que a origem do problema

estava na ambigüidade do termo “satisfação do cliente”. Segundo ele, o termo carregava

conotações imediatistas e tendia a ser confundido com a noção de desejo. “(...) Servir o

consumidor visando a sua satisfação não necessariamente fará dele um consumidor

satisfeito” (p.54). Atender indiscriminadamente aos desejos imediatos das pessoas podia

não ser tão benéfico como parecia.

Kotler citava diversos exemplos que apontavam prejuízos sociais (poluição e

congestionamentos provocados por uma indústria automobilística indiferente aos efeitos

coletivos de sua atuação) e individuais (cigarro e álcool). Diante desses fatos, sugeria a

reformulação do conceito de marketing. As empresas, afirmava ele, deviam buscar não

apenas a satisfação do cliente, mas também, e sobretudo, o bem-estar do consumidor a

longo prazo. “A questão é conciliar, de algum modo, o lucro da empresa com os

desejos e os interesses de longo prazo do consumidor” (p.54).

A discussão desencadeada pelos movimentos consumeristas aponta pelo menos dois

limites ao conceito de satisfação tal como é entendido pela área de comportamento do

consumidor.

Em primeiro lugar, a satisfação é, por definição, relativa a determinada compra. O

objeto de estudo é a transação, e não a relação. Ao eleger essa unidade de análise, a

disciplina tende a perder de vista a dimensão interativa (e temporal) do fenômeno. O

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ato de compra é visto como evento isolado e não como um dos elementos em uma

cadeia de interações, que envolve tanto os esforços do produtor para fabricar seu

produto e colocá-lo no mercado (produção, pesquisa, comunicação, distribuição etc.),

como as percepções, interpretações, ações e reações individuais ou coletivas do

consumidor. A inclusão nos modelos de descrição do comportamento do consumidor

(ver, por exemplo, o modelo clássico de Howard e Sheth, 1967) de alguns dos aspectos

dessa relação, representados sob a forma de variáveis, não restitui essa dimensão. O

foco continua sendo o do comportamento, visto não como um ato que se situa no

contexto de uma relação e sim como um evento cuja ocorrência pode ser explicada pela

presença simultânea de diversos fatores. A noção de bem-estar a longo prazo proposta

por Kotler (1972) baseia-se justamente na constatação dos limites dessa visão. Não

basta atender ao desejo imediato do consumidor, é preciso estabelecer com ele uma

relação que possa atender às necessidades de cada uma das partes. Como observa

Motta, (1987), a troca supõe “uma interação mais ampla e permanente do que o simples

ato de compra e venda” (p.6).

No artigo Buyer-seller Encounters: a Comparative Assessment, Rocha e Christensen

(1993) descrevem os princípios propostos pela corrente interativa de marketing,

desenvolvida a partir dos trabalhos do IMP Group, na Europa do Norte, e da experiência

japonesa. A teoria interativa adota uma perspectiva onde compradores e vendedores são

vistos como partes ativas e interdependentes, engajadas em uma relação de longo prazo.

Cunningham (1985), um dos fundadores do IMP Group, descreve os conceitos básicos

do grupo da seguinte forma (pp. 4 e 5):

-Relações (ao invés de decisões isoladas de compra);

-Interação entre duas partes ativas;

-Estabilidade das estruturas de mercado e interdependência entre vendedores e

compradores;

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-Estratégias de marketing versus estratégias de compra (ao invés de comportamento de

compra versus estratégias de marketing).

Diferentemente da visão tradicional, essa abordagem focaliza a relação existente entre

vendedores e compradores e enfatiza o papel ativo de cada um deles. A corrente

interativa desenvolveu-se na área de marketing industrial. Por essa razão, talvez, não

teve, até o momento, influência notável sobre a área de comportamento do consumidor.

Os movimentos de consumidores mostraram, porém, que a existência de uma relação

durável com o público não dependia da iniciativa da empresa. Quer queira quer não, a

empresa, ao desenvolver suas atividades, interage constantemente com diversos grupos

e instituições (ver Kotler, 1972). Os indivíduos, mesmo aqueles que não são seus

clientes, são afetados por suas ações e podem reagir a elas. A venda, como afirma a

corrente interativa, constitui somente um momento dentro de um relacionamento mais

amplo, que se desenvolve no tempo. “Um conceito revisto de marketing deverá

reconhecer a condição do público consumidor dentro do relacionamento particular entre

o consumidor individual e a firma (...), colocará o consumidor no centro do foco de

planejamento da firma, porém observará um conjunto mais amplo de necessidades e

interesses do consumidor, durante um período mais longo de tempo” (Webster, 1978,

pp. 145 e 146).

O conceito de marketing de relacionamento e a idéia de “administração do

relacionamento” (Levitt, 1995) derivam, também, dessa constatação: a satisfação do

cliente não se reduz ao resultado imediato da compra. Ela envolve o conjunto das

interações que ocorrem antes e depois dela.

O debate em torno da natureza das referências utilizadas pelo cliente ao avaliar o

resultado de uma compra (Oliver, 1997; Evrard, 1995; Spreng, MacKenzie e Olshavsky,

1996; Simintiras, Diamantopoulos e Ferriday, 1997) reflete a complexidade dessas

interações. Expectativas, normas construídas ao longo da experiência, percepção de

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eqüidade, desejos e objetivos, cada um destes critérios retrata separadamente aspectos

que intervêm na relação produtor versus consumidor.

Porém, esses aspectos são analisados como variáveis que influenciam as avaliações do

consumidor e não como elementos de uma estrutura de pensamento construída por ele.

Buscam-se leis que regem comportamentos e não interpretações que orientam ações. O

pressuposto de passividade implicitamente embutido nessa concepção dificulta a

compreensão do conjunto de fatores associados ao fenômeno da satisfação/insatisfação.

Seu princípio organizador, o consumidor, permanece oculto. A pessoa que efetua,

experimenta e avalia a compra está ausente. Estudamos seu comportamento no

momento que mais nos interessa, o da compra, mas não tentamos entender o seu ponto

de vista sobre a relação que mantém com fornecedores24. Não sabemos como ela vive e

interpreta a situação de compra: vê-se como alvo potencial de vendedores

inescrupulosos, como cliente que tem direito a um bom atendimento, como compradora

que se digna a prestigiar o fornecedor, como vítima, como cidadã, como “rei” ? Pensa

que a empresa vendedora está empenhada em satisfazê-la, em lucrar às suas custas, em

respeitar a lei, em burlá-la, em promover o bem-estar da comunidade, o de seus

empregados, o de seus donos? Essas interpretações definem e organizam os conteúdos

de expectativas, normas, percepções de eqüidade, desejos, objetivos. A partir delas, o

consumidor constrói parâmetros, que não dependem apenas de leis psicológicas

universalmente válidas, mas também das características objetivas da organização social

na qual ele se insere e da forma com a qual cada cultura e sub-cultura as maneja e

interpreta.

A comunicação (Spreng, MacKenzie e Olshavsky, 1996), a experiência prévia

(Kolodinsky, 1995), a percepção de iniqüidade (Swan e Oliver, 1989), os desejos

(Spreng, MacKenzie e Olshavsky, 1996 e Oliver, 1980), as emoções (Westbrook e

Oliver, 1991) exercem um papel que nos ajuda a explicar o comportamento do

consumidor, mas não temos acesso à estrutura que organiza estes elementos. Não

24 No início da década de 70, Drucker afirmava no artigo “The Shame of Marketing”: “não olhamos onosso negócio do seu ponto de vista, do ponto de vista do consumidor” (Drucker, 1973, p. 202).

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sabemos como, quando, porque o consumidor mobiliza cada um deles. Desconhecemos

a estrutura do seu pensamento, a natureza das representações que orientam suas

percepções, ações e reações ao lidar com um fornecedor. Essa estrutura se manifesta em

cada transação, mas o seu alcance ultrapassa o ato isolado de troca. O pensamento que

norteia as ações do consumidor não tem origem apenas na compra. Ele abrange o

conjunto de idéias que o consumidor tem a respeito de suas relações com fornecedores:

os direitos e deveres de cada uma das partes, o poder de que dispõe cada uma delas, a

natureza de suas intenções reais e declaradas etc..

Não queremos dizer com isso que o consumidor é necessariamente racional e sim que

suas respostas e comportamentos obedecem a uma lógica, mais ou menos explícita,

mais ou menos consciente, mais ou menos coerente, que estrutura os elementos

identificados pelos pesquisadores da área (e outros ainda não descobertos) em um

conjunto dotado de sentido. Esse conjunto não é necessariamente idêntico de uma

cultura para outra e, nem mesmo, em uma mesma cultura, de um indivíduo para outro.

Embora seja gerado por indivíduos, encontra-se na interseção do individual e do social.

Participa do processo de “reapropriação singular do universo social e histórico” que

intermedia a relação do indivíduo com seu meio (Ferrarotti, 1983, p. 51). É influenciado

pelas características da relação produtor versus consumidor, ao mesmo tempo em que

contribui para construí-las.

O segundo limite do conceito de satisfação do consumidor encontra-se justamente na

ausência de problematização de sua dimensão social. A satisfação é um estado

psicológico, isto é, individual. O consumidor é visto como ser isolado e não como

alguém que se insere em uma coletividade, que influencia não só os seus desejos e

expectativas, mas também a natureza e o significado das relações existentes entre

vendedores e compradores.

A existência de movimentos de consumidores constitui, em si, um desafio a essa

concepção. Como observa Wensley (1989), evidencia o fato de que os consumidores

podem “agir coletivamente para influenciar o quadro no qual as transações

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mercadológicas individuais ocorrem” (p. 54), pondo portanto em xeque a adequação da

visão atomística e individual dominante na área. O consumidor não pensa e nem age

sozinho. Está inserido em uma rede de relações, que inclui empresas, governos,

associações, amigos, familiares. É consumidor e cidadão (Webster, 1978)25. É agente

em uma multiplicidade de grupos e relações sociais. É comprador que quer valor pelo

seu dinheiro, cliente que briga ou faz amizade com vendedores, pai ou mãe preocupado

com o futuro dos filhos, eleitor movido pela defesa de seus interesses e de seus ideais,

trabalhador empenhado em defender seu poder aquisitivo, conselheiro para os amigos,

para os colegas de trabalho e, até mesmo, para os vizinhos de fila. Pode também ser

militante pela defesa dos interesses do condomínio ou dos moradores da rua, para a

valorização do bairro, para a proteção da flora e fauna da região, para a sobrevivência do

planeta, para os ideais de uma crença ou religião etc.. Não levar em conta essa realidade

equivale a optar por uma nova miopia, desprezando não mais a satisfação das

necessidades humanas e sim sua dimensão social.26

A idéia de responsabilidade social, desenvolvida a partir da análise das implicações do

consumerismo (ver, entre outros, Kotler, 1972 e Drucker, 1973), busca responder a esse

problema, mas, como observa Wensley (1989), a forma como tem sido abordada

(inclusive por Kotler, 1972 e Webster, 1978) tende a reforçar a soberania do produtor e

a privilegiar a escolha individual em detrimento das opções coletivas. O produtor é visto

como enfrentando sozinho o dilema de optar entre um longo prazo freqüentemente

desprezado pelos clientes e o curto prazo que pode lhe garantir um lucro imediato (ver

Kotler, 1972). O bem-estar da sociedade está nas mãos do vendedor e o comprador se vê

novamente reduzido a um papel de coadjuvante, incapaz de equacionar por si mesmo

essas prioridades e, mais ainda, de opinar judiciosamente sobre a melhor solução.

25 Grifo nosso.

26 Vale notar que até mesmo as ações chamadas por Kotler (1994) de “privadas”, tais como, por exemplo,a divulgação boca-a-boca da experiência negativa e o boicote ao vendedor, obedecem a motivações deordem social. Trata-se de proteger conhecidos contra prejuízos potenciais e de punir os mausfornecedores. A despeito de sua natureza informal, essas ações não deixam de pertencer, também, aouniverso do coletivo.

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Drucker cita no artigo “A vergonha do Marketing” (1973) dois exemplos de iniciativas

empresariais abandonadas por falta de interesse dos poderes públicos e retomadas

décadas depois, o do cinto de segurança e o dos combustíveis menos poluentes. Diante

do abandono dessas propostas, exclama: “fomos covardes, tímidos para assumir a

responsabilidade por nossa influência” (p. 202).

A falta de ousadia dos empresários não é, porém, a única razão do fracasso temporário

dessas inovações. O consenso formado em torno delas pelos diversos atores sociais

interessados (empresários, políticos, e também consumidores) não foi suficiente para

que fossem levadas adiante. Isso não significa apenas que os empresários devem se

posicionar de modo mais responsável e firme diante dos problemas sociais, mas sim que

suas propostas, quaisquer que sejam as intenções que as orientam, dependem, para se

tornar efetivas, de um processo de negociação que envolve elementos (agentes, relações)

nem sempre controláveis. Como afirma Herreros (1996), “o fato científico, a inovação

técnica, a mudança não se impõem por si mesmos. É o processo que está na base de sua

emergência que confere ou não a eles a estabilidade necessária.” “O bom projeto não é

aquele que reune adesões a partir das qualidades que ele, reconhecidamente, possui.

Pelo contrário, é porque ele reúne adesões - que se organizam em rede - que suas

qualidades são reconhecidas” (p.66).

Embora nem sempre disponham de conhecimentos e poderes equivalentes aos dos

produtores, os consumidores exercem na formação destas redes um papel significativo.

Como compradores, cidadãos, eleitores, participam, através do seu comportamento

econômico, social e político, de sua construção, contribuindo, direta ou indiretamente,

para reforçar ou enfraquecer as relações que as constituem.

O surgimento do consumerismo e, mais recentemente, dos movimentos ecológicos,

mostrou que o pressuposto de que a empresa pode opinar sozinha sobre essas questões

pode ser ilusório. As ações coletivas podem não apenas mobilizar milhares de cidadãos,

mas, também, modificar duravelmente as relações de forças existentes entre vendedores

e compradores. Enquanto esse fato não for reconhecido, não apenas enquanto incentivo

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à atuação dos produtores no sentido de serem “socialmente responsáveis”, mas também

como uma demonstração de que os consumidores são parte interessada e ativa na

definição das responsabilidades da empresa, os avanços no sentido de conciliar “o lucro

da empresa com os desejos e os interesses de longo prazo do consumidor” (Kotler,

1972, p. 54) permanecerão, necessariamente, limitados.

As reações ao fenômeno do consumerismo evidenciam que os interesses dos

consumidores somente mereceram atenção quando se tornaram ameaças. Buskirk e

Rothe (1973) observam que o consumerismo tentou “dizer à indústria alguma coisa que

sua pesquisa não havia encontrado, ou que a administração havia rejeitado ou ignorado”

(p.116). A prioridade dada aos desejos imediatos do consumidor, atribuída por Kotler a

um erro de interpretação do conceito de marketing, decorre de uma visão que privilegia

o indivíduo e o comportamento, em detrimento das dimensões social e temporal da

relação produtor versus consumidor, e favorece exatamente essa interpretação. Essa

opção está presente não apenas nas práticas do marketing, mas também na abordagem

atomística e individualizante que domina o campo de pesquisa da disciplina (Wensley,

1989). Longe de ser um interlocutor, o consumidor é objeto dos esforços do marketing e

objeto de estudo. O status de sujeito lhe é negado. Dentro dessa perspectiva, a satisfação

é apenas uma ferramenta, um instrumento que, se bem manejado, pode assegurar a

lucratividade a longo prazo da empresa. É uma categoria que, retomando os termos

usados por Knights, Sturdy e Morgan (1994) para discutir o conceito de necessidade,

“ordena e confere sentido aos comportamentos” (p. 43), mas não leva em conta o fato de

que estes comportamentos ocorrem no contexto de uma relação social.

A noção de interesse invocada por Kotler (1972) introduz essa dimensão no debate. Ela

pressupõe a existência de duas partes ativas, mesmo que, como observa o autor, os

poderes de que dispõem cada uma sejam desiguais. Nesse sentido, ela subverte

profundamente a abordagem tradicional da disciplina de comportamento do consumidor.

As duas exigências do conceito de marketing, a de promover a satisfação do consumidor

e a de obter lucratividade, deixam de ser vistas como se fossem “naturalmente”

complementares. Elas correspondem a interesses distintos, que precisam ser conciliados

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43

(Kotler, 1972). Reconhecer a existência dessa “tensão” entre os dois objetivos do

marketing significa não somente reformular conceitos, mas também, conforme apontam

Knights, Sturdy e Morgan (1994), questionar a adequação da abordagem

individualizante que norteia sua construção.

Esta é, provavelmente, a razão pela qual a noção de interesse continua sendo tratada

como um assunto distinto e até distante do tema da satisfação. Aproximar as duas

noções implica não apenas ampliar o conceito de satisfação, mas também refletir sobre

o papel atribuído ao consumidor na teoria de marketing. Significa inverter a abordagem

tradicional, adotando como princípio orientador das investigações não mais as

necessidades dos profissionais de marketing, mas sim as dos seus interlocutores (ver

Woodruffe, 1997, p. 671).

Até que ponto as categorias delimitadas pelo conceito de satisfação encontram

correspondência no pensamento dos consumidores? Será que para estes desejos e

interesses constituem instâncias distintas? Será que a avaliação de uma transação é uma

resposta a uma interação individual e momentânea ou o resultado de uma relação mais

ampla, que, além dos benefícios ou prejuízos decorrentes de determinada troca, leva

também em conta o conjunto da atuação da empresa e de suas interações com o

público?27 Para responder a essas questões, é preciso analisar a estrutura do pensamento

dos consumidores a partir de sua vivência e do seu discurso, deixando de lado as

categorias que interessam ao marketing para dar lugar às que norteiam os que estão “do

outro lado do balcão”.

A teoria da eqüidade é a única que comporta a idéia de reciprocidade, mas trata-se ainda

de uma noção aplicável a um evento individual e isolado (o consumidor compara o

resultado da razão custos/benefícios que conseguiu à que foi obtido pelo vendedor,

27 Um exemplo interessante da complexidade destas relações ocorreu recentemente no Brasil. O sucessode um clube de futebol patrocinado por uma multinacional despertou suspeitas de corrupção. A empresapatrocinadora foi então responsabilizada por times adversários que, mobilizando seus torcedores,organizaram um boicote geral e bastante bem sucedido aos produtos da marca. Alguns consumidores aosquais tivemos acesso confessaram que evitavam os produtos a contra-gosto, mas a defesa de seu time e dajustiça no mundo dos esportes passava em primeiro lugar.

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44

julgando então a transação como sendo justa ou injusta. Ver, entre outros, Swan e

Oliver, 1989, Evrard, 1995 e Oliver, 1997). O consumidor continua sendo visto como

alguém que responde a uma situação e não como participante de uma relação mais

abrangente. Os limites desta abordagem podem, inclusive, ser uma das razões para as

dificuldades encontradas na busca de uma definição operacional do conceito de

eqüidade. Oliver (1997), ao constatar a ausência, na literatura, de evidências conclusivas

a esse respeito, indaga: “será que existem outras dimensões de eqüidade das quais as

comparações entre custos e benefícios não dão conta? (p. 20628). É possível que a

investigação das interpretações que norteiam os julgamentos dos consumidores, e que

abrangem, além do episódio em pauta, o conjunto de suas experiências de consumo,

possa trazer novos elementos para responder a essa questão.

A resistência em percorrer esse caminho certamente contribuiu para que o

consumerismo pegasse o marketing tão desprevenido no final da década de 60. Limitar

o conceito de satisfação à medida do efeito da ação do produtor sobre o consumidor é

uma opção arriscada. Nada garante que o primeiro possa, de fato, atender aos anseios do

segundo (ou, pelo menos, a todos esses anseios) e nem mesmo que não haja entre ambos

conflitos irreconciliáveis. A revisão da teoria econômica mostrou que a dimensão do

dinheiro era insuficiente para dar conta do comportamento do consumidor (Bennett e

Kassarjian, 1975; Robertson, 1970; Kotler, 1970; Bauer, 1966). O consumerismo

evidenciou a existência de uma distância ainda maior: o consumidor podia se mobilizar

para defender interesses que iam muito além da satisfação imediata de seus desejos,

fossem eles materiais ou não (Kotler, 1972). Ele se preocupava com a defesa de seus

direitos, com sua qualidade de vida a curto e longo prazo.

Finalmente, movimentos atuais como os de defesa do meio ambiente, ampliam ainda

mais o alcance da discussão: já não se trata apenas de defender a integridade física e

psicológica dos atuais consumidores e sim de preservar o planeta de modo a assegurar

um futuro feliz para as próximas gerações. Essas ocorrências assinalam a existência de

28 Diante dos resultados empíricos obtidos até o momento, Oliver (1997) sugere também que a eqüidadetalvez seja “um balanço psicológico particular formado pelos consumidores de modo idiossincrásico” (p.

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um descompasso entre as preocupações dos consumidores e o pensamento de marketing.

Enquanto este último reluta em reconhecer a existência de divergências de interesses, os

consumidores apontam essas divergências, se mobilizam para defender seu ponto de

vista e desencadeiam conflitos que, na maior parte das vezes, têm tomado os

profissionais da área de surpresa.

A questão que está por trás destes conflitos é, porém, um dos dilemas mais cruciais da

nossa civilizacão. Trata-se do papel das atividades produtivas na sociedade. Se, como

afirma Polanyi (1980), estas ganharam com a revolução industrial uma autonomia antes

inimaginável, passando a comandar as relações sociais ao invés de serem comandadas

por elas, as tensões decorrentes dessa inversão da estrutura tradicional continuam

presentes. A produção, antes subordinada à estrutura social, escapou de seu domínio,

mas ela ainda se desenvolve dentro de uma rede de relações sociais. De certa forma, o

confronto que, segundo Polanyi, opôs, durante o século XIX, a economia de mercado às

estruturas sociais, continua vivo. Ele se manifesta nesses conflitos, que expressam e

buscam resolver as contradições experimentadas pela sociedade na qual vivemos.

A satisfação ou insatisfação do consumidor deve ser lida dentro desse contexto. Além de

reação psicológica a uma série de fatores, ela é, também e sobretudo, o resultado da

interpretação individual de um conjunto de relações. A visão dominante na área de

comportamento do consumidor persiste em abordá-la como um fenômeno individual

associado à ocorrência de determinadas variáveis e processos psicológicos. A idéia de

satisfação do consumidor abrange, porém, um desafio muito mais amplo. Não se trata

apenas de identificar e dominar fatores suscetíveis de proporcionar a satisfação de

desejos individuais e sim da participação da empresa e do consumidor na busca de uma

equação mais favorável para a solução do dilema experimentado por uma sociedade que,

diferentemente das que a antecederam, delegou à lógica da economia o poder de

organizar sua existência.

206).

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Quaisquer que sejam as soluções encontradas por essa sociedade, o consumidor não é

um mero espectador dessa busca. Ele não é um ser isolado que assiste passivamente aos

lances dos demais atores. Sua participação é parte necessária e inevitável do jogo, nem

que seja para assegurar sua continuidade, cumprindo seu papel de comprador.29 O

consumidor já surpreendeu ao mostrar que sua satisfação não se limitava à realização de

um desejo e pode surpreender ainda mais. Além de vontades individuais, seu ponto de

vista representa uma força capaz de influenciar não apenas a oferta das empresas, mas

sim o seu papel social. A compreensão da satisfação passa por essa dimensão: não se

trata apenas de medir e prever aquilo que nos interessa e sim de entender uma lógica que

não coincide necessariamente com a da empresa.

2.6. UMA ALTERNATIVA: O PARADIGMA INTERPRETATIVO

A abordagem dominante na área de comportamento do consumidor é, atualmente,

objeto de questionamentos mais radicais que os da década de 70. Buttle (1994) afirma

que o comportamento do consumidor continua sendo, apesar do volume de pesquisas

acumulado sobre o tema, “um buraco negro teórico” (p.9). Woodruffe (1997) sublinha

as críticas ao predomínio quase absoluto do positivismo e do empiricismo lógico e a

demanda crescente por uma “expansão na metodologia e ontologia” da pesquisa sobre o

consumidor (p.671). O pensamento pós-modernista, de modo geral, tem se voltado para

a busca de abordagens alternativas e não convencionais (ver Raaij, 1998 e Woodruffe,

1997).

29 É interessante notar, a esse respeito, que, até mesmo nesse aspecto, o consumidor tem contrariado asexpectativas dos produtores. A onda recente de resistência ao consumo vivida pela França, a chamada“déconsommation”, exemplifica as conseqüências do seu retraimento. Ver, a esse respeito, Boutboul(1996) e Cova (1997).

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A questão metodológica é, dentro desse debate, a que está mais em evidência. A

polarização quantitativo versus qualitativo (Hamel, Dufour e Fortin, 1993) cedeu lugar,

desde o final da década de 60, a posições mais ecléticas. Vários autores (entre outros,

Goode e Hatt, 1979 e Boyd e Westfall, 1984) recomendam o uso de diferentes métodos

de acordo com o objeto e o momento da pesquisa. No entanto, o pluralismo desejado

por alguns ainda está longe de ser uma realidade (ver, por exemplo, Yin, 1988 e

Woodruffe, 1997). De fato, os argumentos mobilizados em favor da opção por um ou

outro método envolvem questões epistemológicas e ontológicas complexas e, muitas

vezes, polêmicas. Incorporar novos métodos significa, também, rever as respostas dadas

a essas questões.

Autores mais recentes, como Buttle (1994) e Brown (1997), abordam essa discussão sob

a ótica da mudança, defendendo não somente uma maior abertura metodológica, mas

também a necessidade de uma reflexão sobre a “visão de ciência” (Brown, 1997, p. 168)

adotada na disciplina de marketing30. Conforme observa Buttle (1994), estamos falando

de paradigmas distintos, isto é, de sistemas de crenças básicas sobre a natureza do

universo, do homem e do conhecimento, que orientam o pesquisador não apenas na

escolha de um método, mas na concepção da natureza do objeto a ser investigado e da

relação que pode ou deve ser estabelecida com esse objeto para apreendê-lo (Guba e

Lincoln, 1994).

Thiollent (1985) afirma, por isso, que as metodologias são “teorias em atos”. Os

diferentes métodos utilizados na investigação de fenômenos sociais baseiam-se, de fato,

em pressupostos que, explicitamente ou não, “respondem” de determinada forma a uma

série de questões. Indivíduo, sociedade, cultura, economia, natureza, bem como outros

elementos da realidade social, tornam-se categorias que definem e estruturam o objeto

de estudo. Organizadas, hierarquizadas, essas categorias constituem sistemas de

30 Ambos os autores sublinham, inclusive, a urgência dessa reflexão: Buttle (1994), ao afirmar que asdemais ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia, comunicação) a empreenderam desde ofinal da década de 70, e Brown (1997) ao declarar que há evidências crescentes de que “a seismic shift inthe prevailing view of science is taking place” (p. 168, grifo do autor).

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interpretação, teorias, a partir das quais se elaboram estratégias para a busca de novos

conhecimentos.

Retomando a tipologia proposta por Guba e Lincoln (1994), os paradigmas em presença

na área de comportamento do consumidor são, essencialmente, de um lado, o do

positivismo e pós-positivismo31 e, de outro, o paradigma construtivista (representado

principalmente pela antropologia). Brown (1997) divide os artigos publicados pelas

principais revistas de marketing em duas tendências: a corrente “realista/ empiricista/

instrumentalista/ positivista”, que ainda domina a produção acadêmica, e a corrente

relativista/ interpretativa/ construcionista/ humanística, que, segundo ele, está se

tornando, aos poucos, lugar comum na literatura especializada (p. 172). Cada uma

destas correntes baseia-se em pressupostos, ou, retomando o termo proposto por

Thiollent (1985), em teorias, que oferecem quadros interpretativos distintos.

Examinaremos, a seguir, alguns aspectos dessas teorias, buscando situar e explicitar a

perspectiva a partir da qual abordaremos o fenômeno da insatisfação. De fato, enquanto

experiência individual, isto é, subjetiva, da realidade social, a insatisfação do

consumidor tem, de acordo com a corrente escolhida, um significado específico.

Para o positivismo e o pós-positivismo, o social é um fenômeno concreto ao qual

podemos ter acesso, por vias precárias, através do discurso humano. A opção ontológica

é a do realismo, “ingênuo”32 no caso do positivismo, “crítico” no do pós-positivismo

(Guba e Lincoln, 1994). O pesquisador é um especialista, um “expert”, cujo papel é o de

predizer e controlar fenômenos (Guba e Lincoln, 1994). O objetivo da pesquisa é o de

encontrar leis capazes de explicar o maior número possível de casos. O método

quantitativo deriva dessa concepção. Submetidas ao crivo da verificação (positivismo)

31 Guba e Lincoln afirmam: “O termo positivismo denota a “visão aceita” (“received view”) que dominouo discurso formal nas ciências físicas e sociais durante cerca de 400 anos, enquanto o pós-positivismorepresenta os esforços das últimas décadas em responder de forma limitada (isto é, permanecendoessencialmente dentro do mesmo quadro de crenças básicas) às críticas mais problemáticas dopositivismo” (p. 109, grifos dos autores).

32 “Naif” no original.

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ou da falsificação (pós-positivismo), as leis propostas pelos cientistas são validadas

através do critério da replicação.

Essa visão, inspirada das ciências físicas (Buttle, 1994), constitui, em si, uma teoria que

interpreta o fenômeno da realidade social de determinada forma e acarreta escolhas

metodológicas específicas. De acordo com Thiollent (1985), a enquete sociológica,

método desenvolvido pela sociologia positivista (e posteriormente importado pelo

marketing), “pressupõe como ‘teorema reificado’ uma representação da sociedade ou

dos grupos sociais como multidão atomizada” (p.45). O pressuposto é o de que “todas

as opiniões se equivalem” (Bourdieu, 1985). “No simples fato de fazer a mesma

pergunta para todo mundo acha-se implícita a hipótese de que existe um consenso sobre

os problemas, em outras palavras, de que existe um acordo sobre as perguntas que

merecem ser feitas” (p.138). O pesquisador torna-se “fotógrafo da realidade social, o

que, no limite, implica considerar a sociedade como a somatória dos indivíduos e a

cultura como a somatória de opiniões e comportamentos individuais” (Fleury e Fischer,

1989, p.15). Presume-se que a sociedade funciona como uma democracia, onde todos os

indivíduos compartilham a mesma compreensão da realidade e podem igualmente

influenciá-la. Da mesma forma que os votos determinam o resultado de uma eleição, a

soma dos comportamentos dos indivíduos que compõem determinado grupo determina

o rumo de sua história.

Dentro dessa perspectiva, o indivíduo é um informante legítimo. Mas a sua

subjetividade ao relatar ações passadas, presentes ou futuras constitui um obstáculo a ser

superado. É preciso contorná-la para descobrir aquilo que as pessoas de fato fizeram,

fazem ou pretendem fazer. Se pudermos identificar, descrever, classificar, prever estes

atos, teremos acesso à realidade social.

Essa abordagem não exclui o estudo da subjetividade. Vista como uma característica

individual e universal, esta última é objeto da psicologia, que se dedica à investigação

dos seus mecanismos de atuação, visando aprimorar o conhecimento da relação

estabelecida pelo indivíduo com seu meio físico e social. A psicologia da percepção,

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que investiga os processos de apreensão e interpretação de estímulos e a psicologia

cognitivista, que estuda o processamento de informações pelo ser humano, e dentro da

qual, como vimos anteriormente, se situam a maior parte dos trabalhos atualmente

disponíveis sobre o tema da satisfação do consumidor, pertencem a essa corrente33.

Contrapondo-se a essa visão, na qual a interpretação é concebida como uma espécie de

viés que, através de mecanismos psíquicos inerentes ao funcionamento da mente

humana, distorce a percepção dos indivíduos, a abordagem interpretativa aborda o

fenômeno da interpretação como parte e motor da vida social. Interpretar não é

simplesmente “filtrar” o real. É lidar com ele. É ingressar no mundo das relações que os

homens estabelecem entre si e com a natureza. Longe de ser um obstáculo interposto

entre o indivíduo e a realidade, a interpretação é a chave e o limite de qualquer

conhecimento.

Dentro dessa perspectiva, o cientista social é, ele mesmo, um “interpretador”. Sua tarefa

não é a de descobrir uma realidade concreta e sólida escondida atrás da subjetividade

dos leigos. É a de registrar as respostas de alguns homens aos “dilemas existenciais da

vida”, enveredando em “interpretações de segunda e terceira mão”, em “explicações de

explicações”, para tentar captar algo de sua realidade (Geertz,1973, p.25).

O social deixa de ser uma “rocha dura” escondida sob camadas de interpretações que

ocultam sua verdadeira natureza. Ele é o resultado da atividade interpretativa, que

caracteriza não apenas o homem comum, mas também o próprio empreendimento

científico34. “Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a

teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a

33 Ver também as afirmações de Woodruffe (1997) a respeito do predomínio na área de comportamentodo consumidor do “foco na cognição em um contexto comportamental” (p. 671).

34 A esse respeito, Geertz escreve: “Bem no fundo da base fatual, a rocha dura, se é que existe uma, detodo empreendimento, nós já estamos explicando e, o que é pior, explicando explicações”. (Geertz, 1973,p. 19).

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sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como

uma ciência interpretativa, à procura de significado.” (Geertz, 1973, p.15).

Para o objetivo do nosso estudo, que é o de compreender melhor o ponto de vista do

consumidor sobre a sua relação com o vendedor, as diferenças existentes entre estes dois

paradigmas são de fundamental importância.

Dentro da primeira perspectiva, estamos falando da reação do consumidor a uma

determinada situação: a do ato de compra. Essa reação é investigada como um processo

psicológico. Abordada como um fenômeno individual e universal, ela pode ser estudada

como um caso específico, e bastante complexo, de processamento de estímulos. Esse

processamento pode sofrer a influência de variáveis sócio-culturais, mas sua natureza é,

antes de tudo, individual. Ele é uma resposta a uma situação que comporta aspectos

sociais mas ele não participa da construção dessa situação, pois o mundo da

subjetividade pertence a uma instância distinta do social35.

Dentro da segunda perspectiva, o consumidor interpreta uma experiência. Ao fazê-lo,

ele participa da construção da relação existente entre comprador e vendedor, retomando,

manejando e transformando os significados que a organizam. Essa atividade

interpretativa não é solitária. Ela é parte de um processo coletivo através do qual os

homens descobrem, transmitem, negociam, disputam, criam e transformam meios de

lidar com as coisas e com as outras pessoas, isto é, constroem uma estrutura social. Ela

não age como um filtro, que se impõe às consciências individuais, distorcendo em

determinada direção sua percepção da realidade, e sim como o elemento que estrutura

essa realidade

Isso significa que o pensamento humano, organiza livremente a vida social? Tocamos

aqui em uma discussão antiga nas ciências humanas36. Godelier (1984) resume as duas

35 Constituída de “estruturas duras, tangíveis e relativamente imutáveis”, que independem das nossaspercepções, a realidade social “existe independentemente da apreciação de um indivíduo sobre ela”(Burrell e Morgan, 1979, p.4).

36 Que não é abordada diretamente pela vertente positivista, já que esta enxerga o pensamento como um

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teses do “velho debate sobre as relações entre as idéias e as realidades sociais” da

seguinte forma:

Tese 1: “As idéias conduzem o mundo, pois moldam, na sua origem, as realidades

sociais e empurram as sociedades e sua história em determinado sentido por milênios”.

Tese 2: “Uma sociedade não se reduz às idéias que seus membros podem ter dela.

Existem, fora do pensamento, realidades que têm mais peso do que ele na história, a

começar pelas realidades materiais e as relações sociais que as organizam”. (p. 168)

Para os defensores dos extremos destas duas teses, as dimensões ideais e materiais da

sociedade humana constituem instâncias separadas e hierarquicamente distintas. A

atividade simbólica, vista pelos primeiros como a essência da vida social, exerce para os

segundos um papel secundário, subordinado às exigências materiais da organização

social. Para retomar a alegoria utilizada por Godelier (p. 19), é a cobertura que encobre e

disfarça a parte mais dura do bolo, a ideologia que oculta e ajuda a manter o status quo

da ordem estabelecida. Dentro desta última perspectiva, as interpretações dos indivíduos

seriam meros reflexos deformantes de uma realidade social cuja essência é material.

Embora não seja o caso de aprofundar aqui a descrição desse debate (grosso modo, o

que opõe a antropologia, e, mais especificamente, suas tendências mais “idealistas ou

nominalistas” - Laplantine, F., 1988 -, à sociologia marxista), a questão das relações

existentes entre essas duas dimensões, a material e a ideal, é de fundamental

importância para a definição do nosso objeto de estudo. Qual é o papel dessa atividade

interpretativa sobre a qual queremos nos debruçar ? Ela constrói a realidade social, ou é

construída por ela?

A questão toca no problema fundamental das “relações entre o pensamento, a economia

e a sociedade” (Godelier, 1984, p. 12)37. Se os aspectos materiais determinam o

fenômeno autônomo, comandado pela psique individual (ver, por exemplo, Knights, Sturdy e Morgan,1994, p. 47).

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pensamento do homem, as interpretações dos indivíduos devem ser lidas como o reflexo

de ideologias, cuja função social é a de legitimar e reproduzir certas relações de

produção. Elas são um efeito destas relações, mas não participam de sua construção. Se,

por outro lado, a dimensão ideal organiza nosso universo, ela, pelo contrário, cria e

estrutura essas relações, independentemente de qualquer realidade material.

O risco desta última concepção é o de reduzir o social a um fenômeno meramente

imaginário. Esse risco é apontado por Geertz, que observa: “(...) está sempre presente o

perigo de que a análise cultural perca contato com as superfícies duras da vida - com as

realidades estratificadoras políticas e econômicas, dentro das quais os homens são

reprimidos em todos os lugares - e com as necessidades biológicas e físicas sobre as

quais repousam essas superfícies” (Geertz, 1973, p.40).

Porém, conforme observa Godelier (1984), as idéias e as “superfícies duras da vida”

estão mais interligadas do que supõem os adeptos dos extremos das duas teses. “(...) No

coração das relações materiais do homem com a natureza, aparece uma parte ideal onde

se exercem e se misturam três funções do pensamento: representar, organizar e legitimar

as relações dos homens entre si e com a natureza” (Godelier,1984. p. 21). No cerne da

relação do homem com a natureza, há idéias, que escolhem animais ou vegetais como

alimentos, inventam e transmitem meios de caçar, colher, criar ou plantar, dividem essas

atribuições entre os diversos membros de uma comunidade e determinam as

modalidades de consumo dos produtos destas atividades. A atividade simbólica, longe

de ser uma instância separada e independente da realidade “material” da sociedade,

participa de sua formação. Ela é o elo que liga o homem ao mundo e aos seus

semelhantes.

Essa ligação se faz por caminhos traçados, herdados (da mesma forma que a

linguagem), mas não fixos, nem imutáveis. “(...) Toda relação social real, realizada,

coexiste no pensamento e por ele com outras relações sociais possíveis”, que podem

37 Ver, quanto a essa questão, as observações de Featherstone, 1998, a respeito da importância, para a áreade comportamento de consumidor, de uma reflexão sobre sua concepção das relações entre economia,cultura e sociedade.

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contribuir para sustentá-la (é o caso, por exemplo, do incesto, que torna presente no

imaginário uma relação proibida), ou “designar ao pensamento e à ação vias nas quais

ingressar para transformá-la e substituir-lhe uma ordem social antecipada” (Godelier,

1984, pp. 225 e 226).

Dentro dessa perspectiva, a relação existente entre o indivíduo e a estrutura social torna-

se menos obscura. Ela deixa de ser vista como unívoca, em um ou outro sentido, para se

tornar simultaneamente fonte de produção, reprodução e transformação das relações

sociais. Estas, de fato, “somente são produzidas e reproduzidas pela combinação e

articulação de dois tipos de práticas, individuais e coletivas: uma no seio da qual uma

relação social existe como meio para atingir certos fins, tais como os rituais de iniciação

que são concebidos como um meio necessário para permitir que as novas gerações

tenham acesso aos saberes secretos dos mais velhos e compartilhar com eles poderes

ocultados; a outra que coloca (ou se recusa a colocar) essa relação como uma realidade-

boa-de-ser-reproduzida, como a maneira obrigatória de organizar parte das relações dos

homens entre si e com a natureza, portanto como uma relação que exclui outras

relações, como uma Norma, como um Fim” (Godelier, 1984, p. 222, grifos do autor).

Assim, os pensamentos de um indivíduo reproduzem, legitimam e reforçam

determinadas relações sociais, mas também podem questioná-las e, eventualmente,

modificá-las. Isso somente pode ocorrer, porém, se eles ingressarem no mundo das

relações entre os homens, tornando-se palavra, diálogo, discussão, troca, confronto,

ação.

“Não basta que um possível real ameace uma sociedade para que esta se transforme. É

preciso que esse possível se torne objetivo de uma fração dessa sociedade, de indivíduos

e grupos que passem a agir para realizá-lo, que transformem esse pensamento em uma

força coletiva capaz de agir na sociedade e sobre ela e de lhe impor uma nova direção”

(Godelier, 1984, p. 226). Em outras palavras, é preciso que um pensamento novo brote

da mente de indivíduos, que estes indivíduos sejam capazes de compartilhá-lo com

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outros indivíduos, de fazer dele um objetivo coletivo e de se organizar para promovê-lo.

Tudo isso somente pode acontecer em decorrência de uma constante atividade

simbólica, que não leva os indivíduos a interpretar livre e individualmente uma

realidade exterior a eles (nesse caso, a comunicação se tornaria impossível, pois ela

pressupõe a existência prévia de um meio de compartilhar significados), nem a adotar

cegamente uma interpretação dominante, mas os “arrasta” em direção ao mundo e aos

seus semelhantes, levando-os a produzir, reproduzir e transformar relações.

Dentro dessa perspectiva, o indivíduo é um pólo ativo, mas não é um agente todo

poderoso capaz, por si só, de modificar as relações sociais dentro das quais evolui. Nem

joguete, nem dono da brincadeira, ele seleciona e manipula as peças, respeita ou não as

regras, retoma dicas, inventa jogadas, que podem ter êxito ou fracassar, ser punidas ou

recompensadas, ganhar a adesão de outros, chamar atenção ou cair no esquecimento. Ele

faz o jogo acontecer. Mas não o faz sozinho, nem independentemente das regras e dos

demais jogadores. “Toda prática individual humana é uma atividade sintética, uma

totalização ativa de todo o contexto social. Uma vida é uma prática que se apropria das

relações sociais (as estruturas sociais), as interioriza e transforma em estruturas

psicológicas pela sua atividade de destrução-reestruturação” (Ferrarotti, 1983, p. 50,

grifos do autor). A interpretação de uma pessoa não é uma ficção solta nos limbos da

subjetividade humana e sim a síntese de sua participação em uma rede de relações tecida

coletivamente a partir de elementos materiais e simbólicos.

A redução dessa interpretação a um processo psicológico escamoteia essa dimensão.

Isso é o que tende a ocorrer na disciplina de comportamento do consumidor. O

indivíduo é visto como processador de informações e não como selecionador,

manipulador e construtor de significados socialmente elaborados, construídos e

negociados (McCracken, 1989). O comportamento do consumidor, como qualquer

comportamento humano, é uma “ação simbólica” (Geertz, 1973, p. 20), que se situa no

contexto de uma determinada relação, expressa um entendimento individual de suas

modalidades reais ou potenciais, ao mesmo tempo em que participa de sua produção,

reprodução e transformação. A experiência do consumidor não é, nesse sentido, um

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epifenômeno da relação entre produtor e comprador e sim uma “síntese individualizada

e ativa” (Ferrarotti,1983, p. 51) desta relação, à qual podemos ter acesso através de seu

discurso.

Longe de constituir um meio duvidoso de registro dos elementos concretos e objetivos

do comportamento, o relato da experiência é a expressão mais ou menos clara, mais ou

menos consciente, mais ou menos direta, do significado desse comportamento. Esse

significado é, por sua vez, ao mesmo tempo, resultado e fonte de produção, reprodução

e transformação da relação entre vendedor e comprador. Nele estão presentes as

representações dos agentes envolvidos nestas relações, a estrutura que organiza suas

interações, as idéias que legitimam e contestam suas modalidades. Muito mais que um

meio precário de acesso a comportamentos passados e futuros, o discurso do

consumidor é o meio pelo qual podemos apreender o contexto desse comportamento e

descrevê-lo “com densidade” (Geertz, 1973, p.24), entendendo-o não como peça de

uma realidade imutável e sim como a manifestação ativa, no indivíduo, da existência de

uma rede de relações e significados em constante evolução.

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2.7. A NOÇÃO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL

“A ‘ordem de fenômenos’ chamada representações coletivas foi estudada inicialmente

pelo sociólogo Durkheim” (Doise e Palmonari, 1986, p. 16). Retomada pelo psicólogo

social Moscovici, a noção de representação social passou, depois da publicação de sua

obra sobre as representações da psicanálise (1961) 38, a ser utilizada mais

intensivamente em diversas disciplinas (psicologia social, antropologia, história,

filosofia, sociologia).

A multiplicação das pesquisas sobre esse tema, ao mesmo tempo em que tem

contribuído para gerar um conjunto extremamente rico de trabalhos, fez da

representação uma noção difícil de ser definida. Empregado de forma diferente por uma

grande variedade de autores que pertencem a disciplinas e paradigmas distintos, o termo

de representação passou a abrigar múltiplos significados. Doise (1986) observa que

“seria difícil retirar uma definição comum a todos os autores” que o utilizam (p. 81) e

38 Moscovici, S., La psychanalyse - Son image et son public, Paris: PUF, 1961. Tradução em português: Arepresentação social da psicanálise, Rio: Zahar, 1978.

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que essa pluralidade de significados faz da representação “um instrumento de trabalho

difícil de ser usado” (p. 83).

No texto A era das representações sociais (1986), Moscovici expõe as razões que o

levaram a retomar a idéia de Durkheim. Essa reflexão, efetuada cerca de 25 anos depois

da publicação do seu primeiro trabalho sobre o tema, traz elementos valiosos para uma

melhor compreensão da noção de representação.

Segundo Moscovici (1986), a psicologia cognitivista39 incorreu num erro fundamental

ao empenhar-se na busca de mecanismos universais de funcionamento da mente

humana. “A cognição social era fadada ao impasse desde o início, pois a cognição

limitava-se a um único aspecto, a percepção. Ao mesmo tempo, a realidade, fonte da

informação em questão, era considerada como neutra, não social, e presumida objetiva”

(p. 52). O pressuposto era o de que “os indivíduos devem seguir as mesmas regras

mentais e lógicas em todas as circunstâncias” (p. 56).

As teorias da atribuição, da dissonância cognitiva e do princípio de equilíbrio40 foram

elaboradas dentro dessa perspectiva. Segundo Moscovici (1986), elas descrevem,

porém, fenômenos que não são somente psicológicos, mas também sociais. Assim, por

exemplo, o mecanismo, amplamente comprovado, da personalização, que leva os

indivíduos a responsabilizar mais as pessoas do que as circunstâncias (teoria da

atribuição), “não decorre de um erro de raciocínio” (característico do funcionamento da

mente do “homem comum”), e sim da conclusão lógica do “sistema de representações

comumente aceito” na sociedade ocidental (p. 59). De fato, “todo o nosso sistema

39 Moscovici (1986) se defende de ter abandonado o “trem cognitivista” (“há mais de vinte anos, defendouma psicologia social centrada sobre os fenômenos cognitivos e linguísticos”). Ele sublinha, porém, que oseu conceito de representação “era e continua sendo incompatível com uma concepção positivista daciência e uma abordagem behaviorista da realidade” (p. 34). Segundo ele, a evolução da psicologia socialpode ser dividida em três fases, caracterizadas, cada uma, por um conceito central: a das atitudes sociais, adas cognições sociais e a das representações sociais. “Aquilo que era periférico em uma fase, torna-secentral na seguinte” (p. 36). Embora afirme sua adesão ao “trem cognitivista”, o autor usa também otermo “cognitivista” para se referir à segunda fase e, de modo mais geral, à corrente positivista dapsicologia social, da qual se demarca.

40 A “Balance Theory” de Heider.

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social, desde a estrutura da linguagem até a da lei, conduz à busca de uma causa

pessoal” (p. 59). Ao responsabilizar preferencialmente o indivíduo e não as

circunstâncias que o envolvem, o sujeito não obedece apenas a um mecanismo

psicológico. Ele reproduz a lógica desse sistema.

Da mesma forma, a dissonância cognitiva e o princípio de equilíbrio podem ser

interpretados como manifestações, no indivíduo, da regra de não contradição41, que

permeia o conjunto do pensamento ocidental, mas não é encontrada em todas as

culturas42 (Moscovici, 1986).

Moscovici (1986) observa que, apesar desses limites, as teorias desenvolvidas pela

psicologia cognitivista tiveram o mérito de apontar a existência de certas regularidades

na percepção, pelo indivíduo, de seu meio. “Um dos resultados mais marcantes que

essas experiências nos forçaram a reconhecer é o fato de que a observação que nos

chega do mundo exterior é moldada não pela realidade neutra, mas sim por teorias e

preconceitos implícitos, e que estes, por sua vez, moldam esse mundo para nós” (p.52).

Para a psicologia cognitivista tradicional, essas teorias e esses preconceitos constituem

leis que regem o funcionamento da mente humana. No entanto, sublinha Moscovici

(1986), “quando penetramos um pouco abaixo da camada exterior, notamos logo que as

leis psicológicas são a versão condensada de uma sociologia” (p. 74). Longe de

descrever mecanismos universais, os fenômenos descritos pelas teorias da atribuição, da

dissonância cognitiva e do princípio de equilíbrio, evidenciam a presença, no

pensamento dos indivíduos, de elementos característicos de sua cultura.

Por trás das leis propostas pela psicologia cognitivista, existem, portanto, entidades mais

significativas43 do que elas, que “organizam” o pensamento do indivíduo, mas não

41 “règle de non-contradiction”.

42 E que, segundo observa Moscovici (1986), parece, por exemplo, “exercer um papel secundário naciência e no pensamento chinês” (p. 74).

43 Moscovici (1986) escreve: “As leis psicológicas e as regras da informação lógica não são o que

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podem ser descritas como regras que regem, de forma universal, seu funcionamento.

Essas entidades são as representações sociais. E é sobre o estudo delas que a pesquisa da

psicologia social deve, segundo Moscovici (1986, p. 53), se concentrar44.

O que caracteriza essas representações? Basicamente, dois aspectos: sua dimensão

coletiva e seu caráter simbólico.

A dimensão social

Em primeiro lugar, as representações são coletivas. Moscovici (1986) sublinha a

necessidade de “abandonar a hipótese individualista” (p. 61) adotada pela psicologia

cognitivista. “Na vida mental, além das simples reações dos nossos sentidos, tudo é

necessariamente social por natureza” (p. 62).

A fonte escolhida por Moscovici (Durkheim) manifesta, por si só, a intenção de

introduzir, no estudo do pensamento individual, uma concepção do social até então

ausente na psicologia. De fato, para Durkheim, “a representação coletiva não se reduz à

representação dos indivíduos que compõem a sociedade” (Herzlich, 1972, p. 303). Pelo

contrário, ela é “um dos meios pelos quais se afirma a primazia do social sobre o

individual” (Herzlich, 1972, p. 303). Produzida pelas “ações e reações trocadas pelas

consciências elementares das quais é feita a sociedade”, a representação social vai além

dessas consciências, ela as ultrapassa (Durkheim, apud Herzlich, 1972, p. 303). Nesse

sentido, como sublinha Herzlich (1972), a noção de representação “traduz a recusa de

considerar o pensamento social como uma simples modalidade, uma diferenciação do

pensamento individual” (p. 305).

determina a interpretação dos comportamentos, dos sentimentos e das palavras. É perfeitamente evidenteque elas exercem somente um papel menor. São as representações sociais que exercem o papel maior (...)”(p. 61).

44 Em 1976, no prólogo da segunda edição do livro “A representação social da psicanálise”, Moscovici jáargumentava que o estudo das representações sociais abria, para uma psicologia social em crise,perspectivas de desenvolvimento e de superação dos limites impostos pela sua tradição positivista.Explicitava suas intenções com as seguintes palavras: “queria redefinir os problemas e os conceitos dapsicologia social a partir desse fenômeno, insistindo sobre sua função simbólica e seu poder de construçãodo Real”. (Moscovici, 1978, p14).

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Qual é, então, a natureza desse pensamento social? Quanto a esse aspecto, Moscovici se

distancia de Durkheim. Para este último, as representações coletivas constituem

“categorias puramente lógicas e invariantes do espírito”. Para Moscovici, as

representações não são estáticas. Elas são “instrumentos heurísticos” de conhecimento,

“de caráter móvel e circulante, que se transformam com relativa facilidade” (Doise e

Palmonari, 1986, pp. 15 e 16). Não constituem, nesse sentido, uma via de mão única,

que transmite aos membros da sociedade categorias “prontas” e imutáveis. Geradas por

indivíduos “que as pensam e as produzem”, num contexto de “trocas, de atos de

cooperação” (Doise e Palmonari, 1986, p. 15), as representações são “conjuntos

dinâmicos” que produzem relações e não se limitam a reproduzi-las (Moscovici, 1978,

p. 50). São “realidades compartilhadas” (Doise e Palmonari, 1986, p. 15) e “plurais”

(Moscovici, 1978, p. 42), que, na vida dos grupos, “se deslocam, se combinam, entram

em relação umas com as outras e se excluem” (Doise e Palmonari, 1986, p. 15).

Diferentemente do mito e da ideologia, as representações não compoem “uma ciência

total, uma ‘filosofia’ única” (Moscovici, 1978, p. 44), nem “um sistema geral de metas”

(Moscovici, 1978, p. 77). Constituem, em relação a esses sistemas simbólicos, “sub-

sistemas que têm, no entanto, um funcionamento próprio” (Doise, 1986, p. 93).

As representações “ligam a vida abstrata do nosso saber e das nossas crenças à nossa

vida concreta de indivíduos sociais” (Doise e Palmonari, 1986, p. 16). Nesse sentido,

elas ocupam, conforme afirma Moscovici (1978), uma posição “mista”, situada “na

encruzilhada de uma série de conceitos sociológicos e de uma série de conceitos

psicológicos” (p. 41).

Doise (1986) observa que essa posição, nem sempre confortável, constitui uma

vantagem que deve ser preservada. Segundo ele, é preciso evitar, na tentativa de chegar

a uma definição comum, qualquer tentação reducionista. “Não se pode eliminar da

noção de representação social as referências aos múltiplos processos individuais,

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interindividuais, inter-grupos e ideológicos, que, freqüentemente, entram em

ressonância uns com os outros, e cujas dinâmicas conjuntas desembocam nessas

realidades vivas que são, em última instância, as representações sociais” (Doise, 1986,

p. 83). “Uma abordagem exclusivamente psicológica ou sociológica retiraria da

representação “sua função articuladora de diferentes sistemas explicativos” (p. 83).

De certa forma, portanto, a noção de representação pretende integrar duas dimensões

tradicionalmente separadas, a do individual e a do social. Vale a pena observar, a esse

respeito, que essa “vocação” está, por assim dizer, inscrita na origem e na história do

conceito. De fato, segundo Herzlich (1972), Durkheim delegou à psicologia social,

disciplina que, por definição, se encontra na intersecção do individual e do social, a

tarefa de estudar as representações e foi, com efeito, o psicólogo social Moscovici que

tirou a noção do esquecimento (Moscovici, 197845).

A dimensão simbólica

Em segundo lugar, as representações são carregadas de significado. Elas não se

reduzem a mecanismos abstratos suscetíveis de serem preenchidos por qualquer

conteúdo. Os processos de pensamento não devem, segundo Moscovici (1986), ser

vistos como elementos “gerais e invariantes”, que independem dos seus conteúdos,

“particulares e variáveis” (p. 73). Pelo contrário, afirma ele, é preciso “seguir o exemplo

da antropologia e da psicanálise” e “pôr fim à separação entre os processos e os

conteúdos do pensamento social” (pp. 75 e 72).

Herzlich (1972) observa, por isso, que o uso, pela psicologia, da noção de representação

“manifesta um esforço para reintroduzir, frente às pretensões de universalidade das

‘leis’ psicossociológicas, a diversidade dos objetos, das condições e das situações

sociais particulares” (p. 305).

45 “No âmbito do estudo da representação social da Psicanálise, era indispensável discutir um conceitoretirado há cerca de um século do horizonte das ciências sociais”. (Moscovici, 1978, p. 80).

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Essa preocupação retoma princípios consagrados pela antropologia. “A linha entre o

modo de representação e o conteúdo substantivo é tão intraçavel na análise cultural

como é na pintura”, afirma Geertz (1973, p. 26). Procurar entender as “formas” do

pensamento humano independentemente dos seus “conteúdos” é uma tarefa vã. Antes de

abordar o problema da generalização, é preciso mergulhar na diversidade das situações

concretas e particulares, naquilo que Geertz (1973) chama de “microscópico” (p. 31).

Assim, apesar da dificuldade de uso mencionada por Doise (1986), o conceito de

representação social adequa-se particularmente bem ao objetivo da pesquisa.

Diferentemente do de cognição, ou do de percepção, ele aborda a questão da relação do

indivíduo com seu meio a partir de uma visão que procura levar em conta sua dimensão

simbólica. O indivíduo não “filtra” a realidade, ele a interpreta. Para isso, ele mobiliza

elementos simbólicos, que são construídos coletivamente.

O conceito integra, também, a “vida concreta de indivíduos sociais” à “vida abstrata de

seu saber” (Doise e Palmonari, 1986, p. 16). As representações são construídas a partir

da experiência. Elas também participam da construção dessa experiência. Elas são

“conjuntos dinâmicos” que produzem relações e não se limitam a reproduzi-las

(Moscovici, 1978, p. 50).

A busca de lógicas de ação decorre dessa perspectiva. Os comportamentos dos

consumidores não são vistos como “respostas” e sim como ações, orientadas por

representações, que interpretam a relação comprador versus vendedor e participam de

sua construção. Essas ações podem, ou não, ter caráter estratégico, isto é, estar voltadas

para o alcance de determinados objetivos (buscar influenciar a relação em um ou outro

sentido, procurar manejá-la de modo a obter certos resultados). Independentemente

dessa característica, a hipótese é que elas obedecem a lógicas, que as organizam, e que

podem ser identificadas e descritas.

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3. METODOLOGIA DE PESQUISA

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3.1. PROBLEMA DE PESQUISA

Os conhecimentos de que dispomos atualmente sobre o fenômeno da insatisfação

privilegiam o estudo dos mecanismos psicológicos através dos quais ela é gerada e

processada, dando origem a determinados comportamentos, que são de fundamental

importância para a prática do marketing (queixa, abandono do fornecedor, divulgação da

experiência etc.). Esses comportamentos ocorrem, porém, em contextos culturais

específicos, que “organizam”, de determinada forma, as relações entre os diferentes

atores envolvidos nas atividades de produção e consumo, conferindo-lhes determinados

significados. Eles constituem, nesse sentido, “ações simbólicas” (Geertz, 1973, p. 20),

que participam da construção dessas relações e podem ser melhor compreendidas

através do estudo das interpretações que as orientam.

O presente estudo pretende investigar o fenômeno da insatisfação como resultado da

interpretação ativa, por parte do consumidor, de suas relações com os diferentes atores

envolvidos nas atividades de produção e consumo. Seu objetivo é o de identificar as

representações e lógicas de ação mobilizadas pelos consumidores em caso de conflito

decorrente de uma compra, concebendo-as não apenas como produtos da “psique” dos

indivíduos (Knights, Sturdy e Morgan, 1994), mas também como parte das “estruturas

significantes” (Geertz, 1973, p. 17), que organizam, em determinado contexto sócio-

cultural, as relações entre vendedores46 e compradores.

46 No sentido amplo do termo. Ver nota 7.

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3.2. PERGUNTAS DE PESQUISA

O estudo pretende investigar o discurso dos consumidores sobre suas experiências de

conflito com fornecedores, visando responder às seguintes questões:

-Quais são, entre os consumidores, as representações sociais das categorias “produtor”,

“vendedor”, “consumidor”, “órgãos públicos e privados de defesa do consumidor” e de

suas relações?

-É possível, a partir dessas representações, identificar uma ou várias estruturas (sistemas

de representações) que orientam o comportamento do consumidor em casos de conflito

com fornecedores ?

-Esses sistemas de representações dão origem a lógicas de ação, isto é a seqüências

organizadas e identificáveis de comportamentos ? Quais ?

-Até que ponto essas lógicas constituem estratégias, isto é, seqüências de ações voltadas

para o alcance de determinado objetivo ?

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3.3. MÉTODO DE PESQUISA

Basicamente, o problema de pesquisa poderia ser abordado através de dois métodos: o

método de caso e o de survey. O primeiro tem sua origem na abordagem interpretativa

desenvolvida pela antropologia do início do século XX. O segundo insere-se na corrente

positivista que se impôs nos Estados Unidos a partir do final dos anos 30. Por si só,

essas origens sugerem a adoção, para a presente pesquisa, do método de caso. É

importante, porém, voltar nossa atenção para o debate que, ao longo de cerca de seis

décadas, vem comparando os dois métodos e que, além de confrontá-los, tem

contribuído para a definição de suas características.

Os estudos de caso dominaram a sociologia norte-americana até o final da década de 30.

Inspirados em uma tradição antropológica, cuja origem pode ser situada nos trabalhos de

Bronislaw Malinovski47, deram origem a textos hoje clássicos48 e constituíram a maior

parte da produção científica da Escola de Chicago, líder incontestada da disciplina

durante as primeiras décadas do século.

Essencialmente, o método consistia em investigar os fenômenos sociais através do

estudo em profundidade de casos concretos. Deixando em segundo plano preocupações

como a da representatividade estatística, procurava identificar e descrever

47 Argonauts of the Western Pacific, 1922/1953.

48 The Polish Peasant in Europe and America, de Thomas e Znaniecki, 1919, e a obra de O. Lewis, entreoutros.

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detalhadamente exemplos do fenômeno em estudo. Assim, uma pequena comunidade

franco-canadense era selecionada para estudar a influência da etnicidade sobre a divisão

do trabalho no contexto de industrialização e urbanização do Canadá Francês 49 e as

correspondências de imigrantes com suas famílias de origem eram utilizadas para

investigar o fenômeno da imigração50.

De acordo com Hamel, Dufour e Fortin (1993), Robert Parks, um dos encarregados do

programa desenvolvido a partir de 1916 pelo Departamento de Sociologia da

Universidade de Chicago, instigava seus alunos a “ir além dos documentos oficiais e a

entrar em contato pessoal” com as comunidades pobres e marginais que eram objeto de

pesquisa do departamento (p.14). Recomendava também o uso de entrevistas abertas e

o de uma grande variedade de materiais, de âmbito público (jornais) e privado (cartas).

A preferência dos cientistas sociais da época por entrevistas abertas é também registrada

por Goode e Hatt (1979). O método de caso caracterizava-se, portanto, pelo uso de

múltiplas fontes de dados, com especial ênfase em dados qualitativos, coletados

diretamente junto aos indivíduos que faziam parte das populações estudadas.

Segundo Hamel, Dufour e Fortin (1993), essa abordagem passou, a partir do final da

década de 30, a sofrer pesadas críticas, expressadas principalmente pelos sociólogos da

Columbia University. De acordo com essa segunda corrente, os procedimentos adotados

pelos sociólogos da Escola de Chicago não eram científicamente corretos. Ao invés de

selecionar informantes e materiais julgados significativos, era preciso construir uma

amostra representativa da população em estudo.

Mas esta não era a única objeção. Segundo seus críticos, o método de caso também

incorria em erros ao basear-se em relatos individuais. A subjetividade dos informantes

comprometia a validade e a confiabilidade dos dados obtidos. A preferência dada ao

contato pessoal no processo de coleta de dados ampliava ainda os efeitos dessa

49 “Saint-Denis, a French-Canadian Parish”, Miner, H., 1939, estudo analisado por Hamel, Dufour eFortin (1993).

50 “The Polish Peasant in Europe and America”, Thomas, W.I. e Znaniecki, F., 1919.

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distorção. Contaminado pelo ponto de vista de seus informantes, o pesquisador tendia a

abandonar sua neutralidade científica. Ao penetrar no meio investigado, ao interagir

com testemunhas inevitavelmente envolvidas nos fatos a serem estudados, o adepto do

método de caso fugia às regras elementares da prática da atividade científica. Perdia a

distância necessária à elaboração de uma análise objetiva da realidade em estudo e

acabava tomando por trabalho científico uma coleta de impressões pessoais, efetuada

em condições suspeitas (fora de controle e, portanto, não neutras), e interpretada a partir

de critérios construídos de modo arbitrário e subjetivo.

Essas linha de críticas perdurou por várias décadas. Ainda em 1975, Goode e Hatt

escreviam: “(o estudo de caso) é freqüentemente considerado como um tipo de

abordagem intuitiva, derivada da observação participante e usando toda sorte de

documentos pessoais como diários, cartas, autobiografias etc., sem um plano de

amostragem adequado ou verificação de vícios e distorções resultantes de pontos de

vista pessoais sobre a realidade social” (Goode e Hatt, 1979, p. 421).

Hamel, Dufour e Fortin (1993) observam que essa argumentação, envenenada por

motivações de ordem político-científica, não fazia justiça à qualidade, hoje reconhecida,

dos trabalhos produzidos pelos sociólogos da escola de Chicago51. Independentemente

dos eventuais excessos dessas acusações, o que deve ser notado é que a crítica ao

método de caso não tocava apenas no problema da abordagem do pesquisador. Por trás

deste, em última instância, a causa da falta de objetividade era o homem comum, com

sua subjetividade e sua propensão à interpretação.

De acordo com a visão de seus críticos, os estudos de caso constituíam uma mera versão

da visão do senso comum. Careciam de rigor e, mais grave, baseavam-se “no universo

dos sentidos intrínseco à experiência pessoal dos atores sociais” para construir uma

teoria científica (Hamel, Dufour e Fortin, 1993, p.20). Esse universo, o do senso

comum, era, com efeito, “considerado suspeito na produção de teorias sociológicas”,

51 Que, inclusive, abriam mão de múltiplas fontes de dados, sem deixar de lado os estatísticos, tãoprezados pelos sociológos da Columbia University.

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pois baseava-se “em elementos empíricos e falsas verdades” que comprometiam “seu

valor e seu rigor” (Hamel. Dufour e Fortin, 1993, p.20).

Para combater os efeitos desse filtro deformante da realidade, que regia o discurso dos

pesquisados e contaminava o dos cientistas, era preciso estabelecer procedimentos

rigorosos, capazes de reduzir ao mínimo possível a interferência dessas interpretações.

Investigados e investigadores deveriam obedecer a regras precisas, devidamente

padronizadas e controladas. Essas regras seriam transmitidas através de formulários

estruturados, que deviam ser aplicados “da mesma maneira, na mesma ordem, sem

nenhuma modificação de um informante para outro” de modo a permitir “a análise

comparativa entre unidades e subgrupos” (Goode e Hatt, 1979, p. 239)52. Nascia o

método de survey, que dominou a sociologia norte-americana até o início da década de

60.

Como observam Hamel e seus colaboradores (1993), a abordagem de survey alterou

drasticamente o estatuto dos dados colhidos em campo, que, de fonte principal do

trabalho de elaboração teórica, transformaram-se em elementos “secundários ou triviais”

radicalmente distantes da “Teoria Sociológica”. Traduzidas em números, submetidas a

cálculos, transformadas em modelos matemáticos, as respostas do homem comum às

indagações dos cientistas tornaram-se objeto de seu trabalho. Elementos indispensáveis

para a confirmação das deduções da atividade científica, deixaram de constituir uma

base legítima para a indução de hipóteses. Podiam reforçar ou enfraquecer as afirmações

de uma teoria, mas não podiam, nem deviam, ter qualquer influência na sua

elaboração53.

De modo geral, segundo Goldman e McDonald (1987), a técnica de survey conseguiu

melhorar significativamente a confiabilidade dos instrumentos utilizados em sociologia:

52 Goode, W.J. e Hatt, P.K. (1979) escrevem: “O desenvolvimento de formulários muito estruturados foiconsiderado uma possível solução para o problema da padronização” (p. 239).

53 Karl Popper, 1962, afirma que “a indução, isto é, a inferência baseada em muitas observações, é ummito” que, ao negar a subjetividade do cientista, reforça sua interferência no processo de construção doconhecimento.

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submetidas a testes exaustivos, ferramentas como questionários de opinião, escalas de

atitudes e outras tornaram-se capazes de fornecer “a mesma resposta,

independentemente de como e quando eram aplicados” (Kirk e Miller, 1993, p. 19).

Goldman e McDonald (1987) observam, porém, que o método pouco pôde fazer para

aprimorar a validade destes instrumentos, isto é, para averiguar se mediam, de fato,

aquilo que pretendiam medir.

Esse limite está, por sua vez, estreitamente relacionado ao próprio processo de

padronização, que, ao instrumentalizar com rigidez a relação entre pesquisador e

pesquisado, limita também suas possibilidades. Goode e Hatt (1979) observam que “(...)

para se obter a padronização, a profundidade era geralmente sacrificada”54 (p. 239). Mas

a mudança de procedimento não altera apenas o nível em que opera a investigação (se é

que essa distinção faz sentido em se tratando de pesquisa social). O formulário

estruturado impõe aos dados determinado formato construído pelo pesquisador. Esse

formato pode não encontrar correspondências no universo do respondente, que se vê,

porém, compelido a organizar seu discurso dentro dos moldes propostos pelo

formulário.

Thiollent (1985) afirma que o questionário impõe ao entrevistado “uma estruturação dos

problemas que não é a sua”, favorecendo “a formulação de respostas superficiais ou

inadequadas” e induzindo assim o pesquisador “em interpretações erradas que, regra

geral, concordam com a sua visão do mundo ou com a de quem encomendou a

pesquisa” (p. 48).

Por maiores que sejam os cuidados no sentido de evitar que isso ocorra, não é possível,

utilizando exclusivamente formulários padronizados, determinar se e até que ponto as

respostas obtidas são uma manifestação do fenômeno em estudo ou um efeito do próprio

questionário. Ao computar uma opção do tipo “discordo parcialmente” da afirmação

“x”, não sabemos se o entrevistado entendeu a afirmação, se a considerou séria ou

levianamente, achou-a exagerada, agressiva ou dramática demais, ambígua, complicada

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ou comprometedora. Ignoramos, em suma, o sentido da pergunta para o respondente e

reduzimos, ademais, a possibilidade de recorrer ao contexto (habitualmente não

registrado) para melhor apreendê-lo.

Rodrigues (1978, p.33) relata, por exemplo, dificuldades no uso de questionário até

mesmo para a obtenção de dados à primeira vista objetivos e simples, tais como o

número de irmãos do entrevistado. Em decorrência de observações desse tipo, Goldman

e Mac Donald (1987) afirmam que entrevistas qualitativas “produzem, em última

análise, dados de maior validade do que questionários estruturados”. Ao permitir uma

interação mais flexível entre pesquisador e pesquisado, favorecem o surgimento de

elementos novos ou imprevistos e a apreensão de aspectos ambíguos ou ambivalentes.

Por outro lado, como observam Hamel, Dufour e Fortin (1993), a padronização não

resolve, por si só, o problema da interpretação do respondente. Os sentidos atribuídos

pelos atores às suas experiências “podem aparecer em um relato autobiográfico, tanto

quanto em uma carta ou nas suas respostas a um questionário” (p.31). Em última

instância, a tentativa de eliminar sua influência é, portanto, ilusória. Um caminho mais

promissor consistiria em tentar compreender essa influência e, para isso, é preciso

recorrer a técnicas qualitativas. Estas últimas, ao estimular a livre expressão dos

entrevistados, permitem o acesso às interpretações dos respondentes. Essas

interpretações podem auxiliar o pesquisador na construção de suas hipóteses, na coleta e

no tratamento de dados, fornecendo-lhe elementos para a formulação de perguntas e

para a interpretação das respostas obtidas.

Estes argumentos contribuíram para que o método de caso e as técnicas qualitativas de

modo geral, praticamente abandonados durante cerca de duas décadas, resurgissem no

início da década de 60, em disciplinas tão diversas como a sociologia, a história, a

administração e o marketing55. Nestas duas últimas disciplinas, o estudo de caso passou

54 Grifo dos autores.

55 É interessante notar a observação de Bertaux (1980) a respeito do retorno destes métodos. Segundo ele,o fim da hegemonia dos surveys deveu-se não às críticas “pertinentes e renovadas” de intelectuaisinteressados no tema, mas sim aos movimentos sociais do final da década de 60, que, “através de seu

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a ser usado, principalmente, em estudos exploratórios. Utilizado para construir

hipóteses, descobrir, selecionar e definir variáveis, e apontar possíveis relações entre

elas, tornou-se uma espécie de subsídio, de instrumento auxiliar, no planejamento de

estudos quantitativos. Na área de ciências sociais, seu uso, tradicionalmente restrito ao

estudo de aspectos simbólicos da realidade social, diversificou-se (ver Bertaux, 1980).

Uma corrente da sociologia (a que reintroduziu nas ciências sociais européias o uso de

histórias de vida, representada, entre outros, por Bertaux, 1980 e Ferrarotti, 1980 e

1983) começou a utilizá-lo para investigar elementos estruturais dessa realidade

(estruturas de produção, formação de classes sociais, modos de vida em determinados

meios sociais etc., ver Bertaux, 1980, p. 203).

Conforme afirmam Goode e Hatt (1979), o estudo de caso “tradicionalmente foi

considerado como um tipo de análise qualitativa” (p. 420) e é, ainda hoje, associado

preferencialmente a esse tipo de investigação. Yin (1988) afirma, porém, que o método

não deve ser confundido com o uso de pesquisa qualitativa. Segundo ele, o estudo de

caso não exige um contato direto com a realidade, podendo ser realizado a partir de

evidências exclusivamente quantitativas. Embora a distinção proposta seja, sem dúvida,

útil, a argumentação usada minimiza a importância de dois princípios fundamentais na

história da elaboração do método.

Yin (1988) afirma que a essência da pesquisa qualitativa reside em duas condições, não

necessariamente compartilhadas pelo estudo de caso: a observação próxima e detalhada

do mundo natural pelo investigador e a tentativa de evitar qualquer comprometimento

prévio com algum modelo teórico. Reconhecemos nestas duas condições duas

exigências essenciais para a prática da etnografia: a de se aproximar do objeto de estudo,

de “conversar” com o outro (Geertz, 1973), e a de se distanciar do ponto de vista do

“eu” para realizar essa tarefa (Rocha, 1984). A eliminação dessas exigências tende a

afastar o método de caso da teoria que está na sua origem, privando-o de características

estreitamente associadas à sua concepção.

impacto ideológico massivo, conseguiram abalar suas bases”. Bertaux acrescenta que a crítica foi,inclusive, demasiado longe, pois “o objeto a ser desconstruído era muito menos o survey research ou ofuncionalismo, todas formas úteis da abordagem sociológica, do que o monopólio de cientificidade que,

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Esse distanciamento manifesta-se também na análise, feita por Yin (1988), do problema

da generalização dos achados. Como lembra o autor, em se tratando de estudos de casos,

“a generalização não é automática” (p.44). Essa característica está na origem das

observações, já mencionadas, sobre a falta de representatividade do método de caso. Ao

responder a estas críticas, Yin (1988) escreve: “Uma teoria deve ser testada através de

replicações dos seus achados em um segundo ou mesmo terceiro ambiente, onde a teoria

tenha especificado que os mesmos resultados devem ocorrer” (p. 44). Segundo ele, “essa

lógica de replicação é a mesma que está por trás do uso de experimentos (e permite que

os cientistas generalizem de um experimento ao outro)56” (pp. 44 e 45). No entanto,

como observam Geertz (1973) e o próprio Yin (1988, p. 17), o estudo de caso distingue-

se do experimento por uma característica fundamental: não existe controle sobre as

variáveis estudadas. Qual é, então, a natureza dos achados que devem ser submetidos ao

crivo da replicação?

A descrição proposta por Goode e Hatt (1979) é mais esclarecedora. Segundo estes

autores, é preciso distinguir “a abordagem do estudo de caso, um método de olhar para

a realidade social, das técnicas específicas de pesquisa que a acompanharam em

pesquisas da geração passada”57 (p. 421). Para Goode e Hatt (1979), o estudo de caso é

“um meio de organizar os dados sociais preservando o caráter unitário do objeto social

estudado”58 (p. 422). Diferentemente da pesquisa quantitativa (“survey”), na qual a

pessoa (ou comunidade) estudada “desaparece da análise” após a codificação e

tabulação de seus dados, ele não focaliza “traços” (p. 425), mas sim “unidades” como

“a história de vida do indivíduo, a história de um grupo, ou um processo social

delimitado”(p. 432). Ao invés de registrar as características “como dois casos separados

no tempo para uma comparação antes e depois”, ele tenta, “quer na fase de obtenção dos

dados ou na de análise”, preservar essas unidades, enfatizando a compreensão de

indevidamente, se atribuíam.” (p. 199).

56 Grifos do autor.

57 Grifos dos autores.

58 Grifos dos autores.

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processos e mudanças e não a associação de “traços” (pp. 225 e 226). Isso não significa

que o método não deva abrir mão, por exemplo, de técnicas estatísticas, mas sim que

estas possam ser usadas dentro dessa perspectiva.

A preocupação em preservar a unidade do objeto social deriva de uma opção

metodológica que escolhe esta unidade como ponto de partida da construção do

conhecimento social. Nesse sentido, o método de caso retoma um princípio básico da

descrição etnográfica, o seu caráter “microscópico” (Geertz, 1973, p.31). Segundo

Geertz (1973), este caráter “não significa que não haja interpretações antropológicas em

grande escala, de sociedades inteiras, civilizações, acontecimentos mundiais e assim por

diante”, mas sim “que o antropólogo aborda caracteristicamente tais interpretações mais

amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de

assuntos extremamente pequenos” (p. 31).

Essa escolha não deriva do pressuposto - falso - de que pequenas comunidades possam,

em escala reduzida, representar civilizações inteiras (“a falácia Jonesville-é-a

América”)59 ou constituir “laboratórios naturais” (“que espécie de laboratório é esse

onde nenhum dos parâmetros é manipulável”). Ela se baseia na “compreensão de que as

ações sociais são comentários a respeito de mais do que elas mesmas” e de que sua

interpretação pode gerar um arcabouço teórico “capaz de continuar a render

interpretações defensáveis à medida que surgem novos fenômenos sociais” (Geertz,

1973, pp. 32 a 3760). Dentro dessa perspectiva, a tentativa de interpretar a vida de um

indivíduo ou a história de uma empresa não pretende elucidar a vida de todos os

indivíduos, nem a história de todas as empresas. Visa apenas enriquecer o “vocabulário”

do qual dispomos para falar sobre indivíduos e empresas. “ (...) O dever da teoria é

fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer

sobre ele mesmo - isto é, sobre o papel da cultura na vida humana” (Geertz, 1973, p.

38).

59 Yin (1988) critica também esse pressuposto, tomando porém por base um modelo experimental deciência: “os cientistas não pretendem selecionar experimentos ‘representativos’”. (p. 44).

60 Grifo do autor.

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A teoria torna-se “veículo para examinar outros casos” (Yin, 1988, p. 44), não porque

estes casos constituem replicações que permitem a generalização de achados anteriores,

mas sim porque ela contribui para o “refinamento” de sua compreensão. “Qualquer

generalidade que (a teoria) consegue alcançar surge da delicadeza de suas distinções,

não da amplidão de suas abstrações”. “Os estudos constroem-se sobre outros estudos,

não no sentido de que retomam onde outros deixaram, mas no sentido de que, melhor

informados e melhor conceitualizados, eles mergulham mais profundamente nas

mesmas coisas” (Geertz, 1973, p. 35).

Nesse sentido, o método de caso está intimamente ligado à abordagem da antropologia,

que, não por acaso, está na sua origem. Dentro da perspectiva de uma “ciência

interpretativa”, em busca de significado e não de leis (Geertz, 1973, p. 15), “cujo

progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que por um refinamento

de debate” (Geertz, 1973, p. 39), o estudo de caso torna-se um instrumento autônomo,

capaz, por si só, de contribuir para esse progresso.

A preservação da unidade estudada, além de legítima, torna-se indispensável. Ela é o

único meio possível para ter acesso àquilo que “o ato simbólico tem a dizer sobre ele

mesmo”. Ao invés de “dissolver” as ações sociais em “um grupo de traços tabulados

individualmente” (Goode e Hatt, 1979, p. 424), o esforço de pesquisa consiste em tentar

apreender o seu sentido através de uma compreensão em profundidade das

interpretações que estão na sua origem.

Hamel, Dufour e Fortin (1993) afirmam, retomando a proposta de Lévi-Strauss, que o

objetivo das ciências sociais é o de “explicar as experiências diretas dos atores sociais a

partir da perspectiva das relações sociais que constituem tal experiência” (p.32).

Acrescentam, em seguida, que “descobrir as propriedades destas relações sociais requer

que o objeto que poderia revelá-las seja descrito da forma como é definido dentro do

contexto dos significados diretos que aparecem nos materiais empíricos selecionados”,

isto é, “dentro do contexto verdadeiro das experiências dos atores sociais e dos

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significados que estes atores atribuem diretamente a essas experiências” (pp. 32 e 33). O

método de caso atende a essas exigências. Como “estudo descritivo par excellence e em

profundidade (Hamel, Dufour e Fortin, 1993, p. 33), ele, além de reconhecer que os

significados atribuídos pelos atores sociais à sua experiência estão inevitavelmente

presentes no “leque de materiais empíricos utilizados por qualquer estudo sociológico”,

propõe abordá-los como parte relevante deste material (Hamel, Dufour e Fortin, 1993, p.

32).

Bertaux (1980), ao defender o uso de estudos de caso baseados em relatos individuais

(histórias de vida) para a investigação de fenômenos sociais, afirma também:

“sobretudo, estes dois ‘níveis’ do sócio-estrutural e do sócio-simbólico são somente

duas faces de um mesmo real, o social; por isso, qualquer estudo aprofundado de um

conjunto de relações sociais vê-se levado a considerá-los simultaneamente” 61 (p. 204).

Reconhecemos, neste argumento, a posição defendida por Godelier (1984) a respeito da

natureza material e ideal da realidade social. Diferentemente dos surveys, o método de

caso, ao preservar a unidade do objeto de estudo, evita a dissociação dessas duas

dimensões. Esta é sua principal vantagem. Implica, porém, a inclusão, na construção da

problemática de pesquisa e na concepção dos instrumentos de coleta de dados, do

princípio interpretativo que está na base da abordagem antropológica. Privado desse

ponto de partida, o método de caso perde a característica que o sustenta e faz a

especificidade de sua contribuição para a investigação de fenômenos sociais.

Como vimos, as disciplinas de administração e marketing têm usado o método de caso

preferencialmente em estudos exploratórios. Ao contrário de autores como Boyd e

Westfall (1984), Yin (1988) desaconselha o uso da hierarquia exploração/método de

caso, descrição/pesquisa quantitativa, explicação/experimento, para a escolha do método

de pesquisa. Segundo ele, a estratégia de pesquisa deve ser escolhida em função do tipo

61 Bertaux (1980), ao discutir essa questão, evoca o estudo que realizou sobre a indústria de panificaçãona França e observa que seu objetivo inicial de investigar as relações de produção nessa área acaboulevando-o a interrogar-se sobre os”valores e projetos de vida” dos padeiros (p. 204). Menciona, também,trabalhos que trilharam o caminho inverso, indo da pesquisa de aspectos simbólicos à investigação deelementos materiais da realidade social.

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de pergunta de pesquisa, do grau de controle do pesquisador sobre os comportamentos

investigados e da orientação para eventos atuais ou passados. O método de caso seria,

então, adequado para perguntas de pesquisa do tipo “como ou por que”, que visam

investigar eventos contemporâneos, e não requerem controle dos comportamentos em

observação.

A natureza da pergunta não se encerra, porém, na sua formulação e nos limites impostos

pelo contexto no qual ela é colocada. Por trás destes aspectos, existem, como vimos,

escolhas epistemológicas e ontológicas, que envolvem outras definições. Método de

caso, pesquisa quantitativa e experimentação baseiam-se em pressupostos distintos, nem

sempre compatíveis. Esta é a razão da permanência, na área das ciências sociais, da

polêmica que opôs a escola de Chicago aos sociólogos da Columbia University62. O que

está em jogo não é apenas a maneira escolhida para buscar respostas a determinadas

perguntas, mas sim a concepção da natureza do objeto a ser investigado e da relação que

pode e deve ser estabelecida com esse objeto para apreendê-lo.

A pergunta de pesquisa que orienta esse estudo é do tipo “como e por que?” Ela visa

investigar eventos contemporâneos e comportamentos que dificilmente poderiam ser

controlados. Porém, antes dessas características, ela tem sua origem em uma concepção

específica do fenômeno a ser estudado.

Retomando a idéia proposta por Knights, Sturdy e Morgan (1994) de que as categorias

com as quais trabalha a disciplina de marketing devem ser tratadas não como produtos

autônomos do psique dos indivíduos e sim como resultados da relação produtor versus

consumidor, a pesquisa se propõe a investigar a insatisfação do consumidor como uma

experiência individual, particularmente significativa, desta relação. Assim, os episódios

de insatisfação serão abordados como “casos”, em uma perspectiva interpretativa,

norteada pelo princípio da busca de uma “descrição densa” (Geertz, 1973) dos

62 E que vem sendo abordada com mais prudência pela disciplina de marketing. Ver na nota 29, oscomentários de Buttle (1994), que observa que, enquanto outras ciências sociais, como a psicologia, asociologia, a antropologia e a comunicação, passaram, desde o final da década de 70, por uma rupturaparadigmática, isto não ocorreu na disciplina de marketing.

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comportamentos. A idéia que orienta essa escolha é a de que a investigação em

profundidade desses episódios constitui, por mais “microscópicos” que eles sejam, uma

via possível de acesso a um melhor conhecimento da dinâmica das relações produtor

versus consumidor.

3.4. COLETA DE DADOS

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O uso de casos centrados na experiência individual tem sido extensamente discutido na

literatura dedicada à técnica de histórias de vida (ver, entre outros, Denzin, 1970;

Bertaux, 1980; Ferrarotti, 1983). Baseada em relatos de itinerários pessoais ou

familiares, esta técnica vem sendo utilizado por cientistas sociais desde as origens do

estudo de caso, como instrumento principal ou auxiliar na investigação de fenômenos

sociais. Mas como investigar “casos” de insatisfação de consumidores?

Os meios aos quais temos acesso são os relatos e registros das duas partes. Sabemos,

entretanto, que um percentual significativo dos consumidores insatisfeitos não chega a

comunicar a situação ao fornecedor, abandonando-o sem maiores explicações (ver, entre

outros, Blodgett, Wakefield e Barnes, 1995). Aliada ao auxílio que constituem os

registros de SACs, essa realidade tem inibido a produção de estudos que tomam por

ponto de partida o consumidor. De fato, esta escolha, além de dificultar a localização

dos informantes, prejudica o acesso a outras fontes de informações. O relato do

consumidor torna-se, assim, o único dado a partir do qual a análise pode ser efetuada.

Essa dificuldade remete à distinção proposta por Denzin (1970) e mencionada por

Bertaux (1980) entre “life history” e “life story”. Enquanto a segunda designa a

“história de uma vida tal como é contada pela pessoa que a viveu”, a primeira engloba,

além desta, “toda sorte de outros documentos: por exemplo, dossiê médico, judiciário,

testes psicológicos, testemunho dos familiares etc.” (Bertaux, 1980, p. 200). Ao

contrário de Denzin (1970), Bertaux (1980) defende, como Ferrarotti (1983), a posição

de que o relato da experiência constitui, independentemente da “convergência de fontes

sobre uma pessoa que, de qualquer modo, não poderia de modo algum constituir

enquanto tal um objeto sociológico” (Bertaux, 1980, p. 201), um material autônomo,

suficientemente rico para contribuir para um melhor conhecimento da realidade social.

A narração autobiográfica não é somente uma versão subjetiva da realidade, ela é a

“totalização ativa de um contexto social” (Ferrarotti, 1983, p. 50), a síntese individual

de um conjunto de relações. Como tal, ela constitui uma “via de acesso - freqüentemente

possível - ao conhecimento científico de um sistema social” (Ferrarotti, 1983, p. 51).

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Essencialmente, a técnica de histórias de vida se baseia no estudo de relatos individuais,

habitualmente centrados na história profissional e familiar dos entrevistados. Na maior

parte dos casos, os relatos são feitos livremente, com um mínimo de intervenções por

parte do pesquisador63. Esse tipo de entrevista permite que o informante ordene os fatos

ao seu modo, expressando assim a sua visão dos acontecimentos. Ao invés de impor

uma estrutura previamente definida no questionário, o pesquisador pode ter acesso à

lógica própria do entrevistado. A expressão desta lógica é, por sua vez, favorecida pela

familiaridade do tema proposto (a própria experiência do respondente) e pela sua

evidente relevância. Trata-se de investigar, junto às pessoas que viveram determinados

acontecimentos, a natureza destes acontecimentos. Esse objetivo, além de favorecer a

adesão do entrevistado, oferece a vantagem de ser facilmente compreendido e de

fornecer ao discurso uma base “objetiva”. Ao invés de solicitar opiniões a respeito de

assuntos que podem não refletir seus interesses, pede-se ao informante que narre sua

experiência, deixando-o livre para expressar, ao longo do seu relato, as idéias associadas

a esta experiência.

No nosso caso, o ponto de partida da história a ser contada é o de um episódio de

compra mal sucedida. Os relatos foram colhidos com a ajuda de um roteiro de

entrevista, isto é, de uma lista de tópicos a serem abordados, não necessariamente

exaustiva, usada mais como guia de um diálogo, como ponto de partida, do que como

instrumento padronizado de coleta de dados.

O roteiro, além de permitir que o entrevistado estruture ele mesmo seu relato, propicia

maior flexibilidade na interação pesquisador versus pesquisado, favorecendo, como

vimos anteriormente (Goldman e Mac Donald, 1987), a apreensão de aspectos ambígüos

e de elementos novos (isto é, não identificados antes da realização da pesquisa). Essa

característica é, em vista do assunto abordado, especialmente desejável, já que a compra

mal sucedida desperta, com freqüência, sentimentos ambivalentes (ver, por exemplo, o

63 Bertaux (1980) sugere, para explorar da melhor forma possível a entrevista biográfica, “umacombinação de escuta atenta e de questionamento”. Se o objeto for do tipo “relações sócio-simbólicas”,

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fenômeno da dissonância cognitiva) e que dispomos de antemão de poucas informações

sobre as reações do público estudado frente a esse tipo de situação.

3.5. INFORMANTES

ele indica a atitude não diretiva como sendo a mais recomendável (p. 209).

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3.5.1. ESCOLHA DOS INFORMANTES

A pesquisa investiga casos de insatisfação decorrentes da compra, por pessoas físicas,

de algum produto. Para restringir o leque de problemas abordados, os serviços não

foram incluídos nesse projeto, sendo estudados apenas enquanto parte do conceito

ampliado de produto proposto pela teoria contemporânea de marketing (ver, entre

outros, Levitt, 1995 e Kotler, 1994).

Foram entrevistados moradores do Rio de Janeiro, de diferentes classes sociais, que

tivessem passado, recentemente, por uma experiência de insatisfação decorrente da

compra de algum produto.

Inicialmente, havíamos estabelecido um limite de 12 meses para a data da compra.

Deparamo-nos, no entanto, desde as primeiras entrevistas, com casos que envolviam

prazos maiores: consumidores que, lutavam, há mais de um ano, na justiça, ou que

procuravam, mais de um ano após a compra, encontrar uma solução junto aos serviços

de assistência técnica. O critério acabou sendo, assim, o do envolvimento atual do

consumidor com algum problema decorrente de uma compra, independentemente da

data em que esta tinha sido efetuada.

A composição e o tamanho da amostra obedeceram ao princípio de “saturação”,

recomendado por diversos autores de estudos baseados em histórias de vida. “A

saturação é o fenômeno pelo qual, passado um certo número de de entrevistas

(biográficas ou não), o pesquisador ou a equipe têm a sensação de não aprender nada de

novo, ao menos no que diz respeito ao objeto sociológico da pesquisa.” (Bertaux, 1976,

apud Bertaux 1980, p. 205). “A saturação é um processo que ocorre não no plano da

observação, mas no da representação que a equipe de pesquisa constrói aos poucos de

seu objeto de investigação (...)” (Bertaux, 1980, p. 208). A adoção desse critério

pressupõe, portanto, que a coleta e a análise dos dados sejam efetuadas em paralelo.

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Em decorrência do tema da pesquisa, os entrevistados tiveram que ser localizados

através da indicação de conhecidos. Procuramos encontrar consumidores insatisfeitos,

que tivessem, ou não, empreendido algum tipo de ação pública ou privada. Conforme

recomendam os autores que utilizam o princípio de saturação (Bertaux, 1980),

procuramos, ao máximo, diversificar as fontes, recorrendo à ajuda de funcionários de

diversas empresas e órgãos públicos, de membros de associações, igrejas etc. No total,

foram contatadas cerca de quinze organizações.

A partir das indicações dessa rede de informantes, foram realizadas, entre maio de 1998

e abril de 1999, 33 entrevistas. Como veremos na análise dos dados, o fenômeno de

repetição, que caracteriza a ocorrência da saturação, manifestou-se claramente,

sinalizando o esgotamento das lógicas em estudo.

3.5.2. DESCRIÇÃO DOS INFORMANTES

As 33 entrevistas foram realizadas com moradores da região urbana que cerca o

município do Rio de Janeiro. Os entrevistados distribuem-se da seguinte forma:

Distribuição dos informantes segundo sexo

Homens: 11 (33,3%)

Mulheres: 22 (66,7%)

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Distribuição dos informantes segundo faixa etária:

Até 30 anos: 6 (18,2%)

De 31 a 40: 12 (36,4%)

De 41 a 50: 8 (24,2%)

De 51 a 60: 3 (9,1%)

Acima de 61: 4 (12,1%)

Distribuição dos informantes segundo local de residência

Zona Sul: 15 (45,5%)

Outros: 18 (54,4%)

Os bairros da Zona Sul compreendem: Copacabana, Ipanema, Leblon, Barra, Urca,

Botafogo, Jardim Botânico, Laranjeiras.

Os demais incluem: Ilha do Governador, Tijuca, Leopoldina, Madureira, Olaria,

Bonsucesso, Cascadura, Deodoro, Meier, São Gonçalo, Jacarepaguá.

Distribuição dos informantes segundo classe sócio-econômica

O critério adotado para a classificação social dos entrevistados foi o proposto pela

Associação Brasileira de Anunciantes e pela Associação Brasileira de Institutos de

Pesquisa de Mercado (ABA/ABIPEME), baseado no grau de instrução do chefe de

família e na posse de determinados bens. De acordo com esse critério, a distribuição dos

entrevistados é a seguinte:

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CLASSE A1: 1 (3,0%)

CLASSE A2: 12 (36,4%)

CLASSE B1: 7 (21,2%)

CLASSE B2: 4 (12,1%)

CLASSE C: 4 (12,1%)

CLASSE D: 5 (15,1%)

TOTAL: 33

Veremos, ao longo da análise dos dados, que, ao menos em termos de discurso, as

classes A1, A2 e B1 se diferenciam das demais (B2, C e D). Quando há, no relato,

diferenças relacionadas à classe sócio-econômica, é possível, na maioria dos casos,

dividir os entrevistados entre estes dois grupos, que representam, respectivamente,

60,6% e 39, 4% do número total de informantes.

Distribuição dos informantes segundo atividade profissional

Qualificação alta (executivo de nível gerencial/professor universitário): 5 (15,1%)

Qualificação média-alta (executivo sem cargo gerencial: analista, engenheiro): 9

(27,3%)

Qualificação média-baixa (secretárias e auxiliares administrativos): 4 (12,1%)

Qualificação baixa (motorista, garagista, operário): 4 (12,1%)

Sem qualificação (auxiliar de serviços gerais, faxineiro, copeira, empregada doméstica):

6 (18,2%)

Inativos (estudantes, aposentados, dona de casa): 5 (15,1%)

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Distribuição dos informantes segundo grau de instrução

Curso superior completo: 22 (66,7%)

Até o segundo grau/superior incompleto: 11 (33,3%)

Os entrevistados que não têm curso superior se distribuem da seguinte forma:

Segundo grau completo/superior incompleto: 2

Ginásio completo/Segundo grau incompleto: 2

Ginásio incompleto/primário completo: 4

Primário incompleto: 3

O conjunto de informantes privilegia algumas categorias: mulheres, adultos de mais de

30 anos, pessoas de classe A e B, pessoas que têm formação superior completa. Ainda

assim, ele cobre um leque bastante amplo de idade (dos 22 aos 70 anos), de classe social

(de A a D), de formação (de primário incompleto a superior completo) e de atividade

profissional (de faxineiro a executivo).

Os produtos que despertaram a insatisfação dos consumidores entrevistados são

extremamente diversos. Eles vão da caixa de leite ao carro zero quilômetro, passando

por móveis, fraldas, iogurtes, eletrodomésticos de pequeno e grande porte etc. Como

esperávamos, a maior parte dos entrevistados acabou relatando mais de um caso, o que

permitiu que obtivéssemos um leque bastante amplo de situações.

3.6. ANÁLISE DOS DADOS

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A análise dos dados obedeceu aos princípios teóricos expostos por Geertz (1973) e ao

quadro hermenêutico de interpretação de histórias de consumidores descrito por

Thompson (1997).

Thompson sugere duas etapas distintas, ambas baseadas em um “vaivém entre a parte e

o todo”. A primeira, centrada em uma única entrevista, começa com uma leitura atenta

do texto, voltada para a apreensão do conjunto da narração. Em seguida, a atenção deve

se voltar para o desenvolvimento de uma compreensão integrada dos múltiplos sentidos

transmitidos pelo texto, obtida através de sucessivas releituras. Durante essa primeira

fase, a interpretação focaliza a história pessoal do entrevistado. Buscam-se estruturas

simbólicas que organizam a narração da experiência individual. Em um segundo

momento, a análise torna-se “intertextual”. Procuram-se “padrões” ou “diferenças” entre

as diversas entrevistas colhidas. A atenção volta-se para a identificação de “sentidos

historicamente estabelecidos” (Thompson, 1997, p. 442), isto é, retomando as palavras

de Geertz (1973), de “estruturas significantes” que pertencem não somente à esfera

individual, mas sim ao universo coletivamente construído da cultura. Procura-se, por

trás dos relatos pessoais, o “discurso social” (Geertz, 1973) que organiza a experiência

individual e sua interpretação. Os dois níveis de análise devem ser efetuados em

paralelo, pois os insights obtidos em cada um podem contribuir para o refinamento do

outro. A interpretação de uma entrevista pode lançar luz sobre o conjunto de dados e,

também, levar a uma releitura das entrevistas anteriormente estudadas.

Esse ciclo de ida e volta, do todo à parte e da parte ao todo, visa permitir a construção

daquilo que Geertz chama, retomando o termo cunhado por Gilbert Ryle, de “descrição

densa” (Geertz, 1973, p.15). O objetivo é o de apreender e apresentar algo da

“multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou

amarradas umas às outras” (Geertz, 1973, p. 20), que organizam a experiência dos

entrevistados. Em termos menos abstratos, trata-se de descrever o que os consumidores

fazem, buscando não o registro de um “padrão bruto de acontecimentos

comportamentais” (Geertz, 1973, p. 21), mas sim os significados dos seus atos.

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3.7. LIMITAÇÕES DO ESTUDO

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A pesquisa buscou identificar, no discurso dos consumidores sobre suas experiências de

insatisfação, conjuntos estruturados de representações e de ações. Embora alguns

autores defendam, como vimos, a autonomia do método de caso (Yin, 1988; Bertaux,

1980; Ferrarotti, 1980 e 1983), advogando que este pode, de acordo com o problema e

as perguntas de pesquisa, ser utilizado em estudos descritivos ou explicativos (Yin,

1988, p. 15), o presente estudo tem caráter exploratório. Seu fim é o de “descobrir idéias

e relações novas” (Boyd e Westfall, 1984, p. 66), de levantar informações “sugestivas”

(Bento e Ferreira, 1982, p. 8) a respeito das relações existentes entre vendedores e

compradores em determinado contexto cultural. Ele não pretende delimitar, em termos

quantitativos, a abrangência dessas informações, nem comprovar empiricamente seu

poder explicativo. Seus resultados são, portanto, formulados em termos de perguntas ou

hipóteses suscetíveis de orientar novas pesquisas.

A pesquisa abordou somente os consumidores, deixando de lado o ponto de vista dos

demais atores envolvidos nas situações de conflito estudadas. De fato, a opção de

entrevistar compradores que, independentemente de qualquer ação “pública ou privada”

(Kotler, 1994), julgam sua experiência insatisfatória, dificilmente poderia ser conciliada

com a investigação das diversas organizações eventualmente contactadas por eles.

Frente ao predomínio, na literatura, de pesquisas baseadas em registros de empresas, o

estudo escolheu, como ponto de partida, o consumidor, abrindo mão, portanto, das

informações que poderiam ter sido fornecidas por seus interlocutores. Essa escolha

pretendeu viabilizar o projeto. Embora constitua um limite importante, ela permitiu,

como esperávamos, a obtenção de elementos que poderão contribuir para um melhor

conhecimento do fenômeno da insatisfação.

Finalmente, apesar dos esforços acima descritos para diversificar as fontes de indicação,

a amostra obtida apresenta diferenças importantes com as características da população

junto à qual a pesquisa foi realizada, isto é, com os compradores de qualquer tipo de

mercadoria, que residem na região urbana do Rio de Janeiro.

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Esse limite está associado à metodologia escolhida e à natureza do problema de

pesquisa, que, ao escolher como objeto de estudo os consumidores insatisfeitos,

inviabiliza, na prática, qualquer tentativa de construção de uma amostra representativa.

Trata-se, de fato, de um universo em grande parte desconhecido. Embora o nosso

objetivo não fosse, devido ao caráter exploratório e interpretativo do estudo, o de

alcançar alguma representatividade, esperávamos obter uma amostra com características

mais próximas das da população estudada. As razões pelas quais isso não aconteceu

podem estar ligadas tanto ao fenômeno estudado, como aos procedimentos que

utilizamos para construir a amostra. Os resultados sugerem, como veremos a seguir, que

a expressão da insatisfacão pode estar relacionada ao perfil sócio-econômico do

consumidor. Na falta de informações secundárias sobre o assunto, não é possível,

porém, responder com segurança a essa questão.

De qualquer modo, os resultados obtidos devem ser interpretados como “pistas”,

suscetíveis de gerar novas hipóteses e pesquisas. Não constituem conclusões, mas sim

indagações, que poderão ser utilizadas como ponto de partida para outras investigações.

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4. DESCRIÇÃO DOS RESULTADOS

4. DESCRIÇÃO DOS RESULTADOS

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O capítulo a seguir apresenta os resultados da pesquisa. Ele aborda sucessivamente

quatro tópicos:

- A situação de insatisfação: Como os entrevistados interpretam essa situação? Quais

são as idéias que orientam suas ações e como elas se articulam?

- A empresa e suas relações com o consumidor: Quais são as representações da

empresa e de suas relações com o cliente? Qual é o impacto dessas representações sobre

os comportamentos de compra?

- Os Serviços de Atendimento ao Consumidor: Como os entrevistados avaliam suas

experiências junto a esses serviços? Que tipo de tratamento esperam receber deles?

- Os órgãos de defesa do consumidor: Que experiência e imagem os entrevistados têm

desses órgãos? Qual é, aos seus olhos, o seu papel? Que significados estão associados

ao ato de recorrer aos seus serviços?

Esses tópicos foram definidos a partir da estrutura e do conteúdo dos relatos colhidos.

Por essa razão, eles não reproduzem as perguntas de pesquisa e sim os temas abordados

nas entrevistas. O ponto de partida é a experiência da insatisfação. É da descrição dessa

experiência que surgem as reflexões sobre a relação com a empresa, o papel dos

Serviços de Atendimento ao Consumidor e o dos órgãos de defesa do consumidor.

Visando restituir essa estrutura, optou-se por retomar essa ordem.

As perguntas inicialmente colocadas serão discutidas após a descrição dos relatos dos

entrevistados, no capítulo 5 (Discussão).

4.1. A SITUAÇÃO DE INSATISFAÇÃO

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Em primeiro lugar, examinamos o relato dos entrevistados sobre as situações de

insatisfação que haviam experimentado, procurando entender o significado dessas

situações e a influência desse significado sobre as ações empreendidas pelos

consumidores.

Tensão, stress, aborrecimento, cansaço, são palavras recorrentes nos relatos dos

entrevistados. Os consumidores que se deparam com algum problema após uma compra

não ficam somente decepcionados. Eles experimentam intensos sentimentos de

ansiedade. Por si só, a perspectiva de se queixar parece despertar múltiplos receios. O

medo de “ficar com o prejuízo” é um deles, mas ele não é o único. Buscamos, então,

entender esses medos e explorar seus conteúdos. Iniciando com a descrição de dois

casos particularmente significativos, procuramos, em seguida, investigar os temas que

dominavam o discurso dos entrevistados: a questão da responsabilidade do cliente, da

legitimidade de sua queixa, da importância da dimensão do conflito e do seu

significado.

4.1.1. O MEDO DO CONSUMIDOR NA HORA DA RECLAMAÇÃO

Milena (classe B2, 22 anos) comprou uma bolsa de couro na loja O.. Após cerca de três

meses de uso, notou que o couro estava se desgastando com rapidez. Incentivada por

amigos e colegas, resolveu dirigir-se à loja. A vendedora explicou que a bolsa seria

encaminhada para uma análise, a ser realizada na fábrica fornecedora da O.. Duas

semanas depois, Milena telefonou para se informar do resultado. A vendedora lhe disse

que a fábrica não havia detectado nenhum defeito de fabricação e que a O. não tinha,

portanto, autorizado a troca. Diante dessa resposta, Milena foi à loja e, ao receber a

bolsa de volta, comentou com a vendedora:

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Falei: “realmente, eu estou decepcionada”. Eu falei prá garota: “é a última vez

que eu venho aqui no O., é a última vez que eu boto os pés dentro de uma loja

O1.”

Recebeu uma resposta que a deixou ainda mais irritada:

Aí a menina disse: “ah, porque o couro é assim mesmo. O couro é feito de

várias partes do boi.” Começou com umas histórias assim. Aí eu fale: “olha, o

couro é todo diferente, mesmo num boi só. Agora, pega-se esse couro, trabalha-

se ele, padroniza-se, de forma que as bolsas sejam todas iguais.”

E acabou manifestando, com veemência, sua indignação:

A bolsa, na época, foi cento e cinqüenta reais. Eu acho até bem caro mesmo.

Bem carinha. Eu falei: “está totalmente fora da realidade. Essa bolsa tá mais

cara que um salário mínimo. Ela está apresentando um problema, que ela está

horrível, uma bolsa com três meses de uso, com o maior cuidado, tá horrorosa,

e você olha para mim, você diz que o couro é assim mesmo e vai ficar por isso

mesmo! Eu que sou cliente há anos do O.!” (...) Eu falei: “a única coisa que eu

paguei aqui foi mesmo a grife! Porque o couro, a bolsa, qualidade não teve!”

(...) Me irritei mesmo! Como se diz aqui, né, baixei o barraco, né? Falei pra

caramba, fiquei meia hora falando, falei que se eu pudesse, nem passar na porta

do O. eu passava. Eu falei que queria que tirasse meu cadastro da loja, porque a

partir daquele dia não era mais cliente do O., porque eu estava totalmente

insatisfeita.

Inconformada, voltou para o trabalho. De noite, ao chegar em casa, sua mãe lhe disse

que uma supervisora da O. havia telefonado e pedido, com insistência, que retornasse à

loja levando a bolsa para uma nova análise. No sábado seguinte, Milena retornou, então,

à loja:

1Todos os nomes ou siglas de empresa foram substituídos por nomes ou iniciais fictícias.

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Aí voltei eu. Inclusive, fui com a minha irmã. Aí quando eu cheguei, me

trataram: Milena! Foi uma festa! Faltava tar uma banda! Foi cômico (risos)!

Fui assim no sábado de manhã cedo, então o shopping estava bem vazio, a loja

estava bem vazia. Minha irmã mesmo disse: “Milena, fica calma!”. Minha

irmã mesmo riu, porque foi simplesmente patético, as vendedoras, foi

ridículo.(...) Aí, conversa vai: “Não a gente vai... Vou mandar pra análise de

novo”. Aí essa gerente estava lá, essa que tinha ligado lá pra casa. Aí ela foi,

conversou comigo. Eu falei: “não, tudo bem”. Eu falei: “muito chato”. Eu falei,

realmente, em português chulo: “é um saco! Entendeu? Paguei pela bolsa e tá

nessa lenga lenga da bolsa. Nem a bolsa ruim consegue ficar comigo. Já vai pra

análise de novo. (...) Análises, análises, ninguém resolve nada.” Em fim, foi pra

análise. Eu, de novo, esperei.

Duas semanas depois, a loja telefonou avisando que a troca poderia ser feita:

Aí eu fui lá, né? Aí a menina: ah, tá aqui sua bolsa. Olha só, não tinha sido

autorizada a troca não. Aí contaram a versão toda. (...) Como teve uma outra

menina, que trabalha na diretoria, que estava com uma bolsa dessas e

aconteceu o mesmo problema que o seu, aí o diretor, ou o pessoal lá de

supervisão, não sei muito bem, resolveu então deixar trocar a bolsa. “Porque

não teve nenhuma reclamação dessa bolsa. Foi só a sua reclamação.” (...) Ai,

olha só, eles deixaram bem claro: “a gente vai abrir uma exceção pra você”.

Prá trocar a bolsa.

Milena, então, pediu que embrulhassem para presente uma nova bolsa, idêntica à

primeira:

A menina ficou, ficou todo mundo assim na loja, né? As vendedoras, todo

mundo: ela não vai querer...! Porque, é, estava dando a entender, tipo “ah, ela

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enjôou da bolsa, quer trocar por alguma outra coisa na loja, tá querendo trocar

por outra coisa. Ela tá querendo dar uma de espertinha”. A visão que eu tive foi

essa, tá? Claro que elas não me falaram, mas a visão que eu tive foi essa.

Quando eu falei que eu queria uma bolsa igual, ficou todo mundo pasmo,

entendeu? Eu falei: “embrulha essa”. “Ah, mas porque que você não dá uma

olhadinha, Milena? Tem tanta coisa bonitinha que chegou”. Falei: “eu não

quero ver nada do O., pôxa! Embrulha logo essa bolsa que eu vou dar de

presente”. Falei até: “embrulha logo que eu quero ir embora daqui. Que eu tou

com pressa, eu preciso trabalhar.”

Prosseguindo seu relato, Milena acrescenta:

Mas eu, eu, eu troquei a bolsa depois, né? Embrulhou a bolsa nova pra

presente, eu fui em outro O., lá no Norte Shopping, e troquei pelo que eu quis.

E explica:

Maior cascata, sabia que eu ia trocar a bolsa e eu estava me lixando pró

produto que elas iam embrulhar.(...) Eu falei: se quiseram dar uma de espertos,

eu passei a perna neles. Fiz eles trocarem(...) Aí eu fui lá no O., no Norte

Shopping: “ah eu ganhei essa bolsa de presente”. A bolsa estava com etiqueta,

embrulhada, tudo, e eles trocam.(...) Fui super bem atendida, mesmo sendo

troca, que algumas lojas, quando é troca, a vendedora torce o nariz, não gosta

muito. Fui super bem atendida e troquei. Troquei por roupa.

Finalmente, ela conclui:

Serviu pra aprender. Nunca mais eu compro nas lojas O., e realmente nunca

mais comprei nada. (...) Eu pelo menos sou assim. Detesto ser mal atendida.

Detesto. .... É isso.

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Para entender melhor esse relato, é interessante confrontá-lo com o de outra

consumidora:

Marta (32 anos, classe A2) foi a um posto de gasolina e pediu 30 reais de combustível.

Sabia, por experiência, que, com esse valor, completaria o tanque, que ainda não estava

totalmente vazio. Estava com pressa, entregou o cheque ao frentista e foi embora.

Registrou, de relance, que a bomba marcava 15 litros, mas não conferiu o montante da

conta. Ao chegar na via expressa que utilizava para chegar ao trabalho, percebeu que o

marcador apontava somente meio tanque. Surpreendida, procurou, quando chegou ao

escritório, o número de telefone do posto. Encontrou-o em uma boleta de cartão de

crédito, pois costumava, ocasionalmente, abastecer o carro no local, e telefonou

imediatamente. Informou-se sobre o preço do combustível e, confirmando sua suspeita,

percebeu que havia pago 30 litros de gasolina, para receber somente 15. Relatou, então,

a ocorrência ao gerente, que lhe disse que estaria a sua disposição para resolver o

problema no final da tarde. No horário prometido, porém, Marta não encontrou mais

seu interlocutor.

Pediram-lhe que voltasse no dia seguinte. Em vão. O solícito gerente continuava

ausente:

No dia seguinte. Não achei a pessoa que me atendeu. Tive que explicar para

outra2 pessoa. Aí veio o dono do posto de gasolina, foi lá para dentro, discutir

com o gerente. E nisso eu lá, parada, perdendo meu tempo. E, falou que não

tinha dado diferença nenhuma na bomba, mas que, para evitar problemas e

tudo, queria me ressarcir.

Diante dessa proposta, Marta reagiu:

Eu não quero que o senhor me dê o dinheiro, eu quero o combustível que o

senhor tá me devendo. Eu já paguei pelo combustível.

2Os grifos nas citações de trechos de entrevistas indicam ênfase do entrevistado.

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Recebeu, então, a seguinte resposta:

Aí, ele disse que não podia fazer isso, porque ia prejudicar o frentista. E aí ele

tirou a diferença e me deu em dinheiro. (...) Ele falou, não, eu faço questão que

a senhora volte.

Por fim, Marta relata:

Aí ele deu o dinheiro da diferença da gasolina, falei: “ah, tá bom”. Dei a ré, fui

na bomba. Falei: “agora você coloca, para mim, a diferença do combustível.”

Mas, contrariando o desejo do responsável pela solução do problema, ela afirma:

Mas é o que eu digo: foi uma situação tão desgastante, que eu não volto mais

aqui. Quer dizer, na minha cabeça, falei: “ eu não volto mais aqui.”

Nos dois casos, deparamo-nos com conflitos que receberam soluções em princípio

favoráveis ao cliente. Milena pôde trocar o produto que não atendeu às suas expectativas

e Marta recebeu seu dinheiro de volta. No entanto, ambas declaram que pretendem,

doravante, evitar o estabelecimento onde ocorreu o incidente. E, detalhe ainda mais

significativo: parecem fazê-lo a contragôsto.

E nunca mais voltei no posto. Mas o lugar fica no meu caminho e tudo...

(Marta)

(...) nunca mais eu fui. Eu passo direto na porta da loja. (...) Até vi assim, na

época, um short bonitinho no O., mas olhei: O.. Aí eu falei pra minha amiga,

falei: “não adianta.” Pode ser, no mínimo bordado a ouro. Estar, assim, de

graça. Podem mandar carta no meu aniversário com desconto de 99%, não

adianta, O., não quero. Você olha assim, perde a graça. (Milena)

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O que aconteceu? Como duas clientes, antes fiéis, resolvem deixar de freqüentar

estabelecimentos aos quais estão, de algum modo, apegadas, em decorrência de

incidentes resolvidos, aparentemente, a seu favor?

Milena e Marta, apesar das diferenças em seu comportamento, descrevem sentimentos

semelhantes: ambas, em algum momento, entenderam que seus interlocutores

duvidavam de sua boa fé.

Milena expressa literalmente esse sentimento ao descrever o pensamento que julga ser o

das vendedoras:

Ela está querendo dar uma de espertinha.

Visando mostrar que não obedece a motivações dessa ordem, insiste em substituir a

bolsa por outra idêntica, sublinhando assim que pretende fazer respeitar seus direitos e

não trocar a mercadoria por outra (embora esta seja sua intenção, posteriormente

realizada em outra loja).

Marta mostra ter uma preocupação semelhante ao afirmar que deseja receber a gasolina

que pagou e não o montante equivalente.

Falei para ele: eu não quero dinheiro, quero o combustível. Né? Quero o

combustível, porque já paguei, tá aí bonitinho, só quero... Eu paguei para ter

uma coisa, eu não tive, eu tive meia, eu quero inteira.

E faz questão de empregar o dinheiro recebido para, imediatamente, encher o tanque,

sublinhando assim que este comporta o combustível supostamente comprado pela

manhã e que sua intenção é receber o produto pelo qual pagou e não os R$ 15,00

entregues pelo dono do posto.

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Adiante, Marta explica as razões de sua atitude:

Ah, me sentia constrangida de ficar atendida por todo mundo, de ter que

explicar aquilo, entendeu, e depois aquela história: “ah, não, eu vou devolver o

dinheiro à senhora.” Falei: “tá, tudo bem, não era bem isso que eu queria não.

Eu queria o combustível, mas já que é assim, então, vou pegar o dinheiro do

senhor, vou dar ré, e vou abastecer aqui mesmo no seu posto, na mesma bomba”

(risos). Fiquei... Aquilo me deixou assim meio chateada. Porque é aquela tal

história. O cara me atendeu, mas ficou assim, “ah, não vou criar caso, que essa

mulher de repente tá me enrolando”. Entendeu? (Marta)

Os dois casos evidenciam que o ressarcimento é apenas um dos elementos do conflito.

O problema não está somente no fato dele ser, ou não, concedido, mas sim na

mensagem transmitida pela empresa (voluntariamente ou não) ao longo do processo de

negociação. Em ambos os casos, a leitura que as entrevistadas fazem da atitude da

empresa é, aproximadamente, a seguinte: “não acreditaram em mim, mas, para não ter

problemas, resolveram me ressarcir”.

Essa interpretação tem outros desdobramentos.

Em primeiro lugar, ela traz a idéia de que a empresa não está interessada em resolver o

problema que deu origem ao conflito, e sim somente em encerrar a discussão. Mesmo

que exista, a intenção de investigar uma possível falha não é comunicada ao cliente.

Milena credita a concessão da troca à intervenção de fatores alheios ao procedimento

habitual da loja (queixa de uma funcionária próxima da diretoria) e não ao

reconhecimento da existência do defeito.

Marta, por sua vez, observa:

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Eu acho que, o caso mais foi esse: “olha, toma aqui, põe lá a gasolina, não me

aborrece.” E, provavelmente depois, deve ter tomado alguma atitude em relação

ao rapaz.

E ressalta:

Ele não assumiu. Isso me deixou furiosa também. Ele não assumiu que houve um

erro operacional. Até mesmo pode ter tido um erro na bomba e tudo, qualquer

coisa. Ele não assumiu isso.

Por si só, essa negativa tenderia a afastar o cliente: o problema poderá voltar a

acontecer. Mas isso não é tudo. Marta comenta, em seguida:

A partir do momento que ele disse que não houve diferença no fechamento,

falou: “ a senhora tá... Tá me contando historinha, né?”

Essa frase permite entender melhor o termo de “fúria” empregado por Marta e aponta

outro desdobramento, talvez mais crítico que o primeiro. A postura da empresa frente à

queixa é interpretada como uma acusação. Milena acha que as vendedoras pensaram que

ela “estava querendo dar uma de espertinha”. Marta traduz, com suas palavras, a atitude

do dono do posto: “essa mulher, de repente, tá me enrolando aqui”. Tudo se passa, em

suma, como se as clientes tivessem ouvido: “eu sei que você está querendo dar uma de

esperta para cima de mim, mas vou fazer de conta que não vi e vou assumir o prejuízo”.

Dentro dessa perspectiva, a atitude da empresa constitui, aos olhos das clientes, uma

ofensa.

Vale notar, também, que a solução proposta é apresentada de uma forma que coloca o

cliente numa posição de inferioridade, transmitindo-lhe a idéia de que aquilo que ele,

justificadamente ou não, está solicitando, está sendo concedido por mera liberalidade da

empresa. “Já que você faz questão, eu lhe dou. Independentemente de você ter razão, ou

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não.” Dessa forma, o cliente que vinha em busca de um direito, vê-se colocado na

situação de alguém que pede um favor, que a empresa, generosamente, lhe concede.

Barbosa (1992), ao revisar a literatura existente sobre o papel do favor na cultura

brasileira, escreve: “entre quem faz um favor e quem o recebe, estabelece-se uma

hierarquia em que o credor fica em situação superior ao devedor. Essa situação, para

muitos, nunca é revertida, mesmo quando o favor é “pago”. Favor, segundo alguns, não

se paga nunca.” (p. 34).

Ao insistir em trocar o artigo defeituoso por outro idêntico e em receber gasolina ao

invés de dinheiro, Milena e Marta procuram reverter essa situação. Trata-se de mostrar

que esperam dos seus interlocutores o reconhecimento de um direito e não a concessão

de um favor.

Muito mais que o incidente em si, essa interpretação permite entender sua determinação

em evitar os estabelecimentos envolvidos. Afinal, o retorno poderia significar a

aceitação dos termos em que a solução foi proposta. O boicote, ao contrário, manifesta

sua recusa.

O valor em pauta não é mais o do dinheiro, é o da honra. Ao duvidar de sua boa fé, a

empresa, implicitamente, acusa o cliente de “esperteza”. Visando mostrar que não

merece tal qualificativo, este, embora tenha sido ressarcido, resolve, mesmo que isso

contrarie seus interesses, nunca mais colocar os pés na loja. Procura mostrar assim, que

não agiu de forma interesseira, mas que a atitude da empresa, esta sim, obedeceu a

motivos menos nobres:

Para o cliente, é tipo “cale a boca”, “olha, não quero que a senhora crie

problema.” (Marta)

Eles só trocaram porque eu era, digamos, uma cliente freqüente, e porque eu

quebrei o pau lá. Eu falei pra caramba. Aí, tipo assim, eles fizeram isso, “vou

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trocar que é pra ela ficar na dela, entendeu? Pra não reclamar com o Procon,

com não sei o que.” (Milena)

Em outras palavras, ao resolver evitar o estabelecimento, as clientes estão,

simbolicamente, invertendo a acusação de que julgam ter sido objeto: quem tentou “ser

esperta”, foi a empresa, que desrespeitou seus direitos e ainda tentou, sem sucesso,

“comprar” seu silêncio e sua fidelidade.

Os relatos de Marta e Milena mostram que o tratamento dado à queixa pode, mesmo que

esta seja atendida, suscitar fortes sentimentos de rejeição e que essa rejeição decorre de

um problema relacional. Tudo se passa como se as clientes estivessem reagindo a uma

ofensa pessoal.

Marta esclarece, inclusive, que não teria a mesma atitude se tivesse sido atendida de

outra forma:

P: Se ele tivesse dito para você assim: “tá, então, houve um erro, você vai lá e

põe a gasolina, mudaria a sua atitude, agora, em relação ao posto?”

M: Mudaria. Mudaria. Eu voltaria, entendeu? Acho até que você pode, acho

que, no ponto até de honestidade, né? Tipo assim: “olha, eu tive realmente um

problema. A senhora desculpe, isso acontece, né? Então nós vamos ressarcir a

senhora, com combustível ou com dinheiro, como a senhora preferir, e tal.” E

não chegar e dizer: “ não, não vou, porque vai dar diferença.”

Os dois relatos descrevem, de forma particularmente clara, episódios em que o cliente

que se queixa vive essa situação como se pudesse, a qualquer momento, tornar-se réu ao

invés de vítima. Dentro desse contexto, qualquer reticência da empresa tende a ser

interpretada como uma acusação, que pode comprometer definitivamente a relação com

o cliente.

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Embora os casos de Marta e Milena sejam, nesse sentido, extremos, veremos a seguir

que o receio de se expor a possíveis críticas acompanha, com freqüência, o ato de

queixa.

4.1.2. “SOU UM CONSUMIDOR RESPONSÁVEL.”

Ao contrário do que parecem supor os interlocutores de Marta e de Milena, os

consumidores se preocupam com a sua responsabilidade na ocorrência do problema que

motiva a queixa. O ato da reclamação é acompanhado de uma série de reflexões sobre

sua legitimidade.

Patrícia (classe A2, 34 anos) pergunta a opinião da família antes de contactar o Serviço

de Atendimento ao Consumidor para solicitar a troca de uma caixa de leite cujo sabor

lhe pareceu estranho:

Eu pedi para experimentarem em casa. Realmente estava com um gosto muito

ruim!

Milena (classe B2, 22 anos), antes de retornar à loja, pede a opinião de seus colegas:

Eu até mostrei pró pessoal do trabalho. Eu falei: “o que é que vocês acham,

devo ir lá na loja reclamar, ou não?”

Ela declara também:

E eu tomo, sempre tomei cuidado com a bolsa. Não sou de botar no chão, prá

sujar, essas coisas, de arrastar a bolsa em qualquer lugar. Não. Sempre ficou na

cadeira, na mesa.

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A preocupação em sublinhar que o defeito não foi provocado pelo descuido do

comprador é compartilhada por diversos entrevistados. Ela chega, às vezes, ao exagero.

Alguns consumidores mencionam que utilizam pouco o produto, dando a entender que

esse uso menos intenso deveria evitar a ocorrência de problemas. Vera (37 anos, classe

B2) explica, por exemplo, que não liga diariamente o aparelho de som que vem dando,

desde a compra, uma série de defeitos. Observa, também, que não costuma ter

problemas com eletrodomésticos, prova de que zela pela sua conservação:

Porque eu tenho outros aparelhos há mais tempo, nunca deram problemas.

Então esse, que não era um uso constante, era um uso mais de fins de semana,

não era um uso diário, também não podia dar tanto defeito assim. Então seria

realmente qualidade. O próprio produto mesmo. Eu acho que é mais qualidade.

Fabricação mesmo. Porque tem outros produtos, televisão, essas coisas, que

nunca me deram problemas.

Ela compara sua experiência com a que outras pessoas tiveram com a mesma marca:

Tem uma vizinha minha também que comprou uma televisão com problema, da

mesma marca, entendeu?

E conclui:

Então acho que é questão de qualidade, de produção... não sei, mas acho que é

da marca sim. Outras marcas não acontece isso, né? Pelo menos não se escuta

muito. Essa é uma marca que eu realmente já escutei, já vi, e passei por esse

problema.

Graça (classe C, 48 anos) também ressalta que cuida da geladeira que enferrujou quando

ainda estava no prazo de garantia, limpando-a regularmente. Compara-a com a de sua

patroa, que está, também, sob seus cuidados, e que continua com aparência de nova,

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mesmo depois de ter passado pela poeira de uma obra. Destaca, além disso, que o

ambiente de sua casa não pode ser incriminado:

A minha não tem movimento, quer dizer, eu venho para trabalhar, meu marido

também, minha filha estuda, minha filha trabalha, fica meu filho só, também não

pára em casa. Quem é que fica abrindo e fechando a geladeira? Não tem! Se

tivesse um movimento maior, ainda podia dizer, né?(...) Não tem enchente, ela

não leva chuva. No lugar onde ela está, mais arejado, impossível. Que a minha

cozinha é boazinha de limpar, se eu passo um pano então, é uma beleza. É

aquele chão vitrificado. Nada, não leva água, não leva nada. A da minha colega

que o cachorro urinava e tudo, não dá ferrugem. Tá lá. Vinte e tantos anos, a

geladeira dela. (...) E eu, com a minha nova. Tá mais velha do que a dela, que é

velha. Muito triste! Muito triste, muito triste.

Graça relata ainda outro fato:

Na época em que apareceu essa ferrugem na minha geladeira, no V. (loja de

eletrodomésticos), um cara destruiu não sei o que, também da K. (marca da

geladeira adquirida por Graça). Ele quebrou inteiro (risos). (...) Foi até jornal,

fizeram uma... Deu na televisão, no Jornal Nacional. Ele levou, ele reclamou,

ele reclamou, não vieram consertar, nem nada. Ele pegou, foi em frente à loja, e

quebrou todo. Eu disse: “olha, é isso que eu tenho vontade de fazer com essa

geladeira.” Não lembra não (da reportagem)? (...) Foi a mesma coisa, a mesma

marca!

Reconhecemos, nesses argumentos, dois dos princípios descritos pela teoria da

atribuição: o indivíduo procura determinar a fonte do problema (“locus” interno ou

externo) e verificar se este constitui ou não um acidente isolado (“estabilidade”). Ao

observar que o evento somente ocorreu com aquele produto e que ele se repetiu com

outras pessoas, ele tende a responsabilizar o fabricante.

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Como vimos no capítulo 2 (pp. 25 e 26), o processo de atribuição nem sempre

acompanha o ato de compra. Oliver (1997), ao rever as pesquisas que investigam o

assunto, observou que a satisfação não costuma desencadeá-lo e que os fracassos

também não suscitam necessariamente atribuições, especialmente quando não são

significativos, ou quando são esperados. A atribuição, diz ele, “requer um estímulo

motivador” (p. 278).

A literatura relaciona esse estímulo ao caráter não usual do evento (Oliver, 1997). Os

relatos colhidos sugerem uma explicação adicional. Ao efetuar uma reclamação, o

consumidor toma uma iniciativa que pode gerar um conflito. A empresa poderá

contestar a legitimidade de sua queixa. Nesse caso, se ficar comprovado que a

responsabilidade é do cliente e não do fornecedor, isto é, que a queixa é improcedente, o

consumidor estará se expondo a uma situação constrangedora.

O receio de que isso possa acontecer parece constituir um “estímulo motivador” (Oliver,

1997, p. 278) poderoso. Ele está, provavelmente, na origem dos exageros acima

mencionados. Ao ingressar no processo de queixa, e até mesmo ao relatar sua

insatisfação (Vera, por exemplo, não chegou a efetuar uma queixa), o consumidor

procura, de alguma forma, prevenir-se contra a possibilidade de ser responsabilizado

pela ocorrência do problema.

Por outro lado, o cliente que se sente responsável reluta em revelar sua insatisfação e em

se comunicar com a empresa. José (classe D, 26 anos) confessa, no final da entrevista,

que o medo que tinha de se dirigir à assistência técnica para solicitar o conserto de seu

aparelho de som devia-se, também, às suas incertezas quanto ao fato de ter seguido

corretamente as instruções do fabricante:

Como eu nunca tinha tido aparelho, assim, com CD, acostumado só com

aqueles aparelhos antigos de disco, disco grande, e nunca tinha tido aparelho

com CD, eu acho que o problema dele foi porque eu não soube utilizar! Mexi em

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tecla errada, com CD dentro, e eu acho que foi por causa disso. Eu acho que eu

devo até ter colocado o CD errado, virado para baixo.

Mesmo pagando o conserto, ele diz ter se sentido aliviado, quando a oficina aceitou

fazer o serviço:

Aí quando cheguei lá, que eles aceitaram, eu aliviei. (...) Fiquei com medo deles

rejeitar! Dizer que não era com eles, que eu não soube utilizar.

Essa reação evidencia que sua única preocupação não era a de ter que enfrentar essa

despesa (embora esta fosse, para o seu orçamento, bastante elevada), mas sim a de

receber uma resposta negativa e de se ver, ainda, publicamente responsabilizado pela

ocorrência do defeito.

É importante observar que os testemunhos acima provêm de consumidores das classes

B2, C e D. Como veremos a seguir, os consumidores de classes mais elevadas (A1, A2 e

B1) também se preocupam com a legitimidade de sua queixa. No entanto, eles não

demonstram a mesma insegurança quanto à sua eventual responsabilidade. Em especial,

raramente questionam as condições de uso do produto. Se o aparelho de som quebrar

depois de permanecer ligado durante 24 horas, se a geladeira ficar desregulada porque

está sendo constantemente aberta, ainda assim, a origem do problema tende a ser

atribuída ao produto e não ao usuário. O consumidor de classe baixa, ao contrário, pensa

imediatamente na hipótese de ter cometido algum erro.

4.1.3. NÃO BASTA TER RAZÃO, É PRECISO TER PROVAS

Mas as preocupações do cliente insatisfeito vão além da questão da responsabilidade

propriamente dita. A falta de provas ou de argumentos legais constitui, por si só, um

fator que inibe a reclamação.

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Júlio (classe A2, 42 anos) descreve o receio que teve de levar de volta à loja um

ventilador ainda sem uso. Quando tentou usar o aparelho pela primeira vez, percebeu,

imediatamente, que uma das velocidades não funcionava. Procurou então a nota fiscal e,

somente naquele momento, notou que havia nela um carimbo ressaltando que os

produtos deviam ser testados no ato da compra, não sendo aceitas reclamações

posteriores:

Eu me senti mal. Depois que eu vi que não funcionava e vi aquilo ali (o carimbo

na nota fiscal), cheguei a pensar em jogar fora, para não passar o

constrangimento. Eu não sei com o que a gente vai se deparar! Ainda ter que ir

no Rio Sul, para depois escutar abobrinha dos caras! (...) Eu, como consumidor,

eu me senti, apesar de ter o produto depois legal, me colocou numa situação de

desconforto e de constrangimento! (...) Você já pensou, eu vou lá e o cara vai me

jogar a situação na cara! (...)Ah... Pensei em jogar fora. Porque, pôxa, eu não

estava a fim de escutar um não na cara!

A perspectiva de enfrentar essa situação despertou intensos sentimentos de ansiedade:

Você sai tenso!!! Chega na loja tenso!!! Cada passo que você dá para você

chegar na loja é um fardo!”

Embora a loja tenha, finalmente, efetuado a troca sem qualquer reticência, Júlio critica o

procedimento. No momento da compra, o vendedor não o avisou e nem se propôs a

testar o aparelho. Sobretudo, porém, ele não perdoa os momentos desagradáveis que

viveu ao dirigir-se à loja para solicitar a troca do aparelho defeituoso:

E depois não foi nada. Mas eu não quero esquecer o sofrimento, o

constrangimento, o problema que foi gerado, porque a loja não... Não informou,

e não teve mecanismos. (...) Foi resolvido! Mas será? Talvez, se pintar a mesma

oferta, eu já não compre na B., porque eu passei constrangimento.

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Marta (classe A2, 32 anos) se recrimina por não ter notado, na hora, a diferença entre o

valor cobrado e o que estava inscrito na bomba de gasolina. Ela relata a ansiedade que

sentiu ao perceber que não dispunha de nenhuma prova para amparar sua reclamação:

Falei: “como é que eu vou fazer agora para voltar? Eu não vou conseguir

resolver o assunto, porque como é que eu vou provar? Botei gasolina de manhã,

eu não tenho mais nada. Não tenho nada. Tou saindo, sabe lá Deus para onde.

Posso ter rodado o dia inteiro com o carro e não...” (...). Tanto que a minha

preocupação foi, assim que eu cheguei aqui, foi tentar ligar para lá, para

colocar: aconteceu isso, não sei o que, tal. Eu deixei o telefone daqui. Quer

dizer, enfim, na esperança de resolver o problema. (...) Me desgastei, me

aborreci, fiquei estressada, falei: “sou uma idiota, não prestei atenção.”

Josefa (classe D, 64 anos) explica as razões pelas quais resolveu comprar com o

dinheiro do próprio bolso a peça que faltava na bicicleta que havia comprado (ferro de

sustentação do selim):

Infelizmente, o meu filho perdeu (a nota fiscal), deixa para lá! Botar no Procon,

o Procon vai perguntar a mesma coisa: a senhora está com a nota da compra?

(...) É tudo assim! Muitas coisas a gente tem que calar a boca, porque a gente

não tem razão! Só vai se aborrecer!

Ela se recrimina por ter entregue a nota ao filho:

Até as coisas que você manda os outros fazer, dá aborrecimento. O meu filho

vai e perde a nota! Se eu não tivesse dado a ele para ele ir reclamar, tava

comigo, né? Esse negócio, a gente tem que ir, e não mandar! Pedi a ele para ele

reclamar, ele vai e perde a nota! Como eu não tinha a nota, deixei para lá! Foi

esse o meu caso.

E observa:

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Que eu vou reclamar, vou me aborrecer, vou me cansar, e se eu não resolver?

De qualquer jeito, eu vou ter que me aborrecer, eu vou me cansar (...). Eles

querem um monte de prova, né? Eles querem um monte de prova! E eu só tenho

o carnê. (...) Aí, deixei para lá! Eu achei que eu estava sem a razão!

A expressão utilizada é reveladora. O fato do problema ter sido causado por uma falha

do fornecedor não basta para estar “com a razão”. É preciso, também, ter provas.

Diferentemente da questão da responsabilidade moral (“será que eu causei o defeito?”),

a da responsabilidade legal desperta inquietações tanto nos consumidores de classe

baixa como nos de classe alta.

O cliente insatisfeito procura antecipar os lances da discussão que, na sua visão, será

desencadeado por sua queixa. Ao fazê-lo, ele mobiliza uma série de interpretações, que

“organizam” sua percepção da relação empresa versus consumidor. A Teoria da

Atribuição descreve mecanismos psicológicos associados a uma dessas interpretações: o

prejuízo deve ser assumido pelo responsável. Essa idéia coexiste, porém, com outras,

que atuam como freios adicionais ao comportamento de queixa. Por trás da questão

moral (de quem é a culpa?) e legal (como comprová-la?), as entrevistas colhidas

apontam a presença constante de um elemento que parece caracterizar a percepção da

situação de queixa: a perspectiva do conflito. Ao dirigir-se à empresa, o cliente

insatisfeito se prepara para enfrentar um provável inimigo.

4.1.4. A QUEIXA COMO CONFLITO

Os relatos de Marta, Milena, Graça, Júlio, José, Josefa e Vera sugerem que reclamar é

um ato desagradável, desgastante, estressante. Essa idéia é encontrada, também, nas

demais entrevistas. Antes mesmo de empreender qualquer tipo de ação, o consumidor

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insatisfeito sente-se desconfortável, tenso, ansioso, como se estivesse se sentindo

ameaçado:

Eu me senti mal. (Júlio, classe A2, 42 anos)

Me desgastei, me aborreci, fiquei estressada (Marta, classe A2, 32 anos)

De qualquer jeito, eu vou ter que me aborrecer, eu vou me cansar (Josefa, classe

D, 64 anos)

Não, eu não tentei (contactar o fabricante), porque... Eu vou ser sincero, eu

achei que eu ia ter dor de cabeça, entendeu? (Humberto, classe D, 38 anos)

Indagado sobre suas expectativas ao dirigir-se à loja para solicitar a troca do ventilador

defeituoso, Júlio (classe A2, 42 anos) responde:

P: O que você imaginou que ia encontrar quando chegasse lá? (na loja)

C: Pôxa! Discussão. (...) Vou perder o meu tempo para levar uma bronca, tá

certo?

A idéia de que a queixa irá despertar reações negativas é compartilhada por todos os

entrevistados:

Eles não vão aceitar (Humberto, classe D, 38 anos)

Eu fiquei com medo dele rejeitar! Chegar lá e dizer: “não! Não é com nós não!”

Aquela coisa que sempre acontece, né? (José, classe D, 25 anos)

As pessoas nos lugares, as empresas sempre questionam muito a veracidade do

que você está falando, acham que você não está sendo honesta, então vão

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questionar! (...) A reclamação é tratada como um aborrecimento. Você é meio

mal tratado, posto de lado. (Patrícia, classe A2, 34 anos)

Não, aí a gente chega lá com o defeito, olha aqui eu vim trazer porque tem

defeito, você fala ali com o gerente. Aí o gerente diz não, aí não tem mais jeito

aqui, você tem ir lá para a garantia, não sei o que... (Antonieta, classe C, 43

anos)

A: Falta a peça, falta não sei que, deu todas as desculpas que geralmente as

autorizadas dão.

P: por que você diz essas desculpas que geralmente as autorizadas dão?

A: Aaah, geralmente eles dão (risos). (...) (Vera, classe B2, 37 anos)

Ah não, porque não sei que, nhem, nhem, nhem (imitando). (...) As autorizadas,

as oficinas autorizadas, ninguém, não há respeito para o consumidor de forma

alguma. (Leila, classe A2, 64 anos)

A expectativa dominante é de que a queixa será mal recebida. Como diz Júlio (classe

A2, 42 anos), a resposta esperada é discussão e “bronca”, ou, no mínimo, “enrolação”

(Vera, classe B2, 37 anos) e “nhem, nhem, nhem” (Leila, classe A2, 64 anos). Dentro

desse contexto, qualquer reticência remete o cliente aos seus medos, colocando-o diante

da situação de conflito que ele temia enfrentar.

Essa perspectiva desperta uma ansiedade, cuja intensidade parece ser inversamente

proporcional às chances de sucesso que o cliente estima ter ao comunicar sua queixa ao

fornecedor. Quanto mais precária a sua posição, maior ansiedade do comprador.

Essa observação pode estar relacionada aos resultados obtidos por Blodgett, Wakefield e

Barnes (1995), que verificaram, como vimos no capítulo 2 (item 2.4.3.), que o fator que

mais influencia o comportamento de queixa pública é a percepção da probabilidade de

sucesso da ação e que os compradores que estimam que suas chances de sucesso são

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reduzidas tendem a optar pela divulgação boca-a-boca de sua insatisfação e a abandonar

o fornecedor, sem lhe dar a oportunidade de remediar o problema. Frente à perspectiva

de enfrentar um conflito sem estar devidamente amparado, o consumidor prefere recuar

e evitar um confronto direto com o fornecedor.

É importante notar, porém, que, ao avaliar suas chances, o consumidor não se limita a

examinar os dados relativos à compra que deu origem à insatisfação. Ele leva em conta

o conjunto de sua experiência com a empresa envolvida, com as empresas em geral, e a

relação de forças existente entre as duas partes.

Embora todos os entrevistados compartilhem a idéia de que as empresas são,

habitualmente, pouco receptivas frente às queixas dos clientes e melhor amparadas do

que estes últimos para se defender, o julgamento dos consumidores sobre os resultados

prováveis de sua ação é largamente influenciado pela sua posição sócio-econômica.

Para os consumidores de classe mais alta (A e B1), o desnível entre os poderes das duas

partes é visto como um obstáculo que pode ser superado:

Porque a gente que já tem um certo... acesso. Porque tem informação, tem

formação. Tem informação, tem formação, sofre todos esses boicotes e todas

essas confusões. Você imagina a pessoa que não tem, e que também compra, e

que também é usuária. Então eu acho que é... é desamparo total. (Leila, classe

A2, 64 anos)

Você, de terno e gravata, já tem outro atendimento. Pelo menos você ouve: “boa

tarde, pois não, sente-se aqui”. (Enquanto que) com os outros, é: “senta aí,

vamos resolver”. (Paulo, classe A2, 36 anos)

Eu acho o seguinte: eles sabem muito bem quem pode armar um escândalo

grande o suficiente. Por exemplo, sabem que, dependendo da tua classe social,

você tem... Eu acho que até pelo teu jeito de falar! (...) Então, por exemplo, você

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sabe como fazer as coisas. Um pessoal mais humilde não sabe, né? (Regina,

classe B1, 50 anos)

Já os clientes de classe mais baixa (B2, C e D) se vêem-se, como diz Leila, num

“desamparo total”. Paulo (classe A2, 36 anos) comenta, mais cruamente ainda:

O pobrinho, eles vão no pescoço, eu tenho a certeza disso! .

Essa certeza parece ser compartilhada pelos interessados. José (classe D, 26 anos) tem

receio de solicitar o conserto do seu aparelho de som. Sente-se vulnerável, e, como diz

Leila, “mal formado e informado”.

Graça (classe C, 48 anos) se desespera:

Me enrolavam muito. Muito, muito, muito. Não foi legal não. E é muito triste

você comprar uma coisa, dar defeito e você ter que reclamar. E tá ali. Já não é

a mesma coisa. Em menos de um ano, me aborreci um bocado com aquela

geladeira. E ela tá lá... (...) Se eu tivesse dinheiro, eu jogava ela no lixo. Jogava

ela no lixo, é muito triste, ela tá toda podre.

Vera (classe B2, 37 anos) observa:

Eu, por exemplo, a primeira coisa que eu pude comprar a vista, então aquilo

para mim, foi uma alegria. E,... me aborreci... quer dizer, então fico triste com o

dinheiro jogado fora. Eu suei, vamos dizer, batalhei para ter esse dinheiro. (...)

O primeiro aparelho que eu fui comprar a vista, foi esse. Então é uma coisa que

você compra com o maior prazer. Aí você se decepciona!!!

Ela conclui, resignada:

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Pelo tempo, pelo uso, eles vão dizer que, de repente, foi mal usado, não sei. Se

bem que o uso foi mais de fim de semana e à noite, quando dá, tá? Então acho

que não precisa nem de uso. (...) Mas não sei se hoje valeria a pena, me

estressar, vamos dizer assim, acho que vale mais a pena juntar outro dinheiro e

comprar um outro de outra marca.

O comentário de uma entrevistada resume bem o pensamento que domina a avaliação

dos consumidores das classes menos privilegiadas:

Quem sou eu para processar a Z.? A Z. tem meios. Pra botar advogado. Eu não

tenho, né? Eu mal ganho aqui como prá meu sustento (Elisete, classe C, 64

anos).

Elisete teve uma forte reação alérgica ao bronzeador novo que tinha comprado. Foi ao

médico, que confirmou o diagnóstico de alergia, mas não comunicou o fato à vendedora,

nem ao fabricante. Somente considerou essa possibilidade quando ela lhe foi sugerida

por sua neta. Ainda assim, rechaçou-a prontamente: para quem mal consegue se

sustentar, enfrentar uma briga com uma empresa é impensável.

O consumidor antecipa a possibilidade do conflito. O de classe alta chega a se arriscar.

Ao contrário, o de classe mais baixa tende a fugir de qualquer contato com a empresa,

chegando, inclusive, a evitar o uso de seus serviços de assistência técnica.

Humberto (classe D, 38 anos) explica, por exemplo, que, quando ocorreu o primeiro

defeito de seu ventilador, preferiu comprar a peça defeituosa e instalá-la ele mesmo:

Dali a uns seis meses, começou um defeito (...) O primeiro estágio dele já não

estava funcionando mais. Eu não gosto de ficar reclamando na loja não. Peguei,

fui lá e comprei outro botão.

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Em seguida, diante da persistência do defeito, recorreu a uma oficina indicada por um

amigo:

Não foi na autorizada, que a autorizada ia me pedir um dinheiro alto, e as

minhas condições são precárias (...). Foi numa lojinha lá que um colega olhou

para mim.

Após uma tentativa mal sucedida, Wellington (classe C, 38 anos) optou pela mesma

solução para consertar sua máquina de lavar:

Eu comprei uma máquina de lavar E. (...). Tinha uns quatro meses, deu defeito.

Aí eu chamei o rapaz para consertar, da autorizada. Consertou, aí ela voltou a

dar defeito depois de um mês. Eu abri e vi o defeito, e aí eu fui lá na loja,

comprei a peça, na autorizada. (...) Coloquei e colei e está lá até hoje! (...)

Acabou! Resolveu o problema!

Ele ainda sublinha:

Não reclamei, não!

Nem Wellington, nem Humberto souberam informar com precisão o prazo de garantia

do produto que haviam adquirido. Independentemente do risco de incorrer numa

despesa elevada, sem dúvida associado ao uso de serviços de assistência técnica, sua

decisão foi, também, motivada pelo receio de enfrentar uma reação hostil:

Ia ter que discutir, né? (Wellington)

Eu vou fazer o que na loja? Eles vão falar que está fora de garantia! É o mínimo

que eles falam para a gente e botam muita desculpa. (...) Ía ter muita dor de

cabeça (...) Se eu fosse falar com eles, os homens iam reclamar! (...) Iam botar

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mil desculpas! Quer dizer, já ia começar a me perturbar! Esquentar meu sangue

(...). (Humberto)

No caso de Humberto, a ansiedade e o desespero provocados por essa situação foram tão

intensos, que o levaram a uma reação extrema. Irado com o fracasso de suas sucessivas

tentativas, ele acabou destruindo seu ventilador:

Aí eu peguei, fiquei já meio revoltado, já estava esquentando o meu sangue,

peguei e destrui tudinho! Quebrei mesmo! Destrui! Para não sobrar nada!

Quebrei, dei umas marteladas nele e destrui! Que não tinha mais jeito! E tudo

novo!!! Tudo novo! Motor novinho!

Frente ao ódio que sentia pela empresa que o tinha lesado e ao seu sentimento de

impotência diante dela, esta foi a única saída que ele encontrou. Simbolicamente,

agrediu a empresa, martelando e destruindo seu produto. Mas, diferentemente do

consumidor mencionado por Graça (ver item 4.1.2 deste capítulo), cujo ato foi público,

fez isso na sua casa, longe dos olhos de qualquer testemunha. Descarregou,

solitariamente, sua raiva, sabendo que estava, com isso, descartando definitivamente

qualquer chance de ressarcimento.

Vale lembrar que Graça (classe C, 64 anos) diz ter tido, também, vontade de seguir o

exemplo da reportagem à qual assistiu e de destruir sua geladeira. No entanto, segundo

sua avaliação, o consumidor que chega a esse extremo não tem nada a ganhar, mesmo

que seu ato seja divulgado. Ao concluir o relato da notícia à qual assistiu, ela,

realisticamente, observa:

Aí eu disse, coitado, agora não vai ganhar outro, porque ele destruiu!

As reações diferem, mas o sentimento de impotência é o mesmo. José, Graça, Elisete,

Wellington, Humberto, todos expressam, cada um à sua maneira, sua convicção de que

nada podem frente à empresa.

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121

Reclamar significa enfrentar um provável conflito. Para isso, é preciso estar armado.

Enquanto o consumidor de classe alta acredita dispor de algum poder, o de classe mais

baixa tende a pensar que a empresa é infinitamente mais forte e que suas únicas

alternativas se resumem a encontrar uma solução “caseira” ou a desistir.

Como diz Humberto (classe D, 38 anos):

Então, para não ter dor de cabeça, eu prefiro ficar no prejuízo, e não ter dor de

cabeça com ninguém!

A expressão sugere que o conflito é doloroso. Brigar com os outros traz sofrimento.

Embora os consumidores de classe alta se sintam menos desamparados frente a essa

perspectiva, o tema da dor é, como vimos, encontrado em todas as classes sociais.

Em resumo, a experiência da queixa e, até mesmo, sua simples perspectiva, é dominada,

na percepção dos consumidores, pela dimensão do conflito e esse conflito, por sua vez,

é sinônimo de dor e sofrimento. Essa expectativa é tão presente que os casos de

reclamação que não envolvem confronto são, como veremos a seguir, relatados como

eventos excepcionais.

4.1.5. A AUSÊNCIA DE CONFLITO COMO EXCEÇÃO

Quando uma empresa acolhe uma reclamação sem reticência, atendendo-a prontamente,

o fato é descrito como um evento digno de nota, como uma exceção surpreendente.

Patrícia (classe A2, 34 anos) observa, ao relatar a troca de um pacote de fraldas:

Eu fiquei surpreendida porque não houve questionamento, foi rápido, e eu acho

que não é uma coisa que acontece com freqüência aqui. (...) Pela minha

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experiência, a minha expectativa seria da pessoa me questionar, duvidar, criar

algum tipo de problema e não! Foi uma coisa muito tranquila! (Patrícia, classe

A2, 34 anos)

Paula (classe A2, 41 anos) relata a experiência que teve com sua máquina de lavar:

Isso foi uma coisa boa que aconteceu. Foi essa máquina de lavar K.. Eu quebrei,

sem querer a tranca da portinha da máquina de lavar, aquela redondinha,

aquela janela. Eu não esperei o tempo, não sabia, esqueci, sei lá, aquela coisa

de afobação, falei: “pôxa, essa coisa tá dura” e forcei; no que eu forcei, eu

quebrei a tranca. (...) E eu, na pressa, eu quebrei a porcaria. E estava na

garantia. Essa eu tive sorte, porque eu comprei depois que eu fiz a minha

mudança. Então, ela estava, ainda, na garantia, e aí eu procurei naquele

catálogo dos representantes da K. aqui no Rio, eu comprei aqui em Ramos. Fui

lá, expliquei a situação, o técnico esteve na minha casa, viu o defeito, verificou o

defeito, voltou à loja, fez o pedido à fábrica. Em 15 dias já estava com a peça de

volta, voltou à minha casa, trocou a peça, e está funcionando. Agora não faço

mais isso não, eu seguro, espero o tempo, tal. Mas ele deu uma solução rápida.

O representante da K. providenciou, ou seja, eu não procurei nem o atendimento

ao consumidor, eu fui num representante K.. Eu fui direto lá, nessa loja, e lá

mesmo o dono da loja me atendeu. Foi muito atencioso, mandou o técnico na

minha casa. Não paguei absolutamente nada, nada. Nada, nada nada. Mesmo

eu tendo quebrado, sem querer, mas o fato de ela estar dentro da garantia. Ele

falou: olha a senhora não se preocupa não, porque a senhora tem a nota fiscal,

nós vamos pedir à fábrica. A fábrica vai nos mandar essa peça, nós vamos fazer

uma substituição. E foi o que aconteceu. Fizeram a substituição, sem nenhum

custo adicional. (Paula, classe A2, 41 anos)

Vera (classe B2, 37 anos) se espanta com o atendimento que recebeu de um fabricante

de varais de roupa:

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123

Quando me mudei, oito meses atrás, comprei um varal de roupa. E veio faltando

umas rodelas, ruelas, sei lá. E eu não achava, no mercado, não achava uma

própria para o modelo que eu comprei. Então peguei o papel da embalagem,

liguei, passei um fax, conversei com o gerente. Eu vou ser sincera, no dia

seguinte, o Sedex estava na minha casa, com tudo que eu precisava e além do

que eu não precisava.(...) Imediatamente, e realmente, no dia seguinte, chegou o

Sedex. Cheguei a falar: “mas o que é isso?” Já era o produto que eu tinha

pedido no dia anterior. Achei aquilo de uma... educação, um pronto atendimento

incrível. Uma mercadoria de São Paulo, uma coisa simples (...). Uma

assistência técnica, assim, um atendimento perfeito! (Vera, classe B2, 37 anos)

Mais de dez anos depois, Elzah (classe B1, 49 anos), não esquece a resposta de um

fabricante de brinquedos à carta que enviou quando constatou que faltavam peças no

presente que havia comprado para seu filho:

Ah, eu achei o máximo. Porque isso tem muitos anos. O Michel (filho) era

pequeno. Isso tem 13 anos, mais ou menos. Muito tempo! Então isso não existia

no Brasil há 13 anos atrás. Nem existia e-mail... Você mandava carta e foi o

máximo! Eles mandaram aquilo pra minha casa, com uma embalagem, com uma

carta, pedindo desculpas, com as peças e mais um brinde. Eu achei o máximo. E

eu comprei Lego anos da minha vida. É um brinquedo caro. É um brinquedo que

eu acho genial. E eu achava que estava comprando um brinquedo e investindo

para o futuro do meu filho. E eu não sou de guardar coisa velha. Tudo que é

velho eu despacho. Mas o Lego tá todo guardado lá em casa. Eu acho assim

genial, como produto. Como é caro... E ele dura. Ele resiste a uma criança,

entendeu? Então, para mim, Lego, assim, Lego é o máximo (risos). Lego é uma

coisa de Primeiro Mundo. (Elzah, classe B1, 49 anos)

Leila (classe A2, 64 anos) relata uma experiência de bom atendimento vivida após uma

compra feita no exterior:

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Olha, uma vez, eu viajei, comprei na H., em Londres, uma bolsa. Quando eu

cheguei nos Estados Unidos, eu notei que os fechos, ela tinha vários fechos,

assim, estavam ficando já... oxidando. Tá, bom! Eu de lá mesmo, escrevi uma

carta para H.. Eles me responderam se eu poderia mandar a bolsa de volta. Eu

esperei ter um portador, para não mandar a bolsa assim. E demorou muito para

ter esse portador, porque uma não quis levar, eu fiquei com vergonha de pedir

para outra, porque fazer os outros de pombo correio também não tem graça.

Então, eu mandei a bolsa. Passou pouco tempo, eu recebi um cheque, no valor

que eu paguei a bolsa, porque eles disseram o seguinte. A bolsa era de

fabricação alemã, e... na viagem que eles mandaram, de Londres à Alemanha, a

bolsa extraviou. Eu não sei, eles disseram isso. Por isso, eles tavam me

reembolsando o valor da bolsa que eu havia adquirido. E eu recebi o valor da

bolsa que havia pago. E tinha usado a bolsa, né?

Ela conclui:

Quer dizer, o respeito é outro. Aqui, não há respeito. Não há respeito ao

consumidor. Você não tem. Você não é respeitado. Dificilmente.

Em suma, o cliente não espera ser bem atendido. Quando isso acontece, ele se

surpreende. Mesmo com o passar dos anos, ele se lembra da experiência e a atribui a um

empenho especial e particularmente louvável. De modo geral, porém, reclamar significa,

para ele, “comprar uma briga”. E isso é exatamente o que ele deseja evitar.

4.1.6. O JEITO BRASILEIRO DE LIDAR COM O CONFLITO: SOLUÇÃO

PARA ALGUNS, PROBLEMA PARA TODOS

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Independentemente do seu grau de responsabilidade, das provas de que dispõem para

amparar sua reclamação, dos conhecimentos e do poder conferido pela sua posição

social, os consumidores entrevistados parecem compartilhar um medo comum. Como

vimos, todos relatam sentimentos de ansiedade diante da perspectiva de se dirigir à

empresa para efetuar uma reclamação.

Mas qual é a natureza desse medo, que faz de “cada passo que você dá para chegar na

loja” um “fardo”, que “desgasta, aborrece, cansa, dá dor de cabeça”, que, em suma,

incita o comprador insatisfeito a desistir da briga antes mesmo de saber se ela, de fato,

ocorrerá? Ao lado de considerações de ordem financeira (“não quero ficar com o

prejuízo”), moral (de quem é a responsabilidade?), legal (quem tem razão do ponto de

vista jurídico?), social (“quem sou eu?”), parece haver um outro receio, compartilhado

por todos os entrevistados, independentemente de sua classe social: o do significado que

pode ser atribuído a sua atitude.

Como vimos, até mesmo quando não empreendem qualquer tipo de ação pública, os

consumidores insatisfeitos se empenham em justificar seu descontentamento, como se a

narração da experiência constituisse, por si só, uma situação potencialmente

ameaçadora. Ao expressar sua insatisfação, o consumidor parece procurar justificá-la,

tentando convencer seu interlocutor de que está isento de qualquer responsabilidade pela

ocorrência do episódio e prevenir-se contra um possível julgamento desfavorável.

Mesmo que esteja somente descrevendo uma experiência de insatisfação, ele faz questão

de mostrar que é de boa-fé e que sua reclamação tem motivo justo, em outras palavras,

de sublinhar que “não é nenhum Gerson3”.

Dentro dessa perspectiva, a queixa, pública ou privada, parece constituir um ato que,

além de poder ser contestado pela empresa incriminada, pode também despertar as

3 A expressão tem origem no anúncio de uma marca de cigarros, no qual um jogador de futebol (o Gerson)declarava preferir a marca anunciada, pois gostava de “levar vantagem”. Foi incorporada à linguagemquotidiana, passando a designar, de modo pejorativo, o comportamento dos que procuram “levarvantagem” em todas as situações. Ela é, como veremos, utilizada, com essa conotação, pelosentrevistados.

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críticas de qualquer testemunha. Reclamar assemelhar-se-ia, então, a um

comportamento anti-social, que exporia o reclamante a uma possível rejeição?

Xavier (classe B2, 32 anos) observa:

Não está na cultura nossa reclamar e brigar pelos direitos não!

Cristiane (classe A1, 28 anos) também comenta:

O brasileiro não tem uma cultura de reclamar dos seus direitos.

Da Matta (1983) escreve: “a sociedade brasileira parece ser avessa ao conflito. (...) Tudo

indica que, no Brasil, concebemos os conflitos como presságios do fim do mundo” (p.

141). Ele acrescenta: “num mundo que tem que se mover obedecendo às engrenagens de

uma hierarquia, que deve ser vista como algo natural, os conflitos tendem a ser tomados

como irregularidades. O mundo tem que se movimentar em termos de uma harmonia

absoluta, fruto evidente de um sistema dominado pela totalidade (...), que conduz a um

pacto profundo entre fortes e fracos.”(p. 142). “O conflito aberto e marcado pela

representatividade de opiniões” constitui, para esse sistema, uma ameaça. Ele é, “sem

dúvida alguma, um traço revelador de um igualitarismo individualista, que, entre nós,

quase sempre se choca de modo violento com o esqueleto hierarquizante de nossa

sociedade” (p. 142).

O consumidor que se queixa quebra a regra da harmonia. Ele perturba a paz e o

equilíbrio, que, em princípio, devem reinar nas relações sociais. E esta é,

provavelmente, a razão do seu medo4. Em uma sociedade fortemente hierarquizada,

4 Vale registrar, a esse respeito, um episódio de que fomos testemunha. Em um restaurante da Zona Sul doRio de Janeiro, dois casais sentados cada um em uma mesa, resolveram reclamar do mesmo problema:ambos haviam pedido meia porção de um prato previsto para servir quatro pessoas e ficaram indignadosao receber uma conta que representava cerca de 85% do valor anunciado, no cardápio, para a porçãointeira. Nenhum deles animava-se a contestar o procedimento. Depois de pagar o conta, perceberam,porém, que compartilhavam o mesmo sentimento de injustiça. Somente então, resolveram chamar omaître para discutir a questão. Não estando só, reclamar era menos constrangedor.

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tomar a iniciativa do conflito frente a um adversário geralmente visto como mais forte

assusta.

De acordo com Da Matta (1986), haveria, na sociedade brasileira “um verdadeiro

combate entre leis que devem valer para todos e relações que evidentemente só podem

funcionar para quem as tem.” O resultado seria “um sistema social dividido e até

equilibrado entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das leis universais

que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao

pólo tradicional do sistema)” (Da Matta, 1986, p. 95 a 97). De alguma forma, ao efetuar

uma reclamação, o consumidor rompe com a lógica relacional do “pólo tradicional do

sistema”. O desconforto gerado por essa iniciativa somente pode ser amenizado através

do ingresso na esfera das “leis universais”. E é exatamente isso que o cliente insatisfeito

parece buscar: tornar-se um “indivíduo”, que está, tão somente, pedindo a aplicação da

lei.

Para isso, é preciso, porém, ter certeza de que a queixa se baseia em argumentos

legalmente válidos e que esses argumentos serão aceitos. Mas como ter essa certeza

diante da complexidade das leis e dos procedimentos adotados pelas empresas? Frente

ao emaranhado de dispositivos legais e instrumentos particulares que regulam suas

relações com o vendedor, o cliente raramente se sente seguro de seus direitos. Como diz

Da Matta (1986), “somos um país onde a lei sempre significa o ‘não pode!’”(p. 98). E é

isso que o cliente parece pensar.

Como vimos, a expectativa dominante é a do “não”. Diante dessa perspectiva, é preciso

estar preparado para enfrentar uma recusa constrangedora, ou para recorrer “ao estilo de

navegação social” que passa “nas entrelinhas desses peremptórios e autoritários ‘não

pode!”: o do jeitinho; ou do seu “simétrico e inverso”: o você sabe com quem está

falando? (Da Matta, 1986, p. 99 e 101).

Em alguns relatos, o uso desse tipo de “arranjo” (Da Matta, 1986, p. 99) é

explicitamente mencionado.

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Júlio (classe A2, 43 anos) observa:

No final ele trocou, mas a questão é a seguinte, ficou muito no relacional

mesmo.

Linda (classe B1, 40 anos) relata que somente conseguiu resolver os múltiplos

problemas que teve com uma compra de móveis (sofá, rack e jogo de sala de jantar)

quando um dos supervisores da loja se encantou por ela:

Aí envolveu aquilo, que eu não vou deixar gravado (a consumidora já havia

mencionado o assunto antes do início da entrevista), que ele aí começou: “ah,

eu posso ligar para a senhora”, e coisa e tal. Aí, no interesse de resolver,

trocou. Ele começou a ligar para mim: “e aí? Já chegou o sofá?” Aí começou o

interesse dele. Aí solucionou. (...) Resolveu rapidinho.

Embora poucos entrevistados admitam de modo tão explícito a intervenção de

elementos “relacionais”, o jeitinho é uma alternativa sempre presente. Mas ele é visto

como algo indesejável e o desfecho dos episódios resolvidos através desse meio é o

abandono do fornecedor.

Júlio (classe A2, 42 anos) declara que provavelmente não voltará à loja onde adquiriu

seu ventilador porque “passou constrangimento”.

Linda (classe B1, 40 anos) se diz decidida a evitar a loja e, de modo geral, toda e

qualquer loja de móveis de pequeno porte:

P: Agora se você tiver que fazer novamente uma compra...?

R: Loja grande. Grande, ou então uma dessas que seja bem recomendada

mesmo. (...) Que eu acho também que as grandes têm um nome a zelar! E aí se

preocupam mais.

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O fenômeno se repete com os consumidores que apelam para a tática do “você sabe com

quem está falando?”

Frente aos problemas de atendimento que vinha enfrentando na compra de um filme

protetor para janelas, Geralda (classe B1, 27 anos) argumentou que poderia influenciar

os resultados da licitação da qual a empresa estava participando no seu local de trabalho:

Aí eu liguei e falei: “vocês estão fazendo uma brincadeira, que para vocês

também não é bom, porque é o seguinte, vocês fizeram uma licitação para a

minha empresa, e se vocês não demonstrarem um serviço de qualidade, com

certeza eu vou dizer para a minha chefe: esquece essa empresa! (...) Se você

acha que vale a pena correr atrás desse cliente, então você, por favor, manda

alguém lá em casa para arrumar!”

A ameaça não surtiu efeito e a empresa perdeu a licitação:

E não foram! Não foram! E depois ligaram para cá (local de trabalho) para

saber se tinham aprovado a licitação. Eu falei para ela: é óbvio que não! Eu

avisei para vocês que eu precisava de um serviço bem feito, porque aqui eu

trabalho direto com a diretoria. Se eu disser para ela que não, é não!

Em decorrência do roubo de um talão de cheques, Paulo (classe A2, 36 anos) acabou

tendo que negociar com uma firma de cobrança. Diante das condições que a firma

queria impor, ele ameaçou:

“Olha, eu acho que o meu advogado é melhor que o seu... Você não tá sabendo

bem com quem você tá falando...”

O argumento funcionou:

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E o cara topou a minha proposta.

Quando o seu carro se incendiou em decorrência de um defeito de fabricação, ele

ameaçou divulgar o incidente via Internet:

Eu sei que essas ligações do 0800 são gravadas. Eu resolvi barbarizar um

pouco. Falei: (...) “Eu vou mandar e-mail em inglês, francês e alemão. Eu vou

botar... eu vou abrir a página ‘Eu odeio a X’ (fabricante do veículo)” (...)

Começava pela A. (empresa na qual trabalha). (...) Distribuindo para todo

mundo na A. (...) A única coisa que iria fazer, para não envolver o nome da

empresa, eu iria mandar da minha casa, para as pessoas daqui.

A A. é uma empresa de grande porte, que tem, no país todo, milhares de funcionários e

estabelecimentos comerciais.

Após uma negociação dura, Paulo conseguiu, mediante o pagamento de uma diferença,

trocar o veículo que tinha se incendiado por outro modelo do mesmo fabricante.

No entanto, tanto como Geralda, ele se diz decidido a abandonar a empresa. Seu

próximo carro será de outra marca e, de preferência, de uma montadora nacional:

Não compro mais carro importado. (...) Assim, pergunta pra mim: “qual vai ser

teu próximo carro?”. Vou dizer que possivelmente vai ser um Y (marca

nacional).

Como Paulo, vários entrevistados recorrem a ameaças de divulgação do incidente, em

uma forma branda de uso do “você sabe com quem está falando”? Independentemente

do desfecho, eles se dizem, também, determinados a boicotar, individualmente, a

empresa e acabam, mesmo que modo informal, divulgando o episódio. Apenas

desistem, quando são atendidos, de meios públicos, como o de endereçar cartas à

imprensa.

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Anita (classe B1, 32 anos) teve um problema com um carro da mesma marca que o de

Paulo, mas não teve a mesma sorte. Ela ameaçou divulgar o episódio. Disse à

vendedora:

“Olha, eu vou falar para todo mundo que eu conheço o que me aconteceu, e

espero que ninguém compre carro X.”

Cumpriu a ameaça:

E foi o que eu fiz, né? Passei e-mail para todo mundo que eu conheço, contando

a história.

Por fim, o carro foi consertado, mas não foi possível trocá-lo. Ela se diz agora “mais

calma”:

Aí eu estou, assim, torcendo para que tenha sido um azar meu, que o problema

não tenha sido... Que tenha sido só esse, e que daqui para frente não vai

acontecer mais nada.

Desistiu de escrever para a revista Quatro Rodas, mas o seu e-mail continua circulando

na Internet e o seu marido mandou uma carta para a matriz no exterior. Finalmente, ela

conclui:

Eu fiquei com uma péssima impressão da X.

Cristiane (classe A1, 28 anos) teve um problema com um telefone sem fio que foi

entregue sem a fonte. Ameaçou escrever para a página do consumidor do jornal O

Globo. Havia lido uma reportagem sobre a loja e sabia que esta estava envolvida num

caso de notas frias. Disse, então, ao gerente:

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“Olha, vocês estão queimados no mercado! Vocês vão ter que provar que não é

sub faturamento, que não é mais nota fria. Você imagina que beleza, sair na

página do consumidor do Globo, uma carta enorme reclamando que vocês, além

de subfaturarem, vocês enganam seus clientes!”

Diante desse argumento, obteve satisfação:

Num instante ele já podia fazer tudo aquilo que ele disse que não podia fazer!

(...) Eu acho que ele ficou apavorado com isso, e eu ainda falei: “não, eu ainda

vou fazer questão de dizer que foi o gerente fulano que me atendeu muito mal”.

Mas ela declara:

Agora, no que depender de mim, eu nunca mais entro naquela loja para nada!

E explica:

Porque além de ser super mal tratada, ele estava a todo tempo dizendo que eu

estava roubando, que eu estava dando uma de esperta, enquanto eles é que

estavam fazendo a maior confusão!

Vale notar que os consumidores que dizem ter recorrido a essas táticas pertencem às

classes A e B1. Nenhum dos entrevistados de classe B2, C e D menciona sequer o uso

do jeitinho, como se a possibilidade de “atravessar” a rigidez das regras fosse, mesmo

que não tenha que passar pelo autoritário você sabe com quem está falando?, privilégio

de alguns.

Da Matta (1983) escreve: o você sabe com quem está falando? não é “motivo de

orgulho para ninguém - dado a carga considerada antipática e pernóstica da expressão -

fica escondido de nossa imagem (e auto-imagem) como um modo indesejável de ser

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brasileiro5” (p. 140). Adiante, ele observa também: o jeitinho “nada mais é que uma

variante cordial do você sabe com quem está falando?” (p. 184). Em se tratando de

reclamação, qualquer que seja a alternativa escolhida, a de procurar “navegar” nas

entrelinhas do poder através do jeitinho ou a de tentar exercê-lo, apelando ao você sabe

com quem está falando?, o consumidor que se vê obrigado a recorrer a esse tipo de

expediente fica ressentido. Em ambos os casos, ele, com efeito, se expõe. O que está em

jogo não é mais o seu direito, mas sim a sua pessoa, que pode inspirar, ou não,

confiança, simpatia, respeito. Pior ainda, a qualquer momento, o cliente que ingressa

nesse registro corre o risco de, como Marta, Milena e Cristiane, vir a se sentir

considerado como um “esperto”, um impostor, que está tentando “tirar alguma

vantagem” da situação.

4.1.7. O DILEMA DO CONSUMIDOR FRENTE À QUEIXA: SER OU NÃO SER

GERSON?

Da Matta (1986) descreve a figura do malandro como a de um “profissional do

jeitinho”, especializado no “uso de ‘expedientes’, de ‘histórias’ e de ‘contos-do-vigário’,

artifícios pessoais que nada mais são que modos engenhosos de tirar partido de certas

situações, igualmente usando o argumento da lei ou da norma que vale para todos” (p.

102). É com essa figura que o cliente teme ser identificado.

Esse receio é ilustrado de forma exemplar pelo relato de Josefa (classe D, 64 anos).

Para presentear seus netos no dia de Natal, Josefa comprou duas bicicletas. Uma delas

foi entregue sem a peça metálica que sustenta o selim. Para fornecer essa peça, a loja

exigiu a nota fiscal. Josefa não conseguiu encontrá-la:

5 Grifos do autor.

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Desisti. Aí, terminei de pagar (...) Eu fiquei sem o ferro. Eles não me deram.

Desisti! (...) Eu me enjoei até de reclamar do ferro da minha bicicleta, e deixei

para lá!

Paralelamente, ela recebeu, por um engano da loja, duas outras bicicletas, que foram

entregues no seu domicílio:

Agora, você vê como eles são: quando passou o Natal, uma semana depois do

Natal, chega um carro da F. (loja) com duas bicicletas para me entregar! Nisso

eu já tinha tido as minhas duas. Olha como eles trabalham errado!

Josefa relata:

Se eu fosse safada, eu tinha ficado! Mas eu tenho medo de rolo, eu não gosto de

rolo comigo. Por isso eu não fiquei. (...) Depois foram de novo na minha casa

levar essa bicicleta! Duas vezes!!! (...) Eu não quis!

Ela descreve os comentários da vizinhança:

A minha vizinha disse: “como você é burra! Por que você não pegou? Eles não

estavam te dando? Você pegava!”.(...) “A senhora foi boba, o entregador, vai

ficar para ele”.

E explica sua atitude:

Porque depois ia aparecer outro carnê para eu pagar. Eu já estava com o carnê

da bicicleta. Eu não ia aceitar de jeito nenhum! Eu digo: e depois? Não. Não

quero saber! De jeito nenhum. Não gosto dessas coisas. (...) Eu achei assim, que

eu ia entrar num problema. (...) Que se dane! Se eles foram honestos, se não

foram, eu não quero saber! Eu sei que eu não quero essas coisas do meu lado!

Eu deito no meu travesseiro, eu durmo, graças a Deus!

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A tentação foi grande. Josefa devolveu as bicicletas, mas se decepcionou. Não recebeu

uma resposta à altura do seu gesto:

Eu não fui mais comprar na F.! Não fui mais. (...) Ela tem que acreditar melhor

no freguês. Eu não sou trambiqueira. Sempre paguei tudo lá. Sempre paguei

direitinho! Eu pago com o meu suor, direitinho! Eu não quis comprar mais

nada. Eu fiquei muito triste.(...) Eu fui bem atendida, mas eles não confiaram em

mim. Só porque eu não entreguei a nota, eles não me entregaram o ferro! E eu

sou freguesa antiga! (...) Se você me vender um negócio, eu estou comprovando

que eu estou te pagando, e eu perdi a nota, por que que você vai me desaprovar

que eu não comprei? Eu estou com o comprovante, que é o carnê! Não é? (...)

Eu pensei assim, se eu estou com o carnê pagando, então o carnê está

comprovando que eu fiz a compra e que estou pagando as duas bicicletas!

Antes cliente fiel, ela faz agora suas compras em outras lojas:

Eu nunca tinha nada que falar da F. não. (...) O meu filho, em solteiro,

comprava tudo na F. !!! (...) Eu tenho Suggar, que foi na F., o meu fogão foi na

F., a minha televisão que eu tinha, a outra, foi na F., o meu som 3 em 1, naquela

época, 3 em 1, o meu filho comprou na F. (...) Comprei agora uma televisão na

U.. (...) Comprei uma geladeira, comprei na A.. (...) Não vou comprar na F.

não, que eles podem entregar uma geladeira que não presta.

E conclui:

E só perderam o freguês! Que eu não compro mais! (...) Não é justo. Mas o que

que a gente vai fazer? O nosso país não é esse!!! Não é assim?

Josefa reage à negativa da empresa como a uma ofensa, particularmente injusta. A

devolução das bicicletas entregues por engano demonstra sua boa fé e honestidade. Ela

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não é “trambiqueira”, mas, como Marta, Milena e Cristiane, se sentiu tratada como tal.

Não confiaram na sua palavra e nem aceitaram o carnê como comprovante da compra.

Aplicaram o regulamento ao pé da letra, como se ela fosse um indivíduo qualquer, que

estava procurando abusar da situação e não uma pessoa, que havia mostrado que

merecia a confiança da empresa.

Da Matta (1983) pergunta: “que ocorre com a massa de pessoas que, não tendo

mediador algum, entram no mundo diretamente, sem padrinhos, pistolões, ou mesmo

patrões?” Ele responde: “é a massa que constitui o mundo dos indivíduos e que está

submetida à risca ao universo generalizante das leis. (...) Enquanto para nós a

individualização raramente ocorre - por exemplo quando estamos sujeitos às leis do

trânsito - para eles, a individualização é a regra. (...) Essa é a mais profunda experiência

de exploração em sociedades semitradicionais, como é o caso da sociedade brasileira: a

de ser um indivíduo numa sociedade que tem seu esqueleto numa hierarquia, a de ser

tratado como um número ou um dado global de uma massa, num mundo altamente

pessoalizado, onde todos são ‘gente’ e vistos com o ‘devido respeito’ e a ‘devida

consideração’.” (p. 187 e 188).

Para poder reivindicar o tratamento de indivíduo protegido pela lei, faltou a Josefa a

nota fiscal. Embora ache que, por ter perdido o documento, “estava sem a razão”,

Josefa se sentiu injustiçada. Do ponto de vista da pessoa, ela foi traída. Seu empenho,

sua lealdade, não mereceram qualquer reconhecimento. Nem indivíduo, nem pessoa,

Josefa, se viu rejeitada pelas duas lógicas e relegada, apesar do seu esforço, ao espaço

ambígüo ocupado pelo malandro, que procura utilizar ambos os registros ao seu favor,

independentemente das exigências (legais ou relacionais) que os acompanham. Diante

dessa situação, ela acabou procurando, sobretudo, escapar desse espaço. Devolveu as

bicicletas. Desistiu de negociar, evitando assim qualquer suspeita de abuso. Comprou,

com o dinheiro de seu bolso, a peça que faltava. Mas “deita no travesseiro e dorme”,

isto é, sua consciência está em paz.

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O receio de vir a ocupar a posição do malandro não é exclusividade dos menos

privilegiados:

As empresas sempre questionam muito a veracidade do que você está falando,

acham que você não está sendo honesta. (Patrícia, classe A2, 34 anos)

Eles acham que não existe, que você está inventando. (Maria, classe A2, 52

anos)

Ele é explicitamente mencionado por Isis (classe A2, 54 anos), que aponta a existência

de “trambiqueiros”:

O problema é que quando as coisas se tornam mais fáceis, a gente tem umas

pessoas aí, que, justamente por as coisas se tornarem mais fáceis, elas burlam

as normas e a legislação.

E sublinha a dificuldade de identificá-los:

Até onde o cara está trambicando ou não está trambicando?

Isis observa, por fim:

Eu só sei que a gente vive numa terra de Gerson, de querer levar vantagem em

tudo, e isso realmente me preocupa, porque, com isso, aquelas pessoas que não

são assim saem prejudicadas!

O medo de ser confundido com um “Gerson” está tão presente que qualquer reticência

da empresa em atender a queixa tende a despertá-lo, podendo resultar como nos casos de

Marta, Milena, Cristiane, Josefa e Júlio no comprometimento definitivo da relação com

o cliente. Ele está também, sem dúvida, na origem do empenho dos entrevistados em

justificar sua atitude.

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Frente à necessidade de se queixar, o cliente tenta desesperadamente situar-se no

registro do “indivíduo” e “das leis universais”. Por outro lado, como desconfia que essa

lógica não irá funcionar a seu favor, ele vislumbra a perspectiva de ter que recorrer ao

registro da “pessoa”. Essa perspectiva, por sua vez, o coloca frente a um dilema: até que

ponto conseguirá se sair sem desonra da situação?

Alguns, sobretudo os de classe mais baixa (José, Josefa, Humberto, Elisete,

Wellington), simplesmente desistem. Os que resolvem, assim mesmo, se queixar, o

fazem como quem “anda no fio da navalha”. Entre o poder de que dispõem e o de seus

interlocutores, entre o desejo de justiça e o ceticismo frente às instituições que a

representam, entre o risco de ser tratado como indivíduo e o de apelar ao jeitinho ou ao

você sabe com quem está falando?, entre a vontade de fazer ceder a empresa e o receio

de parecer malandro, antipático ou, simplesmente, inconveniente, procuram encontrar

um meio de lidar com o conflito. Buscam fazê-lo de uma forma, que não os exponha à

humilhação de receber um “não”, nem ao constrangimento de ser tratados como

“espertos” ou como “joão-ninguém”. Tentam, em suma, sair da posição de vítima, sem

correr o risco de cair mais baixo ainda.

O medo de ser confundido com um malandro, que pretende, tão somente, tirar proveito

de qualquer dispositivo que lhe possa ser favorável, tem, porém, sua contrapartida.

Assim como pensa que a empresa irá desconfiar dele, o consumidor desconfia da

empresa.

4.2. A EMPRESA SEGUNDO O CONSUMIDOR INSATISFEITO

Depois de investigar o pensamento dos entrevistados sobre a situação de insatisfação,

procuramos examinar suas idéias sobre a relação consumidor versus empresa como um

todo.

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O tom que domina os relatos é o do ceticismo. Os entrevistados acreditam que as

empresas estão, de modo geral, essencialmente, interessadas em vender e em lucrar. Ao

lidar com elas, é preciso, portanto, se precaver. Para isso, os clientes recorrem aos meios

que estão ao seu alcance. Buscam, na medida do possível, minimizar os riscos da

compra: pesquisam, escolhem, com atenção, a forma de pagamento e a marca do

produto. Ao descrever esses cuidados, os entrevistados deixam claro que a relação com

o vendedor é marcada pela desconfiança e, também, impregnada da dimensão

hierárquica que caracteriza a sociedade brasileira.

4.2.1. ESPERTOS SÃO ELES: “ELES SÓ QUEREM VENDER”

Giovanni (classe B1, 34 anos) comprou um televisor da marca W., com garantia de três

anos. Logo após a compra, o aparelho deu alguns problemas, satisfatoriamente

resolvidos pela assistência técnica. Após um ano, porém, apresentou um defeito no tubo

de imagem:

Aí eu ligo pros caras, do atendimento, o 0800 da fábrica da W.. (...)E eles me

falaram o seguinte: “olha, realmente, pelo que a gente tá levantando aqui, você

deu o número de pedido, tem que trocar o tubo de imagem, só que tá

acontecendo um problema, nós não temos esse tubo de imagem, teremos de

importar.” Falei: “tudo bem, em quanto tempo vocês vão entregar o tubo de

imagem?” “Ah, não tem previsão.” “Como não tem previsão? Vou ficar sem

televisão e não sei quando vou receber?” “Realmente, não tem previsão.” Aí eu

falei: “olha então queria registrar uma queixa, como é que eu faço para falar

com alguém da fábrica e tudo, porque, nesse caso, tem que me dar um televisor

novo, né, alguma coisa desse tipo, ou me aluga um televisor, eu alugo, a fábrica

paga.” “O senhor quer, eu vou registrar a reclamação que o supervisor técnico

da fábrica vai ligar”. “Tudo bem.” Então registrou.

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O registro da queixa não surtiu efeito. Cansado de não obter resposta, Giovanni

resolveu, após múltiplas tentativas de negociação, recorrer ao Procon:

(O supervisor técnico) não ligava. (...) E aí, quando eu conseguia falar com ele

direito, ah eu não consegui resolver, não sei o que, não consegui, então ficava

nessa história. Aí eu dei entrada no Procon.

Como a fábrica não atendeu aos memorandos enviados pelo Procon, o caso foi

encaminhado ao Juizado Especial Cível. Na audiência de conciliação, Giovanni propôs

o seguinte acordo:

Então falei para ele (advogado da empresa): “olha faz o seguinte (...). Pega o

valor de 2 anos atrás, sem correção, 660 reais, há dois anos atrás, e me dá em

produtos na WAT.” (...) A WAT é uma loja que vende produtos importados,

eletro-eletrônicos. E o mesmo dono da W., é da WAT.

A proposta foi examinada e rejeitada pelo dono da empresa. Após novos trâmites legais,

a justiça, finalmente, deu ganho de causa ao cliente:

Então, anteontém eu fui lá no juizado de pequenas causas, descobri que a

sentença tinha sido favorável a mim, que ele pagasse o dinheiro com correção.

Giovanni observa porém:

Só que aí começa um outro problema. Chama-se Justiça brasileira. Ele tem, em

tese, a partir da publicação, dez dias para pagar. Mas o que ocorre? Ele pode

entrar com recurso. Se ele entrar com recurso, isso vai para segunda instância,

vai ser julgado em segunda instância. A experiência de qualquer advogado aí

diz que um julgamento em segunda instância por outro juiz demora uns 3 meses,

mais ou menos, é isso que tá demorando. Na hora que julgar em segunda

instância, mesmo sendo julgado, ele ainda pode embargar a execução, ou seja, é

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um dinheiro que, provavelmente, eu só vou conseguir reaver, entendeu, se... Eu

vou ter que passar a contratar algum advogado. (...) Ou seja, ainda vou gastar

dinheiro, e eu acho que, pelo comportamento deles, eles não vão ceder. Eu já

descobri lá que eles têm vários problemas lá. Não é só comigo. Quer dizer, a

WAT já é conhecida lá.

Mas ele se diz decidido a levar adiante a ação:

P: E você vai continuar? Vai contratar um advogado e...

P: Até o fim. Sem a menor possibilidade de parar. (...) Desistir jamais.

E explica:

Eu acho que o cara, se depender de mim, não vai se livrar de pagar o que ele

tem que pagar. Pode deixar de pagar por causa da Justiça, não por causa do

que... (...) Eu posso até pagar mais do que o bem, mas eu vou... Vou pagar mais

do que o bem. Mas esse dinheiro vai sair dele. Não tem a menor possibilidade. A

não ser que a Justiça... (risos)

O importante, para Giovanni, é que o dono da empresa seja obrigado a desembolsar o

valor do prejuízo que lhe infligiu. Novamente, a questão é de honra. A empresa não

cumpriu seu compromisso e deve ser punida.

Indagado sobre a atitude da empresa, Giovanni observa:

Acho que é uma questão de educação do próprio dono da empresa. Acho que a

questão da formação da pessoa que é o dono da empresa, acho que influencia

muito na forma de agir da empresa. (...) E aqui eu acho que é um caso desse

tipo, né? Quer dizer, ele continua tendo vantagem, quando ele demite um

empregado, que ele vai na justiça e consegue um acordo e paga menos do que

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ele deveria pagar, é um grande negócio. Ele conta com que a maioria das

pessoas não vão levar adiante porque não querem ter problema. Às vezes, numa

causa como essa, diz “ah ele não vai levar adiante por causa de seiscentos

reais”. Então paga-se para ver. Geralmente as pessoas desistem no meio do

caminho. Ele ganha de um recurso. Então vai pela Justiça. Beneficia ele. É um

cálculo selvagem, irracional, econômico, selvagem. Não tá preocupado em

atender cliente. Mas o Brasil é cheio disso.

E, como bom descendente de italiano que é, acrescenta, irônico, comentando a

sonoridade americana do nome da WAT:

Eles devem colocar o nome de WAT, que isso é coisa de americano. Às vezes a

pessoa pensa que é uma loja boa e tudo. Isso já faz parte do negócio. Acha que

de repente a loja é de americanos, quando você vai ver, é de um italiano bruto, e

picareta. Ele deve ser do norte. Porque o sul é camponês, né? O sul é um

pouquinho mais... Tudo bem, tem a Máfia, mas é contra o governo, né?

Em suma, o dono da WAT pertence à categoria dos que recorrem à lógica da

“vantagem”, à lógica da esperteza. Segundo a avaliação de Giovanni, ele não é uma

exceção:

Eu acho que nosso capitalista brasileiro é extremamente selvagem. É coisa do

curto prazo. Nós temos um raciocínio cultural do curto prazo muito grande.

Então se eu puder dar um golpe e ganhar muito em pouco tempo, eu ganho e

fujo, e não apareço mais. Isso aí, é milhares de exemplos que você tem de

pessoas traindo outras pessoas, fugindo com o dinheiro de comissão, com o

dinheiro dos negócios, porque quando vê que o dinheiro é grande, sai fugindo

com o dinheiro. É a mesma coisa, a lógica no Brasil é: se eu puder lucrar num

curto espaço de tempo, e aí a idéia de cliente vai pro espaço. Fidelidade do

cliente, não preciso. Prá que que eu preciso? Se eu conseguir vender uma

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grande margem agora, ganhar uma grande grana, prá que que eu preciso de um

cliente comprar de novo?

Outra entrevistada chega a conclusão similar.

Maria (classe A2, 52 anos) comprou um armário da L.. O móvel foi entregue no prazo

prometido, faltando, porém, uma peça:

Os caras vieram instalar o armário, e esqueceram de um pedaço. Uma parte do

armário, eles não trouxeram. Não era bem um pedaço, era um arremate, tá?

Como faltava um... Tem um pedacinho assim de uns 7 cm, uma madeira lisa, que

junta com a parede para ficar bonitinho, grudadinho na parede. Eles fazem

aquilo do tamanho, porque não cabia um módulo a mais, então eles arrematam

direitinho pra não ficar um buraco na parede. Eles não trouxeram isso aí. O

cara que veio, que é o colocador do armário, escreveu na ordem de serviço: está

faltando a peça tal, que para eles tem um número, um código, tal. Tudo

direitinho, bonitinho. E nada da peça voltar. Aí toca a ligar para lá. Toca a

falar com 30 pessoas, na fábrica. Na loja, você não existe mais para a loja,

morreu.

Na tentativa de resolver o problema, apelou para o fax, e acabou sendo bem sucedida:

Aí rolou essa história, acho que 20 dias ou mais. Eu mandei esse fax, o cara me

ligou, dizendo que a peça ia vir, não sei o que mais, não sei o que mais. Aí eu

passei outro fax: “prezado senhor, obrigada pelos seus telefonemas, não tão

resolvendo nada, daqui para frente, eu só me comunico com o senhor por

escrito. Favor me comunicar, por escrito, quando a peça vai ser entregue.” No

dia seguinte, por milagre, a peça chega.

Como os demais, Maria sublinha o descrédito com que sua queixa foi tratada:

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Eles acham que não existe, que você está inventando.

Embora tenha sido, finalmente, atendida, diz-se decidida a nunca mais pisar na loja:

A L., eu não boto meus pés lá, por uma questão de consciência moral. Eu não

tenho... estômago de barata para entrar naquela loja.

E a levar essa decisão ao pé da letra:

Inclusive, eu precisei voltar lá, e pedi a uma amiga para ir comigo e fiquei do

lado de fora esperando. Ela falou com a mulher lá dentro e eu fiquei do lado de

fora olhando.

Indagada sobre essa atitude, recorre, também, ao tema da honra:

M: Porque achava que se eu botasse meus pés lá, eu tinha perdido a vergonha.

P: Como assim, perdido a vergonha?

M: De ser tão mal tratada por uma loja como eu fui por essa L.. Tinha perdido a

vergonha na cara. Tinha perdido a minha dignidade. Para mim, botar os pés na

L. de novo era ter perdido a minha dignidade. E a moça ficou olhando, a

arquiteta que me vendeu e a minha amiga ficou dizendo para ela: “olha, ela

está ali, mas aqui ela não entra.” A mulher queria morrer, mas eu não entrei. A

minha amiga foi lá. Falava com a mulher, voltava, falava comigo, mas eu não

entrei.

P: Você não entrou porque achou que...

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M: Não entrei, porque eles tinham que sentir que meus pezinhos, lá dentro, eu

não botava. Eu fiquei ostensivamente do lado de fora da porta. E a arquiteta ria,

chamava, e tal e a minha amiga falou: “ não adianta, ela não vai botar mais os

pés aqui.”

Maria observa também:

Agora, a cara de pau dos caras da loja, é uma coisa assim de chorar, porque

quando você vai para comprar, eles são angelicais. Dentro da L., são

angelicais. Eles passam uma tarde com você. Se você quiser ficar das duas às

seis para comprar uma poltrona, eles ficam das duas às seis do seu lado,

sorridentes e faceiros. Dão café, água, tudo o que você quiser. Bota o móvel

para cá, bota para lá, bota um pano colorido por cima para você imaginar

outra cor. Pagou, dançou. Acabou aí tua relação com eles. Era só isso, era para

vender.

Este último comentário expressa de forma particularmente clara e sintética uma idéia

recorrente no conjunto de entrevistas: a de que a empresa somente atende bem o cliente

antes da venda, mudando radicalmente de comportamento depois dela.

Você só é bem atendida quando você compra.(Milena, classe B2, 22 anos)

O vendedor está lá para vender. Ele vende, diz que é bom, eficiente, ele te canta

, e “olha, esse aqui é mais bonito.” (risos). (Antonieta, classe C, 43 anos)

Porque eles querem vender, então, eles enfeitam o pavão da melhor maneira.

(Catarina, classe B1, 42 anos)

Vendeu! Se prestou, prestou! Se não prestou, eles que se danem! (Josefa, classe

D, 64 anos).

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É aquela história de que quando há uma venda, tudo é absolutamente lindo,

maravilhoso e muito fácil. (...) Você tem um tratamento VIP! Isso na venda. O

pós-venda é muito ruim! Depois que você comprou, quando você vai fazer uma

reclamação, é muito mal vista! (Patrícia, classe A2, 34 anos)

Você, quando você vai comprar, você é... olha! Se acontece alguma coisa com o

produto que você compra e você volta, o atendimento já não é aquele que ela te

deu. (Leila, classe A2, 64 anos)

Maria (classe A2, 52 anos) não acredita que todas as empresas sejam iguais:

Acho que alguns já tomaram essa consciência que chamam de satisfação do

consumidor. (...) Se, para aumentar a venda deles, eles se voltam para a

qualidade, dez! Nota dez para eles e estamos todos felizes, eles vendendo muito

e eu comprando contente.

Mas, diferentemente de Giovanni (classe B1, 34 anos), ela não atribui o problema

somente a uma questão de “educação do dono”:

A relação de vendedor para o consumidor é uma relação de... grana. O cara tá

ali, porque ele vive daquela venda. Eu estou ali porque eu preciso do produto

que ele vende. Preciso, ou por necessidade, pode ser um fogão, que eu não vivo

sem fogão, ou preciso por prazer, que eu quero um sofá novo, um carro novo.

Eu preciso de alguma forma, por necessidade ou por prazer, eu preciso. E o

cara precisa vender, e eu quero comprar. É isso! Só isso.

Maria (classe A2, 52 anos) sublinha ainda:

Agora, se eu sou mais feliz ou menos feliz, pelo amor de Deus, eles não tão nem

aí com isso. (...) Essa história de satisfação do consumidor, é brincadeira! A tua

infelicidade não é instrumento de pressão para vendedor nenhum. Nunca foi.

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Instrumento de pressão é não pagar e eles não verem o dinheiro, aí isso é

instrumento de pressão. Então, está muito claro: eles estão aí para vender, e eu

estou ali para comprar. É uma relação de grana. Só. Se eu for bem atendida,

vou ficar contente, vou voltar lá.

A idéia de que a empresa é movida exclusivamente pela busca de lucro6 é, também,

recorrente no conjunto de entrevistas colhidas:

Pensam assim, em lucro (Paula, classe A2, 41 anos)

Eu acho que o empresário brasileiro... é ganância, é falta de procedimento (...)

Ele quer ganhar muito dinheiro, ele quer ter uma margem de lucro muito

grande, então ele não investe, por exemplo, em botar um bom funcionário.

(Regina, classe B1, 50 anos)

É uma visão muito mercantilista, muito materialista da coisa (...) O que eu

chamo de mercantilismo, não sei nem se é a terminologia exata, porque não é

bem a minha área, mas é o cara só pensar no dinheiro, na venda que ele está

fazendo. (Isis, classe A2, 54 anos)

Eles vêem mais pelo lado do dinheiro (Cássia, classe D, 28 anos)

Então eles querem é ganhar! A venda! (Linda, classe B1, 40 anos)

É lucro!!! Simplesmente isso. É lucro! (Xavier, classe B2, 32 anos)

Viu como eles eles sabem cobrar? Está vendo como eles sabem cobrar do

freguês? (Josefa, classe D, 64 anos, comentando sobre serviços de cobrança e

comparando seu desempenho com o da loja onde comprou suas duas bicicletas)

6 Da Matta (1986) observa que a palavra “lucro” tem, diferentemente do termo “profit”, utilizado nosEstados Unidos, “conotações semânticas altamente negativas.” (p. 45). De fato, o lucro parece constituir,

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E, cada vez mais, é...falsificado, material ruim. Enganar mesmo o povo. (Graça,

classe C, 48 anos)

A cultura de você levar vantagem em tudo, eu acho que permeia essas relações

todas. A relação com o próprio cliente. (Elzah, classe B1, 49 anos)

A mudança de atitude depois da venda encaixa-se, portanto, em uma lógica mais ampla:

o único objetivo da empresa é vender:

A preocupação (da empresa)? É vender! Isso que eu disse. Vender, faturar.

(Maria, classe A2, 52 anos)

Está vendendo, vão vender, vão vender, não estão ligando, né? De vender uma

coisa bem feita, uma coisa boa. (Graça, classe C, 48 anos)

Não se incomoda porque não atende o freguês direito! Vendeu! (Josefa, classe

D, 64 anos)

A empresa, primeiro, seduz, e depois abandona: realizada a venda, ela se desinteressa do

cliente.

Só na hora que ele quer pegar o cliente é que há... aquele tratamento

diferenciado. No momento que comprou, que gastou, que pagou, tchau! (Leila,

classe A2, 64 anos)

O que interessa para ele (gerente) é vender, não resolver o problema, caso

surja um problema. Essa é a conclusão a que eu cheguei. Se o produto presta ou

não, se é de qualidade ou não, não interessa para ele. (Catarina, classe B1, 42

anos)

aos olhos dos entrevistados, um objetivo pouco nobre, quando não censurável.

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Até mesmo quando resolve o problema, ela o faz por motivos interesseiros:

Mas o modo como eles trabalham foi do tipo assim, vamos abafar logo o caso,

resolver a situação, para ele não divulgar mal a nossa marca! (Xavier, classe

B2, 32 anos)

Pro cliente é tipo “cale a boca”, “olha, não quero que a senhora crie

problema.” (Marta, classe A2, 32 anos)

Eles só trocaram porque eu era, digamos, uma cliente freqüente, e porque eu

quebrei o pau lá. Eu falei pra caramba. Aí, tipo assim, eles fizeram isso, “vou

trocar que é pra ela ficar na dela, entendeu? Pra não reclamar com o Procon,

com não sei o quê.” (Milena, classe B2, 22 anos)

Essas críticas retomam temas discutidos há cerca de três décadas pelos autores que

propuseram e defenderam a adoção do conceito de marketing (Levitt, 1995 e Kotler,

1972, entre outros). De certa forma, denunciam a permanência da “orientação para

vendas” e de uma visão empresarial de curto prazo.

Giovanni observa:

Se eu conseguir vender com uma grande margem agora, ganhar uma grande

grana, prá que que eu preciso de um cliente comprar de novo? (Giovanni, classe

B1, 34 anos)

No entanto, o pensamento do consumidor é mais radical. Como Maria, todos parecem

pensar:

Duvido que alguém esteja preocupado com a minha felicidade quando faz uma

geladeira. (Maria, classe A2, 52 anos)

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Catarina (classe B1, 42 anos) observa:

Acho que é falta de importância com o ser humano, eles não dão muita

importância para o ser humano. Aqui vai mais é ganhar, e ganhar, o dinheiro

tem mais importância.

E Cássia (classe D, 28 anos) se queixa:

Porque acho que, pôxa, eles têm que ter consideração com a gente. Somos seres

humanos, é falta de respeito. (Cássia, classe D, 28 anos).

Para os consumidores, as empresas, em geral, não dão importância ao “ser humano”. Em

princípio, não se preocupam com a felicidade das pessoas. Seu objetivo é “faturar”. O

critério que as diferencia é muito mais elementar do que os mencionados no conceito de

marketing (satisfação do cliente, bem estar do consumidor a longo prazo): trata-se de

saber se procuram alcançar esse objetivo “enganando o povo” (Graça, classe C, 48

anos); se agem, ou não, com honestidade.

No entanto, alguns entrevistados acreditam que existem empresas que exercem seu

ofício com seriedade:

Talvez, se eu tivesse uma geladeira X. (marca de prestígio), mesmo do tempo da

minha avó, se eu fosse no mercado, talvez eu encontrasse ainda uma prateleira,

uma portinha, porque a X. não faz, talvez, não sei, não tenho muita certeza,

também não faça o que a Z. (marca mais popular) faz, fez comigo, tirou a

geladeira de linha e acabou, PT saudações, me deixou sem atendimento. (Paula,

classe A2, 41 anos).

Agora, tem os que são legais, do ponto de vista que o papel deles é vender

qualidade e vendem qualidade. Não para eu ser feliz, mas para eles venderem

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mais. E não me importo também que eles façam isso para venderem mais, desde

que vendam direito. (Maria, classe A2, 52 anos)

Aí é o que eu digo: funcionou bem a empresa! Eles foram treinados para isso!

Gente, deu um problema, corre, vai lá na porta do consumidor, troca, resolve,

agradece e trata ele bem! Porque senão ele vai falar com dez, e esses dez vão

falar com outros dez, e a gente vai perdendo o consumo! Tanto que é uma marca

boa! Você não ouve falar mal da E. (Xavier, classe B2, 32 anos)

Outras procuram “dar um golpe e ganhar muito em pouco tempo” (Giovanni, classe B1,

34 anos).

Mas a expectativa que prevalece é a do “golpe”. Embora Paula (classe A2, 41 anos)

mencione a X. como exemplo de bom atendimento, ela “não tem muita certeza” de que

a conduta da empresa seria, realmente, diferente.

Significativamente, Cristiane (classe A1, 28 anos) comenta:

Eu acho que é assim, tem umas empresas, que elas são, não é que idôneas, mas

elas são voltadas para o cliente delas, entendeu?

Ou seja, nem mesmo uma manifestação de interesse em satisfazer o cliente basta para

pensar que a empresa pode ser honesta.

A desconfiança acompanha, assim, o ato de compra.

4.2.2. COMPRAR: UM INVESTIMENTO DE RISCO (“PAGOU, DANÇOU!”)

Antonieta (Classe C, 43 anos) costuma, antes de efetuar qualquer compra, fazer uma

pesquisa:

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Olho sempre no jornal, quando estou procurando uma coisa. Ou então vou em

todas as lojas, assim, pesquisar, preço... Por exemplo, se eu quero comprar

ferro, aí eu vou na Casas Bahia, aí eu vou no Ponto Frio, vou na Americana,

vou na Casa e Vídeo, faço uma pesquisa de preço, para eu poder comprar.

Em busca de um presente de natal para os sobrinhos, encontrou uma promoção de

videogame e resolveu adquirir o produto:

Foi naquele folheto que vem no jornal. É um folheto com um mostruário. E as

promoções. E ele estava na promoção. (...) Fui logo direto na loja. (...) Fui para

lá e comprei.

O aparelho deu defeito logo após a compra:

Aí os meninos brincaram um pouco, quando desligou, foi ligar novamente, o

videogame não funcionava mais. Aí levei para trocar e não trocava mais porque

já tinha passado 24 horas, só com 24, é... 24 ou 42 horas que trocavam.

Mandaram eu levar para a garantia. Levei para a garantia, nunca tinha peça

para repor. Ficou quase um mês.

O conserto, finalmente, foi feito:

E aí depois disso, eles botaram, colocaram a peça, e mandaram entregar.

Mas o defeito voltou em seguida:

Mas também durou bem pouco, pouquíssimo tempo. Parou de novo, está lá

estragado (risos).

Antonieta desistiu:

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T: Não botei mais no conserto. (...) Aí outro dia eu perguntei pro A.(sobrinho):

“cadê aquele videogame que eu dei para vocês no Natal?” “Ah, escangalhou

mesmo, durou pouquinho, já não presta mais há muito tempo.”

P: E as crianças, como ficaram?

T: Ah, ficaram... ah, não tem mais videogame. Aí o pai deles arrumou um outro.

Acho que não, não deu muita falta né, “nós brincamos no outro”.

Ficou decepcionada:

Ah, fiquei triste, né? Digo: “comprei uma coisa, novinha, para dar de presente,

e está escangalhada. Antes tivesse comprado uma de segunda mão. Dava na

mesma.”

Mas continuou pagando as prestações:

Estava pagando. Paguei cinco vezes, e ele estragado.

Para Antonieta, comprar exige cuidado: é preciso evitar o desperdício de dinheiro,

pesquisando preços e informando-se com terceiros:

Até comida! (...) Se eu não conheço muito bem, eu pergunto: “usou?” “Ah, tá,

já experimentei, é bom, é gostoso”. Então vou levar um para experimentar.

Ainda assim, o sucesso depende também da sorte. Antonieta diz nunca ter passado por

uma experiência semelhante à que ocorreu com o videogame, e observa:

Porque tem uma coisa que eletrodomésticos, essas coisas, diz que é por sorte,

né? Tem gente que compra que vive escangalhando, tem gente que compra que

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nunca dá defeito. Lá em casa, foi a primeira coisa que deu defeito, nunca

comprei nada para dar defeito.

Em seguida, acrescenta que o seu ferro de passar, diferentemente do de sua patroa,

nunca deu problema, embora ambos sejam da mesma marca.

Antonieta não é única a mencionar o elemento “sorte”:

Eu nunca dei azar nessas coisas não. (...) Eu nunca dei azar, foi essa vez só!

(Josefa, classe D, 64 anos)

Eu me dei muito mal. (Graça, Classe C, 48 anos)

Graças a Deus, as minhas coisas nunca pifaram em casa! (Wellington, classe C,

38 anos)

O relato de Antonieta, como um todo, descreve a compra como um ato que envolve

riscos: risco de jogar dinheiro fora pagando mais que o necessário, risco de adquirir um

produto ruim ou defeituoso.

Antonieta conclui:

Tem que saber se vai querer porque, se depois se arrepender, tem que ficar com

o prejuízo, que eles não assumem o prejuízo mesmo, a gente é que tem que

assumir.

A idéia de que é preciso pensar duas vezes antes de “fechar” a compra é encontrada em

várias entrevistas:

A lição que eu tiro é que eu acho que a gente tem que saber muito bem o que

quer, escolher muito bem onde comprar. (Maria, classe A2, 52 anos)

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E eu acho que, por exemplo, no momento que você vai comprar um aparelho,

você tem que dar valor ao dinheiro que você ganhou, ver bem o que é que você

está comprando. (...) Seria uma questão de segurança. (Vera,37 anos, classe

B2).

Ao efetuar o pagamento, o consumidor faz uma aposta. Em caso de problema, o

“prejuízo”, provavelmente, será seu:

Ah depois que paga, aí é o caso. Depois que paga eles não trocam, e não pode

mais devolver. Tem que ficar com ele. (...) Eu fico com meu problema (...) eles

não tão mais nem aí. (Antonieta, classe C, 43 anos)

Então, a gente sendo bem ou mal servido, a gente tem que pagar! (Josefa, classe

D, 64 anos)

A gente paga e fica com problema em casa (Wellington, classe C, 38 anos)

Agora quando você passou o seu cheque, você não existe mais (...) Pagou,

dançou. (Maria, classe A2, 52 anos)

Deu o dinheiro, acabou! (Geralda, classe B1, 27 anos)

No momento que comprou, que gastou, que pagou, tchau! (Leila, classe A2, 64

anos)

A fim de minimizar os riscos, alguns consumidores de classe A e B optam, para

compras mais críticas, por um pagamento a prazo, visando dispor, assim, de algum meio

de pressão.

Maria (classe A2, 52 anos) explica:

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M: Pago em duas vezes, não pago mais à vista, sendo que a segunda, ou terceira

vez, conforme o tempo de entrega que eles mandam. Se eles dizem que são 40

dias úteis, eu pago em três vezes, que 40 dias úteis, são 60, são dois meses.

Então, certamente, quando você paga a segunda, o produto ainda não chegou e

já está você na mão dos caras de novo.

P: Então, pelo menos, fica devendo a terceira?

M: Fica devendo a terceira porque aí você fala não vou pagar, e a gente vai

brigar. (Maria, classe A2, 52 anos)

Linda (classe B1, 40 anos) observa:

Eu comprei em cheques pré-datados, e sem entrada. Então tinha muito mais

chances. Eu poderia ter cancelado tudo (...) E eles... Eu cancelava e não saía em

prejuízo nenhum. (...) Eu acho que, a prazo, você tem mais chance de

pressionar. Porque você tem ainda uma dívida com eles.

Geralda (classe B1, 27 anos) relata:

A minha mãe, que estava em casa, ela falou: “eu vou te dar um cheque só!” (...)

Para assegurar que ele fosse lá de novo! (...) E aí a gente deu uma segurada, e

foi justamente por isso que ele foi depois! Tanto é, que na segunda vez, eu dei o

cheque e ele não voltou na terceira! Por que? Porque já tinha recebido!

(Geralda, classse B1, 27 anos)

Regina (classe B1, 50 anos) também comenta:

Agora, eu acho, por exemplo, a última (parcela), você pode segurar até montar.

(...) Ela queria que eu pagasse agora a colocação, por exemplo... Já que tinha

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que pagar a colocação do chão, que eu pagasse a colocação da bancada! Aí eu

não topei de jeito nenhum! Falei que não dava! (...) Porque eu já tinha pagado

mais do que eu tinha recebido! Esse é o mal! Você sempre já pagou a mais do

que você recebeu! (Regina, classe B1, 50 anos)

Regina utiliza a possibilidade de sustar cheques pré-datados como ameaça. No entanto,

ela observa:

Não pensei em sustar não. Porque eu achei que era pior! (...) Sustou o cheque,

eu acho que aí o cara pára de fazer mesmo, né? Aí é uma confusão maior. (...)

Ameaçar, a gente ameaça de tudo, depois a gente trabalha com um pouco

mais... (risos). (...) Quer dizer, eu ameaço, dou uns gritos, eu sou boa de dar

bronca. (...) Mas eles trabalham de um jeito que você nunca vai desistir! Nunca

vai desistir porque você sabe que vai sair perdendo

Para os consumidores de classe C e D, o pagamento a prazo constitui, ao contrário, um

risco adicional:

Se você paga a primeira prestação, não paga a segunda, seu nome vai para o

SPC, aí, para não sujar o seu nome, tem que pagar todas elas. Porque se eu não

pagar, meu nome vai para o SPC, eu não posso mais fazer... Não vou ter mais

crédito em lugar nenhum. (Antonieta, classe C, 43 anos)

Agora, se eu deixasse de pagar, eles botavam o meu nome no SPC, não

botavam? (...) Eu acabei pagando todos os meses (...) e fiquei sem o ferro o

tempo todo.(...) Eu acho que as lojas não se incomodam com o freguês, de não

tratar bem o freguês, mas o freguês se incomoda de se sujar! Porque o pobre só

tem o crediário! Se sujar... então ele não compra mais nada! Ele não compra

mais nada! E o nome da pessoa tem que estar limpo. (Josefa, classe D, 64 anos)

Antonieta (classe C, 43 anos) observa ainda:

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Então eles já fazem isso porque de qualquer maneira, a gente vai ter que pagar,

ou estragado ou não estragado, se a gente comprar à prestação, ou estragado

ou não estragado, a gente vai ter que pagar de qualquer jeito. (Antonieta, classe

C, 43 anos)

Josefa (classe D, 64 anos) reproduz, quase literalmente, suas palavras:

Se você recebe uma mercadoria ruim, e você não paga, que você reclamou e eles

não deram numa boa, seu nome vai para o SPC. A gente sendo bem ou mal

servido, a gente tem que pagar! Porque senão, o nome vai para o SPC! (...) Não

pode para de pagar, porque aí fica pior para a gente que comprou, e não para o

lojista. Bota logo o nome da gente no SPC.

Ela acrescenta, ao mesmo tempo indignada e conformada:

Isso é errado! Isso que eu acho errado! Tem muita gente que deixou de pagar

porque não prestou! Porque reclamou e eles não foram lá revisar, não foram

ver. Aí, com ignorância, pára de pagar! Não pode parar de pagar!

A medida do risco mencionado por Antonieta e Josefa é tristemente ilustrada pelo caso

de Marcos (classe D, 28 anos), que, por ser assalariado, se dispôs a adquirir dois

televisores para seus parentes, abrindo crediário em seu nome. Os parentes deixaram de

pagar as prestações e o nome de Marcos acabou indo para o SPC:

Eu que comprei a televisão. Acabou que ela (tia)... teve uns problemas lá, e

acabou não podendo pagar as contas, e sujou o meu nome. (...) Eu tirei uma

televisão para ela e também tirei uma televisão para o meu primo! Um primo

meu também. Nem ela e nem o meu primo pagaram as prestações. Duas

televisões!

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Agora noivo, Marcos se vê impedido de efetuar qualquer compra a prazo e de começar a

montar sua casa:

O normal seria se eu pagasse o negócio, mas realmente fica difícil, duas

televisões! E eu também, estou numa situação meio difícil, estou querendo ficar

noivo, estou para noivar agora, então tá difícil para eu sair dessa situação!

Comprar as coisas para mim, para noivar, entendeu? Comprar as minhas

coisinhas, e com esse negócio do SPC, pegou mais para mim, que eu não estou

podendo mais pagar crediário, entendeu? Não estou comprando as coisas, só à

vista! (Marcos, classe D, 28 anos)

Não tem, tampouco, qualquer perspectiva de conseguir saldar a dívida:

Eu até cheguei no negócio da F. (loja), só que realmente, para mim não dá! Não

dá mesmo! (...) Cheguei lá e a mulher queria parcelar, entendeu? Mesmo

parcelando, não ia dar para mim pagar! Não ia, entendeu? (...) Não ia dar

mesmo... Aí ficou muito sinistro mesmo.

Vale a pena reparar, também, na opção de Cássia (classe D, 28 anos), que, na esperança

de ser melhor atendida, prefere, na medida do possível, pagar à vista:

Porque eles tratam as pessoas bem melhor, né? Porque eles acham: dinheiro,

né? Ah vamos tratar, tem aquela... Aí quando você vai tirar um crédito, eles

ficam tudo, sabe? Só não são mesmo quando vêem você chegar com o dinheiro

pagando. Eles ficam satisfeitos quando você vai pagar à vista, entendeu?

Porque eu acho que eles têm alguma coisa assim, como é que se fala, uma

porcentagem, né?

Cássia credita o sucesso de sua queixa ao fato de ter optado por essa forma de

pagamento:

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Que eu tinha pagado à vista. Tanto que eu levei a nota comprovando que eu

tinha pagado. Aí ele (gerente) pediu mil desculpas. (...) Aí... (o fogão) chegou

numa boa.

Ela não é a única a pensar que o cliente que paga à vista recebe, ou, pelo menos, merece

receber, um tratamento diferenciado:

Que eu fui uma cliente legal. Paguei a vista. (Vera, classe B2, 37 anos)

Independentemente da estratégia adotada, a escolha da forma de pagamento não

obedece, somente, a critérios financeiros. Através dela, o consumidor procura, na

medida do possível, aumentar seu poder de barganha frente ao vendedor. Ele pode,

como Cássia e Vera, utilizá-la como meio de “sedução”, ou, como Maria, Regina e

Geralda, como instrumento de pressão.

As estratégias diferem, mas o medo é o mesmo. Como diz Maria (classe A2, 52 anos):

“pagou, dançou”. Do ponto de vista dos entrevistados, feito o pagamento, o consumidor

está entregue à própria sorte. Só lhe restam meios de pressão precários, cuja eficiência

depende do seu “poder de fogo”. O consumidor de classe alta (A e B1) acredita que a

ameaça de sustar um cheque pré-datado poderá surtir efeito. O de classe baixa (C e D)

pensa, ao contrário, que a suspensão do pagamento poderá se voltar contra ele,

excluindo-o de uma série de direitos fundamentais e, muitas vezes, vitais: o de recorrer a

financiamentos, de manter uma conta bancária, de utilizar cheques e cartões de crédito.

Ao lado da forma de pagamento, a escolha da marca constitui, também, um instrumento

fundamental para minimizar os riscos envolvidos no ato de compra.

4.2.3. AH, SE EU TIVESSE COMPRADO UMA MARCA MELHOR!”

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Embora recorra ao termo de “sorte”, Antonieta acredita que os riscos envolvidos na

compra de um produto dependem, também, de sua marca:

T: Tem umas marcas que a gente diz que são melhores, por exemplo... como esse

R. (marca do videogame que comprou), nunca tinha ouvido falar. Vi no jornal,

não deu certo. Mas diz que Philips, Sharp, é..., como coisas, por exemplo, como

televisão, né? É Panasonic. São marcas boas, diz que não dão assim muito

defeito... Mas eu comprei uma televisão antes, da EQC (marca mais popular),

que disseram que EQC era uma marca que escangalhava tudo muito rápido,

dava defeito em qualquer coisa. Ela já tem mais de três anos, ela nunca deu

defeito.

P: E você arriscou comprar essa marca mesmo sabendo que as pessoas estavam

dizendo que a marca era ruim? Por que você comprou?

T: Porque estava mais barato! (risos)

Antonieta diz ter feito a mesma opção ao adquirir o videogame. Estava procurando o

melhor preço:

Eu nunca tinha visto (a marca). Não fiquei na dúvida, porque eu queria aquele

que era mais barato. (risos)

No entanto, ela reconhece que teria mais hesitações ao adquirir um produto para seu

próprio uso:

P: Mas aí, por exemplo, se fosse para comprar um ferro, você compra o mais

barato independente da marca, ou não?

T: Não. Se eu quiser um bom, mesmo que esteja mais caro, eu vou comprar

aquele bom.

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Finalmente, Antonieta conclui:

Eu aprendi que, agora, quando eu comprar uma coisa, quando eu ver uma

marca diferente que eu nunca vi na praça, eu não vou comprar.(...) Só se alguém

já tiver dito assim, eu já comprei, umas duas ou três pessoas, não, tá boa, tá

funcionando. Agora, se eu nunca vejo ninguém dizer que comprou, que é boa, eu

não compro mais.

Vera (classe B2, 37 anos) analisa sua experiência de forma semelhante. Comprou um

aparelho de som EQC. Após um mês de uso, um dos “decks” começou a dar defeito.

Com alguma demora (um mês), a assistência técnica efetuou o conserto, dentro dos

termos previstos pela garantia, mas, algum tempo depois, o “deck” parou novamente de

funcionar. O problema motivou várias visitas à assistência técnica, mas nunca foi

resolvido:

Foi uma experiência que eu tive que me decepcionou muito. Voltou outras vezes

e agora, no momento, está precisando de novo. Também com o mesmo

problema, de deck. O outro que funcionava, acabou. Faz duas semanas, acabou

de pifar, vamos dizer assim. O único que ainda estava funcionando.

A tentativa de mudar de autorizada também não surtiu efeito:

(...) troquei para uma outra assistência técnica. Não voltei na mesma loja. Na

mesma autorizada, que eles chamam. Eu voltei numa outra. Aí também pegou

alguns dias, ficou bom, e depois pifou.

Por fim, Vera desistiu:

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Me decepcionou muito e não acho mais vantagem mesmo consertar. O ideal

mesmo, seria comprar um outro.

E observa:

E hoje, inclusive acho até engraçado que eu falo que eu Errei Quando Comprei.

Tá? A marca para mim é essa (risos): Errei Quando Comprei.

Finalmente, ela conclui:

Hoje em dia não sei, mas, pela minha experiência desses três anos, foi péssima,

então, na minha casa não entra mais nada dessa marca. Não entra! (...) Então

acho que as pessoas hoje em dia têm que observar bem isso. Para comprar um

aparelho de uma marca mais conceituada.

A marca EQC é mencionada por duas outras entrevistadas:

Elzah (49 anos, classe B1), que se deu conta de que já havia comprado quatro rádio-

relógios da marca, todos “aposentados” em decorrência do mesmo defeito:

Por exemplo, os rádios EQC, que eu falei para você que eu descobri que eu

tinha comprado quatro (risos). Rádio EQC, rádio relógio. É barato e vende nas

lojas... (cita vários nomes de lojas populares). Aí eu descobri que eu tinha

comprado um. Quando ele pifou, o conserto era mais caro que o rádio, comprei

outro. E assim foi, até que, o último pifou, tem duas semanas, e eu descobri que

tinha 3 outros, guardados, pifados, entendeu? Então pensei assim: “puxa, que

burrice!”. Porque se eu tivesse comprado um de qualidade, vai ver que tinha

durado mais do que esses quatro. Aí, eles pifaram todos com o mesmo defeito.

Um determinado botão lá não acessa mais. Então a fábrica não deve ter o

menor interesse na durabilidade do produto.

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E Cássia (classe D, 28 anos), que relata uma discussão de que foi testemunha em uma

oficina de assistência técnica autorizada:

Então foi um bate-boca pra lá, bate-boca de cá, aí o gerente falou pra ele assim:

“você já viu a marca? Você Errou Quando Comprou.” Porque ele quis dizer

que a marca EQC é isso.

Cássia censura o gerente:

Ele não podia ter falado isso.

E explica:

P: Quando ele disse: você viu a marca que você comprou, errou quando

comprou, você acha que ele quis dizer o que?

R: Ah, ele basicamente, ele ofendeu, né? Porque ele quis dizer que ele era o

maior burro. Por ter comprado EQC, mas às vezes, não dá para comprar uma

marca Sharp, uma marca boa, a gente compra quando tá na promoção. A gente

não vai imaginar que vai, ah, você vai comprar um aparelho, ah, vai

escangalhar por causa da marca. Você vai e compra porque o seu dinheiro dá,

não por causa de marca. E, de verdade, ele quis dizer isso, que ele foi burro

comprando essa marca, que aí Errou Quando Comprou, porque era EQC. Não

tem nada a ver uma coisa... Se eu posso comprar uma coisa no meu limite do

meu dinheiro, eu vou comprar ela, não é porque é a marca... Eu acho que um

aparelho é... igual ao outro, entende?

Esse discurso sugere a existência de um estigma, associado às marcas voltadas para um

público mais popular. Elzah (classe B1, 49 anos) declara, inclusive:

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EQC, essa marca é coisa de pobre (risos). É uma coisa de pobre. Os rádio-

relógios melhores são Sony, são GE, que custam quatro vezes mais, cinco vezes

mais. Loja B., onde se compra EQC, é coisa de pobre. Só que tem a classe média

que freqüenta a Loja B. e compra. Eu compro, né?

Paula (41 anos, classe A2) expressa uma idéia semelhante ao comparar a marca da

geladeira que adquiriu com a que lidera o mercado:

O problema, por exemplo da Z. (marca da geladeira adquirida por Paula). Ela

atende uma determinada faixa de classe. E eu acho que ela atende também, para

a classe média. Ela atende muito para a classe média. E por esse motivo, ela faz

produtos de custos baixos. E esse produto de custo baixo, tem uma má

qualidade. Ela não se preocupa. A Z. atende a essa clientela. A minha

impressão é essa, que ela atende bem essa clientela. Só que ela bota produto de

baixa qualidade. Preços baixos, baixa qualidade. Vende muito.

Ela contrapõe esse exemplo à imagem que tem da X:

Por exemplo, a X. (marca de prestígio). A X., ela tem a fama de vender produtos

bons, de durabilidade, tatatá... Tá certo? (...) São produtos caros. Geralmente

são... (geladeiras) duplex. E elas são aquelas antigas, aqueles modelos antigos.

Agora que o design começou a mudar. (...) Mas você vê pelo porte, da estrutura,

do acabamento, a estrutura do produto... É de outro nível. Por isso elas são

caras, eu acho que é por aí. E atendem a uma clientela de alto padrão, de um

nível de classe A,... B.

Paula conclui:

Agora a classe C, que eu acho que é o grosso, D e C, é Z., porque é um produto

barato. Só que a Z. não se preocupa com essa qualidade, por ser barato, então

baixa a qualidade. Usa coisas de má qualidade.

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Indagada sobre essa diferenciação, Paula deixa claro que a ressente como uma

discriminação:

Eu tenho certeza absoluta que ninguém, uma pessoa da classe A ou B,

compraria uma geladeira Z. como eu comprei.(...) Eu sou de uma classe B,... C.

Finalmente observa:

Talvez hoje eu faça economias para então comprar, quando eu tiver que

comprar uma nova geladeira, comprar uma X. ou uma Y. (marcas de prestígio),

porque eu sei que essas vão ter qualidades, têm qualidades de produto, de

acabamento. Não vão, não vou usar produtos descartáveis.

A troca de pronomes é significativa: não aceito mais comprar produtos de uma empresa

que vende produtos descartáveis. Prefiro optar por uma marca mais cara.

Reencontramos, nesses discursos, traços do caráter hierárquico da cultura brasileira. As

marcas que se destinam às camadas mais privilegiadas não oferecem somente um

produto de melhor qualidade. Elas, supostamente, respeitam, mais do que as outras, os

seus clientes.

Elzah (classe B1, 49 anos) observa, porém, que a classe média compra produtos

destinados à classe baixa:

E cada vez mais, eu acho que, conforme a classe média está empobrecendo, ela

vai comprar coisa de pobre. (Elzah, classe B1, 49 anos).

Por outro lado, alguns dos informantes de classe C e D relatam ter investido em marcas

mais caras.

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A marca do aparelho de som adquirido por José (classe D, 25 anos) é uma das mais

caras do mercado. O preço que pagou equivale a cerca de cinco salários mínimos,

representando, aproximadamente, dois meses do seu salário de garagista.

Graça (classe C, 48 anos) relata o espanto de sua patroa diante do valor que pagou pela

sua geladeira:

Porque eu fui juntando aquele dinheirinho. Fui juntando aquele dinheirinho.

Né? Prá comprar. Então dei e para mim era um dinheirão, e é. Até a patroa

disse para mim: nossa Graça, caro! Eu disse pois é, e aí? Geladeira cara, e aí?

Em uma sociedade hierarquizada, como a brasileira, parece natural que a griffe seja

valorizada. Como observa Mc Cracken (1989), uma das funções das atividades de

consumo é a de servir como instrumento de diferenciação. A compra, a posse e o uso de

produtos são utilizados como meios de comunicação e discriminação entre os diferentes

grupos que compõem o tecido social. Os relatos dos entrevistados sugerem, porém, que

a griffe confere mais que uma etiqueta prestigiosa. Ela está associada, não somente ao

produto em si e à sua imagem, mas também a um atendimento digno, a uma atitude de

respeito pelo cliente. Independentemente do seu poder aquisitivo, os consumidores

anseiam por esse tratamento e se dispõem a pagar mais por ele.

Mas o retorno nem sempre corresponde ao esperado.

Graça se desola diante do estado de sua geladeira e do atendimento que recebeu:

Me enrolavam muito. Muito, muito, muito. Não foi legal não. E é muito triste

você comprar uma coisa, dar defeito e você ter que reclamar. E está ali. Já não

é a mesma coisa. Em menos de um ano, me aborreci um bocado com aquela

geladeira. E ela está lá... (...) Eu até digo, olha, acabou meu amor por ela. Tinha

tanto amor pela bichinha, agora acabou até meu amor por ela.

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Cássia (classe D, 28 anos) também observa, ao relatar os problemas que enfrentou para

receber o fogão C. (marca) que havia comprado a vista, visando ser melhor atendida:

Ah, sei lá, eles não... Não têm respeito pela gente. Eu acho que é porque somos

pessoas humildes, entendeu? Eles não... Não dá em nada. (...)Então eles acham:

ah, não tem estudo, não entende nada de lei, então, vão sempre aprontando,

entendeu?

Ocasionalmente, as marcas mais conceituadas decepcionam, também, os consumidores

de classe A:

Me causou tanta surpresa um serviço tão ruim. De uma coisa que é conhecida

como quase que um paradigma de qualidade no País, é a palavra B. (marca da

máquina de lavar de Maria). (Maria, classe A2, 52 anos)

Quer dizer, (o funcionário) não tem noção, que quando você está pagando muito

caro, você não admite ser atendido por uma pessoa que não tem qualificação.

(Regina, classe B1, 50 anos)

Ao adquirir uma marca conceituada, o consumidor espera ser tratado como alguém que

tem uma posição social privilegiada, isto é, como um cliente que dispõe de um certo

poder e cujos direitos devem, diferentemente dos dos demais, ser respeitados. Esse

contexto faz da marca um instrumento poderoso de diferenciação, que vai muito além da

questão de status, no sentido habitual do termo. Mais que prestígio, as marcas

conceituadas oferecem aos seus clientes a promessa de um atendimento justo e digno,

habitualmente reservado à elite.

Em contrapartida, quando essa expectativa não se confirma, os efeitos são devastadores.

O ressentimento vai muito além de uma simples decepção. Os clientes sentem-se não

somente enganados, mas também discriminados. O consumidor de classe mais baixa

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pensa que se fosse mais rico, a empresa não agiria dessa forma. O de classe mais alta se

indigna por não ser tratado com o respeito que espera receber.

As falhas da empresa tendem a ser atribuídas não a um erro, mas a uma lógica, e essa

lógica é a do malandro, que seduz e engana, que bajula o cliente para obter o que deseja

e o desdenha depois, que trata bem o “senhor de terno e gravata” e mal o “humilde”, que

apela para a lei quando esta pode servi-lo e a desrespeita quando sabe que ficará

impune, que, em suma, “conjuga o pessoal com o impessoal”, de modo a tirar o melhor

partido possível de todas as situações (Da Matta, 1986, p. 102).

A acusação de que o cliente tanto teme ser objeto se inverte: “esperta” é a empresa!

Assim, como observa Elzah:

A cultura de você levar vantagem em tudo (...) permeia essas relações todas. A

relação com o próprio cliente. (Elzah, classe B1, 49 anos)

Ela, literalmente, “organiza”, em termos simbólicos, a relação entre empresa e cliente.

Não que as duas partes estejam necessaria e constantemente tentando “levar vantagem”,

mas o fantasma da malandragem paira sobre suas relações. Como diz Isis (classe A2, 54

anos), “a gente vive numa terra de Gerson”. Ao menos nas representações do

consumidor, a empresa está sempre prestes a pensar que o cliente que se queixa o faz

para tirar proveito da situação. E este, por sua vez, está pronto para devolver essa

acusação ao menor sinal de reticência da empresa.

4.3. OS SERVIÇOS DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR

Os Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) ainda representam, dentro do

contexto brasileiro, uma inovação, que, sobretudo a partir do início da década de 1990 e

da implantação do Código de Defesa do Consumidor, foi ganhando, entre as empresas,

um número cada vez maior de adeptos.

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Examinaremos, a seguir, os relatos dos consumidores que recorreram a esses serviços,

buscando identificar, nesses relatos e no conjunto de aspectos anteriormente levantados

sobre a situação de insatisfação e a relação consumidor versus empresa, elementos que

possam contribuir para orientar esses esforço.

4.3.1. CONSUMIDORES FELIZES, CONSUMIDORES FRUSTRADOS

Dos 33 entrevistados, somente cinco mencionam experiências com Serviços de

Atendimento ao consumidor.

Xavier (classe B2, 32 anos) solicitou a troca de um pacote de caixas de leite desnatado,

que continham nata:

Liguei para lá e fui muito bem atendido. Expliquei tudo que aconteceu, fiz a

reclamação (...). Foram lá em casa e efetuaram a troca.

Solange (classe A2, 52 anos) resolveu passar a utilizar os “0800” por sugestão de sua

filha, que trabalha na área de marketing e a incentivou a recorrer a esses serviços. Nas

duas oportunidades em que o fez, ficou satisfeita: os produtos (iogurte e leite em pó)

foram trocados e o atendimento foi atencioso. Em uma das empresas, ela teve

dificuldade com o telefone:

Era sempre ocupado, sempre ocupado! Está permanentemente ocupado!

Mas quando finalmente conseguiu falar com a atendente, esta se prontificou

imediatamente a efetuar a troca. Essa experiência reforçou a confiança que Solange

tinha nas empresas envolvidas. Ela expressa apenas uma ponta de frustração por não ter

sido informada sobre os resultados da análise dos artigos defeituosos:

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Eu fui bem atendida, trocaram, mas se fizeram... Se aquilo serviu para corrigir

alguma coisa, eu não sei.

Diante das reticências da concessionária em atendê-lo, Paulo (classe A2, 36 anos)

contactou o SAC da montadora do veículo que havia adquirido, que tinha se incendiado

durante o período de garantia. Após inúmeros telefonemas, acompanhados de ameaças

de recorrer ao Procon, espalhar o caso via Internet, começando pelos seus colegas de

trabalho, e contactar a matriz no exterior, obteve, finalmente, ganho de causa.

Conseguiu chegar a um acordo e trocar o carro por outro modelo.

Paulo relata:

Até mandei depois uma carta, porque pessoas dentro da I., extremamente

educada, foram elogiadas. (...) Pessoas que ouviram barbaridades, mau humor,

sempre com um sorriso nos lábios... “olha, vocês treinaram muito bem fulano,

beltrano e sicrano”. Então essas pessoas merecem um bom emprego. Mas

agora, enquanto I., a instituição I., saiu muito arranhada.

O carro zero quilômetros de Andréa (classe B1, 32 anos) sofreu um superaquecimento

antes de completar os 20 quilômetros que a levavam ao Detran. Ela entrou, então, em

contato com a concessionária, que a encaminhou ao serviço de atendimento pós-venda.

Este acionou a oficina, que a socorreu, sem resolver, porém, a insegurança gerada por

sua experiência:

E eu fiquei...pôxa! Como é que pode? Um carro zero! A gente já compra zero

achando que não vai ter problema. (...) Eu estava assim... Dando pulos de

indignação! E aí o cara lá (da assistência 24 horas) vem e faz esse negócio. (...)

Apertou o cebolão (...).

Andréa insistiu para que, depois do incidente, o carro passasse por uma revisão. Ainda

assim, não se tranquilizou:

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Porque superaquecer o motor pode não ser nada! Pode ser um problema que

não tem conseqüência nenhuma, como também pode ter algum problema, né?

(...) Aí o cara garantiu que não tinha acontecido nada! Eu perguntei como é que

ele sabia. (...) Mas eu fiquei... achando tudo ruim. Achei que o carro I. era uma

porcaria, que eu fiz uma péssima escolha.

Patrícia (classe A2, 34 anos) relata duas experiências.

No primeiro caso, ela se surpreendeu com a presteza e eficiência do atendimento:

Eu liguei, e reclamei que havia uma fralda com defeito e eu fiquei surpreendida,

porque no mesmo telefonema, a pessoa que me atendeu disse que mandaria uma

pessoa lá em casa para mandar verificar o problema, e que mandaria um pacote

de fraldas novo! A única coisa que ela pediria, é que eu guardasse a fralda com

defeito, e o pacote em que veio a fralda! E foi exatamente o que aconteceu! Quer

dizer, ela não me questionou porque o pacote já estava pela metade (...). Não

houve questionamento nenhum! E realmente, depois de uma semana, apareceu

uma pessoa lá em casa, levou o pacote, porque eu acho que tem alguma

numeração que eles controlam, não sei. E ela me entregou um pacote de fralda

novo! E foi uma resolução rápida, que me deixou satisfeita.

No segundo, ao contrário, se decepcionou. O leite que havia comprado (caixa de 12

litros) estava com “um gosto diferente”. Ela estranhou e pediu a opinião da família:

Eu pedi para experimentarem em casa. Realmente estava com um gosto muito

ruim!

Patrícia pediu então à babá que telefonasse para o número impresso na caixa. A babá

deparou-se com uma mensagem gravada:

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Vinha uma mensagem gravada dizendo que se você quisesse falar sobre os

ursinhos, sabe aqueles ursinhos da M.7? Que você discasse para o número “x”,

e, que, caso fosse algum outro tipo de problema, você aguardasse na linha, que

alguém ia atender! E aí ela aguardou, aguardou, aguardou, e nada!

Depois de algumas tentativas, a babá conseguiu finalmente ser atendida:

Aí, depois, ela tentou mais umas duas ou três vezes, até que conseguiu falar

com alguém!

A atendente lhe fez diversas perguntas:

Pediu várias informações sobre onde tinha comprado, e quantos já tinha

tomado...

E prometeu tomar uma providência:

(...) E disse que mandaria. Alguém retornaria a ligação para marcar a troca

algum tempo depois.

No entanto, ninguém se manifestou:

E assim foram dois meses, e ninguém entrou em contato! (...) Ela tentou (...)

Tentou várias vezes ligar e a pessoa dizia que ia entrar em contato e nada!

Diante dessa situação, Patrícia resolveu se encarregar do caso, mas não foi melhor

sucedida:

7 A empresa estava, na época, realizando uma promoção com bichinhos de pelúcia. São os “ursinhos”mencionados pela entrevistada, que podiam ser adquiridos pelos clientes mediante encomenda via 0800.

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Eu telefonava, e o telefone, ninguém atendia. Às vezes eu ficava horas, você

esperando e ouvindo aquela musiquinha!

Finalmente, resolveu ligar “para o número da promoção dos ursinhos” e expôs o seu

caso à atendente, que se prontificou para tentar resolver o problema:

Uma semana depois, ela ligou dizendo que alguém passaria lá em casa para

trocar. Aí passou mais do que o prazo que ela me disse, e depois de duas

semanas, houve, efetivamente a troca! Mas o processo inteiro demorou uns três

meses.

Patrícia observa:

Desde o momento que foi a minha empregada... De repente não sei qual foi o

discurso que ela usou, mas com certeza, era uma pessoa com um discurso mais

humilde até! Não sei o quanto ela argumentou, nada foi feito! E quando eu tive

que entrar questionando a empresa, falando que eu consumia muitos produtos e

tal e tal. Aí, eles se aceleraram um pouco. Envolveram o pessoal de São Paulo,

envolveram a gerência, e aí conseguiram resolver no prazo.

Finalmente, ela declara:

Eu gostaria enormemente de não comprar mais nenhum produto (da empresa).

Mas eu continuo comprando. (...) Porque eu acho que é a marca que eu confio

mais, em termos de qualidade do produto, embora o atendimento tenha deixado

muito a desejar para mim.

Indagada sobre os seus sentimentos frente a essa situação, ela responde:

Eu acho que eu merecia coisa melhor, até porque eu sou uma consumidora leal.

Eu estou sempre comprando só produtos deles. Então, eu gostaria de ter um

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deferimento. Por isso! Gostaria... Mas eu acho que na minha cabeça, o fato da

qualidade do produto pesou um pouco mais alto.

Quando o SAC resolve o problema, como no primeiro caso mencionado por Patrícia e

nos descritos por Xavier e Solange, ele surpreende e conquista duravelmente a confiança

do cliente.

Vale também lembrar aqui os casos descritos no item 4.1.5. (A Ausência de Conflito

como Exceção). Seja ele oferecido através de um SAC ou de outro meio, o pronto

atendimento à queixa causa impacto, chegando a ser lembrado, como no caso de Elzah

(classe B1, 49 anos), mais de dez anos depois.

Em contrapartida, os relatos de Paulo e Patrícia sugerem que a existência do SAC pode

fazer pouca diferença. Ao telefonar para o 0800, ambos se defrontaram com problemas

semelhantes aos descritos pelos consumidores que se dirigiram diretamente à empresa.

Suas queixas foram tratadas com reticência. Precisaram de paciência e insistência e

notaram a existência de atitudes discriminatórias (Patrícia acha que foi melhor tratada

do que sua empregada e Paulo sentiu que passou a ser atendido com mais atenção

quando mencionou sua atividade profissional e a empresa na qual trabalhava). Em suma,

foi preciso recorrer ao poder da palavra e ao poder como um todo para conseguir

negociar uma solução.

É importante sublinhar, porém, que o fato de receber esse tipo de atendimento de um

SAC afeta ainda mais a imagem da empresa. O balconista pode ser displiscente com as

queixas dos clientes por preguiça, descuido, falta de treinamento ou interesse. Essa

atitude denota a falta de atenção da empresa para com o cliente, mas o papel do

vendedor é o de vender. Em contrapartida, o do funcionário do SAC é mais abrangente.

Entre outras funções, espera-se dele que atue como interlocutor em caso de conflito.

Como diz Paulo, ele é treinado para isso. Por isso, não se irrita, permanece sempre

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cortês. Dentro desse contexto, suas respostas e atitudes tendem a ter um impacto maior

do que as de um simples balconista.

Patrícia (classe A2, 34 anos) observa:

Só (resolveu) quando eu fiquei bem brava com eles. Porque isso pegou muito

negativamente. Uma empresa daquele porte, onde você vê uma qualidade... Sei

lá. (...) E com um atendimento tão ruim!

Paulo (classe A2, 36 anos) vai mais além e atribui o atendimento que recebeu a uma

intenção deliberada de economizar esforços em países que pertencem ao Terceiro

Mundo.

Falei: “olha, se a idéia for vir ao Brasil com carro fabricado na Argentina,

pode voltar. Isso aqui deixou de ser colônia, e a gente não quer um carro que

não respeite o brasileiro(...)” (...) Quer dizer, eu acho que a postura que uma

empresa tem lá fora, eu acho que tem que ter no Terceiro Mundo. (...) Eu falei:

“olha, vocês não fariam isso na França, vocês não fariam isso na Bélgica.

Então, vocês não podem fazer isso no Brasil”.

Andréa (classe B1, 32 anos) raciocina da mesma forma:

Eu fiquei achando que era ruim, né? Que eles têm uma qualidade, de repente,

para a Europa, e quando vem para o Brasil, já vem mais relaxado, não se

preocupa tanto com isso! (...) Eu acho que eles têm dois pesos e duas medidas!

De certa forma, o SAC oficializa a atitude da empresa frente às queixas de seus clientes.

Quando ele reluta em atender uma reclamação, trata-a de modo diferente de acordo com

a posição sócio-econômica do cliente, demonstra maior empenho em vender outro

produto do que em resolver o problema que motivou o telefonema, ele “assina embaixo”

da postura de malandragem que o consumidor está prestes a atribuir à empresa.

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4.3.2. O DESAFIO DOS SACs: COMO LIDAR COM A QUEIXA?

Como vimos, ao menor sinal de reticência, o consumidor tende a se sentir acusado ou a

acusar a empresa, como se, inevitavelmente, um tivesse que ser malandro, e o outro

vítima. Os resultados da pesquisa sugerem que, para contribuir na construção de uma

imagem positiva, o SAC deve evitar qualquer possibilidade de ingresso nesse círculo

vicioso da “esperteza”.

A partir do momento em que passa a ser interpretada dentro dessa lógica, a queixa,

independentemente de sua solução, tende a ter um único desfecho: o do abandono do

fornecedor. No mínimo, como Patrícia, o cliente chega ao fim do processo desejando

“enormemente não comprar mais nenhum produto”. No extremo, ele resolve, como

Paulo, Andréa e Maria, não somente nunca mais comprar nenhum produto ou nunca

mais “pisar na loja”, como também convencer outras pessoas a fazer o mesmo.

A empresa deve, então, aceitar sem questionamento toda e qualquer reclamação? Os

depoimentos colhidos sugerem que essa solução pode não ser a melhor. A complacência

pode ter efeitos semelhantes aos da reticência. Como vimos, o ressarcimento não é

sinônimo de satisfação (ver casos de Marta, Milena e Cristiane). Além disso, o fato de

receber mais que o esperado pode, também, gerar desconfiança.

Embora tenha ficado satisfeito com o atendimento que recebeu, Xavier (classe B2, 32

anos) comenta:

Trocaram a caixa todinha do leite, queriam me dar mais... do tipo que eu não

fizesse... que eu não botasse a boca no trombone...

Em seguida, ele complementa:

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Mas eu expliquei que não, que eu estava reclamando, que era um direito meu!

A solução estaria então na adoção de uma lógica resolutamente individual e baseada no

princípio das “leis universais” (Da Matta, 1986)? Há indicações de que este seria o

tratamento pelo qual anseariam os entrevistados.

No entanto, a impessoalidade gera, também, algumas dificuldades. Ao ser tratado com

neutralidade, o cliente se sente desnorteado. Paulo comenta:

Você não consegue falar com a X., a não ser através do 0800, que são as

telefonistas, todas muito educadas etc., mas elas não te passam adiante.

Ele sublinha a educação dos atendentes, mas a trata com ironia: “vocês treinaram muito

bem fulano, beltrano e sicrano”.

Ricardo (classe A2, 47 anos) faz uma observação semelhante a respeito do

comportamento dos funcionários que o atenderam na compra de um aparelho de ar

condicionado:

A passividade deles é tão grande. Sabe, quando você dá murro naqueles

bonecos... (gesto descrevendo o balanço do boneco)(...) Eu já briguei com

todos, já disse um monte de desaforos para eles. Já parti para a ridicularização.

Ameaça de divulgar o mau serviço deles para quem eu tiver oportunidade, de...

de tudo. Nada, nada, não acontece nada. São super simpáticos, são super

educados, e nada acontece. (...) Eles foram educados, para não revidar as

provocações. Porque eu provoco eles, para ver se têm alguma reação. Não têm

nenhuma!

Patrícia (classe A2, 34 anos) comenta, também, a respeito do atendimento recebido por

ocasião da troca de sua caixa de leite:

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Eles foram secos, né? Depois de tudo isso, não houve nada além da troca do

produto. (...) Era muito fácil, por exemplo, ter me dado um bichinho de pelúcia.

Eu informei a eles que eu tinha duas crianças, eu informei a ela (atendente) que

eu estava absolutamente insatisfeita com todo o processo porque havia

demorado uns dois meses para fazer uma troca! (...) Eles poderiam ter me

encantado! Eles poderiam ter, pelo menos, me dado um presente!

Embora tenha ficado satisfeita com sua outra experiência de queixa (fraldas), ela

observa:

Nenhuma das duas (empresas) me encantou! Porque, na minha concepção, não

fizeram mais que a obrigação. (...) Resolveram o meu problema e ponto! (...)

Poderiam, se quisessem, ter encantado. Poderiam! (...) E nenhum dos dois fez

isso! Não fizeram mais do que a obrigação!

Finalmente, embora tenha ficado satisfeita, Solange (classe A2, 51 anos) teria ficado

ainda melhor impressionada se tivesse sido informada sobre os desdobramentos de sua

queixa. Apesar de ter sido correta, a empresa, aos seus olhos, poderia ter lhe dado uma

resposta de caráter mais pessoal, comunicando-lhe o resultado do processo.

As expectativas do cliente são, assim, marcadas pela ambigüidade: de um lado, ele

gostaria de não precisar recorrer ao registro pessoal para resolver o problema; de outro,

ele se decepciona quando é tratado como um indivíduo anônimo .

Diante desse dilema, uma coisa parece certa, a pior solução possível parece ser a que

consiste em conciliar essas duas exigências através da adoção de uma lógica individual,

“temperada” pela possibilidade de recorrer, em caso de conflito, a uma lógica pessoal.

Essa atitude, que reproduz a da burocracia estadual descrita por Da Matta (1986),

inevitavelmente leva o consumidor a recorrer ao esquema vítima versus malandro para

interpretar sua experiência. Uma vez dentro desse registro, não existe desfecho que seja

favorável à empresa. Entre despeito, raiva e ressentimento, qualquer que seja o

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sentimento dominante, o cliente, mesmo que seja ressarcido, tende a abandonar a

empresa.

De acordo com Da Matta (1986), “a legislação diária do Brasil é uma regulamentação

do ‘não pode’, a palavra ‘não’, que submete o cidadão ao estado sendo usada de forma

geral e constante”. Por isso, diz ele, “conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo, um

jeito, um estilo de navegação social, que passa sempre nas entrelinhas desses

peremptórios e autoritários ‘não pode!’” (pp. 98 e 98).

Entretanto, como vimos, o cliente que recorre a esses modos de “navegação social”,

mesmo que seja bem sucedido, tende a ficar ressentido. Ele “passou constrangimento”

(Júlio, classe A2, 42 anos), se expôs ao risco de passar por “esperto”. Além disso, na sua

visão, quem, de fato, tentou “dar uma de esperta” foi a empresa, que somente se dispôs a

resolver o problema quando foi pressionada.

Quando essa situação se repete junto ao Serviço de Atendimento ao Consumidor, seus

efeitos tendem a ser ainda mais nefastos. Não se trata mais de um incidente isolado e

sim da postura que a empresa adota, explicita e publicamente, frente aos seus clientes.

Da Matta (1983) observa que “o uso do ‘jeitinho’ e do ‘Você sabe com quem está

falando?’ acaba por engendrar um fenômeno muito conhecido e generalizado entre nós:

a total desconfiança nas regras e decretos universalizantes” (p. 184). Ele menciona,

também, em outra obra (Explorações: Ensaios de Sociologia Interpretativa, 1986-b), “o

ressentimento e a descrença num sistema que fica sempre no meio do caminho” (p. 46),

isto é “entre a hierarquia e a igualdade; entre a individualização que governa o mundo

igualitário dos mercados e dos capitais e o código das moralidades pessoais (...)” (Da

Matta, 1983, p. 191).

Os relatos colhidos sugerem que, em se tratando de Serviços de Atendimento ao

Consumidor, a opção pelo “meio do caminho” pode acabar gerando mais desconfiança e

ressentimento do que satisfação. Isso não significa que o consumidor deseja ser tratado

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como um cliente anônimo, e sim que ele anseia por um atendimento baseado em

princípios igualitários, que não seja dominado pelo “não”.

Da Matta (1983) sublinha que a “desconfiança nas regras e decretos universalizantes”

gera “sua própria antítese, que é a esperança permanente de vermos as leis serem

finalmente implementadas e cumpridas” (pp. 184 e 185). Os Serviços de Atendimento

ao Consumidor representam, para a realização dessa esperança, uma alternativa. Eles

oferecem a promessa de uma “porta aberta” para o consumidor. Para efetivamente

cumprir essa promessa, eles precisam, porém, diferenciar-se claramente da lógica que,

tradicionalmente, rege, no Brasil, as relações dos individíduos com as instituições,

rompendo com o predomínio do “não” e com as soluções baseadas em “arranjos”

pessoais.

4. 4. ÓRGÃOS DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Examinamos, a seguir, os relatos dos consumidores que utilizaram os serviços de órgãos

de defesa do consumidor e os comentários do conjunto dos entrevistados sobre esse

tema. De acordo com os dados colhidos, o ato de recorrer à Justiça, embora seja visto

como trabalhoso e desgastante, não parece despertar o receio de censura associado às

ações “diretas” (queixa ao vendedor ou produtor). Ao contrário, o cliente que se dirige

ao Procon ou ao Tribunal tende a se orgulhar de sua iniciativa. E ele, de fato, suscita a

simpatia dos demais consumidores.

4.4.1. UM CAMINHO PENOSO, UM MEIO DE PRESSÃO VALIOSO

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Sete entrevistados recorreram ao Procon ou ao Juizado Especial Cível (Juizado de

Pequenas causas).

Após o incidente do superaquecimento de seu carro, Anita (classe B1, 32 anos)

consultou o Procon a fim de verificar se teria o direito de devolver o veículo à

concessionária.

Aí o Procon falou: “Desde que a assistência técnica faça algo dizendo que não

dá para andar com o carro, que realmente o carro está todo estragado, você

pode devolver. Senão, você não pode devolver o carro. Se eles consertarem, se

alegarem que está tudo bem, você não tem o direito de devolver o carro.”

Anita se decepcionou:

Puxa vida! Eu queria devolver o carro! Eu já queria o meu dinheiro de volta

para comprar outro carro.

Esta não era sua primeira experiência junto ao Procon. Ela já havia conseguido, com sua

ajuda, chegar a um acordo com os proprietários da casa que alugava. Tinha, também,

efetuado uma consulta por ocasião da compra de seu apartamento:

Na época em que (a obra) começou a atrasar e tal, a primeira coisa que a gente

viu foi ir lá no Procon, mas isso não é da alçada deles, que o apartamento é

acima do valor. Mas mesmo assim eles mandaram uma carta para a E., dizendo

que estava atrasado, e que era para eles se justificarem, para falar, justificar!

Mas mesmo assim, eles mandaram uma carta safada, trataram assim com

desculpa boba, dizendo que a obra estava atrasada porque naquele ano choveu

muito, não sei o que, quando a gente sabia que não era isso!

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O apartamento acabou sendo entregue com dois anos de atraso. Ainda assim, Anita teve

que entrar, junto com os demais compradores, em uma ação coletiva contra a

construtora, pois esta havia hipotecado o imóvel. O processo está em andamento até

hoje.

Catarina (classe B1, 42 anos) recorreu ao Juizado Especial Cível para solicitar a

devolução de sua impressora. Perdeu a causa. Amargamente, ela relata:

Fiquei um ano na Justiça, e quando perdi a causa, meu irmão foi buscar a

impressora e veio faltando o CD de instalação. Até hoje não procurei. Botei um

ponto final nisso definitivamente. De raiva, porque foi um ano lutando para

nadar, nadar, nadar, e morrer na praia, porque acho que a única coisa que

podia me ajudar era a juíza e não tive nem ajuda da juíza. Nem a Justiça não me

atendeu, com todas as provas arquivadas de que a impressora realmente não

seria para os propósitos para que foi comprada. A impressão dela é de péssima

qualidade, de baixa qualidade.

O desempenho do produto não correspondeu às promessas do vendedor e não atendia às

necessidades de Catarina. Mas a impressora não tinha defeito. Entretanto, Cris atribui a

perda da causa a outros motivos:

Acho que conhecimento de advogado, de juiz, dinheiro por fora, porque não tive

chance de me defender. Com todas as provas, não tive o direito de me defender.

Acho que é assim sempre, porque tive vários casos de pessoas que acionaram a

Telerj e não conseguiram ganho de causa. (...) É o suborno. Acho que o que

existe é isso. Não é que não tenha juízes corretos, mas a maioria, prevalece o

suborno mesmo.

Finalmente, ela conclui:

Fiquei bem surpreendida com a Justiça.

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Giovanni (classe B1, 34 anos) foi, também, até o fim na busca de uma solução para o

seu televisor. Obteve ganho de causa, mas, até o momento, não conseguiu ser ressarcido

(ver item 2.1.). Ele está com outro processo na Justiça:

Sobre a morte do meu pai. Para você ter uma idéia, eu estou há seis anos na

Justiça e ainda te digo que foi um processo que correu mais rápido do que os

processos normais.

Paulo (classe A2, 36 anos) recorreu, com sucesso, ao Juizado especial Cível por ocasião

do roubo de seu talão de cheques. Consultou também um advogado, que o orientou na

condução de suas negociações com a I.

Edmundo (classe B2, 34 anos) recorreu ao Juizado Especial Cível pelo não

cumprimento do prazo contratual de instalação de sua linha telefônica. Estava, no

momento da entrevista, aguardando a sentença.

Cristiane (classe A1, 28 anos) já consultou o Procon em diversas ocasiões. Estava,

quando foi entrevistada, movendo uma ação contra a S. por reajuste abusivo no contrato

de leasing de seu carro. Já tinha obtido, através de uma liminar, o direito de pagar as

mensalidades em juízo.

Heitor (classe A2, 70 anos) acionou o Juizado Especial Cível para contestar o reajuste

das mensalidades da faculdade de sua filha. A negociação terminou com um acordo que

o deixou satisfeito. Em diversas ocasiões (aumentos abusivos, pensão de uma parente

inválida etc.) consultou a Justiça e recorreu aos seus serviços. Ao cabo dessas

experiências, resolveu estudar Direito para poder ser seu próprio advogado, cursando

uma faculdade particular.

Vale notar que, desses entrevistados, somente um (Edmundo) pertence à classe B2 e

nenhum é de classe C ou D. É possível que isso se deva a um maior receio das classes

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baixas frente à perspectiva de enfrentar o aparato da Justiça. Se, como diz Da Matta

(1983), o universo das leis é dominado pelo “não” e a experiência de lidar com ele sem

mediador (“padrinhos, pistolões, ou mesmo patrões”) representa, numa sociedade

semitradicional como a brasileira, “a mais profunda experiência de exploração” que é a

de “ser tratado como um número ou um dado global de uma massa” (pp. 187 e 188),

compreende-se que os menos privilegiados não estejam muito dispostos a recorrer a ele.

Como diz Elisete (classe C, 64 anos): “quem sou eu para processar a Z.?”

Independentemente de ter, ou não, utilizado os serviços do Procon ou da Justiça, os

entrevistados costumam recorrer, ao negociar com a empresa, à ameaça de mobilizar os

órgãos de defesa do consumidor.

Somente um entrevistado (Marcos, classe D, 28 anos) diz desconhecer a existência

desses órgãos. Entre os demais, a opinião que prevalece é que se trata de um

instrumento útil para pressionar o fornecedor:

Para algumas empresas, elas sabem que existe o Procon, que é o órgão que nos

protege, a nós, consumidores. (Xavier, classe B2, 32 anos)

Agora, eu acho que o que funciona mesmo é uma boa ameaça... (risos) de defesa

do consumidor. (Regina, classe B1, 50 anos)

E eu ameaçava eles com a Defesa do Consumidor. Senão acho que eles tinham

me enrolado mais ainda. (Graça, classe C, 48 anos)

Eu acho que... que ajuda, sim. Eu acho que melhora . (...) Quer dizer, eu tenho a

sensação que, se você ameaça com o Código, você vê que em alguns casos...

(Carla, classe A2, 37 anos)

Ameacei Procon, ameacei algumas coisas de... Botar no jornal, mandar uma

carta de jornal, esse tipo de ameaça eu fiz! (Patrícia, classe A2, 34 anos)

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Quando você fala que vai chamar o Procon ou o Decon, a coisa muda de figura.

(Paulo, classe A2, 36 anos).

Embora a gente saiba que não adianta nada, eles (empresas) se assustam.

(Regina, classe B1, 50 anos).

Mas, embora muitos ameacem recorrer ao Procon, a maioria espera não precisar fazê-lo:

Eu nunca entrei no Procon. E eu rezo para não chegar lá, porque as filas são

enormes! (Xavier, classe B2, 32 anos).

Eu não precisei nunca chegar até Defesa do Consumidor. Assim, não tive desses

problemas cabeludos que as pessoas têm, graças a Deus, batendo aqui na

madeira, de ficar assim com um produto, ou de não ser entregue o produto, que

isso acontece, já vi pessoas falando. Nunca tive esse problema. Nunca cheguei

no ponto de precisar da Defesa do Consumidor. (Maria, classe A2, 52 anos)

Alguns entrevistados apontam que é preferível conseguir resolver o problema sem ter

que cumprir a ameaça:

É aquela coisa, se você puder fazer um acordo, se você conseguir fazer o que

você quer sem passar por vias que vão demorar um pouco mais, é melhor! (...) É

mais cômodo para mim, que eu vou ter o que eu quero com um acordo, sem

partir para o Procon, para a Justiça, um Juizado de Pequenas Causas, ou

alguma coisa desse tipo. (Geralda, classe B1, 27 anos)

Eu já tive pessoas conhecidas que procuraram o Procon. Eu, graças a Deus,

nunca procurei, e eu prefiro até não procurar. Procuro resolver de outras

maneiras, na base da pressão. (...) O Procon, eu acho que é só numa última

circunstância mesmo. Hoje em dia, a maior parte das empresas estão fugindo

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do Procon! (...) Porque o Procon é o órgão máximo (...). Quando chega na parte

mesmo, que o negócio está ficando feio, que entra alguém mesmo quente na

história, a empresa resolve o problema. (Xavier, classe B2, 32 anos)

Assim, ao menos entre os entrevistados que nunca recorreram aos órgãos de defesa do

consumidor, essa opção é vista como uma alternativa de última instância, reservada a

casos extremos.

Um entrevistado, de classe D, diz preferir, até, desistir e “assumir o prejuízo”:

Não é jogo. Tem gente que vai para o Procon. Por exemplo, meu primo foi, por

causa da geladeira dele(...) Agora é que ele conseguiu ganhar uma geladeira

nova. (...) Mas ele levou tempo discutindo por causa de uma geladeira. Eu

prefiro não levar!!! Se eu tenho o dinheiro, eu vou e compro de novo!

(Humberto, classe D, 38 anos)

É importante notar, porém, que os consumidores que passaram por essa experiência não

parecem ser tão reticentes. Dos sete entrevistados que recorreram ao Procon ou à

Justiça, cinco o fizeram em mais de uma ocasião. Esse dado sugere que, uma vez que

entraram em contato com os órgãos encarregados da defesa do consumidor, estes

consumidores se sentiram mais tranqüilos diante da perspectiva de utilizar seus serviços.

Procuraram se familiarizar com seus meandros (o exemplo extremo é o de Heitor, que,

com 70 anos, resolveu cursar uma faculdade de Direito), aproveitaram sua experiência

para melhor conhecer seus direitos e passaram a se valer desse conhecimento nas suas

relações com fornecedores. Perderam, também, o medo de, efetivamente, mobilizar

esses meios.

Paulo (classe A2, 36 anos) comenta:

Agora que a gente aprendeu o caminho das pedras...

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Ou seja, a perspectiva de recorrer aos órgãos de defesa do consumidor já não o assusta.

Surgindo um novo problema, ele provavelmente não hesitará em se dirigir a eles.

De qualquer forma, o ato de recorrer ao Procon ou à Justiça é visto, de modo geral,

como penoso e trabalhoso.

As coisas aqui são dificultadas, por exemplo, você vai dar uma queixa no

Procon, significa entrar numa fila, demorar, então eu acho que muitas vezes eu

e várias pessoas, a gente tem a intenção de fazer, e acaba não fazendo. (Elzah,

classe B1, 49 anos)

Eu tive preguiça de continuar, de ir ao Procon, achei que era trabalhoso, que eu

vou para a fila do Procon, que isso vai demorar muito. (Solange, classe A2, 51

anos)

O problema do Procon, eu fui uma vez reclamar com o Procon, de um aumento

nosso aqui (no trabalho), que o P.. (diretor) mandou eu ir. Foi um sacrifício!

Eles disseram que não podiam fazer nada (...), que ia demorar, não sei o que. E

você tem que ficar indo lá na rua! (...) O que acontece? Como você não tem

tempo, você não pode ficar toda hora na cidade para fazer isso! (Isis, classe A2,

54 anos)

Eu acho que o Procon, o problema são as filas. (Carla, classe A2, 37 anos)

Botar no Procon não vale a pena. (...) É tanta amolação e eu não posso. (...)

Teria que ter tempo! Essas coisas é só para quem não trabalha. (...) Porque tem

gente que perde emprego por causa desse negócio de estar cuidando, que passa

o dia inteiro! (...) Patrão não gosta que a gente fique saindo cedo! (...) Quem

não tem o que fazer bota lá! (Josefa, classe D, 64 anos)

Trata-se, também, de um recurso cujos resultados permanecem incertos.

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Aí tem que ir no Procon, tem que relatar, tem que voltar, tem que não o sei que,

tem que levar nota, tem que... (tom irritado) É muito trabalho! Às vezes, você se

irrita com tudo isso. E ainda pode ou não resolver! Que ainda demora. (Leila,

classe A2, 64 anos)

Não fui. Primeiro que eu não tenho tempo. E não sei mesmo se aquilo funciona

legal. Se vai levar... Talvez eu morra e o negócio não resolveu ainda. (Graça,

classe C, 48 anos)

Os termos que dominam o discurso dos consumidores ressaltam o “sacrifício”, a

“amolação”, a “dificuldade”, as “filas”, a “demora”. É preciso ter paciência, disposição

e tempo.

Isso implica, também, em escolhas, às vezes difíceis: correr o risco de perder o emprego

por faltar no trabalho, o de lutar para acabar “morrendo na praia”.

De alguma forma, os órgãos de Defesa do Consumidor parecem, assim, remeter aos

“nãos” da legislação diária de que fala Da Matta (1986). Eles oferecem uma alternativa

difícil e penosa. Embora seu objetivo seja o de proteger o consumidor, eles pertencem

ao universo da “rua”, das leis universais e do anonimato, que se caracteriza,

diferentemente do da “casa”, pela luta e pela dificuldade (Da Matta, 1983. p. 186).

É importante notar, porém, que os entrevistados falam de demora, de amolação, de

sacrifício, mas não de “constrangimento”. Diferentemente do que ocorre no caso da

queixa à empresa, a perspectiva de se dirigir ao Procon ou ao Juizado Especial Cível não

parece suscitar ansiedade e sim apenas reticência (ou, como diz Solange, “preguiça”)

diante da necessidade de “ficar indo lá na rua”, “entrar numa fila”, gastar tempo, perder

um dia de trabalho.

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O cliente reluta em enfrentar esses obstáculos, mas ele não parece temer qualquer

censura. De fato, por si só, o “sacrifício” o absolve. Para se dispor a enfrentar tanta

amolação, ele precisa, no mínimo, ter certeza de que está coberto de razão. Assim, a

suspeita de esperteza ou malandragem não se aplica ao seu caso. Ao optar pelo caminho

difícil e penoso da lei, ele dá uma prova de boa fé, que se sobrepõe a qualquer outra

consideração.

4.4.2. “SE A GENTE NÃO BRIGAR, ESSAS EMPRESAS NÃO VÃO SE

ACERTAR NUNCA!”

Os entrevistados, de modo geral, valorizam a iniciativa de recorrer aos órgãos de defesa

do consumidor:

E não chegando à solução nenhuma, seria o Procon mesmo. Acho que todos

deveriam fazer isso. Pelo menos, eu acho que seria o caminho mais coerente.

(Vera, classe B2, 37 anos)

Mesmo quando fracassam, os consumidores que ingressam na Justiça relatam sua

experiência com orgulho.

E eu acho que, se todos nós passarmos a fazer isso, aqui no Brasil, que eu acho

que isso não é muito comum aqui, eu acho que vão mudar muitas coisas

(Edmundo, classe B2, 34 anos)

De modo que essa é a estória que eu posso dizer, minha experiência, (...)

reclamando, fazendo... Fazendo, digamos, valer os meus direitos. (Heitor, classe

A2, 70 anos)

Eu sou aquela consumidora que, se eu tenho direito, eu vou brigar pelo meu

direito até o final! (...) Eu, no que eu puder... Eu acho o seguinte, eu acho que se

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tiver certo, eu pago sem problema, mas se tiver alguma coisa que eu achar que

eu estou sendo prejudicada, eu vou procurar saber se aquilo é legal, se não é

legal, se está certo, se não está certo, e eu vou fazer alguma coisa para mudar!

Eu sou uma consumidora bem... bem... perturbadora, eu diria! Eu sou uma

consumidora de quem, na verdade, os fornecedores não devem gostar muito!

(Cristiane, classe A1, 28 anos)

Cristiane acrescenta:

Eu acho que é comodismo! (...) Eu acho que vai muito daquela coisa que falei, o

pessoal é ignorante mesmo, deixa para lá, não vai reclamar!

Catarina (classe B1, 42 anos) acha que saiu prejudicada do processo que moveu por

causa de sua impressora, mas não se sente desvalorizada pela sua experiência.

Os entrevistados elogiam os consumidores que recorrem a esse meio:

Ele reclama de tudo, ele manda carta (...) Ele é um cara que exerce o direito de

reclamar! (Isis, classe A2, 54 anos)

E, com freqüência, se censuram por não ter feito o mesmo:

No caso aí, acho que eu fui bastante individualista. Tinha um problema. Eu

resolvi meu problema, e eu não pensei na questão de que várias pessoas podem

estar sendo sacaneadas por essa revendedora, por essa assistência técnica.

(Maria, classe A2, 52 anos)

Porque eu poderia ter escrito, ter mandado e-mail para a C. , para a E., o que

seja, eu podia! Os recursos não faltam. Mas não mandei. Então eu acho que isso

é típico da falta de consciência mesmo, entendeu, da falta de uma cultura nesse

sentido. E, por outro lado eu acho que a única maneira de melhorar, o produto,

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o serviço, é o cliente mesmo fazendo pressão. Então não é o governo. É o

consumidor. (Elzah, classe B1, 49 anos)

Hoje eu acho que eu faria! Hoje eu iria! (...)Hoje eu tenho absoluta certeza que

me acomodar só piora a situação de tudo! Eu acho que não dá mais para se

acomodar com nada! Tem que tentar fazer valer tudo sempre! (Solange, classe

A2, 51 anos)

Os órgãos de defesa do consumidor oferecem ao cliente insatisfeito, uma alternativa

difícil, mas carregada de valores positivos. Os depoimentos colhidos sugerem que ato de

recorrer a eles assemelha-se ao cumprimento de um dever cívico. Diferentemente do

cliente que tenta discutir no balcão, ou negociar com os atendentes de um 0800, o

consumidor que enfrenta a fila do Procon se sente seguro, não do seu sucesso, mas da

legitimidade do seu papel. Ele não está sendo individualista ou egoista, nem tentando

“ser esperto”. Está exercendo sua cidadania e se dispondo, para isso, a sacrificar seu

tempo e sua energia. Sua dignidade não está em risco. Ao contrário, ele a defende e

acredita estar contribuindo, também, para defender a dos consumidores como um todo.

Cristiane (classe A1, 28 anos) comenta:

Na Procuradoria, eles te tratam que nem um cachorro. Você chega lá e se

pergunta alguma coisa: “Entra na fila! Entra na fila!” Aí você: “mas eu só

queria...” “Não! Não Não! Espera a tua vez e entra na fila!” Aí passa o

procurador, aí ele entra, aí a mulher grita lá: “pode entrar o pessoal que está

devendo no leasing!” Eu não estava nem devendo! Eu queria saber o que fazer

para a frente para pagar uma prestação. E ela grita: “Pode entrar quem está

devendo!”

Apesar desse tratamento (típico do que a burocracia estadual reserva, segundo Da Matta

-1986 -, aos “indivíduos” anônimos que a ela recorrem) e das duas horas de espera que,

entre fila e palestra obrigatória, foi obrigada a enfrentar, Cristiane se orgulha do seu

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gesto. No seu caso, esse gesto resulta de uma escolha. Cristiane pertence à classe A.

Para defender seus direitos, ela se dispôs a enfrentar a burocracia como se fosse uma

cidadã comum. Esta é, provavelmente, a razão pela qual a humilhação não a atinge,

tornando-se, até, paradoxalmente, motivo de orgulho. Em todo caso, Cristiane não tem

qualquer arrependimento em relação à atitude que assumiu.

Giovanni (classe B1, 34 anos) parece ter a mesma segurança. Ele se diz determinado a

levar até o fim o processo contra a WAT:

Desistir jamais! (...) Eu posso até pagar mais do que o bem, mas eu vou... Vou

pagar mais do que o bem. Mas esse dinheiro vai sair dele. Não tem a menor

possibilidade.

Adiante, ele comenta:

Pra mim, é um problema sistêmico, um problema brasileiro mesmo, bem típico

do Brasil mesmo. As pessoas levam vantagem, como eu conheci várias

empresas, essas de... esses comércios, que cresceram às custas de título

protestado. (...) Não há punição. O problema é esse. Não há punição. No Brasil,

não há punição. Isso é um problema. Quando há punição, a punição é lenta.

Extremamente lenta, demorada, então as pessoas vão ganhando tempo. Até para

fugir. Pegar um avião e fugir pra outro país, que até isso tá dando.

Ele não é o único a mencionar o tema da impunidade. De acordo com vários

entrevistados, a razão do comportamento abusivo das empresas encontra-se na certeza

de que dificilmente sofrerão alguma punição.

Tudo fica impune! Não há uma cobrança. Não há obrigatoriedade. (...) Fica

tudo, não há um controle, não há obrigação. Como tudo aqui, infelizmente!

(Leila, classe A2, 64 anos)

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Então, eu acho que é isso. A empresa, ela não é punida porque lesa. O País é

muito pouco cobrador. A impunidade é grande em tudo. E eu acho que essa

mesma impunidade, que vai desde a parte criminal, ela passa para o fornecedor,

o prestador de serviço. (Elzah, classe B1, 49 anos)

Os consumidores entrevistados acreditam que os órgãos de defesa do consumidor

podem contribuir para reverter esse quadro:

Então eu acho que de alguma forma (o Procon) ajuda sim, sabe? Quer dizer,

essas tentativas de ter um árbitro, porque eu acho que a gente, consumidor, é

muito fraquinho perto de... Imagina eu diante da B.! Se eu não tiver alguém que

diga: “pera lá, eu sou o poder público aqui, eu é que te permito tar aqui

vendendo geladeiras B. para as pessoas, então você tem que respeitar as

pessoas”. (...) Aí de repente, se o Estado começar a discutir com a B., a coisa...

se equipara, né? Um pouco mais. (Carla, classe A2, 37 anos)

Pensam, também, que o ato de recorrer aos serviços do Procon e da Justiça pode, a

médio ou longo prazo, contribuir para acabar com essa tradição de impunidade. O

cliente que se dispõe a fazê-lo dá, assim, sua contribuição. Se ele for bem sucedido, ao

menos dessa vez, a empresa será punida. E, mesmo se fracassar, ela sentirá o peso da

Justiça.

Mais ainda, aos olhos do entrevistados, esse é o único meio capaz de influenciar a

atitude das empresas:

Eu acho que as coisas melhoraram, a consideração e a educação, eu acho que

se não fizerem (reclamações junto a órgãos de defesa do consumidor)... Se você

não reclamar, a indústria não vai fazer nada! (Solange, classe A2, 51 anos)

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Eu acho que as pessoas... porque se as pessoas começarem a usar mais (o

Procon), eu acho que mais empresas vão ter preocupação em atender melhor!

(Patrícia, classe A2, 34 anos)

Então, o cara tem que brigar mesmo, lutar... O ruim é que o cara às vezes tem

que perder o dia, para ir lá reclamar, dar entrada e essas coisas. Mas tem que

correr, tem que batalhar, tem que dar entrada, não pode desanimar não. Se não,

essas empresas não vão se acertar nunca! (Xavier, classe B2, 32 anos)

É a forma do consumidor ganhar poder. Quer dizer, primeiro, você reclama

amigavelmente, espera que eles solucionem, né? Se eles não solucionam, aí você

tem que partir pra briga. E eu acho que o Procon é um movimento que veio, que

está lentamente melhorando muito a preocupação do fabricante, do prestador

de serviço, com o cliente. Porque começou a dar um poder ao cliente, na medida

em que ele se junta. Porque você, isoladamente, não tem força nenhuma. Mas a

união dos consumidores, faz com que passe a ser exercido um mecanismo de

pressão. (...) Algumas poucas empresas fazem (esforços para proporcionar um

melhor atendimento). Eu acho que tá começando a mudar isso no Brasil. Mas,

muito pouco. (Elzah, classe B1, 49 anos)

Do ponto de vista dos consumidores, o respeito de seus direitos depende, assim, muito

mais do seu poder de pressão e da eficiência da Justiça do que das intenções das

empresas. A não ser que sejam obrigadas a fazê-lo, estas dificilmente irão abrir mão de

seus interesses para melhor atender aos de seus clientes.

Novamente, a idéia de que a relação com a empresa é dominada pelo conflito parece

orientar o pensamento e as ações do consumidor. “Se a gente não brigar, essas empresas

não vão se acertar nunca” (Xavier, classe B2, 32 anos). Recorrendo aos órgãos de defesa

do consumidor, o cliente briga sem receios. Ele não teme passar por esperto. Não está

tentando atravessar as regras. Ao contrário, está lutando para que elas sejam aplicadas.

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5. DISCUSSÃO

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5. DISCUSSÃO

Este capítulo tem por objetivo discutir os resultados encontrados na pesquisa de campo

à luz da literatura existente e das questões de pesquisa inicialmente formuladas.

Como vimos no capítulo 2 (Revisão de Literatura), o conceito atual de satisfação pode

ser, resumidamente, descrito da seguinte forma: trata-se de um estado psicológico,

resultante de um processo avaliativo que compara uma referência interna pré-existente

aos efeitos reais da compra. A insatisfação ocorre quando os resultados decorrentes da

transação são menores do que o esperado, isto é, quando há “desconfirmação negativa”

(Evrard, 1995; Oliver, 1997; Spreng, MacKenzie e Olshavsky, 1996).

Ao examinar as discussões suscitadas, no início da década de 1970, pelo surgimento dos

movimentos de consumidores (Kotler, 1972; Drucker, 1973; Buskirk e Rothe, 1973),

observamos que os questionamentos então feitos a respeito da interpretação do termo

“satisfação do consumidor” pouco haviam influenciado os estudos realizados sobre o

tema na área de comportamento do consumidor. Basicamente, os debates apontaram a

importância de considerar o assunto a partir de uma visão de longo prazo, não apenas

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individual, mas também social; de levar em conta não somente os desejos, mas também

os interesses dos consumidores (Kotler, 1972) e de dedicar maiores esforços ao

entendimento do ponto de vista destes últimos (Drucker,1973; Buskirk e Rothe,1973).

Até hoje, porém, a satisfação é estudada como um estado psicológico, isto é, individual

e relativo à compra, isto é, transitório (Evrard, 1995; Oliver e Westbrook, 1991).

Alguns autores mais recentes, como Wensley (1989), Woodruffe (1997), Knights,

Sturdy e Morgan (1994) têm criticado o caráter “atomístico e individual” (Wensley,

1989, p. 54) da abordagem que domina a disciplina de comportamento do consumidor e

apontado seus limites. Knights, Sturdy e Morgan (1994) sublinham que os fenômenos

estudados deveriam ser tratados não apenas como traços psíquicos individuais, mas

também como resultado da relação produtor versus consumidor (p. 47). Woodruffe

(1997) sugere que as questões investigadas pela área deveriam alinhar-se mais com os

interesses dos consumidores do que com os dos profissionais de marketing (p. 671).

Diante dessas observações, optou-se por investigar o fenômeno da insatisfação a partir

do ponto de vista dos consumidores, abordando-o não apenas como estado psicológico

resultante de uma transação comercial específica, mas também como experiência

individual de uma relação social.

O exame da literatura existente na área de comportamento do consumidor apontou três

questões que são, até hoje, objeto de debate entre os estudiosos da área:

1. A dos elementos que compõem o quadro de referências mobilizado pelos

consumidores na avaliação de suas compras;

2. A da natureza do estado psicológico que deriva dessa avaliação;

3. A da relação existente entre o grau de insatisfação e os comportamentos pós-

compra;

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Este capítulo procura responder às perguntas de pesquisa inicialmente colocadas e

examinar a contribuição dos resultados obtidos para as discussão dessas questões.

5.1. AS REPRESENTAÇÕES DA RELAÇÃO CONSUMIDOR

VERSUS EMPRESA E A AVALIAÇÃO DA COMPRA

Como vimos no capítulo 2 (item 2.4.1), a questão das referências mobilizadas pelos

clientes na avaliação de suas compras é, ainda hoje, objeto de debate. Ao lado de

referências que se tornaram clássicas na literatura, como as expectativas e o conceito de

eqüidade, existem outras, menos exploradas no corpo de pesquisas atualmente

disponível, como normas, desejos e valores (Evrard, 1995). Essas diferentes referências

procuram retratar de forma cada vez mais completa o processo de avaliação do

consumidor. O papel exercido por cada uma delas continua, porém, suscitando

discussões (ver, por exemplo, a questão da incorporação dos desejos ao conceito de

expectativas, debatida por Oliver, 1981, e Spreng, MacKenzie e Oshlavsky, 1996).

No item 2.5. (O Conceito de Satisfação e os Movimentos de Consumidores), foi

sugerido que uma abordagem interpretativa poderia contribuir para um melhor

entendimento do papel e da articulação dessas referências. Como observa Moscovici

(1986) a respeito dos mecanismos descritos pelas teorias da Atribuição, da Dissonância

Cognitiva e do Princípio de Equilíbrio (“Balance Theory”), a idéia era que, por trás das

referências mobilizadas pelos consumidores, existiam “teorias e preconceitos

implícitos”, mais significativos do que elas e que as organizavam (Moscovici, 1986, p.

52). Tais teorias não seriam universais e e sim ancoradas numa realidade social e

cultural específica. Dentro dessa perspectiva, o estudo das representações existentes, em

determinado contexto sócio-cultural, sobre as relações consumidor versus empresa,

poderia levar a uma melhor compreensão dos mecanismos descritos pelo “paradigma da

desconfirmação”.

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A seguir, serão examinadas as representações identificadas através da pesquisa de

campo e discutidas suas implicações no que diz respeito ao processo de avaliação da

compra.

5.1.1. REPRESENTAÇÕES DA RELAÇÃO COMPRADOR VERSUS

VENDEDOR

As representações da relação comprador versus vendedor e dos atores envolvidos nessa

relação (vendedores, compradores, órgãos de defesa do consumidor) eram o objeto da

nossa primeira pergunta de pesquisa. A análise do discurso dos entrevistados permitiu

identificar um conjunto de representações, que podem ser descritas como se segue:

♦ A relação comprador versus vendedor é percebida como sendo de natureza

essencialmente econômica.

Os consumidores acreditam que o objetivo primeiro da empresa é “vender”,

“faturar”. Sua descrição retoma, quase literalmente, os termos propostos pela

orientação para vendas. Trata-se de “gerar vendas a curto prazo”, de “vender a

qualquer custo” (Rocha e Christensen, 1999, p. 20).

A empresa é vista como elemento impessoal e distanciado do consumidor.

Recorrendo à dicotomia entre a “casa” e a “rua”, proposta por Da Matta (1983

e 1987), ela representa a “rua”, uma entidade distante e abstrata, movida

exclusivamente pelos seus próprios interesses - a venda e o lucro - e desprovida

de qualquer senso de solidariedade.

♦ Ela é dominada pela desconfiança.

Por perceberem as empresas como preocupadas fundamentalmente com o lucro,

os consumidores manifestam profunda desconfiança no seu empenho em buscar

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a satisfação do cliente. De acordo com sua avaliação, “você só é bem atendido

quando você compra”. Concluída a venda, o interesse pelo cliente desaparece

(“no momento que gastou, que pagou, tchau!”). Por isso, é preciso pensar duas

vezes antes de efetuar uma compra. Não se pode contar com a lealdade do

vendedor.

Mesmo quando os entrevistados ressaltam que nem todas as empresas são iguais

e que algumas se preocupam, mais que as outras, com a qualidade de seus

serviços, esse sentimento permanece.

Existem empresas que se preocupam com a satisfação do cliente. Elas “vendem

qualidade”. Mas não fazem isso para o consumidor “ser feliz”, e sim “para elas

venderem mais.” Outras, em compensação, se comportam de modo “selvagem”:

são as que são movidas pela “ganância”, que procuram “enganar o povo”, “levar

vantagem”, “dar o golpe e ganhar muito em pouco tempo”. De acordo com a

percepção dos entrevistados, as primeiras ainda são, no Brasil, exceção.

♦ Ela é vista como intrinsecamente conflitante.

Na medida em que o objetivo principal da empresa é “faturar”, seus interesses,

em princípio, não coincidem com os dos clientes. Essa interpretação reforça a

tese proposta por Knights, Sturdy e Morgan (1994), da “tensão” existente entre

os dois objetivos propostos pelo conceito de marketing, o de lucrar e o de

promover a satisfação do consumidor. Na visão dos entrevistados, o primeiro,

inevitavelmente, se sobrepõe ao segundo (“duvido que alguém esteja preocupado

com a minha felicidade quando faz uma geladeira”). Mesmo quando se empenha

em satisfazer seus clientes, a empresa o faz em função do impacto dessa atitude

sobre suas vendas.

♦ E como sendo uma relação de poder.

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De acordo com a visão dos entrevistados, o empenho em satisfazer o cliente

depende, também, da relação de forças existente entre empresa e consumidor.

Em princípio, esta favorece a empresa, que dispõe, aos olhos dos consumidores,

de um poder muito superior ao seu. Vários entrevistados responsabilizam o

contexto brasileiro por essa situação. “No Brasil, não há punição”. Não há

limites. “A empresa não é punida porque lesa.”

Por outro lado, os comentários relativos aos órgãos de defesa do consumidor

evidenciam que a maioria acredita que o fato de recorrer a estes últimos pode

contribuir para reverter esse quadro.

O consumidor se julga mais fraco, mas ele pensa que, ao lutar para defender seus

direitos, pode ganhar mais força, não somente enquanto indivíduo, mas também

pelo fato de aumentar a pressão coletivamente exercida sobre as empresas. “Tem

que brigar mesmo, lutar (...) Não pode desanimar não. Se não, essas empresas

não vão se acertar nunca!”. Em outras palavras, o empenho em satisfazer os

consumidores depende, ao menos em parte, da pressão exercida por estes

últimos. Se os clientes adquirirem o hábito de lutar para defender os seus

direitos, as empresas tenderão a se esforçar mais.

♦ Que divide e discrimina os consumidores.

A dimensão do poder atua, também, como um elemento que divide e discrimina

os consumidores. O sentimento de discriminação se manifesta de duas formas:

no discurso sobre as marcas e na questão do atendimento ao cliente.

♦ Marcas

Os entrevistados acreditam que as marcas de renome tendem a ter mais

respeito pelos seus clientes, enquanto que as “de pobre” pouco se

importam com a qualidade de seus produtos e com o atendimento que

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203

prestam. Essa crença vai ao encontro dos resultados obtidos por Knights,

Sturdy e Morgan (1994), que observaram, numa pesquisa sobre serviços

financeiros realizada no Reino Unido, que as técnicas de segmentação

eram utilizadas mais para discriminar os clientes “rentáveis8” dos demais

do que para identificar e atender as necessidades dos diferentes grupos

que compunham a clientela. Segundo esses autores, as considerações de

custo e rentabilidade são as que determinam a oferta das empresas

estudadas. Os consumidores entrevistados aparentemente acreditam que

esse critério é, de fato, o que prevalece. Aos seus olhos, as marcas

destinadas ao público de menor poder aquisitivo fazem produtos “de

custo baixo”, de “má qualidade”. Elas não têm “interesse na durabilidade

do produto”. Mas, “não se preocupam”: “Preços baixos, baixa qualidade.

Vende muito.”

Os resultados obtidos sugerem que a escolha da marca é fortemente

influenciada por essa crença e que esta atua como um “critério de

segmentação”, utilizado pelos consumidores para dividir as empresas em

duas grandes categorias: de um lado estão as que lidam com a elite, que

se preocupam com a qualidade e a satisfação de seus clientes; de outro, as

que atendem às classes mais baixas e procuram, tão somente, lucrar na

base do volume. Das primeiras, espera-se um atendimento digno; das

segundas, a vantagem da economia, acompanhada, porém, de riscos

maiores.

♦ Atendimento ao cliente

Por outro lado, em caso de problema, independentemente da marca

adquirida, os consumidores de classe mais alta (A e B1) se sentem

melhor armados para negociar com a empresa. O desnível entre os

poderes das duas partes é visto, por eles, como um obstáculo que pode ser

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204

superado. Já, para os de classe mais baixa (B2, C e D), ele constitui uma

barreira, que chega a inibir, até mesmo, o uso de serviços de assistência

técnica.

Assim, a diferença de forças entre empresa e consumidor é vivida de forma mais

dramática pelos menos privilegiados. Além da dificuldade de acesso às melhores

marcas imposta pelo seu menor poder aquisitivo (“você vai e compra porque o

seu dinheiro dá”), e da diferença que isso significa em termos de qualidade do

produto e atendimento, eles também não dispõem, em caso de conflito, dos

meios de pressão acessíveis às classes mais altas. Suspender o pagamento pode

levá-los ao SPC; argumentar não vai funcionar (“eles não vão aceitar”); brigar,

então, equivale a se arriscar mais ainda, muito provavelmente, em vão (“quem

sou eu para processar a Z?”).

Em suma, a relação com a empresa é marcada pela desigualdade: desigualdade entre o

poder da empresa e o do consumidor; desigualdade entre consumidores “ricos” e

consumidores “pobres”.

5.1.2. IMPACTO DAS REPRESENTAÇÕES DA RELAÇÃO COMPRADOR

VERSUS VENDEDOR SOBRE A AVALIAÇÃO DO CONSUMIDOR

Parece razoável supor que essas representações afetem as referências mobilizadas pelos

consumidores na avaliação da compra.

♦ Expectativas

Os entrevistados não acreditam, de modo geral, no empenho das empresas em

satisfazê-los. Ao contrário, temem ser enganados. Essa visão possivelmente

8 “profitable”, no original.

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205

influencia suas expectativas. De um lado, ela tende a nivelá-las por baixo. O

simples fato de não “sofrer prejuízo” já constitui um alívio. Se o produto

corresponder ao prometido. Se ele for entregue nas condições previstas, o

consumidor já se dá por satisfeito. Por outro lado, o menor problema tende a ser

interpretado como uma tentativa de enganar o cliente. Nesse sentido, o nível de

exigência do consumidor tende, ao contrário, a se elevar. As falhas da empresa

não são atribuídas a erros involuntários, mas sim a uma intenção deliberada de

explorar o cliente. Elas são, por isso, menos toleradas.

Essa observação pode estar relacionada à hipótese, levantada por Singh e Pandya

(1991), de que a insatisfação poderia atuar na forma de limiares, que, uma vez

ultrapassados, desencadeariam determinados tipos de ação pós-compra. Nesse

caso, teríamos, apesar do baixo nível das expectativas, um limite de tolerância

estreito. A replicação, no Brasil, do estudo realizado por Singh e Pandya

permitiria examinar melhor essa questão.

♦ Confirmação e desconfirmação

Mas os efeitos da representação da relação comprador versus vendedor são,

provavelmente, ainda mais complexos. Como vimos, os entrevistados dividem as

empresas em categorias associadas ao poder aquisitivo de seu público-alvo e

suas expectativas estão estreitamente ligadas a essa classificação. Paula se

espanta com o tratamento que recebeu de um fabricante de varal, “uma empresa

simples”, “de São Paulo” (desconfirmação positiva). Inversamente, espera-se das

marcas voltadas para as classes altas que tenham maior respeito pelos seus

clientes. Quando isso não acontece, porém, o cliente tende a se sentir não

somente decepcionado (desconfirmação negativa), mas também traído e

discriminado (“eles não têm respeito pela gente. Eu acho que é porque somos

pessoas humildes.”). Se a empresa não cumpriu o contrato tácito de respeito

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206

associado à sua imagem, é porque seu intento era o de enganar, ou então porque

esse contrato só vale, aos seus olhos, para alguns.

Tanto as expectativas como sua confirmação ou desconfirmação são, assim,

carregadas de significados, que não afetam somente o nível de satisfação ou

insatisfação, mas a interpretação do comportamento da empresa. Essa

interpretação organiza-se, em grande parte, em torno do tema da honestidade, no

sentido usual do termo e, também, no seu sentido etimológico de “honradez”. O

que está em questão não é somente o fato de respeitar ou não a lei (inclusive

porque, como vimos, esta é uma dimensão cercada de incertezas), mas também a

forma com a qual a empresa lida com o poder, aproveitando-se, ou não, de sua

superioridade.

♦ Impacto do fator eqüidade

Farias e Santos (1999) observam, ao analisar os resultados da pesquisa que

realizaram junto a usuários de terceira idade de serviços de hotelaria no Nordeste

brasileiro, que a eqüidade foi, entre as variáveis estudadas, a que teve “o efeito

direto com maior impacto na resposta de satisfação” (p. 9). Eles relacionam a

obtenção desse resultado, que contrasta com os obtidos em pesquisas realizadas

nos Estados Unidos, à faixa etária da população pesquisada: “O impacto direto

da justiça sobre a resposta de satisfação pode também indicar que os

consumidores idosos são experientes e buscam desenvolver estratégias de

compra efetivas com base nos anos de experiência que possuem” (p. 9).

Os relatos colhidos sugerem que o impacto do fator eqüidade talvez não seja

exclusividade dos idosos. A dimensão da justiça parece exercer, na percepção

dos entrevistados, um papel fundamental, relacionado mais ao contexto sócio-

cultural brasileiro, do que à faixa etária dos consumidores. Na medida em que a

honestidade constitui, entre os compradores, um eixo de interpretação de suas

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experiências, parece natural que a dimensão da eqüidade exerça um efeito mais

direto sobre suas avaliações. De acordo com Farias e Santos (1999)9, não

existem, até o momento, pesquisas semelhantes realizadas, no Brasil, com outros

públicos. Não é possível, portanto, examinar mais profundamente essa hipótese.

Trata-se, porém, de uma questão que merece novas investigações. Além do

fenômeno da satisfação do consumidor, está em jogo a tese defendida por

Moscovici (1986) de que os mecanismos descritos pela psicologia cognitivista,

no caso, os propostos pela Teoria da Eqüidade e pela Teoria da Desconfirmação,

seriam regidos não por princípios universais e sim por representações

características de determinada organização social.

Os dados colhidos sugerem, em suma, que a representação da relação comprador versus

vendedor deve exercer uma influência sobre as referências e os processos mobilizados

pelos consumidores na avaliação da compra. Essa hipótese poderia ser melhor

examinada através da replicação, junto a outros públicos, da pesquisa realizada por

Farias e Santos (1999) e, de modo geral, da realização, em diversos contextos culturais,

de estudos comparativos sobre o tema. Seria importante, porém, que, paralelamente a

essas pesquisas, fossem efetuados estudos qualitativos, de modo a obter mais elementos

para a interpretação das diferenças eventualmente observadas.

De fato, os resultados que obtivemos apontam que o processo de geração da satisfação

ou insatisfação talvez não seja tão universal como se supõe. Como havíamos sugerido

no capítulo 2 (item 2.6), tudo indica que, por trás dos elementos mobilizados pelos

compradores na avaliação da compra, existem não somente mecanismos psicológicos,

mas também estruturas interpretativas, que orientam seu pensamento e suas ações. A

existência e identificação dessas estruturas eram o objeto da nossa segunda pergunta de

pesquisa. Essa pergunta está, por sua vez, estreitamente relacionada à segunda questão

9 Os autores sublinham, no artigo, a ausência de outros estudos efetuados com idosos no Brasil. Masdisseram, em resposta à pergunta feita por nós por ocasião da apresentação do seu trabalho, no CongressoENANPAD - 1999, que também desconheciam a existência de pesquisas relativas a outras faixas etárias.

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debatida pela literatura: a da natureza do estado psicológico de satisfação ou

insatisfação.

5.2. ESTRUTURAS DE REPRESENTAÇÕES E NATUREZA DO

ESTADO DE SATISFAÇÃO OU INSATISFAÇÃO

Como vimos no capítulo 2, uma das questões investigadas pela disciplina de

comportamento de consumidor é a de saber se existem um ou vários “estados” de

satisfação ou insatisfação (Oliver e Westbrook, 1991). Essa questão é, evidentemente,

de fundamental importância para os profissionais de marketing: é possível “medir” a

satisfação do cliente através de escalas suscetíveis de serem reduzidas a uma dimensão

(muito satisfeito/muito insatisfeito) e obter assim um indicador confiável do seu

comportamento futuro?

Os dados obtidos sugerem que se trata de uma tarefa complexa. Os consumidores

entrevistados não se julgam somente satisfeitos ou insatisfeitos. Eles interpretam sua

experiência. Ao fazê-lo, eles atribuem à transação determinados significados, que, à

primeira vista, dificilmente parecem ser traduzíveis em uma única dimensão.

Esses significados organizam-se, por sua vez, em torno de “estruturas significantes”

(Geertz, 1973) características da cultura à qual pertencem os compradores.

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209

O caráter simultaneamente hierárquico e igualitário da sociedade brasileira (Da Matta,

1983, 1986) manifesta-se claramente no discurso dos entrevistados. Ele estrutura suas

interpretações, dividindo as empresas em categorias hierarquizadas (marcas

conceituadas, marcas “de pobre”), às quais são associados comportamentos distintos.

Como estamos numa sociedade que é, também, igualitária, o dinheiro permite

“atravessar” as fronteiras existentes entre essas categorias. Mas essa possibilidade só vai

até certo ponto. Na hora da negociação, a posição social do comprador volta à tona. A

empresa é então acusada de discriminar seus clientes, contrariando, assim, a regra da

igualdade. Mas a gravidade desse “crime” depende, também, da categoria à qual ela

pertence e da posição social do cliente. Uma empresa “classe A” que destrata um cliente

de classe baixa é julgada mais severamente do que um estabelecimento modesto que faz

o mesmo. Inversamente, quando uma empresa “simples” atende bem até mesmo um

cliente “humilde”, ela é vista como particularmente merecedora. Voltamos, então, à

lógica hierárquica.

Até que ponto o processo de comparação com uma referência, princípio proposto pela

Teoria da Desconfirmação, consegue dar conta desse tipo de fenômenos? A comparação

parece, no caso da população estudada, não obedecer a uma lógica baseada

exclusivemente na ordem de grandeza da diferença existente entre a referência e o

resultado da compra. Ela leva, também, em conta, os diferentes significados que podem

ser atribuídos a essa diferença.

De acordo com o discurso dos entrevistados, o fracasso de uma compra pode ter

diversos significados:

O consumidor “Errou Quando Comprou”. Arriscou-se “porque estava mais barato”. Por

falta de opção, desconhecimento ou escolha, apostou numa marca desconhecida ou

pouco conceituada. Nesse caso, ele “caiu no conto do vigário”. Para os consumidores de

classe mais privilegiada, os que poderiam ter feito outra escolha, essa situação nada

mais é que um retorno, senão justo, ao menos previsível: ao optar pela alternativa mais

barata, o comprador quis, de alguma forma, ser “esperto” e acabou sendo vítima da

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210

esperteza da empresa. Para os demais, ela representa uma sina, pois não há outra

alternativa. Aos “humildes”, resta como opção um exército de empresas empenhadas em

explorá-los. Quer queira, quer não, é preciso correr o risco de lidar com elas. O termo de

“tristeza”, não por acaso, é recorrente nos relatos destes consumidores. Ele retrata o

sentimento de resignação e fatalidade que domina sua avaliação.

O consumidor investiu, comprou uma marca mais cara e, ainda assim, “se deu mal”.

Para o consumidor de classe alta, trata-se de uma falta de respeito (“quando você está

pagando muito caro, você não admite ser atendido por uma pessoa que não tem

qualificação”). Para o de classe baixa, é mais um efeito da esperteza das empresas e da

discriminação (“eles acham: ah, não tem estudo, não entende nada de lei, então, vão

sempre aprontando.”).

Temos, assim, vários “tipos” de consumidores insatisfeitos: consumidores arrependidos,

às vezes desolados (“ah se eu tivesse comprado a outra!”), às vezes irônicos e auto-

depreciativos (“que burrice!”); consumidores tristes e resignados (“fazer o que? Era o

que eu podia comprar”); consumidores indignados (“é uma falta de respeito!”);

consumidores revoltados (“se eu não fosse uma pessoa ‘humilde’, não me tratariam

assim!”).

O quadro seguinte procura resumir algumas dessas reações e situá-las a partir de dois

eixos: o da classe social do comprador e da categoria da empresa envolvida (marca “de

rico” versus marca “de pobre”).

INTERPRETAÇÕES DA EXPERIÊNCIA DE INSATISFAÇÃO SEGUNDO

CLASSE SOCIAL DO COMPRADOR E MARCA

MARCA VOLTADA PARA

CLASSE ALTA

MARCA VOLTADA PARA

CLASSE BAIXA

CLIENTE DE

CLASSE ALTA

INDIGNAÇÃO:

“EU NÃO ADMITO!”

ARREPENDIMENTO:

“SE EU TIVESSE COMPRADO UM

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CRÍTICA:

“AQUI NÃO HÁ RESPEITO”.

DE QUALIDADE, TINHA DURADO

MAIS”.

AUTO-CRÍTICA:

“QUE BURRICE!”

CLIENTE DE

CLASSE

BAIXA

REVOLTA/DISCRIMINAÇÃO:

“ELES NÃO TÊM RESPEITO

PELA GENTE. ACHO QUE É

PORQUE SOMOS PESSOAS

HUMILDES.”

DESESPERO: “FOI UM

SACRIFÍCIO.”

FATALIDADE:

“VOCÊ VAI E COMPRA PORQUE O

SEU DINHEIRO DÁ.”

TRISTEZA/RESSENTIMENTO:

“É MUITO TRISTE”. “ELES NÃO SE

PREOCUPAM”.

As “experiências afetivas qualitativamente diferentes (...), que coexistem e estão

relacionadas como o continuum comum e unidimensional da satisfação”, encontradas

por Oliver e Westbrook (1991, p. 89), provavelmente estão relacionadas a esses

significados. Ao investigá-las através do estudo de variáveis, ou, como diriam Goode e

Hatt (1979), de “traços” desvinculados da unidade de análise (no caso, a pessoa), perde-

se, porém, de vista seu caráter interpretativo.

Interesse, alegria, surpresa, tristeza, raiva, desgosto, desprezo, medo, vergonha, culpa

(varíaveis estudadas pelos dois autores) não são somente “respostas” afetivas

desencadeadas pela compra. São manifestações de sua interpretação, que dão origem,

não somente a avaliações positivas ou negativas, como também a julgamentos mais

complexos. A combinação do estudo dessas interpretações com a realização de

pesquisas semelhantes à de Oliver e Westbrook (1991) constituiria, sem dúvida, um

caminho promissor para a investigação dessa questão. Os resultados obtidos no presente

estudo sugerem, de fato, que, por trás das “experiências qualitativamente diferentes”

relacionadas ao fenômeno da satisfação, existem estruturas interpretativas distintas, que

“organizam” essas experiências em torno de princípios ou idéias característicos da

cultura ou subcultura à qual pertencem os consumidores.

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Por outro lado, apontam, também, que a definição da satisfação ou insatisfação como

estado psicológico traz consigo limites que dificultam sua investigação. Ao adotar como

ponto de partida o pressuposto de que se trata de um fenômeno psíquico individual

(Knights, Sturdy e Morgan, 1994), que obedece a mecanismos universais, ela deixa de

lado sua dimensão cultural. Sobretudo, não considera que o que está em jogo é uma

relação social, regida não somente pelo funcionamento da mente dos indivíduos, mas

também por uma dinâmica coletiva.

5.3. LÓGICAS DE AÇÃO DO CONSUMIDOR, INSATISFAÇÃO E

COMPORTAMENTOS PÓS-COMPRA

A terceira pergunta de pesquisa dizia respeito à existência de lógicas de ação, isto é, de

seqüências organizadas e identificáveis de comportamentos desencadeadas pela

insatisfação. A quarta pergunta de pesquisa levantava a questão do caráter estratégico

(isto é, voltado para o alcance de determinados objetivos) dessas lógicas.

Por trás dessas perguntas, havia uma suposição: a de que tanto as empresas como os

consumidores agiam de acordo com uma lógica, mais ou menos explícita, mais ou

menos consciente, mas organizada por princípios estruturados.

Havia, também, uma dúvida. A disciplina de Comportamento do Consumidor vem

procurando estudar o fenômeno da satisfação a partir de um ponto de vista que reflete,

essencialmente, os interesses da empresa (Woodruffe, 1997). Seus esforços são

norteados por um objetivo, que consiste, basicamente, em encontrar um meio de medir a

satisfação suscetível de ser utilizado para prever o comportamento dos consumidores.

Para isso, é preciso descobrir os fatores que determinam os comportamentos que podem

ter impacto sobre o desempenho da empresa: fidelidade, boicote, divulgação boca-a-

boca da experiência de compra, queixa direta ou indireta. Mas até que ponto essa

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abordagem pode dar conta de uma lógica não necessariamente pautada por

preocupações semelhantes às da empresa?

Como vimos no capítulo 2, Singh e Pandya (1991) observaram, numa pesquisa

empírica, que o grau de insatisfação nem sempre exercia uma influência direta sobre os

comportamento pós-compra.

Os dados obtidos neste estudo sugerem que a relação existente entre insatisfação e

comportamento é mediada pela interpretação do consumidor e que esta obedece a uma

lógica essencialmente social e cultural, que, mais que o “tamanho” da insatisfação, leva

em conta a situação gerada por ela.

De acordo com os relatos colhidos, os clientes tendem a acreditar que, ao se dirigir à

empresa, provavelmente enfrentarão um conflito. Na sua visão, seu pedido será, na

maior parte dos casos, tratado com reticências. Ele poderá ser ignorado ou contestado,

mas raramente será bem acolhido. Essa perspectiva tende, de modo geral, a inibir os

comportamentos de queixa.

Blodgett, Wakefield e Barnes (1995) observaram que a percepção da probabilidade de

sucesso da ação exercia, sobre os comportamentos de queixa, uma influência

significativa. Mas os relatos colhidos apontam que o que está em causa não é somente o

resultado da ação.

O cliente que se queixa toma uma iniciativa, que, numa cultura hierárquica, o expõe à

censura. Ele rompe a harmonia, ele explicita o conflito. Essa atitude, por si só, desperta

múltiplas ansiedades, que tendem a inibi-lo. E o problema não termina aí. Uma vez

desencadeada a briga, como o cliente irá se sair dela? Com o antipático e sempre

arriscado “Você sabe com quem está falando?” Com o desagrável e nem sempre bem

sucedido jeitinho? Ou, pior ainda, com a humilhação de uma simples derrota?

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214

Diante desses riscos, o consumidor pensa duas vezes antes de se queixar. Em

compensação, ele imediatamente se dispõe a boicotar a empresa e a espalhar sua

experiência junto ao maior número possível de clientes potenciais. Ao empreender essas

ações, ele não experimenta qualquer dilema, a não ser o de renunciar aos serviços ou

produtos da empresa. Sente que, ao deixar de ser cliente, está “punindo” a empresa pelo

seu mau comportamento e que, ao avisar outros consumidores, está sendo solidário.

As ações públicas “indiretas” (Blodgett, Wakefield e Barnes, 1995; Singh e Pandya,

1991), embora inibidas pelo esforço que exigem, também não despertam receios

semelhantes aos que estão associados à queixa. Ao contrário, como vimos, o

consumidor que recorre ao Procon ou ao Juizado Especial Cível orgulha-se de sua

iniciativa e persistência.

Essas observações sugerem que os consumidores relutam em se dirigir às empresas para

se queixar porque temem se expor publicamente a um conflito, que, possivelmente,

acabará sendo mediado por princípios hierárquicos. Ações privadas (boicote ou

divulgação boca-a-boca da experiência negativa) não acarretam confrontos diretos. Não

expõem o consumidor ao risco de levar um “não”, nem à necessidade de recorrer ao

jeitinho ou ao “Você sabe com quem está falando?”. Ações públicas “indiretas” (via

órgãos públicos ou privados de defesa do consumidor) são, em princípio, regidas pela

lógica das “leis universais” (Da Matta, 1986) e da igualdade. Mas as ações públicas

“diretas” (queixa ao vendedor ou produtor) podem acabar num confronto cujo resultado

poderá ser determinado tanto por princípios igualitários, como por princípios

hierárquicos. Elas trazem, assim, consigo, o risco do constrangimento: constrangimento

de ser tratado como um “joão-ninguém”, de parecer “esperto” ou arrogante; de,

ganhando ou perdendo, “perder a face”. Diante desse risco, o consumidor, sobretudo

quando sabe que não ocupa os primeiros escalões da hierarquia, prefere, na maior parte

das vezes, simplesmente desistir.

Entre o grau de insatisfação e os comportamentos pós-compra, existe, assim, uma

lógica, que não leva somente em conta as conseqüências concretas da ação - ou ausência

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de ação -, mas também sua dimensão simbólica. Tudo indica que o consumidor efetua,

entre os aspectos concretos e simbólicos da situação, uma espécie de trade-off. Trata-se

de conciliar, da forma menos desvantajosa possível, os riscos materiais e morais de

prejuízo.

Nesse sentido, as ações do cliente têm caráter estratégico, pois estão voltadas para

determinado objetivo. Mas estão, também, carregadas de elementos contraditórios, pois

a dimensão material freqüentemente se choca com a dimensão moral. Temos assim

comportamentos aparentemente paradoxais, como o de clientes ressarcidos que

boicotam a empresa e divulgam de forma negativa sua experiência, de clientes que não

procuraram sequer a assistência técnica, mas passaram a odiar o fabricante, de clientes

que, embora pagando o conserto, não têm qualquer ressentimento, de clientes que se

dispõem a “pagar mais que o bem” para perseguir na justiça o fornecedor, de clientes

que perderam sua causa na Justiça, mas não se sentem humilhados pela derrota.

Em suma, o comportamento do consumidor parece obedecer a uma lógica mais

complexa do que se supõe habitualmente. E essa lógica deriva, claramente, de um

contexto sócio-cultural específico. Sem dúvida, a realização de pesquisas semelhantes

em outros países poderia trazer elementos para enriquecer essa discussão. No caso da

população estudada, tudo indica, porém, que a dinâmica social e cultural da relação

consumidor versus empresa exerce uma influência decisiva sobre as ações empreendidas

em decorrência da insatisfação.

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6. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

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6. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

Esse capítulo tem por objetivo delinear as conclusões da pesquisa e traçar algumas

recomendações para futuras pesquisas e para a atuação das empresas implantadas no

país.

6.1. CONCLUSÕES

Esse estudo procurou, através de uma abordagem interpretativa, explorar a questão da

insatisfação. O método utilizado não se propõe, e nem permite, qualquer generalização

ao universo dos consumidores brasileiros. As conclusões aqui colocadas devem, assim,

ser lidas, como “pistas”, que se destinam a suscitar novas investigações e reflexões.

O estudo permitiu chegar às seguintes respostas às perguntas de pesquisa inicialmente

colocadas:

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-Quais são, entre os consumidores, as representações sociais das categorias

“produtor”, “vendedor”, “consumidor”, “órgãos públicos e privados de defesa do

consumidor” e de suas relações?

♦ A relação comprador versus vendedor é percebida como sendo de natureza

essencialmente econômica: aos olhos dos consumidores, o objetivo da

empresa é vender, faturar (“eles estão lá para vender”).

♦ Ela é dominada pela desconfiança: o cliente acredita que, uma vez efetuada

a venda, a empresa não terá mais interesse em atendê-lo (“pagou, dançou!”).

Por isso, pensa duas vezes antes de comprar.

♦ Ela é vista como intrinsecamente conflitante: na medida em que o objetivo

principal da empresa é o lucro, a satisfação do cliente é, para ela, secundária

(“eles querem é ganhar”; “se eu estou mais ou menos feliz, eles não estão

nem aí com isso.”).

♦ E como sendo uma relação de poder:

♦ Aos olhos dos consumidores, as empresas dispõem de um poder muito

maior que o seu. (“quem sou eu para processar a Z.?”).

♦ Elas somente passarão a se preocupar com seus clientes se forem

obrigadas a fazê-lo (“tem que brigar, se não essas empresas não vão

se acertar nunca!”). O ato de recorrer aos órgãos de defesa do

consumidor pode contribuir para reforçar essa pressão.

♦ Que divide e discrimina:

♦ Através da marca: os consumidores acreditam que as marcas

destinadas às classes mais altas se empenham mais que as outras em

satisfazer seus clientes.

♦ E do atendimento: as empresas tratam melhor os clientes de classe

alta. Não dão atenção ao consumidor “pobre”.

Essas representações sugerem algumas hipóteses quanto às características do processo

de avaliação de compra no público estudado:

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♦ Menor nível de expectativas: os consumidores não acreditam no empenho

das empresas em satisfazê-los. Eles temem ser enganados. Diante desse risco,

o simples fato de receber o produto comprado nas condições previstas pode,

por si só, gerar satisfação. O cliente escapou do “prejuízo”.

♦ Menor nível de tolerância: por outro lado, qualquer incidente tende a ser

interpretado não como um erro, e sim como uma tentativa deliberada de

enganar o cliente. As falhas da empresa seriam, assim, menos toleradas.

♦ Hierarquia, confirmação e desconfirmação: a relação comprador versus

vendedor adquire características distintas de acordo com a posição ocupada

pelo cliente e pela empresa. Empresas voltadas para o público de classe alta,

supostamente, tratam melhor seus clientes. Clientes de classe alta recebem, de

acordo com a avaliação dos entrevistados, mais atenção que os demais. Essas

representações influenciam as expectativas dos consumidores e podem

ampliar ou minimizar os efeitos da confirmação ou desconfirmação. A

empresa conceituada que despreza a queixa do comprador “humilde” é

julgada mais severamente do que a empresa “simples” que tem o mesmo

comportamento. Inversamente, a empresa “simples” que trata bem até mesmo

os clientes “pobres” é vista como sendo particularmente merecedora.

♦ Importância da referência eqüidade: os temas da honestidade e da justiça

exercem, nas representações da relação consumidor versus empresa, um papel

central. É possível que haja uma relação entre essa observação e os resultados

obtidos por Farias e Santos (1999), que registraram, numa pesquisa realizada,

no Brasil, junto a um público específico (usuários de terceira idade de

serviços de hotelaria do Nordeste brasileiro), um impacto da referência

“eqüidade” superior ao encontrado em pesquisas realizadas nos Estados

Unidos.

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220

Os resultados sugerem, assim, que as representações da relação comprador versus

vendedor exercem uma influência sobre os processos de avaliação da compra, podendo

afetar as expectativas dos clientes, os efeitos de sua confirmação ou desconfirmação e as

referências mobilizadas pelos consumidores.

-É possível, a partir dessas representações, identificar uma ou várias estruturas

(sistemas de representações) que orientam o comportamento do consumidor em

casos de conflito com fornecedores?

As representações da relação comprador versus vendedor se organizam em torno de um

elemento característico da cultura brasileira: o do dilema entre hierarquia e igualdade

(Da Matta, 1983).

♦ A dimensão hierárquica

De um lado os consumidores recorrem a princípios hierárquicos para interpretar

sua experiência. Tanto o cliente como a empresa ocupam determinados lugares,

que lhes conferem diferentes papéis.

Esquematizando ao extremo:

- O cliente de classe alta espera ser “bem servido”.

- O cliente de classe baixa teme ser explorado.

- A empresa voltada para o público de classe alta procura servir bem seus

clientes.

- A empresa voltada para o público de classe baixa procura explorá-los.

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221

Essa lógica é porém constantemente atravessada: o “rico” compra marcas “de

pobre” para economizar, o “pobre” compra marcas “de rico” para “se garantir”.

♦ A dimensão da igualdade

Da Matta (1983, 1986) afirma que a dimensão hierárquica coexiste, no Brasil,

com a da igualdade. De fato, ao contrário do que ocorre em sociedades

rigorosamente hierárquicas, o dinheiro permite, até certo ponto, atravessar as

fronteiras que separam os diferentes grupos que compõem a sociedade. A

presença de princípios igualitários está, também, na origem das reações que

contestam a legitimidade do critério hierárquico: as empresas são acusadas de

tirar partido de seu poder e da impunidade que este lhes confere e de discriminar

os consumidores.

♦ “Navegando” entre hierarquia e igualdade

Diante das contradições geradas pela coexistência desses dois conjuntos de

princípios, tanto as empresas como os consumidores vêem-se às voltas com as

alternativas do “meio termo”. Entre a lógica tradicional da hierarquia e a das leis

universais, “no meio dos dois, a malandragem, o ‘jeitinho’ e o famoso e

antipático ‘sabe com quem está falando?’ seriam modos de enfrentar essas

contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro.” (Da Matta, 1986, p.

97).

O cliente que manifesta sua insatisfação teme passar por malandro ou parecer

antipático. Ele se mantém, também, prestes a revidar essas acusações. Ao menor

sinal de reticência, a empresa torna-se suspeita: está “querendo dar uma de

esperta” ou recorrendo a uma variante do “Você sabe com quem está falando?”,

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222

isto é, contando com sua posição de superioridade para passar por cima das

regras, que, em princípio, deveriam reger as relações entre vendedor e

comprador.

Os temas do poder e da esperteza “organizam”, assim, em termos simbólicos, a

relação entre empresa e cliente. Não que as duas partes estejam necessaria e

constantemente tentando “levar vantagem”, mas o fantasma da prepotência e da

malandragem paira sobre suas relações.

Temos, assim, diferentes “tipos” de consumidores insatisfeitos, cujas reações se

organizam em torno desses temas:

INTERPRETAÇÕES DA EXPERIÊNCIA DE INSATISFAÇÃO SEGUNDO

CLASSE SOCIAL DO CONSUMIDOR E CATEGORIA DA EMPRESA

MARCA VOLTADA PARA

CLASSE ALTA

MARCA VOLTADA PARA

CLASSE BAIXA

CLIENTE DE

CLASSE ALTA

CLIENTE INDIGNADO:

A EMPRESA FOI ESPERTA: SE

FEZ PASSAR POR AQUILO

QUE NÃO ERA. NÃO SE

COMPORTOU À ALTURA DE

SUA POSIÇÃO, NÃO TRATOU

O CLIENTE COM O DEVIDO

RESPEITO.

CLIENTE ARREPENDIDO:

O CLIENTE TENTOU SER

ESPERTO. APESAR DO RISCO,

OPTOU PELA ALTERNATIVA

MAIS BARATA: ERROU QUANDO

COMPROU.

CLIENTE DE

CLASSE

BAIXA

CLIENTE REVOLTADO:

A EMPRESA FOI

PREPOTENTE: TIROU

PARTIDO DE SUA

SUPERIORIDADE.

DISCRIMINOU O CLIENTE.

CLIENTE TRISTE:

O CLIENTE NÃO TINHA ESCOLHA.

FOI VÍTIMA DE SUA POSIÇÃO DE

INFERIORIADE E DA

MALANDRAGEM DA EMPRESA.

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223

Esse quadro deve ser lido como uma tentativa de síntese, suscetível de orientar novas

reflexões e não como descrição conclusiva. Ele busca situar as reações e interpretações

encontradas nos relatos dos entrevistados e retoma, para isso, os elementos mais

extremos de seu discurso. O que deve ser notado é que é possível vislumbrar, por trás

desse discurso, lógicas que o organizam e que se enraizam em “estruturas significantes”

(Geertz, 1973) características da cultura à qual pertencem os entrevistados.

Essas estruturas não se reduzem a um eixo único. Elas são, ao contrário, carregadas de

contradições e paradoxos (daí a dificuldade e, talvez, impossibilidade, de resumir o

discurso dos entrevistados através de um quadro). Em especial, os critérios

“hierárquicos” convivem com os igualitários. Ao mesmo tempo em que as reações dos

consumidores obedecem a uma lógica que se baseia em categorias hierarquizadas, elas,

também, contestam essa lógica. Temos assim reações, que misturam sentimentos

aparentemente contraditórios como, por exemplo, os de revolta e resignação (o exemplo

extremo é o do consumidor de classe D que destruiu a golpes de martelo o produto que

havia comprado, sem nunca ter comunicado a existência do defeito ao fabricante).

É possível que as “experiências afetivas qualitativamente diferentes (...), que coexistem

e estão relacionadas como o continuum comum e unidimensional da satisfação”,

encontradas por Oliver e Westbrook (1991, p. 89), estejam associadas à complexidade e

multiplicidade dos significados que podem, assim, ser atribuídos à experiência da

insatisfação. Interesse, alegria, surpresa, tristeza, raiva, desgosto, desprezo, medo,

vergonha, culpa (variáveis estudadas pelos dois autores) não seriam somente “respostas”

afetivas desencadeadas pela compra e sim manifestações de sua interpretação.

Sobrepostas ao quadro anterior, as emoções negativas estudadas por Oliver e Westbrook

(1991) poderiam encaixar-se da seguinte forma:

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EXPERIÊNCIAS AFETIVAS DO CONSUMIDOR INSATISFEITO SEGUNDO

CLASSE SOCIAL DO CONSUMIDOR E CATEGORIA DA EMPRESA

MARCA VOLTADA PARA

CLASSE ALTA

MARCA VOLTADA PARA

CLASSE BAIXA

CLIENTE DE

CLASSE ALTA

RAIVA

DESPREZO

CULPA

DESPREZO

CLIENTE DE

CLASSE

BAIXA

RAIVA

DESGOSTO

TRISTEZA

MEDO

VERGONHA

Novamente, é importante sublinhar o caráter especulativo desse quadro. O que deve ser

notado é que, por trás das respostas afetivas dos consumidores, existe uma lógica, que

interpreta a experiência da compra e que se baseia em determinadas representações da

relação comprador versus vendedor. No caso de uma sociedade como a brasileira,

dividida entre hierarquia e igualdade (Da Matta, 1986), o cliente insatisfeito pode julgar-

se não somente lesado ou injustiçado, como também humilhado ou desrespeitado, e, até

mesmo, merecidamente enganado. Essas reações estão estreitamente associadas à

posição ocupada por cada uma das partes, comprador e vendedor, e ao significado de

que se revestem suas ações dentro de um contexto carregado de ambigüidades e

paradoxos, que conjuga critérios hierárquicos e igualitários e convive com suas

contradições.

-Esses sistemas de representações dão origem a lógicas de ação, isto é a seqüências

organizadas e identificáveis de comportamentos ? Quais ?

As lógicas da hierarquia e da igualdade orientam, também, as ações empreendidas pelos

consumidores.

A situação de insatisfação representa, aos olhos dos consumidores, um conflito. Da

Matta (1983) observa que “a sociedade brasileira parece ser avessa ao conflito” (p. 141).

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“Num mundo que tem de se mover obedecendo às engrenagens de uma hierarquia, que

deve ser vista como algo natural, os conflitos tendem a ser tomados como

irregularidades. O mundo tem que se movimentar em termos de uma harmonia absoluta,

fruto evidente de um sistema dominado pela totalidade (...), que conduz a um pacto

profundo entre fortes e fracos.”(p. 142). O consumidor que expressa sua insatisfação

perturba essa harmonia. Por isso, ele prefere, muitas vezes, se calar e somente se

manifesta depois de avaliar com cuidado a situação que poderá ser desencadeada por sua

iniciativa.

Se há conflito, o trato entre comprador e vendedor foi desrespeitado. O consumidor

teme ser responsabilizado e tornar-se acusado ao invés de vítima. Afinal, ele é o

desafiante. Para assumir esse papel, é preciso ter bons motivos e chances razoáveis de

não sair perdendo. Não se trata somente de obter ressarcimento e sim de sair do conflito

com a cabeça erguida, sem passar por coitado, nem por malandro ou por antipático.

O consumidor sabe que o conflito poderá ser mediado por princípios hierárquicos ou

igualitários. Ele tende a acreditar que a primeira opção prevalecerá. Por isso, ele avalia a

situação de acordo com sua posição social e, independentemente desta, leva em conta os

significados “hierárquicos” que poderão ser atribuídos às suas atitudes.

A escolha das ações empreendidas em decorrência da insatisfação é claramente

influenciada por esses pensamentos:

♦ Queixa à empresa: os consumidores relutam em se dirigir às empresas para se

queixar porque temem se expor publicamente a um conflito, que, possivelmente,

acabará sendo mediado por princípios hierárquicos (e não igualitários). Diante desse

risco, o cliente, sobretudo quando sabe que não ocupa os primeiros escalões da

hierarquia, prefere, muitas vezes, simplesmente desistir.

♦ Ações privadas (boicote ou divulgação boca-a-boca da experiência negativa): essas

ações não acarretam confrontos diretos. Não expõem o consumidor ao risco de levar

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um “não”, nem à necessidade de recorrer ao jeitinho ou ao “Você sabe com quem está

falando?”. Independentemente da classe social, os entrevistados recorrem a elas de

modo quase sistemático.

♦ Ações públicas “indiretas” (via órgãos públicos ou privados de defesa do

consumidor): essas ações são vistas como penosas, mas elas não despertam o

constrangimento associado à queixa à empresa. Ao contrário, os consumidores que

recorrem a elas se orgulham de sua persistência e do senso de cidadania que elas

denotam.

Em grandes linhas, as representações da relação comprador versus vendedor

contribuem, assim, para inibir os comportamentos de queixa à empresa, intensificar o

boicote individual e a divulgação boca-a-boca da experiência negativa e incentivar a

queixa aos órgãos de defesa do consumidor.

Singh e Pandya (1991) observaram, numa pesquisa empírica, que o grau de insatisfação

nem sempre exercia uma influência direta sobre os comportamento pós-compra. Os

dados obtidos neste estudo sugerem que a relação existente entre insatisfação e

comportamento é mediada pela interpretação do consumidor e que esta obedece a uma

lógica essencialmente social e cultural, que, mais que o “tamanho” da insatisfação, leva

em conta a situação gerada por ela e o seu significado.

-Até que ponto essas lógicas constituem estratégias, isto é, seqüências de ações

voltadas para o alcance de determinado objetivo ?

Tudo indica que o consumidor efetua, entre os aspectos concretos e simbólicos da

situação de insatisfação, uma espécie de trade-off. Trata-se de conciliar, da forma menos

desvantajosa possível, os riscos materiais e morais de prejuízo. Nesse sentido, as ações

do cliente têm caráter estratégico, pois estão voltadas para determinado objetivo. Mas

elas estão, também, carregadas de elementos contraditórios, pois a dimensão material

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freqüentemente se choca com a dimensão moral. Entre o risco da perda e o do

constrangimento, é preciso, muitas vezes, escolher.

É importante notar, também, que o dilema entre hierarquia e igualdade não é vivido de

forma passiva pelos consumidores. Embora o cliente insatisfeito recorra a princípios

hierárquicos para interpretar sua experiência, ele manifesta, também, sua recusa em

aceitá-los como uma “realidade-boa-de-ser-reproduzida” (Godelier, 1984). Os

consumidores de classe alta parecem tolerar melhor as falhas vindas de marcas baratas

do que as de empresas conceituadas. Mas eles comparam suas experiências às de

compras feitas no exterior e sublinham a diferença de tratamento (“aqui não há

respeito”). Vários deles criticam, também, o caráter discriminatório do atendimento

prestado pelas empresas que atuam no país (“o pobrinho, eles vão no pescoço”). Os

consumidores de classe baixa, por sua vez, expressam claramente seu ressentimento:

“eles não se preocupam”, “eles acham: ah, não tem estudo, não entende nada de lei,

então, vão sempre aprontando”.

Nesse sentido, a lógica da igualdade parece representar uma outra “relação social

possível” (Godelier, 1984), que desperta a aspiração dos entrevistados, orienta seus

julgamentos, legitima e suscita determinadas ações (públicas “indiretas”, isto é, via

órgãos públicos ou privados de defesa do consumidor). O pensamento “hierárquico”

coexiste, assim, com idéias que o contestam e que se traduzem em atos que visam

transformar a relação existente entre empresa e consumidor, imprimindo-lhe um caráter

mais justo e igualitário.

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228

6.2. RECOMENDAÇÕES

6.2.1. SUGESTÕES PARA FUTURAS PESQUISAS

As conclusões anteriormente delineadas sugerem múltiplas pistas para novas

investigações. Entre elas, vale sublinhar as seguintes direções:

- Os resultados obtidos por Farias e Santos (1999) evidenciaram um impacto da

referência “eqüidade” superior ao encontrado em pesquisas realizadas em outros

países. Os dados colhidos no presente estudo sugerem que é possível que esse

fenômeno esteja associado ao contexto brasileiro. Na medida em que a relação

com a empresa é marcada pela desconfiança, o critério de eqüidade tende a se

sobressair, tornando-se mais relevante do que em países onde predomina a

expectativa de uma transação justa. Para investigar essa hipótese, seria preciso

replicar o estudo de Farias e Santos (1999) junto a outros segmentos da

população brasileira.

-As “experiências afetivas qualitativamente diferentes” encontradas por Oliver e

Westbrook (1991) sugerem a existência de diversos “estados” de satisfação ou

insatisfação. Essas experiências parecem estar associadas a interpretações

distintas da compra, geradas não somente por fatores individuais, como também

por representações coletivas características da cultura ou subcultura à qual

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pertencem os consumidores. O fenômeno da satisfação ou insatisfação poderia,

assim, não ser tão universal como se supõe habitualmente. Em especial, os

resultados do presente estudo apontam que as dimensões hierárquicas e

igualitárias da sociedade brasileira, bem como os “estilos de navegação social”

(Da Matta, 1986, p. 99) que a caracterizam (o jeitinho e o “Você sabe com quem

está falando?”), podem estar na origem das diferentes “experiências afetivas”

descritas pelos entrevistados (indignação, arrependimento, revolta, tristeza).

Essa questão poderia ser investigada através de novos estudos, que associassem

métodos quantitativos (escalas) e qualitativos, de modo a permitir a comparação

dos resultados obtidos e a fornecer elementos para a interpretação das diferenças

eventualmente encontradas.

- A pesquisa de Singh e Pandya (1991) apontou que o grau de insatisfação do

consumidor nem sempre exercia uma influência direta sobre suas ações. O

presente estudo sugere que a relação entre insatisfação e comportamentos pós-

compra é mediada pela interpretação do consumidor e que esta obedece a uma

lógica essencialmente social e cultural. Sua replicação em outros contextos

culturais permitiria examinar melhor essa questão.

Singh e Pandya (1991) levantam, também, a hipótese de que existiriam limiares

de insatisfação, que, uma vez ultrapassados, desencadeariam determinados tipos

de ação. Os resultados deste estudo sugerem que, em decorrência da

desconfiança que domina a relação comprador versus vendedor, as expectativas

do consumidor brasileiro podem ser mais modestas do que as encontradas em

outros países: a entrega do produto adquirido, nas condições prometidas, bastaria

para gerar alguma satisfação. Em contrapartida, o limite de tolerância dos

clientes seria mais estreito, pois as falhas tendem a ser atribuídas não a um erro e

sim a uma intenção deliberada de enganar o cliente. A replicação, no Brasil, do

estudo realizado por esses autores permitiria aprofundar a investigação dessas

hipóteses.

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- Blodgett, Wakefield e Barnes (1995) observaram que a percepção da

probabilidade de sucesso da ação exercia, sobre os comportamentos de queixa,

uma influência significativa. Os dados colhidos neste estudo sugerem, de fato,

que o resultado da ação constitui, para o consumidor, um critério decisivo de

escolha. Eles apontam, porém, que a noção de “sucesso” não se restringe à

obtenção de ressarcimento. O que está em jogo não é somente a questão

material. A dimensão simbólica orienta, também, as ações do consumidor

insatisfeito. A investigação dessa questão requer novos estudos sobre o

significado atribuído pelo cliente ao resultado de suas ações e, em especial, ao

ressarcimento eventualmente oferecido pela empresa e ao processo que permitiu

sua obtenção.

De modo geral, os resultados obtidos sugerem que o melhor entendimento da relação

comprador versus vendedor e das características que esta pode assumir de acordo com a

cultura ou subcultura à qual pertencem os consumidores pode contribuir para o

aprofundamento dos conhecimentos existentes sobre a satisfação e a insatisfação. A

compreensão dessa relação passa, sem dúvida, pelo uso mais intensivo de métodos

qualitativos. Mas isso, por si só, não basta. É preciso rever os pressupostos que têm

orientado os esforços da disciplina de Comportamento do Consumidor: o da

universalidade do fenômeno da satisfação ou insatisfação, do seu caráter psicológico,

mecânico, mensurável. O consumidor não é um ser abstrato submetido a mecanismos

universais e atemporais. Ele é parte ativa, embora nem sempre mais forte, de uma

relação que fundamenta e organiza a vida social: a que se estabelece entre as atividades

de produção e consumo. Sua insatisfação resulta da experiência quotidiana dessa relação

e da interpretação ativa dessa experiência. Ela pode tanto resumir-se a uma decepção

passageira ou ao abandono individual da empresa, como contribuir para desencadear

movimentos duradouros como o do consumerismo, ou, mais perto de nós, alimentar o

empenho de “fiscais” improvisados de planos econômicos. Poderá, também, reforçar

hábitos como o do boicote informal e o de recorrer aos órgãos de defesa do consumidor.

Para dar conta desses efeitos, que afetam diretamente a situação e o desempenho das

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empresas, as pesquisas devem abordar o fenômeno da insatisfação não mais apenas

como resposta individual a um ato isolado de compra e sim como produto da

experiência individual de uma relação social. Somente assim, poderão fornecer às

empresas instrumentos capazes de orientar, a médio e longo prazo, sua atuação.

6.2.2. RECOMENDAÇÕES ÀS EMPRESAS

Os resultados tocam, também, em assuntos relevantes para a atuação das empresas

implantadas no país. Examinaremos, a seguir, essa contribuição, abordando

sucessivamente os temas do papel dos Serviços de Atendimento ao Consumidor e o das

políticas de marketing.

Serviços de Atendimento ao Consumidor

Os relatos dos entrevistados evidenciam sua relutância em se queixar junto às empresas.

De acordo com a literatura, esse comportamento tem, em geral, a médio ou longo prazo,

efeitos nefastos. Os consumidores se afastam. Eles divulgam negativamente sua

experiência e não dão à empresa a oportunidade de remediar o problema (Blodgett,

Wakefield e Barnes, 1995).

Os dados colhidos sugerem que, para superar essa relutância, os Serviços de

Atendimento ao Consumidor devem constituir uma alternativa ao conflito, oferecendo

ao cliente, ao invés de uma nova perspectiva de dificuldade e resistência, possibilidades

efetivas e “amigáveis” de solução para o seu problema.

Apontam, também, que os Serviços de Atendimento ao Consumidor devem atuar de

modo resolutamente individual. Suas regras precisam ser justas, claras e válidas para

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todo e qualquer interlocutor. Elas devem ser, ao máximo, explicitadas, de modo a se

sobrepor ao receio de discriminação, que permeia as expectativas dos consumidores.

A dimensão pessoal pode ser utilizada para comunicar essas regras. Mas ela não deve,

em hipótese nenhuma, ser mobilizada para flexibilizá-las. O cliente que é tratado como

exceção não fica mais grato por isso. Ao contrário, ele acredita que escapou por pouco

de uma injustiça e que somente deve isso à sua persistência, à sua esperteza, ou ao seu

poder.

É preciso, também, ter em mente que, dentro do contexto de um sistema baseado em

princípios neutros e impessoais, qualquer reticência ou demora em atender a queixa (até

mesmo o sinal de ocupado na linha telefônica) tende a remeter o cliente aos

“peremptórios e autoritários ‘não pode!’” de sempre (Da Matta, 1986, p. 99). Para evitar

que isso aconteça, o serviço deve ser de uma eficiência ímpar. Somente assim, o cliente

poderá se convencer de que não está às voltas com uma versão modernizada da velha

burocracia, e sim com um Serviço de Atendimento ao Consumidor efetivamente

empenhado em atendê-lo.

Idealmente, o cliente deve sentir que a eficiência do Serviço de Atendimento ao

Consumidor resulta da filosofia da empresa, e não da pressão que ele, como pessoa,

pode (ou não pode) exercer sobre seu funcionamento. Se, além disso, essa eficiência for

comunicada de forma personalizada, melhor! Ele se sente não somente respeitado, mas

também prestigiado, e tende, então, a retribuir esses sentimentos, tornando-se fiel e

divulgando de forma positiva sua experiência.

Políticas de marketing

A implementação do conceito de marketing representa, no contexto estudado, um

diferencial significativo. As empresas que zelam pela satisfação do cliente destacam-se

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nitidamente das demais. Elas ainda são vistas como exceções, que confirmam a regra,

mas que começam a anunciar sua transformação.

Esse diferencial está associado a uma carência de ordem sócio-cultural. Em um contexto

no qual os direitos elementares do indivíduo não são, de modo geral, assegurados, a

empresa que adere ao conceito de marketing oferece mais que um produto ou serviço de

qualidade. Ela traz a perspectiva de uma possível cidadania.

Por essa razão, as marcas melhor conceituadas gozam de uma preferência que vai além

de uma simples questão de status, no sentido habitual do termo. Mais que prestígio, elas

oferecem aos seus clientes a promessa de um atendimento justo e digno, habitualmente

reservado à elite. Para ter direito a esse tratamento, os consumidores se dispõem a pagar

mais e a prestigiar não somente as griffes, como também toda e qualquer empresa que

demonstrar empenho no respeito de seus clientes.

Em contrapartida, quando essa expectativa se vê contrariada, a reação vai além de uma

simples decepção. O comprador se sente traído, não somente como comprador, mas

também como pessoa e como cidadão.

Assim, se a empresa corresponder às expectativas nela depositadas, ela pode contar com

altos níveis de fidelidade. O cliente se surpreende. Finalmente respeitado e reconhecido,

ele tende a ficar eternamente grato.

Inversamente, qualquer falha pode ter efeitos devastadores, pois corre o risco de ser

interpretada, não como um simples incidente, mas sim como reveladora de uma postura

discriminatória ou, simplesmente, aproveitadora.

Em suma, os dados sugerem que o contexto estudado constitui, para os seguidores do

conceito de marketing, um paraíso em potencial, mas apontam, também, que qualquer

falha na sua aplicação pode se tornar um pesadelo.

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Enquanto a perspectiva de ser tratado como cidadão não se torna realidade do ponto de

vista social e institucional, os consumidores se dispõem a desembolsar mais para ter

direito a esse tratamento. Pagam mais caro na esperança de serem melhor atendidos. Por

outro lado, quando se decepcionam, questionam não somente a competência da

empresa, como também o conjunto de sua postura. A empresa desrespeitou o trato da

venda, as leis que, em princípio, o regem, e até mesmo as regras de convivência de uma

sociedade dominantemente hierárquica. Não prestigiou o poderoso, nem teve dó do

humilde. Comportou-se, em suma, como se estivesse acima de todos os poderes e de

todas as leis.

Lógica da esperteza, lógica da cidadania: qualquer que seja o comportamento da

empresa, o consumidor irá enquadrá-la numa dessas categorias. Ao menor indício,

recorrerá à primeira. Se depender dele, porém, a segunda tem, sem dúvida, mais futuro.

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