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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO) GABRIELA FUJIMORI DA SILVA REPRESENTAÇÕES DA MORTE EM JERUSALÉM, DE GONÇALO M. TAVARES MARINGÁ-PR 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)

GABRIELA FUJIMORI DA SILVA

REPRESENTAÇÕES DA MORTE EM JERUSALÉM, DE GONÇALO M. TAVARES

MARINGÁ-PR 2018

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GABRIELA FUJIMORI DA SILVA

REPRESENTAÇÕES DA MORTE EM JERUSALÉM, DE GONÇALO M. TAVARES

Dissertação apresentada à Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos Literários. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luzia Aparecida Berloffa Tofalini Linha de pesquisa: Literatura e Historicidade

MARINGÁ

2018

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca – IFPR, Instituto Federal do Paraná – Câmpus Paranavaí)

Silva, Gabriela Fujimori da Representações da morte em Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares/ Gabriela Fujimori da Silva; orientadora: Profª. Drª. Luzia Aparecida Berloffa Tofalini. - Maringá, 2018. 132 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós- Graduação em Letras, 2018. Inclui bibliografia 1. Literatura. 2. Representação da morte. 3. Jerusalém. 4. Gonçalo M. Tavares. 5. Angústia. I. Tofalini, Luzia Aparecida Berloffa. II. Universidade Estadual de Maringá. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDD 23.ed. 869

Bibliotecária Responsável – Zineide Pereira dos Santos - CRB 9/1577

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Para Claudio

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida.

A minha estimada família: mãe, doçura de pessoa, sinônimo de amor e cuidado.

Ao meu pai: alicerçando tijolos dia a dia, as mãos cheias de calo, cuidou de mim com

amor e simplicidade, e ensinou-me, com seu exemplo, que por mais árdua que sejam as

circunstâncias da vida, devo ser guerreira e enfrentar os desafios.

A Gustavo, meu irmão parceiro.

A Claudio, meu filho, amor maior.

À estimada professora Luzia Aparecida Berloffa Tofalini, que me orientou com rigor

nesta pesquisa, mas sempre com uma doçura admirável, motivando-me mil vezes mais no

percurso como mestranda.

À professora Alice Áurea Penteado Martha e ao professor Willian André, membros

da banca de Qualificação deste trabalho, por suas valiosas contribuições.

Aos professores com quem tive aulas durante o Mestrado, em especial à professora

Marisa Corrêa Silva; suas palavras de apoio foram muito importantes.

Ao Adelino Marques, secretário do PLE, sempre disposto a ajudar.

Aos meus caros amigos, pelo apoio e carinho.

A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização desta

pesquisa.

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo investigar as representações da morte na obra literária

Jerusalém, do escritor português Gonçalo M. Tavares. Levando-se em consideração que a

narrativa transcorre em um período de pós-guerra e resgata, como pano de fundo, memórias

das atrocidades cometidas, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial, a morte é tema

constante, tanto no resgate da memória do Holocausto, quanto na conturbada vida individual

das personagens. Analisa-se, portanto, o horror diante da morte instaurado, na obra, na

tentativa de suicídio, na angústia em previsão da morte e nas lembranças do genocídio. Por

meio da colaboração de diferentes áreas do conhecimento à luz da literatura, evidencia-se a

abordagem da morte na linguagem plurissignificativa do texto literário. A morte como um

assunto de constantes discussões, por caracterizar-se como um evento irremissível e ao

mesmo tempo indesejado, e a literatura com sua magnitude e capacidade de tratar de temas

universais. Ao representar o ser humano em toda a sua realidade, a literatura não se esquiva

de abordar a problemática da morte e amiúde exprime a finitude humana. Todo o trabalho de

análise é ancorado, principalmente, em estudos de sociólogos, filósofos e psicanalistas, tais

como Edgar Morin (1988), Martin Heidegger (2005), Karl Marx (2006), Freud (2010) e, na

teoria literária, especialmente Blanchot (1987), Antonio Candido (1995) e Aguiar e Silva

(2005). Espera-se que este estudo possa contribuir com as discussões acerca da complexa

abordagem da morte como tema no âmbito literário, nas reflexões individuais de cada leitor

que se depara com as questões da finitude humana, assim como colaborar para a fortuna

crítica do aclamado escritor contemporâneo Gonçalo M. Tavares.

Palavras-chave: angústia; representação da morte; Jerusalém; Gonçalo M. Tavares.

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ABSTRACT

This dissertation aims at investigating the representations of death in the literary work

Jerusalém, by the Portuguese writer Gonçalo M. Tavares. Considering that the narrative takes

place in a post-war period and recovers, as a background, memories of the atrocities

committed, especially during World War II, death is a constant theme both in the rescue of the

memory of the Holocaust, and in the troubled individual life of the characters. Therefore, the

horror in front of death is established, in the literary work, in the suicide attempt, in the

anguish in anticipation of death and in the memories of genocide. Through the collaboration

of different areas of knowledge in the light of literature, it is evidenced the approach of death

in the plurisignificative language of the literary text. Death as a subject of constant discussion,

for characterizing itself as an irretrievable and at the same time undesirable event, and

literature with its magnitude and capacity to deal with universal themes. In representing the

human being in all his reality, literature does not shy away from addressing the problem of

death and often expresses human finitude. The whole work of analysis is anchored, mainly, in

studies of sociologists, philosophers and psychoanalysts, such as Edgar Morin (1988), Martin

Heidegger (2005), Karl Marx (2006), Freud (2010) and, in literary theory, especially Blanchot

(1987), Antonio Candido (1995) and Aguiar e Silva (2005). It is expected that this study may

contribute to the discussions about the complex approach to death as a literary subject, to the

individual reflections of each reader facing the issues of human finiteness, as well as to

contribute to the critical fortune of the acclaimed contemporary writer Gonçalo M. Tavares.

Keywords: anguish; representation of death; Jerusalém; Gonçalo M. Tavares.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 8

1. Considerações Iniciais ...................................................................................................... 8

CAPÍTULO I....................................................................................................................... 15

SOBRE A MORTE E A LITERATURA ......................................................................... 15

1.1 A problemática da morte ................................................................................................ 15

1.1.1 O contributo técnico-científico e o horror diante da morte ......................................... 20

1.1.2 Assassinato e suicídio - paradoxos diante da morte .................................................... 24

1.2 A morte como tema na literatura .................................................................................... 29

1.2.1 Percepções teórico-críticas da morte como tema na literatura .................................... 30

1.2.2 Metáforas literárias da morte ....................................................................................... 33

CAPÍTULO II ..................................................................................................................... 42

REPRESENTAÇÕES DA MORTE EM JERUSALÉM ................................................ 42

2.1 Considerações sobre a arte da representação .................................................................. 43

2.2 Mylia e a angústia em previsão da morte ....................................................................... 56

2.2.1 Vida/Morte e o transcendental ..................................................................................... 68

2.3 Mundo caótico x personagens em crise .......................................................................... 76

2.4 Ernst: As experiências do vazio e da morte .................................................................... 87

2.4.1 Angústia/ Suicídio ....................................................................................................... 90

CAPÍTULO III ................................................................................................................. 102

EXPERIÊNCIAS DO MAL ............................................................................................. 102

3.1 O Holocausto como pano de fundo .............................................................................. 103

3.2 Memória e morte .......................................................................................................... 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 121

REFERÊNCIAS................................................................................................................ 126

REFERÊNCIAS CONSULTADAS ................................................................................ 131

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INTRODUÇÃO

No fundo, não há bons nem maus. Há apenas os que

sentem prazer em fazer o bem e os que sentem prazer em fazer o mal. Tudo é volúpia…

(Mário Quintana)

1. Considerações Iniciais

Esta dissertação analisa a obra Jerusalém (2005), do escritor português Gonçalo

Manuel de Albuquerque Tavares, nascido no mês de agosto de 1970 em Luanda, capital da

Angola. Quando ainda criança, Tavares mudou-se com a família para Portugal. Hoje, é

considerado pela crítica um autor de grande destaque na literatura contemporânea.

Livro da Dança foi o primeiro livro publicado pelo escritor no ano de 2001. A

partir de então, lançou mais de cinquenta obras, veiculadas em trinta e dois países muito

bem recebidas pelo público e pela crítica. Além do importante Prêmio José Saramago,

Tavares recebeu vários outros, dentre os quais estão o Prêmio LER/Millennium BCP 2004,

o Grande Prêmio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores Camilo Castelo Branco

de 2007, Prêmio Portugal Telecom 2007 e O Melhor Livro Estrangeiro 2010.

Jerusalém recebeu o Prêmio Literário José Saramago em 2005, ocasião em que

José Saramago afirmou: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem com

apenas 35 anos. Dá vontade de lhe bater” (MONCHIQUE, 2005). E chamou a atenção para

o conteúdo da obra: “em Jerusalém Tavares inventa outro mundo que aparentemente não

tem nada a ver conosco, mas é um mundo que contém ‘o futuro ameaçador’ de uma

humanidade que daqui a 100 anos será irreconhecível” (MONCHIQUE, 2005).

O romance compõe a tetralogia O Reino, somando-se às obras Um Homem: Klaus

Klump (2003), A Máquina de Joseph Walser (2004), e Aprender a Rezar na Era da

Técnica (2007). Esses livros têm como tema a maldade, por isso, a coleção também é

denominada “Livros Pretos”, remetendo à oposição de luz, aos cenários sombrios que

compõem as obras. Em entrevista, o autor comenta que são livros que desencantam, e seu

desejo é exatamente provocar, inquietar os leitores quanto às questões trazidas nos

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romances: “[...] não quero que os leitores saiam alegres deste[s] livro[s], não quero que

tenham prazer naquele sentido ligeiro [...]” (TAVARES, 2013).

Os fatos narrados em Jerusalém ocorrem em um período pós-guerra, apreendido

por meio do resgate de memórias das atrocidades cometidas, especialmente durante a

Segunda Guerra Mundial, uma das maiores matanças da humanidade, e dos efeitos

repercutidos ao longo da história. Ao resgatar a memória da guerra, o romance evidencia

temas tais como a violência, o mal, a crueldade. As personagens revelam-se solitárias,

angustiadas, doentes, plenas de dor e acocadas pela loucura. Vivem em situações-limite e

possuem histórias fragmentadas e problemáticas, entrecruzadas em ruas escuras, na

madrugada de uma cidade não definida e no hospício Georg Rosenberg.

Por meio da personagem Theodor Busbeck, médico-psiquiatra e pesquisador, o

qual desenvolve um estudo almejando compreender as práticas de horror ao longo do

tempo, algumas memórias do Holocausto da década de 1940 vão sendo resgatadas. As

lembranças das atrocidades cometidas em campos de concentração, como Auschwitz,

interferem na vida das personagens.

A escolha de Jerusalém justifica-se pela densa e problemática vida representada

por meio das personagens que compõem o enredo. A diegese da obra convida a reflexões e

à percepção das mazelas e violências do homem contra sua própria espécie; chama a

atenção para questões complicadas do ser humano e adentra no que comumente é

preferível ignorar para permanecer com a consciência tranquila.

Ao investigar a narrativa do romance, compreendem-se os processos de morte e

de mortificação que ocorrem na história fictícia e que são, inevitavelmente, ancorados na

realidade. A partir das situações vivenciadas pelas personagens, é possível refletir sobre

como as circunstâncias de guerra, opressão e caráter desumanizado da sociedade

interferem na vida do indivíduo.

Os acontecimentos fragmentados da obra, a vida dilacerada das personagens,

suscitam questionamentos sobre a guerra, a ambição pelo poder, o lado mal e perverso que

se tem noticiado ao longo da história da humanidade e que não cessa. Por meio de

analepses que não são claras, a narrativa perde a organização lógica e tais rupturas

inquietam o leitor que, por vezes, sente-se perdido na história, angustiado em saber o

desfecho dos acontecimentos que se entrecruzam de forma abrupta em um cenário repleto

de maldade e tragédias.

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Todas essas circunstâncias levam à morte ou a um processo degradante em que as

ações mortificam a personagem. Nesse sentido, fomentam este trabalho as indagações

sobre as questões existenciais do ser humano em Jerusalém, o qual está imerso em

situações sombrias. Esperança e vida são palavras banidas na crueza do texto, em que

protagonizam traumas, angústia, dores e medo, fazendo da morte uma constante na

narrativa.

As experiências de Mylia e Ernst tornam possível o questionamento sobre as

relações de poder, o mal infligido ao mais fraco, as relações humanas degradantes e,

consequentemente, a morte desencandeada em circunstâncias de desespero, solidão e

angústia. Nesse sentido, busca-se compreender as motivações que levam Ernst à tentativa

de suicídio e o posicionamento da personagem Mylia, desesperada em previsão de sua

morte.

As ações de Theodor Busbeck, o médico renomado, metáfora da ciência,

permitem que se traga à discussão os horrores da Segunda Grande Guerra e as eficientes

formas de assassínio. Milhares de mortes em Auschwitz e os resquícios da guerra que se

perpetuam. Assim, a ficção ligada ao fato histórico enseja a reflexão sobre o assassinato de

milhares de pessoas, a inteligência humana em prol da maldade e o alastramento dos

horrores que foram praticados/ vivenciados.

Pesquisando dissertações e teses já escritas sobre a obra de Gonçalo M. Tavares,

observou-se que o estudo das representações de morte em Jerusalém contribuiria para

ampliar a fortuna crítica do escritor, tendo em vista que essa temática ainda não foi

abordada com especificidade. Nos trabalhos existentes, opta-se por investigar Jerusalém

paralelamente a outras obras do autor, assim como a temática da morte insere-se em uma

abordagem mais ampla, associada a outros aspectos do texto, não se estabelecendo como

objetivo central das análises.

Em consulta ao Banco de Teses e Dissertações da Capes1 , são encontrados

dezessete trabalhos que tratam da obra de Tavares, sendo um deles pertencente à

Universidade Estadual de Maringá. A maior parte dos trabalhos utilizam como corpus a

coleção “O Bairro”, composta de dez romances publicados entre 2005 e 2012.

As temáticas desses trabalhos são variadas e versam sobre: conceitos de

comicidade e riso nas obras; a questão do corpo em sofrimento e os possíveis milagres;

1 Disponível em: <http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/>. Acesso: jan. 2018.

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estratégias de escrita do autor; a questão da alteridade; levantamento das características

pós-modernas e ironia; o poder, a violência e o trauma; intertextualidade com outros

autores e obras.

Dos títulos de dissertações, estes são alguns exemplos: Passeando entre a

comicidade, a paródia e o estranhamento: o riso na série "O Bairro", de Gonçalo Tavares

(2009), de Ariadne Leal Wetmann - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O

milagre do corpo a partir de Jerusalém - de Gonçalo M. Tavares (2009), de Nathalia

Corrêa Calmon – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-Modernismo e

Ironia na coleção: "O Bairro" de Gonçalo M. Tavares (2013), de Fabiano Cardoso –

Universidade Estadual de Maringá.

Quanto às teses: Gonçalo M. Tavares e os seus senhores (2012), de Liani

Fernandes de Moraes – Universidade de São Paulo. A Literatura de Gonçalo M. Tavares:

Investigação Arqueológica e um Dançarino Sutil nas esferas O Bairro e O Reino (2012),

de Júlia Vasconcelos Studart – Universidade Federal de Santa Catarina, e Um olhar

“perverso”: percorrendo O Reino, de Gonçalo M. Tavares (2016), de Renata Quintella de

Oliveira - Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Além desses trabalhos encontrados no portal da Capes, há mais um defendido no

Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá no ano de

2017. O trabalho de Ibrahim Alisson Yamakawa, intitulado Aprender a Rezar na Era da

Técnica: As Formas do Silêncio e os Silêncios das Formas, estuda o fenômeno do Silêncio

na última obra que compõe a tetralogia O Reino.

Em Portugal, país onde o escritor vive desde criança, o número de dissertações de

Mestrado e Tese de doutoramento fornecido no Portal RCAAP2 - Repositórios Científicos

de Acesso Aberto de Portugal - é de quatorze trabalhos. Na maioria, tratam da

representação das relações humanas na obra: o medo, a opressão, a violência, a desrazão

no mundo.

A exemplo estão as dissertações: Literatura e filosofia: uma leitura dos romances

de Gonçalo M. Tavares (2007), de Pedro Quintino de Sousa - Faculdade de Ciências

Humanas e Sociais, Universidade do Algarve. A (des)aprendizagem do humano em o

Reino de Gonçalo M. Tavares (2010), de Maria Margarida de Araújo e Marques -

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A natureza não reza: sobre a tetralogia

2 Disponível em: <https://www.rcaap.pt/results.jsp>. Acesso: jan. 2018.

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"O reino de Gonçalo M. Tavares" (2012), de Pedro Meneses - Universidade do Minho. Do

corpo e do mal n'O Reino de Gonçalo M. Tavares (2013), de Sandra Isabel Cunha de

Sousa – Universidade do Minho.

Estes são exemplos de teses de doutoramento, em menor número em relação aos

trabalhos de mestrado: Gonçalo M. Tavares: os pontos no mapa e a desrazão do mundo

(2016), de Maria da Graça Ribeiro da Mata dos Santos - Universidade de Évora, e Poética

da superação a propósito da obra de Gonçalo M. Tavares (2016), de Pedro Quintino de

Sousa - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Algarve.

Além dos estudos citados, alargam-se as pesquisas em torno da obra tavariana.

São diversas publicações de artigos, resenhas e críticas em revistas e jornais. Também,

projetos institucionais, como o realizado na Universidade Estadual de Maringá,

Representações do Vazio na Literatura de Gonçalo M. Tavares, coordenado pela

professora Doutora Luzia Aparecida Berloffa Tofalini; e o projeto intitulado O desejo da

política nas Literaturas de Língua Portuguesa, coordenado pela professora Doutora

Rosana Cristina Zanelatto Santos, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

O presente trabalho busca contribuir com os estudos que se voltam para a relação

literatura e sociedade, principalmente as questões que concernem à morte e o morrer.

Também, na fomentação das discussões sobre o mal, a violência e o vazio existencial,

progressivamente mais problemáticos na sociedade atual: temas presentes em Jerusalém.

Para dinamizar o processo de análise, optou-se por dividir o estudo em três

capítulos, nos quais se apresenta uma revisão do conceito de morte e a abordagem literária

do assunto; as representações de morte na obra, envolvendo os casos das personagens

Mylia e Ernst, e a experiência do mal por meio da invocação da memória dos campos de

concentração em Auschwitz.

No primeiro capítulo, intitulado Sobre a morte e a literatura, atenta-se para a

necessidade de reflexão sobre a morte, evento de caráter irremissível, mas, que ao ser

considerado polêmico e complexo, suscita as mais diversas formas de afastamento. Isso é

tratado no primeiro tópico - A problemática da morte –, no qual se discute também como o

progresso técnico-científico contribui para o crescente horror no seio da humanidade.

No segundo tópico – A morte como tema na literatura -, problematiza-se como a

arte literária, em seu caráter de representação da vida humana, tem abordado o tema ao

longo da história. Essas discussões são ancoradas, principalmente, nos estudos de Edgar

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Morin em O Homem e a Morte (1988), Elizabeth Kübler-Ross em Sobre a Morte e o

Morrer (1996), e Martin Heidegger em Ser e Tempo (2005).

Ao segundo capítulo – Representações da morte em Jerusalém – é atribuída a

análise das representações da morte no romance, especificamente as experiências das

personagens Mylia e Ernst. De início, julgou-se pertinente fazer um breve levantamento de

como a arte da representação foi entendida por diferentes teóricos, principalmente no que

se refere aos questionamentos e posicionamentos relacionados à arte literária, e então,

delimitar o posicionamento teórico adotado para a análise aqui empreendida. Dessa forma,

no primeiro tópico - Considerações sobre a arte da representação, investiga-se o conceito

de representação que remonta às reflexões platônicas e aristotélicas, para chegar às

indagações sobre literatura e sociedade, ancorando-se, sobretudo, nos estudos de Antonio

Candido em O Direito à Literatura (1995) e Literatura e Sociedade (2006).

O segundo tópico – Mylia e a angústia em previsão da morte – trata da

representação da morte relacionada à personagem Mylia. Ao realizar um levantamento

acerca da vida da personagem, percebe-se que a vivência traumática no Hospício Georg

Rosenberg lhe causara uma dor constante, física e emocional. Constatou-se que, no

momento de extremo desespero, angústia, dor, na iminência de morte, a personagem busca

no transcendental o amparo que não encontra em nada e em ninguém.

No terceiro tópico – Mundo caótico x personagens em crise –, são analisadas as

estratégias de escrita de Gonçalo M. Tavares, as quais reforçam o sentido de desconexão e

incompletude entre as personagens e o mundo. Para a compreensão das questões

suscitadas, recorre-se, dentre outros, aos estudos Mikhail Bakhtin em Marxismo e filosofia

da linguagem (1997), Aguiar e Silva em Teoria da literatura (2007), e Lukács em A

Teoria do Romance (2000). Na área da filosofia e psicanálise são convocadas, à luz da

literatura, as obras Ser e Tempo (2005), de Martin Heidegger, e O Futuro de uma Ilusão

(2010), de Freud.

Por fim, o quarto tópico – Ernst: as experiências do vazio e da morte – tem como

foco a atitude extrema da personagem Ernst na tentativa de suicídio. Novamente, há a

interação da literatura com outras áreas do saber, a fim de analisar o vazio sentido pela

personagem e a constatação do suicídio como resposta ao desespero existencial. Os estudos

do sociólogo Émile Durkheim, O Suicídio: estudo de sociologia (2000), e Marx, Sobre o

suicídio (2006), contribuem nessa etapa.

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No terceiro capítulo – Experiência do mal –, examina-se as memórias da

Segunda Grande Guerra, o horror dos campos de concentração, a maldade humana.

Zygmunt Bauman, em Modernidade e Holocausto (1998), vem ao encontro dessa

discussão. O primeiro tópico - O Holocausto como pano de fundo - volta-se para o evento

maligno que foi o Holocausto e a interferência violenta na vida das personagens. No

segundo tópico – Memória e morte -, reflete-se sobre o trauma de guerra vivenciado pelo

ex-soldado Hinnerk. Aqui também se faz essencial a ancoragem do estudo literário às

abordagens de estudiosos de diferentes áreas, tais como Freud em Obras Completas vol. 14

(2010) e Obras Completas vol. 13 (2014), e Seligmann-Silva, em Catástrofe e

Representação (2000).

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CAPÍTULO I

SOBRE A MORTE E A LITERATURA

Em literatura, uma das minhas palavras inimigas é: beleza. A má literatura começa com a frase bela ou com a frase moral. A frase moralista é um suicídio da literatura. Belo, para mim, é aquilo que provoca.

(Gonçalo M. Tavares)

Neste capítulo, é feita uma revisão do conceito de morte, da atitude do homem

diante do evento tanático, e investiga-se como ocorre a abordagem do tema no âmbito

literário. Dessa forma, o primeiro tópico empreende uma reflexão sobre a investida que se

tem realizado ao longo da história para tornar compreensível o significado da morte, e,

paralelamente, as práticas que contribuem para o crescente horror diante dela,

especialmente a partir do século XIX.

No tópico dois, o objetivo é analisar como a literatura tem se relacionado com a

morte ao longo da história. Entende-se que a abordagem da literatura como arte da

representação, bem como o trabalho com a temática da morte são amplos e geraram ao

longo da história inúmeras discussões. Nesse sentido, o intuito é refletir sobre alguns

pontos que se inclinam à perspectiva geral do trabalho, enquanto análise da representação

da morte em Jerusalém.

1.1 A problemática da morte

A investida em tornar compreensível o significado da morte tem se constituído

como umas das tarefas principais da filosofia. Como observa José Luiz de Souza

Maranhão, no livro O que é a Morte (1985, p. 62), desde os textos sagrados indianos,

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denominados Vedas3, que datam de mais de três mil anos, até os estudos existencialistas e

posteriores, tem se empreendido árduo estudo para elucidar tal significado.

Maranhão aponta que a morte é o verdadeiro gênio inspirador da filosofia, e que o

confrontamento com a morte é que provoca no homem a necessidade e o desejo de pensar,

de discorrer sobre as questões inerentes à vida e à tentativa de dilucidar as interpretações

da realidade: “A filosofia, afirmava Platão, não é senão uma meditação da morte,

meditativo mortis. Toda vida filosófica, escreveu depois Cícero, é uma preparação para a

morte” (MARANHÃO, 1985, p. 62).

Na terminologia do léxico, morte significa: “Cessação da vida. Termo, fim.

Destruição, ruína. Pesar profundo” (FERREIRA, 2010, p. 517). Pelo Dicionário de

Filosofia de Nicola Abbagnano, o signo, oriundo do latim mors, pode ser compreendido de

duas formas. A primeira, como falecimento, em que “a M. é um fato natural como todos os

outros e não tem significado específico para o ser humano” (ABBAGNANO, 2007, p.

683). Nesse sentido, a morte é o falecimento de todo ser vivo, qualquer que seja. “Perante a

morte assim entendida, a única atitude filosófica possível é a expressa por Epicuro:

‘Quando nós estamos, a M. não está; quando a M. está, nós não estamos’ (DiÓG. L, 125)”

(ABBAGNANO, 2007, p. 683).

Na segunda compreensão do signo, a morte tem relação específica com a

existência humana, e pode ser entendida de três maneiras: início de um ciclo de vida, em

que se admite a imortalidade da alma. Aqui, “a M. é o que Platão chamava de ‘separação

entre a alma e o corpo’ (Fed, 64 c)” (ABBAGNANO, 2007, p. 683). Também, há o

conceito de morte como fim de um ciclo de vida; nesse caso, expressa como repouso,

involução da vida, e como pena do pecado original, proposta pelo conceito bíblico.

Por fim, o Dicionário traz a palavra morte como possibilidade existencial,

caracterizando-a não como um acontecimento situável na vida humana, mas uma

possibilidade que está sempre presente, como uma limitação da existência. Nesse sentido,

Abbagnano cita a consideração de Heidegger: “A M., como fim do ser-aí (Daseiri), é a sua

possibilidade mais própria, incondicionada, certa e, como tal, indeterminada e insuperável”

(Sein midZeít, § 52)” (HEIDEGGER apud ABBAGNANO, 2007, p. 684).

3 A palavra Vedas significa "conhecimento sagrado". É a denominação dada a quatro textos em sânscrito

védico – de onde se originou, mais tarde, o sânscrito clássico –, por volta do século XVI a.C. Acredita-se que

tais textos sejam as escrituras sagradas mais antigas da História.

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No vocabulário arcaico, a morte não tem conceito definido; “fala-se dela como de

um sono, de uma viagem, de um nascimento, de uma doença, de um acidente, de um

malefício, de uma entrada para a morada dos antepassados, e, o mais das vezes, de tudo

isto ao mesmo tempo” (MORIN, 1988, p. 25). Nessa perspectiva, não se concretiza uma

ideia, mas uma imagem do que se supõe ser a morte.

Do ponto de vista da medicina, a médica-psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross (1996,

p. 13) elucida que “em nosso inconsciente, a morte nunca é possível quando se trata de nós

mesmos. É inconcebível para o inconsciente imaginar um fim real para nossa vida na terra

e, se a vida tiver um fim, este será sempre atribuído a uma intervenção maligna [...]”.

Apesar de o homem ser a única espécie a ter consciência da morte, a realizar ritos

fúnebres e a alimentar crenças na imortalidade, Edgar Morin (1988, p. 13) conclui que as

ciências negligenciam a morte, voltando-se para o reconhecimento do homem enquanto

Homo Fabier, Homo Sapiens, e Homo Loquax, respectivamente pela capacidade de

fabricar utensílios, pensar e raciocinar, e fazer uso da linguagem.

Esse reconhecimento se torna contraditório, pois “se nas suas atitudes e crenças

perante a morte, o homem se distingue mais nitidamente dos outros seres vivos, é aí

mesmo que ele exprime o que a vida tem de mais fundamental” (MORIN, 1988, p. 16-17).

Contudo, o negligenciamento da morte ocorre em correspondência à repulsa que se tem

diante do tema.

O homem sempre se angustiou em face da morte. Em O Homem e a Morte, Morin

(1988, p. 30) afirma que todos têm horror à morte, mesmo os selvagens e as crianças; “[...]

uma menina de quatro anos chorou durante vinte e quatro horas quando lhe disseram que

todos os seres vivos tinham que morrer. Só a promessa solene feita por sua mãe de que ela,

a criança, não morreria a conseguiu acalmar”.

Esse temor, na concepção do filósofo, é ao mesmo tempo ruidoso e silencioso.

Ruidoso quando “explode nos funerais e no luto, troveja do alto dos púlpitos, clama nos

poemas [...]. Silencioso: corrói a consciência, invisível, secreto, como que envergonhado

[...]” (MORIN, 1988, p. 31).

A angústia da morte suscita na vida humana constante inquietação,

desencadeando reações mágicas, como acreditar que não se deve tocar em flores, pois são

efêmeras e logo murcham, ou ainda presságios associados à aparição de aves agourentas.

Nesse contexto é que também surge o apego à promessa divina de vida eterna.

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Frente à morte de um desconhecido, o medo e a repulsa não vêm à tona. O horror

se instaura no cadáver do semelhante, daquele que é próximo, familiar. Nesse sentido,

Morin (1988, p. 31) aponta que a morte está ligada à ideia de perda da individualidade;

quanto mais individualismo, maior é o temor diante da morte, dado que o homem tem a

consciência de que é a perda do seu eu.

Para Heidegger, a angústia de morte é fundamental na existência humana, pois

através dela o homem terá possibilidade de existir em sentido próprio: “A morte não

apenas ‘pertence’ de forma não indiferente à própria presença, como reivindica a presença

enquanto singular. A irremissibilidade da morte, compreendida no antecipar, singulariza a

presença em si mesma” (HEIDEGGER, 2005b, p. 47 – grifos do autor).

A existência da pre-sença consiste em um ente que sempre é ele próprio. A

angústia aparece então como uma característica fundamental ao revelar ao homem a

consciência do nada que existe por trás de toda a existência, ou seja, a obscuridade que

envolve o existir, seu propósito e o desfecho. “Se, portanto, o nada, ou seja, o mundo como

tal, se apresenta como aquilo com que a angústia se angustia, isso significa que a angústia

se angustia com o próprio ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2005a, p. 251 – grifos do autor).

A angústia é percebida como a potencialidade de despertar o ente para a

efemeridade e a incerteza diante da vida, a compreensão de que todo ser é um ser-para-a-

morte. Essa transição que envolve o não mais estar presente impede que haja possibilidade

de se vivenciar a morte. Mesmo que se compartilhe a morte do outro, não é possível fazer a

experiência da morte, do não-mais-ser-no-mundo. “A fim de se analisar a morte, enquanto

morrer, resta apenas a alternativa de se colocar o fenômeno num conceito puramente

existencial ou então de se renunciar à compreensão ontológica” (HEIDEGGER, 2005b, p.

21 – grifo do autor).

Nesse sentido, à medida que o homem aceita seu caráter de ser-para-a-morte, ou

seja, tem a compreensão e suporta que a morte é uma possibilidade de ser da pre-sença,

tem despertada a angústia. O sentimento de angústia, para Heidegger, desencadeia a busca

do Ser; ao preconizar a situação irreversível de sua finitude, o homem é despertado para a

nulidade de seu projetar-se, o que desencadeia a possibilidade de uma vida autêntica,

estando o homem engajado em suas escolhas:

A angústia se angustia pelo poder-ser daquele ente assim determinado e lhe abre

a possibilidade mais extrema. Porque a antecipação simplesmente singulariza a

pre-sença e, nessa singularização, torna certa a totalidade de seu poder-ser, a

disposição fundamental da angústia pertence à compreensão de si mesma,

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própria da pre-sença. O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia

(HEIDEGGER, 2005b, p. 50).

Segundo Heidegger, a maioria das pessoas não aceita o caráter de ser-para-a-

morte, que é a possibilidade mais própria para o ser alcançar a existência autêntica. Opta-

se pelo modo de vida da cotidianidade em relação à morte, na qual se impõe a análise do

morre-se, de maneira impessoal, em que casos de morte acontecem a outras pessoas, mas

não a si mesmo. Por meio do impessoal, busca-se tranquilizar a pre-sença desviando-a de

sua morte, o que leva ao modo de ser-para-a-morte cotidiano, pois, apesar de a morte

atingir à pre-sença, ela não pertence propriamente a ninguém: “A morte que é sempre

minha, de forma essencial e insubstituível, converte-se num acontecimento público, que

vem ao encontro no impessoal” (HEIDEGGER, 2005b, p. 35).

Nessa perspectiva, a morte é um acontecimento real, entretanto, encobre-se o seu

caráter de possibilidade e o fato de ser irremissível; com isso, encobre o ser-para-a-morte

mais próprio e abre-se o modo de ser da de-cadência: “De-cadente, o ser-para-a-morte

cotidiano é uma permanente fuga dele mesmo” (HEIDEGGER, 2005b, p. 37 – grifos do

autor).

Morin pensa de forma muito semelhante a Heidegger, ao propor que há uma

cegueira em relação à morte, em que o homem, embora a conhecendo, afugenta essa

consciência, e vive como se ela não pudesse atingi-lo. Remetendo aos estudos freudianos,

o filósofo expõe que o homem foge à tomada de consciência de que é um ser para o fim:

“[...] no fundo, ninguém acredita em sua própria morte, ou, o que vem a ser o mesmo, que

cada um, no seu inconsciente, está persuadido de sua própria imortalidade” (FREUD apud

MORIN, 1988, p. 59). Imortalidade que evoca aqui, não o sentido da vida que se prolonga

depois da morte, mas de recusa que a morte virá, inevitavelmente, também para si.

Quando se está em comunidade, ocorre o oposto do sentimento de individualismo.

Isso acontece, por exemplo, em circunstância de estado de guerra, em que a afirmação do

grupo social atenua a presença da morte: “Quando a sociedade se afirma em detrimento do

indivíduo, quando simultaneamente, o indivíduo sente essa afirmação como mais verídica

do que a da sua individualidade, a recusa e o horror da morte dissipam-se, deixa-se vencer”

(MORIN, 1988, p. 39). Assim, motivado por uma perspectiva de tornar-se uma espécie de

herói perante a sociedade, portanto, imortalizado nas gerações futuras, o homem é capaz de

dar sua vida em prol da coletividade.

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No entanto, Morin analisa que essa atitude mágica, sacrificial, em que a morte não

é sentida de forma traumática, decorre de regressões fundamentais às sociedades

civilizadas, as quais são trazidas pela guerra: “regressão do indivíduo promovido a herói

por ser assassino ou assassinado [...]. O ódio e o desprezo transformam-se nos sentimentos

mais sublimes” (MORIN, 1988, p. 41). O horror da morte, no entanto, regressa ao término

da guerra.

Em Jerusalém, os processos que atemorizam as personagens diante da morte

clamam atenção. De fato, o morrer é intrigante a todo ser humano que, inevitavelmente,

desde o seu nascer, caminha em direção à morte. No contexto em que se passa o romance,

às personagens advém as circunstâncias mais desumanas e cruéis. Fala-se da morte

violenta e injusta em meio à guerra, que ceifa a vida de milhares de inocentes, como no

caso do monstruoso genocídio ocorrido nos campos de concentração da Segunda Guerra

Mundial. Auschwitz, por exemplo. A morte como uma questão político-econômica

estudada e planejada por homens que, amparados no conhecimento técnico-científico,

formularam eficientes máquinas de matar.

Além disso, a representação da morte ocorre em sua forma mais solitária e doída,

quando se busca dar fim à própria existência, porque viver é demasiadamente detestável,

por conta da maldade dos outros homens, do mundo gélido e perverso que o cerca. A

grande lacuna que se forma na profundidade do ser, o qual não encontra forças e nem um

mínimo de amparo diante de sua dor. O verdadeiro mal-estar que se instaura na civilização

moderna e que encaminha o homem a um processo degradante de mortificação.

1.1.1 O contributo técnico-científico e o horror diante da morte

O mesmo progresso buscado pelo homem, visando aos benefícios do avanço da

tecnologia e da ciência, oferta uma dupla situação: de um lado, possibilidades de prolongar

a vida; de outro, contraditoriamente, contribui para o crescente horror que se estabelece

diante da morte. É notório o avanço da medicina e os benefícios à humanidade. A

descoberta da cura para doenças que dizimavam muitas vidas e o aperfeiçoamento de

técnicas e equipamentos propiciou ao homem aumento da perspectiva de vida:

A vacinação em massa praticamente erradicou muitas doenças, [...]. A

quimioterapia, especialmente o uso de antibióticos, contribuiu para que

decrescesse o número e casos fatais de moléstias infecciosas. [...]. Os vários

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males que causavam uma baixa impressionante entre jovens e adultos foram

dominados (KÜBLER-ROSS, 1996, p. 13).

Morin (1988, p. 306) também observa como impressionam as práticas criadas

pelo homem na luta contra a morte. São artifícios contra a morte interna, como o uso de

pulmões de aço4, assim como contra o perigo da morte externa, envolvendo acidentes e

ferimentos, com promessas de regeneração ou substituição de órgãos lesados.

Ao mesmo tempo que a ideia de uma vida longa e feliz se instaura, a psiquiatra

Elizabeth Kübler-Ross explica que há um crescente aumento de problemas emocionais. A

solidão e o isolamento são antagonistas em um meio que permite viver mais, porém, é uma

vida social permeada de angústias e aflições, pois o mesmo progresso científico e

tecnológico que se coloca a favor do homem, alimenta uma sociedade materialista e

individualista:

Os pediatras lidam menos com situações críticas, situações que ameaçam a vida;

contudo aumenta o número de pacientes com sintomas psicossomáticos, com

problemas de comportamento e ajustamento. Há mais casos de problemas

emocionais nas salas de espera dos consultórios médicos do que jamais houve

(KÜBLER-ROSS, 1996, p. 14).

No livro Sobre a Morte e o Morrer, Kübler-Ross exemplifica, por meio de casos

verídicos, a solidão em que morrem muitas pessoas. A médica, conduzindo um projeto de

pesquisa, trabalhou durante dois anos e meio junto a pacientes moribundos em estágio final

da vida, no intuito de examinar suas reações e necessidades. Dentre os casos, é citada a

situação de uma jovem mulher de vinte e oito anos, casada e mãe de duas crianças,

portadora de uma grave doença, a qual permaneceu solitária em um hospital por meses até

sua morte. “Rejeitada pela família, desconsiderada ou ignorada pelo pessoal do hospital,

[...], cabelos em desalinho, sentada à beira da cama, desesperadamente só, discando o

telefone para ouvir um ruído qualquer” (KÜBLER-ROSS, 1996, p. 60).

Abandonada pela família, a paciente que temia morrer vivenciou um sofrimento

maior que a morte. Verificou-se, inclusive, que o ato de comer descomedidamente

alimentos que lhe eram proibidos era “uma tentativa de suicídio, na medida que teriam

levado a um rápido desfecho, caso o pessoal do hospital não intervisse com tanto vigor”

(KÜBLER-ROSS, 1996, p. 60).

4 O pulmão de aço, criado em 1928, é uma câmara cilíndrica em aço de suporte à vida, usada para recuperar o

aparelho respiratório. É um tipo de ventilador que possibilita a uma pessoa respirar nos casos em que há

paralisia dos músculos da respiração ou debilitação no esforço necessário para a respiração.

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Em outro caso, o homem que antes cuidava do parente moribundo em casa e em

companhia dos familiares, onde também se realizava o funeral, passou a afugentar ao

máximo a proximidade com a morte, recorrendo ao que Kübler-Ross chama de

eufemismos:

[...] fazemos com que o morto pareça adormecido; mandamos que as crianças

saiam, para protegê-las da ansiedade e do tumulto reinantes na casa, isto é,

quando o paciente tem a felicidade de morrer em seu lar; impedimos que as

crianças visitem seus pais que se encontram à beira da morte nos hospitais [...]

(KÜBLER-ROSS, 1996, p. 19).

Com o progresso, aumentou também o medo da morte, consequência do

distanciamento e impessoalidade da sociedade contemporânea diante do tema. A sociedade

tornou-se propensa a evitá-la, e morrer parece algo triste e solitário. Ao aprimorar as

condições de vida humana, paralelamente se contribuiu para o desenvolvimento de uma

sociedade na qual impera o individualismo. Segundo Ariès (2012, p. 152), “a partir do

século XIX, as imagens da morte são cada vez mais raras, desaparecendo completamente

no decorrer do século XX; o silêncio que, a partir de então, se entende sobre a morte

significa que esta rompeu seus grilhões e se tornou uma força selvagem e

incompreensível”.

O contributo da ciência e da tecnologia volta-se contra o próprio homem, na

medida em que propicia também o desenvolvimento de armas cada vez mais potentes,

capazes de dizimar milhares de pessoas ao mesmo tempo. “Hoje, o homem, com a arma

atômica, é capaz de destruir a espécie humana, e nenhum freio específico nos pode garantir

que não o fará” (MORIN, 1988, p. 66).

Essa perspectiva é também apontada por Walter Benjamin, que por meio de uma

imagem em seu livro O Anjo da História, ao analisar o Angelus Novus, tela de Paul Klee,

critica a convicção de que o progresso trará vantagens. De fato,

Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que

olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas

abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado.

A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe

sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés.

[...] Ele gostaria de parar para acordar os mortos e, reconstituir, a partir de seus

fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se

enrodilha nas suas asas [...] esse vendaval arrasta-o imparavelmente para o

futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce

até o céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval (BENJAMIN,

2010, p. 13-14).

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Walter Benjamim compara o anjo ao conceito de história, em que a humanidade,

levada pelo progresso, apresenta-se completamente desfacelada, repleta de catástrofes.

Exatamente o que o anjo pode visualizar com “olhos esbugalhados, a boca escancarada e

as asas abertas” ao voltar seu rosto para trás.

Dessa forma, o cenário é composto por fragmentos que não se articulam, mas o

oposto, “o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu”. Benjamim enfatiza o lado

destrutivo do desenvolvimento tecnológico que serve, segundo ele, principalmente para a

produção de mercadorias e para a guerra.

O filósofo alemão recusa-se à ilusão do progresso, na alegoria que o remete ao

vendaval como catástrofe que amontoa um monte de ruínas. Kübler-Ross compartilha

desse entendimento ao afirmar que, ao mesmo tempo que evoluímos beneficamente com a

tecnologia e a ciência, é ela quem mais nos amedronta:

[...] a destruição tanto pode cair do céu azul e arrasar multidões, haja vista a

bomba de Hiroxima, como pode surgir invisível sob forma de gases ou outros

meios de guerra química, ceifando e matando. [...] Eis o contributo da ciência e

da tecnologia para um medo sempre crescente de destruição e, por conseguinte,

medo da morte (KÜBLER-ROSS, 1996. p. 24).

Nesse mesmo sentido de o progresso aumentar o horror do homem diante da

morte, o sociólogo polonês Bauman, referenciando Feingold, ressalta que Auschwitz,

assim como Kübler-Ross menciona a bomba de Hiroxima, foi também resultado do mundo

moderno e suas conquistas. A idealização do progresso, criticada por Benjamim, repercute

da mesma forma nessa análise em que se percebe o trágico contributo da tecnologia ao

proposto de exterminação do povo judeu. Com efeito,

[Auschwitz] foi também uma extensão mundana do moderno sistema fabril. Em

vez de produzir bens, a matéria-prima eram seres humanos e o produto final, a

morte, com tantas unidades por dia cuidadosamente registradas nos mapas de

produção do administrador. As chaminés, que são o próprio símbolo do moderno

sistema fabril, despejavam uma fumaça acre de carne humana sendo queimada.

A malha ferroviária da Europa moderna, com sua brilhante organização, passou a

transportar uma nova matéria-prima para as fábricas. E da mesma maneira que

fazia com outros tipos de carga. Nas câmaras de gás as vítimas inalavam gases

letais desprendidos por pelotas de ácido prússico, produzidas pela avançada

indústria química da Alemanha. Engenheiros projetaram os crematórios;

administradores de empresa projetaram o sistema burocrático, que funcionava

com um capricho e eficiência que nações 'mais atrasadas’ invejariam. Mesmo o

próprio plano global era um reflexo do moderno espírito científico desvirtuado.

O que testemunhamos não foi nada menos que um esquema de engenharia social

em massa... (FEINGOLD apud BAUMAN, 1998, p. 26-27).

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Nesse processo, a violência tornou-se uma técnica. Engenheiros articularam os

crematórios, a indústria química, que se mostrava avançada, colocava-se a serviço de

produzir gases letais a serem liberados dentro de câmaras a extinguirem a vida de centenas;

a malha ferroviária da Europa, que deveria servir ao conduto de matéria-prima e produtos,

conduzia corpos que violentamente experimentaram as invenções do espírito moderno que

se colocava em ação, em prol da humanidade.

Por meio das inovações do mundo moderno, a morte vem ao homem de maneira

catastrófica, matando milhares ao mesmo tempo, valendo-se do contributo da ciência e da

tecnologia. Assim, o horror diante da morte, que sempre esteve presente, assimila novas

possibilidades de finitude talvez ainda mais aterrorizantes.

1.1.2 Assassinato e suicídio - paradoxos diante da morte

O assassinato aparentemente contradiria de forma gritante o horror que se tem

diante da morte, contudo não o faz. O homem é o único animal a matar o seu semelhante

sem necessidade vital e isso se perpetra por toda a história:

No interior da espécie impera um tabu de protecção absoluto: “Os lobos não se

devoram uns aos outros”. Quando os indivíduos da mesma espécie se atacam

mutuamente, é apenas em caso de luta sexual, isto é, em selecção em proveito da

espécie, ou em caso de luta por alimentação insuficiente, o que também é

selecção [...] (MORIN, 1988, p. 55 – grifo do autor).

O assassinato, nesse sentido, caracteriza-se como necessidade de afirmação da

individualidade, da satisfação de matar alguém, de se afirmar através da destruição do

outro. É o desejo de matar que se instaura no seio da humanidade e que evidencia

verdadeiras barbáries ao longo da história:

Quer o homicídio seja fruto da cólera, da fúria, até da loucura, [...] quer seja,

pelo contrário, uma decisão fria, [...] quer seja simultaneamente lúcido e louco,

[...] quer seja, finalmente, a indústria-chave do universo hitleriano, revela-nos

um encarniçamento, ou um ódio, ou um sadismo, ou um desprezo, ou uma

volúpia de matar, isto é, uma realidade propriamente humana (MORIN, 1988, p.

64).

Morin aponta a teoria de Freud em que fora apresentada a existência dos desejos

de morte sentidos pela criança em relação aos pais ou àqueles que lhe desapontam. A partir

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disso, poderia se pensar na individualidade que entra em conflito, e o desejo de matar

como processo fundamental de afirmação da individualidade, a qual provoca destruição

absoluta do outro. Uma das materializações disso exemplifica-se com os campos de

concentração em Auschwitz, em que poderosos “sentem como um insulto a mera

existência de alguém que não lhes agrada e o suprimem” (MORIN, 1988, p. 64).

Nesse cenário, o homem, único animal a ter consciência de sua morte e a temer a

finitude, é também, como já dito, o único a aniquilar seu semelhante. Somando-se a isso, o

suicídio também aparece como característica única ao ser humano. Émile Durkheim,

considerado um dos fundadores da sociologia moderna, caracteriza como suicídio “todo

caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo,

realizado pela própria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado” (DURKHEIM,

2000, p. 14).

Assim como o assassinato, o suicídio denota atitude especificamente humana. O

mesmo homem que teme a morte, nessa circunstância, a deseja. Para Morin (1988, p. 47),

o suicídio é resultante de um vazio social, em que, com “a deificação de si próprio, nasce o

temor extremo da morte que traz consigo a tentação extrema da morte [...]. O suicídio,

ruptura suprema, é a reconciliação suprema, desesperada com o mundo”.

Essa contradição de o suicídio ser, ao mesmo tempo, ruptura e reconciliação,

denota o conflito existencial do homem da sociedade contemporânea, que, ao sentir-se

desamparado e sozinho, encontra no abismo da morte, a saída para livrar-se dos temores e

incertezas. Quanto mais se exalta a felicidade e a jovialidade, mais se rejeita as coisas da

morte. Para Ariès, há uma causalidade para o interdito da morte:

[...] a necessidade da felicidade, o dever moral e a obrigação social de contribuir

para a felicidade coletiva, evitando toda causa de tristeza ou de aborrecimento,

mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo se estamos no fundo da depressão.

Demonstrando algum sinal de tristeza, peca-se contra a felicidade, que é posta

em questão, e a sociedade arrisca-se, então, a perder sua razão de ser (ARIÈS,

2012, p. 89).

Karl Marx, em seu artigo Sobre o Suicídio, observa que, no momento desesperado

em que o indivíduo busca sua morte como único recurso, se são “religiosas, as pessoas

especulam sobre um mundo melhor; se, ao contrário, não creem em nada, então buscam a

tranquilidade do Nada” (MARX, 2006, p. 25). De outro lado, a sociedade tende a enxergar

o suicídio como “um ato de covardia, um crime contra as leis, a sociedade e a honra”

(MARX, 2006, p. 26).

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Apesar de as duas primeiras opções apontadas por Marx parecerem “favoráveis”,

na verdade, são também permeadas de angústia. No primeiro caso, sendo a pessoa

religiosa, a possibilidade de um mundo melhor para aquele que comete suicídio é, em

praticamente todas as religiões, inconcebível, pois o ato suicida é considerado como um

pecado gravíssimo. Assim, o suicida realmente religioso estará angustiado com a

perspectiva da vida eterna e o seu oposto, que é o inferno.

Na segunda situação, em que estão os que não têm crença, o vazio a que o nada

remete pode ser aterrorizador. Cabe aqui a história de Hamlet5, a qual aborda o medo que

se instaura diante do Nada. Em momento de reflexão sobre seu destino, a personagem de

Shakespeare pensa a morte como sendo um sono, um nada, que poderia dar fim aos

sofrimentos do coração. Entretanto, a incerteza de quais sonhos poderiam ser trazidos pelo

sono da morte, a incerteza diante do nada, o angustia. Dito isso, o nada é amedrontador o

suficiente para ser considerado em termos de tranquilidade.

Para Marx, a morte voluntária também não está apenas ligada a fatores

individuais; é acima de tudo consequência de uma sociedade debilitada. Questiona a

impotência da sociedade materialista e solitária que nada pode fazer para evitar que o

homem mate a si mesmo:

Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio

de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de

matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma

sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens

(MARX, 2006, p. 28).

Também Durkheim, em sua obra O Suicídio, publicada pela primeira vez em

1897, discute que o suicídio é um problema social. A percepção do sociólogo dialoga com

estudos atuais sobre o suicídio, na compreensão de que o homem, na busca desenfreada

pelo progresso, perde-se a si mesmo e sente-se cada vez mais solitário. Para o sociólogo,

Os avanços anormais do suicídio e o mal-estar geral que atinge as sociedades

contemporâneas derivam das mesmas causas. Esse número excepcionalmente

elevado de mortes voluntárias prova o estado de perturbação profunda de que

sofrem as sociedades civilizadas, e até sua gravidade (DURKHEIM, 2000, p.

512).

O esvaziamento das relações humanas, o ambiente caótico das sociedades

contemporâneas, são situações cada vez mais propícias para o sentimento de solidão e

5 Personagem da Tragédia de William Shakespeare: A Trágica História de Hamlet – Príncipe de Dinamarca.

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angústia. Na ocorrência de um suicídio, há uma soma de fracassos da sociedade que não

conseguiu expelir a morte, nem pode “dar o gosto pela vida ao indivíduo, como também

está vencida, negada” (MORIN, 1988, p. 47).

Já o filósofo Albert Camus discute o suicídio preponderando mais o aspecto

individual em detrimento do social. Para explicar o fenômeno, Camus recorre ao Mito de

Sísifo e fala da condição absurda na qual vive o homem, trabalhando e lutando todos os

dias em direção a sua morte, ou seja, em direção a nada. Sísifo foi condenado pelos deuses

“a rolar um rochedo incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de

novo por seu próprio peso” (CAMUS, 1989, p. 85). Para Camus, esse personagem é o

herói do absurdo, pois toda a realização de seu ser leva a nada. Todo o esforço em levar o

rochedo acima é para culminar em sua queda.

As atividades diárias como o trabalho, família e religião, fazem parte de um

sistema cotidiano que prende o homem, levando-o a acreditar que há um real sentido para a

vida. O absurdo, segundo o filósofo, está entre o homem e o mundo, na presença comum

entre ambos; é semelhante a um estalo, que desperta para o verdadeiro sentido das coisas: o

fato de não terem sentido nenhum, visto que o sentido do mundo é inalcançável ao homem.

Dessa forma, viver é algo despropositado.

Nesse sentido, diante do absurdo que é a vida, emerge o questionamento sobre o

porquê de continuar vivendo, se a vida não tem sentido e se encaminha para o nada. O

suicídio surge então como uma solução individual antecipada ao absurdo, em que o homem

se precipita e dá por consumado o seu futuro, renunciando-o. Entretanto, o ato não

apresenta um resultado lógico, pois “O suicídio, como salto, é a aceitação em seu limite”

(CAMUS, 1989, p. 42), ou seja, provocar a própria morte quando não há sentido para viver

é agir de forma lógica, e o absurdo não se pode resolver: “Ele escapa ao suicídio à medida

que é, ao mesmo tempo, consciência e recusa da morte” (CAMUS, 1989, p. 42).

Assim, a consciência da obscuridade da vida, ao mesmo tempo, recusa a morte e

dá o preço à vida, lhe dá a sua grandeza. A consciência e a revolta são recusas contrárias à

renúncia, pois são as adversidades que impulsionam o homem, é a vida contraditória que

ensina. Portanto, viver é aceitar e encarar esse absurdo que é a vida:

Assim, eu extraio do absurdo três conseqüências que são minha revolta, minha

liberdade e minha paixão. Apenas com o jogo da consciência transformo em

regra de vida o que era convite à morte - e recuso o suicídio. Conheço, sem

dúvida, a surda ressonância que se estende ao longo desses dias. Mas só tenho

uma palavra a dizer: é que ela é necessária (CAMUS, 1989, p. 48).

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A imagem de Sísifo, dessa forma, representa a história da humanidade e seus

processos de construção e ruína. Sísifo empurra o rochedo até o cimo da montanha, de

onde a vê cair, e repete esse mesmo trabalho eternamente. Ele é o herói do absurdo assim

como o homem também o é: “O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas

mesmas tarefas e esse destino não é menos absurdo” (CAMUS, 1989, p. 86). Mas a vida só

se torna trágica nos raros momentos de consciência, de lucidez, porque no mais, a própria

luta em direção aos cimos é capaz de preencher o coração do homem, e “Se a descida,

assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode se fazer para a alegria” (CAMUS,

1989, p. 86).

Diante do exposto, nota-se que o assassinato e o suicídio são faces da morte que

suscitam amplas discussões, afinal, se a morte é uma das maiores inquietações do homem,

o fato de matar o outro ou matar a si próprio entra em confronto com a ideia inicial de

preservação da vida. Por que matar? Qual a real motivação que desencadeia o desejo de

morrer? Quem ou o que está envolvido nesses processos de morte? Tais questões clamam

reflexões, principalmente em tempos atuais em que se tem noticiado números cada vez

maiores de atos suicidas.

Em Jerusalém, a ideação suicida aparece como fator de arte na narrativa tavariana

na medida que se incorpora à composição literária. Por meio das ações da personagem

Ernst, o suicídio é também tema na obra: “Ernst estava sozinho no seu sótão, já com a

janela aberta” (TAVARES, 2006, p. 214). Angustiado com as lembranças de sua vivência

em Georg Rosenberg, o salto pela janela é convidativo e, naquele momento, convida-o

como a um último grito de socorro.

Ademais, o número de assassinatos também se elevou e Jerusalém, romance

contemporâneo, evoca muitas circunstâncias da morte. É exorbitante a quantidade de

assassissatos na Segunda Grande Guerra, em que, de acordo com as estatísticas divulgadas,

somaram em todo o mundo cerca de 55 milhões de mortes. Na narrativa, a pesquisa da

personagem Busbeck relembra os campos de concentração, onde os judeus “morriam como

gado, como coisas que não tivessem corpo nem alma” (TAVARES, 2006, p. 128). Traz, no

livro Europa 02, manuseado por Busbeck, as palavras de um sobrevivente que fala da

inescrupulosidade a que pode chegar um homem, como chegaram Hitler e seus aliados:

“Os homens normais não sabem que tudo é possível” (TAVARES, 2006, p. 126).

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A violência do assassinato está, de fato, nas ruas de Jerusalém: “Kaas fez um

pequeno movimento tentando afrouxar a mão do homem sobre o seu pescoço, mas este,

subitamente, agarrou-o ainda com mais força, e atirou-o ao chão. Kaas tentou gritar”

(TAVARES, 2006, p. 152). Nessa cena, o menino Kaas foi brutalmente morto enquanto

estava na rua a procura do pai Busbeck. A violência está em toda parte e ninguém está a

salvo de ser atingido por ela.

1.2 A morte como tema na literatura

A discussão acerca da presença do tema da morte na literatura é um amplo estudo

e disso poderia se ocupar todo este trabalho. No entanto, pretende-se aqui traçar um breve

recorte do tema que muito aflige o homem desde os primórdios, sendo também

evidenciado nos textos literários. Mais especificamente, busca-se investigar algumas das

facetas da morte que se encontram representadas em Jerusalém.

A escolha desse tema, dentre tantos outros que são abordados na arte literária, deve-

se ao fato de que a morte se apresenta duplamente: de um lado, inerente ao homem que não

pode evitá-la; de outro, a recusa em aceitá-la como tal. A sociedade nega a discussão do

tema, os leitores esquivam-se de obras que trazem a palavra morte no título.

A humanidade confronta-se com o progresso da ciência, que visa a prolongar a

jovialidade via intervenções cirúrgicas, por exemplo, e outros tantos métodos adotados na

perspectiva de uma vida longa e feliz. Em oposição, quando percebida uma ameaça de

guerra, o mesmo progresso atemoriza, visto que são utilizadas armas catastróficas que

foram criadas e que podem dizimar milhões de vidas de uma só vez.

Por esse ângulo, tudo o que se refere à morte é negado e camuflado, afinal ela é a

“indesejada das gentes”, como diz o conhecido verso de Manuel Bandeira6. Dia após dia,

nos noticiários, são transmitidas inescrupulosas cenas de violência evidenciando as

ocorrências de morte. A origem do número assustador de vidas ceifadas advém de

diferentes razões: a fome, a hostilidade, as armas de fogo cujo objeto tem como única

finalidade matar.

6 BANDEIRA, Consoada. In: Estrela da vida inteira: Poesia Completa. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2009.

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Denota-se o paradoxal esforço em mascarar a morte, afastar-se do que ou de quem

fala sobre o fenecimento, por mais que isso seja algo que faz parte da vida de forma

inevitável. A literatura, em sua grandeza plurissignificativa, desmascara a morte, trata da

finitude, do horror, das diferentes circunstâncias que a rodeiam.

1.2.1 Percepções teórico-críticas da morte como tema na literatura

Freud entende que a tentativa de silenciar a morte é extremamente prejudicial. Ao

excluir a morte da vida, o homem abarca também renúncias e exclusões; diante do temor

da morte, muitas ações são desencorajadas para que sejam evitados os perigos. Nesse

sentido, o psicanalista postula que a ficção pode desempenhar papel importante na dialética

entre homem e morte:

Resta então apenas procurar no mundo da ficção, na literatura, no teatro, a

compensação do que na vida minguou. Aí encontramos homens que sabem

morrer, mais ainda, que conseguem também matar os outros. Só aí se realiza

também a condição sob a qual poderíamos reconciliar-nos com a morte, a saber,

a de que por trás de todas as vicissitudes da vida nos ficou ainda uma vida

intangível. [...] No campo da ficção, deparamos com a pluralidade de vidas de

que necessitamos. Morremos na identificação com um herói, mas sobrevivemos-

lhe e estamos dispostos a morrer outra vez, igualmente indemnes, com outro

herói (FREUD, 2009, p. 21).

Freud compara a vida a um jogo de xadrez, em que uma peça movimentada

erroneamente pode levar à perda da partida. Assim é o homem, suscetível às circunstâncias

que podem encerrar a vida; contudo, se no jogo de xadrez há possibilidade de uma nova

partida, na vida não há essa perspectiva.

Nos textos literários pode-se vivenciar, por meio das ações das personagens,

situações que geralmente não se pode experimentar na vida real. Na medida em que há

identificação com uma personagem e o leitor passa a sentir que faz parte da história, ele

reflete e acaba por ter maior consciência da realidade da morte. Tais vivências auxiliam o

ser humano a refletir sobre diferentes situações de perda e de morte.

Edgar Morin também compartilha do entendimento de que a morte, que é com

frequência mascarada, ganha evidência por meio da literatura e marca o trabalho de vários

escritores, como Barrès, Loti, Maeterlink, Mallarmé e Rilke: “O espectro da morte

assediará a literatura. A morte, até então mais ou menos envolta nos temas mágicos que a

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exorcizavam, ou recolhida na participação estética, ou camuflada sob o véu da decência,

aparece nua” (MORIN, 1988, p. 266).

A literatura, ao representar o ser humano em toda a sua realidade, não se esquiva de

abordar a problemática da morte. A arte literária amiúde exprime a finitude humana. Por

meio das metáforas literárias da morte, notabilizam-se analogias consagradas do sono, do

repouso e do esquecimento. Michel Schneider (2005) observa que nada é mais vivo do que

os escritores quando falam da morte e escrevem contra o medo de morrer. Nada é mais

alienante do que tudo aquilo que nega a morte.

O crítico de literatura Maurice Blanchot, em O Espaço Literário, a partir de uma

reflexão enunciada por Kafka em 1914, reflete sobre a relação necessária de um escritor

com a morte para que se possa escrever outras histórias. Na leitura de Blanchot, Kafka

exprime que, estando em seu leito de morte e não sendo os sofrimentos insuportáveis,

estaria contente, pois, ao ser capaz de sentir-se contente em relação à morte, é capaz de

escrever bem:

[...] não se pode escrever se não se permanece senhor de si perante a morte, se

não se estabeleceram com ela relações de soberania. Se ela for aquilo diante do

qual se perde o controle, aquilo que não se pode conter, então retira as palavras

de sob a caneta, corta a fala; o escritor não escreve mais, ele grita, um grito

inábil, confuso, que ninguém entende ou não comove ninguém. Kafka sente aqui

profundamente que a arte é relação com a morte. Por que a morte? Porque ela é o

extremo. Quem dispõe dela, dispõe extremamente de si, está ligado a tudo o que

pode, é integralmente poder (BLANCHOT, 1987, p. 87).

Blanchot postula que é exatamente o poder de morrer bem que torna possível a

criação da morte das personagens nos textos literários. O jogo que Kafka afirma tecer

parece uma trapaça da arte, ao se verificar que o escritor afirma escrever o contrário do que

sente; que escreve a morte como injusta, sendo ele capaz de colhê-la com contentamento.

Mas Blanchot lança outro entendimento sobre o tal comentário, segundo ele mais justo:

“Morrer contente não é, aos seus olhos, uma atitude intrinsecamente boa, porquanto o que

ela exprime, em primeiro lugar, é o descontentamento da vida [...]. A aptidão para morrer

contente significa que a relação com o mundo normal está, desde já, quebrada”

(BLANCHOT, 1987, p. 89).

Assim, o que permite escrever é esse caráter de pensamento contente da morte, de

estar acima das reflexões que comumente se tem: “A contradição recoloca-nos na

profundidade” (BLANCHOT, 1987, p. 89). A literatura, nesse sentido, apresenta-se como

um toque nas extremidades, a tentativa de atingir o que está para além, o desconhecido.

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Blanchot explica o sentimento de Kafka sobre a relação da arte com a morte, uma vez que

esta é o extremo; não se sabe o que há na morte, o evento em que o eu se desfaz. Também

a literatura como experiência traz o contato com o desconhecido, o impossível, em que, por

meio da linguagem, o escritor sai de si e se refaz na escritura.

Na ficção, a linguagem sofre uma transformação em relação à linguagem da vida

diária. Isso porque, como observa Blanchot (2011, p 86), a prosa “convida o leitor a

realizar sobre as próprias palavras a compreensão do que se passa no mundo que lhe é

proposto”. Nesse contexto, o sentido abstrato em uma narrativa não conduz a coisas

concretas, que seria uma função habitual da palavra; mas sim, cria um mundo próprio, o

qual se encaminha à ideia de alegoria, mito e símbolo. O que resulta no ato de engajar-se

na história mítica e viver o seu sentido:

Daí a literatura poder constituir uma experiência que, ilusória ou não, parece

como um meio de descoberta e de um esforço, não para expressar o que

sabemos, mas para sentir o que não sabemos. [...] A característica da narrativa

simbólica é a de tornar presente esse sentido global, que a vida de todo dia,

estrangulada em seus fatos muito particulares, raramente nos permite atingir e

que a reflexão, retendo dela apenas o aspecto intemporal, não nos permite sentir

(BLANCHOT, 2011, p 87).

A natureza da imaginação auxilia a narrativa, propiciando uma elevação em

relação aos elementos reais e particulares, o que orienta “para a realidade vista em seu

conjunto, não para concebê-la e vivê-la, é verdade, mas para afastá-la e nesse afastamento

encontrar o jogo sem o qual não haveria imagem, imaginação ou ficção” (BLANCHOT,

2011, p. 87). Assim, a imaginação se torna simbólica, na medida em que busca, na

ausência de um elemento, a construção de um novo sentido.

Para o poeta, tradutor e jornalista brasileiro Mário Quintana, a literatura deve

servir de alento. Ele mesmo, em muitos de seus poemas, aproxima-se da temática da morte

e fala com suavidade do assunto. Em Projeto de prefácio (QUINTANA, 2005, p. 26),

evidencia o pensamento de que o poema deve trazer luz a essa questão, como sinalizam os

versos: “Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te/ para a morte/ não tem

sentido: é um pobre Chocalho de palavras”. Em A Morte Viva, fala da importância que a

finitude tem para a existência humana: “é ele (o pensamento da morte) que empresta a /

cada instante nosso este preço único, todo esse encantamento agradecido / que os tímidos

desconhecem... / A morte é o aperitivo da vida” (QUINTANA, 2005, p. 545-546).

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1.2.2 Metáforas literárias da morte

A personificação do mistério da morte data de tempos imemoriais. Os gregos

criaram a mitologia envolvendo lendas e divindades do Olimpo em torno dos

questionamentos que envolvem a morte e o desejo de entendimento. Os episódios

relacionados a essas divindades exerceram forte influência sobre os escritores de diferentes

épocas e ainda se observam na ficcionalização moderna.

Um dos mitos clássicos é o da tragédia do herói Édipo, história recolhida em Rei

Édipo, de Sófocles, representada pela primeira vez provavelmente em 430 a.C. A morte é

metaforizada como punição a Laio que, em sua juventude, apaixonara-se por Crísipo

(Crísipos), filho de Pêlops.

Um oráculo anunciou a Laio que, como castigo por sua paixão na juventude, caso

tivesse um filho, este o mataria. Laio casou-se com Jocasta e, tendo um filho, ordenou que

matassem a criança para fugir à predição do oráculo. Entretanto, a ordem não foi cumprida

e o menino, nomeado Édipo pela família que o criou, tornou-se adulto. Sem saber que era

seu legítimo pai, matou Laio, tornou-se rei e casou-se com a própria mãe.

Um segundo castigo é lançado sobre os habitantes do reino de Édipo, os quais são

dizimados por uma peste. A morte, enunciada como punição, se concretiza e o castigo se

torna ainda pior em decorrência da relação incestuosa que se estabeleceu entre Jocasta e

seu filho. Jocasta cometeu suicídio, e em todo o reino foi perpetrada uma maldição.

Na tragédia grega, citando o exemplo de Rei Édipo, a morte está presente por

meio do assassinato e suicídio, resultantes de castigo divino. A perspectiva de punição

também é percebida em A Divina Comédia, do poeta medieval Dante Alighieri, escrita

provavelmente entre 1307 e 1321.

Em narração em primeira pessoa, Dante é a personagem que conhece o Inferno

conduzido pelo poeta latino Virgílio. A narrativa converge às ideias da Escolástica,7 que se

estabeleciam na Idade Média.

7 “[...] a Escolástica é um modo de pensar e um sistema de concepções em que se valoriza a vida terrena

como dom admirável de que usufruímos para o nosso bem e para o nosso desenvolvimento pessoal e em que

se admite que o ser do homem não se esgota no breve tempo da sua existência terrena, uma vez que o homem

tem um fim supraterreno e eterno e o destino de uma vida interminável, sobre poder crescer ainda neste

mundo na vida sobrenatural que ele obtém através do batismo. Portanto, num primeiro momento, casam-se

na escolástica a concepção filosófica da vida terrena, da sua transcendência às limitações deste mundo e a

mundivivência cristã em que a revelação de Cristo assegura que a vida continua além da morte, que um

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No inferno, Dante pode visualizar os pecadores que estavam sendo castigados,

refletir sobre a existência do bem e do mal e, consequentemente, pensar sobre as escolhas

na condução da vida terrena. Para Torres; Guedes e Torres (1983, p. 10), na Idade Média,

“a morte significava, com certeza, o encerramento da vida terrestre, mas sobretudo, o

início da aventura final do destino”.

Nesse sentido, o tema da morte é encontrado desde os textos da mitologia até as

obras modernas. De fato, a percepção da finitude humana apresenta-se de formas distintas

e até antitéticas, motivadas pela variabilidade do contexto histórico-social em que se

insere.

Alguns escritores voltaram-se para a reflexão da finitude não como angústia, mas,

a partir da consciência da efemeridade da vida para aproveitar ao máximo o momento

presente, harmonizando-se, nesse cenário, ao pensamento antropocêntrico. Nesse sentido, o

lema latino carpe diem 8 influenciou poetas Barrocos que ainda se encontravam em

contradição sobre a dualidade carne/espírito, e Árcades, os quais pensaram a brevidade da

vida associada à exortação hedonista.

Manuel Maria Barbosa du Bocage, poeta português do século XVIII, no soneto

Olha, Marília, as flautas dos pastores, faz uso da temática latina do carpe diem. O eu-

lírico convida Marília a apreciar a natureza que os cerca: “Olha o Tejo a sorrir-te! Olha não

sentes / Os Zéfiros brincar por entre as flores” (BOCAGE, 1994, p. 63). E. no ambiente

pastoril, deseja que aproveitem o momento para desfrutarem o amor. Nessa perspectiva,

muitos escritores exortaram o pensamento de uma vida passageira e a necessidade de se

aproveitar o momento presente.

Na primeira metade do século XIX, a visão diante da morte adquire contornos

romantizados, e em muitos textos a morte aparece como redentora. Essa atitude é adotada

pela literatura do Romantismo, a qual estabelece a crença na morte como salvação diante

das impossibilidades da vida terrena. O romance Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774),

do escritor alemão Goethe, marca o início do Romantismo. Em razão de um amor proibido,

a personagem Werther comete suicídio e protagoniza um dos episódios centrais da obra.

destino feliz ou infeliz aguarda o homem conforme o seu modo de viver na terra, e que neste mundo já se é

possível ao homem nascer para a vida sobrenatural e nela crescer até que possa, após a morte, fixar num

estado definitivo de completa beatitude ou de felicidade eterna” (NUNES, 1979, p. 244-245). 8 O verbo carpere já mereceu muitos comentários, que geralmente levam à conclusão de que seu sentido é,

finalmente, "fruir", "gozar" (ACHCAR, 1994, p. 93).

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No Brasil, Antonio Candido (1999, p. 43) aponta Álvares de Azevedo (1831-

1851) como o possível poeta mais interessante do Romantismo: “[...] menino-prodígio que

teve tempo na vida breve de se cultivar bastante e produzir uma obra relativamente

volumosa, além de variada, publicada depois de sua morte com enorme êxito”. O apelo ao

sentimentalismo e intimismo típicos entre os escritores da época figuram-se em Álvares de

Azevedo, que, influenciado por “Shakespeare, Byron, Hoffmann, Heine e Musset”

(CANDIDO, 1999, p. 43), lança na morte o fim da angústia existencial.

O poema Se eu morresse amanhã, a exemplo, escrito dias antes da morte do

poeta, retrata a ideia da morte como escape das dores da vida: “Mas essa dôr da vida que

devora/ A ancia de glória, o dolorido afan…/ A dôr no peito emmudecêra ao menos/ Se eu

morresse amanhã!” (AZEVEDO, 1862, p. 344).

Outrossim, o escritor português Camilo Castelo Branco (1825-1890) escreveu a

novela Amor de Perdição (1862), em que também a morte aparece como redenção. O

romance passional culmina na morte das personagens que, impossibilitadas de viverem o

amor, vinculam o amor e a felicidade à morte.

Na década seguinte, o escritor brasileiro Machado de Assis marca em seu texto O

Imortal (1872) o desejo de imortalidade, ideia antagônica à dos escritores do Romantismo.

A personagem Rui de Leão, por meio de um elixir preparado por um pajé, conseguiu uma

exceção na lei da morte e pode viver para sempre. Entretanto, a expectativa antes radiante

passou a ser um martírio para o homem, o qual passou a ansiar desesperadamente pela

morte, compreendendo que ser mortal figura-se como uma dádiva, exatamente por se ter

uma vida finita.

Freud, em seu texto Caducidade (1915), traz à tona a discussão entre imortalidade

e o caráter do que é efêmero: “A qualidade de perecível comporta um valor de rareza no

tempo. As limitadas possibilidades de dele fruir tornam-no tanto mais precioso” (FREUD,

2009, p. 33).

Nesse texto, Freud relata um diálogo que teve com um jovem poeta, o qual

admirava a natureza, mas não podia sentir-se feliz em apreciá-la, pois a ideia de

efemeridade lhe recaía com grande peso. Analisava que o inverno consumiria as belas

flores, como também acontece ao homem, condenado a perecer. Freud infere que essa

preocupação pode originar duas tendências psíquicas: “Uma leva ao amargado desgosto do

mundo que o jovem poeta sentia; a outra, à rebelião contra essa pretensa fatalidade”

(FREUD, 2009, p. 34).

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Essa visão pessimista do poeta é para Freud insensata, pois o desejo de eternidade

é enganoso e a característica de efemeridade não deve levar à desvalorização. Após o

inverno, a beleza da natureza se restitui e, quanto ao homem, “No decurso da nossa

existência vemos fenecer para sempre a beleza do rosto e do corpo humanos, mas esta

fugacidade acrescenta aos seus encantos um novo” (FREUD, 2009, p. 35).

O texto Caducidade fora escrito em um período pós-guerra, momento em que as

perdas foram catastróficas e o homem sentia-se fragilizado. No entanto, Freud, ao contrário

do poeta pessimista, insiste que o valor do belo independe da sua perduração no tempo,

visto que a importância é dada pela percepção que se tem do belo e do perfeito. Analisa

que a preocupação demasiada com a finitude causa aflição e, consequentemente, acarreta a

perda do prazer pelo que é belo, pela vida.

A preocupação estabelecida pelo poeta citado por Freud corresponde à crise da

morte que se instaura a partir da segunda metade do século XIX, a qual Edgar Morin

vincula à crise da contemporaneidade. Com o individualismo consagrado pelo mundo

burguês, surge a solidão em meio ao novo ambiente urbano em que imperam técnicas e

máquinas. A inadaptação suscita angústia, e as descobertas das ciências do homem e da

natureza debilitam o indivíduo:

A ciência abre a consciência sobre abismos que se abrem uns sobre os outros, se

devoram uns aos outros. [...] A morte humana, já vácuo infinito, dilata-se em

todos os planos do cosmo, cada vez mais vazia e infinita. Está como o universo,

em expansão. Tudo remete, pois, o indivíduo solitário para uma solidão cada vez

mais miserável no vazio de um nada ilimitado (MORIN, 1988, p. 266).

Nesse contexto, a literatura reflete a crise da conjuntura do homem e a angústia de

morte impera nos textos literários e no campo filosófico. Assim, a morte é ressignificada

de diferentes formas, com variações oriundas de questões relacionadas ao contexto

histórico-social.

As imagens da morte, para o historiador Philippe Ariès, representam as atitudes

do homem diante da morte por meio de um discurso pouco direto e carregado de

expressões. O homem, a partir do século XIX, inicia uma fase em que se esfacela a tomada

de consciência sobre a finitude que tivera o homem na Idade Média e que foi sendo

rompida em meados do século XVII com o Iluminismo. Tem-se então uma atitude de

silenciamento e incompreensão cada vez maior sobre a morte:

[...] a partir do século XIX, as imagens da morte são cada vez mais raras,

desaparecendo completamente no decorrer do século XX; o silêncio que, a partir

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de então, se entende sobre a morte significa que esta rompeu seus grilhões e se

tornou uma força selvagem e incompreensível (ARIÈS, 2012, p. 152).

Na literatura infantojuvenil desse século, os contos de fada do escritor dinamarquês

Hans Christian Andersen evidenciam-se pela abordagem de temas considerados polêmicos,

como a miséria, a violência e a morte. A Pequena Vendedora de Fósforos protagoniza uma

menina pobre que morre de fome e frio em noite de um inverno rigoroso. Após fracassadas

tentativas de vender os palitos de fósforo, a personagem sucumbiu ao frio e à fome.

O texto de Andersen reflete a crise em face da morte que vive o momento. Em

consequência da problemática do capitalismo que aumenta progressivamente o

individualismo, a percepção que se propaga é a de utilidade. O homem deve produzir e seu

valor está atrelado a isso.

Na contemporaneidade, a morte figura-se como aniquilamento e a postura que

prevalece quanto à finitude é a de silenciamento dos anseios e emoções que a ela se

conectam. Em meio a essa forma de pensamento, não há sentido pensar na morte se ela é o

finar e, nada havendo depois disso, o que se prossegue é um vazio sem fim.

Ou ainda, afastar-se da morte relaciona-se à alienação em meio a uma sociedade

capitalista, em que se empreende investida em tardar o quanto mais a juventude e se

acredita na descoberta de meios técnicos-científicos que poderão proporcionar a

imortalidade. Com o avanço da ciência, há aqueles que recorrem à criogenia, pagando

fortunas para, depois de mortos, terem o corpo congelado na esperança de que possam,

futuramente, “renascer”.

Para Torres; Guedes e Torres (1983, p. 10), o homem silenciou a morte em um

contexto que “envolve em proibição, tabu e silêncio, todo o debate sobre o evento tanático,

não proporcionando ao homem meios de compreender sua morte e de controlar a angústia

por ela gerada”. Como consequência desse afastamento da morte, percebem-se os

aumentos nas taxas de depressão e suicídio. De fato, nunca se publicou tanto sobre o

assunto, entretanto, são estudos demasiadamente científicos e pouco humanos.

A mesma sociedade que se recusa a pensar na finitude do ser humano vivencia

problemas seríssimos de depressão que desencadeiam o desejo de morte voluntária em

milhares de pessoas todos os dias. De acordo com o relatório Depression and Other

Common Mental Disorders da OMS, ano 2017, a estimativa de pessoas depressivas no

mundo passa de 300 milhões em 2015, e o número continua aumentando. Aponta-se a

depressão como principal fator desencadeador de atos suicidas, sendo registradas

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aproximadamente 800 mil mortes por ano, o que faz com que o suicídio esteja entre as

vinte principais causas de morte em 2015.

Na literatura russa, a obra Crime e Castigo (1866), de Fiódor Dostoiévski,

protagoniza novas formas de representação da morte, que começaram do meio para o fim

do século XIX, e ganharam força ao longo do século XX. A obra narra a história do

estudante Ródion Ramânovich Raskólnikov, que comete um duplo assassinato. Utilizando

uma machada, golpeia friamente a cabeça da velha Alíona Ivânovn até matá-la. Como

Lisavieta chegou em mau momento e viu estendida no chão a irmã morta, Ródion a matou

também. Entretanto, o problema maior é o sentimento de culpa que recai sobre Ródion

após o ocorrido. Nesse sentido, a obra aborda questões relacionadas à morte, angústia,

moral e ética humana.

Escritores brasileiros no contexto do século XX, como Clarice Lispector e

Guimarães Rosa também discutem questões mais profundas do ser humano e

problematizam a sociedade esvaziada de valores e humanidade. Obras como Água Viva

(1973) e Grande Sertão: Veredas (1956) abordam dilemas existenciais, sentimentos

conflitantes, reflexões sobre o tempo, a vida e a morte.

Em Jerusalém, o cenário contemporâneo é marcado pela tragicidade e as

personagens enfrentam a experiência de uma existência angustiada – Ernst chega à

tentativa de suicídio; Hinnerk é movido pelo medo que a memória de guerra lhe reserva

continuamente; Mylia, uma mulher tomada pela dor que busca incessantemente uma igreja

aberta, um amparo supremo.

Outras obras de Gonçalo M. Tavares também contextualizam a morte, que é uma

das grandes inquietações do autor. Em entrevista, ele comenta: “Há algo que é uma

constante em mim: pensar muito na morte. É mais do que ter a morte presente, é uma

constante enquanto ponto de partida” (TAVARES apud LUCAS, 2013). Para Tavares, o

ato de pensar na morte deposita responsabilidade nas coisas e, de outro lado, facilita,

porque problemas antes considerados importantes tornam-se irrelevantes.

A tetralogia O Reino, como um todo, evoca a paisagem da guerra. As quatro

narrativas trazem à tona a maldade, a violência e o medo como parte da existência humana,

como enuncia o próprio autor:

Todos estes quatro livros, de certa maneira nunca estão situados no tempo e no

espaço. Mas são livros, ou no período da guerra [...] ou num período pós-guerra;

qualquer que ela seja nunca é definido. [...] Portanto, vários leitores remetem

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com o seu mundo esses acontecimentos. E, infelizmente, lamenta, digamos, o

que está nestes livros é uma reflexão sobre o medo, sobre a violência, sobre a

agressividade, como é que isso gera, não é específico de nenhum período

histórico nem de nenhum espaço concreto geográfico (TAVARES, 2013).

Um Homem: Klauss Klump é a primeira obra da série. Menor em número de

páginas, a narrativa traz o cenário de guerra e a crueldade que aí se pratica. São cenas de

ocupação militar, de estupros, de violência que é estabelecida pelo mais forte sobre o mais

vulnerável. Klaus Klump é um editor de livros que, com a invasão de forças inimigas e o

fato de sua amante ter sido violentada por um dos soldados, alia-se à organização de

resistência e luta pela vida. Já em A Máquina de Joseph Walser, segundo livro, que

também se insere em um contexto de guerra, o protagonista Joseph Walser é um operador

de máquina que se esquiva de se envolver com as questões da guerra. Um homem isolado

que choca por sua indiferença e omissão.

Jerusalém e Aprender a Rezar na Era da Técnica passam-se em um contexto

pós-guerra. Em Jerusalém há um ambiente fragmentado e doente em que vivem as

personagens, repletas de dor e loucura. Em Aprender a Rezar na Era da Técnica, narra-se

também a sociedade marcada pela guerra. Lenz Buchmann é a personagem principal,

médico, filho de um militarista, homem hostil e influente. Assim como Busbeck em

Jerusalém, Bunchmann sente-se superior, fiel à ciência e à técnica.

No contexto de Gonçalo M. Tavares, a literatura portuguesa mais recente, dentre

as várias obras e autores, pode-se citar o romance de Saramago, Intermitências da morte

(2005), o qual aborda a temática da morte e os sentimentos ambíguos dos homens que, na

tendência contemporânea, mistificam e afastam-na. O desejo de imortalidade realiza-se

quando a morte cessa suas atividades e ninguém mais morre; entretanto, o cenário torna-se

caótico, principalmente em se considerando a vida perpétua em meio à sociedade decante

de valores humanos.

Outrossim, o romance A desumanização (2014), de Valter Hugo Mãe é uma

profunda reflexão sobre a morte. O romance tem por base a morte de uma irmã gêmea,

Sigridur, e as dificuldades enfrentadas pela irmã que fica, Halla, uma criança de onze anos

que precisa lidar com as situações e sentimentos que surgem diante da morte. Halla está

solitária pela perda da irmã, enfrenta a situação dos pais, que não se recuperam do luto, e

mais as pessoas da vila, as quais acreditam que quando morre um gêmeo, sua alma passa a

habitar o corpo do irmão que está vivo e, portanto, Halla estaria abrigando a alma de

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Sigridur. Diante das adversidades, os sentimentos de tristeza e dor recaem sobre a menina,

que já não sabe bem ao certo sua identidade.

Os romances contemporâneos tratam, com frequência, a questão do ser humano,

que protagoniza situações de conflito interno, circunstâncias problemáticas, e condições

opressoras da realidade em que vive. De outro lado, os sentimentos de solidão, medo,

angústia, que prevalecem em um contexto em que o humano é cada vez mais desprovido

de humanidade. Dentre as características do homem moderno no mundo industrial, o

automatismo exaure as emoções e a disposição para se comover, dando larga margem à

insensibilidade. Conforme analisa a filósofa Olga de Sá (2013, p. 60), “o vazio das

emoções e dos sentimentos ante a dor e a morte, que caracteriza o homem das multidões,

opõe-se à capacidade de sentir, comover-se e doar-se”. Essas transformações têm reflexo

na literatura, dado que arte e sociedade são realidades que não se separam.

Nesse sentido, são inúmeras as facetas que a morte adquire, sendo inspiração para

autores de todas as épocas e lugares. Assim como também há aqueles que refletem suas

próprias mortes e evidenciam-nas em textos literários, como cita Schneider, estudioso de

psicanálise e literatura, no livro Mortes Imaginárias (2005).

Jonathan Swift, escritor das Viagens de Gulliver (1726), escreveu um poema

sombrio intitulado Versos sobre a morte do dr. Swift, no qual Schneider examina que o

poeta “imagina os comentários feitos pelos amigos antes, durante e depois de sua morte”

(SCHNEIDER, 2005, p. 16).

A morte afigura-se de diferentes maneiras, sendo para alguns autores uma

obsessão, martírio, ou ainda, desejo e deslumbramento: “Ó morte, velho capitão, é chegada

a hora! Icemos as âncoras, escreve Baudelaire. Para outros uma mulher, e além do mais,

amada: Essa ideia da morte, instalou-se definitivamente em mim como se fosse um amor,

escreve Proust” (SCHENEIDER, 2005, p. 17).

Apesar da crise da morte nas sociedades contemporâneas, a literatura não se

esquiva de abordá-la. Ao contrário, é exatamente essa crise que a literatura busca focalizar.

Agamben fala do poeta contemporâneo que deve manter fixo o olhar no seu tempo, “para

nele perceber não luzes, mas o escuro [...]. Contemporâneo é justamente aquele que sabe

ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”

(AGAMBEN, p. 2009, p. 63). Olhar para as trevas é, nesse contexto, ter uma visão

particular do todo, ter a habilidade de enxergar além das “luzes” que são fornecidas pelo

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tempo contemporâneo, ser capaz de apreender fora do que a compreensão cotidiana sugere,

e a morte, é uma das questões que ficam em meio ao escuro.

Nesse sentido, Ariès fala do discurso literário sobre a morte no decorrer do século

XX, em oposição aos “homens comuns”: “Se a literatura continuou seu discurso sobre a

morte, com a morte suja (do pós-guerra) em Sartre ou Genet, por exemplo, os homens

comuns tornaram-se mudos, comportando-se como se a morte não existisse” (ARIÈS,

2012, p. 213 – grifo nosso).

Da mesma forma que a ficção representa a vida, também a nega. A literatura, dada

sua capacidade plurissignificativa, aborda temas de relevância universal, tal qual a morte.

O espaço literário permite o registro, transfigurado e/ou representativo da realidade, muitas

vezes, experiências sobremaneira negativas. Nesse sentido, Blanchot analisa que, por meio

da arte, o artista abre caminho para a obra, e pela obra, faz uma abertura para algo

verdadeiro. É nesse espaço que as coisas invisíveis ganham visibilidade. Blanchot (1987, p.

78) explica que:

[...] no tempo de desgraça que é o nosso, este tempo em que faltam os deuses,

tempo de ausência e de exílio, a arte está justificada, porque é a intimidade dessa

desgraça, é o esforço para tornar manifesto, pela imagem, o erro do imaginário e,

em última instância, a verdade inalcançável, esquecida, que dissimula por trás

desse erro.

A literatura modaliza díspares reflexões. A morte pode ser evidenciada como

libertação e vida na posteridade; ora é assombro e horror; ora é resultante de desamparo,

violência e crueldade. Das figurações exemplificadas e de tantas outras existentes, Bauman

conclui que nenhuma forma de pensamento, conhecimento, pode levar ao entendimento do

que é a morte: “Independentemente do que tenhamos feito como preparação para a morte,

ela nos encontra despreparados” (BAUMAN, 2008, p 45).

Como único animal a ter consciência da inevitabilidade da morte, o homem

precisa enfrentar a aterrorizante tarefa de sobreviver ao fato de saber que caminha para o

fim. De outro lado, há quem perceba, como Freud, que o entendimento de que a vida é

efêmera é o que motiva a caminhada e lhe confere excelência. A literatura, por sua vez, em

sua capacidade de plurissignificação, configura todas as formas.

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CAPÍTULO II

REPRESENTAÇÕES DA MORTE EM JERUSALÉM

A literatura é sempre uma expedição à verdade.

(Franz Kafka) E os poetas desapareceram. De facto, o que alguém quis dizer, e tinha razão, foi que a poesia limpa e belíssima é inaceitável depois do que os homens fizeram a outros homens no século XX.

(Gonçalo M. Tavares em Uma viagem à Índia)

O texto literário, ao desnudar a vida de personagens, tempo e lugares fictícios,

embebe-se nas situações que estão na vida real. De fato, ao longo da história, houve

divergência quanto ao entendimento da literatura e a relação com a verdade; contanto,

grande parte das discussões culmina na visão de que não há um caráter mecanicista de

representação, mas sim, como Candido observa, uma realidade recriada pelo trabalho

artístico. Dessa forma, como discutido no capítulo anterior, essa ressignificação do mundo,

desvendamento da realidade, elo entre literatura-sociedade, fortalecem o despertar de um

pensamento reflexivo e atrelado às questões inerentes à vida humana.

Neste capítulo será analisada a representação da morte na obra Jerusalém.

Envolta pelo sentimento angustiante despertado pela guerra, o tema da morte faz-se

vivamente presente nas memórias do Holocausto e na vida problemática das personagens.

Existências carregadas de adversidades, infortúnios diários que se sobrepõem na vida de

pessoas loucas ou beirando à loucura, traumatizadas, estigmatizadas, atulhadas de dor e

desespero.

No primeiro tópico são resgatados conceitos sobre a arte da representação, no

intuito de melhor evidenciar o viés que este trabalho adota. Depois, estabelecido

inicialmente esse conceito, serão investigadas representações da morte no romance. Para

tanto, no segundo tópico, investiga-se a vida da personagem Mylia, sua angústia em

prenúncio da morte e o apelo ao transcendental. No terceiro tópico, discute-se as

estratégias de composição do texto literário, que convergem para a construção do cenário

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denso e problemático. No quarto tópico, o vazio existencial e o suicídio na vida de Ernst

Spengler passarão a ser o alvo das reflexões. Unindo os estudos da teoria literária à

filosofia, à sociologia e à psicanálise, investe-se na reflexão e análise da complexa questão

que envolve a finitude humana sob os reflexos da existência em mundo degradado.

2.1 Considerações sobre a arte da representação

Tendo em vista que este trabalho contempla algumas representações da morte em

Jerusalém, faz-se importante refletir sobre o conceito de representação, termo que suscita

muitos questionamentos pela amplitude que tem nos estudos literários. Nesse sentido,

serão levantados os primeiros conceitos de representação, que remontam às reflexões

platônicas e aristotélicas, e então, analisados conceitos de estudiosos da literatura que se

inclinaram ao entendimento das relações entre literatura e sociedade.

Já na Grécia Antiga, considerada o berço da civilização ocidental, a arte da

representação era entendida de forma paradoxal. Aristóteles e Platão, os filósofos mais

célebres desse período, percebiam-na de maneiras distintas. Apesar de ambos considerarem

a arte como imitação, Platão, discípulo de Sócrates, a censura por afastar o homem daquilo

que ele entende por verdade, considerando-a uma imitação de imagens sensíveis.

Aristóteles, no que lhe concerne, eleva a atividade do poeta e afirma que o imitar é

congênito no homem e observa a obra de arte como uma recriação da realidade.

Platão entende que a arte é uma imitação destituída de conteúdo e, em seu caráter

mimético, não deveria ser aceita por não contemplar a verdade que tão somente a filosofia

é capaz de proporcionar. Nesse sentido, o poeta produz objetos meramente aparentes e

desprovidos de existência real. Deus é apontado como o artífice natural das coisas e, em

sua criação, elas são únicas. Na obra de arte, ao se conceber um objeto, há o trabalho de

imitação do que já está criado e essa imitação instaura-se negativamente na alma do

indivíduo, podendo causar sérios danos às pessoas, já que são forjadas fantasias e,

portanto, distanciadas da verdade:

A arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é

pelo facto de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de

uma aparição. Por exemplo, dizemos que o pintor não pintará um sapateiro, um

carpinteiro, e os demais artífices, sem nada conhecer dos respectivos ofícios.

Mas nem por isso deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes, se for

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bom pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe com a

semelhança, que lhe imprimiu, de um autêntico carpinteiro (PLATÃO, 2001, p.

455).

Dessa forma, o que o artista representa não são seres reais, são representações

que, segundo a perspectiva apontada, não são capazes de educar o homem, nem de os fazer

melhores: “[...] todos os poetas são imitadores da imagem da virtude e dos restantes

assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a verdade [...]” (PLATÃO, 2001, p.

461). Sugere-se então que a arte seja substituída pela filosofia como meio educativo, a qual

pode de fato distinguir o que é real.

Para Aristóteles, mimesis não é tão somente imitação, pois o ato de imitar é

natural ao homem e lhe é comprazível. Isso o difere de outros seres viventes, pois, segundo

o filósofo, o homem é o mais imitador e, imitando, tem-se a aprendizagem das primeiras

noções. Assim como os filósofos se deleitam com o aprender, também o fazem os demais

homens.

Nesse sentido, imitam-se homens que realizam alguma ação e isso se concretiza

de diferentes meios e modos: “[...] imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando

estes elementos separada ou conjuntamente” (ARISTÓTELES, 2008, p. 103). Aponta-se a

comédia, que imita aqueles de baixa índole; e a tragédia e a epopeia, que procuram imitar

os homens de caráter elevado:

Não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que

poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a

necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem

verso ou prosa [...] - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e

outro as que poderiam suceder (ARISTÓTELES, 2008, p. 115).

A estrutura do texto em prosa ou versos não é o que distingue uma da outra; a

diferença está no que é dito, estando o historiador para os fatos ocorridos e o poeta,

incumbido de dizer das possibilidades. Conforme o pensamento de Aristóteles, a poesia é

ainda mais filosófica e séria que a história, justificando-se que este se remete ao particular,

enquanto a poesia refere-se ao universal.

O belo apresenta-se na arte, resultando do trabalho do artista que utiliza diferentes

técnicas. A mimesis, assim, não se caracteriza apenas como cópia da vida e da natureza,

mas como processo de representação e transformação. Por meio do que Aristóteles chama

de verossimilhança, a arte parte do real, mas soma-se à intervenção artística, culminando

em algo que está entre o existente e o inexistente.

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Esses são conceitos primeiros que se estabeleceram sobre a arte da representação

e, progressivamente, estenderam-se ao longo da história as discussões acerca do tema.

Muito se argumentou em prol, e em desfavor também. A literatura foi ora questionada

quanto à sua validade, utilidade e sobre a má influência que poderia exercer, ora vinculada

à funcionalidade social, em uma perspectiva na qual os textos apenas teriam validade caso

estivessem aliados ao objetivo de transformação do homem e da sociedade.

Consideradas as bases do conceito da arte de representar que reportam a

Aristóteles e Platão, e observado que há diferentes discussões ao longo da história, dá-se

ênfase, então, aos conceitos mais contemporâneos. De início, evoca-se os estudos de

Aguiar e Silva, os quais remetem às ideias aristotélicas.

O estudioso aponta para o entendimento de literatura como signo derivado do

radical littera. Significa “saber relativo à arte de escrever e ler, gramática, instrução,

erudição” (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 2). Assim, o literato era o homem que detinha o

conhecimento da gramática, que sabia compreender e escrever bem as letras e, por isso,

gozava de privilégios socioculturais.

A linguagem literária é analisada pelo professor português em termos de desvio, o

que, segundo ele, já era apontado por Aristóteles e foi ao longo da história especulado por

outros vários pesquisadores. A ideia de linguagem literária distanciada da linguagem usual

teve fundamental relevância em Aristóteles,

[...] o qual considerava o processo de estranhamento como conatural ao discurso

poético. Na Poética, Aristóteles preceitua que a elocução, sem deixar de ser

clara, não deve ser pedestre, devendo antes ser nobre e afastada do uso vulgar.

Este desvio do uso vulgar [...] é conseguido mediante o uso de vocábulos raros,

de metáforas e de tudo que se afasta do usual (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 44 –

grifos do autor).

Essa concepção da linguagem literária como um processo de transformação da

linguagem usual, ocasionando o desvio da linguagem cotidiana, já se encontrava então

postulada por Aristóteles. Nesse sentido, concebendo-se o conceito de desvio, conclamava

assim a definição do que seria a regularidade, o grau zero, a partir do qual se institui o

desvio.

Fontanier traz a ideia da língua literária como discurso figurado: “um discurso que

se afasta da expressão simples e comum” (FONTANIER apud AGUIAR E SILVA, 2007,

p. 148). Para o grupo de investigadores da Universidade de Liège, citado por Aguiar Silva

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(2007, p. 149), o grau zero seria um discurso “ingênuo, isento de artifícios e de

subentendidos”.

Inúmeros estudos buscaram consistência ao explicar o grau zero em oposição à

língua literária. Alguns autores tentaram relacionar o grau zero a outras modalidades de

linguagem, tais como a linguagem científica e matemática. Outros pensaram o desvio

como transgressão em relação às normas gramaticais da língua.

De todas as teses, Aguiar e Silva destaca a de Eugenio Coseriu como aquela que

adquire máxima pertinência e capacidade explicativa. De acordo com essa concepção, a

língua poética não pode ser interpretada como redução ou desvio, mas sim como a

potencialidade e funcionalidade máximas da língua, na qual se realizam todas as

virtualidades, motivo pelo qual “a poesia (a literatura como arte) é o lugar da plenitude

funcional da linguagem”9 (COSERIU apud AGUIAR E SILVA, 2007, p. 172 – tradução

nossa).

Diante das mudanças semânticas envolvendo a palavra literatura, Aguiar e Silva

observa que os principais conceitos que se tornaram fecundos foram aqueles que se deram

a partir da segunda metade do século XVIII: “uma arte particular, uma específica categoria

da criação artística e um conjunto de textos resultantes desta actividade criadora”

(AGUIAR E SILVA, 2007, p. 10).

Para Aguiar e Silva, o conceito de texto lírico e dramático converge

imediatamente para o conceito de texto literário e, por conseguinte, à palavra literatura. Ao

passo que ao referir-se ao conceito de narrativa, não se observa o mesmo processo, pois no

cotidiano são produzidos inúmeros textos narrativos, em todas as esferas da vida não se

pode produzir textos que não sejam marcados pela narratividade. Isto é, produzem textos

“em que contam, em que relatam sequências de eventos de que foram agentes e/ou

pacientes ou de que tiveram conhecimento como testemunhas presenciais ou como leitores

ou ouvintes de outros textos” (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 596).

Nesse sentido, o professor e crítico português aponta uma distinção entre textos

narrativos naturais, aqueles produzidos nas interações comunicativas do dia a dia, e os

textos narrativos artificiais, grupo no qual se inserem os textos narrativos literários, os

quais “são produzidos em peculiares contextos de enunciação, com uma intencionalidade

alheia àquela interação comunicativa” (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 598).

9 “la poesía (la literatura como arte) es el lugar de la plenitud funcional del lenguaje”.

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No texto narrativo literário - em que se insere o romance, assim como a epopeia e a

novela – são relatados eventos ficcionais, que são vivenciados por agentes ficcionais

estruturados em um espaço. No entanto, apesar de serem ficcionais, não nascem do nada,

mas sim, conforme Aguiar e Silva, partem e alimentam-se das vivências do romancista:

[...] o olhar do romancista sobre o mundo e sobre os homens jamais é distraído

ou gratuito, já que ele prescruta sempre por detrás dos rostos, dos gestos, dos

actos e dos hábitos, a vida secreta ou oculta dos outros, as marcas do seu

passado, as suas servidões e as suas ambições sociais, etc. Do cabedal das suas

observações e das suas experiências, hão-de nascer e alimentar-se as personagens

e as situações romanescas (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 603).

Há também o perceber da literatura como aquela que, antes de tudo, mantém em

exercício a língua, sendo ela receptiva às proposições do texto literário. Umberto Eco

aponta o objeto literário como um poder imaterial, ou seja, que não são “avaliáveis a peso,

mas que de alguma forma pesam” (ECO, 2003, p. 9).

A tradição literária envolve os textos que são produzidos com uma finalidade

diferente, não para fins práticos, como ocorre com relatórios e registros de fórmulas

científicas, mas sim, gratia sui, “por amor de si mesma – e que se leem por deleite,

elevação espiritual [...] sem que ninguém nos obrigue a fazê-lo” (ECO, 2003, p. 9).

Eco afirma não ser idealista a ponto de pensar que a literatura poderia trazer alívio

às inúmeras pessoas que vivem na miséria. Contudo, o universo dos livros poderia soar

ecos de valores àqueles que cometem atrocidades.

A atividade leitora de obras literárias obriga a um exercício de fidelidade e de

respeito. O crítico literário italiano observa que no mundo dos livros há enunciações que

permanecerão como verdade e nunca poderão ser contrapostas, análise concluída a partir

do contraste entre as proposições que são ditas na literatura e aquelas em relação ao

mundo.

Isso ocorre, a exemplo, em questionamentos que há no âmbito da religião, em que

algumas pessoas defendem a imagem de Jesus como o ideal de fé, outros contestam se

Jesus é filho de Deus, e como Eco também aponta, existem aqueles que entendem que o

Messias ainda nem veio. Contudo, no mundo literário, não há como haver contradições em

torno da proposição de que a personagem Chapeuzinho Vermelho fora devorada pelo lobo

e depois, libertada pelo caçador, ou ainda, que Sherlock Holmes fosse solteiro. Em

palavras de Eco:

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Os textos literários não somente dizem explicitamente aquilo que nunca

poderemos colocar em dúvida mas, à diferença do mundo, assinalam com

soberana autoridade aquilo que neles deve ser assumido como relevante e aquilo

que não podemos tomar como ponto de partida para interpretações livres. [...] o

mundo da literatura é tal que nos inspira a confiança de que algumas proposições

não podem ser postas em dúvida; que ele nos oferece, portanto, um modelo

imaginário tanto quanto se quiser, de verdade (ECO, 2003, p. 13, 14).

As histórias narradas podem ser capazes de comover, porque no espaço do

universo da literatura são elegidos personagens e situações como modelos de vida. Há uma

fantasia expressa no livro que estabelece total vínculo com a realidade que se vivencia na

vida real.

É por isso que se pode efetivamente comover-se pensando na morte de uma

pessoa amada, ou sentir reações físicas imaginando ter com ela uma relação erótica, e

igualmente, por processo de identificação e projeção, “[...] como aconteceu a algumas

gerações, sermos levados ao suicídio pelas desventuras de Werther” (ECO, 2003, p. 17).

A função dos textos imodificáveis é precisamente esta: “contra qualquer desejo de

mudar o destino, eles nos fazem tocar com os dedos a impossibilidade de mudá-lo. E assim

fazendo, qualquer que seja a história que estejam contando, contam também a nossa, e por

isso, nós os lemos e os amamos” (ECO, 2003, p. 21). Os contos já feitos, conforme o

teórico conclui, são bons porque “nos ensinam também a morrer. Creio que esta Educação

ao Fado e à morte é uma das principais funções da literatura” (ECO, 2003, p. 21).

Se, nas palavras de Eco, a literatura tem como uma de suas funções preparar o

homem para a morte, um dos grandes problemas existenciais da humanidade, em

Jerusalém a ficção desnuda o lado mais violento e desalentador do morrer. Traz à reflexão

uma sociedade corrompida com indivíduos estilhaçados. A representação da morte na obra

evidencia a crueldade e o mal vivos no seio da sociedade, na ocorrência da guerra e no

horror dos assassinatos. Representa o ser humano repleto de angústia, solidão e medo, o

qual se sente desamparado e vazio em meio ao mundo brutal que o cerca.

Tavares fala da ficção como uma mentira que faça pensar e elege a literatura

como a arte que mais pode ajudar a construir e modificar comportamentos: “É de todas as

artes a que pode marcar mais fundo a individualidade e a personalidade. Sem os livros que

li, seria completamente diferente” (TAVARES apud SILVA, 2004). Para ele, o escritor

tem a tarefa de encantar as pessoas, porém, tem o dever de desencantar: “Para criar

mundos que façam as pessoas pensar. Tem que ver com interrompermos a canção para se

dizer: olhem, estão aí todos divertidos mas venham cá, vejam aquela senhora que acaba de

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ser atropelada. Se os escritores não fizerem isso, quem vai fazer? Os políticos não o

fazem” (TAVARES apud SILVA, 2004).

De fato, as discussões sobre o conceito de representação vêm desde Aristóteles e

Platão, e tem cada qual seu valor. No entanto, não é possível conciliar todos os paradigmas

teóricos; por isso, tendo em vista o horizonte deste trabalho, opta-se pelo posicionamento

teórico de Antonio Candido, em que a obra, em sentido amplo, constitui um modo de

transfiguração da realidade. Nesse sentido, as considerações de Sartre e Umberto Eco

também se inclinam para esse mesmo interesse de compreender as relações entre literatura

e sociedade.

A partir desse conceito de representação – nomenclatura adotada por Aristóteles e

Platão – entende-se a importância das ciências sociais aliadas ao estudo literário, pois o

meio social e a obra de arte, nessa perspectiva, são indissociáveis e, portanto, interessam as

circunstâncias históricas de produção da obra. Candido não entende a literatura como mera

transposição do real, mas, as questões que estão na obra, por meio do discurso ficcional,

ligam-se à realidade e ajudam a construí-la. É por meio de estratégias textuais que são

próprias à literatura, que é possível recriar essa realidade e devolvê-la ao leitor. Trata-se,

portanto, de um processo de transfiguração, mais do que de representação. Conforme o

crítico literário, “o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como

significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da

estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO, 2006, p. 13).

Dessa forma, o fator social atua na organização interna da obra literária e,

portanto, é elemento que age na estrutura textual. Candido, tomando como exemplo o

romance Senhora, de José de Alencar, analisa que o assunto da obra “repousa sobre

condições sociais que é preciso compreender e indicar, a fim de penetrar no significado”

(CANDIDO, 2006, p. 14). Nesse caso, o aspeco social (a desumanização capitalista), não

aparece apenas de forma ilustrativa, mas é sugerida na composição do texto. O elemento

social é assimilado como fator de arte e contribui na construção artística. Candido sugere

que:

Quando fazemos uma análise desse tipo, podemos dizer que levamos em conta o

elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na

matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade

determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente;

mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e

não ilustrativo (CANDIDO, 2006, p. 15, 16).

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Sartre, ao abordar o conceito de literatura, assinala que, ao invés de representar, a

atividade do escritor realiza-se. Para o crítico, a representação, em uma análise negativa,

está para a poesia, a música e a pintura: “[...] antes representa do que expressa o

significado. Inversamente, como o significado é realizado, o aspecto físico da palavra se

reflete nele, e o significado funciona, por sua vez, como imagem do corpo verbal”

(SARTRE, 2004, p. 15 – grifo do autor). A significação, dessa forma, está efetivamente

relacionada à prosa. De modo contundente, Sartre entende que a literatura, especialmente

em prosa, está acima das demais manifestações artísticas, pois utiliza a linguagem como

instrumento e assim é capaz de engajar o homem:

O escritor pode dirigir o leitor e, se descreve um casebre, mostrar nele o símbolo

das injustiças sociais, provocar nossa indignação. Já o pintor é mudo: ele nos

apresenta um casebre, só isso; você pode ver nele o que quiser. Essa choupana

nunca será o símbolo da miséria; para isso seria preciso que ela fosse signo, mas

ela é coisa (SARTRE, 2004, p. 12).

Assim, a música e a pintura deixam lacunas em que cada qual vê o que deseja,

concluindo que “não se pintam significados, não se transformam significados em música”

(SARTRE, 2004, p. 12); e o poeta, ao escolher a atitude poética, considera a palavra como

coisa e não como signo, o que resulta em ambiguidade do signo, possibilitando que ele seja

“atravessado como a uma vidraça” (SARTRE, 2004, p. 13). Essa comparação entre a

literatura e as outras artes, estabelecida por Sartre, foi recebida com polêmica, uma vez que

toda credibilidade é depositada na prosa. O crítico defende o aspecto panfletário da

literatura e acredita que ela possa funcionar como um mecanismo de intervenção do real.

Nesse sentido, aponta-se uma força de intervenção secundária da literatura, por

meio do que Sartre nomeia desvendamento: “[...] o prosador é um homem que escolheu

determinado modo de ação secundária, que se poderia chamar de ação por desvendamento”

(SARTRE, 2004, p. 20). Dessa forma, segundo o crítico, pode-se evidenciar o que se

pretende encobrir e dar visibilidade ao que estava à margem: “Falar é agir; uma coisa

nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência. Nomeando a conduta

de um indivíduo, nós a revelamos a ele; ele se vê” (SARTRE, 2004, p. 20).

Quando um escritor escreve, não o faz somente para si, mas a todos que o leem.

Desvenda uma situação por seu intuito de mudá-la e, consequentemente, desvenda-a aos

outros. Para Sartre, o escritor engajado “abandonou o sonho impossível de fazer uma

pintura imparcial da Sociedade e da condição humana” (SARTRE, 2004, p. 21). É a

literatura agindo por desvendamento.

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Dessa forma, por meio da literatura, há uma ressignificação do mundo, em que o

escritor desvenda a realidade e, assim, propicia um pensamento reflexivo, na perspectiva

de que todos são responsáveis e as ações do homem incidem diretamente em um mundo,

então, inteiramente humano:

Mas desde já podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e

especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em

face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade. Ninguém pode

alegar ignorância da lei, pois existe um código e a lei é coisa escrita: a partir daí,

você é livre para infringi-la, mas sabe os riscos que corre. Do mesmo modo, a

função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-

se inocente diante dele (SARTRE, 2004, p. 21).

Antonio Candido aproxima-se dessa visão ao abordar o que ele nomeia como

literatura social. Além do aspecto da literatura trazer em si o conhecimento manifesto de

forma latente, o crítico aponta que há situações em que existe intencionalidade, envolvendo

o planejamento por parte do autor e consciência na assimilação que é feita pelo leitor.

Nesses textos, o autor “injeta as suas intenções de propaganda, ideologia, crença, revolta,

adesão etc” (CANDIDO, 1995, p. 249).

Na perspectiva do texto literário em que o autor intencionalmente assume

posicionamento diante de uma situação, para Candido, resulta em uma literatura

empenhada, o que Sartre chama de literatura engajada. O autor brasileiro exprime suas

convicções e manifesta-se criticamente: “Nestes casos a literatura satisfaz, em outro nível,

à necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade, ajudando-nos a tomar posição em

face deles” (CANDIDO, 1995, p. 249).

Para Sartre, é fundamental que a literatura engaje o homem e interfira na realidade

social. Nesse ponto, Candido difere ao afirmar que esse posicionamento é prejudicial à

produção literária, pois essa perspectiva leva à ideia de que a literatura tem validade

somente a partir de uma finalidade. E a literatura, conforme Candido, na qualidade de arte

que é, não tem nenhuma pretensão de ensinar ou dar lições de moral (aliás, uma literatura

que visasse à didática ou à moralidade perderia demasiado o seu teor artístico). Todavia, a

arte literária constitui-se como grande fonte de conhecimento e, sem pretender, acaba por

ensinar.

O plano estético, para o crítico brasileiro, é que se vincula à verdadeira produção

literária. Assim, os textos de cunho social são válidos, assim como outros, elaborados em

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termos estéticos, originando mensagens que resultam de um trabalho com a linguagem e

com a forma, por meio de uma organização literária eficaz.

Apesar da negatividade de se querer fixar na literatura a finalidade que propõe

Sartre, as obras literárias que abordam temas sociais despertam reflexões e

consequentemente mostram preocupações com questões dos direitos humanos. Segundo

Candido, tal atitude pode desnudar ao homem o sentimento de urgência que necessitam tais

questões.

A exemplo de romances que se enredaram na luta social, estão Jorge Amado, que

para Antonio Candido o fez de maneira explícita, e Graciliano Ramos, com tonalidade

social, mas implicitamente. Ambos foram eficientes e contribuíram “para incentivar os

sentimentos radicais que se generalizavam no país” (CANDIDO, 1995, p. 255). Candido

discute a atuação do meio social sobre a obra de arte, assim como questiona a influência da

obra sobre o meio. Averigua que muitos sociólogos ao longo da história entenderam a arte

como representativa da sociedade, e outros atribuíram o valor da obra a partir de um dever

de expressar a realidade. Tempos depois, novos estudos da sociologia moderna

valorizaram os estudos anteriores, no sentido de compreender que a arte é social tanto na

medida em que reflete o meio, quanto ao influenciar os indivíduos que a recebem, porém,

devendo-se esse efeito ao caráter que tem a própria obra.

Na perspectiva de elucidar a produção artística em sua relação com a sociedade,

Candido entende que o elo entre arte e sociedade é de extrema relevância: “[...] os

impulsos pessoais predominam na verdadeira obra de arte sobre quaisquer elementos

sociais a que se combinem. Mas num plano mais profundo, encontraremos sempre a

presença do meio” (CANDIDO, 2006, p. 46). Assim, os fatores sociais são entendidos

como interventores palpáveis nas artes, especialmente na literatura.

A magnitude da literatura, nessa perspectiva, é associada à sua capacidade de

tratar de temas que são universais. Ao abordar temas que vão além do momento de sua

escrita, a obra literária tem potencial de imortalizar-se por exprimir representações do

indivíduo e da sociedade, que são experimentadas por leitores em diferentes épocas e

lugares:

A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da sua relativa

intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função total

que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um momento

determinado e a um determinado lugar (CANDIDO, 2006, p. 53).

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No texto Direito à literatura, Antonio Candido discute a literatura como um bem

incompressível, fazendo parte dos bens que são essenciais à humanidade e que, portanto,

devem ser acessíveis a todos. São bens que não asseguram somente “[...] sobrevivência

física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual [...]” (CANDIDO,

1995, p. 241) e, nesse sentido, são inseridas a arte e a literatura.

Ao traçar uma análise da literatura como um direito, antes é preciso estabelecer o

que se entende como direito do homem e como isso tem se efetivado na sociedade. Nesse

sentido, percebe-se que a sociedade evoluiu de maneira esplêndida; são conquistas como a

energia atômica e o progresso industrial que, teoricamente, beneficiariam o homem e

proporcionariam melhores condições de vida. Entretanto, evidencia-se que há exorbitante

desigualdade social, e a barbárie é atrelada, contraditoriamente, ao máximo de civilização.

Há técnicas que poderiam amenizar grandes problemas, como a miséria,

entretanto, os favorecidos continuam sendo a minoria. Aumenta-se o conforto de uma

parcela e permanece à margem a outra grande parcela em situação miserável.

Essa percepção que desalenta, para Candido, tem, no entanto, um outro lado

otimista. “Se as possibilidades existem, a luta ganha maior cabimento e se torna mais

esperançosa, apesar de tudo que nosso tempo apresenta de negativo” (CANDIDO, 1995, p.

237). Destarte, para o estudioso, a percepção de que as pessoas não entendem o mal como

algo natural, semelhante ao que antes faziam, nem depositam a crença de que passar fome

seria vontade de Deus, representa mudanças que encaminham para a compreensão.

Apesar de a concretude dessa análise otimista estar bastante distante, Candido

acredita que a imagem da maldade e da miséria tem constrangido as pessoas. Assim, o fato

do sofrimento alheio ser incômodo é um indicativo de “manifestação infusa da consciência

cada vez mais generalizada de que a desigualdade é insuportável e pode ser atenuada”

(CANDIDO, 1995, p. 239).

Sendo assim, em situações em que a desigualdade social se sobressalta,

consequentemente também a fruição da literatura se estratifica, e o alcance às obras

eruditas ficam restritas a um pequeno grupo, em conjunto com outros tantos privilégios:

“[...] quanto mais igualitária for a sociedade, e quanto mais lazer proporcionar, maior

deverá ser a difusão humanizadora das obras literárias e, portanto, a possibilidade de

contribuírem para o amadurecimento de cada um” (CANDIDO, 1995, p. 259).

A literatura é um direito do homem pois apresenta-se, nessa perspectiva, como um

bem incompressível, aquele que está entre as coisas que correspondem às necessidades

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essenciais. Todo homem precisa da fantasia, de entrar em contato com alguma forma de

fabulação, seja por meio de uma canção popular, anedota ou samba carnavalesco. E,

eminentemente, está a função humanizadora, na medida que desperta no homem traços

essenciais à vida particular e em sociedade. Em palavras textuais:

Entendo aqui por humanização o processo que confirma no homem aqueles

traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do

saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a

capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da

complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve

em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensíveis

e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 1995, p. 249).

Dessa forma, aponta-se a literatura como aspecto fundamental no equilíbrio

social, exercendo um fator humanizador ao passo que, nas criações ficcionais, estão

imbuídas crenças, expressões de sentimentos, princípios, os quais são avivados no seio da

sociedade: “A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo

a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 1995, p. 243).

A obra literária, entretanto, não é, nesses termos, compreendida como uma

instrução. Sua repercussão ocorre, segundo o crítico, pela função da literatura que articula

palavras as quais são organizadas em uma estrutura que favorece a construção de sentidos;

por ser um modo de expressão que evidencia a visão de mundo dos indivíduos, e por ser

uma forma de conhecimento, mesmo como inserção inconsciente.

Para Candido, a literatura não tem um caráter mecanicista de representação.

Referenciando Sainte-Beuve, o estudioso observa que “o poeta não é uma resultante, nem

mesmo um simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e

única” (CANDIDO, 2006, p. 28). Como afirma Anita M. R. de Moraes:

O posicionamento de Candido está claro: trata-se de recuperar uma abordagem

sociológica sem incorrer no equívoco determinista e numa concepção de

mimesis como retrato imediato, que toma a obra literária como transparente

(como expressão imediata da psique do artista ou da sociedade em que vive):

trata-se de deformação, transfiguração, sendo qualquer possível efeito de verdade

devedor de uma “modificação na ordem do mundo” própria do trabalho artístico

(MORAES, 2015, p. 18 – grifo do autor).

Nesse sentido, toda realidade é transformada, porque o poeta combina e cria antes

de devolver sua obra à realidade. Candido critica a “diretriz realista, preocupado com a

liberdade de cada indivíduo face às exigências mais pragmáticas da vida social”

(PEDROSA, 1994, p. 131).

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Conforme Moraes (2015, p. 3), a reflexão de Candido sobre a representação

enquanto elaboração/transfiguração pode ser entedida da seguinte forma: “representar =

elaborar/transfigurar o real; elaborar/transfigurar o real = ampliar os domínios do espírito

humano”. O espírito aqui é entendido como as “disciplinas mentais de que seríamos,

porque humanos, dotados” (MORAES, 2015, p. 4). Assim, a capacidade de representar o

mundo que tem a literatura, possibilita um maior desenvolvimento dos recursos do espírito,

o que, consequentemente, encaminha o homem “para uma maior distância, ou folga, com

relação às suas necessidades materiais” (MORAES, 2015, p. 4).

Nessa linha de compreensão, a representação que propõe a literatura não é então

presa a uma realidade particular, mas sim aponta para o universal, incorporando à estrutura

interna do texto, os aspectos externos. Como analisa Moraes (2015, p. 15), a proposição

central de Candido é analisar os aspectos sociais associados ao “estudo da composição

literária, buscando-se, então, relações em níveis estruturais e não de superfície, seja a

superfície das obras, seja a da realidade”. Para apreender a maneira como a obra literária

representa a realidade, unem-se os estudos das estruturas textuais aos estudos das

estruturas sociais. Moraes ainda acrescenta:

É a estrutura da obra que reflete a estrutura social, não a superfície da obra que

espelha a superfície da realidade – não se trata de um retrato da realidade, mas de

algo muito mais exigente e sofisticado, uma espécie de raio-X cuja máquina

reveladora se constrói na mente do crítico à medida que se imbuir tanto de um

instrumental de análise literária quanto de modelos sociológicos adequados

(MORAES, 2015, p. 15).

Esse seria então o paradoxo que Candido defende: “externo-feito-interno”

(MORAES, 2015, p. 17); a incorporação de elementos externos na composição interna do

texto. Mas isso não significa que toda obra literária evidenciará algum aspecto da

realidade. Apesar de que para Candido o valor estético é maior quando traz elementos

externos em sua composição, o estudioso afirma que algumas obras não apresentaram essa

ligação. Moraes comenta o posicionamento de Candido:

mesmo que toda obra literária seja necessariamente e em grande medida

condicionada por fatores externos [...], algumas obras apresentam uma

composição particularmente reveladora da sociedade em que se produzem, não

todas. Assim, nem toda obra literária é dotada de uma estrutura a ser revelada

pelo crítico que se assemelha a estruturas e/ou dinâmicas sociais (MORAES,

2015, p. 17).

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O romance Jerusalém incorpora elementos da realidade externa em sua

composição. A Segunda Grande Guerra e o cenário violento da sociedade contemporânea

tornam-se elementos internos e estruturantes da narrativa. As representações da morte na

obra literária tecem relação com o mundo, notoriamente, de maneira autônoma, em que o

trabalho artístico de Tavares recria a realidade, por meio da liberdade transfiguradora que

tem o artista.

2.2 Mylia e a angústia em previsão da morte

A personagem Mylia, com um prognóstico sombrio (poucos meses de vida) busca

no transcendental uma possibilidade de “milagre”. Embora sinta muita dor e chegue a

desmaiar, alegra-se porque sente fome, e isso é uma prova de que a vontade de viver

continua sobrepujando o veredito dos médicos.

Por meio de flashbacks, rememora-se a história de Mylia, a qual se entrecruza à

vida de outras personagens que compõem o enredo, todas compartilhando da experiência

de uma vida mutilada, portadores de histórias fragmentadas e problemáticas.

Mylia é uma das protagonistas do romance. Trata-se de uma figura anti-heroica.

Esquizofrênica, vivia amedrontada pelas lembranças de Georg Rosenberg, onde fora

internada por seu esposo Theodor Busbeck: “Theodor decidiu, precisamente no dia 31 de

Dezembro, no oitavo ano em que viviam juntos, internar a sua esposa, Mylia, no piso dois

do Hospício Georg Rosenberg, o mais conceituado da cidade” (TAVARES, 2006, p. 58). A

justificativa de Busbeck era a de que Mylia tornara-se uma mulher perigosa para si mesma.

A história alinear começa anos após a saída de Mylia do hospício. Atordoada pela

solidão, a personagem é assolada por uma dor descomunal que a consome na madrugada

em que se passa a narrativa: “Quatro da manhã do dia 29 de Maio, e Mylia não consegue

dormir. A dor constante vinda do estômago, ou talvez mais de baixo [...]. O certo é que

eram quatro da manhã e ainda não descansara um minuto. Fechar os olhos quando se tem

medo de morrer?” (TAVARES, 2006, p. 207).

A representação da morte relacionada à personagem Mylia evidencia o medo

diante da possibilidade de finitude, o medo mais humano e possivelmente o mais universal.

O sentimento angustiante e dilacerante frente à morte, comuns à sociedade contemporânea,

segundo Ariès, eclodiu no início do século XIX, quando a morte se tornou motivo de

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medo. Para o filósofo, “Tudo se passa como se nem eu nem os que me são caros não

fôssemos mais mortais. Tecnicamente, admitimos que podemos morrer, fazemos seguros

de vida para preservar os nossos da miséria. Mas, realmente, no fundo de nós mesmos,

sentimo-nos não mortais” (ARIÈS, 2012, p. 100). A morte em meio a sociedade foi aos

poucos tomando uma nova forma, tornando-se longínqua, e, ao mesmo tempo, mais tensa,

dramática e inominável: “as imagens da morte traduzem as atitudes dos homens diante da

morte numa linguagem nem simples nem direta, mas cheia de artimanhas e circunlóquios”

(ARIÈS, 2012, p. 151).

A literatura, entretanto, não se desvia da morte, e por meios dos modos de

construção do texto literário, que são diferenciados, o autor lança mão de estratégias

singulares à obra-de-arte e uma visão mais profunda do que a do senso comum é

incorporada à forma total da obra. As modificações ocorrem, a exemplo, ao destruir a

sucessão temporal do romance: a história de Mylia é apresentada de forma irregular

desfazendo-se a ordem cronológica, de modo que se fundem passado, presente e futuro.

Essa alteração evidencia a vivência subjetiva do tempo, em que a consciência da

personagem a remete de forma constante às situações já ocorridas, assim como o futuro

gera forte expectativa e interfere também no momento presente. Assim, a divergência do

tempo cronológico e do tempo que se passa no interior da personagem é assinalada pela

própria estrutura do texto, que se fragmenta por completo.

O movimento alinear que faz a narrativa leva à compreensão do porquê de Mylia

estar desesperada na noite que dá início às primeiras linhas do romance, assim como

evidencia a causa da angústia que não a permite centrar-se no presente. O narrador em

terceira pessoa onisciente, intruso, após relatar o desespero de Mylia na madrugada do dia

29 de Maio, faz retrocessos no tempo para informar os acontecimentos que antecederam e

desencadearam a dor absurda que sente a personagem.

Mylia vai para o hospício quando seu marido a julga incapaz de permanecer no

meio social, e é no Georg Rosenberg que ocorrem as situações-problema que influenciam

negativamente sua vida e a colocam à beira da morte. Dentre os pacientes, ela conheceu

Ernst Spengler, homem esquizofrênico com quem se envolveu, a ponto de engravidar. O

responsável por Mylia, o esposo Busbeck, imediatamente foi convocado ao gabinete do

doutor Gomperz para ser informado do ocorrido: “Foi isto: a sua esposa Mylia e um outro

paciente. Fizeram-no. À frente de outros doentes. Há dois dias. Peço desculpa de o dizer,

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mas não me resta alternativa. Muitos viram. Vários pacientes; e dois enfermeiros que

actuaram logo. Mas já estavam há minutos” (TAVARES, 2006, p. 98-99).

Da proibida relação dentro de Georg Rosenberg, nasceu Kaas, que foi retirado da

mãe passando aos cuidados de Busbeck. Os pais internados não tinham condições de

cuidar do filho, segundo Gomperz, o médico-gestor do hospital: “[...] tanto Mylia como o

homem que lhe falei, Ernst Spengler, não têm condições, nos anos mais próximos, para

tratar de uma criança; eles é que estão a ser tratados e tão cedo não vejo como possível um

ou outro saírem daqui” (TAVARES, 2006, p, 108).

Pelo ocorrido, Mylia foi submetida a uma cirurgia de esterilidade clandestina e

malsucedida. Isso lhe causara sérios problemas e, por isso, já havia sido operada quatro

vezes, mas sem sucesso, até que os médicos deram o prognóstico ruim, determinando não

ser possível reestabelecer sua saúde:

O primeiro choque: apresentava um problema aos médicos: uma dor, estava

doente; eis um problema, uma charada orgânica. E os médicos respondiam-lhe

encolhendo os ombros, com certa tristeza mais ou menos profissional, mas sem

acções, sem propostas: isto é irresolúvel. A sua doença não se pode tratar

(TAVARES, 2006, p. 17-18 – grifos do autor).

A separação do filho, assim como a cirurgia clandestina de esterilização, foram

acontecimentos traumáticos para Mylia, ocasionando extrema angústia diante das

opressões a que fora submetida, assim como dores físicas geradas pelo processo cirúrgico

inconsistente. O medo da morte aparece, sobremaneira, no momento em que a personagem

refletia sobre a palavra essencial de sua vida: “Sentada numa cadeira desconfortável

pensava nas palavras fundamentais da sua vida. Dor, pensou, dor era uma palavra

essencial” (TAVARES, 2006, p. 7). Na verdade, enquanto há dor não há morte.

O pensamento de Mylia apresenta-se na narrativa permeado na voz do narrador. É

ele quem delega os pensamentos à personagem; nesses momentos, ambas as figuras,

narrador e personagem, se sobrepõem. Nesse caso, a fala da personagem mistura-se à do

narrador, que antes vinha contando a situação frustrante de Mylia frente aos médicos:

“Apresentara um problema aos médicos e estes devolviam-no, no mesmo estado, sem

interferir: a questão intacta. Por que tenho de morrer? (TAVARES, 2006, p. 17-18 – grifo

nosso).

Essa pergunta introduz as deliberações interiores de Mylia, que buscará a

existência de um ser supremo capaz de mitigar o sofrimento de morte. Entretanto, o fato de

não estar entre aspas, a fala conduz a um questionamento que está no interior da

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personagem, mas também pode ser interpretada como uma pergunta do narrador em tom

persuasivo, levando a refletir o percurso de Mylia e o peso de atos injustos sobre ela.

Afinal, o prognóstico de morte advém da cirurgia, que como o narrador relata, foi uma

decisão que “caiu” sobre a vida de Mylia:

Não foi uma frase, mas um facto concreto, um acontecimento, um acto que se fez

sobre, ou por cima, da sua existência [...]. Foi um acto médico simples num ano

onde as invenções tecnológicas se sucediam: não mais poderia ter filhos; haviam

arrancado uma possibilidade ao seu corpo. Como se o seu ventre tivesse desistido

do mundo, mas não; haviam decidido por ela (TAVARES, 2006, p. 162).

Assim, a morte parece ser mais uma incoerência na vida de Mylia. A pergunta

“Por que tenho de morrer?” equivaleria à questão “Por que Mylia tem de morrer?”; uma

pergunta retórica, segundo Bakhtin (1997, p. 170), a qual possui valor persuasivo e

significação sociológica: a indagação da personagem corresponde à indagação do narrador,

que traz à tona a presença do mal sobre a existência da personagem.

O mesmo ocorre neste trecho, em que Mylia, repleta de dor e amedrontada com a

iminência de morte, teme fechar os olhos e dormir: “O certo é que eram quatro da manhã e

ainda não descansara um minuto. Fechar os olhos quando se tem medo de morrer?”

(TAVARES, 2006, p. 207 – grifo nosso). Também aqui, a voz de Mylia está colada à do

narrador e, ao mesmo tempo que se compreende ser a fala de Mylia, é possível interpretar

como uma pergunta por parte do narrador, como se dissesse: “Como ela poderia dormir?”.

Para Bakhtin (1997, p. 173), esse processo é chamado de discurso direto

substituído, uma variedade muito próxima do discurso indireto-livre, mas nesse caso, a

entonação do narrador e do discurso substituído caminham na mesma direção, estando

ausente o limite específico entre a voz do narrador e o fluxo de pensamento do herói:

Quando há solidariedade total entre autor e herói nos limites de um contexto

retoricamente construído, no que concerne às apreciações e entonações, a

retórico do autor e a do herói podem eventualmente sobrepor-se uma à outra;

suas vozes, então, fundem-se e criam-se longos períodos que pertencem

simultaneamente a narrativa do autor e ao discurso interior (por vezes mesmo

exterior) do herói (BAKHTIN, 1997, p. 172).

Por meio desse recurso narrativo, a voz do narrador conduz o leitor a reflexões

mais profundas. Apesar de não deixar explícito seu julgamento acerca das situações

destacadas, é solidário com a personagem ao lançar mão de frases com tom persuasivo,

seja em sua voz em terceira pessoa, seja ao fundir em seu discurso a voz de Mylia, em

primeira pessoa, como destacado nos parágrafos anteriores.

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Além da angústia de Mylia que o narrador vinha evidenciando, um telefonema do

diretor do traumático hospício onde a personagem estivera por longos anos reavivou com

mais intensidade as péssimas lembranças. No dia que antecedeu a madrugada em que

Mylia não conseguia dormir em virtude da dor, ela recebera um telefonema do doutor

Gomperz Rulrich, fato que lhe avivou a memória e a deixou perturbada. Mylia ficou

desconcertada depois de ouvir a voz daquele que era responsável por ela ter apenas mais

alguns meses de vida. Ele “recolocara as coisas antigas em cima da mesa”:

[...] há anos não escutava aquela voz, o nojo que sentiu ao ouvir de novo o

diretor do Georg Rosenberg. [...] Todo o resto do dia foi desagradável. A voz

daquele homem permaneceu nos seus ouvidos, perturbando-a como uma

substância; quatro ou cinco vezes Mylia pôs o dedo indicador no ouvido como

que para limpar algo. “Filho-da-puta!” murmurou (TAVARES, 2006, p. 208).

Diante das péssimas perspectivas de vida, somadas às lembranças traumáticas do

hospício, o medo era o sentimento predominante em Mylia. Novaes (2007, p. 13),

apoiando-se na definição proposta pelo matemático e filósofo inglês Thomas Hobbes,

define medo como “um sentimento que nos inspira a possibilidade real de sermos afetados

por um mal real, por um mal que conhecemos pela experiência”. E acresce que ele é

reflexo da sensação de fragilidade do homem, que diante de um perigo, teme por sua vida.

A morte é normalmente compreendida como um mal e, por isso, temida pelo

homem. Os estudos sobre esse tema propostos ao longo do tempo evidenciam a inquietude

que se tem diante da possibilidade de finitude e, atualmente, é acrescida por um medo

ainda maior: “O medo do obscuro – ou melhor, o medo provocado por grandes

maquinações que jogam o homem para fora do ser sem o saber” (NOVAES, 2007, p. 14).

Ou seja, o homem da modernidade vive uma séria crise em que não se consegue visualizar

o futuro, o que leva ao declínio do ser humano que se torna incapaz de mensurar tal

decadência da sociedade.

Francis Wolff, filósofo francês, aponta que o medo é um sentimento negativo que

se vive no momento presente, mas que está engendrado em algo futuro, no que pode

acontecer, sempre conectado ao incerto e até mesmo desesperador. Citando o pensamento

dos filósofos estoicos, Wolff considera o medo como um sentimento irracional que leva a

um duplo sofrimento; se o medo é uma antecipação de que algo ruim aconteça, uma dor

potencial, é uma dor que ainda não existe e que talvez não se efetive. Assim, o medo faz

sofrer duas vezes, porque “à dor que virá, ele soma uma dor presente” (WOLFF apud

NOVAES, 2007, p. 20).

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O medo está em Mylia que se angustia por temer a morte que os médicos

declararam que chegaria em breve. E se angustia também devido às marcas de seu passado

que continuam a assombrá-la. Se, na perspectiva do pensamento estoico, o medo traz o

sofrimento de maneira dupla, no caso de Mylia há um triplo sofrimento: as lembranças do

passado tenebroso dentro de Georg Rosenberg que a atormentam, as marcas trazidas para o

presente e o medo que lhe infringia o viver, assim como o reflexo de todas as

circunstâncias, agora projetadas para o futuro, a culminar no medo da morte.

Como dito no início deste capítulo, há uma fusão dos níveis temporais na

narrativa que se decompõem. No capítulo XXI, o narrador relata o momento em que Ernst

se reencontra com Mylia na madrugada do dia 29 de maio: “Por onde tens andado? –

perguntou ela a Ernst. [...] Mas o rosto nervoso de Ernst mostrava até que ponto aqueles

anos não o haviam modificado. Tranquilizada, Mylia recordou a frase: ‘Se eu me esquecer

de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita’. Os dois abraçaram-se” (TAVARES,

2006, p. 154). No momento seguinte ao reencontro, o narrador interrompe de forma

repentina a narrativa e recua no tempo, voltando à época de Georg Rosenberg em ocasião

do nascimento do filho: “Quando o doutor Gomperz chamou Mylia ao seu escritório

segurava um caderno preto onde, por hábito, escrevia os dados essenciais da evolução dos

seus ‘hóspedes’. Nascera há duas semanas uma criança [...]” (TAVARES, 2006, p. 155).

Essa sobreposição de cenas, ora recuando, ora avançando no tempo, cria um efeito

que é como se o leitor estivesse diante de um mosaico; são partes que se misturam e tentam

formar, de alguma forma, um todo, mesmo que confuso. Nota-se que essa estratégia se

inclina à vivência da personagem, que tem elos muito fortes entre os fatos ocorridos no

passado e que interferem no momento real, assim como nas projeções do futuro. Por meio

do movimento giratório do romance – entre a vida e a morte – evidencia-se a angústia

existencial na qual Mylia se debate.

Diante dessas circunstâncias de dor, angústia e sentimento de desamparo, a

personagem teme morrer e, na angústia do pensamento de que seu eu deixará de existir,

nega a finitude e busca desesperadamente amparo no que está além, acima do humano:

Deus. Como atenta Wolff (apud NOVAES, 2007, p. 21 – grifos do autor), o medo não

existe sem a incerteza, e a morte é o incerto: “É totalmente seguro que um dia morrerei, e

absolutamente incerto quando (e onde? e como?)”. A morte une a certeza comum a todos

de sua inevitabilidade, ao mesmo tempo que envolve a extrema dúvida quanto à maneira

que se efetivará, bem como indefine o tempo e o espaço desse acontecimento.

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Apesar de Mylia ter o diagnóstico médico de poucos meses de vida, não

conseguia definir ao certo a dor que sentia: “A dor constante vinha do estômago, ou talvez

mais de baixo, de onde vem exactamente a dor larga, que não pertence a um ponto? Talvez

da parte de baixo do estômago, do ventre” (TAVARES, 2006, p. 7). A dor causava medo

porque lhe haviam alertado da impossibilidade de cura, entretanto, na angústia frente à

possibilidade de morte, Mylia confronta-se com a dor que já não consegue defini-la ao

certo, assim como sai às ruas, porque também não sabe se aquele era definitivamente o

momento de sua morte.

O título do romance, Jerusalém, aparece uma única vez na narrativa, enunciada

por Mylia. É ela quem diz o versículo bíblico: “Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que

seque a minha mão direita” (TAVARES, 2006, p. 154). A referência ao contexto bíblico

refere-se à necessidade de transcendência da personagem. O povo de Jerusalém, exilado de

suas terras, mantém a promessa de não esquecimento de sua pátria; Mylia mantém relação

com Georg Rosenberg, o lugar do sofrimento. A personagem não pode esquivar-se da

memória, e luta pela sua sobrevivência, mesmo rompida pelos acontecimentos traumáticos.

O Hospício é rememorado por Mylia pelas marcas negativas, uma “heresia que

lhe parecia, ao mesmo tempo, uma profecia negra e o único destino que valeria a pena

combater” (TAVARES, 2006, p. 181). Jerusalém, no contexto bíblico, é ansiada pelo seu

povo que se submeteria ao castigo caso a esquecesse; Mylia anseia superar o lugar

ambivalente em que gerara um filho e em que a fizeram uma cirurgia de esterilidade sem o

seu consentimento, o que lhe gerou uma doença e dores profundas que a acompanharam

sempre.

A personagem reflete: “Georg Rosenberg terminou há muito, a mão não secou

[...]”; “A minha mão direita não secou, pensava por vezes, ao mesmo tempo que acariciava

o próprio pescoço” (TAVARES, 2006, p. 222 e 224). De fato, parecia não ser possível

livrar-se totalmente da profecia, já que a doença adquirida durante seu internamento fazia

doer como se uma forma de não a deixar esquecida. Entretanto, Mylia sobreviveu e

“habituou-se ao modo de se ligar àquela dor e à doença desenvolvida no Hospício Georg

Rosenberg”.

Jerusalém é metáfora do hospício, ficando evidente quando Mylia murmura, em

um segundo momento, para si própria: “Se eu me esquecer de ti, Georg Rosenberg, que

seque a minha mão direita” (TAVARES, 2006, p. 181). O texto bíblico remete ao povo de

Israel exilado de suas terras e à promessa do não esquecimento de Jerusalém, para eles,

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uma terra sagrada. Não se esquecer de Jerusalém é não esquecer da própria história, assim

como era para Mylia ao relembrar os anos que passara no hospital Georg Rosenberg.

O vocábulo Jerusalém, inserido no contexto bíblico, evoca a ideia de memória.

Em Georg Rosenberg, os loucos aprendiam os métodos e a disciplina conforme

direcionava o autoritário Gomperz; não deveriam esquecê-los, na verdade, não poderiam,

mesmo que quisessem: “Mesmo que queira o seu corpo não poderá esquecer a passagem

por Georg Rosenberg” (TAVARES, 2006, p. 180). Isso foi explicado a Mylia por um dos

médicos que ela procurou na busca de resolução de sua dor.

De outro lado, também não era possível esquecer a vida anterior ao internamento,

que se fazia presente sempre que o Correio entregava cartas em Georg Rosenberg. A

lembrança da vida anterior à morada no hospício vinha à tona como uma advertência: “não

te esqueças!”:

Uma carta era o instrumento ideal para interromper a ordem e a limpeza do

Georg Rosenberg; como um aceno de mão do exterior cada carta tornava-se

num recuo do louco em direcção à sua vida passada; mesmo que na carta se

falasse do futuro o que estava em jogo era um processo de memória: lembra-te

que já estiveste cá fora; ou talvez melhor: não te esqueças (TAVARES, 2006,

p. 160).

De fato, Mylia, após ter saído do Hospício, não conseguia desvencilhar-se das

lembranças de quando estivera internada. Herdara uma dor que não lhe permitia o

esquecimento. Após a cirurgia de esterilidade, sentindo dores, Mylia procurou um médico

que lhe esclareceu a doença. “O doutor Gothjens fizera já o seu diagnóstico: a operação

para ‘fechar os filhos’, como Mylia dizia, tinha corrido mal. Atingira o objetivo – Mylia

era agora estéril – mas deixara outras mazelas” (TAVARES, 2006, p. 180 – 181 – grifo do

autor).

Da vivência no hospício, a personagem herdara a doença que lhe causaria

prematuramente a morte. No prognóstico médico, a morte era certa e aconteceria em pouco

tempo. Assim, Mylia lutava para que isso não viesse a acontecer, e sua única arma nessa

batalha foi o lançar-se em uma busca angustiada por refúgio em um ser supremo.

Sobre a angústia diante da morte, Morin aponta que, quando o homem se engaja

com as atividades cotidianas, aderindo-se ao presente, afasta o que não é presente e,

aderindo à vida cotidiana, ausenta-se a consciência da morte: “É por isso que a vida

quotidiana é pouco marcada pela morte: é uma vida de hábitos, de trabalho, de atividade. A

morte só regressa quando o eu a olha ou se olha a si próprio” (MORIN, 1988, p. 60).

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Considerando essa perspectiva, a personagem Mylia não pode viver cega diante

da realidade inexorável da morte. Primeiro, ela não pode se engajar com o presente, pois os

traumas do passado paralisam-na e a vitalidade se esvanece em meio à existência que não

consegue se concretizar. Não consegue porque, sendo “louca”, tem suas atividades

limitadas e, ao ser internada em Georg Rosenberg, até seus pensamentos eram controlados.

Segundo Busbeck, “Onde Mylia não era saudável [...], onde ela não era normal era na

cabeça, nas vontades. Ela era doente da cabeça” (TAVARES, 2006, p. 57). No hospício,

havia como que um “arredondamento da existência”:

[...] o que era excessivo transformava-se em alvo médico: tentava eliminar-se

essa coisa, pôr de fora, colocá-la para além desse arredondamento. Como se

cada existência, exactamente como um compartimento, tivesse um caixote do

lixo, um sítio específico, com formas adequadas, para onde se deveriam atirar os

hábitos, acções e, se possível, os pensamentos que não interassavam. Neste caso

que não interessavam a quem vigiava: os médicos (TAVARES, 2006, p. 92-93 –

grifo do autor).

O médico Gomperz, diretor do hospício, questionava sobre o que deve pensar um

homem moral: “Para onde deve dirigir o pensamento para não ser considerado louco?”

(TAVARES, 2007, p. 95). O narrador onisciente intruso, que tudo sabe e não mantém

neutralidade diante dos fatos, tece um comentário a respeito da reflexão de Gomperz e

afirma que a questão sobre o que se deve pensar é um problema que não se restringe

somente aos “loucos”, mas trata-se de “um problema moral, básico, que dizia respeito a

todos os homens”.

A interferência do narrador, que comenta a atitude do gestor de Rosenberg, o

coloca do lado de fora da ação, analisando-a e inclusive, criticando a postura da

personagem: “Não bastava responder moralmente à pergunta? Faltava responder com a

mesma consistência à questão: que pensamento devo ter?” (TAVARES, 2006, p. 95).

O narrador não oscila em deixar claro sua indignação, como se percebe neste

trecho o uso da palavra “atrevia”, para referir-se a atitude do médico: “Gomperz por vezes

atrevia-se mesmo a colocar a um paciente a seguinte questão? sabes em que é que deves

pensar? (TAVARES, 2006, p. 94 – grifo nosso). E completa por evidenciar que Gomperz

associava a loucura à imoralidade, embora jamais deixasse isso transparecer: “O doutor

Gomperz possuía, assim, da loucura – embora não se atravesse a expressá-lo – uma

imagem associada à imoralidade: louco é o que age imoralmente e louco ainda é o que

agindo moralmente pensa de modo imoral” (TAVARES, 2006, p. 95).

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Por essa definição, o próprio Gomperz, diretor-gestor do Hospício, é um “louco”.

A forma como lida com os pacientes em Georg Rosenberg, a cirurgia clandestina a que

submetera Mylia, o dinheiro pago a Busbeck como forma de silenciar o escândalo do ato

sexual entre Mylia e Ernst, são atitudes nas quais ele agiu de modo imoral, contrário à

conduta de respeito ao ser humano e à vida.

Assim, as atitudes “insanas” do imoral Gomperz causam sérios danos aos

pacientes que ele manipula no hospício sob sua gestão. Além do instinto de aceitação

treinado no Georg Rosenberg, Mylia, depois da relação proibida com Ernst, teve uma

perseguição extra motivada por esse ato. A cirurgia de esterilidade que lhe fizeram

forçadamente, a negação de cuidar do próprio filho, feriram-na fisicamente, por uma

cirurgia clandestina, e moralmente, por anularem seus direitos: “À mãe tinham sido

retirados todos os direitos, incluindo, como é evidente, aquele que se refere à educação do

filho; e assim, mal a criança nasceu, foi entregue à família Busbeck” (TAVARES, 2006, p.

143).

Ademais, o distanciamento do filho, imposto logo após seu nascimento, não pode

ser alterado quando Mylia teve a oportunidade de estar com ele, porque Mylia “não sentia

muito pelo filho, afastara-se emocionalmente: quem é ele para mim?, roubaram-mo! Kaas

é um nome bonito, mas não tinha orgulho dele” (TAVARES, 2006, p. 211).

Nesse sentido, mesmo fora do hospício, Mylia não consegue reestabelecer uma

vida habitual, pois as marcas traumáticas são profundas e impedem-na de viver o presente.

A lembrança do rosto de Gomperz a atormentava; no corpo, a dor, e na mente, o aviso do

médico: “Mesmo que queira o seu corpo não poderá esquecer a passagem por Georg

Rosenberg” (TAVARES, 2006, p. 180).

Todas essas circunstâncias da vida de Mylia culminam na angústia extrema que

ocorre na madrugada principal do romance. A dor intensa e o medo de morrer deixam-na

desesperada. Para Heidegger (2005a, p. 249), a angústia nascida diante do temor da morte

é fundamental para a apreensão de uma existência totalitária, inclusive porque o homem

como ser-no-mundo “já está sempre em decadência”, é um ser para a morte. Essa lucidez

que se tem da finitude é o que clarifica o viver em seu sentido mais verdadeiro, visto que,

diante da consciência de sua decadência, o homem resgata o sentido de ser: “Pode-se,

portanto, determinar a cotidianidade mediana da presença como ser-no-mundo aberto na

decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao ‘mundo e em seu ser-com

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os outros, está em jogo o seu poder mais próprio” (HEIDEGGER, 2005a, p. 252 – grifos

do autor).

Nesse sentido, a angústia singulariza o homem e dá abertura à presença. Presença

pode ser entendida como o modo de ser, ou seja, o ente que está em jogo e que se define de

acordo com as possibilidades e escolhas. Essa abertura só é dada à presença de forma

originária por meio da angústia, que é pressuposta para a instauração do ser-para-a-morte,

porque ao angustiar-se com o seu próprio estar no mundo, a presença é retirada do

impessoal, isto é, do cotidiano, e passa a agir como ser livre para as possibilidades

existenciárias.

Assim, a angústia que evidencia ao homem que ele é um ser em decadência é a

mesma que o retira dessa decadência, ao fazê-lo enxergar que, lançado no mundo, deve

fazer suas próprias escolhas. A morte, o ser-para-o-fim, é o que possibilita o ser-todo da

presença:

a angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre para a

liberdade de escolher e acolher a si mesma. A angústia arrasta a presença para o

ser-livre para... (propensio in...), para a propriedade de ser enquanto

possibilidade de ser aquilo que já é sempre. A presença como ser-no-mundo

entrega-se, ao mesmo tempo, à responsabilidade desse ser (HEIDEGGER,

2005a, p. 254 – grifos do autor).

Na perspectiva de que angustiar-se diante da possibilidade de ser-para-a-morte

firma-se como imperativo de uma vivência própria e original, novamente a personagem

Mylia está em desacordo e evidencia como sua existência é degradada e sua presença não

consegue escapar do que Heidegger chama de uma vida decadente. A presença constitui-se

das possibilidades e escolhas do ente e, na consciência de morte, o homem pode viver de

maneira autêntica. Entretanto, considerada louca, Mylia não consegue tecer suas próprias

escolhas.

Ao sair do Hospício, nota-se a tentativa da personagem em assumir o controle de

sua existência. Acreditando ter pouco tempo de vida, não gastava suas forças e seu tempo

executando ações que tinham pouca relevância: “Mylia ia fazer quarenta anos, já não se

investia em acções somente para provocar. E estava doente: decidira concentrar a energia

que lhe restava: qualquer acção dirigia-se única e exclusivamente para si própria”

(TAVARES, 2006, p. 12). Calculava seus atos de modo a não desperdiçar suas forças.

Concluía que devia se concentrar no essencial:

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Mylia era uma mulher magra, mas forte. Não utilizava seus dedos para ninharias.

(Muitas vezes repetia a frase: não utilizar os dedos para ninharias). [...] Os dedos

devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de

coincidir com o essencial, com o que altera de alto a baixo (TAVARES, 2006, p.

8).

O fato de estar doente, entretanto, tornava a doença o que havia de essencial na vida

de Mylia. Era com o que ela tinha que se preocupar, com a dor, palavra essencial: “Estar

doente é ter dado um passo mau, um passo diabólico, murmurou Mylia. Uma doença que

altera de alto a baixo” (TAVARES, 2006, p. 8). A personagem reflete que não há como

superar a doença, que já estava emaranhada em seu corpo: “A doença já não é um lobo que

eu possa assustar com algo mais forte. Não é o lobo assustável, já não se separa de mim”

(TAVARES, 2006, p. 10).

Há o medo diante da morte, a consciência de ter apenas um ou dois anos de vida,

prazo para a doença consumir o corpo de Mylia, conforme indicaram os médicos. Assim,

mesmo diante dos perigos que a madrugada oferecia, ela não se amedrontava, pois se a

perspectiva de morte era assustadora, essa mesma perspectiva também a impulsionava a

não temer aquela zona má, como lhe precaveu um homem que lhe cruzou o caminho:

“Mylia sentiu vontade de rir em frente ao bom homem. Zona má porque perigosa! Ela que

vem com a doença, uma doença que já está dentro [...]” (TAVARES, 2006, p. 10).

Enquanto Mylia agitava-se com o desejo de urinar em pé junto à parede da igreja,

o que lhe conferiria uma imagem de virilidade, a igreja continuava silenciosa à sua frente:

“a imagem vertical, humana no sentido mais biológico, de um homem em pé, segurando o

pênis e urinando [...]” (TAVARES, 2006, p. 12). Mylia estava assustada e temia o olhar

dos outros, e isso a inibiu de urinar em pé e lhe preocupou que o dia iria amanhecer e ela se

sentiria humilhada, fraca, diante dos outros: “[...] todos perceberiam que ela estivera à

procura de algo e nada encontrara” (TAVARES, 2006, p. 14). Essa talvez seja a tentativa

mais próxima, mas também a mais patética, de a personagem se colocar diante da morte

em termos heideggerianos.

Assim, a personagem é representativa da figura humana marcada por uma

consciência trágica. A angústia de Mylia diante da morte se configura como consciência de

que a morte faz parte de sua existência, entretanto, afasta-se da angústia apontada por

Heidegger, ao passo que ela não pode viver de maneira totalitária o espaço que

compreende sua vida enquanto ser-no-mundo, pois toda sua experiência é ligada à dor e

sob medicamentos, ela e os demais “loucos” de Georg Rosenberg tornam-se marionetes em

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mãos do autoritário médico Gomperz e seus funcionários. A relação da personagem com a

morte, por mais que se faça evidente, está permeada pela noção de afastamento do

cotidiano, concretizada no medo. O passado tenebroso é demasiadamente traumático e

perturbador para Mylia.

2.2.1 Vida/Morte e o transcendental

São vastas as discussões que envolvem o antagonismo vida/ morte. As diversas

áreas interessam-se pela busca de compreensão da morte, evento inerente à vida, mas que

causa inquietação na maioria das pessoas. Os cientistas de todos os tempos ocuparam-se –

ou pelo menos desejaram – com experimentos na tentativa de encontrar uma fórmula capaz

de oferecer a imortalidade. Os filósofos, os poetas, empenham-se na complexa tarefa de

refletir sobre o sentimento humano diante da finitude. As religiões falam do amparo do que

está além, na vida pós-morte, no paraíso, inferno; respostas e soluções advindas do sobre

humano.

Em tempos em que se podia morrer em casa, com o amparo da família, a morte

era aceita com mais naturalidade. O moribundo passava os últimos dias em meio às

pessoas com quem sempre convivera, e quando de sua morte, as crianças estavam

presentes nos funerais, o respeito simbolizado na vestimenta de cor preta para indicar o

luto, todas circunstâncias que caracterizavam a morte como algo real e pertencente à

própria vida.

De outro lado, os tempos modernos, a pressa inquietante em que vive a sociedade,

distancia-se do morrer. Os hospitais isolam os moribundos, as famílias vivem ocupadas

demais para cuidar do doente, às crianças são inventadas histórias para aliviarem o

sofrimento da perda de um ente querido e não causar nenhum tipo de trauma. Falar de

morte tornou-se algo feio e vergonhoso. O que protagoniza é a busca pela juventude,

virilidade, prolongamento de uma existência que não deve ser amargurada pela consciência

de que se morre. Nesse sentido, a morte na atualidade é encoberta e causa infortúnio aquele

que fala sobre a finitude. Poucos querem refletir sobre o processo que é natural a todo

homem, e a medicina avança na busca pela beleza. A individualidade que impera é

assustadora e, em meio à solidão da sociedade valorativa, morrer é algo triste e solitário.

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A personagem Mylia protagoniza a quebra de esperança que se vivencia na

sociedade moderna. A vida no hospício é marcada pelas privações impostas pelo

autoritário doutor Gomperz. Anos depois, fora do ambiente hostil, o mundo lhe parece

sobremaneira devastador e cruel. Diante dos traumas que aterrorizam a memória de Mylia,

ela se vê incapaz de superar a dor física e existencial, sozinha e fragilizada pelo que fora

submetida no hospício.

Assim, solitária, doente, angustiada, Mylia busca uma igreja que possa abrigá-la,

como se algo de protetor pudesse ser encontrado e amenizaria sua angústia: “Concentrada

a dor nesse sítio largo que não era um ponto – entre o baixo estômago e o ventre – Mylia

estava na rua à procura de uma igreja” (TAVARES, 2006, p. 8). Há uma busca por um

amparo não encontrado no mundo que a cerca, o medo da realidade selvagem, ao mesmo

tempo esvaziada de humanidade e repleta de maldade, evidenciados tanto na experiência

de Mylia como na vida das outras personagens, e no pano de fundo que rememora o

cenário de guerra.

No capítulo XXIII, Mylia e Ernst fugiram do hospício e passearam pelas ruas. O

narrador em terceira pessoa, onisciente, evidencia a pressa e a distração das pessoas; na

realidade, os estranhos não eram os “loucos” fugitivos, eram aqueles homens e aquelas

mulheres absortos e alienados: “De manhã, em qualquer ponto da cidade, a estranheza e os

seus defeitos diluíam-se; com pressa, atrasadas, as pessoas passariam, sem qualquer

sobressalto, ao lado de um dragão: bom dia, talvez dissessem, distraídas, ao mostro”

(TAVARES, 2006, p. 169).

Assim, a busca pelo transcendental se configura como um refúgio para a

personagem, que naquela madrugada, anseia libertar-se de toda necessidade de

racionalizar: “Ela já não quer estar a sós com Ernst, não quer recordar os tempos do

Hospício Georg Rosenberg, não quer conversas sobre o passado, não quer que Ernst lhe

pergunte pelo filho, não quer pensar no filho [...]” (TAVARES, 2006, p. 222). Todas essas

lembranças são perturbadoras e a lançam em profundo sentimento de angústia, por isso, a

tentativa de adentrar uma igreja a todo custo. É o desejo de lançar-se, em uma atitude

desesperada, na abertura para o transcendente, como o último recurso.

Segundo dicionário da Filosofia (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2008, p. 270), a

palavra transcendência/transcendente vem “(do lat. transcendere: ultrapassar, superar). [...]

Que está além do conhecimento, além da possibilidade da experiência, que é exterior ao

mundo da experiência”. Já o transcendental, segundo o mesmo dicionário (JAPIASSÚ;

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70

MARCONDES, 2008, p. 270), origina-se “(do lat. medieval transcendentalis)”. Um dos

significados associa-se à escolástica e designa “o ser, o verdadeiro, o bem e o belo”,

categorias que se sobrepunham às categorias Aristotélicas (substância ou essência, a

quantidade, a qualidade, a relação, o tempo, o lugar, a situação, a ação, a paixão e a

possessão). E, por segundo, liga-se à filosofia moderna, em que Kant designa um novo

entendimento do vocábulo, distanciando-se do sentido ontológico: “[...] trata-se do ponto

de vista que considera as condições de possibilidade de todo conhecimento”. Nesse

sentido, transcendental seria a condição a priori que possibilita o conhecimento, ocupando-

se menos do objeto e mais da condição a priori da possibilidade da coisa.

Na busca de compreensão do que ocorre com Mylia, o transcendental aqui

entendido se aproxima do ponto de vista dado pelo enfoque medieval. São Tomás de

Aquino, principal nome da Filosofia Escolástica, valeu-se da filosofia de Aristóteles em

seus estudos que se encaminham para a relação da transcendência e a figura divina, mas

sem abandonar o fio condutor entre razão e fé. Heidegger e Sartre são exemplos do

existencialismo ateu e defendem a visão de que o homem é o único responsável por si

próprio. A Escolástica é representativa da filosofia cristã, na qual os pensadores utilizam a

razão e a filosofia para defender as verdades reveladas.

Para São Tomás (1985, p. 12), “O fim do homem é o aperfeiçoamento de sua

natureza, o que somente pode cumprir-se em Deus. A finalidade última das ações humanas

transcenderia, portanto, ao próprio homem, cuja vontade, mesmo que ele não o saiba, leva-

o a dirigir-se ao ser supremo”. A visão de um Deus que está acima da vida humana teve

seus autos e baixos ao longo da história. Santo Tomás viveu e atuou no século XIII e,

certamente, exerce influência no pensamento contemporâneo. Entretanto, é perceptível que

o mundo sagrado, de certa forma, nos dias atuais tem menos presença, já que os meios

científicos e industriais proclamaram seu poder quase que absoluto. Rubem Alves, em seu

livro O que é Religião, observava essa questão:

Desapareceu a religião? De forma alguma. Ela permanece e frequentemente

exibe uma vitalidade que se julgava extinta. Mas não se pode negar que ela já

não pode freqüentar aqueles lugares que um dia lhe pertenceram: foi expulsa dos

centros do saber científico e das câmaras onde se tomam as decisões que

concretamente determinam nossas vidas (ALVES, 1984, p. 9).

Trata-se de uma análise que vem a calhar com o que se vivencia na sociedade

atual. De fato, o poder da intervenção divina, do transcendental, cedeu espaço às técnicas

inovadoras da ciência e da tecnologia. Rubem Alves (1984, p. 11) ainda postula que,

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embora se perceba esse distanciamento do religioso, “quando a dor bate à porta e se

esgotam os recursos da técnica que nas pessoas acordam os videntes, os exorcistas, os

mágicos, os curadores, os benzedores, os sacerdotes, os profetas e poetas, aquele que reza e

suplica, sem saber direito a quem”.

Em Mylia, contempla-se esse cenário ilustrado por Rubem Alves, em que, na

ausência de possibilidade de resolver a questão da intensa dor que sente, no desamparo e

solidão em que vive, resta à personagem recorrer a busca de uma igreja aberta e que a

acolha, a ideia de uma força superior à humana que possa amparar-lhe. O que, de certa

forma, também é distanciamento da morte conforme Heidegger, na negação de Mylia em

ser um ser-para-a-morte.

São Tomás de Aquino entende que o Estado deve ser concebido como uma lei

natural, que promoveria e asseguraria o bem comum, ao passo que a igreja, a lei divina,

“guiaria o homem à consecução de seu fim sobrenatural, enquanto alma imortal” (TOMÁS

DE AQUINO et al, 1985, p. 12). Na sociedade em que habita a personagem Mylia, não há

a menor garantia das leis humanas, que deveriam ser instituídas pelo homem visando à

utilidade comum. A única lei que resta a Mylia é a lei divina, por isso sua busca

angustiante por uma igreja que esteja aberta:

A igreja seria uma instituição dotada fundamentalmente de fins sobrenaturais.

Assim, o Estado não precisaria se subordinar à igreja, como se ela fosse um

Estado superior. A subordinação do Estado à igreja deveria limitar-se aos

vínculos de subordinação existentes entre a ordem natural e a ordem

sobrenatural, na medida em que esta aperfeiçoaria a primeira (TOMÁS DE

AQUINO et al, 1985, p. 12).

Em Jerusalém, o cenário é caótico e o que se evidencia é um processo de

desumanização, na qual a individualidade, a solidão e a maldade são constantes. Diante da

desesperança de uma existência problemática, Mylia recorre ao divino, ao Absoluto:

“Aquele ruído no centro do corpo, no miolo. Estar doente era uma forma de exercitar a

resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer. Mylia murmurou:

a igreja está fechada à noite” (TAVARES, 2006, p. 7).

A partir do arsenal psicanalítico, Freud tenta explicar as origens psicológicas da

religião. Embora tenha crescido em uma comunidade de judeus permeada de crenças

religiosas, na qual o pai usava uma bíblia para ensiná-lo a ler, tornou-se ateu fortemente

influenciado pelo espírito cientificista da época. Logo, o psicanalista compreende a religião

como ilusória porque é indemonstrável, como uma mera expressão e simbolização de

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carências afetivas. Para o médico vienense, não há uma inteligência que está além, fora do

universo e sobrenatural, mas sim, uma que atrela a religião à uma significativa invenção

psíquica de uma cultura: “A religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade.

Como a neurose obsessiva das crianças ela surgiu do complexo de Édipo, do

relacionamento com o pai” (FREUD, 2010a, p. 109).

Assim como na infância o homem se sente desamparado e busca a figura do pai

que se mostra ao mesmo tempo protetor e temeroso, quando adulto anseia por esse núcleo

paterno a ser encontrado na figura divina, um pai agora mais poderoso: “Os deuses

conservam a sua tripla tarefa: afastar os pavores da natureza, reconciliar os homens com a

crueldade do destino, em especial como ela se mostra na morte, e recompensá-los pelos

sofrimentos e privações que a convivência na cultura lhes impõe” (FREUD, 2010a, p. 59).

Nesse sentido, a cultura cria as ideias religiosas. De um lado, as regras

possibilitam ao homem a convivência, pois o homem precisa das abolições impostas pela

cultura e, segundo Freud, apenas um tirano, um ditador, poderia contentar-se

irrestritamente com as abolições culturais “e mesmo ele teria todas as razões para desejar

que os outros respeitassem pelo menos um dos mandamentos da cultura: Não matarás”

(FREUD, 2010a, p. 53-54). No entanto, sob uma segunda perspectiva, o estado de natureza

apresenta-se como implacável; apesar de não exigir que haja refreamento dos impulsos,

condiciona o homem a situações que fogem ao seu controle, como o frio, a tempestade, a

morte: “Com tais forças, a natureza se subleva contra nós, imponente, cruel e implacável,

colocando-nos outra vez diante dos olhos a nossa fraqueza e o nosso desamparo, de que

pensávamos ter escapado graças ao trabalho da cultura” (FREUD, 2010a, p. 55).

As ideias religiosas surgem então como amparo para a vida que se revela, segundo

o pensamento freudiano, difícil de suportar, como defesa do poder elevado e opressor da

natureza, além de trazer respostas à curiosidade humana:

Cria-se assim um patrimônio de ideias, nascido da necessidade de tornar

suportável o desamparo humano e construído com o material de lembranças

relativas ao desamparo da própria infância e da infância do gênero humano. É

claramente reconhecível que esse patrimônio protege os homens em dois

sentidos: dos perigos da natureza e do destino, e dos danos causados pela própria

sociedade humana (FREUD, 2010a, p. 60-61).

Por meio das crenças, do patrimônio de ideias que foram elaboradas, como

observa o pai da psicanálise, o desamparo humano ganha sustentação no sobrenatural, no

que está além e acima de todas as coisas. Assim, o homem repleto de anseios e medos

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consegue ter alívio, “sente-se em casa em meio a coisas inquietantes e pode elaborar

psiquicamente a sua angústia sem sentido. Talvez ele ainda esteja indefeso, mas não está

mais desamparadamente paralisado” (FREUD, 2010a, p. 57).

Mylia precisava de uma igreja. Buscava algo que atenuasse os horrores que ela

sentia em seu corpo e em sua memória. Para Busbeck, ser saudável precisava também da

normalidade espiritual: “Fisicamente, mentalmente e espiritualmente. Estas três categorias

eram, aliás, para Theodor uma espécie de pontos cardeais indispensáveis à existência, e,

em particular, à existência com saúde” (TAVARES, 2006, p. 55). Nesse aspecto, ele

diferenciava-se de outros médicos ao falar de Deus como um objetivo indispensável,

estando no campo da ciência.

A normalidade espiritual definida por Busbeck, assim como na definição de

Freud, remete à imagem de uma criança e a busca pelo objeto ausente: “falta algo ao

homem normal, ao homem dito saudável, e ele – como qualquer criança – procura

encontrar o que lhe falta, principalmente porque esta sensação confunde-se com a sensação

de roubo: alguém ou algo me levou uma parte – parte, continuemos a chamar-lhe assim,

espiritual” (TAVARES, 2006, p. 53). Assim, se paro o médico, o homem saudável quer

encontrar Deus, parece então que o ato de Mylia buscar desesperadamente uma igreja

aberta na madrugada revela seu despertar da loucura, pois segundo Busbeck: “um homem

que não procure Deus é louco” (TAVARES, 2006, p. 56). No momento em que ela

consegue entrar na igreja, há a possibilidade de que ela assuma a normalidade que lhe

faltava: a espiritual.

Para Wolff, a crença, religiosa ou popular, é também uma forma de negação da

morte, um remédio universal. Mylia, sem perspectiva de auxílio que possa vir de algo que

seja humano, busca o transcendental, exatamente o remédio universal contra o medo da

morte: “[...] quanto mais medo da morte tivermos, mais acreditaremos na imortalidade”

(WOLFF apud NOVAES, 2007, p. 25).

Mylia tinha consigo um crucifixo, no qual se apoiava nos momentos mais

complexos, como se ao tocá-lo ganhasse uma proteção, um refúgio: “Quando a sentia nos

dedos (a cruz) isolava-se, de imediato, mesmo que rodeada de homens e mulheres

barulhentos que a puxavam: para não a deixarem ‘ir’. Mas ela ‘ia” (TAVARES, 2006, p.

164 – grifos do autor). Ficava imersa em sua crença. A ideia do divino vem ao encontro da

busca do homem pela imortalidade, ofertando conforto para o temor da finitude que se

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instaura diante da iminência de morte. Por meio da crença no sagrado, na vida após a

morte, a fé ampara a angústia diante do desconhecido.

Torres; Guedes e Torres procuram compreender o porquê de a morte ser tão

conflitante para o homem se é algo natural de sua existência. E apontam que, em termos

biológicos, o homem não é configurado como uma existência para a morte, portanto, é

normal que se angustie e tente desvencilhar-se da finitude. Para esses autores,

[...] a morte é natural não por ser conforme a natureza, mas é natural apenas no

sentido de que é universal, inevitável. [...] o que mais caracteriza o organismo

vivo é a imortalidade e não a morte: as células vivas são potencialmente imortais

ou amortais. Os seres unicelulares são potencialmente imortais (TORRES;

GUEDES e TORRES, 1983, p. 2).

Assim, constata-se que a morte não é uma adversidade da vida orgânica, uma

questão da natureza biológica dos seres vivos. Torres; Guedes e Torres observa que a

maior preocupação da Biologia passou a ser o problema da origem da morte e não da vida,

tendo em vista que quanto mais se sobe na escala dos organismos vivos, menor a

expectativa de regeneração da célula, percebendo-se que a regressão se afirma como

necessária para a organização das células especializadas. “Daí o caráter equívoco da morte

que é, como diz Morin, ao mesmo tempo normal e patológica, porque é contrária à própria

natureza biológica do homem” (TORRES; GUEDES e TORRES, 1983, p. 2).

Segundo Morin (1988, p. 186), diante do temor da morte, o homem ampara-se na

busca pela imortalidade, por vezes, na salvação, que “implica igualmente a intervenção

salvadora de um deus que arranca os homens à morte”. Freud (2010a, p. 83) também

discute que há uma busca pela bondosa Proteção Divina que atenue o medo dos perigos da

vida e ofereça justiça: “[...] a instituição de uma ordem moral universal assegura o

cumprimento da exigência de justiça que com tanta frequência deixou de ser cumprida na

cultura humana”.

No ensaio intitulado Políticas do Medo, Adauto Novaes cita estudos do filósofo

francês Paul Valéry, o qual, segundo Novaes, argumenta que as ficções são necessárias na

organização da vida social, propiciando efeitos reais e essenciais à sociedade. Ainda, que a

violência, como se pensa em situações de guerra, não é uma potência capaz de fundar a

ordem, e isso encaminha para o entendimento de que forças fictícias são necessárias ao ser

humano.

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O que seríamos nós sem o recurso daquilo que não existe? Pouca coisa. Nossos

espíritos desocupados se enfraqueceriam pouco a pouco se as fábulas, as

abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas da

metafísica não ocupassem nossas profundezas e nossas trevas naturais com seres

e imagens sem objetos (VALÉRY apud NOVAES, 2007, p. 9).

Essa ficção, em que estão inseridas as crenças, tanto é amparo ao homem diante

das angústias existenciais, como sobrepõe uma espécie de medo que regulamenta a vida:

“Nos convidam a pensar e agir com prudência porque, ainda que invisíveis, há sempre um

sujeito determinado que nos vê: Deus e sua onipresença, o tirano e seus mil olhos, a morte

e o inferno, a condenação. São medos absolutos” (NOVAES, 2007, p. 11).

Mylia finalmente consegue entrar na igreja, e a busca por um ser supremo capaz

de mitigar a dor angustiante parece próxima de chegar ao fim. Fatidicamente, naquela

madrugada, Ernst e Mylia encontraram-se com um homem: “Esse homem chamava-se

Hinnerk Obst e nessa mesma noite acabou de matar um rapazinho chamado Kaas; kaas

Busbaaak, como dizia o próprio rapazinho” (TAVARES, 2006, p. 216).

Os três se divertiam com a arma que Hinnerk lhes mostrou para impressionar,

quando “De repente um estrondo rebenta a cabeça de Hinnerk. Ernst está com a pistola na

mão, a tremer: a bala saiu” (TAVARES, 2006, p. 226). Em meio à brincadeira, Ernst mata

Hinnerk, sem saber que seu filho estava morto e aquele era o assassino.

Ernst foge e Mylia fica com o morto, parada frente à igreja, esperando-a abrir. É o

narrador quem explicita o discurso interno de Mylia; em nível de onisciência, conhece os

pensamentos da personagem, e é ele quem os seleciona e relata: “Ela escuta agora ruídos

vindos da igreja. Mais ruído da igreja; porém, depois, termina; ninguém sai. O que se

passa?, pensa Mylia, ninguém vem?/ Já passou muito tempo e ninguém veio. Ninguém

ouviu? Dentro da igreja estão com medo, pensa” (TAVARES, 2006, p. 227 – grifos

nossos). Por meio desses enunciados, percebe-se a ansiedade de Mylia à espera de que

alguém saia de dentro da igreja e abra a porta. A preocupação maior não é com Hinnerk,

que está ao seu lado morto, mas o desejo de entrar na igreja que se mantém intenso:

O som de uma chave na fechadura, alguém abre ligeiramente a porta, muito

pouco: ela vê uns olhos a espreitar na sua direção, com medo, cautelosos. Mylia

sente que não suporta mais, sente-se a desmaiar, a mão direita tensa segura a

arma. De dentro da igreja os olhos não a largam, mas ainda não abriram a porta.

Mylia tem de falar para quem está do outro lado da igreja. Ganha forças. Procura

dentro do corpo a voz mais firme:

- Matei um homem – diz Mylia. – Deixem-me entrar? (TAVARES, 2006, p.

228).

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A igreja, finalmente, é aberta. Mylia toma para si a culpa do assassinato, porque

Ernst, covardemente, fugiu. Em sua mão direita está a prova de um crime que ela não

cometeu, mas assume a culpa, porque quer por fim àquela situação. À sua frente estava a

igreja aberta, e o que lhe importava era poder adentrá-la.

Apesar de todo o mal pulsando em sua vida, de ir para um hospital-prisão por um

assassinato que não cometera, Mylia alcançou o terceiro índice de saúde que lhe faltava:

“Tal como seu antigo marido repetira vezes sem conta, o terceiro índice da saúde não vinha

dos homens nem das suas técnicas, e era esse que Mylia alcançara. Ela estava viva porque

sucedera um milagre, um acontecimento espiritual e não terapêutico” (TAVARES, 2006,

p. 224 – grifo do autor).

A morte que era esperada dentro de pouco tempo não veio. Mylia ficou

novamente fechada, agora em uma prisão, mas não desistia de viver. As coisas já não

estavam mais tão ruins; a dor no ventre permanecia, mas Mylia havia aprendido a lidar

com aquilo; a prisão compartilhava de coisas que vivera no hospício, como horários,

refeições, atividades para mantê-los ocupados; mas, conforme enuncia o narrador, havia:

“uma diferença importante: naquele segundo período, naquela espécie de cópia dos dias de

Georg Rosenberg, não havia um homem: Gomperz” (TAVARES, 2006, p. 225). Mylia

inclusive tinha se afeiçoado pelo diretor da prisão, exatamente porque, diferentemente de

Gomperz, ele raramente aparecia. No mais, tinha agora a normalidade espiritual, e mesmo

estando novamente em dias ruins, “já nada a podia chocar”.

2.3 Mundo caótico x personagens em crise

O crítico Antonio Candido ressalta a figura da personagem entre os elementos

centrais da narrativa, que são, segundo ele, o enredo, a personagem e as ideias. Todos

possuem uma existência sempre intimamente ligada, porém, destaca-se a personagem, que

é quem vive e dá vida ao enredo e às ideias e, portanto, é quem se aproxima do leitor e o

faz acreditar na verdade do romance: “No meio deles, avulta a personagem, que representa

a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de

identificações, projeção, transferência etc” (CANDIDO et al, 2009, p. 51).

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Para o crítico, a personagem não é o elemento essencial do texto, contudo é o

elemento mais atuante, como no processo de criação da verossimilhança, em um

entendimento de que a personagem é o que há de mais vivo na narrativa literária: “O

romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser

fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste” (CANDIDO et

al, 2009, p. 53).

Em Jerusalém, as personagens compõem uma narrativa densa e problemática; são

caracterizadas pela ausência de valores, carências, angústias e dores. Esse perfil de

personagem remete ao que Aguiar e Silva (2007, p. 695) nomeia como “crise de noção de

pessoa”, consequência da crise ideológica, ética e política que vem assolapando a

sociedade contemporânea. A personagem Mylia, por exemplo, distingue-se pela dor e

angústia, que são palavras que circundam sua vida; e assim como ela, as demais

personagens de Jerusalém estão na madrugada do dia 29 de Maio caminhando como que

para um abismo: há quem morre e outros que matam; há o que deseja a morte, e quem

teme morrer.

Aguiar e Silva também avalia a personagem como elemento estrutural

imprescindível na narrativa, devendo as ações que compõem o texto estarem ligadas a um

agente. O autor ressalta que, apesar de haver contradições na concepção da personagem

como tal, não é possível compreendê-la como uma forma vazia ou puro operador: “Mesmo

naqueles textos em que o conceito de personagem se manifesta em crise, em que ele é

contestado e corroído, as personagens [...] remetem sempre, antes de qualquer evento, [...]

para um determinado horizonte de valores, para uma determinada ideologia” (AGUIAR E

SILVA, 2007, p. 695).

No romance de Gonçalo M. Tavares, Mylia é a personagem protagonista;

entretanto não é a heroína, mas sim, exerce o papel de anti-heroína. O protagonista herói

“espelha os ideais de uma comunidade ou de uma classe social, encarnando os padrões

morais e ideológicos que essa comunidade ou essa classe valorizam” (AGUIAR E SILVA,

2007, p. 700). Já a atitude do anti-herói é transgressora, em que “o herói, em vez de se

conformar com os paradigmas aceitos e exaltados pela maioria da comunidade, aparece

como um indivíduo em ruptura e conflito com tais paradigmas” [...] (AGUIAR E SILVA,

2007, p. 700).

Angustiada, a personagem vive a opressão do meio desiquilibrado e incerto: os

pais a chamam de louca; o marido a trancafia em um hospício, no qual as pessoas são más

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e o ambiente é opressor. Lá, retiram-lhe o filho e ainda a submetem a uma cirurgia de

esterilidade sem o seu consentimento. Como protagonista, seu retrato é elaborado com

mais extensão e, dentre as personagens “loucas” que compõem a narrativa, é ela quem

mais evidencia a vida caótica e perturbada. Uma protagonista complicada, que tem sua

história narrada de forma alinear, evidenciando a vivência instável, deteriorada, devastada

na profundeza de seu ser.

Nesse sentido, Mylia, a anti-heroína, e as demais personagens de Jerusalém,

remetem a um horizonte de crise, os valores estão deturpados, a sociedade é violenta e

cruel e todos estão imersos nesse contexto. Trazem em si, em suas atuações, os valores e

todas as questões socioculturais do contexto em que se passa a narrativa.

A percepção do herói problemático em um mundo degradado está também nos

estudos do crítico húngaro Georg Lukács. Em A Teoria do Romance, publicado em 1920,

Lukács fala dos homens dos tempos afortunados, o mundo grego no qual não havia

filosofia. Os homens não tinham questionamentos ao viver em um mundo em que os

valores permeavam a sociedade de forma adequada e desejada.

Para Lukács, a filosofia é “sempre um sintoma da cisão entre interior e exterior,

um índice da diferença essencial entre eu e mundo, da incongruência entre alma e ação”

(LUKÁCS, 2000, p. 26). Os tempos afortunados encontram as explicações e a verdade nos

mitos; essa era a época da epopeia. Um ambiente homogêneo, valorizado pelo crítico, o

qual afirma que, em oposição ao mundo contemporâneo, trazia equilíbrio e harmonia entre

o homem e o mundo, que se achava integrado à família e ao Estado.

Os valores do homem correspondiam aos valores da comunidade e, por isso, ele

não se sentia solitário, uma vez que, por essas estruturas, estava livre de abismos dentro de

si. As ameaças claramente existiam e elas poderiam aniquilar a vida, mas jamais confundir

o ser. A completude em que viviam os gregos não pode ser vivida pelo homem

contemporâneo, que não consegue mais habitar um mundo fechado. Dentre os fatores, os

interesses capitalistas foram importantes desencadeadores desse esvaziamento do ser.

Reduziram-se os valores e a vida foi mercantilizada, sobrepondo, então, os valores

materiais e o individualismo.

Em Jerusalém, os interesses financeiros ficam patenteados principalmente nos

valores cobrados pela direção do Hospital para internar as pessoas e pela indenização

exigida por Busbeck: “Fico com a criança [...]. E quanto à indemnização como é evidente

não prescindo dela: julgo que três milhões é um bom valor, e bastará para evitar que um

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único artigo meu termine com a excelente reputação do Hospício Georg Rosenberg [...]

(TAVARES, 2006, p. 113-114). Theodor ameaça Gomperz e responsabiliza-se pelo filho

de Mylia e Ernst, exigindo uma alta quantia em dinheiro.

Ademais, o contexto de Jerusalém é o mundo degradado, em que reinam a

violência, a solidão, a morte. Os valores parecem extintos ou, pelo menos, adulterados. O

narrador revela que Mylia sentia um grande medo da violência física: “E desde cedo se

protegera. Podem partir-me, lembrava-se de pensar. E assim se afastara. [...] Era, pois, com

muita estranheza que Mylia observava alguns homens e mulheres que adoravam o

confronto corpo a corpo, a agressividade entre matérias, o conflito” (TAVARES, 2006, p.

13).

Além de temer a violência, nesse trecho é possível perceber como o mundo está

vazio e solitário aos olhos da personagem: “Mylia contornou a igreja. Nenhuma luz nas

proximidades, revelando que o mundo estava morto, ou ainda não tinha nascido”

(TAVARES, 2006, p. 17). Pelo contexto da obra, é possível inferir que a ausência de luz

paralela a um mundo morto, representa o ambiente sombrio, destituído de relações

humanas e valores; as palavras anunciadas pelo narrador criam uma imagem triste, de

solidão e desesperança.

As únicas pessoas nas quais Mylia tocava eram sua mãe e depois Busbeck. No

mais, diziam-lhe que ela tocava indevidamente nas pessoas. Isso a levou a desenvolver o

toque em coisas materiais quando se sentia só, “nas coisas que não falavam”. Tal atitude se

reflete quando Mylia viu uma fotografia em mãos de Busbeck, na qual estava registrada

uma cena de genocídio com mil mortos que não chegaram a entrar no campo de

concentração porque morreram de fome. Mylia não dera a mínima atenção à foto pavorosa:

Enquanto Theodor permanecia com os olhos fixos na fotografia onde cabiam

mais de mil cadáveres, Mylia, a rapariga Mylia, que logo na primeira consulta,

na primeira frase, havia dito: eu sou esquizofrénica, quer curar-me?, essa

rapariga, ali, mesmo ao seu lado, não muito encostada nem muito afastada, nem

amuada nem excitada de mais, essa rapariga, Mylia, não prestara a mínima

atenção à fotografia horrenda que Theodor não conseguia largar; Mylia olhava

para o tecto (TAVARES, 2006, p. 41-42).

A atitude desatenta de Mylia diante do horror na foto em mãos de Busbeck reforça

a atmosfera desumana que existe em Jerusalém. Ela tinha medo das pessoas e,

consequentemente, silenciara suas palavras e afastara-se do humano:

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A matéria das coisas era a grande ocupação dos seus dias. A matéria convencia-

a. A madeira, os vários tipos de pedra e tecido, a esponja. O que havia percebido

da matéria, até agora, era isto – [...] cada matéria tem uma velocidade de

mudança própria, rapidíssima ou lenta, e é esse índice de velocidade de mudança

que diferencia os vários materiais (TAVARES, 2006, p. 37).

A velocidade de mudança é significativa segundo a percepção de Mylia. “A

madeira, os vários tipos de pedra e tecido, a esponja” não sofrem alterações

repentinamente, e isso lhe dava uma certa segurança, um certo conforto. Já o material do

ovo a perturbava: “O ovo, qualquer ovo, era para Mylia um material perturbante. O que

mais rapidamente muda, o que é composto de maior desassossego, o que existe já para ser

outra coisa” (TAVARES, 2006, p. 38).

O ovo é matéria diferente da pedra e do tecido analisados por Mylia, porque ele

gera vida e, nesse sentido, há uma metáfora para falar do humano. O ovo não convence

Mylia, o homem não a convence, porque sua matéria muda em uma velocidade rápida e

essa velocidade é perigosa; é violenta. Quando as ações são realizadas em uma velocidade

acelerada, corre-se o risco de não se enxergar as coisas em sua completude. Hitler, ao

executar sua ação perversa de perseguição e matança aos judeus, não agiu forçosamente;

trocou leis e amparou-se legalmente para a realização da mais cruel atitude humana da

história. Muitos o apoiaram e uniram-se à indústria da morte. Portanto, a velocidade

acelerada de mudança é indicação de perigo.

O contexto do romance de Tavares, a ideia contida na análise de Mylia quanto à

matéria duvidosa do ovo, metáfora que fala da matéria humana, levam à percepção do

mundo degradado do qual fala o estudioso Lukács. O romance parece exprimir uma busca

de valores que foram perdidos em detrimento da busca de produção para o mercado, em

meio a uma sociedade individualista, em que a relação estabelecida entre os homens é por

valor de troca. Impera a atividade econômica, o dinheiro e o prestígio social. A relação

natural dos homens e dos bens, antes qualitativa, passa a ser quantitativa, prevalecendo o

lucro no mundo moderno, alienado e acelerado.

No romance tavariano, a ideia do ser humano como mercadoria pode ser

percebida por meio da prostituição da personagem Hanna. A mulher maquiava suas

pálpebras com um tom de roxo: “Hanna não pintava as pálpebras de cor roxa para ser

amada, mas sim para que a solidão de um homem visse ali uma interrupção exuberante”

(TAVARES, 2006, p. 25). A personagem queria atrair a atenção de clientes que a

desejariam e consequentemente, lhe pagariam por isso.

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De outro lado, o prestígio social fala alto ao pai de Theodor Busbeck. Thomas

Busbeck preocupava-se com a reputação da família ao observar o jeito desajustado do

menino Kaas, e adverte o filho: “Quando tu passas com Kaas as pessoas gozam com ele,

com as deficiências dele; e gozam contigo” (TAVARES, 2006, p. 145). Diante da

preocupação do que as pessoas falariam, o velho Thomas sugere que alguma providência

seja tomada: “Gosto do rapaz, mas não é meu neto. É o momento de te livrares de uma

coisa errada. Há muitos sítios onde o podes pôr [...]” (TAVARES, 2006, p. 145). Na

prerrogativa de estar ajudando, propõe que o menino seja internado como uma “coisa” e

seja banido da vida de Busbeck.

O sujeito do mundo contemporâneo tornou-se solitário, não tem mais referência e

segurança como o homem do mundo grego. Esse contexto é o berço do romance, como o

mundo grego foi berço para a epopeia. Para Lukács, o gênero literário não advém

unicamente da criatividade do autor; é antes fruto do contexto histórico-filosófico:

Epopeia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas

intenções configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se

deparam para a configuração. O romance é a epopeia de uma era para a qual a

totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a

imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem

por intenção a totalidade (LUKÁCS, 2000, p. 55).

Ao passo que a epopeia dá forma a uma totalidade, o herói do romance é polêmico

e problemático, pois o mundo burguês não tem mais completude. Ao contrário, abarca

desesperança e abandono. Lukács (2000, p. 89-90) postula: “O romance é a epopeia do

mundo abandonado por Deus; a psicologia do herói romanesco é a demoníaca; [...]. A

mentalidade do romance é a virilidade madura e a estrutura característica de sua matéria é

seu modo descontínuo [...]”.

O crítico húngaro afirma que o romance é a virilidade madura, em razão da

incompletude e imperfeição de seu universo. Essa configuração leva à fragmentariedade do

mundo: “uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-

se bruscamente uma parede de vidro, contra qual o homem se mortifica em vão e

insensatamente” (LUKÁCS, 2000, p. 92). Segundo Goldmann, o que Lukács nomeia

romance demoníaco é a história de uma investigação degradada: “O herói demoníaco do

romance é um louco ou um criminoso, [...] um personagem problemático cuja busca

degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos num mundo de conformismo e

convenção [...]” (GOLDMANN, 1976, p. 9 – grifo do autor).

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As personagens de Jerusalém vão ao encontro da perspectiva de Lukács sobre o

herói problemático e o mundo caótico. Elas efetuam manobras imprecisas em busca de

respostas. Sentem-se angustiadas e perdidas, em um ambiente inseguro que nada tem a lhes

oferecer, e elas, por sua vez, não têm a que se agarrar e juntas caminham para um abismo.

A procura que move Mylia na madrugada corresponde ao que Lukács aponta

quanto à configuração inventada pelo homem do mundo capitalista. A personagem é

dominada por um enorme vazio na profundidade de seu ser e não consegue encontrar

refúgio no mundo humano. Isso a leva ao desesperado desejo de encontrar uma igreja

aberta, de amparar-se em uma ideia que está além do universo humano. Inversamente ao

mundo fechado dos gregos, no qual, por mais que houvessem ameaças, o homem não

perderia o sentido do seu ser, pois a completude constituía a essência transcendental da

vida. O homem que habita os novos tempos não tem totalidade. O mundo não é mais

homogêneo e cada qual busca seus próprios interesses: “[...] eis porque falta sempre o

último arremate a tudo que nossas mãos, cansadas e sem esperança largam pelo caminho”

(LUKÁCS, 2000, p. 30).

A forma como se estrutura o romance contribui para a construção de sentido da

personagem Mylia. Por meio de uma estrutura estilhaçada, as estratégias narrativas

convergem para a forma de composição do texto, na qual o narrador, como articulador do

enredo, seleciona e ordena os fatos em uma estrutura não sequencial. A caracterização

dessa sintaxe narrativa fragmentada conduz à relação entre a narrativa e a

representatividade da constituição do sujeito, o qual, semelhante à estrutura, evidencia-se

também em situação caótica.

Os flashbacks, ou analepses, apontam para os desencontros entre a ordem dos

acontecimentos no plano da diegese e a ordem por que aparecem narrados no discurso,

propiciam uma sensação de desconforto e inclinam-se para o teor denso e problemático

que permeia o enredo. Isso decorre em virtude de o discurso, abruptamente, passar a narrar

acontecimentos que se entrecruzam àqueles que vinham sendo narrados, confundindo as

temporalidades.

Essa marca narrativa de fragmentar as ações e sobrepor os acontecimentos

contribui para a formação desse ambiente de inquietude, repleto de violência e pulsões de

morte. Tal é o grau de ruptura que o narrador, inicialmente, informa que eram quatro da

manhã do dia 29 de maio, apresentando a personagem Ernst Splenger, que em seu sótão se

preparava para cometer suicídio, quando o telefone tocou. Paralelamente, Mylia, moradora

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da Rua Moltke, não conseguia dormir, consumida por uma dor que a inquietava. Esse

primeiro capítulo, intitulado Ernst e Mylia, é subdividido em cinco partes e narra o

percurso de Mylia naquela madrugada em busca de uma igreja aberta. Sobre Ernst, sabe-se

apenas a informação inicial, e quanto à ligação entre as duas personagens, a única

informação é dada na penúltima linha do capítulo: “Quatro, cinco, seis, sete, oito, nove,

dez, onze, doze, treze, catorze: atenderam. Ernst, disse Mylia, estou junto à igreja. És tu? /

E Mylia desmaiou” (TAVARES, 1996, p. 20).

No capítulo II – denominado como “Theodor” – de forma repentina, o narrador

interrompe o que vinha relatando a respeito de Mylia e começa a descrever ações de

Theodor. No entanto, o leitor não é situado sobre quem é esse novo personagem inserido

na narrativa; apenas toma conhecimento daquele recorte específico, no qual Theodor,

depois de folhear uma revista e visualizar uma mulher que exibia suas partes íntimas, saiu

na madrugada em busca de companhia.

Novamente a sequência narrativa não transcorre de maneira alinear, e aos fatos

sobre Busbeck entrecruza-se, no capítulo III – “Hanna, Theodor e Mylia” –, uma quarta

personagem: Hanna, a prostituta. Nessa parte do capítulo, o leitor acompanha o momento

em que ela se arruma para ir às ruas iniciar seu trabalho. O narrador onisciente e intruso

analisa a personagem: “Hanna era uma prostitua insólita, cujo maior excitante surgia no

modo de olhar, em que coincidiam a perversão ilimitada e a inteligência racional”

(TAVARES, 2006, p. 26).

Esse capítulo se fragmenta e a parte 2 volta a falar de Busbeck. Agora o narrador

revela, em poucas linhas, a ligação entre Theodor e Mylia: “Enquanto caminhava sob a luz

dos candeeiros Theodor Busbeck não pôde deixar de se lembrar de Mylia, a sua ex-

mulher” (TAVARES, 2006, p. 27). Na parte 3, recua-se no tempo e, por meio de discurso

direto, é apresentada a conversa dos pais de Mylia com o médico Busbeck em ocasião da

primeira consulta:

- Não é saudável? Quem diz isso?

- Nunca foi. Desde criança que tem aparições, como ela gosta de dizer.

- Aparições.

[...]

- Mande-a entrar – disse finalmente. – Vamos ver o que ela tem.

[...]

- Sente-se – disse Theodor. – Chamo-me Theodor Busbeck e este é o meu

consultório. Os seus pais vão já sair. O médico deve estar a sós com os seus

pacientes (TAVARES, 2006, p. 28-29).

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Percebe-se que as analepses não são claras e afetam a organização lógica

ordenada da narrativa. O romancista cria uma temporalidade segunda, o que dá lugar à

anacronia. Isso permite que, partindo da madrugada desgovernada em que Mylia sai em

busca de uma igreja, sejam retomadas ações de trinta anos já decorridos; informações que

o narrador lança em meio a narrativa, sempre de forma desavisada. Por isso, os capítulos

sempre ficam em aberto, e lança-se outro com informações que não se relacionam

diretamente ao que vinha sendo narrado.

Como exemplificado, se na parte 2 do capítulo III Busbeck lembra de Mylia na

madrugada do dia 29 de Maio, na parte seguinte, muitos anos são retrocedidos para

reproduzir como em tempo real, o momento em que eles se conheceram. Quer dizer, o

discurso, abruptamente, passa a narrar acontecimentos que se entrecruzam àqueles que

vinham sendo narrados, confundindo as temporalidades, pois a analepse não é clara e afeta

a organização lógica ordenada da narrativa. Ou seja, dentro de um mesmo capítulo há

quebra da sequência temporal, e outras vezes, é o enredo que é fragmentado.

No capítulo IV, parece que o narrador retoma a temporalidade narrativa, contanto,

após continuar a informar sobre o Theodor Busbeck que está nas ruas desertas da

madrugada de 29 de Maio, a parte 2 do Capítulo retrocede novamente ao momento em que

Mylia esteve no consultório do médico anos antes, afirmando ser esquizofrênica.

Nessa sobreposição de ações em que as temporalidades divergem, após marcado o

diálogo de Milya e Busbeck no passado, a sintaxe narrativa volta para o médico na

madrugada, nas ruas, encontrando-se agora com Hanna, a prostituta. E assim,

sucessivamente, novas analepses vão entrecruzando os acontecimentos, desnivelando

constantemente a temporalidade da narrativa.

A fragmentação do conteúdo e do tempo inquietam o leitor que se depara com

uma narrativa desconcertante. Para Adorno, o narrador contemporâneo estreita a relação

com o leitor, destruindo a tranquilidade contemplativa diante do texto lido, comum nos

romances tradicionais. Agora, essa distância varia “como as posições da câmara no

cinema: o leitor é ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário até o palco, os

bastidores e as casas de máquina” (ADORNO, 2003, p. 61). Esse novo leitor, para o

filósofo, corresponde à nova constituição do mundo, que traz a todo momento a ameaça de

catástrofe e, por isso, não é mais possível a contemplação imparcial.

Em Jerusalém não há um fluir dos acontecimentos que permita conhecer a história

de forma tranquila e criar expectativas sobre os desfechos. Ao contrário, o narrador retira o

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leitor do mínimo conforto em que possa estar, e o lança em uma narrativa densa e

problemática. É preciso estar atento para reunir os fatos, que na estrutura estão

desarticulados, correspondendo de forma direta ao ambiente caótico em que se passa a

narrativa, e aos sentimentos conflitantes das personagens. Esse modo de inserção das

questões propõe uma nova configuração das práticas de representação na literatura

contemporânea, e como analisa Aguiar e Silva, o romance configura-se como um enigma:

O romance afasta-se cada vez mais do tradicional modelo balzaquiano,

transforma-se num enigma que não raro cansa o leitor, num “romance aberto” de

perspectivas e limites incertos, com personagens estranhas e anormais. A

narrativa romanesca dissolve-se numa espécie de reflexão filosófica e metafísica,

os contornos das coisas e dos seres adquirem dimensões irreais, as significações

ocultas de carácter alegórico ou esotérico impõem-se muitas vezes corno valores

dominantes do romance. - O propósito primário e tradicional da literatura

romanesca - contar uma história - oblitera-se e desfigura-se (AGUIAR E SILVA,

2007, p. 737).

Adorno também discute essa posição do narrador do romance, apontando a

problemática de se narrar quando não se tem algo especial a dizer. Trata-se de uma

situação causada pela modernidade que impõe uma superfície densa, “uma sociedade em

que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmo. Na transcendência estética

reflete-se o desencantamento do mundo” (ADORNO, 2003, p. 57).

O crítico levanta o questionamento de como se poderá criar um enredo diante do

cenário complexo, permeado de experiências violentas, traumática, desumanas. “Basta

perceber o quanto é impossível, para alguém que tenha participado da guerra, narrar essa

experiência como antes uma pessoa costumava contar suas aventuras” (ADORNO, 2003,

p. 56). Assim também cabe a análise ao romance de Tavares: como poderia o narrador de

Jersualém criar uma harmonia narrativa se a história é sobre lugares cruéis e traumáticos

(os campos de concentração, o hospício Georg Rosenberg), se as personagens trazem em si

a loucura, o medo, a angústia e a maldade?

Walter Benjamim compartilha do entendimento de que há uma crescente

dificuldade no que tange ao papel do narrador no romance contemporâneo. Analisa que a

aptidão de trocar experiências foi perdida, em um cenário repleto de resquícios de guerra:

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo

de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o

que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada

tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia

nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente

desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a

experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de

material e a experiência ética pelos governantes (BENJAMIN, 1994, p.198).

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Nesse sentido, as narrativas trazem o indivíduo que liquida a si mesmo. O enredo

de Jerusalém evidencia a dificuldade de se criar uma narrativa fluída, pois o que se conta

são situações de angústia, loucura, morte, que permeiam a vida de personagens esfaceladas

em detrimento das circunstâncias em que vivem. A narrativa acontece aos golpes,

retratando as dificuldades da vida às quais estão sujeitas as personagens.

O pano de fundo do romance, a Segunda Grande Guerra, lança estilhaços que se

perpetuam. Suas consequências vão ao encontro das personagens problemáticas, que vivem

em constantes situações, predominantemente, de violência e maldade e, por isso, à beira da

loucura, do suicídio. O horror da morte nos campos de concentração evidenciado nos

estudos de Busbeck mantém-se paralelo às angústias e medos individuais; as personagens

que compõem a densa trama narrativa, alimentam-se nas narrativas do mundo real. O

romance suscita as atrocidades e as maldades que o ser humano tem cometido ao longo da

História.

Como analisa Luzia Tofalini (2013, p. 96), “o romance moderno, ao modalizar a

sociedade dividida e desagregada, abalada nas suas bases, nas suas estruturas,

acaba caracterizando-se por uma tendência à decomposição, ao estilhaçamento”. Assim, a

história de Mylia, assim como a das demais personagens de Jerusalém, são coerentemente

construídas por meio de incongruências, considerando-se as incompletudes dos

acontecimentos que, interrompidos de forma abrupta, denotam a vida da personagem.

A ficção tavariana é expressiva tanto pela predominância de um espaço

desencantado e sombrio, que evoca a morte, quanto pela forma de organização textual, que

se assemelha a um quebra-cabeça, com partes desconectadas, que precisam da participação

do leitor na junção desses acontecimentos. Contanto, essas peças não podem ser

efetivamente unidas, já que tudo na obra está fragmentado: o homem e o mundo.

A alteração da sequência temporal da narrativa e a quebra abrupta dos capítulos,

resultam da necessidade de evidenciar o sentimento das personagens e criar um clima que

se incline aos acontecimentos inquietantes e, dessa forma, perturbar também quem está a

ler, o que é justamente a intenção do autor, como ele mesmo afirma: “A literatura tem que

perturbar alguma coisa, nos fazer sentir que entramos num outro mundo. Tem que fazer

parar. Gosto da ideia de que a pessoa leia e possa interromper, reler” (TAVARES in

MAIA, 2011).

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2.4 Ernst: As experiências do vazio e da morte

A representação da morte em Ernst Spengler, ex-paciente do Hospício Georg

Rosenberg, está ligada ao suicídio. O homem esquizofrênico, desconcertado no seu modo

de andar, é tomado pelas terríveis lembranças do tempo em que estivera no hospício.

Lançar-se pela janela do sótão e cair no abismo da morte é algo convidativo para aquele

homem em situação de extrema angústia.

O sentimento de angústia permeia a vida das personagens de Jerusalém. Mylia

desespera-se na iminência de morte. Ernst, em oposição, encontra na morte o escape para

sua amarga existência. Ambos se veem confrontados, exteriormente, com um mundo que

nada tem para lhes oferecer e em nada podem se amparar. Internamente, face a face com o

vazio existencial, resultante de traumas de um passado trágico, sequelas que marcam dia

após dia e inviabilizam a esperança de rearranjo de suas vidas e resolução para seus

problemas.

Mylia, aflita, recorre à existência de um ser supremo que posso mitigar sua dor. Já

Ernst sente-se atraído pelo espaço oferecido pela janela do seu sótão que lhe permitia

atirar-se por meio dela e, como uma espécie de portal, do outro lado cairia morto, livre da

angústia que o atormentava e não o deixava dormir naquela madrugada de 29 de Maio.

A personagem Ernst, anos passados após sua saída de Georg Rosenberg, não é

capaz de superar os acontecimentos traumáticos ocorridos dentro do hospício. O

amansamento feito por meio de medicação, a perseguição depois do contato com Mylia, a

opressão exercida pelo diretor Gomperz, a negação de sua paternidade, tudo culminava em

um homem dilacerado, sem forças para viver em um mundo do qual não sentia fazer parte.

Em palavras do texto, este trecho clarifica a tentativa frustrada de Ernst em superar a

traumática experiência da vida no hospício:

Esforçara-se por aprender de novo a contactar com as pessoas normais, e não

apenas isso: também com os dias normais: os dias que esperam pelo humano

para que ele decida o que fazer deles. [...] E, apesar do esforço, esse passado no

Georg Rosenberg deixara os seus restos sobre os anos seguintes, os anos de

aparente liberdade, os anos em que a doença de Ernst já não se manifestava

(TAVARES, 2006, p. 184 – grifos nossos).

O vazio sentido por Ernst é um sentimento muito discutido e bastante complexo

quanto a sua definição. O psicólogo Luiz Costa de Oliveira Marinho fala da dificuldade em

delinear esse conceito. Ao realizar um estudo sobre o budismo, aponta que o primeiro

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monge budista a se dedicar formalmente à noção de vazio foi em aproximadamente 200

d.C., e tanto ele como outros que se dedicaram ao tema concluíram que

[...] o Vazio não pode ser definido ou apontado diretamente, pois no exato

momento em que se diga “o Vazio é isto”, o Vazio não estará mais ali. E mais, o

Vazio não pode ser capturado, pois se alcançado jamais é reconhecido à medida

que não é dotado de características pelas quais possa ser reconhecido

(MARINHO, 2001, p. 44 – grifos do autor).

Nesse sentido, Marinho observa que o vazio indica um furo na linguagem, já que

não pode ser entendido como “um buraco, um oco, uma falta, um vácuo ou um nada”, pois

assim passaria a ser algo e, portanto, deixaria de ser o vazio. Constata que não há na

linguagem uma categoria que dê conta dessa experiência.

A teóloga Tereza Cavalcanti reflete sobre o vazio no Cristianismo. Uma das

situações apontadas por ela é o vazio indicando a ideia de nada/caos, sentida como

consequência da destruição causada pela guerra. Referenciando uma passagem do profeta

Jeremias em situação de seu país devastado, a pesquisadora analisa como, nessa visão, o

sentimento de esvaziamento está ligado ao caos do ambiente: “A sensação de vazio se

mistura à experiência de caos, de desordem, de falência dos referenciais antes sólidos: o sol

não mais ilumina, as montanhas desmoronam, as aves fogem assustadas...”

(CAVALCANTI, 2001, p. 106).

Já para a psicanalista Poian (2001, p. 8), o vazio é uma das inquietações

contemporâneas. Dentre os estudos existentes sobre o tema, Poian defende que o estudo da

psicanálise é o único capaz de sustentar o vazio como um furo inicial do homem, sem

tentar fechá-lo, considerando que essa falta é característica do ser humano: “Algo falta, e

faltará permanentemente, na constituição do sujeito, o qual se apresenta, no decorrer de

toda sua trajetória, em constante dificuldade”. Esse vazio, será preenchido, ou não, pelo

“imaginário da fantasia e pelo simbólico do pensamento”.

Essa abertura dada pelo vazio sensibiliza a dor, em especial a psíquica, nela

inclusos a angústia, o luto, melancolia, desespero e despedaçamento. Freud fala do vazio

nos estados de luto e melancolia, e aponta que há diferença nos vazios existentes entre eles:

“No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Eu” (FREUD,

2010b, p. 130). Assim, na ocorrência do luto, há uma perda relativa ao objeto e,

consequentemente, um esvaziamento do mundo exterior, ao passo que, na melancolia, há

uma perda intrínseca no eu, que sofre internamente o vazio.

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Esse estudo de Freud está no artigo Luto e Melancolia, escrito no início do século

XX. Para explicar o estado melancólico, o psicanalista parte da análise do luto, uma

condição comum a todo ser humano, para então discutir o processo de melancolia.

Nesse sentido, no luto é comum que se haja a ausência, normal diante da perda de

alguém ou de algo que seja valioso para o indivíduo. No estado melancólico, há o nada,

pois, assim como no luto, o sentimento de perda está presente, mas aqui, o eu se identifica

com esse objeto perdido, ainda que não se tenha clareza sobre o que foi perdido, e a perda

não é mais processada de forma consciente, mas sim, se processa no inconsciente. Para

Freud, o processo melancólico é uma patologia e, nesse caso, a ausência que é sentida no

luto dá lugar ao vazio.

Na sociedade moderna, a noção de vazio adquire novas e mais problemáticas

proporções. Para Poian (2001, p. 8), “[...] vivemos em um mundo desencantado e

experimentamos atualmente o mal-estar nascido dos vazios provocados pela ausência de

Deus, de fé e de lei”. As relações humanas fragilizadas, a instabilidade, a insegurança, a

supervalorização do material e do aparente, refletem a ausência de valores de uma

sociedade falha.

Em meio a esse mundo em conflito é que surge o dilema ainda maior: o conflito

interno de cada ser humano que se angustia diante do desamparo de uma sociedade que

progressivamente se esvazia de humanidade. Há uma ameaça que amedronta o mundo

interior. Assim, surge uma expressão mais adequada para se falar desse sentimento que

reina: agonia. É o termo que Poian (2001, p. 19) busca em Winnicott para definir o tempo

traumático que se vivencia.

O vazio da melancolia entendido por Freud é o que está em Ernst. A personagem

revela-se perdida quanto à sua própria existência. Não é capaz de lidar com as situações

normais do mundo, nem de se aproximar e manter contato com as pessoas. Sente-se

impotente, fraco diante das adversidades que eram para ele muito mais fortes do que ele

poderia lidar. A perda de Ernst já não estava mais na obediência imposta em Georg

Rosenberg, na coação de Gomperz ou no impedimento de ser pai. Ernst, depois de todo

esse processo, perdeu-se a si mesmo, o seu eu fora esvaziado pelos acontecimentos

traumáticos, portanto, a morte vinha-lhe como o único amparo, o singular escape da

existência detestável: “Ernst Spengler saiu há alguns anos do Hospício Georg Rosenberg e

naquele dia, algures na parte mais importante da cidade, estará seu filho, que ninguém

reconhece como tal, Kaas” [...] (TAVARES, 2006, p. 183).

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Em Jerusalém, o território é de sombras, e o vazio denota a perda de sentido nas

relações sociais e uma espécie de abismo que se forma na profundidade do ser. Ernst fica

tentado a cometer suicídio diante da angústia que sente na madrugada do dia 29 de Maio e

que não o deixa dormir.

O vazio está também nas outras personagens e se manifesta de forma intensa em

todos eles, pois, apesar da particularidade de cada um, os acontecimentos são

demasiadamente traumáticos e interferem esvaziando as relações e o próprio eu, solitário e

angustiado no mundo caótico em que flutuam os resquícios da guerra e assolapam a vida

individual. Em Mylia, o vazio denota as perdas que ocorrem de forma injusta dentro de

Georg Rosenberg; no ex-soldado de guerra Hinnerk, o vazio ecoa as lembranças

desesperadoras de um homem que foi assassino e vivenciou situações demasiadamente

violentas e cruéis; o próprio Busbeck, metáfora da Ciência, é esvaziado pela sua também

“loucura”: a imoralidade por trás da figura que se estabelece como soberano. Todos estão

na rua naquela madrugada à procura de algo.

2.4.1 Angústia/ Suicídio

Se a abordagem da morte é questão normalmente polêmica e indesejável, tratar da

morte voluntária parece ser um assunto ainda mais abominoso. Trata-se de um atentado do

homem contra si mesmo. A busca pela compreensão da finitude é complexa,

principalmente quando se discute sobre a morte que foi escolhida, motivada, como uma

opção própria que abrevia a vida.

A palavra suicídio vem do latim sui, de si mesmo, e caedere, ação de matar

(KOVÁCS, 1992, p. 172). A definição proposta pela Organização Mundial da Saúde

consiste no “ato deliberado, intencional, de causar a morte a si mesmo, ou, em outras

palavras, um ato iniciado e executado deliberadamente por uma pessoa que tem a clara

noção (ou forte expectativa) de que dele pode resultar a morte, cujo desfecho fatal é

esperado” (OMS apud BERTOLOTE, 2012, p. 21).

Essa definição se aproxima da proposta de Durkheim, quando em 1897 fala sobre

o suicídio e o define como morte que resulta de uma ação da própria vítima e que a mesma

tinha consciência que produziria tal resultado. Segundo o sociólogo, a questão de

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caracterizar o suicídio como um ato consciente elimina desse conceito os animais, os quais

não empregam ações como meio previsto de suas mortes.

Acrescendo a essa definição-base, Durkheim, por meio de coleta de dados,

demonstra que pode haver uma determinação social, externa ao indivíduo, mesmo que a

morte voluntária seja representativa de uma atitude de extrema individualidade. Em

palavras apresentadas no prefácio do livro O Suicídio (2000), o professor Carlos H. Cardim

explica:

A principal hipótese que Durkheim demonstra em Le suicide é a de que a soma

total de suicídios em uma dada sociedade deve ser tratada como um fato que

somente pode ser explicado plenamente em termos sociológicos, e não por

motivações pessoais dos atos de autodestruição; a unidade de análise é a

sociedade e não o indivíduo (CARDIM apud DURKHEIM, 2000, p. XXV).

A renúncia à existência, um dos fatos mais íntimos do comportamento humano, é

para o sociólogo, “antes de tudo, o ato de desespero de um homem que não faz mais

questão de viver” (DURKHEIM, 2000, p. 13), mas isso advém de causas sociais e se

constitui como um fenômeno coletivo e não individual.

Durkheim examina as condições sociais enquanto natureza das causas que levam

ao suicídio e conclui que os grupos fortemente integrados exercem influência moderadora

sobre o suicídio, sejam os grupos religiosos, domésticos ou políticos. “[...] o suicídio varia

na razão inversa do grau de integração dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte”

(DURKHEIM, 2000, p. 258).

Quando há integração, vínculo entre as pessoas em uma sociedade, a troca de

ideias e sentimentos existentes entre eles age como “uma assistência moral mútua, que faz

com que o indivíduo, em vez de ficar reduzido a suas próprias forças, participe da energia

coletiva e nela venha recompor a sua quando esta chega ao fim” (DURKHEIM, 2000, p.

259). Contrariamente, o individualismo em excesso cria a propensão ao que Durkheim

chama de suicídio egoísta, pois o homem desvincula-se da sociedade e consequentemente

encontra esvaziado o seu sentido de viver, pois ao homem físico se sobrepõe o homem

social:

Porque a sociedade é o fim ao qual está presa a melhor parte de nós, ela não pode

sentir que lhe estamos escapando sem perceber ao mesmo tempo que nossa

atividade está ficando sem objetivo. Uma vez que somos obra sua, ela não pode ter

o sentimento de sua decadência sem sentir que, a partir de então, essa obra não

serve para mais nada. Assim se formam correntes de depressão e de desencanto

que [...] exprimem o estado de desagregação em que se encontra a sociedade. Elas

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traduzem o afrouxamento dos vínculos sociais, uma espécie de astenia coletiva, de

mal-estar social [...] (DURKHEIM, 2000, p. 265).

Ernst sente-se angustiado ao encontrar um antigo colega e perceber o quanto sua

existência havia sido fracassada e olhava para si negativamente, refletindo seu

distanciamento em relação às qualidades das outras pessoas: “E como nada na vida de

Ernst Spengler surgira com um carácter que pudesse servir de compensação, havia sempre

nos encontros com homens ou mulheres que conhecessem o seu passado, uma inquietação

violenta” (TAVARES, 2006, p. 183).

Pensado o conceito de suicídio, cabe refletir sobre a tentativa de silenciamento em

torno da morte voluntária. Percebe-se o receio de se abordar o assunto e, assim, motivar e

encorajar outras pessoas a fazerem-no. Por isso, a mídia emudece e desvencilha-se de

informar as ocorrências de morte voluntária. De outro lado, as visões de várias crenças

religiosas abominam a atitude suicida e coíbem o tema. Ademais, há o sentimento de culpa

dos que permanecem vivos e não foram capazes de inibir o ato, ou ainda, as

estigmatizações que apontam para o fracasso e imoralidade do autocídio.

As justificativas quanto ao receio de se divulgar casos de suicídio apoiam-se em

eventos como o ocorrido com o romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann

Wolfgang von Goethe, de 1774. A narrativa foi considerada propulsora de muitos casos

cometidos na época, sob influência do protagonista que, diante da impossibilidade de um

amor, decidiu pelo fim da própria vida.

O suicídio é tema de interesse de estudiosos de diferentes áreas. A filosofia, a

sociologia, a medicina, a psicanálise, os religiosos e os literatos debruçam-se sobre o

fenômeno no intuito de estudá-lo. A medicina passou a se interessar, sobretudo, a partir de

1800, quando, conforme elucida Bertolote (2012, p. 10), os suicídios passaram a ser

atrelados à insanidade, tendo como principal consequência a “inserção dos

comportamentos suicidas no campo da Psiquiatria”. No final do século XIX, os estudos do

sociólogo francês Émile Durkheim tiveram significativa influência na abordagem do

fenômeno do suicídio, apontando para os fatores sociais como agentes nos casos de morte

autoinfligida, o que também coube a Marx, que firmou o entendimento do suicídio atrelado

à estrutura e relação sociais.

Na sociedade atual, prevalece a ideia do suicídio como patologia, entretanto,

percebe-se a tentativa de firmar os fatores biológicos, psicológicos, bem como os sociais.

A Portaria nº 1.876 de 14 de agosto de 2006 – a qual edita instruções sobre a prevenção do

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suicídio – considera como pessoas vulneráveis ao ato tanto aquelas com transtornos

psíquicos, como as ligadas a fatores desfavoráveis de condições de vida. Eis as palavras

textuais:

Considerando a importância epidemiológica e a relevância do quadro de co-

morbidade e transtornos associados ao suicídio e suas tentativas, em populações

vulneráveis, tais como: indivíduos com transtornos psíquicos, especialmente as

depressões; indivíduos que já tentaram suicídio; usuários de álcool e outras

drogas; populações residentes e internadas em instituições específicas (clínicas,

hospitais, presídios e outros); adolescentes moradores de rua, gestantes e/ou

vítimas de violência sexual; trabalhadores rurais expostos a determinados

agentes tóxicos e/ou a precárias condições de vida; indivíduos portadores de

doenças crônico-degenerativas; indivíduos que convivem com o HIV/AIDS e

populações de etnias indígenas, entre outras (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006 – grifos nossos).

O enredo de Jerusalém ilustra a tentativa de suicídio de um homem que detém o

transtorno mental, assim como está vulnerável pelas condições socioculturais que o

cercam. Ernst Spengler é esquizofrênico, morou por muitos anos em um hospício e quando

recebeu alta, encontrou-se completamente desajustado do restante da sociedade.

Ao refletir sobre a obra e o espaço da morte, Blanchot fala de escritores que se

debruçaram sobre a escrita para se colocar ao abrigo da morte, escreveram para não

morrer, ao passo que, à sobrevivência de suas histórias, também eles seriam perpetuados.

Para o crítico, mais que isso, a arte une-se à história: “As grandes personagens históricas,

os heróis, os grandes guerreiros, não menos que os artistas, colocam-se também ao abrigo

da morte; entram na memória dos povos; são exemplos, presenças atuantes”

(BLANCHOT, 1987, p. 91). O crítico observa que os escritores se empenham em uma

relação profunda com a morte, o estabelecimento de uma relação de liberdade. Para ele, o

mais importante é a relação da obra com a história, “a ação no mundo, o esforço comum

pela verdade, [...] cooperar na transformação universal” (BLANCHOT, 1987, p. 91).

Na obra de Gonçalo M. Tavares, a morte acontece aos personagens de diferentes

maneiras. Em Ernst, há o desejo de morte. Ao abordar o suicídio, há inúmeros estudos que

se engendram por diferentes caminhos de entendimento do fenômeno. Quando se analisa o

caso de pessoas que querem antecipar a morte, definindo o momento, local e circunstância,

as incógnitas giram em torno das motivações, individuais e/ou sociais que levam o ser

humano a aproximar-se da finitude do ser, contraditoriamente à grande maioria, que busca

o distanciamento e rejeita a ideia de fenecimento. Nas ações da personagem de Jerusalém,

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a loucura, a solidão, a angústia, exercem papeis fundamentais em seu desespero

existencial.

Ernst envolveu-se com Mylia no Hospício Georg Rosenberg e a engravidou. O

médico responsável pelo hospício, doutor Gomperz, imediatamente comunicou o ocorrido

ao ex-marido de Mylia: “Foi isto: a sua esposa Mylia e um outro paciente. Fizeram-no. À

frente de outros doentes. Há dois dias. [...] Ernst Spengler. Esquizofrênico” (TAVARES,

2006, p. 98). Por serem “loucos” e estarem internados em um hospício, não tiveram a

opção de ficar com o filho. Kaas, nome dado ao menino, nasceu no dia 25 de maio. Dado o

pano de fundo da obra, que envolve a Segunda Grande Guerra, as circunstâncias de

violência e maldade, é possível associar a data fictícia ao fato histórico que ocorreu no ano

de 1993.

O Conselho de Segurança da ONU aprovou a criação de um Tribunal

Internacional de Crimes de Guerra, a fim de julgar Slobodan Milosevic, ex-presidente da

antiga Iugoslávia. Milosevic respondeu pelo assassinato de milhares de civis albaneses em

Kosovo e pelo genocídio na Bósnia e na Croácia, ato embrionário de justiça, diante das

atrocidades cometidas por um homem considerado uma das figuras mais perversas da

Europa no século XX.

Kaas, o filho – uma vida gerada por duas pessoas menosprezadas pela sociedade –

, reproduz a ideia de extinguir a opressão, a autoridade imposta por homens que se

consideram superiores e, por isso, exterminam o outro considerado inferior, desprezível,

como aconteceu nos casos de genocídios. Kaas é fruto de dois problemáticos e subalternos

aos poderosos, Gomperz e Theodor Busbeck. Uma vida gerada contra os princípios morais

impostos em Georg Rosenberg, como se tivessem vencido a negação, a morte que se quer

estabelecer sobre os considerados diferentes, loucos.

No dia 29 de maio, Kaas foi brutalmente assassinado. Novamente, a data chama a

atenção para um evento histórico que envolve a guerra. Nesse dia, comemora-se o Dia

Internacional dos Soldados da Paz das Nações Unidas. São soldados que integram as

Forças de Paz da ONU, atuando em operações de paz em zonas de conflito armado. O

objetivo de estabelecer a data é prestar tributo e homenagem a esses trabalhadores.

A morte de Kaas leva à desesperança. Se o menino seria a figura de resistência

contra as opressões, o mal se sobrepõe e a violência dilacera tudo o que vê pela frente.

Kaas foi morto por Hinnerk, ex-soldado aterrorizado com os traumas de guerra. Matou o

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menino com facilidade. A paz não consegue permanecer ou prevalecer. A violência e a

maldade, nesse contexto, são extremas.

Nesse sentido, Ernst apresenta-se como um homem fadado à tristeza de uma

existência violada. Desrespeitado no hospício, onde o anulavam inteiramente, inclusive

vedando-lhe o direito de ser pai: “[...] os tratamentos no Georg Rosenberg amansavam os

músculos; [...] Havia assim uma brutalidade incompetente no corpo de Ernst: aquilo que

deseja agarrar foi durante muito tempo agarrado, aquilo que quer empurrar foi empurrado

muitas vezes” (TAVARES, 2006, p. 174). E culmina na morte de Kaas, o decepar da

continuidade de sua linhagem.

Ernst, passados anos que saíra do Hospício, continuava a vivenciar os danos que

lhe foram causados. Nada havia ou surgia para compensar a vida da personagem, que tinha

então uma existência que tentava ser tolerável:

[...] havia nele, Ernst Spengler, apenas a marca do menos, do que lhe faltava em

relação aos outros humanos, e nada do outro lado para compensar ou atenuar

[...]. Inconscientemente todos exigiam algo a mais: uma carga positiva forte, uma

invenção inesperada, uma mulher que se encontra; ou filhos, pelo menos [...].

Mas não havia filhos (TAVARES, 2006, p. 183).

O contexto ficcional converge para as relações humanas degradantes em meio às

condições da vida moderna. Na sociedade capitalista, impera o individualismo, e a

existência é atrelada ao poder econômico. Na busca em adequar-se às novas formas de

vida, o homem é acometido por um vazio existencial, ao perceber que o meio social está

ausente de relações humanas autênticas, assim como na análise do todo, chega-se à

perturbadora conclusão de que impera uma realidade deplorável. Karl Marx escreveu sobre

a problemática da ordem social e as razões do suicídio:

As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as

falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos

familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um

entusiasmo frustrado e reprimido são muito seguramente razões de suicídio para

pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força

enérgica que impulsiona a personalidade, é frequentemente capaz de levar uma

pessoa a livrar-se de uma existência detestável (MARX, 2006, p. 24).

Ernst precisava vencer os danos em decorrência dos anos em Georg Rosenberg, e

a solidão que lhe acompanhava agora fora do Hospício: “Ernst caminhava horas pela

cidade sem parar, inventando histórias na sua imaginação, construindo relações humanas e

a amizades que não existiam” (TAVARES, 2006, p. 184). A figura do diretor Gomperz

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aterrorizava Ernst: “[...] fora perseguido duramente depois do ‘incidente’ com Mylia; e o

seu perseguidor, aquele que infiltrara o medo diário e o terror ininterrupto na sua

existência, era o diretor de Georg Rosenberg, o doutor Gomperz” (TAVARES, 2006, p.

188 – grifo do autor). O ressentimento pelo filho que lhe tiraram, a inquietação, a carga

negativa que tinha em si, o desejo de ver o filho, levaram-no a voltar ao hospício e encarar

o perseguidor, o médico Gomperz Rulrich.

No reencontro, Ernst relata a Gomperz seu desejo de matá-lo. No dia seguinte,

Ernst se prepara para o suicídio. Freud “considera o suicídio como uma autopunição pelo

desejo de matar dirigido primariamente a outrem” (FREUD apud BERTOLOTE, 2012, p.

30-31). Seja pelo desejo reprimido de matar Gomperz, ou pelo desespero angustiante de

sua existência, ou ainda pela junção dos dois, Ernst é atraído pelo desejo de morte.

A personagem estava muito abalada com o ocorrido no dia anterior. Sua

inquietação era irrefreável e ele precisava de uma atitude: “[...] a janela tinha espaço

suficiente para um corpo, e seu corpo queria agir, entrar pelo que parecia cada vez mais

uma sedução violenta da arquitectura, da disposição do mundo em relação a um simples

homem que, naquela noite – 29 de Maio – não consegue dormir” (TAVARES, 2006, p.

215-216).

Ernst desejava por fim ao contexto que ele não mais suportava, porque estava

sofrendo e queria uma forma de interromper o sofrimento. Estava totalmente solitário, o

que é evidenciado na passagem em que está prestes a se atirar, e o narrador evidencia com

minúcia o toque do telefone: “Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela

aberta para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro,

cinco, seis, sete, oito nove, dez, onze, doze, treze, catorze. Ernst atendeu” (TAVARES,

2006, p. 7). A escrita detalhada dos números que seguem sequencialmente revela o

silêncio. A insistência do toque soa no ambiente solitário e chama a atenção de Ernst, que

acaba por esquivar-se do ato suicida.

A existência do homem é realizada na estrutura de ser-no-mundo, ser em um

mundo, em que se dá a relação do espaço, tempo e atitude. E na continuidade do ser-no-

mundo, o fim é a morte. Um fim que pertence à existência. Heidegger aponta que na

essência da existência está a “presença”, que caracteriza um homem que não apenas existe

por definições prontas e dadas, mas confere a ideia de um ser determinado por suas

próprias escolhas. Assim, a pre-sença é sempre possibilidade:

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ela pode, em seu ser, isto é, sendo, escolher-se, ganhar-se ou perder-se ou ainda

nunca ganhar-se ou só ganhar-se aparentemente. A pre-sença só pode perder-se

ou ainda não se ter ganho porque, segundo seu modo de ser, ela é uma

possibilidade própria, ou seja, é chamada a apropriar-se de si mesma

(HEIDEGGER, 2005a, p. 78 – grifos do autor).

Assim, a morte é uma possibilidade irremissível e insuperável. Portanto, para

Heidegger deve ser suportada como possiblidade pertencente à própria presença, portanto,

toda presença é ser-para-o-fim, a morte como parte do existir. Destarte, o sentido da vida

está na compreensão de que a liberdade está na natureza humana, que, por meio de

escolhas, configura sua existência. E, nesse sentido, inclui-se a não fugacidade da morte,

que é inerente ao existir. São as escolhas que constroem e preenchem o vazio, o nada que

provoca a angústia.

Nesse sentido, possibilita-se ancorar Ernst Spengler, ao se preparar para o

suicídio, à uma existência irrealizada, na qual a personagem não encontrou possiblidade de

ser-no-mundo. Se a pre-sença exige a atitude do homem de encarar o nada, obscuro que

envolve a existência, e fazer escolhas que constroem a vida, Ernst, ao ser internado em

Georg Rosenberg, foi privado de escolhas, de ser-no-mundo e agir como tal.

Ernst, assim como os outros “loucos”, eram monitorados e questionados quanto

aos seus pensamentos. Jamais podiam estabelecer suas escolhas: “Gomperz por vezes

atrevia-se mesmo a colocar a um paciente a seguinte questão: sabes em que é que deves

pensar?” (TAVARES, 2005, p. 94). De forma autoritária, o próprio Gomperz lia a Bíblia

aos pacientes como uma forma de terapia, de medicação: “[...] a fé salva os pensamentos e

salva o corpo” (TAVARES, 2005, p. 209). Queria dominar e instruir o que os pacientes

pensavam.

Na personagem, há a ausência de tudo que Heidegger considera necessário para a

totalidade da existência como ser-no-mundo. Ernst é privado de pensar, de refletir e de

fazer escolhas. Em Georg Rosenberg, a vida era regulamentada, dirigida, e os pacientes

deviam esvaziar-se de seus pensamentos.

havia como um arredondamento da existência, [...]. Como se cada existência,

exactamente como um compartimento, tivesse um caixote de lixo, um sítio

específico, com formas adequadas, para onde se deveriam atirar os hábitos,

acções e, se possível, os pensamentos que não interessavam. Neste caso que não

interessavam a quem vigiava: os médicos (TAVARES, 2005, p. 92-93 – grifos

do autor).

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Assim, a existência devia ser mediada pela atitude e vontade de doutor Gomperz.

É certo que Ernst, depois de anos, sai do hospício. Entretanto, a domesticação a que fora

submetido comprometera-lhe a vida, e a personagem se vê incapaz de ser em um mundo no

qual não se sente pertencer. Seja pela hostilidade das outras pessoas, pela deficiência que

acomete seu corpo e, ainda, pela ausência de força que não consegue ter para lidar com as

situações e fazer escolhas, pois fora “amansado” no hospício: “[...] haviam interferido

fortemente na sua existência [...] eles todos, desde o director ao funcionário mais discreto,

tinham, simplesmente, com ele, tal como todos os outros, ganho o seu salário. E sobre

Gomperz agora Ernst não tinha dúvidas: filho-da-puta” (TAVARES, 2006, p. 188).

Estabelece-se então o desejo da personagem em findar sua existência deturpada e

vazia, diante da angústia de não se sentir capaz de estabelecer relação entre seu eu e o

mundo. Ernst é acometido pelo sentimento de angústia, ao perceber que toda sua existência

foi um nada, corrompida e atemorizada por doutor Gomperz e pelos demais funcionários

de Georg Rosenberg: “Agora estava mais velho; e no mundo, sim, mas não no mesmo

mundo. Quando era forte, afastaram-no dos homens, agora que começava a ficar fraco

atiravam-no para a vida real. Eis o que sentia. O mundo era agora mais forte porque ele

perdera força” (TAVARES, 2006, p. 201).

Para Marx, o suicídio se apresenta não como um ato de covardia, mas como uma

atitude desesperada. O autor entende que o suicídio não é, de modo algum, um

comportamento antinatural, mas algo que acontece diariamente e está na natureza da

sociedade deficiente gerar suicídios. Nesse sentido, há incoerência em se perceber o ato

suicida como um ato de covardia ou ainda um crime contra a sociedade e a honra. Marx

observa um corpo social que exige os deveres do cidadão, mas é altamente falho em se

tratando dos direitos que deveriam ser assegurados a esse povo:

Falam-nos de nossos deveres para com a sociedade, sem que, no entanto, nossos

direitos em relação a essa sociedade sejam esclarecidos e efetivados, e termina-

se por exaltar a façanha mil vezes maior de dominar a dor ao invés de sucumbir a

ela, uma façanha tão lúgubre quanto a perspectiva que ela inaugura (MARX,

2006, p. 26).

Ou seja, espera-se que o homem possa dominar todas essas dificuldades e não

ceder como o faz o suicida. Segundo Marx, “acreditou-se que se poderiam conter os

suicídios por meio de penalidades injuriosas e por uma forma de infâmia, pela qual a

memória do culpado ficaria estigmatizada” (MARX, 2006, p. 27). No Concílio de Arles

(314 d. C), “Constantino encontrou uma maneira de condenar tais ações e confiscar-lhes as

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propriedades. Aquelas decisões foram um marco na história das percepções do suicídio, e

cunharam uma atitude pública presente até hoje” (BERTOLOTE, 2012, p. 9). Para Marx, a

ideia é absurda. A culpa é dos que permaneceram vivos, que nada fizeram para evitar a

pessoa desesperada de sucumbir à dor. Ao invés de promover alguma solução, a atitude de

penalizar o suicida é antes “uma covardia a mais da parte dos vivos” (MARX, 2006, p. 28).

Analisando as possibilidades de se mitigar os casos de suicídios, o filósofo,

amparando-se nos relatos de Jacques Peuchet (1758-1830), ex-arquivista policial, espécie

de co-autor do artigo Sobre o Suicídio, afirma que, quanto à questão da prevenção,

descobriu que “sem uma reforma total da ordem social de nosso tempo, todas as tentativas

de mudança seriam inúteis” (MARX, 2006, p. 28).

Para Ernst, a morte soava como solução para todo o contexto opressor que vivera

e para os traumas que lhe restaram, ligando-se, principalmente, a visão do suicídio como

um problema social apontado por Durkheim e por Marx. O sentimento de angústia

desencadeado pela vivência no Hospício, onde era dia a dia hostilizado pelo superior

Gomperz, a indiferença percebida nas ruas, com a qual se vive as pessoas ditas normais, e

a solidão obscura dentro de si, fizeram da janela de seu sótão uma abertura que o levaria ao

escape de toda a existência amargurada.

De fato, existem diferentes concepções sobre a base do ato suicida. Albert Camus

e A. Alvarez, por exemplo, defendem que o suicídio deve ser pensando mais a partir do

aspecto individual e menos do social. Para Camus, o suicídio é tratado sempre como um

fenômeno social, porém, opta por evidenciar a relação do pensamento individual e o

suicídio, pois, segundo ele, “Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da

mesma forma que uma grande obra” (CAMUS, 1989, p. 8). Para ele, o “verme” está no

coração de cada homem.

Segundo o estudioso, a ideia de profundo desgosto que motiva o suicídio é válida,

entretanto, há algo a mais que ocorre e desperta todo esse sentimento negativo: “[...] seria

preciso saber se no mesmo dia um amigo do desesperado não lhe falou em tom indiferente.

Este é o culpado. Pois isso pode ser o suficiente para precipitar todos os rancores e todos os

aborrecimentos ainda em suspensão” (CAMUS, 1989, p. 9).

Apesar de se considerar a compreensão do suicídio como resultante de questões

sociais na análise de Ernst, é possível também agregar esse entendimento de Camus na

compreensão do que ocorre à personagem. Gomperz, no dia anterior à tentativa de suicídio,

despertou com intensidade os rancores de Ernst: “Ernst Spengler enojou-se de imediato

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com a visão daquele homem; e ainda mais com o contacto daquela mão flácida, mas

perturbante; esta mão insulta, pensou” (TAVARES, 2006, p. 203 – grifos do autor).

A personagem desejava findar sua vida. De fato, o verme que o consumia e

causava-lhe angústia e desespero estava dentro dele, entretanto, estava no social, no que

está externo, as motivações que desenvolveram e que alimentavam esse verme. Assim,

resguardadas as diferenças, parece possível atrelar a individualidade apontada por Camus,

na qual o suicídio é fruto de um pensamento doloroso, ao fator social apontado por

Durkheim e Marx, em se considerando os fatores que levaram Ernst a não encontrar mais

razão para viver.

A. Alvarez, em seu livro O Deus selvagem: um estudo do suicídio, problematiza a

visão sociológica sobre o suicídio. Para ele, os estudos de Durkheim e seus seguidores

inclinaram-se demasiadamente para os problemas sociais e dados estatísticos: “Ou seja, o

suicídio só interessa na medida que os ajuda a entender a natureza da sociedade”

(ALVAREZ, 1999, p. 104):

Não há dúvida de que a culpa de fato cabe em parte a uma sociedade que toma o

mínimo de conhecimento que a de cadência lhe permite dos idosos, dos doentes,

dos emocionalmente estáveis, dos estrangeiros e dos que estão à deriva. No

entanto, também é verdade que o suicida cria sua própria sociedade: fechar-se

para as pessoas trancando-se num encardido cubículo alugado e ficar olhando dia

após dia, como o Bartleby de Melville, para uma parede cega diante da janela é

em si uma rejeição do mundo que supostamente o estaria rejeitando (ALVAREZ,

1999, p. 104).

A compreensão defendida por Alvarez admite que há culpa na sociedade na

ocorrência do suicídio, mas, ressalta que, antes de fenômeno social, é um ato individual:

“[...] o suicídio, como o sexo, é uma característica humana que nem mesmo a mais perfeita

siciedade pode eliminar” (ALVAREZ, 1999, p. 105). Para o estudioso, a lógica do

indivíduo que se encontra nesse mundo fechado nunca poderá ser efetivamente

compreendida pelas teorias limitadas do conhecimento humano: “Os verdadeiros motivos

que impelem uma pessoa a pôr fim à própria vida estão em outro lugar; pertencem a um

mundo interno, tortuoso, labiríntico e geralmente invisível” (ALVAREZ, 1999, p. 110).

Há diferentes contextos que envolvem um ato suicida, e obviamente, isso se

conecta à ação. Portanto, querer unificar ou mesmo restringir o conceito de suicídio como

unívoco seria um erro. As particularidades do indivíduo são fundamentais e tem grande

peso em suas decisões. No exemplo dado por Alvarez citado anteriormente, Bartleby de

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Melville opta por trancafiar-se em um cubículo solitário e isso certamente é uma atitude

individual, que envolve questões demasiadamente profundas do eu.

Durkheim considera a análise do suicídio como um fenômeno que advém de

fatores particulares. Afirma que, “Com efeito, é pelo temperamento do suicida, por seu

caráter, por seus antecedentes, pelos acontecimentos de sua história privada que

geralmente se explica sua resolução” (DURKHEIM, 2000, p. 17). Contudo, sugere que ao

invés de vê-los isoladamente, deve-se considerar o conjunto de suicídios ocorridos em

determinado lugar e tempo, o que, para ele, levará à constatação de que “o total assim

obtido não é uma simples soma de unidades independentes, uma coleção, mas [...] que tem

sua unidade e sua individualidade, por conseguinte, sua natureza própria e, que, além do

mais, essa natureza é eminentemente social” (DURKHEIM, 2000, p. 17).

Assim, preponderando a perspectiva do suicídio como um fenômeno social e

como uma problemática do indivíduo, no caso de Ernst, percebe-se que há, de fato, uma

frustração que é dele, que está em seu íntimo. No entanto, as questões sociais são

fundamentais, porque são elas que intervêm negativamente e desencadeiam as reações da

personagem à atitude extrema da tentiva de suicídio.

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CAPÍTULO III

EXPERIÊNCIAS DO MAL

A lição mais horripilante de Auschwitz [...] é que [...] nem só os monstros cometem crimes monstruosos; e se apenas monstros o fizessem, os crimes mais monstruosos e horripilantes de que temos notícia não teriam acontecido.

(Bauman)

Neste capítulo discute-se o problema da morte e o processo de mortificação no

contexto de guerra, especificamente a Segunda Grande Guerra, à qual remete Jerusalém. A

primeira seção trata do Holocausto nazista rememorado por meio da pesquisa do médico

Theodor Busbeck. Nesse cenário há a morte de tantas pessoas, uma das maiores matanças

da humanidade. O lado mais perverso e cruel do homem em razão de um arraigado

sentimento de superioridade. A inteligência humana usada para a prática planejada e

eficiente da maldade, na construção de máquinas potentes de matar.

Auschwitz – assim como todos os campos de concentração da segunda Gerra

Mundial – é uma gigantesca mancha sombria na história da humanidade há quase oitenta

anos. Como adverte Agamben (2008, p. 19), muitos estudos foram empreendidos sobre as

circunstâncias históricas do ocorrido em Auschwitz, o que tornou possível compreender o

que se relaciona às questões materiais, técnicas, burocráticas, jurídicas. Entretanto, a

situação que se refere à simples compreensão humana do que aconteceu continua

incompreensível. O significado ético e político permanece enigmático.

Na segunda seção, aborda-se o processo de mortificação ao qual estão submetidos

os que não morreram na guerra, mas, em virtude dos traumas, não podem mais resgatar

suas vidas. Em Jerusalém, o ex-soldado de guerra, Hinnerk, está prostrado ante seus

temores, suas lembranças terrificantes da experiência da guerra. Atormentado com os

pensamentos é novamente assassino; desta vez, em uma rua escura, na madrugada do dia

29 de maio, mata Kaas, o filho de Mylia e Ernst.

O horror da morte nos campos de concentração evidenciados nos estudos de

Busbeck mantém-se paralelo às angústias e medos individuais. As personagens que

compõem a densa trama narrativa alimentam-se nas narrativas do mundo real.

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3.1 O Holocausto como pano de fundo

A personagem Theodor Busbeck, médico psiquiatra e investigador, “procurava na

biblioteca documentos acerca dos campos de concentração, o seu modo de funcionamento”

(TAVARES, 2006, p. 37). Tinha a pretensão de construir um gráfico que possibilitasse

estabelecer uma relação entre o horror e o tempo, a fim de perceber se o horror tinha certa

estabilidade, se diminuía com o passar do tempo ou aumentava. Se a História caminhava

no bom ou no mal caminho:

A história do horror é a substância determinante da História; e qualquer História

tem uma normalidade, nada existe sem normalidade. E tal como se vê nas folhas

quadriculadas de um electrocardiograma a saúde ou a doença de um homem, eu

verei no gráfico, resultado dos meus estudos, a saúde e a doença não de um único

homem, não de um único indivíduo, mas dos homens no seu conjunto; do

colectivo, da totalidade mais relevante e abjecto comportamento humano. Com

esse gráfico perceberei por fim o que tantos quiseram perceber, isto,

simplesmente: se a História está doente ou saudável, se a História caminha no

bom sentido ou no mau, se há um progresso no estado clínico, deixa-me falar

assim, se há ou não melhorias no estado clínico da História, ou se, pelo contrário,

o estado piora, se degrada, desenvolve infecções, fraquezas [...] (TAVARES,

2006, p. 48).

Busbeck queria construir um gráfico e ver as condições, o estado clínico da

História. Temia que esse gráfico, ao final do estudo, se constituísse de uma linha que

evidenciasse piora no quadro clínico da História, pois, segundo ele, a esperança era a de

que o horror diminuísse numa progressão gradual para que houvesse, assim, uma

perspectiva de o horror ser eximido por completo no futuro.

Zygmunt Bauman, em seu livro Modernidade e Holocausto, observa que a

tentativa de silenciar as memórias do Holocausto e não querer encará-la é exatamente pela

possibilidade de não ter sido uma aberração da civilização moderna, mas que tenha

revelado o outro lado de uma mesma sociedade. Reproduzindo as palavras do sociólogo:

Suspeitamos (ainda que nos recusemos a admiti-lo) que o Holocausto pode ter

meramente revelado um reverso da mesma sociedade moderna cujo verso, mais

familiar, tanto admiramos. E que as duas faces estão presas confortavelmente e

de forma perfeita ao mesmo corpo. O que a gente talvez mais tema é que as duas

faces não possam mais existir uma sem a outra, como verso e reverso de uma

moeda (BAUMAN, 1998, p. 26).

A fim de efetivar sua pesquisa, o médico e pesquisador Busbeck realizava

análises, recolhia dados e compilava informações para tentar comparar números de várias

fontes. Ao folhear os documentos nos quais havia fotografias de milhares de cadáveres –

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corpos pequenos, grandes, de mulheres, de homens, de crianças – olhava-as de forma

diferente,

como alguém que não olha para homens, mulheres e crianças reduzidos a ossos,

mas sim para uma outra coisa, coisa mesmo, um outro material, uma outra

substância [...]; não era da nossa espécie, eram de outra: da espécie que sofrera

de tal forma o horror que se distanciara definitivamente da marca humana [...]

(TAVARES, 2006, p. 40).

Busbeck folheava as fotografias de horror. Diante das terríveis cenas, o narrador

onisciente detalha que as legendas explicativas que acompanhavam as imagens não

forneciam um quantitativo de corpos que se pudesse calcular de maneira científica, mas

com possibilidade de análise apenas “na expressão dos sentimentos e mais consequente: o

espanto tenso” (TAVARES, 2006, p. 41).

Era tamanha a catástrofe, o horror vivenciado por aqueles já mortos na fotografia

e o horror daquele que analisava naquele instante o ocorrido, que tornara o momento

perplexo e ausente de possibilidade de compreensão matemática. De certo, há muitos

fatores que elevam o medo da morte e contribuem para a impossibilidade de encará-la.

Entretanto, o morrer atualmente é demasiadamente triste, porque é muito solitário, muito

mecânico e desumano (KÜBLER-ROSS, 1996, p. 19). Em Auschwitz, a morte, em

princípio, decorria das privações e trabalho forçado; as pessoas iam fenecendo e morriam

cada qual a seu tempo, dependendo da resistência individual. Mas, depois, entram em cena

as máquinas criadas para matar: “Depois foi a vez das fábricas da morte e todos passaram a

morrer juntos: jovens e velhos, fracos e fortes, doentes ou saudáveis [...]” (TAVARES,

2006, p. 128).

O narrador relata ainda que os olhos de Busbeck ficaram fixos nas revistas,

contemplando o horror da morte apresentado em fotografias que rememoravam o

Holocausto. Em uma das fotos analisadas, mais de mil corpos estavam contidos, os quais

nem chegaram a experimentar as câmaras de gás ou crematórios, pois morreram antes, de

fome. O Holocausto é a própria e particular história de horror no extermínio de milhares de

pessoas. De fato,

[...] morriam não na qualidade de indivíduos, quer dizer, de homens e de

mulheres, de crianças de adultos, de rapazes ou de raparigas, bons ou maus,

bonitos ou feios, mas reduzidos ao mínimo denominador comum da vida

orgânica...: morriam como gado, como coisas que não tivessem corpo nem alma,

ou sequer um rosto que a morte marcasse com o seu selo (TAVARES, 2006, p.

128).

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A palavra Holocausto, de acordo com Finguerman (2008, p. 8), vem do latim

holocaustum, que por sua vez deriva da palavra grega holocaustos, composto da palavra

holos (inteiro) e kaustos (queimado). Assim, Holocausto significa totalmente queimado.

Na tradução da Bíblia Hebraica ao grego, o termo foi empregado para designar um tipo de

oferenda a Deus que precisa ser totalmente queimada, conforme o Pentateuco. O massacre

nazista de judeus entre 1933 e 1945 ficou mais popularmente conhecido como Holocausto,

contudo, há também a denominação Shoá, termo hebraico presente na Bíblia, que não tem

peso religioso, significando “destruição total, ruína”, a qual se popularizou a partir de

1947.

Fragmentos de relatos de sobreviventes de campos de concentração vão

incorporando-se ao texto. A maior parte da narrativa é constituída de momentos

angustiantes. Aqueles lidos por Busbeck e aqueles vividos pelas personagens

problemáticas, constantemente em crise e envoltos em uma realidade violenta e trágica.

Busbeck leu em um dos livros: “[...] seis milhões de seres humanos foram arrastados para a

morte sem terem a possibilidade de se defender e, mais ainda, na maior parte dos casos,

sem suspeitarem do que lhes estava a acontecer. O método utilizado foi a intensificação do

terror...” (TAVARES, 2006, p. 128).

Ao mencionar a quantidade exorbitante de seis milhões de mortes associadas à

inserção de um método que intensificou esse horror, claramente evidencia-se o poder

propiciado pelas inovações oriundas do mundo moderno que, com o auxílio da ciência e da

tecnologia, possibilitou a morte de forma ainda mais cruel. Cita-se na narrativa que aqueles

que seriam exterminados, na maior parte das vezes não sabiam que seriam mortos,

remetendo às câmaras de gás que “sedutoramente chamadas de ‘banheiros’, eram uma

visão bem-vinda depois de dias e dias imundos de vagões para gados” (BAUMAN, 1998,

p. 43 – grifo do autor).

A história da guerra, o horror dos campos de concentração, as mortes violentas

somadas ao assombro que se tem diante da monstruosa atitude humana, capaz de articular

tamanha maldade, são, conforme enuncia Candido, fatores externos que se tornam internos

na composição da obra literária. A estrutura da obra reflete a estrutura social, por isso a

fragmentação está na construção do enredo que, por meio das analepses, entrecruza as

ações, bem como as temporalidades. As personagens conectam-se ao ambiente hostil e

violento, refletindo em suas atitudes angústia e desesperança.

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A guerra é elemento estruturante da composição artística tavariana; assim, o fator

externo, a Grande Guerra, alinhado à estrutura da obra literária, forma um todo

indissolúvel, ao passo que “tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a

outra” (CANDIDO, 2006, p. 16). O real trazido para a narrativa ficcional é transfigurado e

e então volta à realidade. Segundo Candido, deve ser assinalada a “consciência da relação

arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade” (CANDIDO,

2006, p. 21). E essa liberdade de modificar a ordem do mundo é que justamente pode

“torná-la mais expressiva; de tal maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor

graças a esta traição metódica” (CANDIDO, 2006, p. 21).

O horror da guerra instaurado no pano de fundo de Jerusalém desperta a atenção

do leitor que se depara com a maldade humana e as técnicas eficientes de matar. A

narrativa fictícia remete ao real desenvolvimento de teorias eugênicas e seu

aproveitamento por movimentos raciais que culminaram no Holocausto nazista que,

perpetrado na Europa, institucionalizou uma ideologia mortífera que culminou no

extermínio de aproximadamente seis milhões de judeus pela Alemanha. O que também

permite ancorar ao catastrófico desenvolvimento da bomba atômica, que em 1945 matou

cerca de duzentas mil pessoas no Japão, e é um dos marcos da ciência como poder

destrutivo.

Theodor Busbeck, ao publicar a investigação que o ocupara durante anos,

concluiu que a “História ainda não havia terminado e, mais especificamente: que a história

do terror ainda estava no início. O terror ainda não terminou, repetia Busbeck, nos

próximos séculos muitas populações serão massacradas...” (TAVARES, 2006, p. 192).

A compreensão de que o terror ainda persiste encaminha-se à perspectiva de

Bauman, o qual afirma que o regime nazista de certo despareceu, entretanto, seu “legado

venenoso” está longe de morto. Assim, a importância de lembrar o Holocausto não se dá

na perspectiva de punir criminosos, mas como um alerta, no sentido de se pensar no dever

moral acima da racionalidade:

A lição do Holocausto é a facilidade com que a maioria das pessoas, colocadas

numa situação em que não existe boa escolha ou que a torna muito cara, arranja

uma justificativa para escapar ao dever moral (ou não consegue aderir a ele),

adotando em vez disso os preceitos do interesse racional e da autopreservação.

Em um sistema em que a racionalidade e a ética apontam em sentidos opostos, o

grande perdedor é a humanidade (BAUMAN, 1998, p. 236).

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Os cinco volumes publicados por Theodor Busbeck não tiveram a repercussão

esperada; “desvaneceu-se com alguma rapidez, e em poucos anos aquela passou a ser

referida como uma curiosidade de uma ‘certa mente exótica’ [...]” (TAVARES, 2006, p.

198). Da mesma forma que o estudo de Busbeck rapidamente perdeu seu valor, “duas

gerações depois..., um volume da sua investigação poderia ser comprado pelo preço de

dois cafés” (TAVARES, 2006, p. 199). Assim se evidencia na análise de Bauman, o qual

afirma que “Ano após ano o Holocausto vai encolhendo para o nível de um episódio

histórico, que além disso recua mais e mais no passado” (BAUMAN, 1998, p. 235). O

estudioso sugere que a perturbação maior é que a crueldade cometida em Auschwitz, na

verdade, revela não a antítese, mas o que representa a civilização moderna:

O que torna esta situação muito mais perturbadora é a consciência de que isso

poderia acontecer nessa escala maciça em outro lugar, portanto poderia acontecer

em qualquer lugar; está tudo dentro da ordem das possibilidades humanas e,

gostem ou não, Auschwitz expande o universo da consciência não menos do que

o pouso na lua (BAUMAN, 1998, p. 26).

Ao resgatar as memórias do Holocausto, Jerusalém reaviva o que definitivamente

não deve ser esquecido. A atrocidade cometida em Auschwitz não é uma história

particular, mas que diz respeito à humanidade que, inclusive, nada fez para coibir que

outras ações como aquelas de outrora se repitam: “Nenhuma das condições que tornaram

Auschwitz possível realmente desapareceu e nenhuma medida efetiva foi tomada para

evitar que tais possibilidades e princípios gerem catástrofes semelhantes a Auschwitz”

(BAUMAN, 1998, p. 30).

No romance de Tavares, embora a guerra não esteja no momento em que

transcorre a narrativa, ela está sutilmente presente, porque lança estilhaços que marcam

destrutivamente a vida das personagens. Theodor Busbeck fica chocado ao ler nas páginas

de um livro informações sobre os horrores da guerra; mas acontece que ele próprio estava a

cometer erros semelhantes. Um dos tópicos desse livro falava sobre os excluídos: “Quem

comete um erro é excluído; fechado dentro de uma caixa” (TAVARES, 2006, p. 116).

Essa passagem faz lembrar a atitude de Busbeck ao trancafiar sua esposa Mylia

em Georg Rosenberg. Mylia tinha personalidade diferente da de Busbeck, assim como

ocorre a todos, uma vez que a personalidade é única a cada pessoa. Busbeck percebera e

sabia lidar com Mylia, adaptando-se a ela. Conforme o narrador relata, o marido internou

Mylia porque ela se tornava perigosa; não foi por “não suportar mais a estranheza do

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outro, estranheza que é universal – mas sim porque Mylia começava a ser perigosa para si

própria depois de vários episódios violentos” (TAVARES, 2006, p. 58 – grifos do autor).

No entanto, a afirmativa parece duvidosa quanto à real motivação do

internamento. Mais parece um não tolerar o outro e suas características; diante da diferença

é mais cômodo classificá-lo como perigoso, anormal, louco. Mylia, nesse sentido,

representa o outro, que ameaça Theodor Busbeck por não atender ao que ele esperava, por

parecer-lhe não poder dominar a situação. Afinal, ele queria descobrir para onde deveria o

homem dirigir seus pensamentos para não ser considerado louco e, para isso, tomava como

parâmetro sua plena saúde. No entanto, ele mesmo sentia-se ameaçado com o que existia

no interior de sua cabeça e ao que poderia conduzi-lo a fazer. Assim, os mais poderosos

decidiam e ditavam o que era normal, saudável, e o que não era. O mesmo ocorreu quando

Gomperz decidiu operar Mylia para que não pudesse mais ter filhos. A hierarquia ditava as

rudezas dentro da instituição:

Como se o seu ventre tivesse desistido do mundo, mas não: haviam decidido por

ela. [...] Muitos anos mais tarde, já fora dali, num outro mundo, alguém

finalmente lhe disse o que anos antes lhe haviam feito: alguma vez autorizou

isto? E Mylia, nessa altura, saudável e forte, disse: não (TAVARES, 2006, p.

162).

Diante da situação de fragilidade do outro, o mais poderoso se mostra hostil,

como ocorre dentro do Hospício Georg Rosenberg: “Dentro da instituição havia, no

entanto, uma hostilidade [...] que começava no doutor Gomperz, mas passava por toda a

hierarquia, sendo até mais exuberante e, determinados enfermeiros que, vendo o modo do

‘chefe’ se manifestar, se sentiam protegidos” [...] (TAVARES, 2006, p. 163 – grifo do

autor). A postura de Gomperz influenciava os outros funcionários, que se apoiando em seu

modo de agir, firmavam austereza.

Mylia morava no número 77 da Rua Moltke. Curiosamente, Helmuth James Graf

von Moltke foi um dos fundadores do “Círculo de Kreisau”, um grupo de líderes que

lutava contra a tirania do regime nazista e que queria conceber uma nova forma de Estado

baseada nos ideais cristãos e sociais alemães:

As ideias do Círculo de Kreisau para uma “nova ordem” datavam de 1940,

quando foram elaboradas por Moltke e seu amigo íntimo e parente, Conde Peter

Yorck von Wartenburg [...]. Ambos haviam rejeitado o nazismo e sua

desumanidade desde muito cedo. [...]. Estavam conscientes de que a Alemanha

teria que fazer grandes concessões territoriais, além de alguma forma de

reparação para os povos europeus que haviam sofrido tanto sob o mando nazista

(KERSHAW, 2010, p. 28).

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Dentro do Círculo Kreisau estavam “aristocratas e funcionários, diplomatas de

carreira e militantes sociais, bem como representantes das duas maiores confissões

religiosas cristãs: O pastor Gerstenmaier e o padre Delp” (ECHÁNIZ, 2006, p. 195-196).

Em 1944, com o atentado a Hitler, os planos esvaneceram-se, pois, apesar da não

veracidade, associaram o Círculo à conspiração. Os integrantes foram presos e em 1945

Moltke recebeu sentença de morte.

As ideias do Círculo de Kreisau foram utilizadas na construção da Lei

Fundamental do povo alemão. Uma minuta de Moltke datada de 1943 expôs como

“objetivos orientadores de uma nova ordem depois da destituição de Hitler, sobretudo a

‘quebra da coação totalitária da consciência’ e ‘o reconhecimento da dignidade inviolável

da pessoa humana como fundamento da ordem jurídica e pacifista a ser alcançada’”

(CARNEIRO e FERREIRA, 2001, p. 54 – grifos dos autores). Absorvendo essas ideias, o

Art.1 afirma: “O respeito e a proteção da liberdade e da dignidade da pessoa humana são

os fundamentos inalienáveis da vida política e social da república alemã” (CARNEIRO e

FERREIRA, 2001, p. 54).

Levando-se em consideração o pano de fundo do romance que remete à Segunda

Grande Guerra, faz-se possível uma análise na qual se evidencia Moltke, um homem que

lutou pelo fim dos horrores do nazismo, nomeando a rua em que Mylia mora. Ela também,

por sua vez, representa a figura humana que guerreia todos os dias contra as opressões

vindas da sociedade violenta, desumana.

As opressões que Mylia sofre decorrem do fato de ela ser considerada louca. O

romance traz dois grupos de pessoas: os “loucos” e os saudáveis. O primeiro concentra-se

no Hospício; de outro lado, estavam os considerados saudáveis, como Theodor e Gomperz,

os quais, apoiados no poder da ciência médica, julgavam-se melhores e superiores e,

portanto, ditavam as regras. Definiam o que era ser saudável e normal, e quem possuía ou

não esses atributos. Isso pode ser entedido nesta fala de Theodor Busbeck:

O médico sou eu, não te esqueças. Eu é que determino quando é que as pessoas

estão saudáveis ou doentes. No limite sou eu – como médico – que determino

que está morto. Fui eu que aprendi durante anos com professores e manuais -

sou eu que conheço a cabeça de um doente e a cabeça de alguém com saúde

(TAVARES, 2006, p. 43).

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O discurso da personagem é imperativo e maldoso ao afirmar-se capaz de

conhecer até mesmo a cabeça de um doente, como se todos fossem como máquinas e

funcionassem da mesma maneira. Nesse sentido, Mylia criticara o marido que se colocava

em posição de onipotente:

Caríssimo marido, respeito o seu estudo, os manuais, os professores, os

aparelhos, as técnicas, todos os anos em que leu páginas e páginas sobre

diagnóstico e tratamentos, respeito tudo isso, mas para se perceber a cabeça de

uma pessoa, não basta ser médico, tem de ser santo ou profeta. [...] E meu

marido é médico, não é profeta nem santo. É médico (TAVARES, 2006, p. 44).

Posteriormente, o narrador do romance retoma essa observação de Mylia ao

reprovar o objetivo final do projeto de Busbeck, segundo o narrador, projeto utópico, que

almejava conhecer a saúde mental da humanidade, como se pudesse captar esse conceito e

então controlar a história: “Como se de facto não quisesse ser médico, mas sim santo,

como uma vez provocara Mylia; um santo capaz de perceber a cabeça de sua mulher,

Mylia, e ainda a cabeça de todos os homens, como conjunto, um santo inteligente, capaz

de perceber os miolos da História” (TAVARES, 2006, p. 53).

Apesar das ações de Busbeck na tentativa de se estabelecer como médico

importante e investigador muito admirado, a própria fala da personagem o coloca em

contradição. Uma das situações ocorre quando o médico sai na madrugada a procura de

alguém que o compensasse sexualmente; a personagem reflete sua atitude instintiva e

animalesca: “Se fôssemos só isto, o que eu sou neste momento, a caminhar apressado com

o pênis duro, desejando encontrar rapidamente uma mulher, se fôssemos só isto seríamos

agora os cães dos nossos cães” (TAVARES, 2006, p. 31). E reconhece em si mesmo um

outro lado sem pudor e perverso.

Outrossim, vale resgastar e ressaltar a dualidade de Busbeck em reconhecer-se nas

mentes “loucas” que existiram ao longo da história da humanidade. O horror da guerra que

permeia o romance está também nessa percepção de que está no homem esse lado mal, e a

ação maléfica ocorrida em Auschwitz poderia acontecer em qualquer lugar, pois,

dependendo do momento e da circunstância, vem à tona esse outro lado do ser humano,

que fica obscuro até que algo o desperte.

E isso é o que ocorre a Busbeck: a possibilidade de enxergar essa outra face em si

mesmo. A voz narrativa expõe o pensamento perturbado da personagem, ao mesmo tempo

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que em uma espécie de discurso indireto livre10, finaliza a reflexão inserindo a voz do

médico que questiona a si próprio. O discurso na voz da personagem parece dar mais

credibilidade à voz do narrador, que antes vinha relatando em terceira pessoa os

sentimentos de Busbeck:

[...] como se veria a si próprio se chegasse ao ponto de perceber o raciocínio – e

assim o considerar normal – que está na base de um campo de concentração, do

extermínio de milhares de pessoas: crianças, velhos, homens, mulheres? Receava

a sua invulgar capacidade – tantas vezes elogiada – de perceber os loucos. Essa

capacidade de entrar nas cabeças estranhas, como alguns diziam. Era dessa

empatia com o não normal que poderia nascer algo de inaceitável. Se chegar a

perceber a parte louca da História, se conseguir entrar na cabeça do Horror e com

esta conseguir dialogar, o que farei a seguir? (TAVARES, 2006, p. 54 – grifo do

autor).

O medo da própria cabeça, a dúvida marcada pela voz da personagem em meio à

do narrador: “o que farei a seguir”, demonstram que Busbeck, além de buscar uma resposta

para as mentes que lideraram e cometeram terríveis atrocidades, teme identificar-se com

essas mentalidades “loucas” e repletas de maldade. A questão é que ele tem consciência de

que poderia ver também em si o pensamento mal, e concluir que ele seria igualmente capaz

de cometer atos de tamanha inescrupulosidade, como fizeram nos campos de concentração.

Nesse exato sentido, Bauman considera o Holocausto como um teste da

modernidade, o qual possibilita uma percepção dos princípios enaltecidos na história

moderna, norteados pelo espírito da racionalidade: “O Holocausto expôs e examinou em

condições ‘não laboratoriais’ atributos não revelados de nossa sociedade [...]. Em outras

palavras, proponho tratar o Holocausto, como um teste raro, mas importante e confiável

das possibilidades ocultas da sociedade moderna (BAUMAN, 1998, p. 31 – grifos do

autor).

Jerusalém contextualiza a sociedade em que não se pode mais viver da mesma

forma depois da guerra. Há a percepção de que ninguém está resguardado da violência, por

isso, a necessidade de estar atento, de manter-se em alerta, diante da iminência de

atrocidades, atos desumanos a todo tempo.

Tavares, em entrevista à Folha de São Paulo em 201011, comenta sobre a eficácia

humana associada às máquinas; o homem é mais confiável quando é competente

10 No discurso indireto livre, o narrador, além da onisciência, assume a “presumível linguagem do

personagem, aproximando-se dele o mais possível – embora sem lhe dar a palavra” (TACCA, 1983, p. 76). 11 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/07/767901-portugues-goncalo-m-tavares-

fala-sobre-maldade-saramago-e-o-brasil.shtml>. Acesso em jan. de 2018.

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tecnicamente, o que contradiz a história humana, em que a confiabilidade era medida em

termos de afetividade. E essa valoração demasiada do lógico e do maquinal tem dominado

o campo ético e moral do homem, segundo o escritor português.

Em Jerusalém, Gomperz e Busbeck compartilham de posição privilegiada por

serem os homens da ciência. E é também isso que os motiva a competir entre si, mesmo

que veladamente: “Theodor pensava de Gomperz: não sabes tanto como eu, e Gomperz

pensava de Theodor: jamais fizeste tanto como eu” (TAVARES, 2006, p. 96). O desejo de

maior prestígio social e profissional, a forma calculista de lidar com as situações é o

reflexo dessa forma de pensamento mais mecânica e menos humana.

No mais, o comportamento das personagens remete as duas possibilidades do

homem que estão sempre prontas a vir à tona: sutileza e bondade ou insensibilidade

perversa. No trecho que segue, fica claro que estavam aptos a agir de diferentes maneiras, a

depender da situação em que estivessem envolvidos. Eram cordiais, mas jamais

envolviam-se emocionalmente; estavam, na verdade, precavidos um do outro e, por trás da

aparente polidez, o forte sentimento de individualismo, distanciamento e rivalidade, o que

os levavam a “munir-se” para um possível confronto:

Pode mesmo dizer-se que os dois homens manifestavam mútua cordialidade [...].

Com o tempo formara-se uma certa admiração entre os dois homens que, apesar

de tudo, não apagava por completo a hostilidade nascida da sensação comum e

desagradável de que ele não precisa de mim. Não precisavam um do outro,

pareciam pois preparados, se necessário, para o ódio (TAVARES, 2006, p. 97).

Assim também Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto,

responsável pela logística de extermínio de milhões de pessoas, teve sua “normalidade”

atestada por psiquiatras: “Mais normal, de qualquer forma, do que eu depois de examiná-

lo, dizem ter exclamado um deles, enquanto outro descobriu que todo o seu perfil

psicológico, sua atitude em relação à esposa e aos filhos, à mãe e ao pai, aos irmãos, irmãs

e amigos, era não apenas normal, mas muito agradável” (ARENDT, 1999, p. 37 – grifo

nosso). Eichmann não era um monstro, era um homem comum, de que, aparentemente, não

se poderia esperar tais atos.

Diante do comportamento humano observado em Jerusalém, tanto dos opressores

quanto dos que estão à margem; dos novos valores racionais adotados pela sociedade, é

que se pode concluir que à Guerra nunca foi dado um fim definitivo. Apesar de os campos

de concentração estarem, no momento da narrativa, apenas nos livros de estudo de

Busbeck, o mundo em ruínas não pode mais se estabelecer, porque a mentalidade humana

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mudou e os resquícios arremessados ficaram em meio à vida cotidiana, alterando-a

negativamente.

O que ocorreu em Auschwitz, evento maligno, animalesco, decorreu,

assustadoramente, de ações humanas. A inteligência e as energias captadas para bem

articular as atrocidades que, conforme afirma Bauman, se sobrepõem às que se poderia

esperar de um monstro e, ainda assim, não seriam tão bárbaros quanto aos ocorridos nos

campos de concentração: “A lição mais horripilante de Auschwitz [...] é que [...] nem só os

monstros cometem crimes monstruosos; e se apenas monstros o fizessem, os crimes mais

monstruosos e horripilantes de que temos notícia não teriam acontecido” (BAUMAN,

2008, p. 88-89).

Busbeck, mesmo enxergando os horrores dos campos de concentração, pasmo

diante dos corpos todos misturados, crianças, mulheres e idosos, ele próprio estava a

produzir o mal. Em palavras de Bauman (2008, p. 89), do ponto de vista moral, “a lição

mais devastadora de Auschwitz, do Gulag ou de Hiroshima não é que poderíamos ser

postos atrás do arame farpado ou enviados à câmara de gás, mas que (nas condições

adequadas) poderíamos ficar de sentinela ou espargir cristais brancos em chaminé”.

3.2 Memória e morte

No tópico anterior, discutiu-se sobre os trágicos acontecimentos da Segunda

Grande Guerra que permeiam o romance Jerusalém, especialmente os ocorridos no campo

de concentração de Auschwitz, símbolo do horror e da crueldade. O horror da guerra está

na pesquisa do renomado médico e pesquisador Theodor Busbeck, como também se

prolonga por meio dos estilhaços lançados no mundo, que jamais voltou a ser o mesmo, e

interfere na vida das personagens. Essa é uma proposição notadamente considerada por

Nestrovski e Seligmann-Silva na apresentação do livro Catástrofe e Representação (2000,

p. 8-9): “Não é preciso passar por uma catástrofe, no sentido geológico, biológico, ou

histórico, para reconhecer as contingências traumáticas da experiência, como se representa

em obras e textos fundamentais do presente. O que aconteceu deixou marcas”.

Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p. 10) discutem sobre o pano de fundo

conflituoso em que se dão a arte e a literatura atuais, especialmente depois da segunda

metade do século vinte. Segundo os estudiosos, depois do Holocausto, vive-se em uma era

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de catástrofe e a representação é complexa, pois diante do evento “humanamente

inexplicável”, as condições de vida mudaram, “precisamente porque este evento desafia,

para sempre, as formas de pensar, elaborar, representar”.

Por mais que o momento não traga em si a guerra nas proporções dos grandes

conflitos mundiais, estão enraizadas as consequências que o evento perpetuou, desde as

atitudes individuais amedrontadas diante de uma sociedade que não permite a sensação de

segurança e proteção, aos traumas decorrentes de experiências traumáticas, tal qual ocorre

à personagem Hinnerk.

Hinnerk é um ex-soldado de guerra que vive atormentado com as lembranças do

passado: “Da guerra Hinnerk guardara dois objetos, se assim podemos designar: uma

pistola, que levava sempre debaixo da camisa na parte da frente das calças, e uma sensação

constante de medo” (TAVARES, 2006, p. 59). O comportamento da personagem permite

compreender que ela sofre, segundo a definição de Freud, de neurose traumática, derivada

da violência cruel vivenciada no contexto da guerra.

Sobre as enfermidades decorridas da guerra, Freud, no contexto da Primeira

Guerra, explica a neurose de guerra, a qual deve ser compreendida como neurose

traumática. Nesse caso, há uma fixação na cirscuntância traumática, como se a situação se

apresentasse diante da pessoa de maneira “atual e intacta”. Segundo o pai da psicanálise,

traumática “é uma vivência que, em curto espaço de tempo, traz para a vida psíquica um

tal incremento de estímulos que sua resolução ou elaboração não é possível da forma

costumeira, disso resultando inevitavelmente perturbações duradouras no funcionamento

da energia (FREUD, 2014, p. 299 – grifo nosso). Nessa situação, o indivíduo é incapaz de

dar conta de tal vivência.

Em consequência, um dos sintomas em Hinnerk era o medo descomunal que o

dominava todo o tempo, inclusive o perturbava durante os sonhos. Com isso, mesmo

durante o sono seu corpo ficava como em estado de alerta e defesa; como resultado

“Hinnerk descansava terrivelmente, levantando-se de manhã como se acabasse de

combater corpo a corpo” (TAVARES, 2006, p. 60). Na voz do narrador, este trecho que

segue evidencia o assombro sentido por Hinnerk e as marcas implícitas que tiveram origem

em sua vida como militar:

Hinnerk não saía a rua sem medo, não ficava em casa sem medo, não dormia

sem o medo, e mesmo nos momentos em que a consciência se tornava menos

construída, quando a individualidade apresentava a estrutura mais frágil – como

nos sonhos -, mesmo aí uma espécie de azedume fixo permanecia constante no

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meio da aparente loucura de imagens que se sucediam sem controlo, misturando

espaços, tempos, possibilidades e impossibilidades (TAVARES, 2006, p. 59).

A loucura de imagens que ocorre à personagem, na qual se misturam o tempo

presente às circuntâncias do passado, e mesmo medos de coisas que poderiam acontecer no

futuro, é situação decorrente do trauma, pois segundo Freud: “Ocorre também de pessoas

serem de tal forma paralisadas por um acontecimento traumático, que abala os

fundamentos de sua vida, que perdem todo interesse no presente e no futuro, mantendo-se

numa duradoura ocupação psíquica com o passado” (FREUD, 2014, p. 300).

Dessa forma, Hinnerk afastava-se do presente e do futuro devido à fixação no

momento perturbador de seu passado, o que o leva a ficar enclausurado na doença. Quanto

à perturbação mesmo nos sonhos, Freud explica que “as neuroses traumáticas dão nítidos

sinais de que, em sua base, está uma fixação no momento do acidente traumático. Nos

sonhos, os que dela sofrem revivem regularmente a situação traumática” (FREUD, 2014, p.

298). No caso da personagem de Jerusalém, é como se esse espaço que é o sonho, mesmo

sendo “individual e privado”, como assinala o narrador, Hinnerk “não pudesse escapar às

interdições e regras de conduta a seguir no perigoso tempo de guerra” (TAVARES, 2006,

p. 60), que é um tempo regido pela morte.

Tanto os sonhos como as ações de Hinnerk denotam os fortes resquícios da guerra

em sua vida. Diariamente, ele criava situações imaginárias simulando um ambiente de

batalha dentro de sua própria casa: “Em casa, treinava-se com alvos, simulando seres

vivos, humanos sempre, nas mais variadas posições [...]. E Hinnerk disparava”

(TAVARES, 2006, p. 62). Como o comportamento da personagem segue um movimento

circular, sempre regressando às cenas que lhe que são traumáticas repetidamente, o terror

está sempre revitalizado.

Freud explica que “Nas neuroses traumáticas e de guerra, o Eu do indivíduo se

defende de um perigo que o ameaça desde fora, ou que é corporificado numa postura do

próprio Eu” (FREUD, 2010, p. 292). É nesse sentido que Hinnerk teme ser ferido por

poderes externos, por isso ele sempre traz consigo uma arma e está em constante estado de

alerta. Com efeito, Hinnerk “tentara colocar em cada um dos seus dias um rigor de

patrulha, dividindo-se numa espécie de existência observada e em observador de si

próprio” (TAVARES, 2006, p. 62).

Como se nota nas últimas palavras dessa citação do romance, o narrador informa

que a personagem, na atitude de extrema vigilância, observava a si próprio. Freud (2010, p.

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292), além de considerar que um neurótico de guerra teme perigos externos, também

estaria envolvido em um temor de si próprio. É possível assimilar essa atitude de Hinnerk a

esse inimigo interno discutido por Freud. A personagem entra em conflito sobre sua

própria identidade, estando em paralelo o homem comum, pacífico, e o tornar-se soldado,

assassino de muitas vidas. Hinnerk relata que matou muitas pessoas nessa parte de um

diálogo com Mylia:

Na guerra cheguei a pegar em metralhadoras que pesavam pelo menos cinquenta

vezes o que pesa essa arma.

Esteve na guerra?, perguntou Mylia.

Sim, respondeu Hinnerk.

Matou gente?, perguntou Mylia [...].

Claro que matei gente, disse Hinnerk (TAVARES, 2006, p. 226).

Uma das circunstâncias a se considerar sobre o desencadeamento desse

sentimento conflitivo do Eu é a percepção de que, ao tornar-se um combatente, o indíviduo

passa a compor a monstruosa máquina da guerra e de morte. Para Freud, no neurótico de

guerra, o problema é desencadeado ou favorecido por um conflito do Eu. Em palavras do

psicanalista:

Ele se dá entre o velho Eu pacífico e o novo Eu guerreiro dos soldados, e torna-

se agudo assim que o Eu-de-paz enxerga o enorme perigo de vida que lhe trazem

as audácias de seu parasítico sósia recém-formado. Tanto podemos dizer que o

velho Eu se protege do risco de vida mediante a fuga na neurose traumática,

como que se defende do novo Eu, percebido como ameaçador para sua vida

(FREUD, 2010, p. 291).

A desordem na vida psíquica e física de Hinnerk trouxe-lhe problemas no

convívio com as outras pessoas. Tinha profundas olheiras de alguém que nunca conseguia

descansar: “Olheiras quase de animal nocturno eram a marca essencial daquele rosto.

Nenhuma imperfeição poderia impor aos outros maior respeito do que aqueles olhos, em

baixo dos quais estava uma pele dobrada várias vezes sobre si própria” (TAVARES, 2006,

p. 60).

Contanto, as olheiras aparentes que chamavam a atenção das pessoas traziam algo

de muito mais profundo que se poderia enxergar por meio da marca física. A chave que

leva a essa compreensão está no trabalho do narrador na construção da personagem, que

evidencia tais aspectos subjetivos de Hinnerk:

Mas na pele concentrada debaixo dos olhos de Hinnerk ocorrera algo de mais

complexo, próximo de uma fusão entre diversos nutrientes, uma fusão entre

diversos factos da sua biografia, transformados, ao longo dos anos, numa matéria

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comum, matéria assustada, que manifestava medo do homem, daquele que se

aproxima, mas que também, ela própria, assustava (TAVARES, 2006, p, 60).

Hinnerk tornara-se um mito numa escola de crianças que havia próxima à sua casa

e a outras pessoas na rua; ele tinha cara de assassíno aos olhos dos outros: “Quantas vezes

Hinnerk, o homem que tremia com medo dos outros, quantas vezes não haviam dito dele,

como quem registra simplesmente o número de um edifício ou o nome de uma rua: cara de

assassíno, tem cara de assassino. Hinnerk baixava a cabeça para não ouvir” (TAVARES,

2006, p. 61).

Cabe assinalar que o narrador onisciente, conhecendo a fundo a personagem,

evidencia que o medo de Hinnerk começava a aumentar e, consequentemente, estava

também mais violento: “Nessas alturas Hinnerk não saía de casa, passando os dias a treinar

a pontaria, como se realmente existisse uma ameaça qualquer. Preparava-se” (TAVARES,

2006, p. 66). As crianças que cruzavam seu caminho em direção à escola começaram a

incomodá-lo; muitas outras vezes antes já haviam olhado para ele com estranheza,

murmurando: “vem aí o homem”, mas Hinnerk passou a sentir um ar de hostilidade

naquelas crianças e considerava aquelas atitudes como “pequenas crueldades infantis”.

No entanto, novamente o narrador desnuda o pensamento da personagem e deixa

claro para o leitor o pensamento perverso de Hinnerk diante daquelas crianças: “A

crueldade daquelas crianças era, pois, perfeitamente ridícula, pensava. A qualquer

momento ele poderia pegar na pistola e disparar sobre elas; seria um gesto fácil, uma

brincadeira infantil. Por que são tão estúpidas estas crianças, pensava Hinnerk”

(TAVARES, 2006, p. 67 – grifo do autor).

A intrusão na subjetividade da personagem permite desnudar o pensamento

doentio que ocorre a Hinnerk que, num instante, aprecia a inocência das crianças na escola:

“um dos poucos prazeres, era o de olhar pela janela e ver como as crianças se divertiam,

despreocupadas; sem medo” (TAVARES, 2006, p. 63); para depois, imaginar aquela

fragilidade tola, em desvantagem a sua violenta arma de matar. Eles sequer tinham noção

do poder de destruição daquele objeto:

Havia nelas uma falta de lucidez, um não estar no mundo, uma distracção

profunda em relação às coisas, que apenas lhe causava compaixão. Não fazem

ideia que, de um momento para o outro, posso decidir disparar sobre elas, e a

sua existência termina (TAVARES, 2006, p. 68 – grifos do autor).

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Tão densa é a montagem das cenas em Jerusalém que a leitura precisa ser

realizada de maneira lenta. O narrador força o leitor a parar, por vezes, recuar na narrativa,

em busca de captar e compreender o acontecimento que está sendo narrado. Como já fora

observado em tópicos anteriores, é espantosa a estratégia do narrador para contar os fatos,

que o faz por meio de interrupções abruptas e mescla seu discurso ao da própria

personagem. Isso pode ser observado no trecho do romance citado no parágrafo anterior,

em que há uso do discurso indireto livre, caracterizado pela troca do uso de terceira pessoa

para primeira.

Essas particularidades em se narrar podem ser pensadas a partir da dificuldade, ou

mesmo impossibilidade, de apreender com totalidade as cenas que compõem a paisagem

da sociedade contemporânea apresentada na obra. A violência e o caráter desumanizado

dos indivíduos e das situações aparecem de forma extrema, e o discurso não consegue dar

conta dessa representação. Conforme analisa Seligmann-Silva, as situações traumáticas e

de horror, progressivamente assolam o dia a dia do homem moderno:

Com efeito, em vez de representar apenas um evento raro, único, inesperado, que

seria responsável por um corte na história no século XX, mais e mais passou-se a

ver no próprio real, vale dizer: no cotidiano, a materialização mesma da

catástrofe. A experiência prosaica do homem moderno está repleta de choques,

de embates com o perigo (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 73).

Para Seligmann-Silva, essa problemática de se representar o mundo cheio de

catástrofes advém, principalmente, a partir do evento maligno que foi o Holocausto: “O

momento de universalização que está na base da representação é destruído devido à

singularidade do evento-limite. A Shoah, devido ao seu caráter de evento incomparável,

enquanto a forma de genocídio mais radical da história" (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.

77). Essa impossibilidade de representação é justificada, segundo o estudioso, “tanto por

causa da sua unicidade como também devido à impossibilidade de se reduzir esse evento

ao meramente discursivo”. É o excesso que há nesse acontecimento que inviabiliza a

representação por falta de um aparato linguístico que esteja no mesmo nível do evento:

“como representar algo que vai além da nossa capacidade de imaginar e representar?”

(SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 79).

Em Jerusalém, além da estrutura narrativa evidenciar a dificuldade em se narrar o

ambiente pós-guerra, demasiadamente hostil e violento, as ações das personagens

cooperam na contrução do sentido da ineficiência das palavras e o evento que se

caracteriza então, como irrepresentável. Hinnerk Obst, por ser um combatente de guerra,

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era um homem que não gostava das palavras: “Desistira das palavras. Fui combatente,

comentava, quando alguém observava que ele não era um falador” (TAVARES, 2006, p.

85). A experiência ruim desencadeou esse silenciamento, porque, de fato, diante dos

horrores que, como soldado, Hinnerk vivenciou, o discurso torna-se vazio tamanho o

absurdo que envolve o contexto de guerra.

Nesse sentido, para Seligmann-Silva, o trauma é uma ferida na memória e,

ancorando sua definição nos estudos de Freud, explica que se trata da “incapacidade de

recepção de um evento que vai além dos ‘limites’ da nossa percepção e torna-se, para nós,

algo sem-forma. Essa vivência leva posteriormente a uma compulsão à repetição da cena

traumática” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 84 – grifos do autor). O fato vivenciado

transborda os limites da linguagem e do humano.

A personagem de Jerusalém, angustiada pelas lembranças da guerra e envolto em

um crescente medo da morte mais uma vez é assassino; assassinara friamente o filho de

Mylia e Ernst: “Esse homem chama-se Hinnerk Obst e nessa mesma noite acabou de matar

um rapazinho chamado Kaas” (TAVARES, 2006, p. 216). Hinnerk ansiava matar alguém;

fora treinado a matar, a direcionar a arma contra o alvo inimigo; acostumara-se ao poder

que tinha detendo uma arma: “Hinnerk conseguia sentir o cheiro das próprias mãos

naquela parte da arma. O punho da arma cheira a homem, neste caso particular: ao homem

de nome Hinnerk Obst. E tudo que cheira homem é humano [...]” (TAVARES, 2006, p.

87). O cheiro do punho da pistola era convidatito para Hinnerk:

Não era fácil descrever a sensação repelente que coincidia com a excitação

provocada pelo cheiro das suas mãos num objeto como uma arma, mas em

Hinnerk havia claramente a percepção de que, com aquele conhecimento, tocava

num horror escondido: a possibilidade de um humano comer outro (TAVARES,

2006, p. 87-88).

Em meio à guerra, a urgência era manter-se vivo, o que equivalia a dominar uma

arma e matar o outro que o ameaçava. Mesmo após anos do indizível da guerra, Hinnerk

sentia-se ameaçado e sua fome era aquela de outrora: eliminar o alvo inimigo. E na

madrugada de 29 de Maio, o narrador descreve a cena em que a ânsia de matar se

sobrepõe: “Kaas tremia, aquele homem estranho não era bom; e os dois começaram a

afastar-se do sítio onde os candeeiros mantinham uma certa luz tranquilizadora”

(TAVARES, 2006, p. 151). Hinnerk levara o menino Kaas para trás de um prédio onde

estava uma “escuridão completa”.

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É possível refletir sobre a expressão “escuridão completa” em oposição à “luz

tranquilizadora”. Hinnerk leva o menino para um ambiente maligno, a ausência de luz

reflete a sua não lucidez ao matar um garoto deficiente que cruzara seu caminho. Assim

como lhe ocorreu fazer em campo de guerra, lugar pleno de treva, em que o dever e a

necessidade unem-se a ação de assassinar descomedidamente o outro ser humano, nessa

circunstância, rival.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Neste século não acho que seja útil um tipo de livros muito líricos, muito positivos. Não acho que seja útil um elogio do homem como um ser fascinante, extraordinário, extremamente bondoso. Acho que precisamente o que marca o século 20 – a Segunda Guerra, o Holocausto – são coisas muito fortes, que têm uma dupla marca, a da racionalidade e a da inteligência”.

(Gonçalo M. Tavares)

Esta dissertação teve como objetivo analisar as representações da morte na obra

literária contemporânea Jerusalém. Assim, seguem nestas considerações finais as

conclusões obtidas após o estudo da obra, tendo como subsídio o apoio de estudiosos da

teoria literária e de diferentes áreas do conhecimento, principalmente da filosofia, para que

fosse possível a discussão sobre o complexo tema da morte presente na literatura.

Certamente não se esgotaram aqui as discussões sobre a morte em Jerusalém.

porque as histórias são demasiadamente densas, e o leitor que se propõe a adentrar o

bosque do romance, depara-se com situações demasiadamente humanas, que chocam,

emocionam ou amedrontam. O homem diante da maldade, da solidão, do vazio e da

angústia: todas circunstâncias que não advém da ação de um monstro, ou de uma praga

lançada por deuses furiosos; são apenas reflexo das ações realizadas pelo próprio ser

humano. Assim, dada a profundidade das questões abordadas no romance, não se pode

alcançar definitivamente tal dimensão.

A palavra representação enunciada já no título da dissertação, evoca a ideia de

arte, mais especificamente a literária, como expressão da sociedade e, portanto, interessada

nos problemas sociais. Com efeito, Antonio Candido atribui à literatura função

humanizadora, sendo ela capaz de despertar o homem para reflexões sobre o bem, o outro,

a vida e a morte, na medida em que capta a vivência real, transforma-a, e por meio de uma

linguagem figurada e outras estratégias narrativas das quais o texto literário é dotado,

devolve ao homem suas próprias histórias.

De fato, essa representação não é simples cópia da realidade, mas transfigura-a em

um texto plurissignicativo, pois o escrever literário tem seu modo próprio, e é isso que o

torna capaz de exercer essa função social apontada por Candido. As formas de escrita

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artística sobrepõem-se ao que as palavras denotativas conseguem representar e, dessa

forma, questões complexas para o ser humano como a morte são trazidas à tona de

maneiras díspares. Assim, pensar o humano a partir da literatura, é uma possibilidade de

compreendê-lo em sua complexidade.

Em Jerusalém, Gonçalo M. Tavares fala da morte violenta, do mundo angustiado,

fragmentado e problemático que se tem noticiado depois de ter sido palco para o evento

maligno que foi a Segunda Grande Guerra. Após o Holocausto, reestabelecer o caráter

humano do homem é uma tarefa bastante árdua, uma vez que, dentro dos campos de

concentração, as ações cometidas foram mais aterrorizantes, como observa Bauman, do

que se poderia esperar de um monstro. Tamanha a barbárie cometida que os estilhaços

daquele momento foram lançados e assombraram as pessoas de todos os lugares, em todos

os tempos posteriores ao ocorrido.

A literatura como arte que transfigura a realidade, pode devolver ao homem suas

próprias histórias, mas, de maneira sensível, pelo modo de construção do texto literário e

suas particularidades, tais como a linguagem plurissignificativa e a organização textual.

Jerusalém ao incoporar o cenário de guerra, evidencia cenas de acentuada maldade

humana e violência. Ao unir o elemento social - a Segunda Grande Guerra -, e construir

uma narrativa fortemente fragmentada que se inclina ao contexto catastrófico, a obra

tavariana desperta o leitor para questões de vida e de morte; de medo e desesperança.

Circunstâncias e ambiente repletos de maldade e violência, nas quais protagonizam o ser

humano.

De fato, a maldade humana que protagoniza a narrativa não teve início na

Segunda Guerra Mundial, mas o ato foi tão violento e extremo que ultrapassou a

capacidade humana de compreensão, e ela está fortemente presente no contexto do

romance. As máquinas criadas para matar, a inteligência e o progresso técnico-científico

aliados no engendramento da morte de milhares – homens, mulheres, crianças, idosos –

sem distinção. E espantosamente, a ação não foi realizada por um impositor que obrigou

outras pessoas a partilharem de sua idea; Hitler não infringiu leis e nem tortutou seus

aliados para que fizessem o horror que fizeram. Mas, ao contrário, alterou leis e fez tudo

legalmente; teve o apoio consensual de muitos que partilharam de suas ideias. O

Holocausto deixou claro que o homem pode ser muito perverso, e a ideia de paz e

tranquilidade foram esvaziadas, cedendo lugar ao medo e à incerteza.

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Nesse sentido, o romance de Tavares desperta o leitor para essa realidade

problemática e as personagens vivenciam situações de angústia, dor e morte. Como o

próprio autor afirma, o Holocausto é tão marcante no século XX e é tão significativo “que

a inteligência humana seja aproveitada para essa brutalidade extrema que me parece que

depois disso não podemos escrever livros ingênuos e inocentes” (TAVARES apud

VICTOR, 2010). E essa visão, conforme Tavares observa, não é dada em uma atitude

pessimista, mas anuncia que se deve estar atento e perceber que ninguém está protegido de

entrar na violência.

Ao analisar as representações de morte no romance, nota-se que o horror diante da

morte se deslocou do evento tanático para fixar-se mais nas circunstâncias em que ela

ocorre. Não é necessariamente o medo de morrer que atemoriza Mylia, mas as causas que

estavam a provocar a sua morte e as injustiças que lhe ocorreram. Por que tinha que morrer

por razões que se originaram na opressiva vivência no Georg Rosenberg? Além de toda

maldade que sofrera nas mãos de Busbeck e Gomperz, ainda tinha que pagar com a própria

vida e ainda, morrer solitária, angustiada de dor física e pensamentos angustiantes? Morrer

seria para a personagem uma entrega de sua vida ao mal representado pela morte. Por isso,

Mylia avança a madrugada do dia 29 de Maio à procura de uma força suprema que pudesse

mitigar seu sofrimento e a livrasse da morte. O ambiente desumano que a cerca não lhe

oferece o mínimo de amparo, assim, a razão dá espaço à fé, e Mylia anseia a intervenção

de uma figura que transcende o humano.

Na figura de Ernst, analisou-se uma segunda representação da morte. Nessa

personagem foi focalizada a tentativa de suicídio, o último e extremo pedido de socorro.

Mas, novamente, a quem se dirige esse pedido de socorro? Não há ninguém, nenhuma

ajuda. Ernst, assim como Mylia, internado no hospício de Gomperz, sofrera severas

opressões e, depois de ter engravidado Mylia, fora duramente perseguido. Ademais, não

pode ser pai, porque o filho com Mylia foi levado por Busbeck e, mesmo anos depois de

sair de Georg Rosenberg, não pudera reestabelecer-se como uma pessoa “normal”.

Na rua, sentia-se “menos” perante as outras pessoas; fisicamente, tinha uma

deficiência nas pernas, somado a um desajuste emocional por ter estado anos isolado

daquela vida externa. A vivência no hospício era fortemente medicada e Gomperz desejava

controlar até os pensamentos dos pacientes. Em seu interior, Ernst era transtornado com as

lembranças de hospício e inquietava-se só de pensar no rosto de Gomperz. Ele o odiava.

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Duas principais linhas de pensamentos analisam a questão do suicídio; de um

lado, o estudo sociológico do caso; de outro, as concepções que se voltam para o ato como

uma questão do indivídio em particular. No contexto de Jerusalém, a marca negativa do

social interfere sobremaneira na vida de Ernst e isso desencadeia a tentativa de suicídio. O

desespero existencial, as marcas traumáticas, a solidão; essa somatória maléfica faz com

que a personagem deseje colocar um fim, não à vida, mas aos sentimentos ruins que o

atormentam.

No romance o assassinato, tanto no pano de fundo da obra que rememora o

Holocausto, quanto nas ações da personagem Hinnerk, ex-soldado de guerra, representa a

degradação do homem e o pouco valor que se tem em relação aos seus semelhantes. A

guerra é um evento maligno e, especificamente o Holocausto, devastou o conceito de

humanidade. A violência e a crueldade humana assumiram tão elevado grau, que

romperam os limites entre humanidade e monstruosidade. Não se pode mais viver da

mesma forma depois de Auschwitz.

Hinnerk, em situação de guerra, matava ou morria. As lembranças são

profundamente traumáticas e a personagem é sobrecarregada de angústia. Dia após dia

carregava a marca de assassino em sua memória, vivia protegendo-se de supostos inimigos

de tal forma que realidade e fantasia já não se separavam mais. Trazia uma arma consigo a

todo o tempo, e aquele instrumento, metal que fora feito para matar, apenas aguardava dele

um gesto para assassinar novamente. Hinnerk ao tocar o cano, o cheiro de metal, sentia

estranhamento diante daquele objeto frio, mas por outro lado, o cano lhe era familiar e

tinha cheiro humano; o cheiro de suas mãos. A frieza com que agira como soldado outrora

repetiu-se na madrugada de 29 de Maio; Hinnerk aprendera a matar e matou mais uma vez:

o jovem Kaas, filho de Mylia e Ernst que cruzou tragicamente o caminho daquele homem

que estava sedento por morte. A violência pode surgir de qualquer lugar, a qualquer

momento e Kaas estava no caminho quando ela surgiu.

Percebe-se que para escrever uma obra com todas essas vivências, a necessidade

de se trabalhar a estrutura narrativa é gritante. Não é possível narrar tais fatos de forma

regular, linear e temporal, quando as personagens não podem fechar um ciclo existencial e,

dessa forma, vivem assolapadas pelo passado e angustiadas com o tempo presente e futuro.

O narrador de Jerusalém faz um árduo trabalho, misturando as temporalidades,

mesclando as vozes do romance, que ora aparecem em terceira pessoa, ora em primeira,

inclusive misturando-se à do narrador. Essas estratégias são propícias para a construção de

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uma atmosfera fragmentada e caótica na qual estão inseridas as personagens “loucas”,

angustiadas, imersas na vida repleta de traumas, de dores e com a morte sempre à espreita.

As representações da morte em Jerusalém são traumáticas, trágicas e

excessivamente violentas. Esse é o contexto que abriga esse romance contemporâneo

português. Não apenas o ambiente em que a obra fora produzida, mas o mundo

compartilha de uma vivência preocupante e violenta. O romance de Tavares desperta a

percepção do leitor para a violência e a maldade que pairam como nuvem ameaçadora

sobre a sociedade contemporânea.

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