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www.ts.ucr.ac.cr 1 REPRESENTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E DEFESA DE INTERESSES NO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DA GESTÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE Alessandra Ximenes da Silva 1 INTRODUÇÃO A descentralização político-administrativa no Brasil, foi fortemente marcada pelo processo de democratização do país, associando-se à necessidade do Estado em dar resposta à crise e às novas pressões dos movimentos sociais. Nessa direção, tomaria relevância o papel do governo municipal, enquanto espaço político-institucional, no qual se expressam a representação, a aliança, o confronto e a disputa de interesses. A descentralização política e a participação cidadã, nas instâncias do Estado, emergiam como elementos estratégicos essenciais, para viabilizar a combinação de instrumentos de democracia representativa com a democracia direta. As políticas públicas de saúde traduziram, durante a década de 80, a dinâmica desta evolução, centrada, no primeiro qüinqüênio, na consolidação dos processos institucionais e na expansão da cobertura assistencial, inaugurados em fins da década de 70. Durante todo o segundo qüinqüênio, coincidente com o governo da “Nova República”, as políticas de saúde inauguraram movimentos de descentralização político-administrativa, com ampla reorganização jurídico-institucional, e universalização do direito aos serviços de saúde, sem precedentes na história sanitária do país. Esse processo é fruto da conquista dos setores sociais organizados e dos intelectuais que defendem a saúde como direito do cidadão, apoiados no princípio da reforma sanitária, reiterados na VIII, IX, e na X Conferência Nacional de Saúde, realizadas nos anos de 1986, 1992 e 1996, respectivamente. Uma das propostas para a democratização é a implantação e o funcionamento dos Conselhos de Saúde que apareceram recentemente como uma ampliação dos espaços tradicionais de representação política. Algumas dificuldades são apresentadas quanto ao funcionamento desses Conselhos que exigem práticas democráticas, esbarrando em dificuldades relacionadas na 1 Mestre em Serviço Social pela UFPE; Chefe do Setor de Serviço Social do Hospital Geral Otávio de Freitas; Membro do Conselho Estadual de Saúde de PE; e integrante da Coordenação Geral do Coletivo de Conselheiros de Saúde de Pernambuco.

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REPRESENTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E DEFESA DE INTERESSES NO PROCESSO DE

DEMOCRATIZAÇÃO DA GESTÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE

Alessandra Ximenes da Silva1

INTRODUÇÃO

A descentralização político-administrativa no Brasil, foi fortemente marcada pelo

processo de democratização do país, associando-se à necessidade do Estado em dar

resposta à crise e às novas pressões dos movimentos sociais. Nessa direção, tomaria

relevância o papel do governo municipal, enquanto espaço político-institucional, no qual se

expressam a representação, a aliança, o confronto e a disputa de interesses. A

descentralização política e a participação cidadã, nas instâncias do Estado, emergiam como

elementos estratégicos essenciais, para viabilizar a combinação de instrumentos de

democracia representativa com a democracia direta.

As políticas públicas de saúde traduziram, durante a década de 80, a dinâmica

desta evolução, centrada, no primeiro qüinqüênio, na consolidação dos processos institucionais

e na expansão da cobertura assistencial, inaugurados em fins da década de 70. Durante todo o

segundo qüinqüênio, coincidente com o governo da “Nova República”, as políticas de saúde

inauguraram movimentos de descentralização político-administrativa, com ampla reorganização

jurídico-institucional, e universalização do direito aos serviços de saúde, sem precedentes na

história sanitária do país. Esse processo é fruto da conquista dos setores sociais organizados

e dos intelectuais que defendem a saúde como direito do cidadão, apoiados no princípio da

reforma sanitária, reiterados na VIII, IX, e na X Conferência Nacional de Saúde, realizadas nos

anos de 1986, 1992 e 1996, respectivamente.

Uma das propostas para a democratização é a implantação e o funcionamento

dos Conselhos de Saúde que apareceram recentemente como uma ampliação dos espaços

tradicionais de representação política.

Algumas dificuldades são apresentadas quanto ao funcionamento desses

Conselhos que exigem práticas democráticas, esbarrando em dificuldades relacionadas na

1 Mestre em Serviço Social pela UFPE; Chefe do Setor de Serviço Social do Hospital Geral Otávio de Freitas; Membro do Conselho Estadual de Saúde de PE; e integrante da Coordenação Geral do Coletivo de Conselheiros de Saúde de Pernambuco.

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inconsistência de uma cultura política democrática e da persistência de uma tradição

autoritária, ainda presentes na realidade nacional.

1 - O S D I L E M A S E D E S A F I O S D A R E P R E S E N T A Ç Ã O

E P A R T I C I P A Ç Ã O

O debate contemporâneo sobre a representação, envolvendo tanto a liberdade

quanto a participação, tem sido a tônica das reivindicações democráticas que ampliam a

questão liberal da cidadania, do plano político institucional, para a sociedade como um todo.

Ao examinar a ampliação das lutas populares, no Brasil, nos últimos anos,

podemos observar que essas lutas têm se localizado em dois planos principais: a) no plano

político, a luta não é pela tomada do poder, mas pelo direito de se organizar politicamente e

pelo direito de participar das decisões, rompendo a verticalidade do poder autoritário; b) no

plano social, mais amplo, nota-se que as lutas não se concentram na defesa de certos direitos

ou em sua conservação, mas na conquista do próprio direito à cidadania, pelo reconhecimento

de novos direitos e, portanto, de novos sujeitos sociais.

Um dilema e também desafio colocado na atualidade, se inspira numa visão da

democracia que viabilize não apenas mais capacidade de representação como também de

participação.

A participação, entendida como a socialização da política, pela incorporação

ampla da sociedade civil, nas diversas instâncias do Estado, implica na tomada de decisões

por um maior número de cidadãos, trazendo maior visibilidade às políticas de Estado.

Isso remete à possibilidade de, no interior da ordem burguesa, ainda sob a

dominação de um Estado capitalista, ter lugar a representação de interesses (ainda que

parciais) das classes subalternas, com a conseqüente formulação de políticas que respondam

a demandas provenientes dessas classes. O Estado já não representa apenas os interesses

comuns da burguesia; ele é obrigado, pela pressão “de baixo”, a se abrir também para outros

interesses, provenientes de diferentes classes.

Segundo Coutinho (1994, p. 54) tais interesses se corporificam, encontrando seus

portadores materiais, na emergência de sujeitos coletivos, em número cada vez maior.. Esses

sujeitos coletivos se constituem freqüentemente como resposta à necessidade de defender

interesses específicos, particulares, superiores aos interesses puramente singulares. Numa

sociedade cujos sujeitos políticos são constituídos a partir de múltiplos interesses, sempre

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postos em discussão e em confronto, estes assumem um peso cada vez maior, na relação

entre governantes e governados — ou, se quisermos, entre Estado e sociedade.

É importante observar que o Estado continua a ser capitalista, por mais

“ampliado” que seja, por mais que represente interesses plurais, sempre que, e enquanto —

baseado em seus critérios de seletividade — atue no sentido da manutenção de uma esfera

econômica “privada”, fora do alcance da esfera política. Aliás, é essa separação última entre

economia e política que caracteriza a natureza capitalista do Estado moderno.

Ao fazermos essa análise sobre a realidade brasileira quanto às transformações

políticas e à modernização econômico-social, constatamos que essas foram efetuadas através

de uma “via prussiana“, ou seja, com a conciliação entre frações das classes dominantes, com

medidas aplicadas de cima para baixo, com a conservação de traços essenciais das relações

de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência ao

capitalismo internacional.

Consideramos que, uma direta consequência da “via prussiana” foi gerar uma

grande debilidade histórica da democracia no Brasil. Essa debilidade não se expressa apenas

no plano do pensamento social; tem consequências também na própria estrutura do

relacionamento entre o Estado e a sociedade civil, desde que o caráter extremamente forte e

autoritário do primeiro correspondeu à natureza amorfa e atomizada da segunda.

Para combater essa tendência prussiana, a democracia de massas apresenta-se

como alternativa na realidade brasileira, através da incorporação organizada das grandes

massas à vida política nacional, que desloque, cada vez mais “para baixo”, o eixo das grandes

decisões.

Ampliar a organização desses vários sujeitos coletivos de base e, ao mesmo

tempo, respeitar sua autonomia e diversidade, não é apenas condição para extirpar

definitivamente os elementos ditatoriais que continuam ainda a se manifestar nesse período de

transição é também um passo decisivo no sentido de criar os pressupostos para o

aprofundamento e generalização do processo de renovação democrática.

No entanto, necessário se faz levantar algumas reflexões quanto aos desafios e

dilemas que se colocam no campo da luta política e teórica pela democracia. Como salientou

Moisés (1989, p. 10) “a democracia convive com a miséria, a pobreza, a desigualdade e,

mesmo, com distintas formas de opressão ( de sexo, de idade, de raça, para falar só dos

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mais evidentes). Isso é visível em países tão diferentes como os Estados Unidos, a Itália, a

Inglaterra ou o Brasil”.

Na década de 80, os aspectos políticos decorrentes do processo de transição

democrática, trazem, consequentemente, uma nova forma de relacionamento entre o Estado e

a sociedade civil. No entanto, não anulam, inteiramente, os arcaísmos políticos implícitos na

performance das instituições e dos sujeitos políticos.

A sociedade brasileira é extremamente complexa, contraditória e atravessada por

ambivalências de todos os tipos, em que a defesa de interesses se faz em um terreno ambíguo,

que desfaz as fronteiras entre a conquista de direitos legítimos e o mais estreito corporativismo;

em que a experiência democrática coexiste com a aceitação ou mesmo convivência com

práticas, as mais autoritárias; em que a demanda por direitos se faz, muitas vezes, numa

combinação aberta ou encoberta com práticas renovadas de clientelismo e favoritismo, que

repõem diferenças, onde deveriam prevalecer critérios públicos igualitários.

Toledo, refletindo sobre a questão da democracia, faz uma análise que se impõe,

ao trabalharmos com o processo de democratização que se vem tentando construir, em nosso

país. O autor considera que não se pode perder de vista a questão dos limites e do alcance da

luta pela democratização, dentro dos aparelhos do Estado capitalista: “Seria ilusório supor que

as classes e frações venham a ocupar posições semelhantes ou de equilíbrio no seu interior”

(1994, p. 39). Assim, “considera que o processo de socialização da política, enfrenta

dificuldades de garantir que as classes dominantes aceitem dividir o seu poder” ( Toledo,

1994, p. 196).

O autor indaga se a democratização do Estado – na plena vigência da ordem

capitalista – poderá permitir às classes populares e trabalhadoras alcançar e controlar os

núcleos estratégicos do poder político, ou seja, se os principais e decisivos aparelhos de

hegemonia (escola, igreja, mass mídia, justiça, instituições políticas e administrativas, família,

etc) estão abertos e acessíveis às classes trabalhadoras e populares.

Segundo Toledo, esses aparelhos não são monolíticos, nem funcionam como

meros veiculadores das ideologias dominantes; neles, igualmente, se refletem as contradições

sociais e aí se pode travar a luta ideológica de classes. No entanto, não se deve perder de vista

a questão dos limites e do alcance dessa luta, dentro desses aparelhos.

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O autor conclui, reconhecendo que a democracia é limitada, no interior do

capitalismo. Por outro lado, o valor da democracia política – na ordem do capital – reside nas

possibilidades abertas para os trabalhadores e camadas populares melhor se organizarem

politicamente e combaterem a hegemonia cultural e ideológica da burguesia. A democracia

cria, assim, as melhores condições para os trabalhadores lutarem pela construção de uma

sociedade, sem privilégios e sem discriminações. É nesse sentido, pois, que a

institucionalidade democrática deve ser consolidada e permanentemente ampliada.

Essa é uma possibilidade que existe no horizonte da dinâmica societária

contemporânea, na qual se alojam os problemas e desafios atuais, mas também os sinais de

uma sociedade civil emergente, construída através de novas práticas de

representação/participação e negociação de sujeitos políticos reconhecidos na legitimidade de

seus interesses e dos direitos reivindicados.

2 - 0 CONTROLE SOCIAL NA SAÚDE

A existência de Conselhos como canal de participação da sociedade na

constituição do poder político não é uma questão recente. Segundo Teixeira (1996, p. 03), os

teóricos marxistas clássicos já os concebiam como órgãos embrionários de um governo

revolucionário, cujos delegados receberiam um mandato imperativo e revogável.

Na realidade brasileira, nas décadas de 70 / 80, a questão dos conselhos se

insere na agenda política de duas formas. De um lado,na forma de “conselhos comunitários”2

criados pelo poder público para negociar demandas de movimentos populares, face à

crescente mobilização da população, principalmente a residente nos bairros de periferia. A

outra forma de conselho, tinha características de “conselho popular”3, criado a partir dos

próprios movimentos, sem uma estruturação formal e baseado em ações diretas e sem nenhum

envolvimento institucional, a não ser os contatos com autoridades para pressionar sobre

reivindicações, com a proposta de constituir-se em força política autônoma em relação aos

partidos e ao Estado.

2 Essas iniciativas surgiram como tentativa de resposta de governos eleitos a partir de 1982 à crescente mobilização popular, buscando neutralizar a força política que certas organizações populares passaram a ter com o agravamento da crise política e econômica (Teixeira, 1996, p.04). 3 Experiências como a de Campinas-SP, “Assembléia do Povo” (1979), Conselho Popular Municipal de Osasco (1980), Comissões de Saúde da Zona Leste de São Paulo (1970), a partir das quais se formaram os “Conselhos de Saúde dos Centros” (1981).

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O processo de institucionalização dos conselhos teve início na década de 80,

através de Decretos, em algumas experiências municipais. Com a Constituição de 1988, foram

garantidos, em vários setores das políticas públicas e regulamentados no início da década de

90, como ocorreu no âmbito da Seguridade Social - Saúde, Previdência e Assistência Social.

Os Conselhos de Gestão representam uma conquista do processo de

democratização vivido pelo Brasil, em sua história recente. Com uma formação que prevê a

participação de representantes dos vários segmentos sociais, os Conselhos tornaram-se

mecanismos de controle, planejamento e implementação de políticas públicas. Essa discussão

remete à discussão do controle social, entendido como a participação da sociedade na

proposição, fiscalização e controle sobre as ações do Estado e do governo. São vários os

mecanismos de controle social, destacando-se no setor saúde, as Conferências e os

Conselhos de Saúde, nos três níveis de governo.

Por Lei, os Conselhos de Saúde devem ser compostos de forma paritária - 50% de

usuários, 25% dos trabalhadores em Saúde e 25% do governo e prestadores privados - e

devem ter caráter deliberativo. O chefe do poder executivo, em cada nível que corresponda, tem

que homologar as decisões tomadas pelo Conselho, mas é este que tem o papel de decisão.

Estas decisões tratam da formulação de estratégias e do controle da execução da política de

saúde, incluindo aqui, o pleno acesso aos aspectos econômico-financeiros voltados para o

setor. No que se refere ao Fundo de Saúde - conta única para onde fluem todos os recursos

para a saúde, em cada nível - a recomendação legal é clara: a audito ria e controle são feitos

pelo Conselho de Saúde.

Os Conselhos de Saúde enfrentam vários obstáculos para cumprir suas propostas.

Um dos mais significativos é a resistência do poder executivo de expor suas decisões ao

debate aberto com a sociedade. Por esse motivo, há o risco de os Conselhos serem alvos de

tentativas de instrumentalização por parte de governantes que desejam, muitas vezes, torná-los

meros veículos de legitimação de suas políticas. Em outros casos, seu funcionamento é

dificultado pela inexistência de condições mínimas de infra-estrutura ou, então, suas decisões e

propostas são ignoradas pela esfera governamental.

As respostas a essas e outras indagações devem vir de um conhecimento mais

detalhado da prática dos Conselhos de Saúde, seja enquanto instrumentos de denúncia,

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combate às desigualdades sociais e controle da gestão pública; seja na condição de

colegiados que expressam interesses, projetos e acessos diferenciados ao poder.

Para o enfrentamento desses impasses algumas indicações podem ser

evidenciadas: a importância da democratização da informação; o fortalecimento dos espaços

de debate entre os representantes / representados, legitimando as representações. Isso remete

ao ideário da participação ampliada dos cidadãos, que seria garantida pela utilização de

mecanismos de participação direta e, nos espaços de representação, através da manutenção

de vínculos orgânicos entre representantes e base social.

A participação propositiva exige uma relação efetiva entre representantes e seus

segmentos, traduzindo e dando visibilidade política às suas demandas e necessidades. O que

vem ocorrendo é que tais segmentos não conseguem “inscrever seus interesses como

questões sociais, como problemas - objeto das ações políticas concretas” (Cecílio, 1994, p.

26). Observa-se , assim, que a participação ainda não se efetiva no campo propositivo,

traduzindo-se como produto de ações rotineiras, burocráticas e circunstanciais.

Para o exercício do controle social, torna-se necessário, para os movimentos

populares, repensar estratégias de atuação, investindo na formulação propositiva de políticas

públicas, o que implica em buscar respostas a desafios de uma nova natureza e qualidade,

sem perder de vista que a participação em espaços institucionais não é o único propósito de

um processo de mobilização e luta, sendo, porém, onde se pode detectar a expressão das

relações de forças existentes na sociedade e a negociação se configurar como um meio dos

interesses populares não hegemônicos legitimarem-se para o conjunto da sociedade (Caccia

Bava, 1994, p. 09). Para tanto, necessário se faz, a prática efetiva do controle social, nos

aspectos referentes ao planejamento e financiamento da política de saúde, e, que esta esteja

efetivamente voltada para a construção de um modelo de atenção para a melhoria da qualidade

de vida.

Para tanto, necessário se faz, a prática efetiva do controle social, nos aspectos

referentes ao planejamento e financiamento da política de saúde, e, que esta esteja

efetivamente voltada para a construção de um modelo de atenção para a melhoria da qualidade

de vida.

3 - O PLANEJAMENTO NO SUS

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O processo de planejamento envolve vários momentos que interagem de forma

dinâmica, se constituindo num permanente movimento e conhecimento da realidade,

formulação de políticas, definição de estratégias, programação de ações e de recursos

financeiros, acompanhamento e avaliação.

Em face das atuais condições de saúde da população brasileira, a complexidade

crescente da realidade de saúde, impõe ao planejamento uma tarefa necessária, com

participação da população.

O processo de planejamento precisa ser descentralizado, articulado e com

participação da população. Seu desenvolvimento e estruturação em nível local, como em nível

nacional, deve considerar e absorver elementos conceituais e metodológicos que viabilizem a

reorientação das práticas sanitárias e o controle social. Segundo Evangelista (1994, p. 21) “o

processo de planejamento somente delineará ações resolutivas e importantes quando for

capaz de articular os diferentes saberes e fazeres relacionados com os fatores que vêm

condicionando e determinando a realidade que se quer alterar”.

A municipalização das ações e serviços de saúde coloca-se, hoje, como uma

realidade da política de saúde, assumida pela maioria dos municípios brasileiros. A questão

central, agora, reside na elaboração de planos de saúde para a utilização dos recursos da

forma mais coerente possível com as reais necessidades da população local, sendo por ela

definidos e acompanhada a sua execução, concretizando um modelo de assistência dentro dos

princípios e diretrizes das leis que regem o SUS: a universalização do atendimento, a

descentralização de ações e serviços , o controle social, a integralidade, entre outros, devem

ser implementados por medidas gerenciais capazes de promover a eficiência e a eficácia dos

serviços a serem prestados.

O planejamento estratégico considera que todos - população, profissionais e

gerentes - têm influência, de alguma forma, na condução e consecução das ações e objetivos

da política de saúde. O planejamento postula para si uma nova ordem de pensar. “Vários

autores indicam uma nova concepção de planejar, na perspectiva de um planejamento

estratégico ‘voltado para os seus atores sociais’, tendo a comunidade como um ator social de

maior relevância” (Rivera,1989).

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O planejamento estratégico situacional, quando efetivado, contempla a nova

realidade exigida pelo SUS. O processo de planejamento envolve vários momentos que

interagem e se interalimentam de forma dinâmica, se constituindo num permanente movimento

e conhecimento da realidade, formulação de políticas, definição de estratégias, programação

de ações e de recursos financeiros, acompanhamento e avaliação.

O planejamento deve ser um processo que tenha a participação da sociedade, a

qual pressupõe não só a abertura efetiva de canais institucionais junto aos serviços e sistemas

de saúde, mas, principalmente, o desenvolvimento de metodologias que sejam capazes de

articular pessoas, lideranças, organizações e instituições, direta ou indiretamente envolvidas

com a problemática de saúde, visando a participação dos diversos sujeitos sociais em todos

os momentos do processo de planejamento. Para tanto, o requisito básico é o acesso dos

sujeitos a informações confiáveis e devidamente trabalhadas. As mudanças só se tornam

viáveis na medida em que elas reflitam as verdadeiras necessidades da população submetida

à realidade que se quer mudar, e na medida em que, por outro lado, a população esteja

envolvida na procura de soluções e no controle e avaliação dos resultados das ações e

serviços de saúde.

4 - REPRESENTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E DEFESA DE INTERESSES NA

POLÍTICA MUNICIPAL DE SAÚDE DO RECIFE.

Este estudo enfoca a representação, participação e defesa de interesses na

política municipal de saúde, através do Conselho Municipal de Saúde do Recife / CMS - Recife.

A questão central aborda este Conselho enquanto espaço de negociação, e os avanços no

processo de democratização da política, entendida como socialização das decisões, no

planejamento, do setor saúde, a nível local.

Trata-se de um estudo de caso, de caráter qualitativo, privilegiando o processo de

participação dos sujeitos políticos, enfocando seus limites e possibilidades. Foi escolhida

como unidade de estudo o CMS-Recife, em atividade desde agosto de 1993.4 A proposta de

descentralização político-administrativa não se dá apenas no setor saúde, e sim em todo o

governo municipal, o que tenderia a facilitar o relacionamento com a sociedade organizada, na

defesa de interesses.

4 O Município encontrava-se na condição de gestão semi-plena da saúde, o que garantia autonomia nos aspectos decisórios dessa política específica.

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Uma vez definidos os critérios de escolha da unidade de estudo da pesquisa,

passamos para o procedimento de coleta de dados, através de fontes secundárias, tais como:

documentos do CMS-Recife — Lei de criação do Conselho, Lei de criação do Fundo Municipal

de Saúde, Atas (referentes a 57 reuniões do CMS-Recife), relatórios de gestão, prestação de

contas do Fundo Municipal de Saúde, Proposta Orçamentária (1995 e 1996) e o Plano

Municipal de Saúde. O estudo deste material tem como objetivos: analisar o processo de

criação do CMS-Recife, a escolha das representações, identificar as propostas apresentadas

pelos segmentos sociais e os interesses contemplados e também analisar as prioridades do

executivo.

Foram, ainda, realizadas entrevistas semi-estruturadas com 16 (dezeseis)

membros do CMS - Recife, representantes dos diferentes grupos de interesses, a saber: 10

(dez) representantes dos usuários, 03 (três) representantes dos trabalhadores em saúde, 02

(dois) representantes dos prestadores públicos e 01 (um) representante dos prestadores

privados5.

Nas entrevistas, nosso interesse foi investigar as concepções dos representantes,

a participação e interesses; as articulações/alianças e confronto entre os segmentos sociais; as

relações entre os segmentos sociais e o executivo; o intercâmbio entre o representante/base

social; o acesso às informações; a transparência das ações; os mecanismos decisórios e as

propostas apresentadas pelos conselheiros, referentes ao planejamento e financiamento da

política de saúde, no âmbito municipal.

Configuramos a representação e a participação dos conselheiros de saúde no

CMS - Recife, de acordo com a representatividade (critérios, forma de composição e a

participação dos segmentos sociais), as propostas apresentadas (os segmentos sociais que

apresentaram, a natureza e os interesses defendidos, se particulares, específicos, ou coletivos),

a articulação/intercâmbio com a sua base social (existência, incipiência ou inexistência).

5 Necessário se faz esclarecer que não entrevistamos todos os conselheiros devido a ausências de algumas

representações nas reuniões, como a da Região Político-Administrativa (RPA) - 05 e a da Confederação Geral dos Trabalhadores - CGT, no segmento dos usuários. Quanto aos trabalhadores, apesar de legalmente terem conseguido paridade no Conselho, este espaço não tinha sido efetivamente ocupado, até o término de nossa pesquisa. Quanto às representações dos prestadores, tivemos dificuldades para entrevistar os representantes das Universidades. Desse modo, legalmente o Conselho deveria ter 24 representantes, mas estava funcionando com 22 representantes (e destes, alguns encontravam-se ausentes). Assim, conseguimos entrevistar 72,2% do total de Conselheiros de Saúde.

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Também utilizamos a observação para complementar a análise da participação

dos representantes dos diferentes segmentos nas reuniões. Foi garantido ao pesquisador o

acesso às reuniões, após contato com o Secretário Adjunto de Saúde – presidente substituto

do Conselho – e breve apresentação da proposta de estudo para os demais membros.

4.1 - O MUNICÍPIO DO RECIFE

A capital do Estado de Pernambuco, possui uma área de 202 km², representando

9,5% da área da região metropolitana, que abrange 12 Municípios, e 0,2% da área do Estado.

Sua população, em 1995, era estimada em 1.324.600 habitantes6, cerca de 18,24% da

população do Estado, com uma densidade demográfica de 6.205 habitantes por km2 .

De acordo com o Plano Municipal de Saúde do Município, a análise da estrutura e

do desempenho das atividades produtivas do Recife, fornece indicações de que os padrões de

desenvolvimento observados refletem, amplamente, as características de economias

subdesenvolvidas, em processo intenso de urbanização: inchação do setor terciário, com alto

índice de subutilização da mão-de-obra; e desmensurada concentração de desemprego.

Quanto ao perfil epidemiológico, mostra um quadro sanitário merecedor de

atenção. A alta prevalência de doenças do aparelho circulatório e as neoplasias, impõem a

necessidade de implantação de programas específicos, destinados à prevenção e tratamento

do diabetes, da hipertensão arterial e do câncer, nas unidades de saúde. As taxas de

mortalidade, geral e infantil, no período de 1979 a 1988, demonstram tendência decrescente.

Por outro lado, o comportamento da mortalidade, por grupos de causas externas, apresenta um

significativo aumento, chama a atenção, o elevado índice dos homicídios e os acidentes de

trânsito, como reflexo do agravamento da violência urbana.

De acordo com dados do Plano Municipal de Saúde do Recife (1993, p. 54), ao

referir-se à mortalidade por grupos de causas, no período de 1980 a 1989, observou-se uma

diminuição dos óbitos por doenças infecto-parasitárias e afecções do período neonatal, e um

aumento dos óbitos por causas externas. As doenças do aparelho circulatório continuam sendo

a principal causa de morte do recifense, seguida das causas externas, neoplasias e doenças

infecciosas e parasitárias.

6 Projeção da população total de 1995 a 2000 - estimativa da FIDEM.

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Considerando-se a premência de se criar uma estrutura gerencial, para as novas

funções assumidas pela Secretaria Municipal de Saúde, com o objetivo de efetivar a

municipalização, foi implantada uma estrutura organizacional, com a finalidade de fornecer a

necessária sustentação institucional e de descentralização, com a criação de seis diretorias de

nível central e seis distritos sanitários.

4.2 - A REPRESENTAÇÃO NO CMS-RECIFE

.Em relação à institucionalização do Conselho Municipal de Saúde, o Diário

Oficial da Cidade do Recife, nº 72, de junho de 1993, publicou a Lei 15.733/93, de 18/06/93, a

qual tratava sobre os seus objetivos, estrutura e o funcionamento de caráter deliberativo e

composição paritária, como parte da estrutura básica da Secretaria de Saúde. Sua

composição inicial era de vinte e dois (22) representantes, sendo: 50% do poder público,

prestadores de serviços e trabalhadores em saúde e 50% representantes dos usuários7.

Desde o início da formação do CMS-Recife, o processo de escolha dos

representantes não foi objeto de um consenso, havendo várias contradicões sobre o assunto,

inclusive, o entendimento, por parte do gestor local, do Conselho como espaço de

representação restrita da sociedade, levando, desse modo, à priorização do Programa

Prefeitura nos Bairros, considerado um espaço democrático, de representação ampliada.

Na eleição dos representantes dos usuários, segundo os depoimentos,

“aproveitou-se a estrutura do Programa Prefeitura nos Bairros, para a escolha da

representação das RPAs”, considerada pelos mesmos “um processo democrático”. As demais

representações foram escolhidas por eleição ou indicação dos seus respectivos segmentos,

colocando, no entanto, “que não houve muito mais o que definir, já estava tudo acertado, o

número de vagas para cada segmento...não teve mais opção, não tinha mais o que ser

7 A composição prevista na Lei 15.773/93, de 18/06/93, do CMS - Recife, contemplava as seguintes representações: um representante da Secretaria de Saúde; um representante da Secretaria de Políticas Sociais; um representante da Secretaria de Planejamento Urbano e Ambiental; um representante da Câmara de Vereadores do Recife; um representante do órgão gestor do SUS; um representante de entidades prestadoras de serviço na área de saúde; três representantes de entidades de trabalhadores da área de saúde; dois representantes das centrais sindicais; seis representantes de Associações de Moradores do Município do Recife, sendo um de cada região de saúde; um representante de portadores de patologia e/ou deficiência; dois representantes do Movimento de Mulheres; um representante da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e um representante da UPE (Universidade de Pernambuco - antiga FESP).

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mudado”. Desse modo, temos duas visões do processo de definição dos representantes, uma

que avalia ter havido um processo democrático e outra que afirma que esse processo foi

inexistente.

Quanto à escolha dos trabalhadores, essa ocorreu através de envio de

correspondência, por parte da Secretaria de Políticas Sociais para uma reunião com as

entidades representativas, nesse momento, o número de vagas era de apenas 03 (três), o que

não garantia a paridade com os prestadores públicos e privados. Inicialmente, não houve

questionamentos por parte dos trabalhadores a respeito da paridade, só ocorrendo

posteriormente, ou seja, foi aceita a proposta do Governo Municipal.

A representação dos prestadores de serviços públicos e privados, foi feita

através de indicação das respectivas secretarias municipais e entidades. Também aqui não

houve contestações, só ocorrendo mais adiante, quando segmentos do próprio governo

começaram a questionar sua representação 8 , e o setor privado também sentiu-se prejudicado,

porque só ficou com 01 (uma) vaga, considerando que seria “sempre voto vencido”.

4.3 - PARTICIPAÇÃO DOS CONSELHEIROS DE SAÚDE NO

PLANEJAMENTO NO CMS - RECIFE

O entendimento da participação como um processo de “socialização da política”,

ou seja, “a socialização dos meios e processos de governar”, pela incorporação ampla da

sociedade civil nas diversas instâncias do Estado, implica na tomada de decisões por um

maior número de cidadãos, trazendo maior visibilidade às políticas de Estado (Coutinho, 1984,

p.27).

Esse processo, entretanto, apresenta os seus desafios, a partir do momento em

que a abertura de canais de participação, mais do que uma formalidade, deve contar com forte

determinação e vontade política do governo para deflagrar a construção conjunta de uma nova

cultura política que faça avançar a consciência de cidadania e traga resultados concretos para

a melhoria de vida da população.

O Plano Municipal de Saúde do Recife, foi apresentado, aos conselheiros, logo

no início da formação do CMS - Recife, conforme consta em ata da reunião do dia 28/09/93 (2ª

8 No momento de discussão da proposta de reestruturação do CMS - Recife, cogitou-se a possibilidade da Secretaria de Política Social deixar de fazer parte do mesmo; o que acarretou alguns questionamentos, desde que, era a Secretaria que assumia toda a parte de divulgação e mobilização da comunidade.

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Reunião Ordinária do Conselho). Foi apresentado pelo secretário de saúde que questionou se

havia “alguma proposta para agilizar a análise e a aprovação do mesmo”. Um representante

dos usuários propôs que fosse “formada uma comissão para fazer uma análise detalhada do

plano e que fossem distribuídas cópias para todos os conselheiros”. Deliberou-se, então, um

prazo de quinze dias, após o recebimento do Plano, para a sua avaliação. Foi formada a

comissão, sendo composta por: 03 representantes dos usuários (CUT, Fórum de Mulheres e

RPA-04) e 02 representantes dos prestadores públicos (Diretoria de Planejamento - municipal;

Secretaria Estadual de Saúde - estadual).

Na reunião do dia 26/10/93 (3ª Reunião Ordinária do Conselho) foi entregue a

cópia do Plano Municipal de Saúde - PMS - a todos os conselheiros, e realizada a

apresentação do mesmo. Na reunião realizada em 09/11/93, 3ª Reunião Extraordinária, o

representante do governo abordou a necessidade da aprovação do PMS, definindo o prazo de

30/11/93, para que os conselheiros apresentassem suas emendas e estipulando o dia

14/12/93, para a aprovação do PMS, em reunião extraordinária.

Na reunião do dia 30/11/93 (4ª Reunião Extraordinária), alguns conselheiros

apresentaram suas propostas e no mesmo momento, a representação do governo informou o

que seria possível ser acatado, ou não, pela Secretaria Municipal de Saúde (Ver Quadro I).

QUADRO I

PROPOSTAS DOS CONSELHEIROS NO PLANO MUNICIPAL DE SAÚDE

PROPOSTAS DOS CONSELHEIROS

REPRESEN-

TAÇÃO

ACATAMENTO PELA

SMS-REC

JUSTIFICATIVA DA SMS - RECIFE

sim parc não

•Mortalidade materna - Acréscimo ao texto, dando ênfase às causas de morte

FÓRUM DE

X

•Programa de assistência à mulher – alteração no texto no sentido de tornar mais claro as ações propostas

MULHERES

X

•Recursos humanos - detalhar o agrupamento de “especialistas” e alterar a categoria bioquímico ,biomédico e biólogo

X

•A SMS, atualizou e alterou a tabela de

acordo com a solicitação, porém, não foi

possível detalhar os “especialistas”

neste momento

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•Assistência farmacêutica –inclusão do item ao PMS

CUT

X

•Programa dos agentes comunitários – explicitar a forma de seleção dos agentes

X •Por não se tratar de questão a ser

detalhada num Plano, justificando existir

no Programa da prefeitura critérios

estabelecidos para seleção dos

agentes.

•Política institucional - inclusão das competências do Conselho

X

•Perfil epidemiológico -ressaltou-se a necessidade de medidas preventivas de câncer de pulmão e próstata

RPA – 04

X •A Secretaria decidiu por não detalhar

específicamente, as medidas destas

causas, por entender que se tratam de

ações globais e, portanto, já explícitas

no item da assistência à saúde.

•Assistência ao deficiente - inclusão de itens dos programas e projetos prioritários

X

Quanto às propostas dos conselheiros de saúde, participantes da Comissão de

Apreciação do Plano, identificamos que, o Fórum de Mulheres, fez sugestões no sentido de

encaminhar a implementação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher - PAISM,

assim como contribuiu para que, na redação do texto, ficassem mais claros os aspectos

epidemiológicos que esclarecem as causas de morte materna, o que retrata a defesa de

interesses particulares.

A representação da Central Única dos Trabalhadores, apresentou propostas mais

abrangentes, envolvendo questões que se referiam aos recursos humanos, à assistência

farmacêutica, ao programa dos agentes comunitários de saúde e às competências do CMS -

Recife, configurando a defesa de interesses coletivos.

O representante da RPA - 04 apresentou propostas no sentido de garantir ações

de natureza preventiva a algumas modalidades de câncer (pulmão e próstata), assim como

uma política de assistência aos portadores de deficiência.

Ao que se refere às justificativas da SMS, quanto ao acatamento das propostas,

identificamos que, no que diz respeito aos recursos humanos , a SMS acatou parcialmente. No

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entanto, para detalhar os especialistas, necessitaria que houvesse um processo de

negociação, inclusive com a participação de alguns conselhos profissionais. Por uma questão

de prazo para a aprovação do plano, a SMS limitou-se a acatar a proposta. Entretanto, no que

diz respeito ao não acatamento da explicitação da forma de seleção dos agentes de saúde,

identificamos a existência de interesses políticos oriundos da SMS, vinculados às

comunidades, não sendo interesse do governo a definição de critérios no PMS. Lembramos

que, o programa dos agentes comunitários de saúde era considerado uma das prioridades do

governo, gerando uma defesa de interesse por parte deste.

Quanto a não querer especificar as diferentes modalidades de câncer, isso

suscitou a avaliação que, realmente, estava contemplado no PMS de forma global, não

cabendo tal detalhamento.

Ainda na reunião do dia 30/11/93, o representante da Secretaria Municipal de

Saúde, após a discussão com os conselheiros, abordou a possibilidade de aprovação do

Plano Municipal de Saúde, que não teve condições de ser aprovado neste dia, por falta de

quórum. Foi marcada uma reunião extraordinária para o dia 14/12/93, na qual foi aprovado o

PMS, por unanimidade. Segundo registros em ata da reunião do dia 30/11/93, vários

conselheiros cobraram a elaboração de um relatório da comissão, que só foi entregue aos

conselheiros após a aprovação do plano.

Afirmam em seus depoimentos, os conselheiros de saúde, que as

representações dos usuários, que apresentaram as propostas, foram apenas aquelas que

participaram da Comissão para a Apreciação do Plano Municipal de Saúde.

As propostas apresentadas pelos conselheiros não mexeram com os interesses

econômicos ou fizeram com que o governo se desviasse das suas prioridades políticas,

anteriormente definidas. Desse modo, entendemos que não foram consideradas conflitivas.

O Plano Municipal de Saúde é um plano de gestão feito para um período de 04

(quatro) anos, a cada ano é realizada uma avaliação. Nele é explicitado o curso de ação

escolhido, dentre os vários caminhos existentes, para se alcançar os objetivos do governo para

o setor saúde. Consiste na eleição de um elenco de ações e operações, com repercussão

sobre a melhoria da situação de saúde da população abrangida.

O PMS - Recife é abrangente, sua realização partiu de um diagnóstico do perfil

epidemiológico da população, entretanto, consideramos que, esse diagnóstico foi ainda

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preliminar, dado que algumas informações foram analisadas de uma maneira incipiente,

apresentando o diagnóstico, as prioridades e a viabilidade, mas necessitando aprofundar

vários aspectos que explicitariam melhor as análises e o acompanhamento da conjuntura

sanitária nacional, estadual e, principalmente, local, atentando para os determinantes da

realidade que se quer transformar, assim, seria necessário uma melhor apresentação /

discussão enfocando um diagnóstico político que identificasse os diferentes interesses

envolvidos com a saúde, o poder de cada um dos grupos de interesse que atuam no setor; um

diagnóstico de saúde como uma análise da realidade epidemiológica, bem como as situações

que determinam as doenças e como se distribuem nas diversas camadas sociais e; um

diagnóstico administrativo , de como se comporta a organização da instituição e do sistema,

seus conflitos e a estrutura interna de poder. Alguns desses aspectos foram contemplados, no

que diz respeito ao perfil epidemiológico, no entanto , uma análise que identificasse os grupos

de interesse na saúde não ficou explícita e nem os conflitos internos da instituição.

Segundo Matus (Matus apud Rivera, 1989), o planejamento deverá proporcionar

uma análise e informação de síntese para examinar as propostas e resultados a partir de todos

os ângulos conflitivos: político versus econômico, curto prazo versus período de governo, etc.

Cabe aqui a reflexão de Toledo (1991, p. 33), quando questiona se nas

sociedades democráticas contemporâneas, os principais e decisivos aparelhos de hegemonia

estão inteiramente abertos e acessíveis às classes trabalhadoras e populares. Ou então: as

diferentes classes sociais estão em igualdade de condições para deles se utilizar na produção

e difusão de suas posições ideológicas e culturais? Sabemos que esses aparelhos não são

monolíticos, nem funcionam como meros veiculadores das ideologias dominantes; neles

igualmente se refletem as contradições sociais. No entanto, não se deve perder de vista a

questão dos limites e do alcance dessa luta dentro desses aparelhos.

Desse modo, quando nos referimos à participação popular, uma questão

importante é o acesso dos cidadãos à informação. Uma gestão democrática necessita efetivar

o direito à informação. A formulação de mecanismos sistemáticos de propagação de

informações acumuladas pela administração é importante instrumento de legitimidade e

controle social exercido no aparelho estatal. A garantia do acesso à informação aos usuários

deve ser um dos objetivos da participação no processo decisório. Para tanto, exige um amplo

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debate com todas as forças sociais com relação à formulação das diretrizes referentes à

política de saúde, expressa no plano.

Nos depoimentos dos conselheiros de saúde, representantes dos trabalhadores

da saúde e dos usuários, foram apontadas várias dificuldades para a participação no Plano

Municipal de Saúde, dentre as quais destacamos:

* Metodologia utilizada / pressão para a aprovação de questões

“as questões são trazidas muito em cima de prazos, eles trazem hoje, para

aprovar amanhã, a gente não tem tempo de discutir, de avaliar, tem que ser aprovado” (rep.

dos usuários - RPA 04);

Como ficou evidenciado, através das atas e nos depoimentos dos conselheiros,

no cotidiano do CMS - Recife, a urgência na apreciação e aprovação do PMS submeteu as

decisões do Conselho a mecanismos que em nada contribuiram para o entendimento e,

portanto, comprometeram a organização e mobilização dos segmentos sociais. Além da

pressão por parte do governo em agilizar as decisões, esses representantes destacam que a

falta de informações técnicas, em decorrência de questões trazidas em cima dos prazos e a

falta de organização entre os segmentos sociais no CMS - Recife, demonstram o sentimento de

que as questões são trazidas prontas e colocadas para aprovação, muitas vezes até sem uma

pauta definida.

* Falta de Conhecimento Específico sobre Determinadas Questões

“não conheço até onde o Conselho pode influir, para influir em alguma coisa

tem que haver domínio ... a gente se esbarra na questão técnica da coisa” (rep. dos

trabalhadores em saúde - Sindicato dos Odontologistas);

A falta de conhecimento dos conselheiros sobre as questões técnicas,

principalmente nos aspectos referentes ao planejamento, orçamento e prestação de contas,

como também, nas questões epidemiológicas e clínicas, pode ser manipulada pelo gestor,

impedindo-os de participar de decisões que, antes mesmo de serem econômicas ou técnicas,

são políticas. Nem sempre o gestor local garante que as informações cheguem aos

conselheiros, de forma que se façam entender, acarretando um comprometimento no

desempenho do Conselho.

* Formação incipiente dos conselheiros

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“temos dificuldades em discutir política, discutir o que é prioridade, ver as

diferenças e ver também o que está por trás de tudo, a gente tem que ter ... é a questão

ideológica, a questão da consciência” (rep. dos usuários - RPA 02);

Os conselheiros de saúde encontram muitas dificuldades para acompanhar e

influir nas questões concretas da saúde do Município. O que se verifica, freqüentemente, é que

a administração dispõe de meios de armazenar a informação, porém, nem sempre, de

viabilizar a sua distribuição e disseminação.

Jacobi (1990, p. 132) ressalta que, no atual contexto brasileiro, talvez uma das

questões mais importantes de toda gestão municipal, possivelmente um dos maiores desafios,

é o acesso dos cidadãos à informação, enquanto base para garantir uma participação efetiva.

A informação aos cidadãos não só é necessária, desde o início do processo administrativo,

mas deve comportar a possibilidade de comunicação, diálogo e interpretação, como parte de

um movimento permanente de interação entre Estado, e cidadãos usuários dos serviços

públicos.

* Falta de articulação entre os segmentos sociais

“deveria ter um trabalho de articulação entre os segmentos de representação no

conselho” (rep. dos usuários - Fórum de Mulheres).

O controle social ocorre dentro dos canais institucionais de participação. A

organização popular ( fortalecimento da sociedade civil ) é tão importante quanto os espaços

institucionais. Essa reflexão nos remete ao entendimento de Chauí (1993), “ a cidadania,

significa conquista e criação de espaços sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e

populares), e instituições permanentes para a expressão política , como: partidos, legislação

e órgãos do poder público”.

Fazer essa avaliação é fundamental, porque a mobilização / organização dos

conselheiros de saúde , representantes dos trabalhadores e usuários, pressupõe uma relação

orgânica entre os representantes e seus segmentos, e dos segmentos entre si, para se efetivar

uma participação propositiva, dando visibilidade política às demandas.

A formalização da participação popular,em si, não assegura a existência de

processos democráticos. Faz-se necessária a análise das possibilidades de intervenção

efetiva por parte dos movimentos organizados da sociedade, na defesa dos seus interesses.

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5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

No estudo do CMS - Recife, identificamos que os conselheiros de saúde,

apresentaram várias dificuldades, nos aspectos referentes à representação. A escolha dos

representantes para o CMS, que ocorreu de forma rápida e direcionada, não possibilitou, no

momento inicial, um maior aprofundamento do papel e funcionamento do CMS, enquanto

espaço de negociação de interesses.

Nos aspectos decisórios referentes ao planejamento, os conselheiros de saúde

apontaram várias dificuldades no exercício da representação / participação , dentre os quais

destacamos: a fragilidade do vínculo orgânico do representante e a sua base social; a

inexperiência quanto à inserção em processos participativos conjugados com posturas

autoritárias; a falta de formação dos conselheiros; a metodologia utilizada pelo executivo; a

pressão para a aprovação de questões; a falta de articulação entre os segmentos sociais no

CMS; a não efetivação do Conselho; e os entraves burocráticos. A complexidade e o caráter

técnico dos problemas e soluções, aliada à falta de informações, enfraquecem o Conselho de

Saúde, enquanto espaço de participação e de representação de interesses.

Tais questões apontam que a formalização da participação da sociedade, em si,

não assegura a existência de processos democráticos, fazendo-se necessária a análise das

possibilidades de intervenção efetiva, por parte dos movimentos organizados da sociedade, na

defesa dos seus interesses.

Segundo Chauí (1993, p. 151), os sujeitos políticos participam da vida social, em

proporção ao volume e qualidade das informações que possuem e, em especial, a partir de

suas possibilidades de acesso às fontes de informação e de condições favoráveis de

aproveitamento delas, de forma a poderem intervir como produtores do saber.

Em nosso estudo, identificamos que as propostas apresentadas pelos

conselheiros de saúde nos aspectos referentes ao planejamento e financiamento, não

interferiram em interesses econômicos ou fizeram com que o executivo se desviasse das suas

prioridades políticas. Desse modo, consideramos que as propostas apresentadas pelos

conselheiros foram incorporadas porque não eram conflitivas.

Nessas propostas, identificamos a defesa de interesses específicos, numa maior

proporção, e a de interesses coletivos ainda embrionários, resumindo-se a participação

propositiva à comissão que apreciou o Plano.

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Essas questões deixam clara, a necessidade de modificar os mecanismos e as

práticas de governo, no sentido de que as informações e decisões sejam efetivamente

democratizadas e que tenham uma ressonância na sociedade, para que esta participe não

apenas no sentido de pedir informações, mas que esta participação seja também a nível

político. Também, demonstram que a cidadania só pode expressar-se na ação coletiva, no

espaço público, no processo de negociação em torno de interesses sociais. Nesse processo, a

sociedade organizada deve desenvolver sua capacidade de propor, pressionar, interferir nas

decisões da política de saúde.

Concluímos que, se por um lado, o gestor local coloca resistências em incorporar

a participação dos sujeitos políticos coletivos, na formulação e decisão da política de saúde,

por outro lado, a fragilidade da organização / mobilização dos conselheiros de saúde com sua

base social, não favorece que esta participação ocorra plenamente. Assim, o CMS - Recife não

tem conseguido expressar-se como um espaço democrático efetivo de negociação de

interesses coletivos.

Desse modo, os Conselhos são espaços de representação que trazem em si o

germe da democracia direta, necessitando ainda ampliar suas formas de atuação e seus

mecanismos de interlocução e controle sobre as ações governamentais, na perspectiva de que

se tornem espaços efetivos no planejamento, controle e execução de políticas públicas

comprometidas com a construção da cidadania, tornando-se parte intrínseca e fundamental no

processo de reordenamento Estado / sociedade, sendo este, ainda, um campo com questões

em aberto.

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Endereço para correspondência:

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