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Capítulo V – A Ética e a Gestão 107 V A Ética e a Gestão Contributos das Teorias de Gestão: Teoria das Relações Humanas; Teoria Estruturalista; Abordagem Sistémica; Teoria Comportamental; Desenvolvimento Organizacional Novas Perspectivas sobre a Gestão: Gestão por Valores (Management by Values); Gestão Crítica (Critical Management Studies) Áreas Conexas à Ética Empresarial: Âmbito Normativo; Âmbito Orgânico; Âmbito Institucional Instrumentos de Institucionalização da Ética Empresarial: Âmbito Normativo; Âmbito Orgânico; Âmbito Institucional; Considerações finais sobre a institucionalização da Ética Empresarial em relação à Ética do Discurso no sentido da pragmática transcendental Sumário A relação entre a ética, a economia e a técnica, e a necessidade de a economia recuperar a sua ligação original à ética, tem ocupado o essencial da nossa reflexão. No entanto, no último capítulo uma outra questão emergiu – uma questão que fica dormente a partir do momento em que encaramos a ética enquanto um saber prático que visa orientar a acção (ou seja, desde o seu momento inicial). Ao enunciarmos a existência de três níveis de ponderação do agir da empresa do ponto de vista ético colocamos a problemática de saber como intervir em cada uma dessas áreas. Dos três desafios, o organizacional é de longe o mais importante – não só porque é o que de forma directa coloca a empresa (o conceito de empresa, a forma de ser empresa, a forma, enfim, de agir enquanto empresa) em questão, como também porque desse questionamento as respostas aos outros desafios fluirão de forma natural – uma vez definido o agir próprio de cada organização, ela mesma e os seus membros adquirirão a forma de responder aos desafios que lhes forem colocados. É aqui que o problema emerge: não corremos o risco de, como Jesús Conill refere, ao invés de religar a economia à ética, fazer a ética desaparecer sob a economia e a gestão? Será a ética uma técnica ou pelo menos transformável numa técnica? Não se pretende neste capítulo realizar uma tentativa de criação de metodologias de aplicação – não estamos perante uma ética parte B, mas sim perante uma fundamentação teórica da ética empresarial. Não obstante, tal como as metodologias devem buscar fundamentação teórica, assim esta deve enfrentar a prática. O objectivo deste capítulo é pois encontrar pontes entre a ética, bem como formas de integração da ética nas empresas. Não são respostas que são dadas, mas caminhos que ficam abertos.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

107

V

A Ética e a Gestão

Contributos das Teorias de Gestão: Teoria das Relações Humanas; Teoria

Estruturalista; Abordagem Sistémica; Teoria Comportamental; Desenvolvimento

Organizacional

Novas Perspectivas sobre a Gestão: Gestão por Valores (Management by Values);

Gestão Crítica (Critical Management Studies)

Áreas Conexas à Ética Empresarial: Âmbito Normativo; Âmbito Orgânico; Âmbito

Institucional

Instrumentos de Institucionalização da Ética Empresarial: Âmbito Normativo;

Âmbito Orgânico; Âmbito Institucional; Considerações finais sobre a

institucionalização da Ética Empresarial em relação à Ética do Discurso no sentido da

pragmática transcendental

Sumário

A relação entre a ética, a economia e a técnica, e a necessidade de a economia recuperar a sua ligação

original à ética, tem ocupado o essencial da nossa reflexão. No entanto, no último capítulo uma outra

questão emergiu – uma questão que fica dormente a partir do momento em que encaramos a ética

enquanto um saber prático que visa orientar a acção (ou seja, desde o seu momento inicial). Ao

enunciarmos a existência de três níveis de ponderação do agir da empresa do ponto de vista ético

colocamos a problemática de saber como intervir em cada uma dessas áreas. Dos três desafios, o

organizacional é de longe o mais importante – não só porque é o que de forma directa coloca a empresa

(o conceito de empresa, a forma de ser empresa, a forma, enfim, de agir enquanto empresa) em questão,

como também porque desse questionamento as respostas aos outros desafios fluirão de forma natural –

uma vez definido o agir próprio de cada organização, ela mesma e os seus membros adquirirão a forma

de responder aos desafios que lhes forem colocados.

É aqui que o problema emerge: não corremos o risco de, como Jesús Conill refere, ao invés de religar a

economia à ética, fazer a ética desaparecer sob a economia e a gestão? Será a ética uma técnica ou pelo

menos transformável numa técnica? Não se pretende neste capítulo realizar uma tentativa de criação de

metodologias de aplicação – não estamos perante uma ética parte B, mas sim perante uma fundamentação

teórica da ética empresarial.

Não obstante, tal como as metodologias devem buscar fundamentação teórica, assim esta deve

enfrentar a prática. O objectivo deste capítulo é pois encontrar pontes entre a ética, bem como formas de

integração da ética nas empresas. Não são respostas que são dadas, mas caminhos que ficam abertos.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

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1 – Contributos das Teorias de Gestão 1.1 – Teoria das Relações Humanas

Em reacção à Escola de Administração Científica (que tem como figura maior Taylor)

e à Teoria Clássica (Fayol, entre outros), a teoria das Relações Humanas foi

desenvolvida nos Estados Unidos e impulsionada tanto pelo desenvolvimento das

ciências sociais e humanas como pela percepção de que o sistema baseado na autocracia

da abordagem clássica não se adequava à sociedade americana, para a qual a

democracia era entendido como elemento identitário e a igualdade estava inscrita como

aspiração natural e legítima. Assim, a um caldo social propício vieram juntar-se as

contribuições de novas áreas do saber em ascensão que punham em causa o

mecanicismo tradicionalmente confundido com racionalismo.

Coordenada por Elton Mayo, a Experiencia de Hawthorne (1927/1932) representou o

primeiro estudo em grande escala que quebrou os dogmas estabelecidos a respeito das

organizações. O homo oeconomicus é posto em causa pelo homem social: ao invés da

concepção do indivíduo como átomos isolados, constatou-se que a integração grupal e

social e a produtividade estão relacionados entre si. Outra das ideias que foi atacada foi

o formalismo organizacional. A abordagem da organização através de perspectivas

fisiologistas e anatomistas é incapaz de dar uma visão real do funcionamento da

organização pois, para lá dos organigramas oficiais, há o funcionamento real, os mapas

informais de interacção dos múltiplos indivíduos e dos vários grupos em que se movem

e que determinam o evoluir da empresa. Os indivíduos não são seres desligados do

meio, mas seres em relação que procuram adaptar-se ao meio que os rodeia. Por fim,

outra ideia que foi posta em causa foi a da especialização. À luz da administração

científica, a produção seria tanto maior quanto maior fosse a especialização. Contudo,

os teóricos das Relações Humanas concluíram que a especialização gera monotonia e

desmotivação, acabando por gerar o fenómeno da desmoralização (que Adela Cortina

de resto aborda na sua polissemia) e consequente perdas de eficiência.

As Relações Humanas (ou abordagem humanística) têm uma importância na definição

de muitos dos percursos que ainda hoje são empreendidos no sentido de tornar as

empresas organizações realmente comprometidas eticamente com a geração de

satisfação social e de respeito pelos seus membros. Entendendo que as empresas têm

tanto objectivos económicos como deveres sociais e que as duas vertentes têm de ser

equilibradas num ambiente de cooperação, influenciará de forma determinante

correntes como o estruturalismo e principalmente o comportamentalismo.

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1.2 – Teoria Estruturalista

Das ciências sociais e humanas e também do desenvolvimento da teoria burocrática

foi trazido o contributo do estruturalismo, que no caso das teorias administrativas

pretendeu, numa aproximação à abordagem humanística, resolver os impasses em que a

crítica, sem alternativas viáveis, realizada por esta última às teorias clássicas

mergulharam o estudo das organizações. O estruturalismo veio trazer a compreensão de

que um todo não é simplesmente a soma das suas partes. Os elementos que compõem

uma estrutura vão a ela buscar pelo menos algumas das suas propriedades; por outro

lado, qualquer alteração na estrutura altera-a nos seus componentes e nas relações que

entre eles se estabelecem.

O grande salto que é dado é pois no sentido de compreender a relevância do conceito

de organização e que de resto já anteriormente tínhamos exposto. Afirma-se que se está

numa quarta fase de desenvolvimento social; as sociedades de hoje são sociedades de

organizações. A primeira fase foi a da natureza (que esta era a única base de

subsistência humana), a segunda foi a do trabalho (que implicam a modificação da

natureza através do trabalho, que passa a modelar as relações sociais). A terceira foi a

do capital, em que este se acrescenta aos outros dois factores, superando-os. Enfim, a

fase organizacional corresponde ao que outros autores como Galbraith (e o novo Estado

industrial) ou Drucker (e a ideia de pós-capitalismo) em que o saber e as capacidades

organizacionais se tornam fundamentais.

A esta nova fase corresponde também uma conceptualização de um homem

organizacional, ou seja, o homem que, vivendo em sociedade, está em permanente

contacto com organizações das quais depende para satisfazer as suas necessidades, as

quais integra e portanto às quais vai buscar muita da sua identidade.

Importante para os objectivos deste capítulo é determo-nos na tipologia de Etzioni

sobre controlo e obediência no seio das organizações. Segundo o autor, há três tipos de

controlo, que geram tipos diferentes de obediência e que se enquadram em concepções

distintas de organização; de resto, elas podem ser específicas de determinados tipos de

organização, mas podem pelo menos parcialmente ser transferidas para o mundo

empresarial. De resto, será importante notar que há uma gradação que se aproxima dos

graus de desenvolvimento moral de Kohlberg. O primeiro tipo de controlo é o físico,

que se baseia na ameaça de sanções, utilizando a força e o medo como instrumentos de

poder. Ele gera uma obediência alienatória, em que o indivíduo apenas permanece

porque a isso é forçado. O segundo tipo é o controlo material, em que as recompensas

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

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materiais garantem uma obediência calculista, ou seja, baseada no interesse económico.

Por fim, há o controlo normativo, baseado em valores e regras em que a obediência tem

um fundo moral: o indivíduo adere à organização e aos seus objectivos, reconhecendo-

lhes valor intrínseco.

Outro contributo do estruturalismo é a problematização dos dilemas organizacionais,

ou seja, das tensões centrífugas que se dão primordialmente a três níveis: entre a

coordenação interdepartamental e a livre comunicação entre grupos e indivíduos; entre

a necessidade de uma disciplina burocrática e organizacional e os interesses e

aspirações decorrentes da especialização profissional; por fim entre o planeamento

central que vê a organização como um todo mas que pode ser demasiado conservador e

a iniciativa e criatividade individuais, que podem enriquecê-la mas também colocá-la

em perigo. A par das tensões centrífugas há as centrípetas, onde os estruturalistas

divergem tanto da teoria clássica (que afirmavam a existência de harmonia de interesses

no seio de uma organização) como das Relações Humanas, que pretendiam

compreender e ultrapassar o conflito. Aqui, o conflito é visto como mais do que

inevitável, desejável – como um elemento gerador de mudança, um elemento positivo.

Assim, o objectivo não é acabar com o conflito, mas introduzir um nível de cooperação

e canalizar a par disso o conflito para fins produtivos e úteis à organização.

Por fim, a teoria estruturalista realiza uma separação entre duas visões diferentes, dois

modelos de organização: o modelo racional e o modelo natural. O modelo racional

agrega as visões de Taylor, Fayol e Weber, segue uma lógica de sistema fechado e

enfatiza o planeamento e controlo e por pretender garantir a estabilidade e a certeza

focaliza-se na repressão do indivíduo, dado que o factor mais imprevisível é o humano.

O modelo natural, pelo contrário, aquele que temos defendido e que ao longo deste

capítulo descrevemos nas suas múltiplas concretizações, segue uma lógica de sistema

aberto e agrega a maior parte das modernas teorias aplicadas à gestão. Centra-se no

sistema como um todo e não já sobre simplesmente as suas partes, aceita a sua

interdependência com o ambiente (a envolvente externa) e pretende fornecer

instrumentos para que a incerteza e a imprevisibilidade não sejam encaradas

negativamente.

1.3 – Abordagem Sistémica

No período subsequente à Segunda Guerra Mundial e a partir dos trabalhos do

biólogo Von Bertalanffy1 deu-se o desenvolvimento da Teoria Geral de Sistemas, que se

1 Karl Ludwig von Bertalanffy (1907-1972) partiu da biologia para criticar a separação da realidade

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

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fundamenta em três premissas: os sistemas existem dentro de sistemas (ou seja, há

sempre sub e supra-sistemas); os sistemas são abertos (existindo num meio ambiente

composto por outros sistemas há um processo imparável de intercâmbio); as funções de

um sistema dependem da sua estrutura. Há assim dois preceitos que para o conceito de

sistema, enquanto conjunto de elementos dinamicamente relacionados, são cruciais: o

de objectivo (as relações entre os elementos visam atingir um fim comum); o de

holismo, totalidade ou globalismo, que segue o mesmo princípio do estruturalismo

segundo o qual o todo é maior que as partes.

Aplicada a partir da década de 60 à gestão, a teoria sistémica encontrou uma das

concretizações no chamado modelo sociotécnico de Tavistock, que encara a organização

como um sistema composto por um subsistema técnico (tecnologia, espaço e tempo) e

um subsistema social (as pessoas e as relações individuais, sociais e organizacionais,

tanto formais como informais). Por sua vez, este sistema está em contacto com o meio

ambiente, com o qual mantém uma relação de importação (matérias-primas), conversão

(em bens ou serviços) e exportação. O que o modelo sociotécnico traz é a compreensão

da relevância do subsistema social na transformação da potência em facto, ou seja, que

sem ele as instalações, equipamento e técnicas não podem produzir “exportações” ou

fá-lo-ão de forma ineficaz.

Da abordagem sistémica resultou também a cibernética, enquanto teoria dos sistemas

de controlo baseada na transferência de informação entre sistema e meio, e dentro do

sistema e do controlo/retroacção dos sistemas em relação ao ambiente para o qual a

homeostasia dos sistemas, ou seja, a sua capacidade de manterem uma auto-regulação, a

manutenção dinâmica de um estádio de equilíbrio, é uma condição de sobrevivência.

Para que esta auto-regulação possa existir outra coisa tem de estar presente: a cadeia de

acção-reacção que é a base de um processo comunicativo.

A teoria da comunicação2 veio sistematizar a compreensão do processo

comunicacional através d estabelecimento de seis elementos: a fonte (o emissor da

mensagem), o transmissor (o codificador da mensagem), o canal (espaço ou

equipamento no qual a mensagem é transmitida), o receptor (processo ou equipamento

que recebe a mensagem), o destino (pessoa ou coisa a que se destina a mensagem) e por

fim o ruído, ou seja, as interferências que ao longo do processo comunicacional podem

em diferentes áreas, advogando pelo contrário o estudo holístico dos sistemas enquanto organismos e enquanto todo superior às partes. Austríaco, desenvolveu o seu trabalho no seu país de origem e também no Reino Unido, Canadá e EUA.

2 Lançada com o livro de Shannon e Weaver The Mathematical Theory of Communication, em 1948.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

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existir. A comunicação pressupõe a existência de dados (registo relativo a eventos) e de

informações (conjunto significante de dados, ou seja, articulação específica de dados

que no seu conjunto constituem uma mensagem transmissível).

Um processo comunicacional será tanto mais eficaz quanto menos precisar de

recorrer à redundância, ou seja, à repetição da mensagem; a redundância é pois uma

tentativa de controlar um processo que padece de algum tipo de deficiência. Assim, se

no seio de uma empresa a direcção precisa de recorrer a controlos muito apertados dos

empregados é porque algo funciona mal na organização (da mesma forma, uma

sociedade que precise de forte regulamentação jurídica e controlo policial não tem em si

mesma as forças para que funcione bem por si própria). Percebe-se por conseguinte a

centralidade da comunicação e a sua produtividade para uma abordagem dialógica da

ética ao nível da elaboração de metodologias.

1.4 – Teoria Comportamental

O comportamentalismo, ou behaviorismo, trouxe ao estudo da gestão uma abordagem

menos prescritiva e mais explicativa, sendo no entanto a fonte de outras abordagens

(como o Desenvolvimento Organizacional) que se empenham em ter um cariz

instrumental e prático. O comportamentalismo poderá dar contributos de grande

relevância para a concepção de uma ética empresarial sobretudo através dos seus

estudos sobre a motivação, sobre os estilos de liderança e sobre o homem

administrativo e a teorização da decisão.

A análise das organizações aqui abandona quase por completo os elementos

estruturais/formais, sendo a cultura, as crenças, as relações, as atitudes o principal foco

de atenção. O homem administrativo, diferentemente do homo oeconomicus, não

procura o máximo benefício, dado que o máximo benefício seria aquele que um ser

absolutamente consciente de todas as variáveis conseguiria obter. Trata-se, pois, de

obter não o melhor resultado absoluto, mas o resultado mais satisfatório. Pode-se

portnto falar de uma situação de rcionalidade limitada em que as decisões têm de ser

aceites como imperfeitas, relativas, embora também hierarquizáveis e submetíveis a

uma racionalidade administrativa (resultante da rotina organizacional).

O comportamentalismo procura melhorar a qualidade de vida nas organizações e para

tal a compreensão da motivação é fundamental. A pirâmide de Maslow hierarquiza as

necessidades humanas em cinco categorias, distribuídas por dois níveis: no nível

primário estão as fisiológicas (alimentação, repouso, abrigo, sexo) e a segurança

(estabilidade, protecção contra o perigo e as ameaças); no nível secundário estão as

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

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sociais (aceitação social, afectos, participação), as de estima (auto-confiança, prestígio)

e por fim as necessidades de auto-realização, que têm que ver com o desenvolvimento

contínuo do indivíduo. O que esta hierarquização permite é a compreensão de que, de

uma forma geral, as necessidades superiores não podem ser satisfeitas se as inferiores o

não estiverem. Por conseguinte, uma empresa que pretenda incutir nos funcionários um

sentido de profissionalismo e lealdade à organização sem conceder estabilidade laboral

nem remuneração adequada estará ou a laborar num erro ou a agir cinicamente.

Inversamente, a teoria dos dois factores de Herzberg divide a prévia hierarquização

em dois tipos de factores, os higiénicos, que agrupam as necessidades fisiológicas, de

segurança e sociais e os factores motivacionais. Ao passo que os primeiros geram ou

insatisfação (se não forem supridas as necessidades) ou não-insatisfação (se o forem),

ou factores motivacionais oscilam entre a não-insatisfação e a satisfação. Isto também

permite compreender que mesmo os acréscimos salariais a prazo não significam um

aumento da satisfação, redundando numa nova situação de equilíbrio.

A compreensão de que há diferentes estilos de gestão e de liderança é outro dos

contributos do comportamentalismo, sendo de referir as teorias X e Y de McGregor e os

sistemas administrativos de Likert.

As teorias X e Y são ideais-tipo de duas linhas de gestão possível, a X tradicional,

mecanicista, pragmática e autocrática e baseada numa concepção pessimista da natureza

humana: as pessoas são preguiçosas, furtam-se ao trabalho, preferem a

irresponsabilidade, ser dirigidas e sem iniciativa, preferindo a segurança ao risco. A

teoria Y corresponde às correntes que entroncam na concepção humanística (teoria das

Relações Humanas e as múltiplas variações que daí decorreram) e baseia-se numa

concepção mais optimista do Homem: as pessoas são dotadas de criatividade, iniciativa,

espírito crítico, sendo o trabalho um elemento que as pessoas aceitam naturalmente e

que faz parte integrante das suas vidas e da sua identidade. Likert3 elaborou quatro tipos

de sistemas administrativos, que percorrem as teorias X e Y de forma gradual, indo do

sistema autoritário-coercitivo para o autoritário-benevolente, daí para o consultivo e

terminando no sistema participativo. No último sistema, que deverá corresponder ao

tipo de empresa comprometida com uma ética dialógica e baseada na confiança, o

processo decisório é descentralizado, sendo o topo responsável pelas políticas gerais e

pelo controlo de resultados; os sistemas de comunicação são fluidos e eficientes, sem

barreiras nem “ruído” (conforme expusemos aquando da teoria da comunicação), as 3 Rensis Likert (1903–1981), psicólogo americano cujo trabalho se centrou no estudo do

comportamento organizacional.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

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relações interpessoais baseiam-se no trabalho em equipa, com participação dos

indivíduos intensa e por fim o sistema de controlo é baseado em recompensas sociais e

materiais, sendo a punição rara4.

1.5 – Desenvolvimento Organizacional

O Desenvolvimento Organizacional (comummente designado apenas pelas iniciais,

DO) corresponde, mais que a uma teoria, a uma prática e a um conjunto de técnicas

especificamente destinadas a criar organizações diferentes, a saber, organizações

hierarquicamente planas, abertas à mudança e de tipo democrático. O DO supera o

carácter descritivo da Teoria Comportamental e aproxima-se também da abordagem

sistémica. Tem como pressupostos básicos a mutação permanente do ambiente a

necessidade de adaptação, pretendendo-se responder e planear a mudança. Ele encara a

organização como um sistema de interacções pessoais em que, para os indivíduos serem

motivados e se sentirem comprometidos, têm de participar: a mudança planeada só

pode existir se for um esforço colectivo. A cultura, como já dissemos, é conservadora

(reage à mudança) mas também tem um elemento democrático (não no sentido em que

liberte, porque não o faz necessariamente, mas no sentido em que abarca todos os

indivíduos); para que a mudança possa existir ela tem de envolver todos os afectados,

todos os que estão imersos na cultura organizacional.

Contrariamente às teorias de tipo X, o DO não se centra apenas nas mudanças de tipo

estrutural (ou seja, nas mudanças dos elementos estáticos), mas visa também as

mudanças processuais, as mudanças dinâmicas que afectam a própria cultura

organizacional, o conjunto de normas não escritas que influenciam o comportamento

dos indivíduos, dos grupos e da organização no seu conjunto. A partir de quatro

variáveis interdependentes (ambiente, organização, grupo e indivíduo) pretende-se

afastar as organizações sistemas de base mecânica e transformá-los em sistemas

orgânicos, enfatizando as relações, a confiança, a partilha, descentralização da

responsabilidade e a negociação. Pretende-se obter o desenvolvimento sistemático (por

oposição às mudanças evolucionárias, demasiado lentas e conservadores e às

revolucionárias, que podem pôr a empresa em perigo).

Para tal é necessário sistematizar a mudança, incorporá-la na empresa e compreender

a existência de três fases: o descongelamento (em que os hábitos são desaprendidos; a

mudança em si (em que as novas ideias são aplicadas e aprendidas) e o recongelamento

4 Recordemos, a este propósito, a distinção entre a ameaça de morte da tanatopolítica, que neste caso

poderá corresponder a perdas de remuneração, sanções disciplinares e eventualmente despedimento, e a biopolítica, o controlo dos indivíduos através de factores positivamente valorados.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

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(em que há a incorporação das novas ideias, transformadas em hábitos). A mudança é

influenciada por um balanço dinâmico entre dois campos de forças, descritas por Kurt

Lewin5, sendo bem ou mal sucedida consoante as forças positivas sejam superiores ou

inferiores às forças negativas. De entre os quatro tipos de mudança (estrutural,

tecnológica, produtos/ serviços e cultural) a mudança cultural é a mais difícil e portanto

a que exige uma gestão mais cuidadosa. Precisamente por isso, é aqui que a

participação de todos os afectados se revela não apenas vantajosa, mas decisiva. A

abertura da liderança em dar poder aos indivíduos determinará o seu sucesso ou o seu

fracasso.

Para além dos conceitos de administração participativa e do concomitante

desenvolvimento das equipas, o DO assenta a sua abordagem no conceito de

investigação-acção, ou seja, um processo demorado (o que implica um compromisso da

administração com objectivos de longo prazo e não meramente com uma visão

imediatista da empresa) que inclui essencialmente seis passos: diagnóstico da situação;

recolha de dados para avaliação do diagnóstico preliminar; retroacção dos dados aos

participantes; estudo dos dados pelos participantes; planeamento das acções a

empreender e por fim execução das acções previamente determinadas.

2 – Novas Perspectivas sobre a Gestão 2.1 – Gestão por Valores (Management by Values)

A Gestão por Valores (GPV) é um aprofundamento do trabalho teórico e prático

resultante do DO, visando a redefinição cultural das empresas. À luz da MBV a

estabilidade organizacional não é atingível através de uma cultura hierárquica de

comando e controlo; numa economia de mutação acelerada, a adaptação fracassará

nessas condições. Para além disso, a GPV entende a ética empresarial não como uma

ameaça à liberdade de acção dos gestores e empresários, mas como uma vantagem

competitiva. A missão da empresa é compreendida em três dimensões diferentes: a do

negócio, a dos indivíduos e a da sociedade, harmonizando-se valores entre proprietários

e colaboradores. Há uma focagem nos valores essenciais e um alinhamento destes e dos

objectivos estratégicos, o que se entende ser possível através de uma liderança orientada

por valores e para os indivíduos.

5 Kurt Lewin (1890-1947), psicólogo alemão foi influenciado pela Escola de Frankfurt e

principalmente pela Gestalt, sendo considerado um dos pais da psicologia social. Fugindo ao nazismo, instalou-se nos EUA em 1933.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

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Pretende-se que o compromisso organizacional reúna três condições: simplicidade

(redução da complexidade, tornar as mensagens mais claras); orientação (para o futuro,

para o desenvolvimento da organização); sustentado nas pessoas e no seu

desenvolvimento. Simultaneamente, há quatro requisitos fundamentais, quatro

necessidades que às quais as empresas têm saber responder. Tem de haver uma

orientação para o cliente, pelo que o produto deve ser adaptado, personalizado. A

autonomia e a responsabilização dos indivíduos são aqui fulcrais. De facto, isso é

visível na forma como o topo das empresas é encarado. A teoria clássica, no início do

século XX, através da gestão por instruções, tinha a figura do chefe; a teoria

neoclássica, na década de 60 centrava-se numa figura menos autoritária mas que

concentrava ainda assim o essencial do poder, o administrador da gestão por objectivos;

a gestão por valores atribui a cada indivíduo a autonomia não meramente de cumprir

instruções minuciosamente impostas nem tampouco de se ater a objectivos

predeterminados, mas de se guiar pelos valores em torno dos quais a empresa gira. Os

líderes devem então essencialmente gerir estes valores nucleares e facilitarem o

desenvolvimento do trabalho dos colaboradores, garantindo a comunicação interna e a

coesão organizacional. Consequentemente, as estruturas devem tornar-se menos

hierárquicas, mais planas e ágeis. Os colaboradores devem aceitar a complexidade e

tolerar a ambiguidade para que possam ser flexíveis e autónomos. De facto, a

complexidade é o que caracteriza as organizações actuais, pelo que a capacidade para

inteligi-las passa pela compreensão dos valores, o que permite a adaptação à mudança.

A desmoralização de uma empresa será pois a ausência de costumes, de boas-práticas

– de valores organizacionais que dêem um cimento a entidades que diariamente lidam

com um mundo em permanente mutação. Os valores desempenham um papel

intermédio entre as crenças (ou seja, e segundo Simon Dolan e Salvador García, as

“estruturas de pensamento desenvolvidas e profundamente enraizadas ao longo dos

anos, através da aprendizagem e experiência, que servem para explicar e dar sentido à

nossa realidade”6) e os resultados. Os valores são condicionados pelas crenças, pelo que

a capacidade de introduzir mudança na organização depende muito da capacidade para

promover a desaprendizagem de crenças, de verdades tautológicas. Por sua vez, os

valores determinam as normas em vigor na organização, ou seja, as regras explícitas de

conduta dotadas de sanção externa. Valores e normas geram atitudes, formas de reagir

perante a realidade e que denunciam o sentimento de cada indivíduo perante um acto ou 6 Simon L. Dolan e Salvador García, Managing by Values. Tradução portugues, Gestão por Valores,

Biorumo, Porto, 2006, pág. 36.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

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uma situação. As atitudes generalizam-se em comportamentos, que são formas

idiossincráticas de encarnar os valores e normas organizacionais.

Importante é também compreender o processo de aparecimento, formação,

amadurecimento e substituição de valores. Eles variam não só no tempo, como no

espaço, havendo pelo menos nove factores a reter. Desde logo, as crenças e valores do

fundador (que com o tempo tenderão a esbater-se, mas que poderão ser vitais para

solidez da empresa); as crenças e valores das administrações (desde a fundação de uma

empresa até ao momento presente), que vão moldando e por vezes refundando as

empresas. As crenças e valores dos trabalhadores também formatam o sistema de

valores internos. Uma das questões na qual a GPV (influenciada também pelo DO neste

ponto) insiste é a da necessidade de haver recompensas – inclusive a nível material –

para que os trabalhadores adiram à cultura empresarial. A existência de consultores

pode ser decisivo para a criação de novas crenças e para a adesão a novos valores. O

historial da empresa, a sucessão de eventos – sucessos e insucessos – imprimem um

conjunto de características únicas em cada empresa. Há depois factores externos às

mesmas. Entre eles contam-se as tradições culturais de cada sociedade, os valores

dominantes em cada período histórico, o enquadramento legal e o funcionamento dos

mercados em que cada empresa se move. Isto vem exactamente de encontro ao que já

tínhamos referido a respeito do carácter único de cada empresa: a liberdade de cada

empresa na definição dos seus valores vem-lhe, contraditoriamente, desta coacção que a

realidade exerce sobre ela. Cada empresa tem uma identidade única. A sua

responsabilidade será pois encontrar o equilíbrio entre o respeito por critérios de

validade universal e a sua individualidade.

A GPV adopta um modelo triaxial de sistema de valores baseado nas seguintes

dimensões: os valores económico-pragmáticos; os valores ético-sociais; os valores

emocionais-desenvolvimento. Esta taxinomia permite separar os diferentes níveis

semânticos que a palavra valor pode encerrar.

A dimensão económico-pragmática refere-se a valores como eficácia, desempenho e

disciplina, sendo aqui “valor” o critério para avaliar algo em relação com o seu preço

ou relevância. Outro conceito que importa ter aqui presente é o de “cadeia de valor”,

enquanto conjunto de actividades empreendidas pela empresa, relacionadas entre si e

que determinam o valor final dos produtos ou serviços. A dimensão emocional-

desenvolvimento refere-se à realização dos indivíduos e implica a aceitação de acordos

e partilha de valores que permitam simultaneamente alcançar os valores organizacionais

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

118

e a realização pessoal.

Por fim, a dimensão ético-social remete-nos para as escolhas preferenciais, estando

aqui o cerne da liberdade humana, ou seja, a liberdade de escolha, a liberdade moral.

Separam-se os valores finais (que podem ser a paz, a justiça, etc.) de valores

instrumentais (que, enquanto meios para atingir os valores finais, podem incluir,

consoante a circunstância, a honestidade, a solidariedade, etc.). Esta dimensão

influencia os comportamentos que por sua vez reflectem as verdadeiras opções dos

indivíduos e das empresas, muito mais que os enunciados que a esse respeito são

realizados.

A conjugação entre as três dimensões enunciadas permite identificar uma cultura

organizacional e alinhas os valores chave e os objectivos estratégicos. Para a GPV a

coerência entre a cultura formal e a prática quotidiana é um factor crítico de sucesso,

entendendo-se que o facto de se dar um significado ao trabalho de cada um reforça o

estímulo que a compensação financeira representa na concretização dos objectivos.

Desta forma, se não houver a formulação expressa de um núcleo de valores que dê

sentido ao trabalho, ou se os comportamentos individuais e principalmente

organizacionais não corresponderem aos valores expressos, a inclinação para o bom

desempenho será necessariamente menor.

Tal como acontece na corrente-mãe da GPV, o DO, a mudança é fundamental. O

objectivo é fazer compreender que as empresas são entidades dinâmicas que devem

procurar continuamente renovar-se. A cultura organizacional deve ser alinhada

permanentemente tanto com as condições existentes no meio envolvente, como com o

próprio evoluir da empresa e das suas partes interessadas. Para além disso, aceita-se a

existência de pelo menos quatro ordens de razões para ter a mudança como uma

preocupação: estratégicas (lucros, liderança, sustentabilidade do negócio), optimização

do trabalho e dos recursos, motivos legais (adaptação às modificações na legislação),

mas também há motivos de ordem ética. Estes podem incluir questões ambientais, o

respeito pelos consumidores ou pelos colaboradores, a adopção de práticas mais

conformes a valores expressos e a adaptação à própria mudança ao nível da consciência

moral da sociedade.

Em suma, a GPV é mais uma manifestação no âmbito da linha da teoria y, portanto,

nas teorias de base humanista. Assenta na ideia de fortalecimento dos indivíduos,

contrapondo-se à lógica racional-económica7 que procura controlar o desempenho das

7 Conforme ibid., pág. 78.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

119

pessoas, ao invés de fomentar o seu desempenho. São, pois, duas culturas distintas: a

cultura de controlo (teoria x) e a cultura de desenvolvimento (teoria y). De seguida

iremos abordar uma corrente igualmente recente mas que se coloca numa posição mais

distanciada face à gestão.

2.2 – Gestão Crítica (Critical Management Studies)

1 – Contrariamente às teorias que temos vindo a descrever, os “estudos de gestão

crítica” têm, desde a publicação do livro de Mats Alvesson e Hugh Wilmott Critical

Manament Studies em 1992, representado uma corrente de pensamento e análise da

gestão que simultaneamente se coloca aparte dos estudos tradicionais, “pró-

managerialistas” mas que, ao contrário de muitos sectores que realizam um combate

político e externo ao pensamento dominante nas escolas de gestão, estão dentro dessas

mesmas escolas. Trata-se, portanto, de uma visão crítica interna à gestão. Não se trata

necessariamente de um ataque à gestão, mas antes de um ataque aos “dados

adquiridos”, aos dogmas vigentes no meio.

A base da gestão crítica é a teoria crítica da Escola de Frankfurt (Horkheimer,

Adorno, Marcuse, Habermas), pela sua defesa de indivíduos mais autónomos.

Genericamente, um dos seus maiores contributos é a percepção de como trabalhadores e

consumidores são condicionados para caberem nos parâmetros dos sistemas político e

económico, em suma, de como os indivíduos são dominados, transformados por uma

razão instrumentalizadora que os transforma em componentes de uma máquina. No

entanto, a gestão crítica não se limita a Frankfurt, havendo autores que abordam a

gestão a partir das obras de Deleuze, Derrida, Foucault (contraposto a Habermas,

representando os dois os extremos da tensão entre distopia e utopia, tensão da qual,

espera-se, algo de produtivo possa nascer).

A gestão crítica opõe-se ao enquistamento doutrinário de uma suposta neutralidade

mas que tem um forte pendor estratégico. Na gestão há uma pulsão tecnocrática que

apresenta os gestores como os depositários da racionalidade empresarial (como se não

estivessem eles próprios, como qualquer outra parte interessada, numa teia de interesses

e objectivos muitas vezes conflituosos) e os únicos detentores de iniciativa, remetendo

os restantes stakeholders para a posição de meros objectos/ meios. A posição de partida

desta corrente é pois a de que esta área é demasiado poderosa e tem demasiados efeitos

sobre empregados, consumidores e cidadãos em geral para ser entendida apenas numa

lógica unívoca de meios e fins. A gestão e a economia, enquanto ciências sociais, são

entendidas como tendo uma dimensão ético-política que está no seu núcleo principal; os

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

120

seus objectos de estudo nascem em contextos específicos de relações de poder que

podem eventualmente ser transformadas para desenvolver objectos diferentes.

Muitas vezes – e isso é visível mesmo nas teorias de base humanista que previamente

apresentámos – o objectivo da gestão é apenas obter empregados ou consumidores mais

dóceis. Esta lógica deve, à luz da gestão crítica, ser combatida, submetendo esta área a

novas e mais amplas formas de prestação de contas. Muito para lá da mera produção de

bens e serviços, o mundo empresarial influi sobre múltiplas facetas da vida humana;

aceitar pacificamente a generalização do pensamento tecnocrático acarreta a

consequência inevitável do colapso da democracia cívica (política). Aceitando-se que as

lutas de poder ocorrerão sempre, afirma-se aqui que tão problemática é a sua negação

como também a mera formalização de práticas de empowerment de outras partes

interessadas, sem que se ponha em causa o discurso corrente – para lá da defesa da

participação, a gestão crítica pretende pôr em causa muitos dos pressupostos em que se

funda esta área do saber.

Desta forma, a gestão crítica pretende reunir um conjunto de temas base e de

orientações de investigação e trabalho. Entre elas, contam-se o desenvolvimento de uma

visão não objectivista das técnicas de gestão e dos processos organizacionais, o

desnudar das relações assimétricas de poder, o ataque ao fechamento discursivo e à

proliferação de “verdades” presumidas, o revelar da parcialidade dos interesses

partilhados mas também dos conflitos (ao contrário dos marxistas, os autores desta área

recusam a presunção de um conflito insuperável entre trabalho e capital) bem como, por

fim, a revelação da centralidade da linguagem e da acção comunicativa, tanto nas

relações que se estabelecem entre emissores e receptores, mas também nos significados

historicamente construídos.

2 – No seu artigo “Critical Approaches to Strategic Management”8 David Levy, Mats

Alvesson e Hugh Willmott reiteram o intento de desmantelar “o predomínio de uma

racionalidade técnica obcecada com a ostensivamente eficiente perseguição de

objectivos não questionados, [procurando] ao invés despertar o debate social sobre os

fins e os valores.”9 Seguindo a análise gramsciana, os autores fazem uma crítica do

determinismo e do economicismo, interligando economia, ideologia e política,

utilizando em particular o conceito de hegemonia enquanto alinhamento historicamente

peculiar de forças aos três níveis referidos e que coordena os principais grupos sociais

numa aliança de dominação. Assim, o discurso hegemónico sobre a gestão estratégica 8 Studying Management Critically, págs. 92-110. 9 Ibid, pág. 93.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

121

está mergulhado em vários pré-conceitos que é necessário ter em conta. Desde logo,

estando a estratégia enraizada nos valores e quadros conceptuais da gestão de topo, é

provável que seja direccionada para satisfazer os interesses da gestão de topo e não da

empresa no seu todo10. De facto este sector é visto como, em termos práticos, o único

verdadeiro actor organizacional, o que peca por simplismo; se a isso somarmos a

aproximação que é sempre feita entre a estratégia empresarial e a estratégia militar

reforça o conceito de empresa como espaço de elitismo e de direcção autoritária11. Esta

mesma imagem, que deveria limitar o interesse desta área a um número muito reduzido

de administradores, acaba por desempenhar um papel muito importante pela fuga à

realidade que permite ao leitor ou ao estudante de gestão: ela é apelativa na medida em

que é fantasiosa, promove uma comunidade de experiência puramente imaginada entre

um auditório relativamente vasto e o número muito reduzido dos verdadeiros

“estrategas”.

O aparecimento de conceitos como a responsabilidade social, stakeholders ou

cidadania empresarial pode introduzir uma maior tendência para a adopção de uma

racionalidade comunicativa, reduzindo-se as tendências de alguma forma totalitárias do

pensamento managerialista. Não obstante, isto pode redundar em novas e mais

elaboradas formas de impor a visão da gestão de topo. Naturalmente isso vai contra

todos os objectivos da teoria crítica, arriscando-se a falência do objectivo de construir

organizações mais transparentes e nas quais o compromisso ético seja efectivo. Focar

todas as pistas que a gestão crítica tem lançado seria absolutamente impossível, mas

interessar-nos-ia abordar justamente a questão da transparência, por um lado, e por

outro a tensão que se desenvolve entre a gestão crítica e o seu objecto de estudo,

nomeadamente, a tensão entre esta corrente, as potencialidades que encerra para uma

reflexão ética e as possibilidades de ela própria ser absorvida pela racionalidade

tecnocrática.

3 – Em Accounting and Critical Theory12 Michael Power, Richard Laughlin e David

Cooper questionam a contabilidade enquanto fonte fidedigna da realidade. Ela é

habitualmente apresentada como um retrato da situação real, de tal forma que quando

falha a lógica é procurar “melhorar” a contabilidade. Em termos habermasianos,

10 Situação que já abordámos nos capítulos II e III. 11 É questionável que este conceito de estratégia seja compatível com qualquer orientação no âmbito

das teorias y; de facto, as teorias x vão mergulhar as suas raízes à burocracia weberiana e esta à organização militar prussiana. Qualquer empresa que queira de facto envolver-se numa mudança cultural de compromisso, desenvolvimento e responsabilização dos indivíduos terá de aceitar abandonar paulatinamente este quadro conceptual “militarista”.

12 Ibid., págs. 132-156.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

122

referem os autores que ela é entendida enquanto trabalho, não enquanto interacção, ou

seja, enquanto práticas puramente técnicas, procedimentos formais com vista a alcançar

um fim. Esse fim é transmitir informação fiel à realidade aos decisores, de forma

neutra. Contudo, não deixa de ser curioso que desde logo a contabilidade seja dividida

em duas grandes áreas, uma para fins internos (a contabilidade de gestão) e outra para

fins externos (a contabilidade financeira). As contradições e as falhas na representação

do real levam alguns autores13 a ir à base e a fazer uma crítica não apenas da

contabilidade como representação do real, mas da própria ideia de “representação”.

Segundo esta perspectiva, não haverá realidade económica independente, sendo a

contabilidade um meio entre outros para a criação dessa mesma realidade (que depois

se propõe representar).

Esta questão revela-se crucial na relação entre a contabilidade e o mundo da vida,

portanto, com os seus utilizadores e com os processos comunicacionais ao nível social.

A complexidade crescente nos conhecimentos envolvidos na contabilidade tem

promovido a multidisciplinaridade, o que não é necessariamente positivo: a

complexidade gera a fragmentação e esta dificulta um discurso público nos termos que

previamente definimos ao nível do modelo pragmatista defendido por Jürgen

Habermas. Simultaneamente, o alargamento das áreas de reporte de tipo contabilístico

pode significar um aumento das áreas de juridificação. De facto, não é suficiente a

contabilidade escolher quais as variáveis sociais e ambientais relevantes – mais

relevante será uma real alteração nas práticas empresariais. A intensificação

juridificadora distorce o discurso público e ignora a formação, a partir de normas

geradas no mundo da vida, de conceitos de racionalidade económica distintos dos

tradicionais.

Muito importante na ligação que se estabelece entre a contabilidade e a transparência,

e entre esta e a responsabilização, está a expressão utilizada pelos autores de

“contabilidadização” (accountingization)14. Esse conceito serve para criticar a

possibilidade de a “contabilidade enquanto método [poder] eclipsar mais amplas

questões de responsabilização [accountability].” A proximidade dos termos em inglês

não encontra paralelo em português, mas demonstra a proximidade e a relevância da

área numa lógica de “prestação de contas”. Quem é responsável “presta contas” perante

aqueles em relação a quem é responsável. Consequentemente, uma alteração ou uma

atenuação da visão da contabilidade essencialmente como instrumento para a tomada de 13 Ibid., pág. 136. 14 Ibid, pág. 151.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

123

decisão e para a fabricação de uma realidade favorável a determinados grupos,

introduzindo-lhe uma maior e mais vincada preocupação com a “prestação de contas”

face a todos as partes interessadas das empresas (e organizações em geral, privadas ou

públicas) poderia revelar-se produtiva.

4 – No artigo Business, Ethics and Business Ethics: Critical Theory and Negative

Dialectics15 Martin Parker faz uma análise e uma crítica da ética empresarial como mais

uma área que pretende exercer um domínio sobre a totalidade da gestão (da mesma

forma que qualquer área tende a considerar-se como central, seja ela o marketing, a

estratégia, as finanças, etc.) em detrimento das restantes. Segundo o autor a ética

empresarial assenta em duas ideias aceites de forma acrítica: a tese da insuficiência (a

ética empresarial vem responder a uma necessidade sentida pelos negócios, que não

teriam os recursos para responder aos dilemas que lhes eram colocados) e a tese do

declínio (ou seja, a ideia de que as pessoas já não confiam nas empresas). A abordagem

vulgarmente seguida nos textos de ética empresarial é uma perspectiva “melhorista”,

reformista e pouco ambiciosa e que, ao enfatizar a racionalidade individual segue a

lógica dominante pró-managerialista. Ao invés de conter em si elementos de

emancipação, a ética empresarial transforma-se em mais um instrumento de marketing

estratégico, sendo o seu potencial enquanto meio de controlo sobre os funcionários da

empresa igualmente apreciado.

Para fugir a esta perda de sentido de uma área que devia servir justamente para

devolver sentido à actividade empresarial, Michael Parker defende uma abordagem

dialéctica que, apesar de se basear em autores marxistas (Horkheimer e Adorno) recusa

o marxismo ortodoxo, para o qual “ética empresarial” é um oxímoro. Esta é uma visão

estática e que portanto pouco ou nada tem a oferecer à reflexão sobre a ética

empresarial. Trata-se de uma posição irredutível e que termina sendo uma crítica moral

(portanto, correspondente de certa forma às éticas de máximos) à qual não é possível

responder pois a resposta está dada à partida. Pelo contrário a visão de Horkheimer

apresenta-se como não dogmática, vendo a dialéctica com algo que não foge

completamente ao controlo humano e que por outro lado é impossível ter uma visão

clara de quais os “verdadeiros” interesses ou qual a “verdadeira” emancipação a

alcançar. Desta forma a ética empresarial pode ser aproveitada com um fim

emancipatório, ainda que sempre e apenas como saber impuro. Há aqui uma noção de

fim, em que a síntese pode ser encontrada ainda que de forma imperfeita e que abre

15 Ibid, págs. 197-219.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

124

caminho a uma negação enquanto forma de reconciliação com a razão.

Pelo contrário, a perspectiva de Adorno reúne a radicalidade da crítica da visão

marxista tradicional com a visão dialéctica da segunda opção. A sua dialéctica negativa

afirma que qualquer negação da negação é um puro historicismo e portanto tem pouco

potencial como síntese. A tarefa da ética empresarial será, a esta luz, negar e afirmar-se

permanentemente, não havendo na afirmação, mas tampouco na negação, qualquer tipo

de superioridade lógica ou moral.

5 – Parker termina o artigo questionando o motivo pelo qual duas áreas tão próximas

quanto a disciplina da ética empresarial e a corrente da gestão crítica não estabeleceram

mais pontes entre si. O essencial da sua resposta é tem tanto interesse para a

compreensão da segunda quanto da primeira. Afirma ele que a separação que possa

existir acaba por ser “uma forma de disputa entre kantianos e hegelianos, entre aqueles

que pretendem tratar da noção moderna da soberania individual e aqueles que

pretendem frisar que o sujeito só consegue alguma vez atingir significado em relação

com um contexto social e político.”16 No entanto, e para lá desta divisão básica, mesmo

no seio da teoria crítica existe uma fronteira entre autores como Horkheimer e

Habermas, por um lado, e Adorno por outro – este inserindo-se numa linha que vai

buscar mais a Nietszche que a Marx e que encontra as suas mais recentes expressões em

Derrida ou Foucault. Ao passo que os primeiros se inserem de forma mais ou menos

explícita numa busca “optimista” e da razão, os segundos recusam em absoluto a

modernidade. Naturalmente, optar por qualquer uma destas visões terá efeitos não

despiciendos sobre o conceito de ética empresarial apresentado.

3 – Áreas conexas à Ética Empresarial 3.1 – Corporate governance

O governo das sociedades (ou governo corporativo) surge como produto das mesmas

condições que a ética empresarial. Os procedimentos menos claros levados a cabo no

seio das empresas trouxeram a necessidade de estudar a distribuição de poder no seu

seio e de estabelecer regras de boas práticas. Assim, o governo das sociedades será,

segundo o chamado Relatório Cadbury “o sistema através do qual as companhias são

dirigidas e controladas”17 devendo haver da parte dos conselhos de administração o

16 Ibid., pág. 214. 17 Report of the Committee on The Financial aspects of Corporate Governance,

http://rru.worldbank.org/Documents/PapersLinks/1253.pdf, pág. 14.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

125

respeito pelas leis, normas internas das empresas e interesses dos accionistas. Ter em

mente os interesses dos accionistas é, precisamente um dos pontos fulcrais do corporate

governance e vem de encontro ao que já afirmámos a respeito do lucro. Esta questão

assume particular gravidade no que concerne aos rendimentos dos administradores das

empresas, tendo motivado a realização de relatórios específicos, como o Relatório

Greenbury18.

O governo das sociedades partilha igualmente com a ética empresarial algumas das

suas debilidades. Apesar da proliferação (especialmente no primeiro caso) de ofertas de

formação nesse âmbito e da instauração por praticamente todas as grandes empresas de

políticas de governança corporativa, os abusos estão longe de deixar de suceder

(empresas como a Enron por exemplo, em que havia já políticas sólidas). O objectivo

primordial – a mudança comportamental – é suficientemente difícil para que se deva ter

a consciência de que as vitórias são pequenas e graduais. A passagem de paradigmas

baseados no medo, na depredação de recursos e no falseamento de resultados para um

clima de abertura, cooperação e de procura equilibrada do benefício não se fará de um

momento para o outro.

As principais partes interessadas no seio desta área são os accionistas e os

administradores.19 Isto não significa que outros stakeholders (trataremos dessa questão

mais adiante) estejam totalmente excluídos desta área, mas não lhe são fundamentais.

Desta forma, adquire centralidade o chamado princípio do agenciamento, à luz do qual

se estabelece que, sendo os accionistas os donos da empresa, os administradores são em

relação aos primeiros meros agentes da sua vontade. Este princípio visa regular a

ambição desmedida que muitos gestores de topo têm, lesando os interesses dos

accionistas (obtenção de lucro) através de sistemas de remuneração fabricados de forma

desproporcional aos resultados obtidos. Ele responsabiliza a administração e traz

problemas como o risco moral associado a relações de informação assimétrica, ou seja,

o problema da relação mandante/agente (principal-agent problem). O governo das

sociedades tem como um dos seus maiores objectivos produzir e manter um governo

empresarial que ultrapasse esta questão e salvaguarde os interesses dos accionistas,

equilibrando a correlação de forças em seu benefício.

18 Texto completo disponível em http://www.ecgi.org/codes/documents/greenbury.pdf. 19 Adrian Davies, em Corporate Governance, Boas Práticas de Governo das Sociedades, pág. 10, faz

notar que historicamente os conselhos de administração eram exclusivamente não-executivos. Posteriormente, os gestores (que se tinham mantido afastados dos conselhos) começaram gradualmente a ganhar relevância, em função da própria complexificação das empresas e da economia.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

126

O governo das sociedades tem oito dimensões principais, três das quais nucleares, a

saber, a liderança (que não é estática nem propriedade de ninguém, tendo por outro lado

um lado formal e outro informal), a distribuição do poder (o âmago do corporate

governance é efectuar uma boa distribuição de poder) e o padrão de responsabilização

(pretende-se que na economia privada, tal como na política, os indivíduos saibam ser

exigentes e imponham padrões elevados de responsabilidade). Os elementos acessórios

serão a identidade da organização (o conjunto de valores que a define), o seu propósito

(construção de consensos sobre objectivos comuns), a inclusão e comunicação

(necessárias para construir a confiança entre as várias partes interessadas), a

maximização da eficácia (satisfazer o cliente, reduzir o desperdício e assegurar uma

reputação sustentável) e por fim a garantia da sustentabilidade (a procura do benefício

deve ser balanceada para que a procura, por parte da administração, da apresentação de

bons resultados não comprometa o futuro da empresa nem seja a causa do falseamento

estatístico).

A implementação de um sistema de governo corporativo passa necessariamente por

cinco elementos. De entre eles, assume particular relevância a liderança, que tem

simultaneamente ser direccionada por um objectivo superior ao poder em si, e de

disseminar os objectivos comuns pela empresa (não só pelas suas decisões, mas

também pelas acções, ou seja, pelo exemplo quotidiano). Uma das pedras de toque do

governo das sociedades é efectuar uma separação entre administração (que deve

assumir uma liderança efectiva e fazer a ligação entre a empresa e as múltiplas partes

interessadas) e a gestão, essencialmente técnica e virada para o bom desempenho da

organização. A cultura, agregando a visão, missão e os valores da empresa, constitui

uma visão partilhada que une a organização. A cultura organizacional, sendo relevante

para a corporate governance é, provavelmente, o elemento determinante da ética

empresarial. Sobre ela falaremos novamente mais tarde. A estrutura (tanto a formal

como – e este é um dos desafios do governo das sociedades – a informal) e os processos

(meio para accionar medidas e atingir resultados) tem uma função operativa e a marca,

ao acumular a reputação e a confiança é enfim é o produto final de um processo de

governo corporativo.

Há enfim muitos pontos de contacto entre o corporate governance e a ética

empresarial, muito em particular atendendo à visão que pretendemos defender. No

entanto, esses pontos são ainda mais profundos no que concerne à responsabilidade

social, em que a sobreposição pode chegar a ser total.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

127

3.2 – Responsabilidade social

De facto, a responsabilidade social das empresas tem uma origem não apenas

concomitante, mas comum com a ética empresarial. O célebre artigo de Friedman de

1970, a afirmação do autor é a de que “A responsabilidade social da empresa resume-se

[etc.]”.

A responsabilidade social das empresas é um desenvolvimento particular do conceito

de responsabilidade social, que tanto inclui empresas como governos, organizações e

instituições sociais ou indivíduos. Trata-se no fundo de assumir que cada uma dessas

entidades tem deveres para com a sociedade (para com os outros) e que esses deveres

tanto podem ser negativos (abstenção da prática de actos nocivos) como positivos (pró-

activamente beneficiar a sociedade). Tendo isto em atenção, a responsabilidade social

das empresas encontra na teoria dos stakeholders (que mais tarde aprofundaremos) a

sua mais sólida base, de resto partilhada com o corporate governance a ética

empresarial. A esta luz, as empresas deverão agir tendo em conta os interesses de todos

os que possam ser afectados pela actuação da empresa.

Triple Bottom Line é a expressão que agrupa os três tipos de preocupações que a

actuação das empresas deve ter: as económicas (resultados), as sociais (valorizar as

pessoas) e as ambientais (minimização de externalidades negativas). Simultaneamente,

a responsabilização pode ser efectuada a quatro níveis distintos: a económica, a legal, a

ética e a discricionária. Estes dois últimos tendem a formar o corpo principal da

responsabilidade social das empresas, sendo que o elemento discricionário (a

filantropia) é o que fornece maior especificidade à área. De facto, a ligação entre o

sector privado e o terceiro sector, em que os dois se aproximam embora mantendo as

suas especificidades pode ser considerada a trave mestra da responsabilidade social das

empresas. Há aí o desenvolvimento de uma relação simbiótica entre as empresas (que

fornecem os recursos de que o sector social necessita) e as instituições de solidariedade

e organizações não-governamentais (que fornecem a boa reputação desejada pelas

empresas).

Conceito distinto será o avançado por alguns autores20, substituindo o conceito

restrito de responsabilidade social das empresas por “responsabilidade empresarial”.

Problemática, esta abordagem arrisca-se a anular todas as áreas adjacentes (governo das

sociedades, desenvolvimento sustentável e ética empresarial) e a tornar o conceito de

responsabilidade social das empresas vazio ou desligado dos outros tipos de 20 Maria João Nicolau Santos et al, Desenvolvimento Sustentável e Responsabilidade Empresarial, pág.

2.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

128

responsabilidade social (individual, governamental, etc.). Não há a este respeito

qualquer consenso, e de facto a expressão dominante é a responsabilidade social das

empresas, cuja prática tem incidido essencialmente na vertente filantrópica (causas

sociais e ambientais) e também em boas práticas ao nível da gestão dos recursos

humanos.

Assim, a responsabilidade social poderá coincidir no essencial com a ética

empresarial parte B (ou seja, com a parte aplicada da ética empresarial). De fora fica a

fundamentação teórica, por um lado; por outro, ao passo que na responsabilidade social

das empresas pode haver lugar para uma vertente filantrópica – embora haja quem

argumente que a filantropia empresarial clássica esteja em declínio.21 Podemos no

entanto questionar-nos se será o declínio verdadeiramente da filantropia, ou será que o

momento em que mais se divulga a ideia da responsabilidade social não coincidirá

também com uma alteração dos paradigmas de empresa que a tornam menos

responsável, podendo tratar-se de uma reacção que visa repor, actualizando, um

equilíbrio antigo. De facto, a morte das empresas paternalistas do passado e a reforma

do Estado de Bem-Estar levantam problemas sociais graves que obrigam a rever a

posição das empresas na sociedade. No entanto, esta vertente filantrópica deve, como se

pode verificar na menção que fazemos à questão no tópico sobre o agir no seio de uma

ética empresarial, ficar excluída da ética empresarial. Por seu turno, esta última, na sua

vertente aplicada, inclui elementos formais (os códigos éticos) que a responsabilidade

social dispensa em si, embora naturalmente possa (ou, na verdade, deva) utilizar como

repositório de princípios orientadores de acção.

II.3.3 – Desenvolvimento Sustentável

Conceito que acompanha sempre a responsabilidade social, o desenvolvimento

sustentável consiste na preocupação de ter em conta o impacte ambiental do

desenvolvimento económico. Deste modo, a par das preocupações sociais surgem as

ambientais, visando-se garantir que ao longo do tempo as actividades sejam

sustentáveis. Nos alvores do conceito estará a Cimeira de Estocolmo de 1972, na qual

se pretendia conter a poluição equilibrando os anseios de maior desenvolvimento

económico com a protecção do meio ambiente. Quinze anos depois o Relatório

Brundtland apela à responsabilização dos Estados e das organizações; a estrita

21 Michael Porter, citado por Fernando Ribeiro Mendes no prefácio ao livro Desenvolvimento

Sustentável e Responsabilidade Empresarial, pág. IX. Podendo esta afirmação ser razoável, a questão também surge: serão as empresas hoje socialmente mais responsáveis que no tempo da filantropia empresarial clássica? Por exemplo, estão elas mais empenhadas em construir comunidades? Tratam melhor os seus funcionários, em remuneração, estabilidade ou oportunidades de desenvolvimento?

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

129

protecção do meio ambiente, opondo-o ao crescimento económico dá lugar ao conceito

de desenvolvimento sustentável em sentido próprio, ou seja, não se visa articular dois

objectivos distintos mas integrá-los numa perspectiva de crescimento contínuo

(sustentado). Na Cimeira do Rio de 1992 estabelece-se a Agenda 21, que firma o

conceito de desenvolvimento sustentável, integrando os elementos do crescimento

económico, equidade social e protecção ambiental.

A Agenda 21 marca uma nova etapa e estabelece as linhas orientadoras que vão

marcar o essencial da reflexão sobre o tema do ambiente e do desenvolvimento

humano. A imbricação de questões até então apartadas (como os direitos humanos, o

ambiente ou o bem estar) gera um conceito abrangente de desenvolvimento que,

segundo Amartya Sen “[…] exige que se eliminem as principais fontes de falta de

liberdade: a pobreza e a tirania, a escassez de oportunidades económicas e as privações

sociais sistemáticas, o abandono em que se podem encontrar os serviços públicos e a

intolerância ou o excesso de intervenção de Estados repressivos. Trata-se de um

processo de expansão das liberdades reais de que desfrutam as pessoas. O facto de

centrarmos a atenção directamente nas liberdades humanas contrasta com as

concepções mais estreitas do desenvolvimento que o identificam com o crescimento do

PIB, com a industrialização ou com o progresso tecnológico. [...] Conceber o

desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades fundamentais leva a

centrar a atenção nos fins a partir dos quais ganha importância o desenvolvimento, mais

que em alguns dos meios que inter alia desempenham um destacado papel no

processo.”22 Um dos objectivos fundamentais será então produzir uma nova distribuição

dos custos e dos benefícios do crescimento, tarefa na qual a responsabilidade social das

empresas e uma noção de ética empresarial são insubstituíveis: tratando-se de

negociações efectuadas a uma escala global, a acção terá de ser local e para-legal.

4 – Instrumentos de Institucionalização da Ética

Empresarial Neste terceiro ponto daremos apenas uma visão genérica das possibilidades de

institucionalização – portanto, de concretização da ética empresarial não apenas

enquanto prática (que deve, de resto, permanecer como a parte essencial, a parte

22 Ética de la Empresa y Desarollo Económico, in Construir Confianza, Ética de le empresa en la

sociedad de la información y las comunicaciones, pág 40.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

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determinante, da ética empresarial, enquanto ética vivida) mas também nos

instrumentos que podem servir para a sua concretização. Nas duas partes precedentes

deste capítulo vimos a relação que a ética tinha com a gestão, nomeadamente os

contributos que a gestão tem para dar neste âmbito, aqueles elementos que nela já

trazem uma preocupação ética (e não apenas um intuito tecnicista). Neste momento

pretende-se sistematizar os tipos de mecanismos de regulamentação, implementação e

controlo ético.

Seguimos a distinção seguida por Robert Solomon23 entre ética micro, macro e molar.

Adaptando os níveis em causa aos instrumentos disponíveis, podemos dizer que o nível

micro remete para os instrumentos destinados a regular o comportamento individual, o

agir de cada indivíduo. O nível macro remete-nos para relações de maior complexidade,

interindividual, grupal, organizacional. É essencialmente o nível da empresa. O nível

molar é o nível intergrupal, interorganizacional ou o nível social. Remete para as

relações entre as empresas e entre estas e a sociedade em geral ou o Estado.

Paralelamente, os diferentes instrumentos podem ser divididos em três âmbitos ou

tipos de intervenção. O primeiro tipo é o normativo, remetendo para codificações

(aquilo que por vezes designamos como “ética formal”). O segundo é o orgânico,

tratando-se aqui de instrumentos que corporizam ou requerem integração no seio da

estrutura de cada empresa. Por fim, encontramos instrumentos que habitualmente se

encontram fora das empresas e que não têm relação necessária com nenhuma empresa

em particular, embora tal possa suceder.

Âmbito Instrumento Nível

Código Profissional Micro Código de Conduta

Normativo Código Ético

Conselho de Empresa, Comissão de

Trabalhadores,etc. Provedoria/ Ombudsman

Macro

Orgânico

Assessoria Ética

Associações e Centros de estudos especializados Institucional Organizações Patronais, Sindicatos, Associações de

Consumidores, ONG, etc.

Molar

23 Robert C. Solomon, “Business Ethics”, in A Companion to Ethics, Peter Singer (coord.), Blackwell

Publishers, Oxford, 1993, págs. 354-365.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

131

4.1 – Âmbito Normativo

No âmbito normativo caem os códigos profissionais ou deontológicos, os códigos de

conduta e os códigos éticos. Os primeiros regulamentam os comportamentos de

indivíduos pertencentes a actividades que reúnem um conjunto de características que

Adela Cortina, em Ciudadanos del Mundo – Hasta una Teoria de la Ciudadanía24

descreve e que serão sinteticamente oito: há um certo grau de especialização e

institucionalização – normalmente muitas vezes são regidas por ordens, associações

socioprofissionais ou afins que de resto são quem elabora e garante o respeito pelo

código que garantem o monopólio do acesso à função; tradicionalmente são associadas

a um sentido de vocação e de serviço à comunidade (ou seja, o salário, sendo uma

preocupação natural e tendo de haver remuneração do trabalho, não é suficiente para

distinguir uma “profissão” de outra actividade económica, de outro “trabalho”); há um

processo de capacitação teórica e prática, que desemboca no desempenho da função de

forma estável. Há em muitas profissões alguma autonomia, que tem como resultado

também uma maior responsabilidade (donde, os códigos deontológicos assumem

especial relevância).

Os códigos de conduta também regulam o comportamento dos indivíduos de forma

directa mas, sendo elaborados pelas empresas, abrangem todos os indivíduos que nela

trabalham. Situa-se pois numa zona de fronteira entre o nível micro e o macro, entre a

regulamentação do comportamento de cada indivíduo e as normas de funcionamento da

organização. Já os códigos éticos são mais latos. Habitualmente há alguma confusão

entre códigos éticos e códigos de conduta. Quando a intenção da empresa é ter uma

ética fraca, portanto uma ética de controlo e punição, ela impõe códigos de conduta

(situação que já tivemos oportunidade de relevar). Os códigos éticos, seja incluindo a

conduta dos funcionários, seja somando-se ao código de conduta, implicam uma

definição da missão e visão, valores e princípios determinantes para a empresa,

tornando-os patentes, obrigando-a a comportar-se de acordo com o enunciado. Trata-se

pois de uma forma de os múltiplos stakeholders poderem eles próprios avaliar a

empresa, numa lógica de transparência e responsabilização organizacionais.

4.2 – Âmbito Orgânico

O âmbito orgânico não deve ser confundido com a organização. De facto, são os

instrumentos aqui em causa que se concretizam em órgãos, normalmente de staff (ou

seja, não estão incluídos na estrutura hierárquica da empresa, sendo a eles paralelos).

24 Págs 148-161.

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

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Temos assim os conselhos de empresa, órgãos nos quais podem participar os

consumidores (similares portanto às comissões de utentes dos serviços públicos) e que,

podendo dar contributos válidos, fomentando cooperação e confiança, apresentam

dificuldades de funcionamento25. Similares mas mais frequentes, dada a facilidade no

que concerne à definição da sua composição e funcionamento, as comissões de

trabalhadores podem igualmente ser instrumentos que auxiliem a definição e regulação

de uma orientação ética na empresa. Quando existam, a boa comunicação (e isto não

significa concordância absoluta, mas simplesmente confiança e abertura negocial) entre

elas e as administrações são das formas mais intuitivas de avaliar até que ponto os

diferentes actores estão realmente empenhados em agira eticamente, ou seja, em

transportar a ética empresarial das codificações e da mera formalidade para vivência

quotidiana.

Importadas do plano jurídico, as provedorias têm como objectivo dar um tratamento

adequado às reclamações apresentadas e aos afectados por elas. Sendo um órgão de

staff, deve ficar garantida a imparcialidade e a defesa de todos os legítimos interesses

em jogo.

Estão também no âmbito orgânico as assessorias éticas, desempenhadas por

elementos que tanto podem trabalhar exclusivamente para a empresa ou que

desempenhem a função enquanto consultores externos. A assessoria abrange

essencialmente três níveis: o aconselhamento ético (quando o empresário ou gestor

pede opinião externa sobre determinada problemática), o juízo ético (quando se pede

uma tomada de posição concreta) e a auditoria ética (processos mais vastos, não

restringidos a questões concretas e que exigem habitualmente analisar o funcionamento

das empresas como um todo, retirando os pontos essenciais). As assessorias éticas estão

numa zona cinzenta entre o funcionamento organizacional e as suas repercussões

sociais, nomeadamente através das auditorias éticas.

4.3 – Âmbito Institucional

No âmbito institucional encontramos, para além de actores sociais (como

organizações patronais ou sindicatos), centros de investigação, universidades e

associações especializadas. Trata-se já de instrumentos que podem ser utilizados a um

nível social/global. Estes instrumentos tanto podem ser stakeholders em si como servir

de mediadores entre stakeholders. Encontram-se aqui as entidades responsáveis pelos

códigos deontológicos, bem como entidades que criam e monitorizam rankings de 25 Conforme Domingo García Marzá in Ética de la Empresa, Claves para una nueva cultura

empresarial, pág. 119.

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Capítulo V – A Ética e a Gestão

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empresas segundo o seu comportamento ao nível laboral, ambiental ou filantrópico. Por

fim, os centros de investigação relacionados de forma directa ou indirecta com o campo

da ética empresarial.

4.4 – Considerações finais sobre a institucionalização da Ética Empresarial em

relação à Ética do Discurso no sentido da pragmática transcendental

Os três âmbitos (normativo, organizacional e institucional) têm uma gradação

crescente de relação como a ética do discurso, sendo que o âmbito normativo pode

inclusivamente ser posto nos seus limites: como já referimos anteriormente, a definição

das normas materiais é algo que fica delegado para os discursos práticos que se

desenvolvem no seio das empresas (âmbito organizacional) ou da sociedade (âmbito

institucional).

Por sua vez, são os mecanismos encontrados pelas empresas para regular os conflitos

de interesses e os efeitos da sua actividade pelos afectados, e os mecanismos

desenvolvidos a nível social (actividade académica, associações, comissões de

acompanhamento, etc.) para a um nível molar definir linhas orientadoras, que ficam

vinculados aos princípios fundamentadores de uma ética pós-convencional de

responsabilidade e respeito pelos interesses de todos os afectados.

Nesse sentido, os meios de institucionalização da ética empresarial deverão respeitar

três ideias cruciais:

i. Promoção da transparência como fomentadora da confiança entre as empresas

(para as empresas adoptarem um agir eticamente orientado de forma responsável

têm de ter garantias de que as suas concorrentes estão sujeitas às mesmas

pressões e aceitam essa mesma orientação);

ii. Promoção da transparência como fomentadora da racionalidade dos

consumidores (os consumidores têm o direito de aceder à informação sobre os

produtos que consomem pois sobre os consumidores impende também o dever de

premiar as empresas eticamente orientadas – perspectiva maximalista – ou pelo

menos de punir as que de forma clara violem princípios morais universais –

perspectiva minimalista);

iii. Que esses meios se articulem numa rede tal que os agentes económicos se tornem

agentes juridicamente mais livres através de um agir moralmente orientado que

torne a coerção estatal menos premente (a ética empresarial é inseparável da

aceitação de uma economia de mercado, na medida em que se trata de uma

economia descentralizada fundada no conceito de indivíduo autónomo).

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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica

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Estas linhas orientadoras não são obviamente princípios absolutos, e podemos afirmar

com grande certeza que as empresas nunca confiarão inteiramente na honestidade dos

seus concorrentes, que os consumidores nunca pesarão em cada compra que fazem a

maior ou menor eticidade da empresa que produziu ou vendeu o produto ou serviço e

que o mercado funcionará de forma tão perfeita que o Estado nunca seja chamado a

intervir. Pragmaticamente teremos de aceitar que as falhas existem e existirão – mas

somos obrigados por um princípio moral transcendental a procurar formas de superar as

falhas e encontrar uma vivência justa para nós e para os outros, presentes e futuros.

Ao longo deste capítulo procurámos abordar as relações entre a ética

(empresarial) e a técnica (gestão) sob duas perspectivas distintas. Assim, nas

primeiras duas partes abordámos as correntes de gestão que historicamente

se revelaram mais relevantes para uma integração entre a ética e as

empresas. Aqui a técnica surgia enquanto sinónimo de gestão. Nas últimas

duas partes do capítulo as técnicas surgiram já como os instrumentos

actualmente mais em voga ou que podem ser mais úteis na aplicação prática

da ética empresarial.