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1 ÍNDICE RESUMO………………………………………………………………………… I RUY CINATTI HOMO VIATOR 1. Considerações iniciais……………………………………………………. 2. A condição e a missão do poeta…………………………………………. 3. Inquietação e errância……………………………………………………. II O AMIGO DO NÓMADA 1. Considerações iniciais…………………………………………………… 2. O nómada amigo”……………………………………………………… 3. Notas sobre a recepção de Ruy Cinatti…………………………………. 4. O livro do nómada meu amigo (1958)………………………………….. 4.1. A viagem…………………………………………………………….. 4.2. O mar…..……………………………………………………………. 4.3. A ilha………………………………………………………………... 4.4. O mistério…………………………………………………………… 4.5. Solidão e fraternidade………………………………………………. III O ITINERÁRIO DO NÓMADA AMIGO1. O nómada amigona poesia de Ruy Cinatti………………………….... 1.1. Corpo Alma (1994)………………………………………………... 1.2. Um cancioneiro para Timor (1995)………………………………… 1.3.Uma sequência timorense (1970)……………………………………. 1.4. Paisagens timorenses com vultos (1974)…….……………………… IV “ABRI CAMINHOS MAS NÃO OS CUMPRI” – CONCLUSÕES…….. BIBLIOGRAFIA………………………………………………………………… ANEXOS………………………………………………………………………… 3 5 14 19 26 32 37 40 48 52 56 59 61 65 67 69 71 73 76 83 91

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ÍNDICE

RESUMO…………………………………………………………………………

I – RUY CINATTI – HOMO VIATOR

1. Considerações iniciais…………………………………………………….

2. A condição e a missão do poeta………………………………………….

3. Inquietação e errância…………………………………………………….

II – O AMIGO DO NÓMADA

1. Considerações iniciais……………………………………………………

2. O “nómada amigo”………………………………………………………

3. Notas sobre a recepção de Ruy Cinatti………………………………….

4. O livro do nómada meu amigo (1958)…………………………………..

4.1. A viagem……………………………………………………………..

4.2. O mar…..…………………………………………………………….

4.3. A ilha………………………………………………………………...

4.4. O mistério……………………………………………………………

4.5. Solidão e fraternidade……………………………………………….

III – O ITINERÁRIO DO “NÓMADA AMIGO”

1. O “nómada amigo” na poesia de Ruy Cinatti…………………………....

1.1. Corpo – Alma (1994)………………………………………………...

1.2. Um cancioneiro para Timor (1995)…………………………………

1.3.Uma sequência timorense (1970)…………………………………….

1.4. Paisagens timorenses com vultos (1974)…….………………………

IV – “ABRI CAMINHOS MAS NÃO OS CUMPRI” – CONCLUSÕES……..

BIBLIOGRAFIA…………………………………………………………………

ANEXOS…………………………………………………………………………

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, responsáveis, em grande parte,

pelo que sou e sei.

Aos meus familiares e amigos, que ao longo do

tempo têm preenchido os meus dias de

momentos inestimáveis.

Ao Professor Doutor Manuel Gusmão, primeiro

orientador desta dissertação e à Professora

Doutora Paula Morão, minha actual

orientadora, ambos responsáveis por

aprendizagens que guardarei para a vida.

À Professora Doutora Cristina Almeida Ribeiro,

pela atenção prestada aquando do recomeço

deste trabalho.

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RESUMO

Num poema de Transporte no tempo, Ruy Belo referiu-se aos seus compatriotas

como “peregrinos e hóspedes em outras terras”, aplicando a expressão à condição

errante dos portugueses. Consideremo-la igualmente relevante para ilustrar a condição

do poeta e da poesia e teremos então justificada a pertinência de dedicarmos um estudo

a Ruy Cinatti, em particular, e à poesia como território nómada, em geral.

Em relação ao autor de O livro do nómada meu amigo, é unânime a inscrição do

seu labor poético sob o signo da errância, da inquietação (exterior e interior) e da busca

(de si e dos outros), quase sempre tendo como pano de fundo as ilhas atlânticas ou

índicas e como protagonista o “nómada amigo”, instância enunciadora proteica, que vai

ganhando individualidade ao longo do itinerário poético de Cinatti. Por se nos abrir

como um notável palimpsesto de tradições históricas, culturais e poéticas, por marcar

um ponto de viragem crucial no itinerário poético do seu autor e por Timor nunca mais

ter perdido estatuto de matéria poética, este livro afigura-se-nos merecedor do olhar

atento que lhe dedicaremos.

Tomá-lo-emos igualmente, por isso, como ponto de partida para algumas

considerações em relação à poesia como forma de nomadismo, partilhando com Ruy

Cinatti uma certa concepção de poesia, ou seja, entendendo-a como território de

encontro e de convívio de tradições, influências, tendências e autores.

Palavras-chave: Ruy Cinatti; Timor; O livro do nómada meu amigo; nomadismo;

nómada; poesia.

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ABSTRACT

In a poem of Transporte no tempo, Ruy Belo named his compatriots as “pilgrims

and guests in foreign lands”, referring to the wandering condition of the portuguese. Let

us consider it relevant to demonstrate the essence of both poet and poetry and it will be

possible to justify the importance of dedicating a dissertation to Ruy Cinatti, in

particular, and to poetry as a nomadic territory, in general.

Concerning the author of O livro do nómada meu amigo (1958), it is consensual

to place his poetry under the sign of nomadism, inner and outer restlessness and the

quest, both for the self and for the others, with the atlantic or indian islands as scenery

and the “nómada amigo” as main character, volatile poetic voice that acquires a stronger

individuality along Cinatti’s poetic itinerary. As it opens itself to the reader as

remarkable palimpsest of historic, cultural and poetic traditions, as it establishes a

crucial turning point in the poetry of its author and because Timor never ceased to be

taken as poetic mater, this book deserves the close analyses we are about to dedicate it.

It will also be regarded as a starting point to some considerations concerning

poetry as nomadism, learning from Ruy Cinatti an idea of poetry as meeting point of

traditions, influences, tendencies and authors.

Keywords: Ruy Cinatti; Timor; O livro do nómada meu amigo; nomadismo; nomad;

poetry.

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I

RUY CINATTI – HOMO VIATOR

A poesia é a autobiografia do poeta ou

do nómada em escala de partida: o seu

cântico.

Ruy Cinatti

Com ele, de quem fui amigo, concordei

que a poesia é uma arte de ninguém.

Que se procura, se revela, e a seguir nos deixa para nunca mais. É uma arte

de nómadas, meu amigo, assim você.

Joaquim Manuel Magalhães

1. Considerações iniciais

Parece-nos relativamente pacífica a ideia de que a poesia, tal como tem sido

produzida e lida, surge como um complexo poliedro, com tantas faces quantas as que

lhe quisermos reconhecer. Esta forma de arte já foi meio para chegar a muitos fins e,

estando sujeita como o próprio homem ao tempo, as histórias de ambos confundem-se

ao ponto de a expressão poética chegar mesmo a ser entendida como a melhor forma de

dizer a condição do seu próprio criador, este, igualmente, entidade multifacetada.

Parece válido sistematizar alguns aspectos relevantes para o presente estudo

sobre Ruy Cinatti, no que diz respeito à associação possível entre modo de vida e

expressão artística. Desde tempos imemoriais, a relação do homem com a poesia –

considerando-se as mais variadas formas que tomou – terá frequentemente partido da

condição de nómadas dos nossos antepassados. Não se trata de, com os exemplos que se

seguem, aprofundarmos algo em relação à sua intencionalidade estética, mas sim de

pensarmos neles como forma de chegar a ela.

Poderemos, assim, por exemplo, aludir ao carácter nómada dos povos

primitivos, que nos legaram as pinturas rupestres que ainda hoje cobrem inúmeras

cavernas que serviram de refúgio aos grupos recolectores e que sugerem a celebração de

cerimónias. Segundo sugerem autores como T. S. Eliot (1997: 54) ou Northrop Frye

(1964, “The reason for metaphor”: 38-40), por exemplo, será plausível acrescentar-lhes

a música, o canto e, de alguma forma, a narração desses episódios de contornos épicos,

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manifestações artísticas próximas da poesia. Não será igualmente descabida a referência

às figuras bíblicas associadas à errância, embora convenha salientar que não será

rigoroso apelidá-los de nómadas, mas sim realçar o carácter de missão de que se reveste

essa errância. Poderemos referir-nos a Moisés, Cristo e até aos movimentos dos povos

hebraicos, como o êxodo (“saída”, “passagem”), em direcção à Terra Prometida, o

exílio e o regresso do mesmo, bem como a ideia de que se a meta da nossa peregrinação

é a Jerusalém celeste, morada de Cristo ressurecto, então Cristo e o próprio

cristianismo, enquanto doutrina, serão o “caminho” (Bíblia sagrada, 1976: 1669). Além

destas, poderemos ainda evocar os apóstolos Pedro e Paulo1, bem como S. Francisco de

Assis, figuras associadas à peregrinação. São de reter estas figuras e episódios, bem

como as simbologias associadas a eles, se vamos trabalhar um poeta como Ruy Cinatti,

que chamou a si, embora a outro nível, a missão de dar a conhecer Timor, o que norteou

uma larga parte da sua produção poética, como adiante veremos.

Alimentando a ideia do poeta viajante, Cícero, no seu Pro Archia (1999), refere-

se ao facto de algumas cidades da antiga Grécia entrarem em litígio, reclamando para si

o estatuto de terra natal de Homero2, poeta que as percorreu, recolhendo narrações

mitológicas que constituíam parte do substrato cultural helénico e que viriam a servir de

base a duas das grandes obras da literatura ocidental às quais poucos gregos não foram

buscar exemplos de conduta e ensinamentos (cf. Pereira, 1988: 133-138). Na baixa

Idade Média, os trovadores não só acompanhavam as peregrinações aos lugares santos,

utilizando a música e o canto, acompanhado já de belas composições poéticas para

entreter os romeiros, como viajavam de cidade em cidade, procurando sobreviver à

custa da arte que cultivavam, deleitando nobres e populares e contribuindo para enraizar

o gosto pela poesia.

Mais próximo de nós, autores como Rilke, Baudelaire, Rimbaud, deixaram

marcas inequívocas da errância que consideraram inerente ao poeta e à poesia. A

modernidade3 poética, perseguindo um ideal de liberdade que a Revolução Francesa

1 Na introdução aos “Actos dos Apóstolos”, na edição da Bíblia Sagrada consultada, pode ler-se: “Ambos os livros estão construídos em forma de “livro de viagens” (p. 1435), o que se percebe claramente pela

enumeração das cidades por onde Pedro e Paulo passaram no cumprimento da sua missão apostólica. (cf.

“Os Actos dos Apóstolos”, p. 1669). 2 Em relação a Homero, na entrada “Aveugle” do Dictionaire des symboles, pode ler-se: “C’est sans

doute en raison des sculptures, qui représentent un Homère aveugle, que la tradition fait de l’aveugle un

symbole du poète itinérant, du rhapsode, du barde, du trouvère et du trobadour” (1982: 88). 3 Recorremos aqui ao termo “modernidade”, aplicando-o em “sentido restrito, ou seja, “a modernidade

designa um período bastante bem definido que se inicia por meados do século XIX (Leaves of Grass de

Walt Whitman, 1855; Les Fleurs du Mal de Baudelaire, 1857)” (Cruz, 2008: 41).

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ajudou a implementar, pulverizou dogmas e autoritarismos através das sucessivas

vanguardas de que se alimentou. Não é de estranhar, por isso, na medida em que a

modernidade artística tem coexistido com alguns dos maiores desafios políticos e

sociais que a humanidade já colocou a si própria, que os espíritos nómadas tenham

proliferado e que, num mundo em perigo constante de desagregação, o “problema da

habitação”4 ou fixação da mesma surja como central.

O nomadismo como temática, extensível, assim, à criação poética, e entendido

como material artístico, pode dar azo a inúmeras derivações; daí que um ponto de

partida cauteloso seja a reflexão acerca da especificidade da linguagem ou da palavra

poética para entendermos o poder que pode assumir, ao longo deste nosso trabalho, a

metaforização do termo. Manuel Gusmão assinala: “Para alguns de nós a poesia tem

muitas moradas5; ou nenhuma que lhe seja própria, pois seria nómada; ou o problema

seria ainda outro – haveria poetas e poemas mas não haveria, como um sol imóvel, a

poesia” (2010: 14). Atente-se no emprego do modo condicional: “seria” não aponta para

o “é”, pelo que poderemos depreender que para o crítico e poeta não seja taxativo o

carácter nómada da poesia. Apesar disso, remete para um “caminho” aberto na língua a

que o poeta recorre como matéria-prima, aponta as “pegadas” deixadas “numa vereda

inúmeras vezes percorrida por outros” (idem). Num outro artigo da mesma colectânea

de Manuel Gusmão, pode ler-se:

O poema é alguém ou um fragmento de uma conversa humana entre gente que não sabe

bem como viver. E, contudo, a poesia são formas de vida imaginárias e imaginantes, não o eco, o feito ou o efeito de uma biografia mas as marcas de um caminhante que já

lá não está, mas passou por ali, ao encontro do encontro (ibidem, 148-149).

Por sua vez, Helena Buescu aponta: “A modernidade que aqui interessa é a que corresponde a um período

que se abre sensivelmente em meados do século XVIII e que podemos considerar prolongar-se, sob

transformações que não o afectam substancialmente, até hoje”. (2008: 468). Obviamente, teremos em

conta alguns pressupostos que cabem dentro do “sentido lato” (Cruz, 2008: 41) do termo: “novidade,

renovação formal, experimentação linguística” (ibidem: 43). 4 A expressão, da autoria de Ruy Belo, é o título da sua segunda colectânea de poesia (1962). Convocamo-

la aqui pelo que encerra de ontológico e pela relação possível entre os termos “habitação” e

“nomadismo”. Em 1968, na colectânea O tédio recompensado, da autoria de Ruy Cinatti, surge um

poema intitulado “O problema da habitação” (Obra poética,1992: 215). Por sua vez, Paula Morão, no

artigo intitulado “Ruy Belo – ‘Não há tempo ou lugar onde habitar’” (2011: 457-474), retoma esta mesma

expressão, referindo-se ao nomadismo como um “dos problemas da habitação”, decorrente da dedicatória da obra a Cinatti. Mário Santiago de Carvalho intitula a sua colectânea de “estudos de (História da)

Filosofia” (2002) O problema da habitação, aplicando a expressão à revisitação e permanência, mais ou

menos longa nas várias moradas, tema glosado a partir da expressão bíblica “Na casa de Meu Pai há

muitas moradas” (Jo. 14, 2). 5 Recordemos ainda, na sequência da citação anterior, as sete “Moradas”, de Castillo interior (1577), da

autoria de Stª Teresa de Ávila, as palavras de Ruy Belo que, ao referir-se à poesia contemporânea, afirma

ser algo “onde afinal há muitas moradas, tal como no reino dos céus” (1996: 27) ou ainda, de António

Franco Alexandre, a colectânea de poemas As moradas I e II, para reforçar a expressividade de ambos os

termos – “habitação” e “morada”.

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O crítico responde assim à observação de William Blake, que, através de Los, no seu

longo poema “Jerusalem – The emanantion of the Giant Albion” (1988, vv.20, 21:153)

afirmou sentir a necessidade de criar um sistema seu ao invés de se deixar “escravizar”

pelos de outros. Ainda, sob a tutela de T.S. Eliot (1997: 22 e 23), que afinal concluiu

que é impossível criar um sistema próprio sem primeiro se deixar “escravizar” por

outro. Posto isto, os poetas dos nossos tempos assumem-se como herdeiros de várias

tradições6 poéticas, daí que seja quase imperioso o esforço de um posicionamento

crítico face às mesmas. Perante elas, não só a procura como também a determinação de

um lugar para habitar, esteticamente falando, afiguram-se tarefas hercúleas. Da mesma

forma que não será cómodo para um poeta trabalhar exclusivamente sobre a tradição,

também não o deve ser garantir a originalidade. No fundo, deverá procurar-se um ponto

de equilíbrio, algo que poetas como Pessoa, Régio, Torga, Sophia, Cinatti, Ruy Belo e

muitos outros fizeram.

Em O problema da habitação, obra de cariz filosófico, no capítulo intitulado

“Outras Moradas”, Mário Santiago de Carvalho escreve:

Tempos e espaços houve (também ainda haverá na era da domótica?) em que a

habitação como problema nascia da deslocação, do nomadismo, da situação precária do viajante, daquele que se sabe in uia, ser histórico cujo horizonte, na procura de

uma morada, lugar onde ficar, não esquece o oriente da luz e das canções originais

(Carvalho, 2002: 9).

Embora aplicadas à filosofia, estas observações ser-nos-ão muito úteis, na medida em

que convocam alguns dos problemas que abordaremos ao longo desta dissertação. Um

dos aspectos que cumpre, por agora, realçar é que noutros campos do saber também se

verifica esta necessidade de encontrar moradas, casas onde habitar, o que significa que a

metáfora é sugestiva. E este exercício ajuda, não a catalogá-los, mas, acima de tudo,

quer se fale de filósofos ou de poetas, a posicioná-los no espaço e no tempo, que é o

mesmo que dizer na História. Seja em que circunstância for, o viajante que encontra

domicílio não deverá esquecer de onde vem, pelo que, obviamente, a atenção a prestar a

esta origem, até em termos de manutenção da identidade, aplica-se a todos: grupos

nómadas do passado, cidadãos migrantes modernos, filósofos e poetas contemporâneos,

para nomearmos alguns.

Lévinas, citado pelo autor da obra acima mencionada, observa outro aspecto

interessante, dizendo que a “casa escolhida é exactamente o contrário de uma raiz.

6 O termo “tradições” é aqui aplicado na sequência do que Manuel Gusmão aponta no artigo “Da

condição paradoxal da poesia” que, na esteira de Harold Bloom, defende não haver “tradição”, mas sim

“muitas tradições” (2010: 138).

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Indica um desprendimento, uma vagabundagem que a tornou possível” (Carvalho,

2002: 9), assumindo desta forma a condição errante do ser humano. O presente estudo

vai igualmente abordar esta vagabundagem: será este um dos atributos da condição do

poeta? Será ela um dos modos de estar que moldam o poeta da modernidade? Se

pensarmos um pouco na questão, veremos que não estará muito distante daquilo que

poderemos reconhecer num outro cidadão consciente, curioso e interessado no mundo

que o rodeia.

Inquietação e poesia andaram não raras vezes de mãos dadas, aliás, continuam a

fazê-lo, como o atestam aqueles que defendem que a filosofia e a poesia têm muito a

aprender uma com a outra. Vitorino Nemésio, por exemplo, no seu prefácio intitulado

“Da poesia” (Nemésio, 1961: 7-15), deixa observações muito interessantes a partir do

impacto que a filosofia da existência deixou nas artes literárias ao longo das décadas de

30 e 40 do século XX. Recuando à questão que apelida de “pergunta fundamental” -

“Porque é em geral o ente e não antes o Nada?” (ibidem: 9) - formulada por Heidegger,

o poeta açoriano acaba por delinear duas das mais importantes “atitudes” do poeta

moderno:

Da disjunção – Ser ou Nada – o poeta moderno ora acentua o primeiro termo,

propondo o Eu como medida da realidade e retirando-o da operação com um sentimento radical de ferida e de frustração (atitude romântica típica), ora enfrenta o

segundo abismando-se nele como o suposto que lhe resta da ávida demanda do

primeiro e tentando preenchê-lo ou penetrá-lo da própria persistência de quem entre

os dois se jogou (idem).

Em relação à primeira “atitude”, podemos dizer que contribuiu para a permanência,

entre os nossos poetas do segundo quartel do século XX, de muitos dos motivos que

povoavam a poiesis romântica, verificáveis também em Ruy Cinatti, como veremos.

Estes traduziram-se num posicionamento crítico relativamente ao real que deu origem à

poetização das mais variadas inquietações ontológicas. A segunda, de contornos mais

complexos, trouxe à poesia alguns dos seus grandes tópicos, nomeadamente: tempo,

solidão, morte, existência, Deus, cujo papel seria, lato sensu, o de definir os contornos

desse “nada”. Estes tópicos, por sinal pouco pacíficos, acabaram por se ver desdobrados

em múltiplas variantes que afinal são tentativas muito sérias de os clarificar:

peregrinação, viagem, religiosidade, espiritualidade, casa, morada, interior, exterior,

dúvida, certeza.

Assim sendo, um dos nossos pontos de reflexão poderia muito bem ser retirado

das palavras de Lévinas ao afirmar:

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10

Ce qui est pris dans l’engrenage incompréhensible de l’ordre universel, ce n’est plus

l’individu qui ne s’appartient pas encore, mais une personne autonome qui, sur le

terrain solide qu’elle a conquis, se sent, dans tous les sens du terme, mobilisable (1982: 94).

Isto implica a autonomia do homem face a Deus, traduzível numa atitude de busca e

construção, pelo que um outro aspecto importante terá precisamente a ver com a análise

deste percurso; veremos, pois, de que forma é que um itinerário poético poderá dar

resposta a diversas formas de inquietação. Paradoxalmente, este ser autónomo a que

Lévinas se refere, apesar de assentar em terreno sólido, é também o ser mobilizável, o

nómada desenraizado, desajustado, em constante demanda, permanentemente assaltado

pelo impulso da evasão, que Lévinas afirma ser um “mal du siècle” (idem.), segue

diversos caminhos para atingir um objectivo – a procura de um possível local de

acolhimento, de repouso. Numa outra acepção interessante, o termo “mobilizável”, pode

também aplicar-se ao ser que é impelido a agir, a tomar posições, o que, de algum

modo, nos é útil se entendermos o poeta como ser comprometido com o mundo e com

os outros, como o foi o poeta que aqui trabalhamos. No mesmo sentido vai Maria João

Borges quando se refere ao “estético inseparável do ético” (1993:115).

A atestar a complexidade de ambos os temas – poesia e ser humano – temos a

abundante bibliografia a eles dedicadas, mas tudo se passa como se assistíssemos a uma

serpente a perseguir a própria cauda; os poetas debatem-se na tentativa de explicar e

definir o que eles próprios criaram, como se disso dependesse o sentido da sua

existência. Tentam chegar ao âmago de algo que, apesar de inatingível, os impele a

correr incessantemente, numa atitude que talvez ganhe sentido analisar se pensarmos

que, tal como Mallarmé cria na redacção de um livro que compreendesse a totalidade do

mundo - “tout, au monde, existe pour aboutir à un livre”7 -, também alguns poetas

crêem que a definição mais completa será a síntese das avançadas até agora (Carlos

Queirós, 1941: 4). Não é do conceito de poesia que aqui se vai tratar, mas sim de uma

das suas faces: entendê-la-emos como uma forma de nomadismo e reflectiremos sobre

este como uma forma de habitação. Implicará este percurso o desdobramento da

expressão Casa da Poesia e falar, talvez, de uma Cidade da Poesia, local onde coexistem

inúmeras casas poéticas.

7 Stéphane Mallarmé, “Le livre, instrument spirituel”, Poésies et autres textes, nouvelle édition établie,

préfacée et annotée par Daniel Leuwers, Paris, Librairie Générale Française, 1998, p. 211.

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11

Em relação a esta forma de expressão artísitca, vistas as coisas como acima o

fizemos, diz Octavio Paz que não existe nada mais “huidizo e indefinible que lo

poético” (1956: 11). Aliás, uma das mais belas tentativas de definição, pensamos,

nasceu precisamente da pena deste poeta mexicano. Nesta tentativa, figuram aspectos

que ao longo da presente dissertação, ou serão alvo de simples referência ou de reflexão

mais apurada. Afirma o poeta mexicano que:

la poesía es conocimiento […] ejercicio espiritual, es un método de liberación interior. La poesía revela este mundo; crea outro. […] Aísla; une. Invitación al viaje; regreso a la

tierra natal […] el hombre adquiere al fin conciencia de ser algo más que tránsito. […]

Voz del Pueblo, lengua de los escogidos, palabra del solitário […] ¡prueba hermosa de la superflua grandeza de toda obra humana (ibidem: 13).

Ruy Cinatti, construtor da casa poética que vamos assumir como base do nosso

trabalho, não permaneceu alheio ao que acima transcrevemos; curiosamente, chegou à

poesia vindo de outras áreas do saber, o que, segundo José Blanc de Portugal (1986: 21-

22), foi determinante para cimentar uma determinada forma de “olhar” as coisas e o

mundo. Aliando esta circunstância a uma personalidade marcada pela inquietação e a

uma aguda sensibilidade poética, veremos como tudo se viria a materializar através do

discurso poético.

Assim, a presente dissertação será composta por uma primeiro capítulo em que

procuraremos enquadrar a temática escolhida, associá-la, de certa forma, à

personalidade e à obra de Ruy Cinatti, de forma a construir, dentro do possível, um

retrato do poeta que ajude a perceber como lhe foram caras a figura do nómada, a

temática da “amizade ausente”8 (Obra poética

9, 1992: 653) e que consequências estas

tiveram na sua produção poética.

Ao longo do segundo capítulo da dissertação, analisaremos O livro do nómada

meu amigo10

tendo em conta a respectiva organização, as temáticas, o tom épico, o

sentido de missão e de entrega a uma causa e, obviamente, o próprio discurso poético.

8 A expressão transcrita é retirada de Manhã imensa (1984), e encabeça um texto que o poeta intitulou

“Excerto de uma carta-meditação para uma amizade ausente na qual se insere o poema que lhe deu

motivo “Mon coeur mis a nu”. Este texto não só reitera o tema da figura ausente embora presente, como

também demonstra a ligação de Cinatti a Baudelaire e o tom confessional, que tão próprio é da poesia do

autor de O livro do nómada meu amigo. 9 Em ocorrências posteriores, referir-nos-emos à edição citada, recorrendo à sigla OP. 10 Foram consultadas as três edições publicadas pela Guimarães Editores: a 1ª, de 1958, a 2ª, de 1966,

corrigida e a 3ª, de 1981. Foram ainda consultados alguns periódicos onde, em data anterior a 1958,

Cinatti foi publicando poemas que viriam a fazer parte da colectânea. Referimo-nos aos que vieram a

lume em 1951, nos Cadernos de poesia (“Vigília”, “Natal”, “Movimento” e “Metamorfose”), ao conjunto

de poemas agrupados sob o título “Sunt lachrimae rerum…”, que viriam a constituir a IV parte de O livro

do nómada meu amigo, publicados no n.º 4 do periódico Cidade nova (1956), e ainda aos poemas “I”,

“II”, “Second spring”, revelados em 11.12.1955 no jornal Notícias de Macau. No volume, estes poemas

foram reescritos.

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12

Entendê-lo-emos como uma obra de viragem no conjunto da poesia de Ruy Cinatti,

assinalando os pontos de ruptura e de continuidade em relação às duas publicações

anteriores.

Num terceiro capítulo, visto no segundo tentarmos estabelecer a relevância da

figura do “nómada amigo” na obra do autor, ocupar-nos-emos de Corpo – Alma (1994),

Um cancioneiro para Timor (1996), ambas póstumas e de Uma sequência timorense

(1970) e Paisagens timorenses com vultos (1974), que se nos afiguram como textos de

referência para o que aqui procuramos debater. Demonstraremos a partir delas o

itinerário da figura do “nómada amigo”, que não surge do nada na publicação de 1958 e,

de igual modo, não desaparece depois dela.

No capítulo final, depois de trabalhada a figura do nómada e o papel de relevo

que ocupa, teceremos algumas considerações sobre poesia e nomadismo, numa síntese

em que se pretende, simultaneamente, tirar conclusões das obras e dos versos lidos e

apontar outras pistas de trabalho, que ficam em aberto.

Pretendemos, desta forma, acrescentar algo ao que Peter Stilwell, Joana Matos

Frias, Maria João Borges ou Margarida Ribeiro já haviam feito. Autores de preciosos

contributos para o conhecimento da pessoa e da obra de Cinatti, estes tomaram como

fulcro das suas teses, respectivamente, a condição humana, a relevância do olhar e da

imagem, o conceito de poesia pura e a poesia como materialização da “passagem”, pelo

que tomaram como referência a produção cinattiana no seu todo. Apesar disso, não nos

furtaremos a sair do nosso fulcro de análise, constituído pelas obras acima referidas se

isso for fundamental para demonstrar o que formos trabalhando.

Interessantes, embora a outro nível, são os testemunhos que os contemporâneos

de Cinatti foram legando11

, nos quais podemos confirmar a personalidade inquieta e

ausente do poeta, a riquíssima cultura geral de que era dono, a paixão pelas ilhas e pelo

ar livre, que o fizeram correr o país de norte a sul e, como não poderia deixar de ser, as

viagens pelo mundo, de que devemos destacar as três passagens por Timor. Na

sequência do que antes foi dito, “Da arte de andar” (Jornal da mocidade portuguesa,

1939: 7-8) surge como uma referência importante para entendermos na sua obra os

11 Cf. Ruben A. O mundo à minha procura II, em que o autor se refere uma ou duas vezes a Ruy Cinatti

no plural – “Li Rimbaud, arauto dos Cinattis” (2007: 172), como se houvesse outro, o que poderá ter a ver

com a figura do “nómada amigo” e com as restantes que, segundo Stilwell, Cinatti foi criando (cf. p. 33

da presente dissertação) As passagens em que o autor se refere a Ruy Cinatti são várias e algumas são

relevantes para entendê-lo; VV, dossiê dedicado a Ruy Cinatti, no JL em 20.10.1986; A condição humana

em Ruy Cinatti, inestimável contributo de Peter Stilwell pela grande quantidade de passagens retiradas

dos diários pessoais e da correspondência do poeta.

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13

efeitos de vectores como a ânsia de liberdade, a fraternidade e o descobrimento. “Sem

amizade um homem não se salva” (ibidem: 7), afirma Cinatti, pesando, de um lado, a

“vida com os outros homens, na cidade” e, por outro, o “lugar desconhecido”, de onde

brota a “vida plena e saudável”. Linhas abaixo, o autor deixa-nos ainda um pequeno

mas relevante apontamento que, mais tarde, viria a colocar em prática nas suas estadias

em Timor, como adiante veremos. Visto que o texto é uma exortação à vida ao ar livre,

os destinatários deverão seguir caminho e olhar em volta12

, “até que a aventura e o

descobrimento da natureza ceda lugar ao descobrimento da […] missão” (ibidem: 8).

Guilherme de Castilho, autor, a nosso ver, de um dos mais sugestivos

testemunhos para conseguirmos perceber o grau de inquietação e de ausência que

assolava Cinatti, escreve:

O que nele mais me surpreendeu – era a primeira vez que o via – foi a sua maneira

insólita de “estar sentado”, ou melhor, de “não estar sentado” porque a sua atitude dir-se-ia a de alguém a quem obrigaram a uma postura que lhe não é natural e faz todos os

esforços por dela se libertar. Um fluxo nervoso, quase visível, percorria-lhe o corpo,

dos pés à cabeça, dando-lhe uma agitação permanente […] Levantar-se, erguer-se da cadeira onde estava, parecia que devia ser o resultado natural daquele jogo de forças

centrífugas que interiormente o impeliam. Mas não; não se levantou: continuou a “estar”, “sem estar”, sempre preso da mesma

inquietação. Na sua fisionomia estampava-se idêntico desassossego: o desassossego de um estar provisório, de quem espera, iminente, ali mesmo, naquele momento e naquele

lugar, um acontecimento qualquer extraordinário – sei lá! (1994: 21)

Esta atitude de “estar” “sem estar”, resultado da ausência ou alheamento próprios de

quem antevê, como sugere Alain Fournier usada na bela epígrafe de Nós não somos

deste mundo13

(OP, 1992: 3314

) a paisagem do seu paraíso, provavelmente não a

encontraremos nos retratos traçados de todos os poetas. Porém, o que nos interessa reter

é que essa atitude tinha a ver com este poeta. Talvez este desassossego advenha, então,

de algo que António Seabra, citado por Stilwell, aponta a Cinatti e que serve para

estabelecermos a relação entre a inquietação e a poesia: “Ruy Cinatti era

fundamentalmente poeta. […] Tinha […] uma perspicácia inata para descobrir e revelar

a poesia presente ou oculta, na paisagem, na aventura, na música e nas pessoas […]”

(Stilwell, 1995: 55).

12 Há que remeter para a abordagem que Joana Matos Frias, em dissertação de Doutoramento, intitulada a

Retórica da imagem e poética imagista na poesia de Ruy Cinatti, apresentada à Universidade do Porto,

em 2006. Além de colocar Cinatti sob a tutela de Pound e da poesia imagista, encontramos nela um

precioso contributo para entendermos mais aprofundadamente a importância do olhar e da paisagem na

poesia do autor de Nós não somos deste mundo. 13 “Derrière Chaque Paysage, /Je sens le Paysage de Mon Paradis” (caixas altas do original). 14 Salvo indicação em contrário, a paginação indicada tem como referência a edição Obra poética, org. de

Fernando Pinto do Amaral, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1992.

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Traçado assim, embora de forma breve, o perfil do homem, naturalmente

inquieto, assolado pelo êxtase da partida e da aventura, e em quem esta inquietação,

para usar os termos de Fernando Pessoa, resultou “em silêncio e poesia” (“Carta a

Adolfo Casais Monteiro” – 13.01.1935, 2007: 420), o que nos leva a considerá-lo poeta,

vejamos agora o perfil deste, em que moldes esta sua actividade se processou e de que

modo a encarava. Fernando Guimarães escreveu sobre o poeta as seguintes palavras,

que nos serão úteis para situar Cinatti no panorama poético português, mas também para

avançar aspectos que vamos poder confirmar mais adiante, aquando de uma análise

assente no texto:

Com efeito, se considerarmos os dois livros – Nós não somos deste mundo e

Anoitecendo, a vida recomeça – que Ruy Cinatti publica também no início dos anos

40, facilmente reconhecemos que ele pertence à família daqueles poetas que, embora

não sejam de maneira nenhuma alheios à experiência próxima do Modernismo, estão perto de uma sensibilidade romântica, a qual, no entanto, tende a tornar-se

extremamente depurada, contida, empenhada naquele equilíbrio ideal que é possível

existir entre uma imaginação que se torna expressiva e o rigor de uma linguagem que é ou deve ser considerada como a própria substância do poema (Guimarães, 1985:

55).

2. A condição e a missão do poeta

Reflectir acerca da condição do poeta implica, necessariamente, reflectir acerca

da condição do próprio homem ou até mesmo, se quisermos, da própria poesia. Tudo se

processa como se esta ganhasse um estatuto de autonomia de que nem o próprio poeta

beneficia, como se, personificada, beneficiasse de um território próprio, livre daquele

que lhe deu voz.

Em “Ruy Cinatti e a condição humana”, de forma particularmente esclarecedora

para quem pretende abordar a actividade lírica dos anos 40 e 50 do século XX, Jorge

Fazenda Lourenço (1998: 278-282) toma como referência um pequeno grupo de poetas

– José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner

Andresen – para demonstrar a mudança de posição relativamente aos períodos

anteriores em que a poesia, programática ou panfletária, estaria colada a ditames de

escola e, por isso, esteticamente condicionada. Pretendia então este grupo, além da

afirmação da autonomia da poesia que, cumulativamente, o poeta não se alheasse do

tempo ou das circunstâncias em que se movia ou não deixasse de manifestar as suas

posições políticas e sociais. Parece-nos relevante, assim, marcar este duplo interesse por

parte do grupo acima mencionado, como factor determinante nas poéticas de alguns

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autores posteriores, nomeadamente nas dos que emergiram no início da década de 60.

Ruy Belo, leitor atento de Cinatti, Sena e Sophia, é um exemplo disto.

No mesmo artigo, Fazenda Lourenço aponta ainda cinco aspectos que norteavam

o espírito poético deste grupo: “a incorporação da herança do modernismo”, que ainda

assim se tentava ultrapassar, visto que, salutarmente, estes poetas não concebiam a

recepção da herança sem haver, de algum modo, inovação; “o sentido da itinerância, da

poesia como palavra errante, viagem e aventura de conhecimento”; “a atenção da poesia

às circunstâncias imediatas do quotidiano”, indissociando o “estético” do “vivido

existencial”; “um sentido testemunhal da poesia, ditado por um imperativo de justiça”,

convocando para os textos “as gentes e as suas coisas” ou ainda “uma interrogação

sobre o que de divino persiste na condição humana” (Lourenço, 1998: 279). Foi esta, no

fundo, a herança que coube a alguns poetas que viriam a emergir como tal durante as

décadas de 50 e 60 do século XX.

Centrando-se essencialmente na figura de Ruy Cinatti, Peter Stilwell já dedicou

páginas suficientes ao esforço deste para decifrar o enigma da condição humana, pelo

que não nos alongaremos a esse respeito. Há, no entanto, que realçar um outro aspecto

avançado por Jorge Fazenda Lourenço, pela validade que lhe reconhecemos e por, de

facto, complementar as conclusões de Stilwell. Trata-se do reconhecimento de que “a

poesia visa transcender todos os limites que cercam e cerceiam a condição humana do

poeta, mesmo que nessa condição humana se encontre inscrita uma ‘dimensão

teológica’” (Stilwell, 1995: 281).

O que antes foi dito corre o risco de parecer pouco directo, porém parece-nos

importante recuar ao grupo dos Cadernos de poesia para recuperarmos uma observação

de Eduardo Lourenço: “Não goza a geração dos Cadernos daquela aura mítica que

outros souberam criar à sua volta. Contudo, sobre tão poucas e com tão evidente força

soprou o autêntico espírito da Modernidade” (2003: 177). Ainda segundo o mesmo, essa

modernidade encontra as suas raízes na Cidade, a “Urbe-Megalopolis” (ibidem: 178) de

Baudelaire, “onde os três reinos de Dante se indistinguem” (ibidem: 168). Radica ainda

no tédio, que se pode no fundo traduzir pela tal “ausência” que define a “existência

burguesa” (ibidem: 170) e que levou os poetas portugueses, de igual modo,

manifestamente herdeiros da geração de Orpheu, a invocar melancolicamente um

“Além”, um “oriente a oriente do oriente” (2002: 59), como tão bem Álvaro de Campos

o soube exprimir no “Opiário”, em tom de “epopeia do negativo” (Lourenço, 2003:

170). Finalmente, podemos senti-la ainda na interiorização do pessoano “mistério de

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16

existir” (ibidem: 172), que, alerta Eduardo Lourenço, “não é apenas o de uma particular

existência confrontada com o sofrimento e o mal, mas da existência histórica inteira e

nela incluída o discurso plural com que desde sempre busca compreender-se” (idem).

Era a este posicionamento estético da modernidade, igualmente entre nós

consciente de si própria e do seu alcance, que gostaríamos de chegar para definir em que

moldes faz sentido uma outra observação que podemos igualmente tomar como ponto

de partida. Como bem aponta o autor de Tempo e Poesia, esta questão prende-se com a

consciência da poesia sobre si: “Ela [a poesia], que tinha olhos para tudo quando

ninguém tinha olhos para ela, só tem no presente olhos para si mesma” (ibidem: 58).

Daí, pensamos, adveio a sacralização da poesia e do poeta.

Podemos regressar à condição do poeta, visto termos já admitido a sua

sacralização por algumas das nossas “mansardas poéticas”, para nos servirmos de um

termo de Eduardo Lourenço (ibidem: 99). No passado, o poeta foi colocado à margem

do ser humano comum ou ele próprio colocou-se nessa posição, muitas vezes

conquistou e outras tantas perdeu o estatuto de eleito, foi considerado voz das elites e

para elites ou voz dos oprimidos e para os oprimidos. Mas há algo de que nunca

conseguiu livrar-se e que é partilhado por todos, poetas ou não – a condição de mortal.

Se começarmos por atender às palavras do autor que aqui nos traz que se

debruçou insistentemente sobre o tema, há que primeiro procurar fixar, embora

esquematicamente, o quadro em que, em termos filosóficos, se movia. Quer no período

de formação de Cinatti (anos 30 do século XX), quer durante a Guerra Fria (final dos

anos 50 e início dos anos 60) a sua obra e a de outros, como Ruy Belo, evidencia as

grandes preocupações ontológicas e religiosas da época. Estas foram herdadas da leitura

de autores como Paul Claudel (1868 – 1955), André Gide (1869 – 1951), Jacques

Maritain (1882 – 1973), Georges Bernanos (1888 – 1948), André Malraux (1901 –

1976), entre outros. A Europa encontrava-se, assim, marcada por acontecimentos que

abriam caminho a posições pessimistas e a previsões cataclísmicas perfeitamente

justificáveis em função dos factos.

Além disso, a atenção dedicada à tomada de consciência do absurdo da morte é

complementada por outra questão fulcral enquanto matéria poética: a da ausência ou do

silêncio de Deus, algo que se repercute, como veremos, na problemática da solidão.15

15 Esta parece ser uma questão epocal. A atenção que desperta no mundo das artes a problemática relação

do homem com a divindade é igualmente alvo de análise pelo universo eclesiástico. Em 1958, por

exemplo, Charles Moeller publicava o primeiro volume da sua obra Literatura do Século XX e

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17

Mais sensíveis a estas matérias encontram-se, obviamente, os autores que mais

próximos se encontravam de uma formação dominada pelo universo religioso. Parece

ser esta a situação do poeta que aqui tomamos como objecto.

Partamos do geral para o particular. A prova do que aqui foi dito encontra-se

facilmente na poesia do nosso autor. Em O tédio recompensado (1968) encontramos

dois poemas, “Condição humana” (OP: 201) e “Condição poética” (ibidem:202),

surgindo mais tarde, em Cravo singular (1974), um poema com o mesmo título

(“Condição humana”); e em Corpo – Alma, obra póstuma, podemos ler o poema

“Condição desumana” (1994: 71). A ideia de que ao falarmos da condição do poeta

teremos, obrigatoriamente de nos referir ao homem parece ser reiterada por Cinatti ao

colocar, um a seguir ao outro, os poemas “Condição humana” e “Condição poética”. No

primeiro lemos: “Há caminhos abertos. Sigo-os, iluminado. Procuro chegar.” (OP: 201);

e no segundo: “Enxotados pelos cães, pelo orvalho, regressamos à terra prometida.”

(ibidem: 202). Se num é explícita a condição itinerante do sujeito, que, se parte da pena

do poeta, é enunciada como algo comum ao homem, no segundo, refere a

marginalização a que ambos, poeta e poesia, são votados, mas aqui já deixando de parte

o ser humano comum. Esta segregação tem como consequência a fuga, a partida e a

procura de um lugar de acolhimento, de repouso. A inquietação é retomada no poema já

referido de Cravo singular, inaugurado com uma interrogação que pode dar azo a várias

leituras – “Onde tombar a cabeça?”16

(ibidem: 466). Se o advérbio nos remete para a

questão do lugar onde, o verbo pode, por sua vez, remeter para o problema da procura

do leito onde repousar (a casa?). A interrogação que termina o verso deixa-nos

adivinhar o percurso, a demanda, a procura como acções ainda não acabadas, talvez

para sugerir que é essencial ao homem este sentimento de insatisfação que alimenta o

impulso da viagem, sempre por concluir. Por outro lado, lida a passagem bíblica em

contexto, fica-nos igualmente a sensação de que Jesus se referia a um ombro amigo

Cristianismo, sugestivamente intitulado O silêncio de Deus e em cuja introdução pode ler-se: “Períodos

há em que os homens tomam mais claramente consciência da aparente ausência de Deus no mundo. Este

é um deles. Tempo de apocalipse, o nosso século sufoca sob a pletora de falsos profetas” (1958: 11). 16 Este verso é citação de Lucas 9, 58 e Mateus 8, 18—22: “O Filho do Homem não tem onde reclinar a

cabeça”. Há portanto um peso simbólico-mítico no verso, inscrevendo-o claramente numa tradição de

muitas consequências na obra de Cinatti. O não-repouso, a solidão e a inquietação vêm (também) da glosa deste motivo. Na canção IX, Camões volta ao tema nos versos: “Não tinha parte donde se deitasse, /Nem

esperança algüa onde a cabeça / Um pouco reclinasse, por descanso (1968: 291). Em Conversa de rotina

(1973), no poema “Notícia necrológica, dedicado a Ezra Pound, surgira igualmente este tópico, aí

claramente associado à morte como repouso.

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onde pudesse apoiar-se para tornar menos pesada a responsabilidade que a si havia

chamado, leitura que corroborará o relevo que assume o “nómada amigo” na poesia Ruy

Cinatti.

Já em “Condição desumana”, além do impulso que leva a “arrastar mundo”

(Cinatti, 1996: 71) aquele que “declamava,/ absorto sem medir palavras” (p. 73), o

viandante é também o vidente, o anunciador. O Poeta / Anjo (des)humaniza-se,

“dividido entre ser – não ser o que há-de vir” (ibidem: 72), motivo bíblico de grande

alcance simbólico, claramente associado à ideia de Cristo como Salvador (Mt 1, 21).

Aliás, esta fragmentação pressentia-se já em “Condição humana”, primeiro poema

citado de O tédio recompensado, em que se lê: “Perco-me na vida / a ver vidros partidos

na calçada. / Há, no entanto, um momento / em que o sol reflecte vidros / estilhaçado no

espírito” (ibidem: 201).

Maria João Borges bem aponta na poesia de Cinatti o facto de que “nada do que

é humano lhe é estranho” (1994: 132), asserção muito antiga na tradição (Terêncio e

Montaigne, por exemplo). Além disso, a mesma observa ainda que a sua poesia “de

tudo se alimenta, voraz […] profundamente comprometida com o real (mesmo o mais

circunstancial)”17

(idem). Por seu turno, Joana Matos Frias refere-se a Ruy Cinatti como

um “poeta poroso” (2006: 309), o que remete para o contacto próximo que sempre

estabeleceu com as pessoas e com as coisas. Noutra vertente, seja a espiritualização do

discurso poético meramente conjuntural ou muito simplesmente de ordem pessoal,

sabemos que Cinatti teve uma formação solidamente católica. Por isso, dado à reflexão

sobre o papel de Deus e do homem e, quase por inerência, sobre o papel do poeta, é

relevante por agora ter em conta que esta é uma matéria de peso na sua produção

poética, algo claramente demonstrável a partir da análise de O livro do nómada meu

amigo.

Em tom de conclusão, e considerando que o escopo do presente trabalho

compreende, em último caso, a poesia e o poeta, poderemos terminar como começámos,

evidenciando precisamente que abordar a condição do poeta implica tomar como ponto

de partida a condição do homem. Significa isso que a alienação das urbes, o tédio, a

17 A este propósito, entende Ruy Belo que um poeta apenas sobreviverá ao tempo se descer “à rua”

(Transporte no tempo (1973), 1997: 20), se lidar com “os problemas do seu tempo” (idem), consciente,

no entanto, da sua “condição mortal” (idem); e neste ponto, frisemos o recurso ao verbo “descer” (idem),

como se o poeta tivesse forçosamente de sair da sua redoma inacessível para, por osmose, dar algo ao

mundo e dele receber. Por “condição” entendamos qualidade, carácter; antes da morte, cidadão do

mundo, o poeta é uma figura importante para a construção de um mundo melhor, não se alheando dele

nem se deixando ofuscar pelas luzes da imortalidade, que é, afinal, um paradoxo se nos referimos ao

humano.

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estratificação das gentes, os constrangimentos vários, em maior ou menor escala, e a

consequente tentativa de conciliar tudo isto com o transcendente, poderão estar na

origem de um apelo, posto ou não em prática - o da evasão. Lévinas, numa passagem

esclarecedora acerca da relação entre o desejo de evasão e a condição finita do homem,

reflecte precisamente sobre a raiz deste impulso de evasão:

L’ évasion ne procede pas seulement du rêve du poète qui chercherai à s’évader des basses

réalités; ni commme chez les romantiques des XVIIIe et XIX e siècles, du souci de rompre

avec les conventions et les contraintes sociales qui fausserait ou annihilerait nôtre personalité;

elle n’est pas la recherche du merveilleux susceptible de briser l’assoupissemente de nôtre

existence bougeouise; elle ne consiste pas non plus à s’affranchir des servitudes degradantes

que nous impose le mécanisme aveugle de nôtre corps, car ce n’est pas seulement

l’identification possible de l’homme et de la nature qui lui fait horreur (1998: 95).

Estes aspectos, que a poesia tem trabalhado ao longo de séculos, poderão corresponder

ao ajuste de contas entre os poetas e o real em que se movimentam e a partir do qual

trabalham. Mas o termo “profondeur” (idem) é aqui igualmente importante. O homem

sempre empreendeu uma luta desigual com os “limites de l’être fini” (idem), condição

com a qual nunca soube lidar, sobretudo após ver sair das suas mãos tão eloquentes

testemunhos da sua capacidade criadora. Por isso Lévinas, com toda a pertinência,

encara a evasão como “une recherche de refuge” (idem), pelo que não se trata de errar

por errar, mas sim de o fazer com um propósito e destino bem definidos; por isso

conclui dizendo: “Il ne s’agit pas seulement de sortir, mais aussi d’aller quelque part”

(ibidem: 95-96).

3. Inquietação e errância

Se o acima exposto não for ainda suficiente para inscrever a poesia de Cinatti

sob o signo da inquietação e da errância, poderemos ainda atentar nas palavras do

próprio a partir do lúcido comentário que teceu no artigo “Não voltaremos atrás”

(Acção, 16.10.1941: 4-5), onde não só transmite a sua visão do perfil do inquieto como

reflecte ainda sobre o papel deste no mundo moderno. Considerou Cinatti, então,

existirem “certos espíritos” (ibidem: 5) que, apesar de, tal como os restantes homens,

participarem na vida social, “vão um pouco mais longe como pioneiros de um

descobrimento e conquista a realizar”. Define-os como “invendáveis, os de coração

puro, os inquietos, os angustiados, os desamparados”, distinguindo-os daqueles que,

alheios a tudo e a todos, não entendem aquele impulso que, segundo Cinatti, é a

“reacção mais nobre, mais valorativa do homem moderno – a “inquietação”. Mas o que

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se nos afigura relevante neste longo e sugestivo perfil dos inquietos é a forma como o

autor valoriza: a solidariedade, dado que apenas reconhece como tal aqueles que

envolvem “o mundo num grande abraço de apaixonada e misericordiosa solidariedade;

a acção, apontando-os como “verdadeiros chefes de fila” do seu tempo, a recusa à

fixação e à aceitação da ordem estabelecida. Assim, sendo, os inquietos, tal como

Cinatti os define, aproximam-se muito dos nómadas, como iremos ver a partir de

alguma da sua poesia, pois ambos são os que “renunciando a si próprios se misturam e

dão por um mais alto ideal” (idem). É de notar, na sequência do que acabámos de

transcrever, que esta inquietação não poderá ser apenas associada ao impulso da partida

que terá levado o poeta a percorrer outras paragens. Ela tem igualmente a ver com uma

motivação de índole mais social, dado que está igualmente implícita a quebra das

convenções, a sublevação, aparentemente imperceptível, mas que acaba por agir, espera

o autor, sobre as mentes mais conformadas e, por isso, acomodadas.

Este procurado e praticado equilíbrio entre modernismo e certa vertente do

romantismo, herdados de Eliot ou de Pound, como observa Joaquim Manuel Magalhães

(1989: 32 e 38), associados a uma profunda convicção de que o poeta e, por

conseguinte, a poesia têm uma função que ultrapassa largamente a simples criação de

versos, são a receita para uma obra interessante a muitos níveis. Nunca é demais

retomar o lema do grupo dos Cadernos: “A Poesia é só uma!”. Esta posição viria a

deixar marcas indeléveis na nossa modernidade poética. No entanto, no manifesto que

abre a II Série, os organizadores18

acrescentam, na página 6 do fascículo VI (1951), algo

ao lema que o torna mais interessante: “A Poesia é só uma, porque afinal não há outra”.

Reafirma-se assim a poesia como entidade liberta de modas, escolas, naturalidades e

nacionalidades, como haviam formulado os organizadores no texto que enceta o

fascículo I, de 1940. Diz-se ainda, agora no manifesto que abre a Série II dos Cadernos

algo que aqui transcrevemos:

A expressão poética, com todos os seus ingredientes, recursos, apelos aos sentidos, resulta de um compromisso: um compromisso firmado entre um ser humano e o seu

tempo, entre uma personalidade e uma sua consciência sensível do mundo, que

mutuamente se definem. Tudo o que não atinge este nível não é poesia. (2004: 6 e 7) No fundo, trata-se de um compromisso pessoal que se firma em dois níveis: no

plano do íntimo, e no plano do universal, como se demonstrará adiante. Continuando a

18 As citações são retiradas da edição fac-similada de Cadernos de poesia, 2004, dirigida por Luís

Adriano Carlos e Joana Matos Frias. Organizadores da I série: Tomaz Kim, José Blanc de Portugal e Ruy

Cinatti; organizadores da II série: Jorge de Sena, Ruy Cinatti, José Blanc de Portugal, José-Augusto

França.

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retomar o mesmo manifesto, vemos que esta geração reclama para o poeta algo mais. Se

por um lado “transformar o mundo à sua imagem e semelhança” (ibidem: 7) é algo

intrinsecamente humano, como afirma o manifesto citado, por outro, ao poeta cabe uma

função mais complexa:

Defende o que é atacado, e ataca o que é defendido. Não age como ser especial,

diferente dos outros homens, que os não há esses outros seres; mas como um homem

destinado a nele se definir a humanidade: um ser capaz de transformar o presente integralmente em futuro (ibidem: 7).

É preciso, como atrás se disse, atender ao que a poesia significava para Cinatti, arte em

que, afinal, procurou a resposta para “a estranha questão da vida humana”. Afirmou ele

no artigo intitulado “António Nobre”:

[A Poesia] não é um mero elemento decorativo, mas uma forma de melhor amar e

compreender a vida no seu mais sublime aspecto. […] Um dos seus grandes valores é reerguer do esquecimento as forças da Virtude, e, porque procuramos ser virtuosos,

assim devemos, se não por devoção ao menos por obrigação, beber da fonte onde a

água é pura. Com a Virtude vem implicitamente o amor do Belo e, sucessivamente, a Vontade, o Heroísmo, o Supremo Bem (Cinatti, 1939: 2).

Vemos Cinatti, talvez numa atitude herdada de T. S. Eliot, a entender a poesia, como

actividade ética e ontológica. Esta posição pode ser relacionada com algo a que teremos

de dar atenção para aferirmos, mais adiante, as consequências do que acabámos de ver

na poesia do autor de O livro do nómada meu amigo. A crítica é unânime em

reconhecer na poesia de Cinatti uma vincada tendência para a depuração. E esta dá-se a

vários níveis. Vejamos algo que poderemos ir buscar às suas circunstâncias biográficas.

Peter Stilwell (1995: 31-34) dá conta, ao referir-se ao cruzeiro em que Cinatti embarcou

no Verão de 1935, da sua saudável convivência com todos os grupos que se formaram a

bordo, sem ligar às divergências. Além disso, na forma como se vai maravilhando com

as terras e com as gentes, quase se poderia dizer um moderno Bom Selvagem,

procurando incansavelmente envolver-se na eterna inocência dos espaços edénicos,

embora sofrendo com as misérias das populações indígenas. Tudo isto, bem como a sua

personalidade fraterna e sensível (Stilwell, 1995: 28 e 29), levam-nos a reconhecer nele

um depuramento do ser que, no fundo, poderemos igualmente reconhecer no da poesia

que produziu. Ascetismo, isolamento, silêncio, despojamento e refúgio em Deus / Cristo

afiguram-se-nos, assim, meios de atingir aquela que, para Cinatti, constituía a sua mais

alta missão como poeta: o conhecimento de si e do mundo para se transformar a si e ao

mundo.

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Convém, por isso, dar ainda atenção a um par de elementos que nos parecem

importantes. Por um lado, temos as suas leituras de adolescente, entre as quais

poderemos apontar Alain Gerbault, o navegador francês que, por poucos anos, não se

cruzou com Cinatti em Timor e Alain Fournier (cf. Stilwell: 412), Robert Louis

Stevenson, Júlio Verne ou Wenceslau de Morais (ibidem: 38), que ajudaram a estimular

o seu gosto pelas ilhas dos mares do sul e a fantasiar uma futura viagem em busca do

contacto com o tal paraíso que a literatura de viagens abrira ao Ocidente. Por outro lado,

há que ponderar no significado que a partida, com um conjunto de outros factores que

necessariamente lhe estão associados, adquire no contexto da vida e da obra de um autor

como Ruy Cinatti. E é precisamente aqui que nos podemos demorar um pouco.

Uma primeira referência deverá ser feita a algo que se pode ler nos excertos de

diários ou nos excertos de cartas do poeta, transcritos por Stilwell19

. Numa página do

Diário, datada de 09 de Agosto de 1934, Cinatti dá conta dos seus projectos de vida,

numa determinação que o próprio discurso vinca e que vem ao encontro dos seus

anseios de partida:

Se Deus quiser hei-de visitar e demorar-me bastante nessas ilhas de coral. Para isso preciso de ser forte física e moralmente, trabalhar para conseguir os meios para a viagem e estadia, e ter o espírito educado para poder admirar todas aquelas

belezas que tantos olhos têm maravilhado (Stilwell, 1995: 30).

Ainda, em carta enviada a Amy Christie (amiga e confidente de sua mãe), a 28

de Novembro de 1935, após o cruzeiro que o levou a algumas colónias portuguesas,

regista: “Those large horizons made me have a broader view of things” (ibidem: 33).

Por estas razões, não podemos entender a viagem em Cinatti puramente no seu sentido

literal, pois, nele, esta significa aprendizagem, missão, comprometimento, comunhão

com o outro. O humanismo de Cinatti, transversal na sua obra, viria a causar-lhe

dissabores, pois a solidariedade que reclamou para o povo timorense, por exemplo, não

encontrou eco num país endurecido e pouco educado para, como ele, ver as belezas

naturais e humanas que as colónias tinham para oferecer. Isto era o mesmo que

reconhecer que faltava a muitos, na época, a abertura de horizontes, a capacidade de

aceitar as outras culturas não como inferiores, mas como diferentes. Esta abertura, para

nos servirmos das palavras de Joaquim Manuel Magalhães que nos servem de

19 Peter Stilwell refere-se ao Diário e cita frequentemente passagens desse mesmo documento

“fragmentário e na sua maior parte inédito” (1995: 15). Além deste, recorremos a três dos 19 textos que o

autor divulgou em “Apêndice”: 3 - “Como é admirável viajar…” (ibidem: 394), 12 - “Por quem os sinos

dobram” (ibidem: 409-411) e 14 – “Texto autobiográfico” (ibidem: 412-413).

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epígrafe20

, também é “uma arte de nómadas” e não está ao alcance de todos. Torna-se

assim possível encontrar sentido entre o que se acabou de escrever e algo que Peter

Stilwell, a propósito do cruzeiro já mencionado, anotou. Referia-se o ensaísta a algo que

alguns críticos viriam depois a entender como um ponto de viragem a que a poesia de

Cinatti, a partir de Sete septetos (1967), e, em alguma medida, já cultivada em O livro

do nómada meu amigo, deu voz:

[…] viagem física e cultural espelhavam-se sem se confundirem, e revelavam, para lá de qualquer delas, a atracção do mistério que o fez partir. Gradualmente, a aventura interiorizou-se. Passou a caminhar mais dentro de si.

[…] E não rumava só em busca de si próprio, mas pretendia descobrir um ponto de encontro para os desavindos do mundo; levá-los a conhecerem-se melhor; a

sonharem-se diferentes. […] Sem perder a sua componente de deslocação física,

viajar tornava-se investigação antropológica e adquiria um cunho de intervenção

social (Stilwell,1996: 114).

No fundo, aspectos como “viagem física”, viagem “cultural”, a que poderemos

acrescentar viagem espiritual, dão forma e corpo ao desafio que foi a aventura, poética e

ontológica de Cinatti. Stilwell coloca-o ainda sob a influência de Rilke ao recordar as

suas observações no que diz respeito ao relevo da errância e da inquietação na produção

de um poeta:

Por amor de um verso têm que se conhecer muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto

com que as flores abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos,

em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir

de longe (Rilke, citado por Stilwell, 1995: 64).

Se algo nos faltou referir, antes, sobre a condição do poeta, eis aqui o que poderia,

perfeitamente, ilustrar o itinerário que o poeta para si traçou: mais do que observar e

registar poeticamente o mundo que empírica ou sensivelmente vive, este deve trabalhar

este mundo para construir um outro, esse sim, a seu ver, habitável.

Um segundo aspecto poder-se-á prender com a simbologia da ilha,

materialização da “beleza natural”, do paraíso intocado em que, por muitas razões,

desejava estar, ou vista de outra forma, símbolo do isolamento, da solidão primordial, a

fim de encetar a perfeita comunhão com o mundo e com a poesia. Além disso, podemos

ler em carta enviada a Amy Christie, no Natal de 1937, a propósito de mais uma ida à

Berlenga, no Verão anterior: “Nessa altura fui feliz: quase me esqueci que existe o

20 “Com ele, de quem fui amigo, concordei / que a poesia é uma arte de ninguém. / Que se procura, se

revela, e a seguir / nos deixa para nunca mais. É uma arte / de nómadas, meu amigo, assim você”.

(Magalhães, 1986: 41).

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mundo da morte e da destruição” (Stilwell, 1995: 43). A partir desta afirmação,

poderemos deduzir o valor terapêutico desse isolamento. Cinatti incomoda-se com o

estado em que se encontra a Humanidade de que é contemporâneo: referimo-nos à II

Guerra Mundial, à Guerra Civil Espanhola, para não falar das convulsões internas do

país, com que se viria a confrontar. Além de que as ilhas que foi visitando ao longo da

vida, para todos os efeitos, poderão servir vários propósitos que a seguir tentaremos

enunciar.

O “coleccionador de ilhas” (Duarte, 1985: 12) sempre as aproveitou duplamente:

para o engenheiro agrónomo, silvicultor, fitogeógrafo, meteorologista, etnólogo e

explorador naturalista, as ilhas eram laboratórios, édens intactos onde se poderia colocar

em prática os vários passos do método científico. O poeta, servindo-se destes seus

conhecimentos científicos, usa na obra as ilhas: espaços primevos, símbolos da pureza e

da liberdade suprema, através dos quais se dá o encontro com outras formas de sagrado,

problematização da condição humana, experiência de isolamento, ascetismo. Estas

representam, ainda mais em Cinatti, o “Outro Lugar”. A expressão é de Clémence

Bouloque, que aponta: “ […] Em qualquer dos casos, a ilha surge como o emblema da

liberdade. A figura ideal do sonho. Que sonho? O de um “outro lugar” que não nos

desiluda. E esse encontra-se no final daquilo que será sempre […] uma aventura”.

(2004: 56) E assim temos dois ingredientes fundamentais – viagem e ilha, a que

poderemos acrescentar dois outros, de forma a assinalar, por agora, quatro elementos

que consideramos essenciais para entendermos o pano de fundo de alguma poesia de

Cinatti – aventura e mar.

Homem de várias pátrias - Deus, Timor, Portugal21

-, o poeta assume-se como

um Português paradigmático, o que se encontra “pelo Mundo em pedaços repartido”22

(1985: 44). Ponderem-se, ainda, como afirma o próprio, os vários sangues que lhe

correm pelas veias, “[…] transmontano, judeu, algarvio, berbere, italiano, toscano e

chinês de Amoy e Macau[...]” (idem) e temos, segundo o próprio, um português, como

tantos outros, aliás, que transporta consigo a propensão para a errância e para a

aventura. Não é nosso propósito traçar a genealogia de Cinatti, no entanto, poderemos

facilmente recuperar as heranças berbere, italiana ou até a anglo-saxónica, que o

21 Cf. “Conversa inacabada I – ‘As brumas atlânticas perturbam os portugueses”, Grande Reportagem, 04

a 11 de Abril de 1985, p. 44. 22 Glosa do motivo desenvolvido por Camões (Canção IX), onde lemos: “Aqui, nesta remota, áspera e

dura / Parte do Mundo, quis que a vida breve / Também de si deixasse um breve espaço, / Por que ficasse

a vida / Pelo mundo em pedaços repartida (1968: 290).

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acolheu como berço, para percebermos a sua condição de “nómada em escala de

partida” (OP, p. 156) e a atracção que desde jovem demonstrou pela literatura de

viagens e que sempre ajudou a povoar-lhe a imaginação de exótico. Mais uma vez, tal

como Fernando Pinto do Amaral (1992) ou Maria João Borges (1994) já haviam

assinalado, vida e obra sobrepõem-se com notável semelhança. Ambas se afiguram

como percursos pautados por uma demanda permanente.

“Ave / Prenúncio de arvoredo!” (OP: 106), escreveu Cinatti no poema “Ilha”, de

O livro do nómada meu amigo. Éden que deixa adivinhar o porto, o tal “outro lugar”, o

destino de acolhimento que se situa no final da viagem e que, afinal, viria a significar

para Cinatti o prenúncio de muito mais. “Para uns, as ilhas são escrínios da solidão; para

outros, sociedades em miniatura” (Bouloque, 2004: 56), observou inteligentemente

Clémence Bouloque. De uma forma ou de outra, quer como cientista quer como poeta,

podemos integrar Cinatti na tradição dos portugueses que, desde cedo, foram dando

“novos mundos ao mundo”23

(Os Lusíadas, II: 45, 8). Ainda ávida de exótico, a Europa,

em pleno século XX, acolhe de braços abertos todos os contributos importantes para o

conhecimento desses mundos ideais, ainda ignotos; e Cinatti cumpriu a sua parte, no

que a isto diz respeito. A ilha obriga-nos ainda a considerar aspectos como o

isolamento, o ser humano – ilha, a “Ilha-mãe” (Bouloque, 2004: 59), a Ilha-refúgio, a

“Ilha iniciática” (idem), a “ilha-laboratório” (ibidem: 65)24

e a viagem que, por

contingência natural, se efectua por mar, meio que, literariamente, sempre se revestiu de

poderoso simbolismo. Quisemos com isto chamar a atenção para o facto de que se

vamos trabalhar a figura do poeta como nómada, então teremos de o enquadrar num

espaço e num tempo em que permanece a caminho. Este tanto poderá significar o

itinerário geográfico, físico, que compreende as deslocações em que a própria vida de

Cinatti foi fértil, como poderá envolver a peregrinação interior que tenta duas procuras:

a do eu e a de Deus, ou até se preferirmos, a do eu em Deus, ou vice-versa, tendo

sempre em mente a notável ressalva do próprio: “Sou um católico poeta. Não sou um

poeta católico”25

(“Conversa Inacabada III – ‘Há tanta maluqueira na nossa História’,

1985: 41).

23 A expressão citada pertence ao discurso profético de Júpiter que, nos versos anteriores, refere Ulisses,

Antenor, Eneias, enaltecendo, porém, os futuros feitos dos portugueses (Luís de Camões, 1989: 40). 24 As expressões entre aspas são transcritas do artigo da autora, intitulado “A felicidade das ilhas”. 25

“Conversa Inacabada III – ‘Há tanta maluqueira na nossa História’, Grande reportagem, 19 a 25 de

Abril de 1985, p. 41.

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II

O AMIGO DO NÓMADA

1. Considerações iniciais

Em 1941, Adolfo Casais Monteiro, numa “breve nota” sobre a obra inaugural de

Ruy Cinatti, regista a seguinte apreciação:

Ruy Cinatti, quando pretende exprimir emoções ou estados de determinada ordem, não

consegue realizar poesia. E as belas páginas de prosa com que abre o seu livro […]

páginas duma prosa fluida, com momentos de real beleza, faz-me pensar se não deveria ele ter procurado na prosa o instrumento para nos comunicar o que não chega a ser poesia

[…] (Monteiro, 1972: 288).

Não se pretende aqui proceder à crítica da crítica, nem tão pouco elencar as suas

contradições e, como se poderá ver, não nos identificamos em larga medida com a visão

do crítico presencista, embora partilhemos da cautela que o assaltava ao reconhecer que

lhe faltava a confortável visão de conjunto que hoje poderemos ter dos cerca de

cinquenta anos de produção poética de Cinatti. Há, porém, um aspecto em que Casais

Monteiro poderia estar certo: talvez o autor de Nós não somos deste mundo (1941)

devesse ter dedicado alguma atenção à sua veia de prosador, não para satisfazer a

crítica, mas para lhe provar que também a prosa se afigura veículo possível para

“exprimir emoções ou estados de determinada ordem” (idem), poeticamente.

O problema que aqui pretendemos abordar reside no facto de, bem vistas as

coisas, Cinatti ter prestado atenção à prosa; e prestou-lhe tanta atenção que nos parece

fácil perceber as razões que terão levado Fernando Pinto do Amaral a iniciar OP (1992)

com “Ossobó”, um conto simbólico sobre uma pequena ave de S. Tomé e Príncipe, e

catalogado como “uma obra-prima de prosa poética” (Stilwell, 1995: 34), texto

carregado de efusões líricas e que, no fundo, inaugura o seu percurso poético. Tenha-se

também em conta o magnífico “À memória de minha mãe”26

, que antecede os poemas

de Nós não somos deste mundo e que não será descabido entender como uma sublime

porta de entrada para todo o seu itinerário poético. Nele, pensamos, encontrava-se já

gravada a atitude perante a vida, a existência e a condição humana, a partir da qual

26 Peter Stilwell refere-se ao texto “Retrato de minha mãe”, publicado no Diário de Lisboa, em

21.10.1937, a que, mais tarde “acrescentado de um parágrafo, servirá de introdução ao seu primeiro livro

de poesia” (1995: 35).

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poderemos equacionar tudo o que Cinatti realizou em termos poéticos. Por fim,

poderemos evocar ainda a secção VII de Anoitecendo, a vida recomeça (1942) , toda ela

em prosa poética.

Porém, regressando a “À memória de minha mãe”, convém salientar que desse

texto ressalta um gritante sentimento de solidão, marcado pela ausência da figura

materna e que, de forma tão sentida, é evocada pelo poeta. Simultaneamente é curiosa a

forma como é criada a sensação da sua presença que, aliás, inflama o discurso,

passando-se tudo como se se tratasse de uma presença que reside na ausência.

Deparamo-nos com algo de ordem espiritual, mas que quase se materializa: “E ela está

aqui” (OP: 35), reforçada pelo “retrato”, elemento físico que a transporta para a

dimensão do autor. Aliás, “as suas coisas, os livros, as cartas” (idem) asseguram essa

sobrevivência ao tempo. Ao afirmar que “nada o tempo destrói através das recordações”

(idem) o poeta reitera a importância dos testemunhos físicos da passagem da mãe por

este mundo. A memória é o abrigo, o local de acolhimento que encontra o seu simile na

história que insistentemente o sujeito pede que lhe conte (ibidem: 35 e 36), bem como

nos espaços, como o “quarto”, a “casa”, o “jardim”, evocados ao longo do texto. É

assim à memória íntima que vai buscar conforto, como ele próprio reconhece: “Tempos

que se foram e a que eu peço alento e coragem para avançar na vida…” (ibidem: 37). E

é só a eles que o poeta pode recorrer: o que de perturbador perpassa este texto prende-se

com o carácter ficcional de algumas imagens. O facto de “nunca a ter conhecido em

consciência” (ibidem: 35) (pois como afirma Stilwell (1995: 23), a mãe, Hermínia

Celeste, falecera a 2 de Abril de 1917, tinha Ruy Cinatti dois anos), faz com que os

textos trabalhem com reminiscências de uma infância distante.

Além disto, vejamos a questão do título da obra, que tanto intrigou Casais

Monteiro. Pensamos que a chave para o compreender poderá passar por uma leitura

diferente deste texto. A determinada altura, nesta espécie de interlocução com a figura

da mãe, Cinatti assume: “Contigo me levaste, minha mãe!” (ibidem: 37). Parece, com

esta afirmação, marcar a passagem de ambos a uma outra esfera que transcende o

mundo sensível em que o seu corpo, a sua forma e condição humanas, limitadas e

finitas, se vêem forçados a permanecer. É neste sentido, que, ontologicamente, o poeta

sentia não ser deste mundo e que a morte poderá ser entendida não como um fim, mas

como um eterno e reconfortante (re)começo, num mundo que pertence à ordem da

crença, da Fé.

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Críticos como Adolfo Casais Monteiro (1940) ou Padre Manuel Antunes (1942),

apontaram agulhas à imaturidade e à adolescência que percorria os poemas iniciais de

Ruy Cinatti, condenando-lhe a falta de harmonia e de equilíbrio poético ou a expressão

demasiado hermética que não impressionava os “ouvidos mais cartesianos” (Moura,

1961: 64) , mas poucos terão visto que as suas primeiras incursões no campo da poesia

mais não eram do que tentativas honestas de dar voz a uma cisão primordial, de tal

forma sentida e complexa que - e aí concordamos com Casais Monteiro - é preciso

filtrar pela experiência e aprender a exprimir ou corre-se o risco de não se ser

compreendido. Parece claro o facto de este texto assentar numa “experiência traumática

individual de perda” (Borges, 1993: 144), servindo de ponte para equacionar a condição

humana. Porém, o facto de nem sempre ter lidado de forma pacífica com a morte teve

ainda como consequência o “conhecimento de que haveria […] uma descoincidência

entre o nosso ser, a nossa essência, e a nossa condição” (idem). Este será um dos

factores a explicar a errância, a inquietação metafísica.

Sentem-se, na forma como Cinatti vive esta “descoincidência”, não só a sua

vincada formação e crença católicas, como também as leituras, por um lado, de autores

como Robert Louis Stevenson (1850-1894), Joseph Conrad (1857-1924), John

Masefield (1878-1967), importantes para explicar em Cinatti o fascínio pelo mar, pela

partida, pela viagem, pelas paragens exóticas e, por outro, de escritores como Charles

Péguy (1873-1914), Jacques Maritain (1882-1973)27

, Alain Fournier (1886-1914), a que

poderemos acrescentar a Bíblia, que terão contribuído para criar no poeta a convicção

de que, para além deste mundo que sensivelmente abarcamos, existe um outro,

pressentido e vivido intimamente.

“À memória de minha mãe” dá-nos conta da separação entre estas duas

dimensões, apresentando os elementos de forma antitética, a fim de sugerir a oscilação

do poeta entre ambas. O murmúrio audível e que aos poucos se distanciava,

transportava consigo a imagem da mãe que, apesar de ausente fisicamente, o poeta

continuava a ter junto de si. Uma presença tão pura que o levou a afirmar: “levando-me

para longe, fora dos tempos, fora do mundo das coisas terrenas…” (OP: 36). Stilwell

trata esta temática, referindo-se a ela como uma forma de fugir à realidade circundante.

27 Leiam-se, a propósito disto, por exemplo, as notas de Peter Stilwell (1995) das páginas 78 e 79, acerca

das leituras de Cinatti e do fascínio que sobre ele exerceram os autores citados. Terão estes, ainda,

ajudado a dar forma ao cristianismo que ressalta das páginas que produziu enquanto poeta,

nomeadamente no que diz respeito a aspectos que o autor aponta como “aprofundamento doutrinal” ou

“amadurecimento da consciência religiosa e social” (idem).

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Porém, leva-nos mais longe e remete-nos para a tradição bíblica, apontando-nos um

Cinatti próximo do mito do judeu errante28

e da “Fé dos antigos”29

(1995: 121), que em

Deus repousava, tal como o poeta aspira a descansar no colo da mãe. Há ainda uma

clara relação com o Evangelho de S. João, onde Jesus se dirige aos “judeus incrédulos”

nos seguintes termos: “Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima; vós sois deste mundo,

Eu não sou deste mundo” (Jo 8, 23). Porém, torna-se ainda relevante ter em conta que,

linhas adiante, lê-se: “Aquele que me enviou está Comigo; não me deixou só […]” (Jo

8, 29), motivo que poderemos transpor para a situação da morte da mãe, que só não está

fisicamente presente. Ao “jardim de infância” (idem), espaço por onde a memória, que

oscila entre a dor e a sublimação, vai divagando e a partir do qual, através dela, o sujeito

se vai (re)construindo, Cinatti contrapõe um outro jardim que, de acordo com o texto,

ganha até mais relevância que o anterior: “mas é para o outro jardim que vai o meu

amor, para aquele jardim que se desenrola no meu espírito com uma perfeita clareza…”

(ibidem: 37). Aliás, “as pessoas já mortas” e “aquela mulher” que lhe chamava filho,

evidenciam que o jardim remete para o cemitério, lugar de repouso. Por fim, surge de

forma explícita o reconhecimento de algo relevante: “Contigo me levaste, minha Mãe!

Nós não somos deste mundo…” (ibidem: 37). Esta expressão deixa margem para que se

aponte como linhas de força desta primeira colectânea “o desejo de unidade, vivência da

eternidade, presença real do distante, amor – saudade” (Moura: 1961: 64), tópicos que

nunca deixaram de se manifestar na restante produção poética de Cinatti. Assim, através

do pensamento, da saudade, da memória, o poeta deixa-se transportar para essa outra

realidade, depurada, onde o convívio entre ambos se processa sem a interferência dos

mais variados aspectos mundanos.

Entender a vida nestes termos, como aliás Cinatti entendia, teve implicações a

vários níveis. No que lhe diz respeito, deixou marcas tanto no percurso biográfico,

como no percurso poético. O seu fascínio pelo exótico, a constante inquietação que o

movia e o impulso da partida que orientou tantos dos seus passos podem muito bem ter

origem nessa busca pelo que sente existir “do lado de lá”. São, por sinal, vários os

relatos de Cinatti acerca da forma como as viagens e as estadias, pautadas pela aventura,

28 Guilherme de Castilho, diplomata, em texto publicado no periódico Notícias de Macau (11.12.1955)

irmana-se a Cinatti nos seguintes termos: “O que sei é que me contaste coisas tão novas e extraordinárias

dessas terras de onde vinhas que talvez tenha nascido daí a força que me arrancou do Chiado para esta

vida de judeu errante” (p. 3). 29 Stilwell remete para a Carta aos Hebreus (Heb 11), onde se adivinha a “atitude primordial de partir para

um destino que não se vê, mas que desde já transmite à vida um sentido de promessa, dá forma à noção

bíblica de uma Fé que só em Deus repousa” (1995: 121).

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o distraíam do mundo real, pelo que talvez não seja despropositado entendermos o seu

fascínio pelas paisagens edénicas dos mares do sul como resultado da crença de que elas

poderão corresponder a esse outro jardim30

, o que se constitui como sendo o reverso do

Ocidente, com os seus habitantes em estado puro a opor-se “aos de Alexandria”,

presentes nos poemas “Sinal dos tempos” (OP: 110), de O livro do nómada meu amigo

e em “Assembleia Nacional”31

(OP: 209). Acima de tudo, ambos os poemas confirmam

no poeta uma inabalável tendência para não se reger por moldes impostos, funcionando

como uma afirmação de liberdade pessoal. Neste sentido, pela forma como o autor, ao

longo das suas campanhas administrativas se foi desencantando quanto à forma como o

Estado geria a política colonial e os próprios territórios e gentes, poderemos também

perceber por que razões o poeta sentia não pertencer a este mundo.

Um outro aspecto que nos parece relevante surge através de uma observação de

Peter Stilwell que, mais uma vez, nos coloca perante a questão da religiosidade do poeta

na vida prática. Segundo o mesmo, a errância, que entende ser uma pedra basilar em

Cinatti, com o passar do tempo, foi transferida da figura da mãe para o “apelo do Deus

vivo […] em continuidade com a tradição judaica e cristã” (Stilwell, 1995: 127),

precisando ainda que esta tradição valoriza bastante a errância nas suas várias

manifestações: artística, física, psicológica e espiritualmente, na construção daquilo que,

em termos bíblicos, constitui a Revelação. Numa interessante nota, na medida em que

nos ajuda a entender não só a importância, para Cinatti, da Fé e da aventura, mas

também a perceber o ambiente exterior e interior do sujeito que terá estado na origem de

O livro do nómada meu amigo, aponta Stilwell:

A articulação fé-experiência-memória-Fé segue uma espiral ascendente: 1) a fé, como atitude fundamental, preexiste à experiência e à memória de forma não tematizada,

encontrando expressão na errância física; 2) a atitude é aprofundada no interior de

circunstâncias históricas difíceis, enquanto recusa em aceitar que sejam uma fatalidade – por isso o povo clama; 3) a experiência é recordada e interpretada, juntamente com o seu

desenlace, estruturando-se como referência ou horizonte da Fé; 4) à luz dessa memória, o

crente coloca-se diante de Deus – o único que permanece – e acolhe o presente, mesmo quando positivo, na sua relatividade […] como dom a agradecer (idem).

30 Vários autores salientaram a relevância do pensamento de Alain Fournier na primeira publicação de

Cinatti, partindo precisamente da epígrafe que abre a obra: João Gaspar Simões, Guilherme de Castilho, , Ruy Belo, Peter Stilwell. 31 É neste poema de O tédio recompensado (1968) que Cinatti completa o retrato destes homens e

percebemos, então, a quem se refere e em que moldes: “Os de Alexandria, os grandes do mundo, /

senhores da palavra, da magna justiça, / concordaram todos que a vida está cara / e que era preciso /

acabar com os pobres deste mundo. // Encareceram a vida. // São os homens responsáveis / por estas vidas

curtas, oprimidas, / que nos são, ombro a ombro, conhecidas, / cara a cara, olhos n’olhos, mão na mão”

(OP: 209). Em nota, mais adiante, relacionaremos “os de Alexandria com “os Filisteus” (ver nota 40,

página 36).

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31

Se anteriormente aludimos ao termo “aventura”, não o fizemos levianamente:

tudo na vida de Cinatti parece ter-se pautado por ela. Socorrendo-nos de um verso,

provavelmente da autoria de Ruy Cinatti32

(cf. Stilwell, 1995: 56-57), encontra-se uma

definição de poeta33

: além de ser “simples” (ibidem: 56), é “preciso nascer-se poeta”

(idem), e ainda “despir as vísceras e expô-las ao sol” (ibidem: 57). Nestes termos, a

poesia, em Cinatti, parece algo de natureza visceral, mas sempre num crescente de

depuração que se consubstancia na fórmula “[…] O resto / É um trabalho a dois até que

a alma fique pura / E a carne nua, / Em cada momento a carne pura e a alma nua”

(idem). Os dois versos que encerram o poema merecem ainda destaque, na sequência do

que acima dissemos sobre ambos os jardins referidos no prólogo a Nós não somos deste

mundo, visto manterem a tónica da dualidade, mas sem dilaceramento (Borges, 1993:

145): “Assim será a vida uma lenta agonia / Com a visão do paraíso sempre a dois

passos” (Stilwell, 1995: 57). Nestes versos, ecoam as palavras de Alain Fournier.

Não são poucos os momentos do seu rico percurso biográfico em que as

experiências por que passou atestam o que poderemos considerar a sua aventura de vida.

Poderemos, por exemplo, pensar nas divergências com o pai (cf. Stilwell, 1995: 27-31) ,

numa altura em que poucos ousariam desacatar a autoridade paterna, considerar as

leituras e viagens da juventude, tentativas de dar resposta a um muito pessoal impulso

da partida, observar a própria aventura poética a que se entregou e que um crítico como

Joaquim Manuel Magalhães, pela novidade da poiesis, considera à frente do seu tempo

(cf. 1989: 32-33), complementada não só pela coordenação dos célebres Cadernos de

Poesia como também da revista Aventura, importantes pela novidade que representaram

nas letras portuguesas. Enfim, referimo-nos a uma aventura literária que, no seu

conjunto, demonstra o empenho de Cinatti em “não ser apenas mais um escritor”

(Cinatti, 1942: 3), complementada com as viagens que, ao longo da vida, foi realizando

passando por locais como Egipto, Bali, Nova Iorque, Tahiti, Japão, entre outros e

ponderando as implicações poéticas e ontológicas da forma despojada e ausente de

arrogância com que conviveu com os timorenses, por exemplo, contrastando vivamente

com a mentalidade da administração colonial que na época exercia funções. Além disso,

32 Referimo-nos a um poema em cujo primeiro verso se lê “Para se ser poeta é preciso ser-se simples…”.

Peter Stilwell refere-se a este texto, encontrado nos manuscritos de Cinatti dos anos 40, dactilografado,

mas não assinado, o que, claro, obriga a levantar a questão da autoria. Stilwell conseguiu apurar que este

texto não é da autoria de José Blanc de Portugal nem de Jorge de Sena, mas reconhece que “corresponde

ao pensamento de Cinatti nesta época” (1995: 56). 33 O poema citado neste parágrafo não está incluído em OP. Está registado em Stilwell (1995: 56-57).

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32

convém reter a ideia expressa no final do texto “À memória de minha mãe”, em Nós

não somos deste mundo, e retomada depois com outra formulação em Corpo – Alma

(póstumo, 1994). Se na primeira colectânea, o autor reconhecia que apesar de não ser

deste mundo era nele que, para o melhor ou para o pior vivia, sendo que, por essa razão,

era com ele que teria de aprender a lidar; na segunda já é o amor que segue a mesma

ordem de ideias: “[…] o amor não é do mundo / mas só no mundo / acorda” (Cinatti,

1994: 38), o que, no fundo, é o assumir de uma condição de preso ao mundo em que

vive e que percorre. Além disso, assumida que está a sua vocação de poeta, lembremos

o poema “O poeta não quer ser exilado da terra”34

, datado de 01.05.1941, publicado no

periódico Ala (n.º 10, 1943, p. 5). Nele, se percebe a recusa do poeta em alhear-se do

real e da realidade, pretendendo empregar “todo o coração / pelo cantar do mundo”

(idem). Complementando esta ideia, Jorge Fazenda Lourenço, chama a atenção para a

“indissociabilidade entre os domínios do estético e do vivido existencial” (1998: 279).

Por isso, convém, antes de avançarmos, considerar a confluência entre a pessoa

empírica e o sujeito autoral, dois termos a partir daquilo que constitui a obra que Cinatti

nos legou, não perdendo de vista, claro, o horizonte das temáticas que aqui procuramos

sistematizar.

2. O “nómada amigo”

Ai dos que por outra morada

trocam o destino finito.

Ou ficam para sempre emoldurados

ou morrem transidos, divididos.

Ruy Cinatti35

Observar, na vida e na obra de Ruy Cinatti, a presença deste “amigo”, obriga-

nos a recuar até muito cedo no seu percurso biográfico, pelo que será interessante anotar

alguns factos para termos a ideia de como certas circunstâncias vieram a ter tão grandes

repercussões na produção do poeta.

34 Este poema faz parte da listagem de “Outros textos e poemas diversos”, apresentada por Peter Stilwell

(1995: 427). O texto não surge em nenhuma colectânea, nem em Op, pelo que o apresentamos em anexo

(ver. p. 92). 35 Ruy Cinatti, Tempo da cidade, prefácio de Peter Stilwell, Editorial Presença, Lisboa, 1994, p. 45.

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33

Num dos seus diários, referindo-se ao Outono de 1929, altura em que ingressa

no Colégio Nun’Álvares, Cinatti dá conta da sua adaptação ao mesmo nos seguintes

termos:

Em breve os poucos dos meus condiscípulos que se me opunham baixaram as armas e

fomos desde então amigos certos. O prazer que do facto retirava fazia-me juntar as mãos e agradecer a Deus. Tornei-me doravante amigo fiel de todos e a palavra não

deixou de aparecer nas minhas frases (Stilwell, 1995: 28).

Tudo leva a crer que a palavra a que o poeta se refere é “amigo”, se atendermos à

relevância que estes “companheiros de viagem” (OP: 48) sempre adquiriram. Aliás,

Peter Stilwell dá ainda conta do seu fervoroso desejo de fazer amigos, pelo que, após

solidificadas, algumas amizades da adolescência ficaram para a vida: Constantino

Varela Cid, José Blanc de Portugal, Marcelo Caetano, entre outros. Além destas, no

entanto, com o passar do tempo, outras se vão consolidando, mas agora vindas do

campo da imaginação e que, iriam deixar em si e na sua obra uma marca indelével.

Stilwell (1995: 237-238) dá conta de algumas delas, referindo-se mesmo a algumas

“presenças que desde a adolescência o povoam” (ibidem: 237).

No seu primeiro livro, Nós não somos deste mundo, surgem duas referências

directas a esta entidade que, mais do que um companheiro de viagem, parece ser o

ombro de um confessor que ampara o futuro poeta numa ainda incerta caminhada. Na

Parte I deste livro de 1941, poema 3, lê-se: “Não digas nada, amigo, / Que a tempestade

chora / Com a tristeza de nos ouvir a voz, / Deixa viver, amigo, a tempestade, / Deixa

que apenas se ouça a sua voz.” (OP: 39; e, no poema seguinte, pode ler-se na última

estrofe: “Ah! porque não vens, ó meu amigo? / Contigo o tempo voa sem passar; / Mas

só – prudência! – que a demência / Surge. Somos outra vez o tempo a andar” (idem).

Neste segundo excerto, a interpelação é ainda mais emotiva e, além disso, o poeta

introduz o elemento da sanidade mental, assegurada, à partida, pela presença

reconfortante desse “amigo”, que ajuda a vencer a rasura e o peso da passagem do

tempo. Atente-se ainda noutros passos deste primeiro livro, onde se lê: “A que olhas,

amigo! / Acaso cansei-te? / Brinquemos de novo, / Fechemos o livro” (II, 4, p. 44), “À

proa, assinalando o meu desejo, / Perigoso no aspecto, / Passeavas, Irmão a quem, um

dia, / Raptaram sem deixares de estar presente / a doçura imperturbada” (IV, 2, p. 53) ou

ainda, para finalizar, “Vinde, pois, irmãos de um outro sangue - / Amigos, chegados

sem prévio aviso ou súplica - / Vinde! / É tempo de sermos nós os mandatários, /

Colonos da terra infecundada” (V, 3, p. 61), agora numa exortação colectiva em que o

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34

poeta pretende levar os tais “mercenários do presente” (idem) à acção. Tudo isto no

seguimento de um - quanto a nós - eloquente projecto que lembra uma literatura de

exortação, em que se inscreve a Mensagem de Fernando Pessoa. Cinatti reclama a si,

ainda, uma nobre missão: “É tempo de ir em busca de novos mundos, / Movido pelo

império que em mim se usa; / Capitão da minha escuna, / As vozes de coragem

comandam / Em todos que em mim se escutam e confiam” (idem). Por aqui se vê a

oscilação, o impulso contraditório entre a necessidade da presença reconfortante dos

“companheiros de viagem” e a mais destemida solidão, que acaba por ter algo de épico,

chegando o sujeito a auto-denominar-se, “herói moderno / De obscuras batalhas” (VI, 1,

p. 64). No poema 2, texto em que há uma notável sobreposição de figuras míticas como

Palinuro, com quem o sujeito se identifica (“De mim eu falo”) ou a Esfinge e o seu

“intrínseco saber não revelado” e de passos bíblicos, como a recuperação da expressão

bíblica “meu nome é legião”36

(ibidem: 66), numa atitude em que parece ter tomado as

rédeas de um novo destino que é urgente cumprir, volta a buscar paz na figura do

“amigo”, já que o assola a “divina indiferença”, a lembrar os momentos finais de Jesus

crucificado. Agora, ao contrário do que se lia nos primeiros poemas do livro, reclama a

companhia desse alter ego, numa atitude de partilha e de reciprocidade que faz aqui

todo o sentido: “deslocando-me por sucessivas eras, / No afã de encontrar um outro

amigo / Que a mim clame: ‘Vem comigo!’” (ibidem: 67). Trata-se, no fundo, de uma

missão utópica e ucrónica.

Ainda no que diz respeito a este “amigo”, atente-se na quantidade de poemas

dedicados a terceiros. Surgem catorze nomes, que poderemos apelidar, tal como Cinatti

faz aos homens a quem dedica os “Poemas da viagem”, de “Companheiros de viagem”,

outros nómadas: poetas, amigos, escritores, navegadores, políticos, entre outros. Em

Anoitecendo, a vida recomeça não surgem referências directas ao “amigo”, embora se

mantenha o recurso a um grande número de dedicatórias, desta feita doze poemas

dedicados a terceiros37

.

36 Esta expressão bíblica surge no Novo Testamento, em Mateus, 8, 28-34, em Marcos, 5, 1-20 e em Lucas, 8, 26-39, associada aos esforços de Jesus para libertar os homens das forças malignas. É de realçar

uma nota (Bíblia Sagrada, Capuchinhos: 1299) relevante para algo que desenvolveremos mais adiante, a

propósito de O livro do nómada meu amigo: “Há uma luta surda entre Cristo e o mal e os homens

‘instalados’, como os habitantes das cidades gadarenas, preferem, às vezes, permanecer no mal”. Cinatti

rebelou-se sempre contra os “instalados”. 37 Além dos amigos acima nomeados, encontramos ainda Domingos Arouca, Teles de Abreu, Carlos

Alberto, António Martim de Melo, José rebelo Vaz Pinto, Orlando Ribeiro, Vasco Pinto de Magalhães,

José Tavares de Carvalho, Tomaz Kim, Francisco Stilwell, Carlos Eduardo Soveral, a quem o autor

dedica alguns poemas

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35

Em “Metamorfoses de uma gaivota”, publicado no periódico Acção (data

completa), inspirado numa das estadias de Cinatti na Berlenga, embora escrito anos

depois, assistimos a um autor que discorre sobre a falta de assunto, tema que vai

articulando com notas muito próximas do registo diarístico. Deparamos com a

referência a um “homem que se conhece vivendo” (1942: 3), que vem no seguimento de

uma interessante reflexão acerca da obra de criação que seria suficiente para deitar por

terra todas as teses da obra minada pela juventude e pela maturidade. Ora, esta persona

merece, ao longo do artigo, uma identificação com o autor do mesmo, que se assume

como um ser em que coexistem dois: um, o jovem impulsivo e apaixonado que anos

antes se esquecera do mundo rodeado pela beleza agreste da ilha; o outro, já mais

maduro, percebe esta dualidade e filtra-a, reflectindo sobre a importância desta para a

criação poética. Sigamos o texto:

Ele, isto é, eu somos uma única pessoa. Nele, o passado era presente; em mim, o

presente é a permanência do passado no que este possuía de perene. Os meus feitos

passam a segundo plano. É a ele que eu vejo agora sair das páginas do meu caderno e, como sucede em todos os romances ou peças de teatro, o centro de atracção desloca-

se para ele e determina a história. Eu sofro as consequências dos seus actos e, sem

saber bem porquê, compreendo-o perfeitamente embora discorde de certas atitudes. Ele era um rapaz que vivia; eu sou um homem que discorre. As outras personagens

são reais mas a sua realidade não tem presença autónoma (Cinatti, 1942: 3).

Em relação ao “nómada”, Peter Stilwell afirma ter esta figura surgido na

introdução ao conjunto de três artigos intitulados na revista Lisbon-Courier, de 1948. O

primeiro destes textos, “Uma viagem ao Oriente I - Feliz, quem como Ulisses”38

, além

de ser o texto em que surge, pela primeira vez, associada ao “ele” que acima referimos a

expressão “nómada meu amigo”, coloca ainda outra questão importante, que reside

precisamente na evocação de Ulisses39

e, indirectamente, todos os arquetípicos heróis

errantes presentes nas épicas clássicas. Mas vejamos as palavras iniciais:

Saí desta morada que se chama a minha Pátria, para encontrar o nómada meu amigo e dar-lhe notícias do mundo. Do mundo que era eu, esquecido do nómada, entretanto,

perdido nos altos cimos do sonho. […] A saudade da aurora juvenil inundou-me de

novo num banho lustral. E de tanto me banhar, obrigou-me a despir todas as fantasias

humanas e a beber, profundamente, na fonte fresca da vida. Foi então que vi o nómada lá longe no fundo da água, a acenar-me e a convidar-me a empunhar o bastão

de peregrino. E era tão forte a inspiração e poderosa a vontade, que virei o mundo às

avessas e encontrei o coração, o coração perdido. Bem me diziam, para me cingir às realidades do dever, todos aqueles para quem o dever é, de facto, uma limitação. Mas

38 Du Bellay (1522-1560), em Les Regrets - “Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage”. (Cf.

Oeuvres Poétiques, Tome II, édition de D. Aris et F. Joukovsky, Paris, Éditions Classiques Garnier, 2009. 39 Também Ulisses empreendeu uma longa viagem e está associado ao mundo que aqui Cinatti pretende

evocar, o espaço marinho, a viagem, o mistério da descoberta, a saga.

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36

não podia ser. Daí em diante, dei em gritar que os filisteus me perseguiam, que era

inadiável a partida. O meu dever era encontrar o nómada, meu amigo, e renascer com

ele para a aventura (Cinatti, 1948: 6).

Atente-se, de novo, no fôlego de juventude que preenche o homem e da revitalização

que isso implica, tal como já surgira em “Metamorfoses de Uma Gaivota” (1942). Na

incapacidade assumida de se cingir “às realidades do dever”, o chamamento da

“aventura” ecoa mais alto e consubstancia-se a partida, resultado do convite do nómada

e do peso do cumprimento do dever ao serviço dos ou no convívio com os “filisteus”40

.

Estava assim aberto o caminho para o surgimento de uma obra como O livro do nómada

meu amigo, que poderemos entender como resultado de uma longa viagem, plena de

descobrimentos a vários níveis, registados pelo olhar e pela experiência no nómada, que

Peter Stilwell (1995) e Maria João Borges (1996) entendem ser um alter ego .

No conjunto da sua produção poética, as referências à errância desdobram-se,

não só através do recurso a termos como “viandantes”, “vagabundo” ou “aves de

arribação”, mas também através da arquetípica figura do pastor errante, que surge em

Memória descritiva (1971), marcado pela solidão que, segundo o poeta, é a “Solidão-

Solidó do pastor peregrino” (OP: 292). No texto de abertura de Uma sequência

timorense, Cinatti dá conta de que na primeira parte desta obra figuram poemas que já

haviam sido publicados em O livro do nómada meu amigo41

, sugerindo a continuidade

da forma emocionada como Cinatti havia vivido as experiências de Timor. Já em 1974,

vem a lume a colectânea Paisagens timorenses com vultos, cuja primeira parte se

intitula “Outros poemas timorenses do nómada meu amigo”. Por um lado, esta

designação indicia uma sequela, como se o “nómada” do livro de 1958 desse mais um

passo na “corografia emotiva de Timor” (OP: 492), provavelmente composta por

poemas que, propositadamente, não quis incluir noutras publicações. Aliás, esta

presença vê-se desde logo confirmada em “Chegada”, primeiro texto, desta colectânea,

onde se pode ler: “O meu amigo sabia / os nomes e a geografia / destas paragens”

(idem). Por outro lado, realce-se que a primeira secção do livro abre com a mesma

epígrafe retirada de António Machado (OP: 105) que abrira a segunda secção de O livro

40 A referência aos Filisteus poderá ser depreciativa: uma acepção do termo, segundo o Dicionário

Houaiss da Língua Portuguesa, aplica-se às pessoas que não têm gosto pelas artes. Tal poderá equivaler

ao desdém com que o sujeito de O livro do nómada meu amigo se refere também “aos de Alexandria”,

como apontámos em nota anterior (cf. nota 31, página 30). 41 Fernando Pinto do Amaral, em nota, afirma ter optado por não reproduzir os poemas que surgiam em O

livro do nómada meu amigo e que Cinatti voltou a incluir em Uma sequência timorense. Tal decisão

afigura-se-nos discutível, embora tenha sido um critério, que peca por não nos dar aquilo que é a

colectânea na sua forma original.

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37

do nómada meu amigo. Deste modo se confirma a sequencialidade que Cinatti quis

imprimir a todas as publicações directamente relacionadas com Timor, terminando com

o conjunto de poemas intitulado “O que sobrou de um cancioneiro”, a que o autor

acrescentou, entre parêntesis, a data de 1968. Ora, foi precisamente neste ano que,

segundo Peter Stilwell, Cinatti acabou de organizar a primeira versão de Um

cancioneiro para Timor, publicação onde, mais uma vez, surge em destaque a figura do

“nómada amigo”, como adiante veremos em pormenor. O poeta terá julgado

conveniente incluir esses textos em Paisagens timorenses com vultos, como o próprio

confirma nas preciosas “Notas aproximativas a alguns poemas e uma advertência” (OP:

545-563): Cinatti chama aí a atenção para o facto de que o cancioneiro “conteria os

presentes poemetos, se os mesmos não diferissem do conjunto total – 106 – por

exigência de ordem métrica que não pelo estilo ou propósito que a todos coube”

(ibidem: 546).

Enfim, se dúvidas houvesse, estas breves notas acerca das ocorrências do

“nómada amigo” ou de outros termos que directamente ou indirectamente o evocam,

vêm demonstrar que é possível encontrar na obra poética de Cinatti a preocupação com

a unidade temática da mesma, conseguida através da incorporação de poemas já

publicados em colectâneas posteriores, mas que isto acontece havendo a preocupação,

também de tomar Timor como centro, o que se confirma sobretudo em Um Cancioneiro

para Timor. O que se passa em Corpo-Alma, no que diz respeito à (re)evocação do

“nómada amigo” é de outra ordem, como veremos.

3. Notas sobre a recepção crítica de Ruy Cinatti

O livro do nómada meu amigo tem sido frequentemente visto como uma

colectânea que veio clarear as águas no que diz respeito à recepção da poesia de Ruy

Cinatti, reunindo o consenso que as duas obras iniciais não haviam conseguido. Adolfo

Casais Monteiro, a propósito de Nós não somos deste mundo, com evidente cautela

mesclada de alguma, quanto a nós, incompreensão, reclama Cinatti para a prosa.

Responsabilizando a juventude do poeta pela indefinição da voz ou pela incapacidade

de, poeticamente, “exprimir emoções ou estados de determinada ordem” (1972: 288) e

compara alguns dos seus poemas com traduções, referindo-se aos poemas como

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38

retratando momentos de (re)criação poética que decorrem como os momentos de

tradução em que “o tradutor não quer perder uma imagem que é bela no original, mas

que não consegue tornar poesia na sua própria língua.” (ibidem: 289).

Partilhamos da opinião de Casais Monteiro ao darmos conta da oscilação que,

em termos globais, esta colectânea de estreia denuncia: “Há bastantes poemas, ou

inteiramente belos […] ou fragmentariamente […]” (ibidem: 290). Aliás, o Padre

Manuel Antunes, em crítica à selecção de Alberto de Lacerda, publicada em 1951, foi

sensível precisamente a esta mesma oscilação:

Formalmente a mesma variedade, em que os metros clássicos caminham rítmicos,

lado a lado com as mais ousadas inovações modernistas. Nestas e naqueles

encontramos belas realizações, embora aqui e além nos fique a impressão de inacabado e demasiado indefinido (Antunes, 1952: 129).

Manuel Antunes já destacara este aspecto cerca de onze anos antes, ao recensear a

primeira publicação de Cinatti ao sugerir: “Ruy Cinatti talvez ganhasse tornando-se

mais espontâneo na clarificação do próprio pensamento através de uma forma mais

directa e fácil […]” (1941: 468). Se estas apreciações são, de alguma forma, moderadas,

veja-se o que João Gaspar Simões registou acerca de Anoitecendo, a vida recomeça:

Quando Ruy Cinatti publicou o seu primeiro livro, Nós não somos deste mundo, há

pouco mais de um ano, tive o prazer de o saudar como um dos novos poetas mais

ricos de vida interior, embora me recusasse a acreditar que o seu verdadeiro destino

fosse a poesia. Agora, Ruy Cinatti publica um novo livro, Anoitecendo, a vida recomeça (Cadernos de Poesia, 1942) e os meus prognósticos parecem realizar-se

[…] (Simões, 1942: 10).

Mais uma vez, são a vida interior e o lirismo latente que ressaltam e que a todos

agradam; ao contrário, é a expressão que parece ter caído em seara alheia e que não

encontra grande simpatia: “ausência de ritmo, insuficiência de densidade expressiva,

pobreza de recursos verbais e carência de tensão poética” (A. do E. S, 1941: 357 e 358).

O crítico fala ainda em “expressão super-realista” (ibidem: 357), dando-a como uma

roupagem pobre para exprimir os temas, que segundo o mesmo “são humanos e

impressionam” (ibidem: 358).

No outro extremo, encontramos, por exemplo, as opiniões de Carlos Queirós e

Alberto de Lacerda, já aqui mencionado. Ambos, a nosso ver, mais tolerantes, talvez

porque mais esclarecidos, mas, é importante dizê-lo, mais expectantes, reconhecendo

que não se deveria reduzir um poeta como Cinatti, com a profundidade que todos lhe

haviam reconhecido, a dois livros onde – e aí estamos de acordo – o traço que mais

dissonância provocava entre forma e expressão era a juventude. Veja-se a abertura e o

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39

esclarecimento que Carlos Queirós coloca na apreciação de Nós não somos deste

mundo, aconselhando ao leitor um caminho que Jorge de Sena ou Joaquim Manuel

Magalhães viriam a trilhar:

Onde se sente que ficou por encontrar o seu ritmo próprio […] antes de pensarmos

que o poema falhou, devemos louvar o poeta por não ter querido ladear a dificuldade da comunicação, servindo-se de ritmos alheios, de imagens vistosas ou de rimas

bonitas. Se existe em uma intenção que antecede, muitas vezes a espontaneidade, é a

de encontrar-se a si mesmo, inteiro, por caminhos lealmente procurados e corajosamente descobertos (1941: 4).

Sejam as impressões por nós registadas fruto ou não de incompreensão

relativamente à poesia com que Ruy Cinatti se iniciou, o que parece é que este foi

vítima das formas poéticas com que pretendia deixar vestígios da sua passagem pela

Poesia e que Helena Cidade Moura, de forma elegante, diz serem “dissonantes para um

ouvido cartesiano” (Moura, 1961: 64).

A tese da incompreensão poderá facilmente afigurar-se-nos defensável se

tivermos em conta algo relevante. Jorge de Sena, na sua recensão a Poemas escolhidos,

refere-se à “originalidade intrínseca da linguagem poética” (Sena, 1988: 114) cinatiana

e abre o seguinte parêntesis acerca dessa mesma linguagem: “ainda mais difícil de

apreender há dez anos do que hoje (1952), pois que então “não existia culturalmente em

Portugal a poesia inglesa, na sensibilidade da qual se insere muito da atitude poética de

Ruy Cinatti” (idem). Por sua vez, Joaquim Manuel Magalhães, ao referir-se ao poema

“Ilha”, no seu esclarecedor posfácio “Senhor, eu não sou digno”, refere-se ainda à

aprendizagem da técnica que Pound apelidara de Imagismo e continua dizendo: “Esse

estilo como um sistema de limites / que não vingou na época continental / dos anos de

aprendizagem de Cinatti / faria do melhor entre os versos algo / por muitos nossos hoje

ainda ignorado […]” (1989: 33), ignorância esta responsável pela desconfiança dos

cultores dos “mecanismos automáticos” que acabaram por triunfar entre nós. J. M.

Magalhães conclui de forma inequívoca (idem):

Cinatti, julgado por uma tradição que não é a sua, virá a ser aceite como uma espécie de poeta que se perde, entre felizes envios botânicos, de formas renovadas de fazer os versos (o que é falso; porém o novo em Portugal foi sempre promulgado por cultos parciais).

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40

4. O livro do nómada meu amigo (1958)

Publicado cerca de dezasseis anos depois de Anoitecendo, a vida recomeça, O

livro do nómada meu amigo surge antecedido de um percurso pessoal que, de alguma

forma, deu resposta à inquietação que sempre caracterizou Cinatti. Deslocou-se pela

segunda vez a Timor, onde permaneceu entre 1951 e 1955, desempenhando o cargo de

Chefe dos Serviços de Agricultura do Governo de Timor. Esta estadia não foi pacífica e,

se por um lado deu alguma resposta à sua apetência pela investigação botânica e pela

Agronomia, por outro, também encontramos documentada a crescente indignação do

cientista / poeta quanto à indiferença que o Estado Português dedicava a esta colónia.

Parece óbvio que Cinatti não a compreende, nem poderia fazê-lo. Para Cinatti Timor

não era uma questão administrativa. “A Natureza de Timor é fonte de vida”, escreveu

em carta a Jorge de Sena datada de 16 de Maio de 1952 e citada por Peter Stilwell

(1995: 202), pelo que poderemos depreender que aquela ilha paradisíaca correspondia a

todas as imagens que Cinatti, desde jovem, vinha construindo. Era lá que se encontrava

não só a natureza intocada, mas também o ser humano original, genuíno, bondoso,

respeitador e isso, que para outros era razão para tornar o indígena servil, para Cinatti

significava o retorno a uma pureza que há muito buscava conhecer e que, de alguma

forma, reconhecia em si.

Foi durante esta estadia que lançou as fundações para o que viria a ser o seu

terceiro livro de poemas. A crítica foi unânime em reconhecer nele a mesma

inquietação, a mesma errância, mas, agora, esta interiorizava-se. Stilwell transcreve um

excerto de uma carta datada de 22.03.1953, redigida em Timor, em que se lê algo que

poderá ajudar a explicar este aspecto: “Fugir de mim próprio é a ‘ordem de serviço’,

mas quanto mais fujo mais me aborreço” (1995: 211). Por aqui se pode depreender que,

se na poesia dos dois primeiros livros assistíamos ao impulso juvenil da partida e a uma

poesia que em vez de contar mostrava, na de O livro do nómada meu amigo vamos

encontrar um equilíbrio entre o que estava fora do sujeito e o que dentro de si andava à

deriva, como se a paisagem do paraíso surgisse nesta colectânea filtrada, de forma a

garantir o apaziguamento que, por ingenuidade, inocência ou boa-fé demasiada, Cinatti

não conseguia. A propósito do que acabámos de afirmar, observou Jorge fazenda

Lourenço no posfácio a Archaeologia ad usum animae, com toda a pertinência, que “o

poeta contrariado, desadaptado, só pode ser um nómada […] na medida em que o

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41

nomadismo, sendo indissociável da errância, significa uma demanda” (2000: 160). No

caso do nosso poeta, assinala ainda Fazenda Lourenço, é na sequência desta busca que a

“peregrinação se faz transcendência” (ibidem: 162) e que entra em jogo a questão da

condição humana.

Esta colectânea de 1958 surge com continuidades e rupturas relativamente às

publicações anteriores42

e será interessante analisarmos, no geral, as linhas com que

Cinatti o coseu, bem como tentar descortinar o que com ele pretendeu, tanto em termos

formais, como em termos ideológicos; e retenha-se desde logo a ideia de que não foi

apenas a paisagem timorense que interessou ao espírito curioso e permeável do poeta.

Esta permeabilidade revela-se inclusivamente entre as suas obras. Ana Hatherly, em

recensão a 56 poemas43

(JL – Jornal de Letras, n.º 18, de 27.10 a 09.11.1981: 14),

sugere uma leitura comparativa entre esta colectânea de 1981 e O livro do nómada meu

amigo, apontando quatro tópicos: “1. rosto dominante: a disponibilidade do nómada,

gosto pelo exótico e pela viagem; 2. culto do amor / saudade e do paraíso perdido; 3.

justaposição da cultura clássica e da experiência linguística do quotidiano; 4. culto dos

símbolos tradicionais orientado no sentido da descoberta do desconhecido” (idem).

Oferece-nos dizer em relação a este levantamento temático que estas linhas de força se

aplicam na perfeição ao livro de 1958, apesar da distância temporal que os separa.

Tenhamos assim em conta estes quatro eixos, que desenvolveremos adiante, ao longo da

análise da obra.

Um primeiro tópico a que poderemos dar atenção prende-se com conclusões

retiradas de textos que antecederam a colectânea de 1958, publicados por Cinatti e em

periódicos vários. Em “Ângulo do desterro” é a figura do “ilhéu” que lhe prende a

atenção, “essa espécie do género humano que, além de sentir como todos os homens o

42 Luís Adriano Carlos (2000: 235-268) considera que a produção poética de Ruy Cinatti se organiza em

quatro ciclos: o primeiro será constituído por Nós não somos deste mundo (1941), Anoitecendo, a vida

recomeça (1942) e O livro do nómada meu amigo (1958); o segundo compreende Sete septetos (1967), O

tédio recompensado (1968), Memória descritiva (1971), Conversa de rotina (1973) e 56 poemas (1981);

o terceiro engloba Crónica cabo-verdiana (1967), Uma sequência timorense (1970), Os poemas do

itinerário angolano (1974), Timor-Amor (1974), Paisagens timorenses com vultos (1974) e Lembranças

para S. Tomé e Príncipe – 1972 (1979) e finalmente, o quarto, é constituído por Borda d’alma (1970),

Cravo singular (1974), O a fazer, faz-se (1976) e Import-Export (1976). Considera ainda o crítico que Manhã imensa (1984), último livro publicado em vida do autor, se situa à margem de qualquer ciclo por

cumprir “uma função de síntese e de cúpula” (ibidem: 251). Atente-se que o autor segue um critério

temático e não cronológico, o que é pertinente. Se nos é lícito fazê-lo, em relação às obras póstumas,

Corpo-Alma (1994), Tempo da cidade (1996) e Archaeologia ad usum animae (2000), diríamos que

caberiam junto das colectâneas do 2º ciclo, pela proximidade temática e temporal, já que Cinatti começara

organizá-las por finais dos anos 60. Com Um cancioneiro para Timor encerraríamos o 3º ciclo, dedicado

ao universo ultramarino. Esta visão de conjunto da obra poética de Cinatti, por si só, mereceria uma

reflexão mais criteriosa e aprofundada, que aqui não nos será possível desenvolver. 43 JL – Jornal de Letras, n.º 18, de 27.10 a 09.11.1981, p.14.

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42

peso do céu, sente o horizonte do mar, que lhe corta os passos e as fáceis aventuras e o

desdobra em vários seres […]” (Cinatti, 1943: 33), descrição esta que nos parece natural

em quem já havia aportado a alguns arquipélagos e que, de alguma forma, já se sentia

um. Mais uma vez, é a Berlenga que lhe serve de cenário e lhe aguça a sensibilidade.

Transferindo o prisma do ilhéu-outro para o ilhéu-eu, Cinatti afirma:

Eu bem o sinto em todos que se cruzam em mim neste momento: marinheiros de todos

os mares, poetas e pescadores, loucos e náufragos. Todos eles clamam em uníssono a

verdade terrível: morre e ultrapassa-te, integra-te e prossegue!... Pois não há outro

caminho para quem procura conjugar as vias do exterior e do interior numa única direcção do ser. Todo o ilhéu ou mareante – que é um navio, senão uma ilha em

movimento? – nasce numa encruzilhada. Ou se debruça totalmente para o ambiente que

o cerca […] ou, pelo contrário, se volta para o interior, para o espelho da sua alma, para a terra do seu berço […] (idem).

O que nos parece importante realçar é a oscilação entre “exterior” e “interior”

que o poeta procura “conjugar”, retomando algo que em “Metamorfoses de uma

gaivota” já havia sugerido: “Homem! Faze de ti o tema que procuras!” (Cinatti, 1942: 3)

e que vai ser um motivo interessante de observar em O livro do nómada meu amigo.

Em relação a esta obra, um outro pormenor que nos parece importante salientar

desde já é a preocupação do poeta com a sua unidade temática e organização interna,

talvez mais visível aqui do que nos livros publicados antes deste. Nos “Apontamentos

sobre o nomadismo de Ruy Cinatti”, Ruy Belo refere-se à citação de Ezra Pound que

serve de epígrafe à primeira parte do livro. Relaciona-a o autor de Aquele grande rio

Eufrates com o facto de esta terceira publicação não representar “um progresso, uma

evolução ou uma substituição de temas” (2002: 171) e, por isso, não ser relevante o

facto de este ser o terceiro ou o primeiro livro. Preferimos associar o tópico da estrutura

à citação de Ezra Pound que Cinatti usa como epígrafe, à qual Ruy Belo se refere: “It

doesn´t matter which leg of your table you make first, so long as the table has four legs

and will stand up solidly when you have finished it” (OP: 101). Se assim for, Cinatti

evidencia uma aguda consciência da organização interna deste livro, resultante, por

exemplo, de uma rigorosa tematização da poesia e dos poetas. Por outro lado, a

referência a Pound vem tornar óbvia a importância que o poeta e crítico americano foi

ganhando entre os nossos poetas, a par de T. S. Eliot, o que os tornou referências para

muitas questões relacionadas com a poesia que criou.

Curiosamente, Ruy Cinatti começa a atribuir títulos aos poemas, algo que não

acontecia nos dois livros anteriores. A resposta a este problema não é, de forma alguma,

objectiva, no entanto, talvez possamos associar esta opção de Cinatti à crítica que ao

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43

longo dos anos foi sendo publicada. Algumas recensões orientam-se no sentido de

considerar a sua poesia demasiado hermética, em que é difícil apreender o sentido dos

poemas, captar a mensagem a eles subjacente. Ora, o título de um texto, entendido como

fazendo parte dele, abre caminhos à sua descodificação. Não esqueçamos que qualquer

texto, por si, é o produto de uma subjectividade, de uma lógica diversa da do leitor e

que, por isso, pode colocar problemas de compreensão.

Vejamos ainda o texto que abre o livro. O poema de Sophia de Mello Breyner

Andresen, datado de Janeiro de 1956, mas publicado em Mar novo, de 1958, ano em

que foi igualmente publicado O livro do nómada meu amigo, levanta questões

interessantes. A dedicatória inicial “Para Ruy Cinatti ausente em Timor e algures após

cinco anos sem notícias” (OP: 99) não foi incluída no livro de Sophia; foi Cinatti quem

a colocou na sua publicação, provavelmente a partir de um manuscrito que lhe tivesse

sido dado pela autora de Poesia I. A entrevista Conversa Inacabada IV documenta a

escolha de Cinatti), evocando Palinuro e muitas outras figuras que, como ele, sofreram

destino idêntico – mar / viagem / sacrifício / morte. O poema de Sophia marca

claramente a temática do universo do livro, que tem tanto de timorense como de

mediterrânico. Os exemplos são vários e encontrá-los-emos trabalhados mais adiante.

O poema de Sophia não se encontra muito distante deste ambiente. O universo

evocado, tal como é apanágio desta poeta, é claramente mediterrânico e podemos

reconhecer nele o tom épico que alimenta tantos dos seus textos. O deíctico que abre o

poema instaura, desde logo, a distância que separa o sujeito e a figura que partiu, mas

“aquele” que parte deixa marcas nos que ficam: a esperança, a saudade, o espírito de

luta. Uma expressão como a “mais longínqua praia”, ou a presença de elementos como a

“espuma”, o “sal” e o “vento”, evocam a figura do navegador (Palinuro) que, perdido,

chega à costa da Lucânia, entregue a si e aos elementos, numa situação de completo

despojamento. Os dois últimos versos da segunda estrofe (“Ele se perca, tendo-se

cumprido / Segundo a lei do seu próprio pensamento”) vêm retirar dos ombros do que

partiu a negatividade da ausência. Aquele que não ficou para “assistir à morte da

verdade e à vitória do tempo” está desculpado porque a sua ausência permite que outra

coisa se possa cumprir, neste caso ele próprio, daí que possamos pressentir algo de

dimensão iniciática em torno desta figura: “Intacta é a sua ausência / Como a estátua de

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44

um deus” (idem) ou ainda na proibição associada ao seu nome, possivelmente só

acessível a qualquer entidade superior44

.

Se antes havíamos referido a questão da unidade interna da obra, eis o momento

em que ela se começa a definir. Se observarmos todas as epígrafes, verificaremos que há

algo que as torna comuns, exceptuando-se talvez a de Pound. Palinuro adquire desde

logo relevância. Este, piloto de Eneias, foi o único homem sacrificado em troca de um

mar calmo, mas tem permanecido, por assim dizer, como representação das almas que

aguardam a sepultura. Segundo a tradição, teve de esperar que lhe prestassem honras

fúnebres para finalmente descansar em paz. Na Eneida, Palinuro adormeceu ao leme e

uma rajada de vento atirou-o ao mar. Mais tarde, quando Eneias desceu aos Infernos,

encontrou-o entre as almas que, por ainda não terem recebido sepultura, viam vedado o

acesso à última morada. Foi então que Palinuro lhe contou que nadara durante três dias

até chegar à costa da Lucânia onde os naturais o assassinaram, tendo inclusivamente

deixado o seu corpo na praia, insepulto. Ao escutar o relato, a Sibila vaticinou que, por

uma série de intervenções divinas, os seus assassinos ver-se-iam obrigados a enterrá-lo

e a prestar-lhe honras fúnebres (cf Grimal: 1992: 351).

A segunda epígrafe, “Nudus in ignota, Palinure, Jacebis Harena” (OP: 99),

retirada do Canto V da Eneida (verso 871), não deixa margem para dúvidas: Palinuro

surge aqui como mais do que uma referência. Mas há algo mais a explicar. Um aspecto

que desde já nos parece importante é analisar as implicações das duas referências ao

piloto. Embora só este pequeno trecho profético de Eneias seja transcrito, há algo muito

interessante quando lemos toda a fala: “- Ó Palinuro, que demasiado confiaste na

tranquilidade do céu e do mar, irás jazer sem sepultura numa praia desconhecida”45

. Na

tradução da epígrafe que abre a terceira parte do livro, igualmente baseada na figura do

irredutível piloto e fazendo parte de um episódio em que o Sono, filho da Noite e da

Morte e pai dos sonhos, desce para o adormecer, podemos atentar num outro termo que

nos parece relevante46

e que aqui nos suscita comentário. É algo que se prende com a

44 O poema de Sophia sugere um retrato alegórico de Cinatti, tratado pela autora como personagem

mítica, além de amigo ausente “há cinco anos”. Esta questão da distância, da ausência e de Cinatti

associado ao nomadismo viria a ser trabalhada por Ruy Belo em “Primeiro poema de Madrid”

(Transporte no tempo, 1997: 45): “Saiba sempre o Cinatti timorense / o nómada do dito por não dito / que

se tanto mais próximos quanto mais distantes / sempre sou seu leitor atento e dedicado…”, ambos, “peregrinos e hóspedes em outras terras” (ibidem: 46). 45

Vergílio, Eneida, tradução de Luís M. G. Cerqueira (cantos I-VI), Cristina Abranches Guerreiro (cantos

VII-VIII), Ana Alexandra Alves de Sousa (cantos X-XI) e Paulo Farmhouse Alberto (cantos IX e XII),

Lisboa, Bertrand Editora, 2003, p. 106. 46 O verso “Te Palinure petens, tibi somnia tristia portans insonti” (Eneida, V, 840) surge traduzido da

seguinte forma: “Procurando-te a ti, Palinuro, e trazendo, ó inocente, tristes sonhos” (p. 105).

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45

sua confiança excessiva, presente na primeira citação e com a inocência do mesmo,

sugerida pela segunda. Também Peter Stilwell aponta estas características a Cinatti

aquando da sua segunda estadia em Timor. Os projectos de Cinatti para o arquipélago,

plenos de potencial gerador de bem-estar para as populações indígenas e para o

conhecimento da terra e das gentes, nem sequer encontram eco nas autoridades e, em

carta a Jorge de Sena, datada de 27.07.1953, lê-se: “Acreditei demasiado, na boa fé do

meu próximo. […] Eis porque, com uma estultícia de bradar aos céus, me firmo,

quixotescamente em princípios inadequados, de todo, às situações ou às pessoas com

quem me relaciono…” (Stilwell, 1995: 209) Poderá, por isto, ter sido esta uma das

razões para a abordagem desta figura numa obra que surge como resultado de uma

experiência desgastante, já filtrada e refinada.

A importância de uma personagem como Palinuro em Cinatti fica esclarecida

quando lemos, por exemplo, na quarta parte da entrevista publicada em Grande

Reportagem:

Admiro muito mais o homem que tem como lema désir do que o que tem como lema talent de bien faire. Sou um homem do desejo, não da posse… Evoc[o] Palinurus,

piloto de Eneias que o levou até Itália e depois se deixou dormir agarrado ao leme…

foi atirado ao mar e acabou por morrer numa praia, assassinado pelos habitantes de uma ilha

47 (Furtado, 1985: 38).

E comenta, acrescentando: “ele de certo modo é o homem do desejo, o homem que, no

momento em que tem tudo nas mãos, se desinteressa” (idem). No fundo, o que Cinatti

questiona é a razão de, após uma missão avassaladora como a travessia do mar Jónio,

por exemplo, e ter chegado às costas da península itálica, o piloto se ter deixado vencer

pelo sono. Enfim, não cabe no âmbito do presente trabalho o aprofundamento do estudo

desta personagem e da sua simbologia, bem como da intervenção dos restantes

protagonistas no que a este episódio diz respeito, mas muito mais haveria a dizer sobre

este.

Além destes, outros aspectos nos parecem importantes, como por exemplo, a

associação que é possível estabelecer entre Palinuro e algumas das figuras que surgem

ao longo de O livro do nómada meu amigo, ou se não com este, pelo menos com algo

que tenha a ver com o universo evocado pela obra, na sua globalidade.

47 Cinatti deixa ainda uma ressalva: “Aliás, Sophia de Mello, essa grande poetisa e minha amiga

parafraseou o texto do Vergílio num poema que me dedicou e que serve de epígrafe a um livro meu O

livro do nómada meu amigo” (idem).

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46

Já anteriormente nos referimos à quantidade de poemas que Cinatti dedica a

amigos, conhecidos ou a figuras que, de alguma forma, marcaram a sua formação,

aspecto que marca as suas obras anteriores à publicada em 1958. O livro do nómada

meu amigo não é excepção e, nele, os nomes evocados parecem surgir com algum

método, ou pelo menos com um propósito específico. Parece-nos pacífico afirmar que

são o mar e o universo ultramarino a este associado que servem de tónica dominante. Se

a figura do piloto, entendida neste caso como arquetípica, estabelece desde logo uma

ligação privilegiada entre a poesia e este elemento, algumas figuras evocadas na

colectânea de Cinatti seguem-lhe as pegadas48

.

Alain Gerbault, por exemplo, que segundo o próprio Cinatti lhe serviu de figura

inspiradora, foi um navegador solitário francês, logo, por condição, piloto exímio que,

tal como o próprio Cinatti, foi igualmente um “coleccionador de ilhas” e abriu, com as

suas viagens e respectivas narrações caminhos para que o nosso poeta, corroborando o

impulso da partida e a sede de exótico. Alain Gerbault acabou por aportar e falecer em

Timor, simbolicamente, nas praias de Díli, onde foi, digamos, sepultado sem ser

sepultado, pois segundo uma passagem do Diário, datado de 1946 e transcrito por Peter

Stilwell, foi ele mesmo que, em Díli, lhe construiu a lápide e escreveu o epitáfio,

tratando, depois, da sua transladação para o Tahiti, território francês (1995: 174). No

poema “Visão”, aliás, fica bem patente o pedido do aventureiro francês: “Sepultem-me

no mar, longe de tudo” (OP: 105). Também o piloto de Eneias pedia que o sepultassem

e, tal como este teve de errar pelo mundo dos mortos e aguardar que lhe prestassem as

honras fúnebres para finalmente descansar em paz, também Gerbault passou por uma

provação idêntica até encontrar, metaforicamente, a sua última morada.

José Júlio Maciel Chaves e Artur do Canto Resende, também eles, longe da

pátria, a ocupar cargos administrativos, acabaram por perder a vida em nome de uma

causa. Leia-se o poema 4 de “Sunt Lachrimae Rerum…” e perceber-se-á, desde logo, os

que são epicamente cantados nesta obra (sublinhado pelo verso quebrado, de efeito

enfático):

Senhora da Hora, vela Pacientemente e sempre, Por todos nós, pelo meu irmão

48 Além destas referências, vindas do plano político ou intelectual, poderemos ainda salientar as de José

Júlio Maciel Chaves, Artur do Canto Resende e José Cabral, três nomes ligados à administração

ultramarina e ainda as de Alain Fournier, Manuel da Fonseca, Alexandre O’Neill ou Francisco Tenreiro,

todos eles ligados à literatura.

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47

desencontrado E assassinado. Por aquele que entre florestas antagónicas Cumpriu o seu dever de lábios mudos. E pelo outro, maduro como um fruto Sazonado nos pântanos (ibidem: 117).

O espírito de sacrifício e a entrega a uma causa em que se acredita, são aqui louvados.

Daí que a figura de Cristo, o que “morreu na cruz” (idem), já no poema 5, seja aqui um

elemento importante. Mais uma vez, não percamos de vista a figura de Palinuro. Reza a

história que, para que a frota de Eneias continuasse viagem com mar favorável, alguém

teria de ser sacrificado49

, e esse alguém foi o piloto e amigo do troiano, também ele, de

alguma forma, “desencontrado / E assassinado”50

.

Enfim, entendemos estes três exemplos como um outro argumento que vem ao

encontro da ideia já expressa de que, com O livro do nómada meu amigo, Cinatti

pretende, de alguma forma, repor a justiça, ou seja, homenagear e conferir relevo a

personalidades que, por se terem sacrificado à causa da defesa dos territórios e das

gentes ultramarinos, ou que por serem seus amigos no meio intelectual, merecem figurar

numa obra que encerra muito de épico. Por outro lado, contribuem em muito para

conferir ao livro a coesão interna que nos parece ter sido bem programada pelo poeta,

coesão que, aliás, extravasa os limites gráficos do livro de 1958. Na mesma entrevista já

citada, Joaquim Furtado comenta, a certa altura: “Poesia… Rimbaud em cima daquela

mesa e também Guevara e S. Francisco de Assis…” (1985: 39); Cinatti acrescenta: “São

imagens de homens que acima de tudo, foram coerentes. Aquilo que pensaram assim

sentiram, assim viveram. Todos eles deram a vida pelo seu ideal. Um, morte cruenta;

outro, morte no hospital; outro olhando a face de Deus” (idem).

Se optarmos, como fez Peter Stilwell, por entender o “nómada amigo” como um

alter ego de Cinatti, então poderemos com toda a segurança tentar perceber o que esta

figura tem em comum com a de Palinuro. A resposta parece estar nos próprios poemas.

No ambiente saudoso marcado pela separação de “Amizade” (1992: 103), na navegação

ora incerta ora definida e no despojamento sugerido pela nudez face ao “destino

implacável” do náufrago de “Destino” (ibidem: 104); na figura do timoneiro, perfilada

49 Vergílio, Eneida (2003), p. 105 – “Haverá apenas um que, perdido no abismo, procurarás em vão. Uma

vida será por muitas dada”. 50 Além destas referências, vindas do plano político ou intelectual, poderemos ainda salientar as de José

Júlio Maciel Chaves, Artur do Canto Resende e José Cabral, três nomes ligados à administração

ultramarina e ainda as de Alain Fournier, Manuel da Fonseca, Alexandre O’Neill ou Francisco Tenreiro,

todos eles ligados à literatura.

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48

em “Os Trabalhos e os Dias” (ibidem: 107-108), poema que evoca Hesíodo; na cerração

dos horizontes referida em “A Porta Estreita” (ibidem: 114), remetendo para a cerração

do Mar Jónio com que nem o piloto troiano parecia, por vezes, conseguir lidar; no

abandono, na solidão, na angústia de quem longe dos seus se encontra e sem eles tem de

lidar com a adversidade, mergulhado num vazio e sujeito a uma nudez que, tal como

noutros poemas, acentua aqui o despojamento que, apesar de tudo, estoicamente se

aceita. Ora, tudo isto se pode perfeitamente moldar à figura do nosso nómada, aquele a

quem Cinatti pretendia, tomando-o como um dever, mostrar o mundo.

4.1. A VIAGEM

Biograficamente, valendo-nos mais uma vez do contributo de Stilwell para

perceber o que se passou na vida de Cinatti entre a publicação de Anoitecendo, a vida

recomeça (1942) e de O livro do nómada meu amigo (1958), podemos registar, entre

várias viagens, as duas estadias em Timor, a primeira em 1946/1947 e a segunda entre

1951 e 1955, e uma permanência em Lisboa, entre 1948 e 1951, que se pautou pelo

abatimento, resultante de uma série de contratempos institucionais e familiares, bem

como o regresso a Lisboa em Janeiro de 1956. Fazendo o balanço de ambas as

deslocações a Timor, poderemos atender às palavras de Cinatti, colocadas em epígrafe:

“Timor serviu-me poeticamente para um ajuste de contas entre mim e o mundo, entre o

meu ser autêntico e o de todos os dias” (Stilwell, 1995: 231). Dessa altura em diante,

será a cisão surgida entre estes dois seres que vai determinar a mudança de nível na

viagem deste nómada. O texto que serve de posfácio a Sete septetos é explícito no que

diz respeito a esta interiorização da viagem. O percurso físico abriu caminho a um

outro, de índole espiritual. O primeiro tê-lo-á forçado a confrontar-se com a injustiça,

com a desorganização administrativa e respectiva demissão das responsabilidades para

com os habitantes das colónias, nomeadamente Timor, e com a erosão do património

cultural português nesses territórios, impeliu-o a empreender o segundo. A atendermos à

personalidade, formação religiosa e predisposição do poeta para a procura da resposta

para o mistério, facilmente se poderá compreender a viagem espiritual. Além disto, a

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49

peregrinação interior 51

não surgiu no período que antecede a publicação de O livro do

nómada meu amigo, nem se sucede à partida para Timor, pois já em tempos idos Cinatti

sentira que essa interiorização seria a resposta para muitas questões:

Se me é impossível escrever, pois bem, descerei a mim, irei pelos barcos, pelas

escadas e montes. Talvez então compreenda e me seja possível apreender a paisagem e a natureza dos homens; aquilo que eles revelam de limpo e são apesar de toda a

miséria e descrença (1942: 3).

O livro do nómada meu amigo deixa, por isso, adivinhar uma inflexão nos

impulsos da viagem física a que assistimos nas duas primeiras obras. Tomando como

possíveis pontos de partida quatro proposições: “A vida é toda mistério” (OP,

“Proclamação”: 101); “O melhor mundo / Está por descobrir.” (“Vigília”: 106); “Abri

caminhos mas não os cumpri.” (“Os trabalhos e os Dias”: 107-108) e “Não sei quem me

criou.” (“O Fenómeno Humano”: 110), poderemos facilmente compreender a

interiorização desta aventura. Compreender o tal “mistério de existir” pessoano, como já

atrás referimos52

, é algo que confere força à poesia de Cinatti, pelo que é óbvia a

perspectiva do autor relativamente à possibilidade de o desvendar. A autognose, a

descoberta de si nos outros e em Deus funcionam como motores. Visto que o melhor

mundo está por descobrir, a estratégia adoptada vai aproximar-se muito da de Cesário

ou de Caeiro. Não se trata somente de uma vigília, mas sim de uma deambulação que

não se enceta apenas no plano físico; vai para além dele, como aliás já se adivinhava nas

citações de Fournier e na evocação da tal outra paisagem que não se avista, mas se

(pres)sente. Entre outros, mostra-o “Metabolismo”: “Cantei como alguém que assobia /

E vai distraidamente / Deitando passo / A passo contas à vida.” (OP: 101). Como o

poeta afirma, esta é a génese dos seus versos. Aliás, o verbo “Cantei” sugere a

aproximação do canto à poesia, canto poético que, afinal, tem muito a ver com a

deambulação, ritmada pelas aliterações (“passo / A passo” ou “apressa / O passo”) e

durante a qual o poeta vai fazendo o seu balanço de vida. Esta viragem ao interior de si

mesmo está bem expressa em vários momentos do livro, como por exemplo no poema

“Destino”: “Quanto mais me aprofundo, / Mais longas praias avisto / E orlas marítimas

onde só a espuma / Tem a brancura nítida / Da verdade que evito.” (OP, 104), ou em

“Vigília”: “Quero-me mais dentro de mim, / Surto e alado” (OP, 106), ou ainda em

51 António Alçada Baptista, eminente personalidade do grupo de católicos esclarecidos de que Cinatti

estava próximo, usa o motivo do homo viator, de dupla matriz (Fernão Mendes pinto e textos bíblicos) no

título de dois volumes da sua obra: Peregrinação interior, vol. I (1971) e Peregrinação interior, vol. II,

(1982). 52 Cf. Página 15 da presente dissertação.

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50

títulos como, “O Sopro Interior”, “Meditação”, “Secreto Apelo” ou “Exorcismo”53

. No

fundo, trata-se de entender que é o sujeito que passa a objecto, como sugere a imagem

de “Eros” (ibidem: 103), que aqui vê reflectida na água uma “face ignorada” (idem), a

sugerir que esse percurso de conhecimento do eu não está ainda terminado. Há um

paraíso interior que também convém conhecer, visto que o exterior já o preencheu.

Deste modo, a solidão poderá ser entendida como um estado desejado, dado que é ela

que lhe vai permitir a já mencionada descida a si (“Momento intemporal”, OP: 103); o

homem-ilha precisa dela porque há muito para descobrir: “Outros mundos se somem /

Outros no ar luzes reflectem sem origem. / É por eles que os meus passos não param. /

É por eles que o mistério se incendeia” (ibidem: 109).

Além disto, se estivemos a observar os elementos que nos levam a comprovar

esta viagem por dentro do homem, também temos de equacionar a realizada por dentro

do poeta, da própria poesia e da literatura em geral. Repare-se que ao longo do livro

Cinatti revisita muitas figuras que fazem parte da tradição literária ocidental – Vergílio,

Shakespeare, Rimbaud, Pessoa, Antonio Machado, Ruben Darío, Ezra Pound, Paul

Éluard. Esta revisitação tem a ver com algumas marcas indeléveis que estes autores

deixaram. Podemos referir o carácter matricial da Eneida, Vergílio, Ricardo III e

Hamlet, no caso de Shakespeare ou a importância de Rimbaud para a poesia posterior,

poeta que é homenageado no poema “Em penúltima análise” (OP: 112), lado a lado

com Ruben Darío54

.

O tratamento da temática da viagem não se fica por aqui: sempre foi em Cinatti

um elemento simbólico da maior importância, associada à matriz épica. Já aqui

referimos que a viagem, neste poeta, simboliza a descoberta, a aprendizagem, o

amadurecimento. António Cândido Franco foi sensível a esta questão ao observar que o

itinerário poético do autor de Nós não somos deste mundo se baseia em larga medida

num “diálogo com o desconhecido” (Franco, 1985: 3), qualquer que seja a forma de que

se reveste. Por isso, Cândido Franco escreveu ainda que a “viagem torna-se uma

questão essencialmente metafísica, pois a procura de um centro onde nos será possível

aceder a uma estreita identificação entre o ser, o lugar e o tempo é, antes de mais nada,

uma procura no interior de nós mesmos”. E, se atrás nos referimos a O livro do nómada

meu amigo como uma obra de confluência de várias tradições, agora podemos

53 Estes poemas levantam questões muito complexas e interessantes, que precisariam de maior

desenvolvimento num trabalho de outro fôlego. 54 Cf. Stilwell, 1995. Ver as notas das páginas 258 e 259, em relação ao poema “Em penúltima análise…”

e aos poetas e referência bíblicas que nele desfilam.

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51

concordar com Cândido Franco quando inclui Cinatti ou, se quisermos, o “nómada seu

amigo”, na senda de viajantes como Ulisses, Jasão, Eneias, Dante, Duarte Pacheco

Pereira ou Camões.

Toda a colectânea publicada em 1958 se organiza em torno d’“aquele que

partiu” (OP: 99), ausência que se faz notada imediatamente a partir do título. Significa

isto que a figura ausente tenha de ser trabalhada com algum cuidado. Se cremos que a

Viagem é aqui um elemento poético preponderante, temos de ter em mente que esta

obra surge após a viagem empreendida, embora com um pequeno interregno, durante

cerca de dez anos, década em que o poeta visitou inúmeros lugares e gentes. É íntima a

relação entre os termos “nomadismo”, “habitação” e “viagem”, por razões óbvias, e O

livro do nómada meu amigo, se trabalha nitidamente o primeiro e o terceiro termos, o

segundo surge por inerência.

Cinatti socorre-se de muitas imagens que sugerem a passagem, a deslocação,

quer seja por mar ou pelo ar. Em “O Sopro interior” assistimos à ocorrência de palavras

e expressões como “barco”, “velas insufladas”, “rota”, “velas brancas”, num sopro

interior que enche as velas de uma outra nau, que empreende uma outra viagem e que

impele o sujeito em direcção a um “destino amado” (OP: 102), a um “Lá” que não tem

localização definida, mas que constitui um ponto de escala, já que não nos parece

correcto falar, em Cinatti, de pontos de chegada. Além das expressões citadas acima,

“os patos bravos” (idem) de “Memória amada”, os “delfins” (ibidem: 105) de “O sonho”

(ibidem: 106), a sugestiva associação, em “Contemplação” da “ave” com a “nave”, o

próprio “regato” de “Regresso eterno” (ibidem: 108) e o “compasso” de “O fenómeno

humano” (ibidem: 110), poderão ser acrescentados ao conjunto de motivos com que

Cinatti trabalhou a errância e ajudou a inscrever a sua poesia sob o signo do

nomadismo.

Em relação à epígrafe OP: 105) retirada de Caminos de Castilla55

, do poeta

espanhol Antonio Machado, convém que nos detenhamos nela um pouco, dado que, se

já aqui nos referimos, servindo-nos do exemplo de Ruy Belo e Ruy Cinatti, à questão da

influência, também será legítimo observar mais esta. Antonio Machado, tal como Ruben

Darío e Azorin, faziam parte das referências de Cinatti em termos poéticos. Detenhamo-

nos um pouco no que é dito na introdução das Poesías Completas.

55 A edição consultada foi Poesías Completas, edición de Manuel Alvar, Espasa, Madrid, 2011.

Referimo-nos ao POEMA CXXXVII, III, intitulado “Parabolas”, p. 241.

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Em primeiro lugar, há que referir que, pela leitura dos poemas do poeta

espanhol, não será difícil percebermos as razões pelas quais Cinatti se sentiu atraído

pela sua obra. Em segundo lugar, poderemos invocar a proximidade temática: a viagem,

a figura do viandante, os caminhos, o mar e a evasão, que surgem a cada poema nas

publicações de Ruy Cinatti. Mas um dos aspectos que nos parece mais relevante é o

facto de entre ambos podermos dar conta de uma atitude perante a poesia e o mundo que

os irmanou como poetas. Se não vejamos. De acordo com Manuel Alvar, para Antonio

Machado ser poeta “le bastó el caminar” (2011: 9), “en silencio y com mirada profunda,

convertendo en luz la propia bondade íntima” (idem).

Num dos textos de Cinatti publicados por Stilwell (“Texto autobiográfico”,

1995: 412-413) que nos fornece um esclarecedor - embora breve – perfil, podemos ler:

“Em 1943 visitei Espanha (Badajoz, Mérida, Guadalupe, Toledo, Madrid, Aranguez,

Cuenca, Valencia, Tarragona, Barcelona, Malhorca, Lerida, Valladolid, Sória, Leon,

Lugo, Corunha, Santiago de Compostela, Vigo) ” (ibidem: 412); mais adiante, no

mesmo texto, afirma: “Na literatura espanhola moderna adiro a Unamuno, Azorin,

Antonio Machado, Enrique Larreta, Luiz Cernuda, Lorca e uns tantos outros). (ibidem:

413).

Além destes aspectos, como adiante se aprofundará, a epígrafe de Antonio

Machado surgirá em Uma sequência timorense e Paisagens timorenses com vultos, o

que, além de atestar a forte ligação de Cinatti à obra do poeta espanhol, levanta ainda

questões interessantes do ponto de vista estilístico, dado que procura conciliar quatro

aspectos que adiante desenvolveremos: o binómio terra / mar e o exílio como resultado

do conflito entre a questão política e a questão íntima, pelo menos no caso de Cinatti.

4.2. O mar

Herman Melvill assinalou de forma pertinente, nas belíssimas páginas iniciais de

Moby Dick, dedicadas precisamente à atracção que o mar exerce sobre o ser humano:

“[…] meditation and water are wedded for ever.” (Melville, 1986: 94), associando a

presença do mar à atitude contemplativa e reflexiva que em tantas outras páginas de

literatura se encontra. Numa outra perspectiva, associa o mito de Dionísio à projecção

no mar, na água, talvez em busca da própria imagem do humano: “It is the image of the

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53

ungraspable phantom of life…” (ibidem: 95). É este, cremos, um dos grandes mistérios

que rodeiam a relação do homem com o mar. Aliás, não será por acaso que um dos

poemas de O livro do nómada meu amigo, “Eros”, levanta precisamente a questão da

imagem: “Tomo de mim a parte que compete / À minha imagem […] Olho-a depois

como quem reflecte / N’água a face ignorada” (OP: 103).

Em Cinatti, percebe-se claramente que o mar é trabalhado sob vários pontos de

vista. Por um lado, podemos imediatamente associá-lo ao cenário épico. Nesta

colectânea, a épica está disseminada, não só através da presença de Vergílio, como

ainda na da sua personagem, Palinuro. Há ainda que ter em conta os ecos de Mensagem

ou a simpatia demonstrada por figuras já referidas, mais próximas do poeta no tempo.

Em “O fenómeno humano” encontramos um exemplo desta ligação a obras épicas

anteriores. “Não me deixa o mar omnipotente, / A terra inteira erguida ao céu

profundo.56

/ Cada passo da História me é presente. / Sou o compasso do mundo”

(ibidem: 110) É este, pensamos, um dos poemas em que mais explicitamente Cinatti se

coloca na esteira tanto de Camões e de Pessoa, como da tal linhagem de portugueses a

quem corre no sangue o apelo do “Longe”, próximo da dialéctica magistralmente

sugerida por “mar” / “terra” ou “céu profundo”. Trata-se de um ponto basilar da

História portuguesa, afinal bem presente na memória do épico se este quiser que a sua

obra tenha um fundo de verdade57

(Magalhães, 1989: 37) a suportá-la no

engrandecimento do herói. Aqui, este “eu” assume-se como o “compasso do mundo”,

ponto a partir do qual se define o rumo, a rota a traçar e a seguir.

Este herói, como todos os que povoam o universo épico, tem uma missão a

cumprir: “Olho em meu redor e vejo inacabado / O meu mundo melhor.” (“Linha de

rumo”, OP, 111) Esta parece ser igualmente a missão do poeta, que poderá estar aqui a

reclamar para si a função que muitos poetas reclamaram para a poesia ao longo do

século XX: a construção de um mundo melhor e de uma sociedade mais justa. Ainda no

mesmo poema, lemos: “Penso o futuro a haver. / E sigo deslumbrado o pensamento /

Que se descobre.” (idem). Tudo isto, pensamos, significa a assunção do destino

providencialista, não diríamos dos portugueses, mas daqueles portugueses que, como o

poeta, associam o descobrimento ao eu e a Deus. Neste caso, a linha de costa que ao

longe se avista e que deixa adivinhar o fim da viagem, pode ter vários significados: o

56 Veja-se a semelhança deste verso com o presente no poema “O Infante” da Mensagem: “[…] a terra

inteira surgir do azul profundo” (1997: 49). 57 “[…] E de novo a lição de Pound / (‘a epopeia é um poema que contém história’).

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descobrimento do mistério da vida, do mistério de Deus, a percepção do “nada” que é a

sua condição de homem. Porém, como afirma em “A Porta Estreita”: “[…] eu procuro

horizontes / Cerrados pela Promessa” (ibidem: 114). Poderemos associar esta procura à

ideia de que para lá do horizonte está outro horizonte e que, assim, esta viagem de

descoberta estará na maioria das vezes destinada ao fracasso, como se as coisas por

descobrir fossem grandiosas de mais para este Herói as desvendar. Aliás, este

despojamento é, talvez, um dos aspectos mais atraentes na forma como Cinatti aqui

trabalha o mar.

Na parte IV, de O livro do nómada meu amigo, intitulada “Sunt lachrimae

rerum…”58

- capítulo, aliás, dedicado a dois engenheiros que, como Cinatti,

desempenharam funções administrativas - veja-se como o mar contrasta com o sujeito:

“O mar tem fundos nus de areia fina / E poentes toldados pela neblina. / Eu não tenho

nada, / Vazio […]” (ibidem: 115). Numa clara relação com Camilo Pessanha ( “Vê-se o

fundo do mar, de areia fina…”, poema II de “Venus” (Pessanha, ano: 122), desenha-se o

mesmo ambiente: o sujeito está em frente ao mar e o seu olhar detém-se sobre os mais

pequenos elementos, no entanto, tal como acontece no poema de Pessanha, é para mais

longe que o olhar deriva, desviando-se do imediato: “[…]a vista sonda, reconstrue,

compara” (idem). Há, no poema “Venus”, uma distância imponderável entre o sujeito e

o navio, visível ainda, mas irremediavelmente irrecuperável, servindo apenas para

evocar “naufrágios, perdições, destroços” (idem). Em Cinatti, retoma-se este

sentimento, pautado pela melancolia, de que se transporta um passado sobre os ombros

e que, apesar de tudo, se tem de carregar sozinho. Esta expressão do vazio, do

despojamento, contrastando com a do fundo do mar, coberto por fundos arenosos, além

de ter muitos outros elementos nomeados ao longo do livro: “delfins”, “algas”, “Corais

limosos”, “vagas”, “velas”, “gaivotas”. Este elementos, alguns dos quais microscópicos

(como em Pessanha) são extremamente sugestivos, além de que aproximam o “eu” das

“figuras peregrinas” que povoam a obra: Alain Gerbault, Palinuro, Jesus e a todos

aqueles que, por uma razão ou outra sofrem de algo que por várias vezes é referido ao

longo do livro: o desterro ou o isolamento, numa “ausência / Que antecede os silêncios

da angústia” (p.115). Por isso, não entendamos o sentimento de desterro, de exílio ou de

distanciamento apenas como a súmula física de estar londe de tudo e de todos. Ele vai

58 Vergílio, Eneida, I, 462.

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para além disso, dado que ao longo da obra, tal como já acontecia em publicações

anteriores, vão surgindo imagens de desencanto.

O mar surge também como última morada. Não no sentido anti-épico, como na

epopeia camoniana, associado às lágrimas de um povo, mas como algo desejado, como

se só aí estivesse a paz prometida: “Sepultem-me no mar, longe de tudo” (poema), no

pedido a que se segue o nome do navegador francês, como se de uma assinatura se

tratasse. Este aspecto poderá servir para retomarmos a epígrafe de Antonio Machado:

“Érase de un marinero / que hizo un jardin junto al mar, / y se metió a jardinero. /

Estaba el jardin en flor, / y el jardinero se fué / por esos mares de Dios” (OP: 105). A

ironia reside na partida quando o jardim está no auge da sua beleza, querendo o poeta

talvez sugerir que o apelo desses tais “mares de Deus” se afigura irresistível.

Obviamente, não poderemos pensar só no sentido literal desta expressão. A partida que

esta epígrafe deixa adivinhar está em perfeita consonância com a parte II do livro, que

trata de algo espiritual também.

Em primeiro lugar, poderemos imediatamente retomar algo que já anteriormente

referimos – o impulso da partida. Este poderá ter origem na manifestação de

desconforto que inicia o poema “O Sonho”: “O peso da vida / Não sofre o afago da

alma.” (OP: 105). Desde logo, percebemos a oscilação entre “vida”, que remete para

algo mais físico, e “alma”, que nos leva em direcção ao interior, ao espírito. Está

subjacente, claro, a demanda pelos “mares desconhecidos” (idem) como fuga, como

tentativa de conquistar uma libertação que nem sempre é fácil e pela qual há um preço a

pagar. Esta fuga ao “peso da vida” (idem) é válida tanto para o aventureiro, que não se

enquadra nos esquemas formatados das sociedades comandadas por homens como “Os

de Alexandria”, como para o poeta. Aliás, se os identificarmos não estaremos a cometer

qualquer impropriedade. Mas esta partida, além de uma manifestação de irreverência,

poderá ser igualmente entendida como uma busca, um “ajuste de contas” do homem

consigo próprio, na tentativa de encontrar a beleza poética do mundo nas paisagens que

ficam para lá de um horizonte que não mostra, mas promete. No fundo fala-se aqui

daquele sujeito que afirma em “Natal”: “No muro da minha alma há uma fresta. / Por

ela entra o vento e a multidão / Das vozes e dos signos.” (ibidem: 104) Assim, este ser

permeável é aquele que persegue o conhecimento e a aventura, desperto para a

variedade das terras e dos seres. Esta limpidez do espírito, aliás, coaduna-se

perfeitamente com a da paisagem. E esta abertura é necessária porque há duas

peregrinações a fazer: “Paralelamente sigo dois caminhos / Abstracto na visão de um

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56

céu profundo.” (ibidem: 106) Esta referência aos dois caminhos abre lugar a uma

estratégia discursiva que resulta bem quando aquilo que se pretende é exprimir a opção,

como se esta figura se encontrasse numa encruzilhada. Este poema está, por isso, repleto

de antíteses e situações paradoxais. O mundo que se procura nem sempre é palpável,

pelo que será de ter em conta o que Ruy Belo (2002: 171) aponta, concordando com

Carlos Branco, como sendo as grandes temáticas da poesia de Cinatti: “Não ser deste

mundo, não estar neste mundo, não ser para este mundo.”59

. O próprio poeta dá conta

disso ao afirmar: “O melhor mundo / Está por descobrir.” (OP: 106), mas este mundo

que está por descobrir não se encontra através dos meios normais de navegação e de

orientação: “Não segue a lua / Nem o perfil da proa” (idem). Ao invés, temos uma

situação mais obscura: “Vai direito / Ao vago, incerto / Bater das velas sinalado e

oculto” (idem). Percebemos a razão disso quando lemos a manifestação de vontade do

poeta: “Quero-me mais dentro de mim, / Surto e alado […]”(idem). Por isso, esta

“Vigília”60

não está isenta de contradições. Aliás, parece ser com base nas antíteses que

podemos perceber as oscilações do sujeito, resultado talvez de hesitações, inconstâncias

ou até de desorientação. A ocorrência de expressões como “céu profundo”, “Nem um

nem outro”, “sinalado e oculto”, “surto e alado” exemplifica o “Ameno / Brincar de

almas verticais” (idem), cuja aparente desorientação embate na certeza de que o “melhor

mundo está por descobrir” (idem).

4.3. A ilha

Não são poucas as vezes que a ilha ou as ilhas surgem na poesia de Ruy Cinatti.

Basta percorrer a sua vasta bibliografia para vermos como faz sentido o epíteto de

“Coleccionador de Ilhas” que Luiz Fagundes Duarte lhe aplicou (1985: 12): os

arquipélagos de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e a ilha de Timor, são apenas alguns

dos locais que se interpuseram no seu rumo. Aliás, a poesia e a pessoa de Cinatti

parecem seguir um percurso curioso, quase poderíamos dizer contracorrente, na medida

em que, de forma um pouco contraditória, pelo que será interessante debruçarmo-nos

59 Ruy Belo, “Apontamentos sobre o nomadismo de Ruy Cinatti”, Na senda da poesia, pp. 170-177. 60 Esta “Vigília” evoca não só a de Palinuro, mas também a de Jesus Cristo, no horto das oliveiras. Esta

afigura-se simbólica pelo sentimento de solidão que sugere.

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57

um pouco sobre a presença deste elemento em O livro do nómada meu amigo, já que

nos parece surgir tendo em conta algumas das suas potencialidades sémicas.

Uma primeira referência poderá incidir na “Ilha” física, destino de chegada ou

de escala, ponto de terra isolado na imensidão do mar. Como Carlos Branco (1960)

anotou no seu ensaio “A poesia de Ruy Cinatti e o mistério da passagem”, esta não tem

necessariamente de corresponder a uma ilha em particular, basta que possa sugerir no

leitor o estado de espírito de um viajante atento aos sinais que denunciam o termo de

uma viagem solitária. Paradigmático neste aspecto é o poema “Ilha”: “Ave! / Prenúncio

de arvoredo” (OP: 106). Repare-se que a condensação discursiva é inversamente

proporcional às potencialidades de significado, pelo que este poema poderá ser

igualmente visto como um exemplo perfeito da depuração que a crítica reconhece à sua

poesia. Num dístico, o poeta resolve o que a tradição da arte de navegar registou ao

longo de tanto tempo. Era comum, durante as viagens, os vigias estarem atentos a

qualquer sinal que pudesse fazer adivinhar a presença próxima de terra, com a

exclamação a ilustrar o seu possível alerta. Também aqui isso é sugerido, com o

extraordinário efeito da antítese criada pela singularidade da ave a contrastar com a

abundância e a cerração, sugeridas pelo termo “arvoredo”.

No entanto, esta ilha, um pedaço de terra rodeado de água por todos os lados, é

um símbolo de solidão, que, como se depreende da leitura de alguns poemas, não tem

de ser necessariamente negativa. Esta é um dos motivos comuns nesta colectânea de

Cinatti, e que poderemos relacionar com vários aspectos. Um deles é o isolamento e a

distância que, desde o poema de Sophia, são sugeridos e, depois trabalhados em alguns

poemas, como “Amizade”, por exemplo, onde se lê: “Longe de tudo quanto amo, sonho

/ Amigos, longe, como foram dantes: / Vivos ainda / E em dor de mais um dia

separados” (ibidem:103). Em “Momento intemporal”, onde a solidão, inclusivamente,

surge desejada: “A solidão, e o que há de mais aberto: / Rosa por desfolhar, / Quero-a

eu agora – e ao largo vento / a roda dos sonhos confiar.” (idem) Ainda, visto que a

solidão poderá encontrar-se associada ao sentimento de melancolia que também

percorre os poemas de O livro do nómada meu amigo, leia-se “Natal” (ibidem: 104).

Este parece-nos o poema que melhor ilustra o sentimento do sujeito relativamente a algo

distante no tempo e, por isso, já inacessível. Com a linguagem a servir magistralmente

para sugerir esta distanciação, quer através do advérbio “Já”, ou do deíctico “aquele”,

quer através do jogo de tempos verbais que ilustram claramente a diferença entre um

passado povoado pelo “amor” ou pela experiência da “vida sonhada” e um presente já

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58

vítima da erosão do tempo: “Tudo se foi, pouco nos resta […]” (idem) e, de seguida, o

desalento: “[…] Ilhas não há” (idem). As ilhas, que, como sugere Peter Stilwell ao

referir-se a este poema, escrito em 1950, foram alvo do fascínio de Cinatti na juventude

(cf. 1995: 250-251), tempo em que a aventura ainda era alimentada pelo idealismo e

pela vitalidade, surgem agora apenas dentro de si e, claro, marcas de solidão,

sobrevivem apenas na memória. Porém, parece-nos igualmente pertinente ler este

poema em conjunto com o seguinte, “Destino” (OP: 104), Ambos os textos parecem

jogar com movimentos contrários sugeridos pela verticalidade ascendente da montanha

no caso de “Natal” e pela verticalidade descendente da profundidade de “Destino”. Se,

no caso do primeiro, a ilha que já se perdeu é agora substituída pelas “montanhas” que,

símbolos do contacto com a divindade e da solidez, no espírito se elevam em direcção a

algo que poderemos associar à transcendência, estádio que pede a depuração da solidão,

no segundo, o caminho percorrido faz-se no sentido inverso, retomando versos já

citados: “Quanto mais me aprofundo, / Mais longas praias avisto / E orlas marítimas

onde só a espuma / Tem a brancura nítida / Da verdade que evito” (idem). Este cenário,

que o sujeito, apesar da neblina ainda assim distingue após ter descido ao fundo de si, se

parece dar sequência ao conformismo com que encerra “Natal”, esbarra num “rochedo”

que trava a vontade, “Proa da vida”. “Destino” termina, assim, com a imagem pura do

despojamento do derrotado, joguete nas mãos de um fado que apelida de “implacável e

certo” (idem).

No fundo, o que está em causa em O livro do nómada meu amigo é a

peregrinação do poeta em busca de si próprio, daí que uma terceira implicação do

recurso ao motivo da ilha se prenda com a sequência lógica que podemos apontar aos

poemas que constituem a segunda parte do livro. A viagem pelos mares de Deus, como

sugere a epígrafe (ibidem: 105), retirada de um poema do poeta espanhol António

Machado, sonhada, não é linear. Há obstáculos com que o poeta não contava e, se na

primeira parte já não havia ilhas, elas voltam a surgir, mas estas são de outra estirpe. O

desconhecido encerra outros pontos de paragem que nem sempre abonam a favor do

projecto de viagem. Podia o poeta estar a referir-se, por exemplo, à dúvida ou à

incerteza, já anteriormente sugeridas. O sonho, no entanto, transforma-se na “Visão” de

uma viagem e o poeta, dedicando o texto a Alain Gerbault, parece aproximá-lo do

registo do diário de bordo: “Eu acordava / Entre aguaceiros límpidos. Pinhais, /

Pássaros, flores, penumbra e arcada de árvores / - Momento / Que ao de leve anotava”

(idem). Vai, ainda, dando conta do que é vivido ao longo do percurso, com a

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enumeração dos elementos apreendidos e, mais uma vez, temos então a solidão a surgir

como tópico dominante, não só coincidente com a opção do navegador, que a tomou

como projecto talvez em função da necessidade de isolamento que o assolou, mas

demonstrada até pelo verso quebrado “Eram ilhas” (idem):

Era o mar cheio de estrelas, Barcos partindo para não sei onde. Ondulações magnéticas, antenas, Ansiedade… Eram ilhas Hercúleas: coroas Vegetais sobrenadando […].

Tudo isto, culminando na intersecção de discursos, como o pedido que surge no poema

mesmo poema, entre parêntesis, em tom de última vontade: “(‘Sepultem-me no mar,

longe de tudo’)”, assinado: “Alain” (idem).

Esta viagem exige, tal como todas as outras, uma “Vigília”, atitude própria de

quem não quer perder o rumo, de quem precisa de estar atento ao “vago” e ao “incerto”.

A recompensa, chega na forma da “Ilha” e aí, agora que aportou nesse local sonhado,

paradisíaco, isolado, puro, reúnem-se as condições propícias à “Contemplação” (OP:

106), à “Meditação” (ibidem: 107). Tudo isto, em resposta a um “Secreto apelo”

(ibidem: 108) que, para todos os efeitos, faz ressurgir a crença num “Regresso eterno”

(idem). No fundo, depois de cumprido o itinerário de descoberta, as imagens que, nos

primeiros poemas, surgiam difusas, envoltas em neblina, regressam agora, renovadas

pela perseverança, pelo ardor do mistério e pela recuperação da “infância perdida”,

numa atitude de optimismo que os poemas anteriores não deixavam adivinhar.

4.4. O mistério

Ao afirmar em “Proclamação” que a “vida é toda mistério” (OP: 101), Ruy

Cinatti abre uma vez mais as portas da sua poesia ao universo do transcendente. A

procura, aliada ao constante impulso da partida e à consequente errância, dá-se através

de uma multiplicidade de caminhos possíveis que o próprio poeta, numa forma

aparentemente linear de lidar com esta demanda, reduz a dois. Estes dois caminhos que

“paralelamente” segue levam-no a afirmar também: “Abri caminhos mas não os

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60

cumpri” (ibidem: 108). Esta atitude espelha o que no ponto anterior havíamos referido

relativamente à expressividade das situações contraditórias ou paradoxais. Esta é outra

dessas formulações que, só por si, lançam o mistério sobre os sentidos possíveis das

palavras do poeta. Como se abre um caminho sem o haver cumprido? Talvez a resposta

esteja no poema “Os Trabalhos e os Dias”, evocando claramente a expressão de

Hesíodo, que partilha com este “nómada” essa antiga “arte oculta / de colunas partidas e

mistério […]” (OP: 107). Em primeiro lugar, temos a consciência, da décalage existente

entre “sonho” e “acto”, separados, segundo o poeta, por um “rio fundo”. Por outro lado,

temos a fragmentação, aqui símbolo da sua condição de cidadão de nulle part, que o

impede de atingir a unidade que eventualmente o colocaria na via certa. Por fim, o

“vento” que, ao soprar, afasta de si a “imagem que soluça / E lentamente se afasta na

distância / Inconquistável, carregada de âncoras” (OP: 108). Esta imagem, trémula e

fugaz, não contribui grandemente para a obtenção da unidade ansiada, até porque em

“Regresso Eterno” assalta-nos a sensação de que o poeta associa esta imagem à que

privilegiadamente acompanha todo o seu itinerário poético: a mãe, como já vimos. Se

retivermos a ideia já anteriormente trabalhada do jardim que recupera os tempos da

infância, facilmente percebemos a referência às “folhas que caem e distraem / O sentido

interior” (OP: 109), entretido “Pela vivência de um corpo em cuja essência / A terra

inteira vibra […]” (idem). Num crescendo, através de elementos vários que sugerem o

cumprimento de uma caminhada, o poeta vai perdendo mundos e ganhando outros,

como se a curvatura da terra , que se vai percorrendo, deixasse sempre em aberto uma

nova paisagem que se ganha para logo se perder. A noite, simultaneamente, lugar de

“terror” e de apaziguamento (“E a noite se desfaz / Em altos silêncios puros”), (idem)

poderia, eventualmente esbater as memórias: “Mas nada impede o renascer da imagem,

/ A infância perdida, reavida, / Nuns olhos vagabundos debruçados, / Junto a um regato

que sem cessar murmura.” (idem) Se anteriormente já havíamos visto que é através da

figura materna que o poeta se sente transportado para fora deste mundo, agora ficamos

com mais uma prova da relevância que esse distanciamento adquire na poesia de Cinatti

e nessa sua atitude inquieta de quem vive apaixonadamente a tensão entre aquilo que

aquele Deus que “sobre todos paira” (ibidem: 110) legou à insignificante condição

humana e entre aquilo que está nas mãos do homem fazer para contornar essa mesma

pequenez. É igualmente por esta razão que o poeta expressa a própria divindade que os

homens em si carregam, potenciadores do “Eterno” e da “Totalidade”. Duas das

expressões deste desencanto são a solidão e o silêncio, que acabam por se associar ao

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poderoso magnetismo de “um léxico carregado de flora e de fauna, dos costumes e da

história, do trabalho e da imaginação de um espaço que […] ascende a uma realidade

superior: a do símbolo.” (Magalhães, 1981: 46) Ora, alguns dos símbolos recorrentes na

poesia de Cinatti são os que têm a ver com a passagem ou com o Tempo: “a ave no ar

claro” (OP: 101), “um barco no rio” (ibidem: 102), os “patos bravos” (idem), a “rosa

prometida” (ibidem: 108), o “regato” (ibidem: 109), o “vento” (ibidem: 114), o “mundo

/ Ora fluxo-refluxo, ora imutável” (ibidem: 116).

Este problema da passagem associada ao mistério foi trabalhado de forma

magistral por Carlos Branco (1960), autor que, partindo dos pressupostos da filosofia

existencial acaba por lançar fundamentos imprescindíveis para compreendermos muitos

dos problemas em torno dos quais a poesia de Ruy Cinatti gravita. Segundo este autor,

se por um lado o mistério pode fazer crer num radical afastamento do real, por outro, há

que ter sempre presente a ideia de que o que ultrapassa o real é desse mesmo real que

parte:

Mas, se essa zona da realidade de onde e para onde somos está sempre presente na poesia de Cinatti, ela está também, sempre, muito longe, porque é neste mundo que

apreendemos que não somos dele e não somos para ele e é da passagem por este

mundo que a poesia de Cinatti dá sobretudo testemunho (Branco, 1960: 97) 61

.

Assim sendo, faz sentido que, para Cinatti, a vida seja toda mistério, porque é ao longo

dela que os segredos da relação homem / mundo vão sendo revelados. Se não forem,

pelo menos fica a eterna busca de respostas que dá sentido à existência, como se não ter

acesso à claridade total fosse até uma forma de continuar a dar interesse à sua passagem

pela Terra. Como o próprio deixa ainda sugerido em “Regresso Eterno”, se, numa outra

leitura, entendermos o poema como uma reflexão sobre a Poesia, esse “corpo em cuja

essência / A terra inteira vibra / E a noite de estrelas premedita”, essa “ideia” em que

“Tudo é possível porque a vida dura”. Além disso, através da palavra poética, mundos

são construídos e visitados permanentemente, podendo esses constituir uma alternativa

ao mundo real, logo, salutar, diríamos. Por isso, o nómada afirma taxativamente: “É por

eles que os meus passos não param. / E é por eles que o mistério se incendeia” (OP:

108-109).

61 Ruy Belo, em Apontamentos sobre o nomadismo de Ruy Cinatti, refere-se a este autor nos seguintes

termos: “E, em qualquer das duas primeiras obras de Cinatti, os grandes temas são, como perspicazmente

notou Carlos Branco: ‘o não ser deste mundo, o estar neste mundo e o não ser para este mundo’ (2002:

171).

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62

3.6. Solidão e fraternidade

Já apontámos ao poeta-nómada, em “escala de partida” (OP: 156) ou não, os

impulsos da inquietação e da errância, quer no que diz respeito a opções de vida,

atitudes e percursos, quer no que concerne a material artístico. Não é raro encontrarmos

a figura do poeta associada à itinerância, mas o seu perfil ainda não está completo. O

nómada, o que não tem morada fixa, aos olhos do sedentário é um marginal. É alguém

que não se enquadra no estreito limite que um mundo crescentemente sedentário,

impessoal e individualista tem vindo a impor. Ele não se ajusta a códigos sociais ou

políticos. O seu grupo, se quisermos colocar a questão nestes termos e desviar-nos do

indivíduo, está sempre à margem. É sempre o conjunto que fica às portas da Cidade e

que é alvo da desconfiança dos cidadãos. Leis, normas e valores são ditados

internamente e determinam atitudes em relação ao exterior do grupo bastante diversas.

Quer nos refiramos ao nómada propriamente dito, ou, metaforicamente, ao poeta, é

válido associá-los à memória que carregam e que passam de geração em geração, quer à

sua funcionalidade entre os seus pares, como se só os membros de um mesmo grupo

compreendessem o código que os une ou aproxima. Além disto, se o nómada se isola

por recusar fixar-se, também acaba por ser aquele que, por natureza, adquire a tendência

para a tolerância universal; viajante, seja por opção ou por necessidade, ele é o que tem

de se adaptar a tudo e a todos, daí que seja também mais permeável ao outro, ao

convívio, à partilha. O nómada recebe quando passa e deixa quando parte.

Cinatti, em quem muitos62

apontaram o apelo do nomadismo, solidário com o

seu “amigo”, em quem prolonga a sua necessidade de partida e de viagem, não deve ter

sido alheio ao que acima expusemos acerca desta figura que, afinal, tão cara lhe foi ao

longo do seu percurso poético.

Avançando para a ponte que estabelecemos entre o nómada e o poeta, solitários

seres, inadaptados e por vezes votados à incompreensão, atentemos, por exemplo, nas

palavras de José Lins do Rego:

O poeta pode ser uma criatura solitária, recolhido à vida interior, fora das aparências

e dos conselhos dos homens, e ser a gente que mais sente e mais vibra pelas dores do

mundo. Pode ele parecer um lunático, um ser afastado da terra, e, no entanto, está

como ninguém preso ao povo, íntimo de sua gente, como carne e espírito dos esquecidos, dos pobres, dos ricos, dos sábios dos ignorantes (Lins do Rego, 1954:

131).

62 Referimo-nos a José Blanc de Portugal, Alberto de Lacerda, Jorge de Sena, Ruy Belo, Manuel A. da

Silva Ribeiro, Joaquim Manuel Magalhães, Luiz Fagundes Duarte, Jorge Fazenda Lourenço

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63

Como poucos, soube este nómada pôr em prática este sentimento de fraternidade

que ressalta das palavras do autor brasileiro. Porém, por paradoxais que estas palavras

possam parecer, na medida em que apenas em parte têm a ver com a condição nómada

do poeta, acabam por suscitar uma questão: como pode um ser intrinsecamente errante

estar preso ao povo ou intrinsecamente solitário ser íntimo da sua gente? A resposta

poderá estar precisamente no sincretismo que o define: o seu povo é a humanidade e a

sua terra é o mundo. A poesia de Cinatti é o exemplo do que acabámos de transcrever,

aliás, Jorge Fazenda Lourenço no posfácio a Archaeologia ad usum animae, foi sensível

a isto reconhecendo que no poema “Ética poética” se encontra expresso o “princípio da

solidariedade”, comentando de seguida: “Solidariedade e convivialidade que parecem

estar em contradição com o carácter solitário do nomadismo” (2000: 165). Como

poucos, soube este nómada pôr em prática este sentimento de fraternidade que ressalta

das palavras do autor brasileiro.

Oscilando entre o universalismo e a representação da vida íntima do sujeito, a

poesia cinattiana conta, assim, com a presença de uma figura, já aqui trabalhada, que

poderemos tomar como outro dos aspectos em que o poeta procura a unidade interna da

sua criação poética. Parece passar-se tudo como se a resposta para a solidão que

atravessa poesia e poeta estivesse na criação da tal persona, o amigo que da publicação

inaugural até às mais recentes de Cinatti nelas marca presença através de apóstrofes e

reflexões. Poderemos mesmo dizer que além do nomadismo, a fraternidade ressalta

como um dos centros de que se alimenta a figura poética de Cinatti e do seu “nómada

amigo”.

É solitário que este sujeito poderá, por exemplo, cumprir o desígnio de não ser

apenas mais um escritor, que Cinatti postulara em “Metamorfoses de uma gaivota”. Já

nessa altura, cronologicamente distante de O livro do nómada meu amigo, o autor via,

como hipótese de fuga à impossibilidade de escrever, a introspecção, numa atitude que,

ao longo do seu itinerário poético, parece ter dado excelentes frutos e que, de novo, vem

ilustrar o que anteriormente afirmámos acerca da tensão entre “exterior” e “interior”:

[…] irei pelos barcos, pelas escadas e montes. Talvez então compreenda e me seja

possível aprender a paisagem e a natureza dos homens; aquilo que eles revelam de

limpo e são[,] apesar toda a miséria e descrença (1942: 3).

Poemas como “Amizade” (OP: 103), “Momento intemporal” (idem), “Sinal dos

tempos” (idem: 110), “Exorcismo” (ibidem: 111), “Linha de rumo” (idem), “Sunt

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64

lachrimae rerum…” (poemas 1, 3; p. 115 e 116, respectivamente), demonstram de

forma clara este sentimento de isolamento, que ora surge mais difícil de suportar

(“Desterrado, / Desterrado prossigo. / E sonho-me sem Pátria e sem Amigos” (idem),

ora menos (“A solidão […] / Quero-a eu agora”(ibidem: 103). O sujeito procura sempre

compensar esse isolamento, tornando fisicamente presentes aqueles que estão longe e

adoptando uma postura de fraternidade universal que está patente logo no primeiro

poema de O livor do nómada meu amigo, “Proclamação” (ibidem: 101). Assumindo-se

aqui o “nómada” como alguém que “largamente se deu” (idem). Além disto, não perde

de vista, em momento algum, aqueles a quem dedica a parte IV (ibidem: 115 a 118) ou

um poema da parte IV, “História pessoal” (ibidem: 117-118) (José Cabral), que tem

como epígrafe uma citação de Paul Éluard, outra grande influência em Cinatti e que traz

para a obra a temática da fidelidade, que poderá estar relacionada com a entrega a uma

missão e a uma causa em nome da pátria. Tal como estes homens a quem vários poemas

são dedicados, o nosso “nómada”, “empreiteiro do mundo” (idem), empreende uma

viagem que se reveste de uma simbologia muito própria se tivermos em conta o que

afirma no poema 2 da parte IV: “Caminho, mas tropeço” (ibidem: 116). Isto recorda-nos

as viagens dos heróis intemporais que, antes de chegarem ao fim, lhes colocavam toda

uma série de peripécias para pôr à prova capacidades como a persistência, a destreza, a

astúcia, a coragem, mas a recordarem-nos, igualmente, a figura de Jesus Cristo, que

caminhou e tropeçou, carregando aos ombros uma responsabilidade que assumiu, e que,

lembrando a ananké clássica, aceitou estoicamente um destino imposto. Tal como estes

homens, “Cumpriu o seu dever de lábios mudos” (ibidem: 117).

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65

III

O ITINERÁRIO DO “NÓMADA AMIGO”

PROFECIA

Uma figura por ti inventada,

decerto – memória ou começo.

De quem falas tu? De ti? De nada?

De um amor só teu que não conheço?

A tua teimosia é desvairada.

Viveste, morrerás como nesceste,

nu, em praia abandonada - o corpo devorado,

a alma ao lado numa alga seca.

Ruy Cinatti

63

1. O “nómada amigo” na poesia de Ruy cinatti

O percurso desta figura não termina, como em capítulo anterior se observou, com a

publicação de 1958, o que nos leva a entendê-la como um dos núcleos em torno dos

quais gravita a poesia de Cinatti. Não nos parece relevante determinar aqui se esse

centro é a memória materna, a “errância sonhadora” (Manuel A. Silva Ribeiro, 1995:

309), o ambiente ultramarino, a “esperança destriunfalizada” (idem) ou o trilho que o

conduz a Deus, o que não caberia no âmbito da presente dissertação. Apesar de tudo,

poderemos reconhecer que esta é uma poesia que respira graças a todos estes impulsos.

Interessa-nos, sim, ver até que ponto o “nómada amigo” parece gozar de uma saudável

longevidade que leva o poeta a revisitá-lo ou a convocá-lo sempre que necessário.

Retomando Ana Hatherly, atentemos desta feita no que afirma em relação a

Cinatti. A autora refere-se à poesia deste “nómada experiente” (1981: 14) como sendo

“sedutora e elegantemente desconcertante”, completando a apreciação nos seguintes

termos:

63 Archaeologia ad usum animae, prefácio de Jorge Fazenda Lourenço, Editorial Presença, Lisboa, 2000,

p. 44.

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66

Assim, a única afirmação que talvez se possa fazer com alguma segurança será que esta

poesia, pela sua polivalência, negatividade, culto da evasão, erotismo e prazer da

escrita, é realmente moderna (idem).

Tais palavras são extensíveis a toda a produção poética de Ruy Cinatti, mas, dado que

estamos a tratar das colectâneas em que explicitamente intervém o “nómada amigo”,

atentemos ainda na forma como a autora lê 56 poemas e coloca esta obra de 1981 na

esteira da publicação de 1958 através da evocação de Palinuro e de Sinbad. Ana

Hatherly autora associa-os não só à persona “nómada”, mas também ao próprio Cinatti

– “o poeta é o eterno viajante”, “regressa simplesmente à pátria, retirando-se da vida de

aventura e passando a desfrutar uma existência que tem algo a ver com a aurea

mediocritas” (idem). No entanto, relevante para o que queremos demonstrar através do

nómada amigo é o facto de concluir que esta “dupla persona”, visível na poesia de Ruy

Cinatti, revela “uma mensagem de aventura e sabedoria” (idem). Porém, estes

elementos, que constituem um tópico antigo no percurso de amadurecimento do Herói,

surgem mesclados de “desespero e luta” (idem), que o poeta assume “com um sorriso

excepcionalmente pouco português” (idem) .

Aquando da publicação de OP, numa evocação do Jornal de Letras, de 20 de

Outubro de 1992 (com a colaboração de Fernando Guimarães, João Rui de Sousa e José

Blanc de Portugal), deparamos com o epíteto “nómada nosso amigo”, aplicado a Ruy

Cinatti. Mais uma vez sobressai a sua “vocação deambulatória” (J. Rui de Sousa, 1992:

16) que, segundo o crítico terá de ser considerada num duplo sentido: “no de uma

irrequietude que repercute, tematicamente, a variadíssima experiência de vida do autor;

e no de uma irrequietude que atinge a própria formulação da sua escrita, as suas

propostas estilísticas” (ibidem: 17). Mas há que ser cuidadoso na aplicação do termo a

Cinatti. Peter Stilwell foi sensível a isto ao observar que “Cinatti recorre por vezes à

expressão “vagabundo” para referir a sua condição de poeta, mas nunca aplica

directamente a si próprio a palavra “nómada” (Stilwell, 1995: 235). Talvez para criar

nos leitores - e porque não em si próprio - a vincada consciência de uma instância cuja

existência é materializada pelo poeta no início, por exemplo, de um poema como

“Didáctica”: “Do indivíduo que em mim vive / ao indivíduo que em mim mora /

dividido entre pessoa e / máscara […]” (Cinatti, 2000: 15). Isto para nos referirmos a

um poema mais tardio do percurso poético, dado que em relação a poemas anteriores já

realizámos esse levantamento no início do capítulo anterior.

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67

Assumida que está a presença assídua desta persona, poderemos então dizer que a

mesma ressurge em Uma sequência timorense (1970), Paisagens timorenses com vultos

(1974)64

, bem como nas duas publicações póstumas Corpo-Alma (org. em finais dos

anos 60 e publicada em 1994 ) e Um cancioneiro para Timor (org. em 1968 e publicada

em 1996). Mas vejamos cada uma individualmente 65

.

1.1. Corpo-Alma (1994)

No prefácio a esta colectânea, póstuma, Peter Stilwell refere-se ao facto de

haver, entre a “abundância de textos, cartas e documentos […] mais de uma dezena de

obras inéditas, organizadas por Cinatti para publicação” (1994: 9), apontando esta como

a mais antiga delas, dado que a sua organização terá ocorrido entre 1966 e 1969. Esta

hipótese assenta em critérios temáticos, entendendo-a o prefaciador condicente com

“reavaliação a que Cinatti sujeitou a sua vida” (ibidem: 10) entre estas duas datas. No

poema “Eterno Retorno” pode ler-se: “Assim, o clamor, murmúrio ou sede / quando

escrevia: / anoitecendo a vida recomeça.” (ibidem: 20), poema que termina

sugestivamente: “Anoitecendo, a vida começava. / Hoje, como outrora, principia”

(ibidem: 21). No poema seguinte, “Anunciação”, assistimos à revisitação das três

primeiras obras publicadas por Cinatti (Stilwell, 1994: 13).

No mesmo poema, o título da obra inaugural, Nós não somos deste mundo

ocorre três vezes como monóstico, o mesmo acontecendo com o título da sua segunda

colectânea publicada, que apenas surge uma vez, mas interessante é a forma como

Cinatti encerra o poema: “Só, intranquilo, pela vereda, desce / o nómada meu amigo”

(ibidem: 23). Desta forma, o “nómada” é agora claramente descrito através dos

adjectivos “só” e “intranquilo”, epítetos que, como sobejamente vimos anteriormente,

não são descabidos. Esta colectânea encerra passagens de extrema importância para

percebermos como, nestes anos (1966-1969), Cinatti se posicionava relativamente à

poesia. Em primeiro lugar, em “Verificação”, há um assumir claro do ofício de poeta,

64 Tal como já tinha acontecido com O livro do nómada meu amigo (1958), consultámos as primeiras

edições de Uma sequência timorense (1970) e de Paisagens timorenses com vultos (1974), mais uma vez,

demos conta de pequenas questões de pormenor que não foram tidos em conta na Obra Poética. 65 A ordem segundo a qual se procede à abordagem das obras mencionadas não se prende com a data da

sua publicação, mas sim com a da organização das colectâneas, como acima se clarifica.

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68

com um balanço a ser feito, desde os tempos em que os “versos / vinham timoratos,

como preguiçosos” (1994: 25).

Há que colocarmos de lado as contingências políticas, internas e externas, neste

livro bastante presentes, aliás, e virar a nossa atenção para o Cinatti escritor. É o próprio

poeta quem o faz ao escrever no poema “Verificação”: “Neguei carreiras políticas / para

me dedicar à poesia” (idem: 25). Se na publicação de 1958 apenas se podia adivinhar a

associação do “nómada” com o poeta, aqui ela é evidente, cultivada até. Tudo parece

acontecer como se Cinatti, através da revisitação da obra poética anterior aos últimos

anos da década de 60, se quisesse assumir definitivamente como poeta, não querendo

mesmo que reste qualquer dúvida sobre isso, como podemos ler em “Verificação”:

“Que sou poeta já ninguém o nega” (idem). O poeta embarca depois numa revisitação

das opções tomadas, como se lê nos versos “Neguei carreiras políticas / para me dedicar

à poesia” (idem). Vida e obra surgem assim equacionadas: “Nunca mais soube / o que

era ter sossego. / A maresia das ondas, a ventania / dos montes mais altos, decidiram / a

minha condição. / Mas não me queixo…” (ibidem: 25-26). O sacrifício do sossego, que

à partida poderá parecer negativo, acaba por ser aceite pelo sujeito, que parece entendê-

lo como uma prova a passar em troca de algum valor mais alto. Todo o livro parece

confirmá-lo: é a alma do nómada no corpo do poeta e o aceitar incondicional da

inquietação, entendida como algo não intrínseco, mas que deriva da entrega à poesia.

Esta entrega, que considera “Fatal!”, embora com uma certa dose de orgulho, garantiu-

lhe o desassossego, numa clara relação entre poesia e inquietação.

Ao contrário do que viria a acontecer com Uma sequência timorense ou

Paisagens timorenses com vultos, que a seu tempo abordaremos, em Corpo-Alma

parece evidente a revisitação das primeiras obras, embora agora com um pendor mais

ontológico, em que podemos reconhecer o cunho da maturidade. Em última instância, é

como se estivéssemos perante um “Livro de Horas”, em que tem lugar um encontro do

sujeito consigo próprio. Retomando a expressão bíblica que já figurara no final da

colectânea de 1958, “Consummatum est” (Cinatti, 1994: 85), palavras de Cristo na cruz,

o poeta apropria-se delas e da própria cruz, “assombrado” e assumindo para si a culpa

pelo “pecado” e pela “blasfémia”. Mais uma vez, também, sente-se a solidão, vincada

pela primeira pessoa verbal: “[…] eu me consumo” (idem), outro dos grandes motivos

da poesia de Ruy Cinatti.

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69

1.2. Um Cancioneiro para Timor (1996)66

Este surge como o mais etnográfico dos livros de Ruy Cinatti dedicados a

Timor. Publicado pela Editorial Presença, igualmente a título póstumo, Um Cancioneiro

para Timor67

foi, segundo as palavras do próprio autor num texto de 1980, “completado

em 1968 e apresentado no mesmo ano a concurso dos prémios da então Agência Geral

do Ultramar” (Cinatti, 1996: 7). Acrescenta o mesmo que o livro não foi publicado na

altura devido a “circunstâncias adversas” (idem). Mais uma vez, é Peter Stilwell,

profundo conhecedor do espólio do poeta e das condições em que este foi produzindo as

suas colectâneas que, na preciosa “Nota sobre o texto” (ibidem: 133-135), nos fornece

dados importantes para compreendermos a génese deste Cancioneiro. Salientamos a

existência de duas versões, uma em que a data indicada é 1968 e uma outra versão em

que surge a indicação “Laboratório Nacional de Investigação Científica Tropical /

Lisboa 1980”, de onde se podem retirar as conclusões que Peter Stilwell dá conta (cf.

ibidem: 134).

No prefácio, da autoria de Jorge Dias (1996: 9-11), acedemos ao percurso

científico e poético de Cinatti e vemos como ponto alto da sua evolução de “puro poeta

lírico” (ibidem: 9) para um poeta mais completo, aquele que a determinada altura

conseguiu transpor a “barreira do eu” (idem). A paisagem e a “disciplina das ciências

naturais” (ibidem: 10) permitiram-lhe ser objectivo sem cair “nas abstracções pobres e

banais” (idem).

Por sua vez, na introdução, texto da autoria de Cinatti, o “nómada amigo” é alvo

de um tratamento curioso. As palavras que abrem o texto que Cinatti intitulou

“Principio” são: “O timorense meu amigo ensinou-me muitas coisas” (1996: 19),

observação que se encontra muito próxima do título da colectânea de 1958. À medida

que vamos acompanhando a exposição, percebemos que o timorense vai ganhando

estatuto e passando a “símbolo de gentes exóticas; abstracção humanística, corpo e alma

[…]” (ibidem: 21), pelo que, a partir desta identificação, o “timorense” passa a ser

66 Aconselha-se a leitura da recensão a Corpo – Alma, Tempo da cidade, Um cancioneiro para Timor e

Archaeologia ad usum animae, intitulada “Cinatti póstumo”, da autoria de Joana Matos Frias, publicada

na Revista Colóquio/Letras, n.º 161/162, Jul. 2002, p. 371-377. 67 Um Cancioneiro para Timor conta com um prefácio de Jorge Dias, nota sobre o texto de Peter Stilwell, poema de João Barreto, fotos e uma longa introdução de Ruy Cinatti, onde se torna clara a indicação que

já tinha veiculado em “Timor – páginas de um diário poético” (1948: s/ paginação): “Julguei que, sendo

aquela a mais distante e a menos conhecida das terras do nosso Império, todos os que por lá andaram, e

porventura a sentiram e amaram como eu, se não podiam furtar ao dever nacional de contar à Metrópole

um pouco do que sabem a respeito de Timor”.

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70

“Timorense” (idem). A diferença gráfica acompanha a diferença de estatuto, além de

que, para terminar, afirma o poeta: “Iguais e diferentes do amigo que eu escolhera para

modelo, só os Timorenses, na ilha de Timor” (idem). A asserção é sugestiva explícita: a

criação da figura do “nómada amigo” não é gratuita em Cinatti. Mais do que um

companheiro de viagem, mais do que um alter ego, este é uma figura tutelar, um

modelo de conduta que faz com que seja veículo de aprendizagem, de amadurecimento

e até de estímulo à acção.68

Mais uma vez, tal como já tivémos oportunidade de observar no capítulo II da

presente dissertação, em textos de Cinatti ainda dos anos 30, o surgimento desta figura

reveste-se de contornos quase místicos, é uma visão, mas, mais importante do que isso,

são os efeitos que exerce sobre si: é-lhe simpática, mas simultaneamente aterradora, traz

serenidade, mas é arrebatadora. Em Um cancioneiro para Timor, voltamos a encontrar a

mesma exaltação no contacto com esta figura (1996: 57):

Foi numa tarde de surda disposição, quando, abandonado, levantava mais alto a

parede que me escondia o meu ser verdadeiro. O timorense meu amigo atravessou os

vidros da janela, abriu-lhe as portas de par em par e obrigou-me a um exame inesperado. Eu mal pudera precaver-me, disfarçar a surpresa, desinibir o embaraço.

Ele colocava-me entre a espada e a parede, dialogando numa linguagem secreta,

ameaçando-me com torturas sem nome. Sorria, afeito, senhor do meu destino. A

espada tinha o gume afiado e eram reluzentes as pulseiras; o disco de ouro no peito acobreado dardejava ardente como um sol. Eu traduzia perguntas e respostas, como se

dialogasse comigo. E dava por finda uma discussão que, sozinho, jamais teria fim

enquanto ele tirava o pano do ombro e o estendia no chão.

A interlocução transcrita vem depois a perceber-se, passa-se na intimidade de uma casa

sobranceira ao rio que desagua em Lisboa: “Debrucei-me então da janela e acenei às

barcas que tinha mandado lavrar. Como outrora, desciam o Tejo”69

(ibidem: 67).

A terminar o percurso desta figura basilar na poesia de Cinatti, resta-nos ainda

uma última identificação. A fechar o texto inicial, intitulado “Fim”, lê-se: “O timorense

meu amigo, agora João Barreto, foi à tropa e os tropeiros – alferes e tenentes – gostaram

dele porque era poeta. […] Como tantos outros timorenses, deveria ter o dom da

ubiquidade. Regressado a Lisboa, publiquei o seu poema e enviei-lho. […] Que o seu

poema, agora republicado, ampare a homenagem que lhe presto neste cancioneiro – a

68 A poesia, em Cinatti, parece igualmente surgir como um meio de agir, o que está de acordo, por

exemplo, com o perfil do inquieto, já mencionado. É a palavra feita acção. Stilwell anota, na sua obra, a

atracção que Cinatti nutria pela obra de Claudel (1995: 243), autor que afirmou, partindo da etimologia do

termo: “Et le domaine propre de l’art et de la poésie est, comme ce dernier mot l’indique, de faire” (Não

nos foi possível indicar esta referência bibliográfica, por ter sido anotada de passagem, sem havermos

precisado a origem. Aplicamo-la aqui por considerarmos pertinente para ilustrar o argumento). 69 Poderemos aqui evocar as “barcas” de João Zorro, através de Fiama Hasse Pais Brandão e do seu

poema “Barcas novas”, de 1967.

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ele e a todos os outros timorenses em cuja figura elegi o modelo de amigo; que estes

meus versos possam ser lidos por ele, esteja onde estiver e haja o que houver, é o desejo

veemente de quem não deixará de clamar, jamais, mas em vão – Barreto, poeta,

timorense, meu amigo!” (idem).

Retenham-se, na citação transcrita, as palavras “esteja onde estiver”, relembrem-

se as palavras iniciais do poema de Sophia que abre O livro do nómada meu amigo,

dedicadas ao “que partiu” e que, por condição, se encontra algures. Mais uma vez,

mesmo em obras distantes no tempo, o universo evocado é o mesmo: a partida, o lugar

incerto, a ausência, o isolamento. É importante, ainda, parece-nos referir a sensibilidade

que Cinatti reconhece a este “Nómada” seu amigo: vê poesia na exuberância da

natureza, na lealdade das gentes, no carácter genuíno e puro das crenças, nas “dansas”

(Cinatti, 1996: 37), nos rituais, na solidariedade, na saudável convivência entre sagrado

e profano. Não espelhará isto, também, a forma como Cinatti habitava poeticamente o

mundo, o seu mundo? Nem sempre esta questão é assim tão linear. São muitas as

barreiras que se interpõem entre as almas sensíveis e o mundo. No caso de Cinatti, isto

parece ter exercido a sua influência na poesia que produziu e até na forma como

apreendeu e filtrou certas experiências e desafios que a vida lhe foi colocando. E assim,

tal como o herói épico surge em alturas de crise, também o “Nómada Amigo" o fez nos

momentos em que o poeta dele mais precisou.

1.3. Uma sequência timorense (1970)

Desde logo, oferece-se-nos dizer que o título é interessante por duas razões: por

um lado, poderá aludir ao facto de o poeta querer afirmar a continuidade em relação ao

seu primeiro livro sobre Timor, como se de uma sequela se tratasse; por outro lado,

poderá remeter para a sequência de poemas que nele vamos encontrar, uma colectânea

de textos sobre Timor. Na “Justificação”, texto datado de 1969, fica clara a marca

indelével que aquele arquipélago longínquo em si deixou. Os poemas, tal como afirma o

próprio, “pertencem a Timor” e, além disso, “testemunham experiências de vida que,

embora passadas, ainda não deixaram de se fazer sentir com a aparência do que é

actual” (Cinatti, 1992: 257).

A questão da continuidade fica imediatamente demonstrada em nota do

organizador da edição de OP (Fernando Pinto do Amaral), onde ficamos a saber que os

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poemas da primeira parte já figuravam em O livro do nómada meu amigo. Isso levara

Cinatti a intitular a publicação de 1970 “Os poemas timorenses do nómada meu amigo”,

acompanhando-a da mesma epígrafe com que abrira a segunda parte da colectânea de

1958. Fica deste modo assegurada, de alguma forma, a sequência temática e o estado de

espírito que habitou o poeta, ao longo das suas duas primeiras estadias em Timor, que

ele explica, afirmando: “esses poemas representam o deslumbramento dos meus

primeiros passos na ilha, o manuseamento subjectivo da sua paisagem, o encontro total,

culminado em “Regresso Eterno”, experiência pouco menos do que mística, segundo os

entendidos” (idem).

Além disso, tal como observámos em relação a O livro do nómada meu amigo, a

dedicatória vem corroborar a tese da homenagem sentida “a todos os metropolitanos

amigos – portugueses que entre 1946 e 1966 comparticiparam nesta experiência e

lutaram por um Timor ainda não realizado” (ibidem: 259).

Um outro aspecto relevante é que, a partir deste livro, poderemos perspectivar

não só a sequencialidade em relação ao que está para trás, mas também em relação ao

que ainda estava (e está) por cumprir, como Timor, tal como se afirmou acima. Em

relação a este livro, afirma Cinatti: “as três partes devem finalmente ser consideradas

aspectos integradores de uma visão que pressupõe desenvolvimento” (ibidem: 258), que

o poeta encara como um contributo pessoal que vem cumprir um desejo já antigo: dar a

conhecer Timor, esperar que outros artistas por ele se interessem e, simultaneamente,

homenagear essa terra e essas gentes que tanto lhe deram e a quem ele tanto deu:

Que essa meditação, ou visão poética, aumente em amplitude e profundeza, seja

simultaneamente pensamento e acção, é desejo meu, a minha recompensa não só para

mim, também para outros poetas que, em Timor, venham a descobrir vocação até em campos de expressão não literária (idem).

70

Esta colectânea, que no que diz respeito ao “nómada amigo”, surge na sequência

de O livro do nómada meu amigo, introduz um dado novo. Em 1958, Cinatti quis dar

conta das marcas impressas interiormente pela estadia em Timor, o que o levou a uma

expressão poética mais intimista e à realização do já anotado aprofundamento, o facto é

que o território não surge de forma clara nos poemas que lhe dão corpo. Aí o poeta,

poderá ter iniciado o seu projecto de dar a conhecer Timor aos metropolitanos, mas

70 Em relação a esta questão da “apropriação recíproca de temas e formas” (Belo, 1984: 18), Ruy Belo, na

“Entrevista 1”, refere: “Ainda o ano passado se assistiu em Lisboa à primeira audição da cantata para voz

solista e orquestra Regresso Eterno, de Filipe Pires, inspirada num poema com o mesmo título, da autoria

de Ruy Cinatti” (ibidem: 18-19).

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sentiu a urgência de, primeiro, lhes dar a conhecer o homem que a então colónia

ultramarina fez dele. Ao invés, neste livro de 1970, o olhar do poeta já recai sobre as

belezas de Timor e sobre os seus problemas também, o que reitera a forma como abre a

“Justificação”: “Os poemas desta colectânea pertencem a Timor e testemunham

experiências de vida […]” (OP: 257).

No fundo, trata-se de dar conta de um Timor-Amor (ver anexo 1)71

que Cinatti

sentia não fazer eco em algumas mentes mais afeitas à devastação do que à

conservação, embora a esperança não conhecesse abrandamento:

E deste amor, desta integração total do homem-poeta, não hesito em afirmar, com

Bertold Brecht, que só as lições da realidade nos ensinam a transformar a própria

realidade (idem).

1.4. Paisagens timorenses com vultos (1974)72

Em relação a esta colectânea, uma primeira diferença entre a primeira edição e

OP é que poderemos desde logo apontar é a ordem por que surgem a “Nota de

abertura”, texto datado de Agosto de 1973, e a dedicatória. A primeira edição parece-

nos estar mais consonante com o que se deseja de uma nota de abertura, por isso ela

surge antes de tudo, ao passo que em OP, Fernando Pinto do Amaral, porém, optou por

trocar a ordem, colocando em primeiro lugar a dedicatória e a epígrafe (citação de

Hölderlin) de Cinatti, e só depois o texto da autoria de Jorge de Sena.

É este último quem adverte, desde logo, para a questão da sequencialidade,

admitindo a presença de Timor como o elemento que funde as publicações, presença

esta que o prefaciador assinala como “imediata e polémica” (OP: 485) e adverte, para

evitar equívocos, que esta “não é uma paisagem literária, ou um daqueles mundos a que

os poetas se agarram para criar-se uma pequena mitologia própria” (idem), mas sim “um

objecto em que se concretiza a aproximação do poeta consigo mesmo e com a vida

humana dos outros” (idem), o que aliás, já ficou comprovado acima, aquando da

referência à introdução de Um cancioneiro para Timor (1996: 69-70), com a reflexão do

próprio Cinatti sobre o significado profundo das estadias em Timor.

71 Este anexo surge aqui na sequência do que apontámos acima (ver nota 59), em relação à missão de

Cinatti em dar a conhecer Timor a todos os “metropolitanos amigos” (OP: 259). Na primeira edição de

Timor-Amor é o próprio que faz questão de elencar os textos dispersos e as colectâneas de poesia em que

Timor surgira como tema central. Mais uma vez, na organização de OP, perde-se esta breve bibliografia

do poeta dedicada àquele território. 72 Consultando a primeira edição da obra, surgem variantes não assinaladas na OP.

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74

Mais uma vez surge, no início da obra, uma lista de individualidades a quem o

autor, como aliás é seu hábito, a dedica, alterando algo que era habitual noutras

publicações, em que os nomes dos homenageados surgiam associados a um poema ou

outro. Apesar disso, o eco de Uma sequência timorense é claramente audível, dado que

estes poemas são dedicados aos “que à sua maneira e a seu tempo contribuíram, entre

outros, para o conhecimento de Timor e dos Timorenses” (OP: 483).

Segue-se a esta dedicatória colectiva uma epígrafe de Hölderlin73

, mais uma

referência fundamental para Ruy Cinatti e que, a nosso ver, como é seu hábito, aliás,

lança o mote. Se atendermos depois à forma como o livro se encontra organizado,

veremos como é sustentável a ideia de que era intenção do autor assegurar a publicação

de uma série de colectâneas em que Timor fosse o ponto de união. A primeira parte, por

exemplo, intitula-se “Outros poemas do nómada meu amigo”, expressão que vem

claramente na sequência da que se encontrava em Uma sequência timorense, já referida.

Esta unidade vê-se ainda reforçada pela mesma epígrafe, da autoria de Antonio

Machado, desta feita transladada da primeira edição desta colectânea para OP, que já

surgia tanto na publicação de 1958 como na de 1970.

Para terminar, convém ainda que nos detenhamos em dois outros elementos: o

primeiro tem a ver com o conjunto de poemetos, que constituem “O que sobrou dum

cancioneiro (1968)” (ibidem: 546), o que nos remete para a colectânea Um cancioneiro

para Timor que, segundo Peter Stilwell, viu pronta nesse mesmo ano a sua primeira

versão. Mais adiante, nas preciosas “Notas aproximativas a alguns poemas e uma

advertência”, Cinatti elucida-nos em relação a estas “sobras” dizendo que esse

“cancioneiro”, “premiado em 1968, mas não publicado ainda […] conteria os presentes

poemetos, se os mesmos não diferissem do conjunto total – 106 – por exigência de

ordem métrica que não pelo estilo ou propósito que a todos coube” (idem); o segundo

tem a ver com os títulos dos andamentos que compõem tanto a publicação de 1970

como esta, que, mais uma vez, se nos afiguram sugestivas. Em Uma sequência

timorense e em Paisagens timorenses com vultos temos, respectivamente, os seguintes

títulos: “Os poemas timorenses do nómada meu amigo” (1970) / “Outros poemas

timorenses do nómada meu amigo” (1974); “Alguns factos da experiência” (1970) /

73 “Oh acordai-os Poetas! Acordai-os do sono também, / os que ainda dormem, dai-nos as leis, dai-nos / A

vida triunfal, Heróis!”. Atente-se no parêntesis sobre a tradução de Paulo Quintela, relevante por ter sido

nessa tradução que a obra de Hölderlin chegou a tantos poetas portugueses. A primeira edição de Poemas

é de 1944 e a segunda de 1959, edição esta que, segundo o tradutor, resultou num livro “totalmente novo”

(Hölderlin, Poemas, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, Relógio d’Água, Lisboa, 1991, p.

33).

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“Outros factos da mesma experiência” (1974) e, por fim, “Primeira sequência” (1970) /

“Segunda sequência algo descontínua e com solilóquios” (1974).

Em tom de conclusão, poderemos afirmar que estas considerações vêm em

abono não só da importância que Timor enquanto experiência de vida teve sobre a

poética de Cinatti, mas também da unidade temática, estrutural, ideológica e formal que

Cinatti quis imprimir à sua obra. A “Advertência” (OP: 563), texto datado de 20 de

Junho de 1974, parece encerrar o ciclo de obras dedicadas a Timor (não esqueçamos

que os poemas que fazem parte de Um cancioneiro para Timor foram reunidos antes da

publicação de Uma sequência timorense e Paisagens timorenses com vultos, como

acima mencionámos). O tom é marcadamente político, evidenciando o desprezo

absoluto pela “ordem administrativa interna” no que diz respeito a Timor74

, mas o

poeta, ainda assim, demarca-se dele, escrevendo:

Por terem sido escritos entre fins de 1969 e princípios de 1972 os poemas deste livro – as notas aproximativas foram redigidas em 1973 – nada têm que ver com quaisquer

oportunismos da ordem política actual, tão só que o são em relação a uma política

objectiva, isenta de ideologias que, tal como aconteceu com Uma sequência timorense,

assenta no conhecimento científico e em valores axiológicos da minha ordem moral e religiosa (OP: 563).

É o próprio poeta que, na entrevista a Joaquim Furtado75

, dá conta da marca que Timor

nele imprimiu: “aprofundou-me mais” (1985: 45), o que não é de estranhar, dado que,

referindo-se ao juramento de sangue que fez com dois “grandes régulos timorenses”

(idem), divulga o poema cantado no final da cerimónia, que poderá ajudar a explicar a

razão pela qual, na introdução de Um cancioneiro para Timor, o “nómada amigo” é o

Timorense (cf. 1996: 19): “nós dois somos amigos, se vencermos somos iguais, se

formos derrotados somos iguais, tu bebeste a água da ribeira dela, eu também bebi a

água da ribeira dela” (1985: 45).

74 Anos mais tarde, Cinatti viria a afirmar: “Tornei-me um bicho em relação a tudo o que levou Timor ao

estado em que está. E nesta altura acuso os famigerados membros do não sei quê das Forças Armadas,

que começaram por endoidecer os timorenses e os políticos que abandonaram Timor, como o Sr. Almeida

Santos que foi lá, disse que nunca tinha visto portugueses como os timorenses e depois disse que Portugal

não podia estar interessado num transatlântico perdido lá nas outras bandas do Oceano (1985: 45). 75 “Conversa inacabada I – As brumas atlânticas perturbam os portugueses”, Grande reportagem, 04 a 11

de Abril de 1985, p. 45.

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76

IV

“ABRI CAMINHOS MAS NÃO OS CUMPRI” - CONCLUSÕES

Passear por estes campos à beira das coisas

é um supremo bem que não se alcança

senão a caminho do nosso destino.

Ruy Cinatti76

Numa colectânea de ensaios escritos entre 1982 e 1987, Rafael Argullol reflecte

apuradamente sobre a relação entre a arte e o nomadismo, admitindo que “el território

del nómada es el territorio del artista moderno” (Argullol, 1987: 7), espaço de

fundações movediças, em que o sujeito se vê compelido a lutar contra forças

antagónicas: sair / ficar, acolher / hostilizar, criar / consumir, mas onde, apesar de tudo,

a criatividade vai fazendo proliferar as mais variadas e belas manifestações do intelecto

humano. Daí que, como escreve Argullol, “En tal território el artista no puede ser sino

un huésped desconcertado, un extranjero en el que la vaga añoranza de poseer una

identidade propia está permanentemente assediada por la certidumbre de sentirse un

apátrida” (idem), factos que representam “una de las claves más hondas para la

comprensión de la modernidad” (idem). Esta chave, cremos, encontrámo-la no autor de

O livro do nómada meu amigo devidamente tematizada e se, de facto, é possível – e não

só a partir da sua obra poética, mas igualmente dos documentos dispersos publicados

em inúmeros periódicos (cf. Stilwell: 1995) - rastrear inúmeras figuras da poesia como

movimento nómada e como forma de habitar o mundo. Por si só, esta questão mereceria

um estudo mais amplo e profundo, também se torna claro que Argullol não avança com

algo de novo em relação a este “territorio”. Há muito que a poesia portuguesa “recrea el

mito y incita al viaje” (ibidem: 8).

A dedicatória com que Ruy Belo abre O problema da habitação – Alguns

aspectos, dirigida “Ao nómada amigo do Ruy Cinatti” (Belo, 1997: 21), afigura-se-nos

um excelente exemplo para ilustrar a ideia defendida pelo poeta de que a poesia é “uma

aventura de linguagem” (Belo: 2002, 25)77

, levando mais longe quer as simples

referências que este dedicou ao seu “nómada amigo”, quer os apontamentos que

76 “Uma natureza. Ruy Cinatti – Algumas observações de campo”, In A Phala – Um século de poesia,

Assírio e Alvim, Lisboa, 1988, p. 60. 77 Ruy Belo, “Entrevista 2”, Na Senda da Poesia, Lisboa, Assírio e Alvim, 2002, p. 25.

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77

sistematizou78

acerca da condição de nómada do mesmo, cuja poesia sempre lhe captou

o interesse. Ainda, se a dedicatória acima transcrita parece sugerir que a atracção de

Ruy Belo, em 1961, incidia no “amigo” imaginário de Cinatti, talvez pela sua

expressividade, a dedicatória da colectânea de 1973, por outro lado, parece sugerir um

enfoque no poeta evocado. Tudo como se a figura de Cinatti enquanto poeta que na

poesia personificava o nomadismo, se tornasse mais presente. Como muito bem sugeria

Helena Cidade Moura, “o amigo existe para alimentar uma solidão substanciada em

presenças” (Moura, 1961: 64).

Nos seus “Apontamentos” sobre o tema, o autor de Aquele grande rio Eufrates

reforça a ideia de que o nomadismo de Cinatti não assentará na “simples inquietação

temperamental que o leva a estar hoje em Timor e amanhã em Oxford” (2002: 170).

Seria demasiadamente superficial em alguém que, como afirmou Ruy Belo, “tão fundo

vá buscar a poesia” (idem). Esta errância vai buscar raízes mais fundo, pelo que a poesia

de Cinatti não serviria apenas, como se lê, para cantar “o nomadismo de Ruy Cinatti

Vaz Monteiro Gomes […] mas a condição itinerante de todo o homem que um dia deixa

as suas pegadas sobre esta terra” (ibidem: 172). Estas pegadas, se as entendêssemos

trabalhar em todo o seu sentido simbólico, levar-nos-iam muito longe; por agora, e visto

que acabámos de abordar Ruy Cinatti, façamos como Ruy Belo e derivemos da

passagem do homem, para a “passagem do Senhor” (idem), cujo mistério, paradigma de

todos os mistérios, alimenta a inquietação, tão característica da poesia de Cinatti.

Um aspecto que convém então salientar será entender o nomadismo à luz

daquilo que o poderá espoletar: a necessidade ou o projecto? Pareceu-nos importante,

por isso, precisar a forma como Ruy Cinatti o incarnou e o passou à poesia, dado que

esta errância, enquanto motivo poético, surge frequentemente associada à viagem, como

vimos. Simbolicamente, esta é uma jornada iniciática, repleta de peripécias, que decorre

durante um determinado período de tempo, mais curto ou mais longo, mas implicando

sempre um percurso de aprendizagem e de reconhecimento. O herói, amiúde, sai da

pátria para a ela regressar, amadurecido e mudado; por vezes para a mudar também,

dado que se o itinerário percorrido foi longo e lhe tomou muito tempo, ou já não a

reconhece ou já não se identifica com ela.

78 Os “Apontamentos sobre o nomadismo de Ruy Cinatti” foram pela primeira vez publicados no número

33 de Rumo, Novembro de 1959 (p.335). Esta indicação consta da 2ª ed. daquela obra de Ruy Belo

(Presença, 1984: 214), bem como da 3ª ed. (Assírio & Alvim, 2002:253).

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No caso de Cinatti, a inquietação levou-o a criar o nómada, esse “compasso do

mundo” (OP: 110), sempre em trânsito e a caminho de algures ou de algo, nunca

satisfeito nem tão pouco enquadrado, marginal, mas tomando-se como parte de um todo

que, em muitas situações, estava muito distante. Para o autor de O livro do nómada meu

amigo este impulso nómada, associado à aventura e à partida, foi um projecto desde

cedo desejado79

e ambicionado, seguramente porque, desde sempre, pelo menos a julgar

pelos testemunhos que Peter Stilwell reuniu em A condição humana em Ruy Cinatti, as

ilhas e os distantes mares desconhecidos exerceram sobre o poeta um fascínio difícil de

conter numa alma sem fronteiras. Após o contacto mais próximo com estes espaços,

essa atracção, que à partida poderíamos entender como simples devaneio de aventureiro,

viria a transformar-se num contacto de aprendizagem de si através da aprendizagem do

outro. Tudo isto numa atitude fraterna para com aqueles que, apesar de Cinatti

representar a figura do colonizador, sempre o acolheram com tudo o que possuíam de

mais genuíno. O motivo da viagem foi de tal forma importante que, se passarmos uma

vista rápida por alguns títulos das suas publicações, veremos como toda a obra glosa “o

espaço da terra a pedido do Espírito” (Gil de Carvalho, 1988: 63), análogo da

peregrinação interior. Ilustram-no títulos como Nós não somos deste mundo (1941); O

livro do nómada meu amigo (1958); Crónica cabo-verdiana (1967); Uma sequência

timorense (1970); Lembranças para S. Tomé e Príncipe (1972); Os poemas do

itinerário angolano (1974); Paisagens timorenses com vultos (1974) e Um cancioneiro

para Timor (póstumo – 1995). Tudo isto sem esquecer, claro, em várias outras obras, os

poemas em que a partida, a chegada e inúmeros símbolos da passagem são tema.

Porém, apesar de ter assumido o nomadismo como uma das suas temáticas de

eleição – bem conseguida quanto a nós -, Ruy Cinatti centrou-a num movimento errante

que, com o tempo, se deslocou do simples itinerário terrestre, físico, em direcção a um

itinerário interior, de cariz metafísico, talvez resultado de um progressivo

descontentamento com situações que, apesar das suas tentativas sinceras e aguerridas, o

ultrapassavam em termos de resolução.

No “Comentário disponível” que fecha Sete septetos, Cinatti refere-se a um

“ajuste de contas do poeta com o homem de si para consigo” (OP: 156) que lhe havia

proporcionado a longa estadia em Timor e o posterior regresso a Portugal. Daqui se

depreende que o nómada, passado o fulgor juvenil de quem se sente em permanente

79 Rever acima a citação da página 22, retirada do Diário (09 de Agosto de 1934) de Ruy Cinatti e citada

por Peter Stilwell.

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êxtase de viagem, encontra agora, juntando à maturidade que as experiências da sua

profissão de cientista, aprofundadas pelas viagens, bem como um crescente desencanto,

reunidas as condições para empreender a tal peregrinação interior80

de que as suas obras

posteriores a O livro do nómada meu amigo vão sucessivamente dando conta.

Procedendo igualmente, em relação ao estudo que agora terminamos, a um

“ajuste de contas”, poderemos apontar uma série de caminhos delineados, mas não

cumpridos, como sugere o título desta conclusão. Várias vezes deixámos expressa a

ideia da existência de campos que apenas pudemos aflorar, dado que exigiriam que

singrássemos noutra direcção. Esse afastamento do fulcro deste trabalho não se

afiguraria proveitoso para vermos cumpridos os objectivos delineados no início.

Poderemos, para começar, aludir à forma como a poesia de Ruy Cinatti

mereceria um estudo que trabalhasse devidamente as “duas faces de uma mesma

moeda” (Borges, 1993: 159): por um lado “a humildade que advém da consciência

muito aguda de uma profunda indignidade consubstancial […] ao sujeito” e, por outro,

“a fé inamovível no amor de Deus, materializada numa entrega sem reservas” (idem).

Esta dupla face coloca em campo a ideia expressa por Ruy Belo de que poucos poetas,

como Cinatti, tenham ido “buscar tão fundo a poesia (2002: 170). Além disto, a partir

da leitura que empreendemos de O livro do nómada meu amigo, fica por aprofundar a

forma como poderíamos relacionar o nosso poeta com a tradicional figura do Herói

épico e com as viagens. A associação foi anotada, pelas claras pontes que a colectânea

estabelece com o universo das epopeias antigas, mas este é um motivo que se reveste de

uma simbologia muito rica, por tudo aquilo que o tópico da viagem física e alegórica

poderá significar para quem a cumpre.

A outro nível - e pensando agora no território de Timor -, não será descabida

uma futura reflexão, mais aprofundada e criteriosa, sobre o papel de Ruy Cinatti na

literatura de temática ultramarina. Aliás, também Cabo Verde, Angola e S. Tomé e

Príncipe lhe mereceram atenção, pelo que será uma via interessante ver que o olhar e a

sensibilidade do poeta não só se valem da paisagem, mas também da etnografia,

desvelando lugares, gentes, cultos, formas de estar e de pensar, sempre com o assombro

do Princípio. Por isso reconhecemos igualmente que Ruy Cinatti ocupa um lugar

especial na poesia portuguesa, lugar em que vale a pena demorarmo-nos, pois a sua

riqueza reside em ser “um dos que escreve com a consciência portuguesa de se estar em

80 Rever nota 51 da página 49 da presente dissertação, acerca de Peregrinação interior (Vol. I e II), de

António Alçada Baptista.

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toda a parte: primeiro a dimensão ultramarina, depois o fogo-fátuo – e de seguida a

inquieta serenidade onde lhe voltam as visões” (Gil de Carvalho, 1988: 64).

“L’homme habite en poéte”, escrevia Heidegger (1962: 224), recuperando uma

formulação de Hölderlin para quem “ser”, “casa”, “língua”, eram termos do mesmo

problema, ou seja, determinar a essência da poesia e, por extensão, a da própria arte. A

seguirmos por aqui, será desde logo lícito focar a nossa atenção no lugar a habitar, que,

por necessidade, temos de tornar habitável, implicando escolhas e critérios,

pragmatismo e sentido estético. Se nos quisermos manter no território da Filosofia, em

Totalidade e Infinito, Lévinas reflecte sobre a “casa” e a “morada”, num capítulo que

serve de ponto de partida para muito do que aqui tentamos expor. O primeiro aspecto a

reter prende-se com o seguinte:

Podemos interpretar a habitação como utilização de um “utensílio” entre

“utensílios”. A casa serviria para a habitação como o martelo para pregar um

prego ou a pena para a escrita. Pertence, de facto, ao conjunto das coisas

necessárias à vida do homem. (Lévinas, 1988: 135)

O filósofo francês vai mesmo mais longe e, mais do que como algo necessário, entende

a casa como algo inerente à condição do homem, instaurando-a, por isso, não como “o

fim da actividade humana” (idem), mas como o seu começo. O ser em construção

equivaleria assim, a uma casa em permanente remodelação, algo que passaria a

funcionar como o motor da existência. Parar de construir é parar de viver.

Noutra perspectiva, terras, países, cidades, ruas, casas, enunciados no plural,

remetem para a procura, resultante de qualquer insatisfação. Quer nos refiramos à

construção da casa, quer nos refiramos à construção do ser, esta pode não estar

confinada a um espaço e não está, seguramente, limitada a um instante no tempo. Como

já sugerimos, afigurar-se-ia muito interessante trabalhar as figuras nómadas na poesia de

Ruy Cinatti, no seu todo, estendendo-as à temática da habitação. E para isso, tenhamos

em conta três elementos-base.

Em primeiro lugar, consideremos a Terra, a casa que acolhe e enforma o Homem

há milénios. Casa paradoxal, decerto, pois, no interior do acolhimento apaziguador que

proporciona, pode caber uma hostilidade latente. Assim é Deus, e a Terra bíblica, por si

criada, esta que sensivelmente apreendemos e que motiva as mais diversas

espiritualidades, assumida como espelho desse imenso e perfeito poder criador. Não nos

deverá parecer estranho, visto isto, que o poeta que aqui estudámos se tenha debruçado

com tanta intensidade sobre as questões do nomadismo e da habitação, elevando estas

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temáticas a patamares que ultrapassam claramente a dimensão física do problema - tal

não caberia na presente dissertação. Se para uns a Terra é o paradigma da diversidade,

contendo em si diversas realidades, então há que percorrê-la, tentando dar resposta não

só a um natural impulso de sair, correr mundo, mas também a uma necessidade

imperiosa de satisfazer a curiosidade, algo igualmente inerente ao homem. Para outros,

a mesma diversidade poderá ser algo a valorizar, mas não a experimentar, motivo pelo

qual não lhes será necessário pôr em prática a irrequieta condição de nómadas que

caracteriza o humano.

Em segundo lugar, poderemos equacionar a figura de Deus, já anteriormente

associado ao Mundo. Em Ruy Cinatti, a figura divina, incarnada por Jesus, surge como

o eterno caminhante, ser ubíquo e omnisciente - tal como o poeta faz em relação à

poesia. Retomando ainda as palavras de Gil de Carvalho, salientemos a poesia - ou a

vida - como um “intenso devaneio” (1988: 62) que conduz o “homem de acção que o

poeta igualmente é, à busca mística”. Acrescenta ainda o crítico: “Se a poesia é caminho

espiritual, uma viagem […] sempre a nitidez moderna acompanha o devaneio ou a

visão, fazendo com que o “caminho” seja descoberta física do nómada em trânsito”

(ibidem: 63).

Em terceiro lugar, temos o próprio ser humano, motivando um constante

percurso pelos vários caminhos que se lhe abrem, pois a busca de si próprio define a

condição de nómada do homem. Esta procura, complexa, que o leva a problematizar a

própria existência, motiva a edificação de várias “casas”: ser, tempo, espaço, arte,

morte, vida, amor. Cada uma ostenta o seu telhado de vidro, que implica, cautela quanto

à forma como é manuseada. Mais uma vez, se para uns a resposta reside em sair, para

outros ela implica ficar.

O problema da habitação, bem como a aproximação da poesia à casa, que acolhe

e que serve como lugar de convívio, não é dúvida que se tenha colocado a poucos.

Vejam-se, a título de exemplo, as palavras com que António Cabrita abre o seu artigo de

A Phala – Um século de poesia, dedicado a Alexandre O’Neill:

Abraão entra a Sara, Isaac entra a Rebeca, Jacob entra a Raquel, Loth penetra

naquela saca de orelhas com sal, Carlos entra a Susana, Diogo inquilina-se em Filipe: mas nem só o amor resolve o problema da habitação, a palavra também acama e

mobila, e a amálgama desses dois nervos habilita os vultos ao tumulto original:

“Quem? O Infinito? Diz-lhe que entre. Faz bem ao infinito / estar entre gente” (Cabrita,

1988: 107).

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Ou lembre-se um excerto da “Ars poetica” de Czeslaw Milosz com que Vasco Graça

Moura inicia o prefácio da obra Poetas, de Maria José Palla: “O fim da poesia é

recordar-nos / como é difícil ser-se uma simples pessoa, / pois a nossa casa está aberta,

não há chaves nas portas, / e hóspedes invisíveis entram e saem à vontade”81

. Ambas as

citações vêm em abono não só do que temos vindo a anotar relativamente ao problema

que aqui tratámos, em termos gerais, como também da pertinência de termos abordado a

obra de um poeta que abraçou incondicionalmente a errância e fez dela mais do que

experiência de vida, construindo de fora para dentro, numa primeira fase, e de dentro

para fora, posteriormente.

E, visto tudo isto, onde fica afinal a casa do nómada? Interessar-lhe-á a condição

sedentária? A persona poética e o seu criador não parecem ser compatíveis com este

grau de previsibilidade. Aliás, a resposta às questões anteriores, poderemos dá-la com

duas outras que melhor ajudam a perceber o contributo do impulso nómada para a nossa

forma de habitar seja o que for: “Poderemos, errantes, nomear uma morada que seja

nossa? E como fazê-lo senão errando?” (Mário Santiago de Carvalho, 2002: 10).

81 Vasco Graça Moura, “Maria José Palla e uma silente integridade”, prefácio a Poetas, Lisboa, Fundação

Calouste Gulbenkian, s/d, p. 7.

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83

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“Cartas a um vanguardista sobre a arte e a vocação literária”, Jornal da Mocidade

Portuguesa, n.º 40, Ano II, (15.07.1939), pp. 1,3 e 4.

82 Esta listagem de textos dispersos foi seleccionada a partir da extensa bibliografia apresentada por Peter

Stilwell (1995: 427-429). Por questões metodológicas, interessaram-nos os textos anteriores a 1958, ano

da publicação de O livro do nómada meu amigo, que fizessem referência às viagens empreendidas por

Ruy Cinatti, que dessem a conhecer a sua concepção de poeta poesia ou que fornecessem elementos sobre

as suas vivências em Timor.

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84

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“Não voltaremos atrás”, Acção, n.º 26, (16.10.1941), pp. 4-5.

“Metamorfoses de uma gaivota”, Acção, n.º 77 (08.10.1942), pp. 3 - 6.

“O poeta não quer ser exilado da terra”, Ala, n.º 10, 1943, p. 5.

“Ângulo do Desterro”, Variante, n.º de inverno (1943), pp. 32-34.

“Timor – Páginas de um diário poético”: Panorama, 6/36-37 (1948) [sem numeração].

“Uma viagem ao oriente I – Feliz como quem Ulisses…”, Lisbon-Courier, 3/31 (1948),

pp. 6,7 e 28.

“Uma viagem ao oriente II – La vida es sueño”: Lisbon-Courier, 3/32 (1948), pp. 14-16.

“Uma viagem ao oriente III – Sobrevoando a Babilónia”: Lisbon-Courier, 3/33 (1948),

pp. 17-19.

“Conversa Inacabada I – “As brumas atlânticas perturbam os portugueses”, Grande

Reportagem, n.º 18 (1985), pp. 44-46.

“Conversa Inacabada II – “Certa intelectualice do Pessoa chateia-me!”, Grande

Reportagem, n.º 19 (1985), pp. 44-46.

“Conversa Inacabada III – “Há tanta maluqueira na nossa História!”, Grande

Reportagem, n.º 20 (1985), pp. 40-41.

“Conversa Inacabada IV – “Os portugueses são sexo e mercearia”, Grande Reportagem,

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ANEXOS

Anexo 1

Frontispício da 1ª edição de Timor – Amor (edição de autor)

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Anexo 2

Poema publicado no periódico Ala (nº 10, 1943)