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UM REPÓRTER NA MONTANHA MÁGICA Como a elite econômica de Davos afundou o mundo Andy Robinson 2015 Tradução Luis Carlos Moreira da Silva Reporter_Montanha_Magica.indd 3 29/05/2015 16:33:11

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UM REPÓRTER NA MONTANHA MÁGICA

Como a elite econômica de Davos afundou o mundo

Andy Robinson

2015

Tradução Luis Carlos Moreira da Silva

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Sumário

Prefácio Do Rio a Davos 7

Capítulo 1 Panorâmicas de Schatzalp 13

Capítulo 2 Fuck Wef! A História de Davos 41

Capítulo 3 Media Leaders: como mimar o ego de um Davos Man dizendo que ele é altruísta 61

Capítulo 4 A verdade sobre o Davos Man e o 99-1% 79

Capítulo 5 Capitalismo filantrópico: a sorte dos Irlandeses 107

Capítulo 6 É o status, estúpido: ser pig em Davos 139

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Capítulo 7 Zug: um lugar excelente onde não se pagam impostos 161

Capítulo 8 A descida da montanha mágica 199

Glossário 220

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Prefácio

Do Rio a Davos

No capítulo sete deste livro, a cena do crime se desloca da cú-pula da elite global nos Alpes suíços para Zug, um povoado a meio caminho entre Davos e Zurique. Ali se busca resolver um mistério. Por que num povoado de 15 mil habitantes estão registradas 30 mil empresas? Por que encontramos as sedes de tantas corporações multinacionais nesse pitoresco povoado situado às margens de um lago? Sejam empresas do porte de uma AstraZeneca, a fabricante de biofármacos, ou a sinistra mineradora Glencore, ou mesmo firmas mais modestas, como a Infront Sport&Media, empresa de marketing do Mundial de Futebol, propriedade do sobrinho do presidente da fifa, Sepp Blatter?

Zug tem mais sedes de multinacionais do que o Rio de Ja-neiro, mas, curiosamente, não abriga nenhum edifício impo-nente como a sede da Petrobras ou do bndes. Somente letreiros com o logotipo corporativo e escritórios modestos onde cinco ou seis empregados olham a neve através da janela. Uma dessas sedes é a do Burger King, a cadeia de fast-food cuja expansão

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vertiginosa destrói culturas alimentícias por todo o planeta e, de passagem, leva bilhões de dólares a seus acionistas.

O Burger King se esconde em uma rua anódina em Zug, sem nada a ver com a pomposa sede mundial em Miami. E não é difícil averiguar por quê. Zug é o cantão da Suíça – país clas-sificado como paraíso fiscal pela Organização para a Coopera-ção e Desenvolvimento Económico (ocde) –, onde se pagam menos impostos sobre lucros e outros ganhos de capital. Se o Burger King é um grupo extraordinariamente rentável, deve isso a dois fatores: redução de impostos e salários indignos pagos a seus trabalhadores. Em 2014, a engenharia fiscal do Burger King chegou a Miami também. A cadeia anunciou que transferiria a sede dos Estados Unidos para o Canadá depois de adquirir a Tim Hortons, cadeia canadense de donuts. Eco-nomizaria, assim, 1,2 bilhão de dólares em impostos a pagar ao fisco norte-americano nos próximos dez anos.

Descobrir o segredo sujo da Burger King naquela rua de Zug se tornou útil para ilustrar as contradições do Davos Man, esse novo gênero de investidor multimilionário e capitalista fi-lantrópico, que veste botas de neve e gorro de cossaco todo mês de janeiro para transitar entre as sessões de debate e brains-torming nas dezenas de hotéis de Davos. Muitos deles foram antigos sanatórios de tuberculosos do romance de Thomas Mann. Em 2015, no entanto, o hotel de referência foi o novo Intercontinental, conhecido como “ovo de ouro”, localizado na ladeira da montanha, onde a faixa de preços da diária se situa entre mil e dez mil dólares. Tipos como Nicolas Berggruen, o bilionário sem-teto (vive apenas em hotéis de luxo como o ovo de ouro), famoso nas sessões do Fórum da elite em Davos por combinar operações financeiras altamente especulativas com generosas atividades filantrópicas. Berggruen é acionista

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do Burger King, mas prefere ser conhecido pela ligação com o Berggruen Institute, um think tank que pretende melhorar os sistemas de administração pública e aumentar a eficiência dos Estados mundo afora.

O verdadeiro Mr. Burger King, no entanto, não é de Mia-mi nem de Wall Street. É do Brasil. O lince financeiro Jorge Paulo Lemann, nascido há pouco mais de setenta anos no Rio de Janeiro, comprou em 2010 a maior parte das ações da ca-deia de hambúrgueres através da 3g, empresa de investimento pertencente a seu grupo financeiro. Logo depois acrescenta-ria a seu império a Heinz e a Anheuser-Busch, fabricante da Budweiser, convertendo-se, assim, no homem mais rico do Brasil, com um patrimônio no valor de 23 bilhões de dólares. Lemann, um sobrenome que, segundo a Bloomberg, “sintetiza a mais impiedosa eficiência”, reside na Suíça, ainda que não costume ser visto em Davos. Ele possui habilidade em com-binar agressivas estratégias de especulação financeira e asset stripping (desmonta as empresas que adquire) com atividades filantrópicas, sendo extremamente generoso em suas doações às universidades de elite norte-americanas, convertendo-se em outro paradigmático Davos Man. O fato do proprietário do famoso sanduíche Whopper ser um brasileiro não chega a surpreender num país que baseia, em grande parte, seu mo-delo de desenvolvimento nas gigantescas multinacionais da agroalimentação, copiando ao pé da letra o desastre do Big Food norte-americano.

Lemann ao menos limita sua fuga de impostos à engenha-ria tributária de suas empresas. Outros brasileiros têm interes-ses mais diretos na Suíça. Segundo os documentos vazados na mídia pelo ex-funcionário do hsbc, Herve Falciani, existem oito mil contas secretas de membros da elite brasileira na filial

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suíça. “Como o total de recursos de brasileiros era de sete bi-lhões de dólares à época, 2006/2007, a recuperação desse di-nheiro, ou parte dele, equivaleria ao tamanho do ajuste fiscal que a equipe econômica da presidente Dilma Rousseff preten-de implementar no Brasil deste ano”, segundo o blogue do jor-nalista brasileiro Fernando Rodrigues.

Um dos eixos deste livro reside em investigar como esta endêmica evasão tributária da elite global – segundo a Tax Jus-tice Network, 21 trilhões de dólares, dez vezes o pib do Brasil – priva os Estados de melhorarem seus serviços públicos desde a Grécia até os Estados Unidos, sendo o Brasil um caso muito claro. Enquanto os Estados perdem arrecadação, a mescla de liberalização e capitalismo filantrópico está assumindo o papel do Estado em áreas que vão da educação à saúde. A onda de protestos que se produziu em 2013, a respeito da qualidade dos serviços públicos no Brasil, é parte de uma reivindicação já bastante generalizada contra a filosofia de Davos.

Mas Davos é ponto de encontro obrigatório para os que querem andar de braço dado com o poder, sobretudo para um partido histórico de esquerda que quer demonstrar sua vonta-de em se reconciliar com os mercados financeiros e as grandes multinacionais. Até Dilma Rousseff se sentiu obrigada a ir, em janeiro de 2014, ao Fórum de Davos, ainda que o verdadeiro motivo da viagem fosse se reunir com Sepp Blatter em Zuri-que, por onde a fifa canalizaria seus lucros obtidos no Brasil, por meio da engenharia fiscal suíça. A partir do momento que Lula ganhou as eleições, os gestores de fundos de investimento globais passaram a elogiar o Brasil durante suas reuniões ao lado das pistas de esqui como se tratassem de uma nova fase do capitalismo. Não há nada mais atraente em Davos do que um operário lutador, convertido em presidente business friendly, e

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Lula se tornou uma estrela entre os convidados das festas nos ex-sanatórios de tuberculosos do romance de Thomas Mann, agora convertidos em hotéis de luxo. Foi escolhido estadista global do Fórum Econômico Mundial, um “exemplo de lideran-ça planetária a ser seguido”, conforme resumiu Klaus Schwab, o empresário suíço que criou o Fórum da elite há quarenta anos. Conforme explicado no quarto capítulo, Schwab é muito mais astuto do que pode parecer um homem sem atrativos e com um inglês da escola de e-business. Há muito tempo Schwab apren-deu que o projeto de globalizar o capitalismo financeiro e abrir caminho para marcas como o Burger King é conseguido mais facilmente se disfarçado através de palavras como stakeholder, filantropia e empreendedor social. No final das contas, o lema de Davos é “Committed to improving the World” (Comprome-tido em melhorar o mundo). Assim ganha destaque o surgi-mento de uma nova classe média no Brasil, para quem Davos podia vender hipotecas, geladeiras e automóveis.

Mesmo assim, os Davos Men de Wall Street ficaram im-pressionados quando Luciano Coutinho, atual presidente do bndes, foi a Davos a fim de explicar como o êxito das novas multinacionais de matérias-primas e agribusiness se devia, em grande parte, aos créditos do gigantesco banco estatal de de-senvolvimento. Os gestores de fundos – e Ian Bremmer, um dos gurus de Davos – esfregavam as mãos diante do êxito desse novo exemplo de capitalismo de Estado, um modelo salomô-nico, progressista mas market friendly (voltado ao mercado). Justamente aquilo que estimula a adrenalina em Davos.

Porém, na perspectiva de Davos, era difícil diferenciar as grandes empresas respaldadas pelos bancos públicos de Lula e Dilma das grandes marcas do capitalismo made in usa, inimi-gos históricos da esquerda brasileira. Tanto a Petrobras como

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a Vale apostavam em modelos agressivos de extração, como os da Exxon ou da Alcoa. A Odebrecht, e suas relações en-dogâmicas com o Estado, um sem-fim de contratos públicos para obras de utilidade discutível, não parecia muito diferente da Bechtel, a multinacional norte-americana tão estreitamente vinculada a Washington e ao Pentágono.

Em 2008, no início da crise, entrevistei em Davos Sergio Gabrielli, então ceo da Petrobras, que me explicou um mo-delo de desenvolvimento baseado em estimular o crescimen-to mediante a venda de milhões de automóveis, lava-roupas e televisores para uma nova classe média brasileira. Gabrielli se mostrava um executivo inteligente e comprometido com a estratégia desenvolvimentista do pt, e o Brasil era um país que ainda possuía milhares de rotas sociais e ambientais que repre-sentariam alternativas ao modelo de capitalismo corporativo. Em lugar da visão da nova esquerda, a visão de Gabrielli lem-brava bem mais a da General Motors e da Chevron na socieda-de consumista do pós-guerra norte-americano. Mas no Brasil ninguém apostava no ensino público como nos Estados Uni-dos naqueles anos, e muito menos nos serviços sociais criados por Roosevelt e seu New Deal.

O paradoxo do Brasil e de Davos se mostrou claramente em janeiro de 2015, quando Joaquim Levy, o novo ministro da Fazenda, fez uma longa viagem aos Alpes suíços para con-vencer os ultrarricos especializados em evasão fiscal de que o novo programa de ajustes do governo brasileiro não continha nenhuma burla.

Era o país do empreendedor social mais querido por Klaus Schwab: Paulo Coelho. Vestindo caftan junto com botas e tra-jes para neve, passava magia e espiritualidade aos tubarões fi-nanceiros, resguardados por cinco mil seguranças.

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Capítulo 1

Panorâmicas de Schatzalp

“O torrão natal e a rotina de sempre haviam fi cado não somente para trás, muito para trás, mas

sobretudo a grande profundidade abaixo dele; e a ascensão continuava a afastá-los ainda mais.”

(Capítulo I: “A chegada”, A montanha mágica, p.4)

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F icava em schatzalp, o antigo sanatório de tuberculosos e asmáti-cos, fonte de inspiração para Thomas Mann escrever seu

romance A montanha mágica (Der Zauberberg), uma inquie-tante alegoria de catástrofes iminentes e de regimes decrépitos em vias de extinção. É também em Schatzalp que a nova crise global se desenrolou à minha frente se fundindo à paisagem gelada dos Alpes suíços.

Hospedei-me no terceiro andar do Berghotel Schatzalp, transformado agora em hotel wellness. E admirava a paisagem, no mesmo tipo de balcão que Hans Castorp, o protagonista de A montanha mágica, recostado numa espreguiçadeira de madeira, respirando o ar gélido da montanha. Com boa saúde ao chegar a Davos, Castorp logo sucumbiria a náuseas, aces-sos de febre e incontroláveis ataques de angústia e confusão mental. Seus pesadelos eram repletos de cenas dantescas de mulheres grisalhas e seminuas que “esquartejavam uma crian-cinha. Dilaceravam-na com as mãos, num furioso silêncio... e devoravam os pedaços. Os frágeis ossinhos estalavam entre as

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suas presas, e o sangue pingava dos lábios selvagens”.1 Castorp fora tomado por “asco, o asco mais terrível que jamais havia sentido”, e após eu ter assistido às quatro reuniões de cúpula do clube da elite global – o Fórum Econômico Mundial, encontro anual dos homens mais ricos do planeta –, comecei a notar sintomas semelhantes.

A partir da minha privilegiada vista podia observar os Da-vos Men voltando das pistas de esqui enquanto quatro trom-pistas enfeitados com gorros emplumados interpretavam a saudação wagneriana em grandes trompas alpinas. Chegavam para o grande almoço de despedida no terraço do Schatzalp, encerramento dos quatro dias de conferências, mesas-redon-das, brainstorming e suntuosas festas. Ali estava George Soros, o célebre especulador-filantropo que não aparentava seus 82 anos, mas um pouco mais, resplandecendo num traje de esqui roxo, de mãos dadas com a jovem noiva brasileira. Atrás dele, de cara escarlate e tez queimada pelo rarefeito ar alpino, es-tava Stephen Schwarzman, conselheiro do Blackstone Group, fundo global privado de investimentos multimilionários, tam-bém conhecido por devorar quilos de caranguejos especiais a 400 dólares cada pata em sua mansão em Palm Beach. Pouco a pouco baixavam outros esquiadores da elite global, especia-listas no slalom das pistas mais negras das finanças mundiais, mais rebaixadas que nunca, e agora com um pé no fundo de um precipício abismal.

O Davos Congress, centro de convenções onde acontecia a reunião de cúpula do Fórum, seria testemunha de um fe-nômeno tão estranho quanto a “Sociedade Meio-Pulmão” de

1 MANN, Thomas. A montanha mágica. Tradução Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. pág. 323. [N.E.]

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A montanha mágica, formada por pacientes terminais que aprendiam a assobiar com os pulmões esvaziados e logo in-suflados de nitrogênio, e que não conseguiam reprimir o riso quando os assustados transeuntes se perguntavam de onde vi-nha aquele som. Se isto resultava grotescamente cômico para o macabro senso de humor de Mann, em mim acontecia algo pa-recido ao ver a programação dos debates das últimas cúpulas. Havia palestras intituladas “O desafio da desigualdade”, “Cres-cimento e igualdade”, “A economia moral” ou “As sementes da distopia”. Agora que a crise entrava numa fase crítica, no início de uma grande recessão na Europa e nos Estados Unidos, os Davos Men falavam compassivamente dos problemas da injus-tiça social no mundo. Imaginemos: mil multimilionários glo-bais, operadores da Bolsa de Wall Street, magnatas industriais de Xangai e banqueiros de Madri desperdiçando seu precioso tempo de networking para assistir a uma série de debates sobre a desigualdade econômica no século xxi. Era para chorar de rir, um riso grotesco como o de Thomas Mann. Mas esses eram os tempos que corriam. A nova economia de 1% e dos 99% se convertera em tema obrigatório no Fórum desde o início da megacrise, uma espécie de big bang financeiro que ameaçava dissolver a todos, menos a eles.

O slogan de 99% frente ao 1% é expressão cunhada por um repórter rebelde da revista canadense Adbusters às vésperas dos primeiros acampamentos do movimento Ocupe Wall Street em Zuccotti Park, no outono de 2011. Entretanto, curiosamente, a extrema polarização das rendas já dominava os debates do Fó-rum Econômico Mundial em Davos desde o início da crise, em 2008. O Davos Man, segundo o rótulo nada lisonjeiro imposto pelo velho filósofo conservador Samuel Huntington, saíra mais ou menos incólume da catástrofe financeira de 2008-2009. Ao

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final de 2012, o lucro das grandes empresas norte-americanas, citadas no ranking da revista Fortune, bateu seu recorde históri-co, alcançando a porcentagem mais alta da renda total desde os anos 1950, depois de contabilizar um aumento de 20% ao ano nos quatro primeiros anos da crise. Os salários dos executivos, dos operadores da Bolsa e dos gestores de fundos de Wall Street eram distribuídos de forma generosa como nos anos de maior euforia da bolha. Graças a uma subida espetacular da Bolsa de Nova York, impulsionada pelas enormes injeções de liquidez realizadas pelo Federal Reserve (Banco Central dos Estados Unidos), os rendimentos nas aplicações em stock options dis-pararam. Segundo os informes da consultora Hay Group, que anualmente circulam em Davos – sempre uma leitura gratifi-cante para seus participantes –, o pacote médio de remunera-ção dos ceos das 500 maiores empresas norte-americanas já era 430 vezes maior que o salário do trabalhador médio, tendo alcançado um máximo histórico em 2010. Enquanto nos Esta-dos Unidos o número de pessoas que, devido à pobreza, se via forçado a pedir ajuda alimentar alcançava o recorde histórico de 50 milhões, no Fórum Econômico de 2011 eu via passar pela cafeteria do Global Village os Davos Men norte-americanos cujos patrimônios somados ultrapassavam os 100 bilhões de dólares: Bill Gates (Microsoft, 59 bilhões), Sergey Brin (Goo-gle, 23 bilhões), Michael Dell (Dell, 15 bilhões) e George Soros (Quantum e outros fundos de especulação, 22 bilhões).2 E es-tas megafortunas somente representavam o sopé da montanha. No seu rastro surgiam centenas de outros bilionários norte--americanos – a maioria banqueiros ou gestores de fundos

2 Atualização das fortunas no ranking Forbes: Bill Gates, 79,2 bilhões; Sergey Brin 29,2 bilhões; Michael Dell, 19,2 bilhões; George Soros, 24,2 bilhões. [N. E.]

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especulativos –, com postos mais baixos no ranking da revista Forbes (sujeitos com patrimônio maior que um bilhão de dó-lares), um catálogo de riqueza que a cada ano da crise só fazia aumentar. Assim, não era estranho que, nos Estados Unidos, o coeficiente Gini, um indicador da desigualdade econômica, se situasse no nível mais alto desde os anos 1920.

Os Davos Men do Velho Continente se blindaram frente à crise adotando o mesmo instinto autoprotetor do réptil ou molusco de seus homólogos norte-americanos. A Alemanha – outrora orgulhosa de seu modelo equitativo de mercado social – havia subido ao comboio norte-americano após a reunifica-ção, copilotado alegremente pelo chanceler social-democrata Gerhard Schröder, arquiteto da histórica reforma trabalhista alemã e que recebera ardorosos elogios durante a aparição em Davos em 2005. Enquanto a crise paralisava a zona do euro, os executivos alemães colhiam lucros. Segundo um estudo glo-bal realizado pela central sindical norte-americana afl-cio [American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations] em abril de 2013, o ganho de um ceo alemão era 147 vezes superior ao salário de um trabalhador médio. Já na década anterior os executivos das grandes empresas, com ações na Bolsa de Frankfurt, tinham sido contemplados com um aumento de 55% em seu pacote de remuneração, enquanto o aumento salarial médio fora de 6%.

O Davos Man Martin Winterkorn, presidente da Volks-wagen, autêntico fanático do Fórum Econômico Mundial, que nunca perdeu uma só reunião de cúpula na montanha mági-ca desde 2008, duplicou seus ganhos em 2012 para 17 bilhões de euros, não sem antes lamentar, numa sombria e cínica de-monstração de humor negro digna de um personagem do ro-mance de Thomas Mann, que ninguém o impediu de ganhar

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tanto dinheiro. Josef Ackermann, o poderoso ceo do Deutsche Bank – de nacionalidade suíça –, aproveitou-se de sua posição no conselho fundador do Fórum e na presidência do Institute of International Finance (iif) em Washington – lobby bancário internacional – para instar a Europa a modernizar e privati-zar suas cadernetas de poupança e bancos públicos seguindo o modelo anglo-saxão; isto, diga-se de passagem, ajudaria a justificar o montante estratosférico do pacote de remuneração de Ackermann – uns 43 milhões de euros entre 2007 e 2011, mais 18,7 milhões a título de pensão no momento de sua apo-sentadoria em 2012 –, mais ajustado ao modelo de Wall Street e da City londrina do que ao norte da Europa.

Nas regiões da Europa mais castigadas pela crise e a de-sastrosa resposta encontrada para ela, “desvalorização inter-na” (leia-se cortes nos gastos públicos e nos salários), os dados eram mais chocantes ainda. Na Grécia, o trabalhador médio sofrera cortes em seu poder aquisitivo de até 50% após vertigi-nosa queda salarial, junto com o aumento de impostos. A elite grega, sem dúvida, se blindava, protagonizando uma devas-tadora fuga de capitais para paraísos fiscais, entre eles, certa-mente, a Suíça, onde o sigilo bancário e regimes tributários de índole especial protegiam seu patrimônio do turbilhão. Aris-totelis Mistakidis, sócio da em nada transparente multinacio-nal de matérias-primas Glencore, havia se convertido da noite para o dia no homem mais rico da Grécia com um patrimônio de 2,7 bilhões de dólares, graças em grande parte ao paraíso fiscal de Zug, um curioso cantão suíço situado a uma hora de Davos, que visitaremos em outro capítulo mais à frente. Na Irlanda, o Tigre Celta agonizava, e uma década de avanços econômicos e sociais fora destruída em apenas dois anos. En-tretanto, grandes empresários do setor imobiliário, como Seán

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Dunne e Derek Quinlan, os reis da catastrófica bolha irlandesa – conheceremos a todos intimamente no capítulo cinco –, ain-da conservavam suas fortunas offshore e mantinham mansões multimilionárias em Greenwich (Connecticut), capital da in-dústria dos hedge funds, e Lausanne (Suíça), respectivamente.

Algo parecido ocorria na Espanha. Os cortes salariais e uma destruição do emprego, jamais registrada em um espaço de tempo tão curto, coincidiram com um mais que razoável período da Bolsa de 2011-2012 e um excelente lucro empre-sarial, que registrou um aumento de 5% nesse mesmo perío-do, causado, em boa medida, pelo que as grandes empresas espanholas desenvolveram na maior parte de seus negócios (e pagavam a maior parte de seus impostos) em outros países. Segundo estudo, já citado anteriormente da afl-cio, o pacote de remuneração médio de um ceo espanhol foi, em 2012, a 4,4 milhões de dólares, frente aos 34.600 do empregado médio (um múltiplo de desigualdade de 127). Enquanto a renda de 99% dos espanhóis caía de forma acentuada durante a crise, o salário do executivo médio de uma empresa com cotação Ibex, índice da Bolsa espanhola, havia subido em torno de 64% nos seis anos anteriores a 2011. Os empresários espanhóis globali-zados prosperavam enquanto a Espanha afundava.

Amancio Ortega, criador da marca Zara com 15 bilhões de euros3 de patrimônio em 2012, ascendeu ao terceiro lugar no ranking de bilionários da Forbes. Poucos se atreviam a fa-lar sobre isso nos meios espanhóis, sempre dispostos a elogiar o inovador modelo de administração global inventado por Ortega. Mas o magnata e self made man galego devia gran-de parte de sua fortuna ao subemprego de sua confecção em

3 Em 2015 a fortuna estava avaliada em 64 bilhões de euros. [N. E.]

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países como Bangladesh onde, em um período de três meses na primavera de 2013, dois incêndios e o desmoronamento de um edifício com centenas de fábricas haviam tirado a vida de mais de mil trabalhadores cujo salário médio era de apenas 30 euros mensais.

Os empreiteiros Rafael del Pino e José Manuel Entreca-nales, por sua vez, eram assíduos no Fórum Mundial, cujos conferencistas jamais lhes formulavam perguntas incômodas em relação a suas responsabilidades no grande inchaço ou no superestouro da bolha imobiliária espanhola. Del Pino ainda mantinha seu posto no clube de bilionários Forbes, embora sua endividadíssima construtora Ferrovial – com a estratosférica cifra de 20 bilhões de euros no vermelho – fosse um dos exem-plos mais flagrantes do overstretch corporativo espanhol que tinha semeado o temor nos mercados de títulos internacionais, contaminando desse modo a dívida pública. Agora que a fonte da Espanha tinha secado, víamos Del Pino em Davos tratando de convencer a Luciano Coutinho, todo-poderoso presidente do banco público brasileiro bndes, a levá-lo em considera-ção para a próxima fase do acelerado desenvolvimento (e das inevitáveis bolhas) do Brasil. Entrecanales também recorria a Davos em busca de networking global. Especialista nos negó-cios realizados entre as famílias endogâmicas que dominam a construção civil espanhola, buscara uma via de entrada no mercado de energia renovável britânico ao contratar a milio-nária advogada espanhola Míriam Gonzáles Durantez, espo-sa do vice-primeiro-ministro Nick Clegg, ambos esquiadores obstinados de pistas altas e proprietários de um chalé em Da-vos cujo valor estimado é de sete milhões de euros. E, a julgar pela lista de contas suíças – filtradas pelo “X-9” do banco hsbc em Genebra –, cujos titulares eram membros da elite europeia,

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os inúmeros executivos banqueiros espanhóis, que a cada ano chegavam às pistas de Davos, aproveitavam a viagem à mon-tanha mágica para se informar, em Zurique, sobre o estado de seus investimentos sigilosos nos bancos suíços.

Também muito frequente em Davos era Ana Patricia Bo-tín, herdeira da fortuna do Banco Santander e entusiasta do esqui de pistas negras, e que a cada janeiro se transformava em uma autêntica Heidi cântabra. Nos primeiros dias Ana exercia o papel de anfitriã da festa de fim de ano celebrada no Hotel Palace de Gstaad, um vilarejo alpino que fazia as delícias da elite espanhola ao combinar uma estação de esqui superluxuo-sa com um clube de iates (apesar de o lago Genebra estar a mais de 40 quilômetros), para, posteriormente, terminar seu périplo em Davos. De modo que em nada surpreende que o coeficiente de Gini espanhol tenha disparado três pontos per-centuais entre 2008 e 2011, prova conclusiva de que, definitiva-mente, a Espanha já pertencia à sociedade do 1-99%.

O certo é que os níveis de tolerância e resistência do Davos Man em relação à crise era em âmbito global. O Wealth Re-port de Capgemini – uma dessas consultoras multinacionais cuja alma do negócio consiste em elaborar informes que justi-fiquem os ganhos estratosféricos de seus clientes – confirmava com satisfação que a classe milionária mundial se recuperava plenamente, uma vez superado o grande susto. Após a quebra do Lehman Brothers em outubro de 2008, com o naufrágio das Bolsas e a recessão mais grave conhecida desde a Gran-de Depressão, o patrimônio dos 103 mil chamados ultrarricos mundiais (indivíduos dos cinco continentes cujo patrimônio ultrapassava os 30 milhões de dólares) havia caído cerca de 20%. Três anos depois, este patrimônio havia sofrido uma es-pécie de efeito elástico: após subir cerca de 33%, já ultrapassava

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o recorde dos anos da bolha econômica. Em escala planetária, o número de bilionários Forbes aumentara cerca de 27% des-de o início da crise em 2007. “Os indivíduos com patrimônio muito alto se recuperaram espetacularmente após a crise”, confidenciou-me Alan Walker, vice-presidente da Capgemini, durante uma entrevista na sede londrina da consultora, visi-velmente impressionado pela capacidade de resistência econô-mica de seus clientes de maior apreço.

Sem dúvida, nos primeiros anos da crise, algo começava a azedar as festas dos participantes nas cúpulas de Davos. O in-controlável aumento das rendas multimilionárias frente à dizi-mada classe trabalhadora, uma classe média cerceada, e o cada vez mais numeroso lumpemproletariado já não constituíam unicamente um problema ético, desses que antes, frequente-mente, se resolvia com um discurso lacrimoso pronunciado por alguma celebridade filantrópica adicta à cúpula de Davos, como Bono, Bill Clinton ou a princesa Rania da Jordânia. Tam-pouco se limitava a problemas derivados dos violentos protes-tos que devastavam cidades desde o Cairo até Tottenham. Não. Para o Davos Man, tratava-se de algo muito mais grave: a de-sigualdade havia se convertido em um problema de sustenta-bilidade econômica. A polarização das rendas era um “câncer que destruía a capacidade de nossas economias para crescer e gerar emprego”, advertia o britânico Stewart Lansley, autor de The Cost of Inequality: Why Economic Equality is Essential for Recovery [O custo da desigualdade: por que a igualdade eco-nômica é essencial para a recuperação]. Fareed Zakaria, então diretor da revista Time, já alertara sobre isso em uma fala na cúpula de 2011. A desigualdade de renda entre os ricos e o resto da população já começava a ameaçar inclusive a viabi-lidade de seu principal beneficiário: o Davos Man. “Se todos

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