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REPORTAGEM Após a vitória da Irmandade Muçulmana e a chegada do novo Presidente, Mohamed Morsi, multiplicam-se as humilhações e a violência contra as mulheres. Face à escalada do radicalismo religioso regressão dos seus direitos, a liberdade das mulheres egípcias é mais do que nunca uma luta. POR ISABELLE GIRARD FOTOGRAFIA DE AXELLE DE RUSSÉ ff/ "Os léus seios vão / \ para o inferno", disse- l J -lhe uma noile um \ / homem barbudo de S olhos claros com um pequeno jiorro de croché na cabeça e veslido com um "fiandoura" caslanho. quandoela rei>rossa\aaea.saem Ilelió- polis. subúrbio chique tio Cairo. "Se o reslo 11 ir para o paraíso, oíereco-os de boa vontade ao diabo", respondeu-lhe Nesrine Choucri. de 30 anos, jornalista do /Vix/rè.s- Kgvplien. um jornal diário fraucófono. Nesse div, como aliás em lodos os ou lros desde os KS anos. Nes- rine vestia uma saia comprida axul- -marinho. uma camisola de inania comprida eo hijcib. o véu que lhe es- condia os cabelos eo queixo. I jilão de quec(|uesequeixa\aosalallsta(la\(i rá\e! ao regresso do Islão tradicif >nal)'.' 'T,leacha\aque se viam demasiado as minhas li irmãs", explica ci nn Lima gar- íialhada. Queria que eu usasse um niíjíib l\éu que cobre o rosto eso re\ela os olhos)." Km frente de uma chá\ona de cale, na pastelaria C arinos. de fachada envelhe cicia, a dois passos das instalações da Presidência da Ilepublica. Nosrinc conta como a sua \ ida impercetivel- menle mudou depois da revolução de fevereiro de 2()\\ Não porque o \éu sé> lenha aparecido nas mas do Cairo com a eleicài i de \ lohamed Morsi, no dia 114 de junho passado, não porque a vitoria da Irmandade Muçulmana seja real- mente uma surpresa, nem porque os seus métodos de intimidação não le- ni iam já sidooxperimcnlado.s. Knlãoo que é que mudou':' "Com a \itória do seu cândida 10. eles têm a.^ora tique não tinham antes: legitimidade para impor a sua \ isão religiosa ea Lia sociedade', esclarece Nasrine. "K sou eu. uma mu- lher de \éu que u>s está a dizer islo. I Vsdeo dia liõ de janeiro de 201 1. a Ir- mandade Muçulmana e os salallslas multiplicaram os vexames e a violência contra as mulheres. Nas zonas limítro- fes de Uoulak, o bairro da imprensa, onde se encontram sediados os maii i- res jornais diários, seissalatlslas ataca- ram um salão de cabeleireiro, amea- çandi i de morte as mulheres de cabeça descoberta. Num supermercado da ci- dade de Nasser mulheres \ ciadas agre- diram mulheres sem véu que osta\ am a fazer as suas ci mipras. |-',m Alexandiia. baiulos de salafislas pi'o\ocaram dis- túrbios nas praias c desli^iiíram os bal- neários para dissuadirem as mulheres de tomar banho.

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Page 1: REPORTAGEM Irmandade Muçulmana - clipquick.com · Após a vitória da Irmandade Muçulmana e a chegada do novo Presidente, Mohamed Morsi, ... Face à escalada do radicalismo religioso

REPORTAGEM

Após a vitória da Irmandade Muçulmana e a

chegada do novo Presidente, Mohamed Morsi,multiplicam-se as humilhações e a violência

contra as mulheres. Face à escaladado radicalismo religioso e à regressão

dos seus direitos, a liberdade das mulheres

egípcias é mais do que nunca uma luta.

POR ISABELLE GIRARD • FOTOGRAFIA DE AXELLE DE RUSSÉ

ff/ "Os léus seios vão

/ \ para o inferno", disse-

l J -lhe uma noile um\ / homem barbudo deS olhos claros com um

pequeno jiorro de croché na cabeça e

veslido com um "fiandoura" caslanho.

quandoela rei>rossa\aaea.saem Ilelió-

polis. subúrbio chique tio Cairo. "Se o

reslo 11 ir para o paraíso, oíereco-os de

boa vontade ao diabo", respondeu-lhe

Nesrine Choucri. de 30 anos, jornalistado /Vix/rè.s- Kgvplien. um jornal diário

fraucófono. Nesse div, como aliás em

lodos os ou lros desde os KS anos. Nes-

rine vestia uma saia comprida axul-

-marinho. uma camisola de inania

comprida e o hijcib. o véu que lhe es-

condia os cabelos e o queixo. I jilão de

quec(|uesequeixa\aosalallsta(la\(irá\e! ao regresso do Islão tradicif >nal)'.'

'T,leacha\aque se viam demasiado as

minhas li irmãs", explica ci nn Lima gar-

íialhada. Queria que eu usasse um

niíjíib l\éu que cobre o rosto eso re\ela

os olhos)."

Km frente de uma chá\ona de cale, na

pastelaria C arinos. de fachada envelhe

cicia, a dois passos das instalações da

Presidência da Ilepublica. Nosrinc

conta como a sua \ ida impercetivel-

menle mudou depois da revolução de

fevereiro de 2()\\ Não porque o \éu sé>

lenha aparecido nas mas do Cairo com

a eleicài i de \ lohamed Morsi, no dia 114

de junho passado, não porque a vitoria

da Irmandade Muçulmana seja real-

mente uma surpresa, nem porque os

seus métodos de intimidação não le-

ni iam já sidooxperimcnlado.s. Knlãoo

que é que mudou':' "Com a \itória do

seu cândida 10. eles têm a.^ora tique não

tinham antes: legitimidade para impor

a sua \ isão religiosa e a Lia sociedade',

esclarece Nasrine. "K sou eu. uma mu-

lher de \éu que u>s está a dizer islo.

I Vsdeo dia liõ de janeiro de 201 1. a Ir-

mandade Muçulmana e os salallslas

multiplicaram os vexames e a violência

contra as mulheres. Nas zonas limítro-

fes de Uoulak, o bairro da imprensa,onde se encontram sediados os maii i-

res jornais diários, seissalatlslas ataca-

ram um salão de cabeleireiro, amea-

çandi i de morte as mulheres de cabeça

descoberta. Num supermercado da ci-

dade de Nasser mulheres \ ciadas agre-

diram mulheres sem véu que osta\ am a

fazer as suas ci mipras. |-',m Alexandiia.

baiulos de salafislas pi'o\ocaram dis-

túrbios nas praias c desli^iiíram os bal-

neários para dissuadirem as mulheres

de tomar banho.

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Os dias gloriosos e cheios de en-tusiasmo da revolução km um

gosto amaino. "J;í não sei cm que ponto

eslou", confessa f';irida Choubachy.es-crilora e editorial islã da cadei;i de lole-

visàoNi! Nevvs.da I>BC edn ii -anco24,

c|iie recorda que um jovem foi movlo cm

Suez porque eslava de mão dada com a

namorada na rua. ''Nos anos 60, não se

fazia diferençai entre homens c mulhe-

res. Dorepenle envolveram-nos numa

mortalha."

(lihane Znki, professora de egiptologia

na L níursidade de I lelwan do Cairo,

consultora da I,'nesco pai -a a festão do

património cultural de egiptolt igia, di-

vorciada, de no\ o casada, mãe de três (i -

lhas, resiste à sua maneira. Desde ;i

revolução, passHii-sr ostensivamente

com camisas sem mancas, lendo na

malu um lenço prelo para colocar sobre

os ombros, para o caso de... "De qual-

quer lorma. rei irei todos os \cstid< is do

roupeiro. A pressão social 6 demasiado

forte. \o meu tempo luláuimos pelos

nossos direilos: hoje em dia, a maior

parte das raparigas parece ler ahdi-

cado." Por convicção ou pnra In^pa/V( ) assédio sexual tornou-se um flagelo

nacional: B."> jxu" cento das mulheres

egípcias s;~io\ íliniastleasstVlio. I )oisdia>

atiles da revolução, saiu uma lei que oli-

ciali/a\a o assédio como crime, mas as

queixas são raras. ( ) filme de Mohumed

I )iah, Lcs femmcs dv bus 678, descreve

a fruslraçãi >dos hi )mens reduzidos ao si-

lêncio por anos de diladura, castrados

pela escalada do Islão. T.los lêm um

órgão sexual no sílio tios olhos", awn-lura-se a dizer Mona Makram-Kbrid,

e\-depuLada copla c professora de ciên-

cias políticas mi L imersidade Ameri-

caiui do Cairo.

"bm dia, vi um segurança à enlrada do

clube desportivo de (iezira. KsLav a a dor-

mir. Numa mão linlui o Corào, a outra es-

tava em cima d;i braguilha, làa quasi 1

uma metáfora da condição masculina no

Kuilo." I )c quem <-' ;i culpn'.1 "Mai^i >a-me

qiicscconsklerco Islão responsável", Ia

mcnl a ( i cineasl a 1 )iab. No \ Icxici 1.I>u1

>u na

índia, o assédio lambem abunda. "Mas

nós", prossegui", "lemos uma herança

culliiralperuTSLi que incila a que se che-

gue \ ir.vem ao casanienlo." A Icnsãc > se-

xual é por isso enorme e fax se senlir

mesmo na rua. "\\i\ lenho a sensação de

ser embrulhada! pelo olhar dos ho-

mcns",di/.Karen

Nadei; conlabi-

lisía. N\'slaseon-

dieões. a |i]'osli-

luieão c|iiase se

lorna um alo de

saúde pública.

laeililado, ainda

mais, pela eriso cconóniiea. "I lá riipni'

lias c|ul' se pi'osliluein por uma Liarrafa

de azeile e um bocado de manteiga, loi

o que aeonleeeu à i'apiiri,u;i do salão ele

cslélica ali da esquina." K acrescenla:

"A scsíuir (azem economias para mandar

"DE REPENTEENVOLVERAM-NOSNUMA MORTALHA."

ESCRITORA E EDITORIAUSTAFARIQACHOUBACHY,

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relazer o hímen a (Itn de se apresentarem

virgens no casamento. Tornou-se uma in-

dústria florescente controlada pelos chine-

ses, que fabricam os nossos hímones como

fabricam as lanternas para o Ramadão."

A era Mubarak trouxera direitos

para as mulheres airavés do Conse-

lho Nacional da Mulher, criado pela mu-lher de Muharak. Mona Abdel Hameed,consultora na área da energia, interroga--se: "O ('IR ÍCommercial lntcrnalional

Bank), com quem cola-

boro, emprega sobre-

ludo mulheres. Mas há

muitos homens quenão querem trabalhar

connosco e essa ten~

dência não vai mudar."

C) círculo que rodeia

Morsi é muito reacio-

nário. Foi mesmo enca-

rada a hipótese de

übolir o ensino da lín-

gua inglesa na escola.

Eles pretendem voltar

às fontes do Islão de

I lassan 01-Banna (da contraria da Irmandade Muçulmana)."Na Assembleia Nacional, alguns islamitas(rcpresenlam 25 por cento dos deputados)

sobressaíram propondo relbrmarafcWo unia disposição que permite às mulheres

divorciarem-se sem o acordo do marido , reclamando a diminuição da idade para o

casamento e encarando o retorno à prática da excisão. São distribuídos panfletos

junlo à mesquita onde podemos ler esle género de argumento: "Excisadas, as mu-

lheres ficam mais pudicas e protegem a honra da família." Martine, uma francesa ins-

talada em Zamalek. recorda-se de ler falado durante noites inteiras com o vizinho

para o convencer a não mandar excisar a filha. "A Ibrça de argumentos, disse-lhe: 'O

profeta criou-nos com um sexo. Transformá-lo seria um atentado à sua vonlade.'"

Ao volante da sua BMW, entre a Faculdade de Medicina lio Cairo, onde dá

aulas, e o seu gabinete particular, onde dá consultas, a célebre sexóloga llebaGamai Kotb é uma mulher expansiva: "Eu uso o véu. li então? O meu véu é um

lenço (iivenchy, o meu relógio é um Holex, a minha carteira é Rurbcrry. Tenho

três filhas, um marido oftalmologista e moro numa casa perlo das Pirâmides; sou

muçulmana e acho que aquilo que o proibia disse é o caminho que devemos se-

guir." Animou o HigShow. depois, o Very Big Show. uma emissão Idevisivd muilo

popular da cadeia de satélite El Mehwar, onde ousa falar de todos os assunlos

tabu: o prazer das mulheres, o conhecimento do corpo, a masturbação mani-

festando-se contra as relações sexuais antes do casamento. "Se as uniões não re ¦

sullam, é porque as mulheres conheceram outros homens e os homens

conheceram outras mulheres c passam o tempo a fazer comparações. O meu

papel é voltar a pôr loda a gente no caminho

cerlo." Isso não impede Soraya, dançarina de

danças orientais, de se apresentar nos grandeshotéis da capital. "( ) novo regime é tão hipó-crita, que faz falta alguma distração, não acha?",

explica a beldade, envergando soutien-gnrgc e

calções brilhantes. "Além disso, pertencemos à

cultura nacional. í ) Morsi não nos pode fazer

mal." E acrescenta com uma piscadela de olho

marota uma frase que se tornou uma espéciede mantra no Egilo: "Morsi beaucoup." •

Mona Makram-EbeidPROFESSORA DE CIÊNCIASPOLÍTICAS NA UNIVERSIDADEAMERICANA DO CAIRO

"A mulher,escoadouro dosnovos ódios."Será que o Presidente Morsi podeatacar os direitos das mulheres?Durante a sua campanha, ele disse queseria o Presidente de todos os egípcios.Mas o que me inquieta são os violentos

ataques verbais ou físicos de que asmulheres são vítimas e que acabampor se banalizar. Para mim, a mulheré o escoadouro dos novos ódios.

Porquê tanta violência?As mulheres parecem-me ter-setornado objetos submissos em relaçãoaos homens. Perderam uma parte da

sua liberdade. Uma mulher que não

seja casada não pode alugar um

apartamento. Um casal que não sejacasado não pode ter relações sexuais.0 homem frustrado pela ausência

de relações normais escolhe entre

a violência, o terrorismo, a religiãoou o bango, uma espécie de droga

semelhante ao ecstasy.Não existiu sempreesta situação no Egito?Não, basta ver os filmes egípciosdos anos 60!Acha possíveluma releitura do Corão?Eu participei na redaçãoda Declaração de al-Azhar.É um texto que declaraa igualdade, a liberdade, a dignidadee a justiça social e para todos os

egípcios, homens, mulheres,

muçulmanos, cristãos. Iniciado peloDr. Ahmed al-Tayyeb,grande imã da mesquita al-Azhar,a maior autoridade islâmica do mundo,deveria servir de plataformaà redação da próxima constituição.Se não, podemos recearum regresso a um Islão arcaicoe fanático. Fizemos a revoluçãoe esperávamos uma nova era, não

uma volta atrás. Velar as mulheres

não fará esquecer o desemprego,a miséria, a injustiça social queestá na origem das revoltas.