repercussÃo geral no recurso extraordinÁrio · prof. william rocha rio de janeiro, rj 2010 ....

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” PROJETO A VEZ DO MESTRE REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO JOAQUIM TADEU PONTES FERREIRA Orientador Prof. William Rocha Rio de Janeiro, RJ 2010

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

JOAQUIM TADEU PONTES FERREIRA

Orientador

Prof. William Rocha

Rio de Janeiro, RJ

2010

UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Apresentação de monografia à Universidade Cândido Mendes como requisito parcial para obtenção do título de pós-graduação em Direito Público e Tributário.

Por: Joaquim Tadeu Pontes Ferreira

AGRADECIMENTOS

A minha família, por todo o apoio e

amor ao longo desses anos todos, aos

meus amigos e a minha noiva, pelo

incentivo e companheirismo.

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos meus pais,

pelo carinho e incentivo constantes,

tornando sempre mais fácil o caminho

a ser trilhado.

RESUMO

Analisa-se o recente instituto da repercussão geral das questões

constitucionais, criado pela Emenda Constitucional 45 de 2004 e regulamentado pela Lei

11.418 de 2006 e pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Essa análise envolve

os seguintes aspectos: históricos; direito comparado; constitucionais; e processuais. Pretende-

se esclarecer as razões que levaram ao surgimento do instituto e apresentar a disciplina

constitucional e infraconstitucional relativa ao mesmo.

METODOLOGIA

Como metodologia de trabalho, realizou-se pesquisa bibliográfica, consulta à legislação pertinente e o estudo de doutrina e jurisprudência.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 08

2 ANÁLISE DOS ASPECTOS HISTÓRICOS ................................................................... 10

2.1 Breve histórico das Cortes Constitucionais .................................................................... 10

2.1.1 O modelo americano ........................................................................................................ 10

2.2 O modelo brasileiro .......................................................................................................... 14

2.3 O Recurso Extraordinário ............................................................................................... 20

2.4 A Crise das Cortes Constitucionais : Fenômeno mundial ............................................ 29

3 RESPOSTAS À CRISE: EXPERIÊNCIA EM OUTROS PAÍSES ................................ 31

3.1 Estados Unidos ................................................................................................................. 31

3.2 Argentina ........................................................................................................................... 38

4 RESPOSTA BRASILEIRA ............................................................................................... 41

4.1 Soluções Pré-Repercussão Geral .................................................................................... 41

4.1.1 Óbices regimentais .......................................................................................................... 43

4.1.2 Óbices legais .................................................................................................................... 45

4.2 Repercussão Geral ............................................................................................................ 52

4.2.1 Parâmetros legais: Constituição ...................................................................................... 55

4.2.2 Parâmetros legais: 11.418/2006 ...................................................................................... 58

5 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 63

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .......................................................................................... 64

1 INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentou ao art. 102 da

Constituição da República o parágrafo 3°, impondo, como requisito para o conhecimento do

recurso extraordinário, a demonstração da repercussão geral das questões constitucionais

debatidas em uma lide. Com o fim de regulamentar este dispositivo constitucional, editou-se a

Lei 11.418, de 19 de dezembro de 2006, que inseriu os arts. 543-A e 543-B ao Código de

Processo Civil, determinando as linhas gerais da matéria e deixando ao Regimento Interno do

Supremo Tribunal Federal a tarefa de detalhá-la.

Embora singelas em tamanho, tais alterações legais representam profundas mudanças

no regime jurídico do recurso extraordinário, na atuação do Supremo Tribunal Federal e,

quiçá, na fruição do direito fundamental ao acesso à justiça.

Sem sombra de dúvida, as modificações efetuadas pelo Legislativo são uma resposta

ao exponencial problema da quantidade de demandas que chegam ao Judiciário e que, quase

sempre, só se resolvem em nossa corte suprema, por intermédio do recurso extraordinário. É

certo que a inafastabilidade do controle judicial, consagrada no art.5°, XXXV da Constituição

de 88, representa um dos mais importantes direitos de nosso ordenamento jurídico, expressão

inequívoca de um Estado de Direito. Entretanto, o advento e a consolidação desta

Constituição, que traz em seu bojo não só direitos, mas também as garantias a eles, somado ao

fenômeno da judicialização das questões políticas e ao conseqüente ativismo judicial, gerou

uma sobrecarga aos nossos magistrados, um acréscimo constante no acervo processual de

cada juiz, efeito este que, por aritmética simples, se faz muito maior sobre os onze Ministros

do Supremo. A tudo isso se deve agregar ainda a cultura mais que enraizada do “mau

perdedor”, que leva nossos advogados a criarem as mais estapafúrdias controvérsias

constitucionais, com o único intuito de adiar o fim da demanda e de “mostrar serviço” a seus

clientes.

Emergem, pois, destes recentes dispositivos, não só questões de técnica processual

referentes ao recurso mais importante do sistema processual, como também questões

constitucionais e sociais, ligadas às funções do Supremo, ao direito de ação e à forma de se

fruí-lo, além do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (especialmente sob o aspecto

da duração razoável dos processos, art. 5º, LXXVIII, CR, dispositivo que também foi alterado

pela Emenda Constitucional 45).

O objetivo deste trabalho é analisar o recente instituto da repercussão geral nos

recursos extraordinários, avaliando suas conseqüências jurídico-sociais.

Para tanto, far-se-á, em um primeiro momento, a contextualização histórica que

envolve o tema, percorrendo-se, em um vôo horizontal, a evolução processual do acesso à

justiça e da função do Estado-juiz.

Em seguida, estabelecer-se-á a estruturação conceitual necessária ao desenvolvimento

da questão, enfatizando os aspectos constitucionais (função do Supremo Tribunal Federal,

arranjo institucional do Estado) e processuais (regime do recurso extraordinário, regime da

repercussão geral, tutela jurisdicional efetiva).

Por fim, tratar-se-á dos possíveis efeitos, positivos e negativos, da repercussão geral,

incluindo-se o viés social já destacado.

2. ANÁLISE DOS ASPECTOS HISTÓRICOS

2.1 Breve histórico das Cortes Constitucionais

Para melhor estruturar o tema que será tratado nesta monografia, algumas breves

considerações históricas se fazem necessárias, começando pela análise das Cortes

Constitucionais, baseada nos principais modelos que inspiraram os Estados constitucionais

mundo afora: o modelo americano e o modelo francês. A partir desta análise será possível

discorrer acerca do modelo brasileiro, examinando os principais aspectos do Supremo

Tribunal Federal e do Recurso Extraordinário, com o intuito de identificar as razões que

levaram à notória “crise” do Supremo, crise esta que, sem dúvida alguma, constitui o

fundamento maior da modificação constitucional realizada por meio da Emenda

Constitucional n. 45, criadora do instituto da repercussão geral.

2.1.1 O modelo americano

Certamente, a independência dos Estados Unidos é um dos eventos mais importantes

da história moderna da humanidade, influenciando de forma direta o que ocorreria nos séculos

seguintes. De todas essas influências, interessa a este trabalho o modelo federativo-

constitucional concebido, com a previsão de uma Suprema Corte constitucional, de esfera

federal, no ápice do Poder Judiciário, com competência recursal para rever as decisões finais

das cortes estaduais.

Embora hoje, passados mais de duzentos anos, o federalismo, nos moldes americanos,

pareça uma estruturação quase que natural, sua construção não se deu de maneira tão simples.

As treze colônias, quando da guerra pela independência, decidiram se integrar para

enfrentar de maneira mais efetiva (e econômica) as investidas inglesas contra-revolucionárias.

Assim, estabeleceu-se contratualmente a união entre as colônias, denominada “Artigos de

Confederação e União Perpétua”, que seria reduzida posteriormente para “Artigos de

Confederação”. Tal governo tinha por característica principal a ausência dos Poderes

Executivo e Judiciário, existindo apenas uma assembléia, chamada Congresso1.

O consenso atingido na Convenção de Filadélfia foi fruto de longos debates entre duas

correntes absolutamente distintas, que dividiam as treze colônias recém-independentes. De

um lado, havia os centralistas (Federalists), avessos à confederação por acreditarem-na

incapaz de implementar a democracia sem Poder Executivo ou Judiciário, dada a extensão

territorial do país, pugnando pela concentração de poderes num ente central para a consecução

de tal tarefa, baseados nos descumprimentos, no âmbito interno dos Estados, das normas

impostas via tratados, durante a Confederação.

No extremo oposto estavam os defensores da confederação (Anti-Federalists), que

influenciados pela longa e ainda recente experiência com uma autoridade centralizadora de

poderes - a metrópole inglesa -, pregavam a independência dos Estados como único modelo

possível.

A solução encontrada gerou o federalismo que conhecemos hoje. Estas palavras de

Luís Roberto Barroso ilustram bem a decisão tomada:

Para acomodar a necessidade de criação de um governo central com o desejo de autonomia dos Estados – que conservaram seus próprios Poderes e amplas competências – concebeu-se uma nova forma de organização do Estado, a Federação, que permitiu a convivência dos dois níveis de poder, federal e estadual2.

Do grande debate político acerca da ratificação da Constituição surgiu uma das obras

mais importantes da literatura política: The Federalist Papers – também conhecido como O

Federalista. Nesta obra, que nada mais é que a compilação de ensaios publicados na imprensa

à época dos debates, John Jay, James Madison e Alexander Hamilton discorrem

sistematicamente sobre a Constituição e suas instituições, com o intuito de evidenciar a

necessidade de ratificá-la. Como aduz o constitucionalista Oscar Vilhena Vieira, estes ensaios

sobre a Constituição “(...) constituem, mais do que a sua principal defesa, uma autêntica

interpretação da teoria política que informa o constitucionalismo americano”3.

1 ZIMMERMANN, Augusto. Teoria geral do federalismo democrático. Rio de Janeiro: Lumen juris, 1999, p. 242 et seq. 2 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 1ª ed., 3ª tir. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 17. 3 VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais sobre o poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 64.

Com relação à estrutura do Judiciário, a corrente centralista prevaleceu, ficando

prevista a existência de uma Suprema Corte Constitucional com amplos poderes.

Em um dos papers d’O Federalista (n. 80), Hamilton justifica esta previsão,

apontando como principais motivos a necessidade de manutenção da primazia da Constituição

em face da legislação e dos atos de governo estaduais e a uniformização das interpretações

dadas às normas federais4-5.

Portanto, o receio de que a forte autonomia dos Estados-membros e as mais do que

prováveis diferentes interpretações do direito federal, feitas em decisões definitivas dos

tribunais estaduais, levassem ao esvaziamento da Constituição, deu ensejo à previsão de uma

Corte Constitucional, com a missão de preservar a Constituição e, conseqüentemente, o pacto

federativo firmado.

Desta forma, a Suprema Corte exerceu e exerce papel central na evolução do

constitucionalismo norte-americano. Como afirma o professor Barroso, “A história do direito

constitucional americano é contada pelas decisões da Suprema Corte (...)”6. Cumpre

esclarecer que os Estados Unidos adotam o sistema da common law, no qual prevalecem

como fonte do direito os usos e costumes e a jurisdição, contrapondo-se ao sistema romano-

germânico (civil law), no qual prepondera como fonte a lei, a atividade do Poder Legislativo7.

Por conseguinte, em um sistema no qual prepondera a jurisprudência como fonte do direito,

não causa espanto o fato de a Suprema Corte representar um papel de grande destaque,

assegurado também pela força vinculante atribuída a suas decisões, o stare decisis.

É necessário analisar, mesmo que brevemente, como esta corte chegou a tal ponto de

destaque.

Conforme Bruno Dantas, em 1789, o Congresso americano editou o Judiciary Act, que

regulamentou as competências originária e recursal da Suprema Corte e que, em sua Seção

25, instituiu o writ of error, que concedia à corte o poder de revisão sobre as decisões finais

dos tribunais estaduais em alguns casos8.

4 DANTAS, Bruno. Repercussão geral: perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado: questões processuais. 2ª tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 40. 5 Federalista 6 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 20. 7 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 141-142. 8 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 42.

Foi num destes casos que o Chief Justice (como é chamado o presidente da Suprema

Corte) John Marshall proferiu a mais conhecida, relevante e, até hoje, polêmica decisão do

direito constitucional norte-americano, no caso Marbury v. Madison9, na qual o referido juiz

avocou para o Poder Judiciário o poder de aplicar e interpretar a Constituição. Esta decisão

traduz-se, portanto, como o marco inicial do judicial review, que não possui previsão no texto

constitucional, donde decorre a sua importância.

É bem verdade que, durante o Século XIX, a Suprema Corte exerceu um controle de

constitucionalidade muito restrito, pela observância de diversas limitações a este poder. Como

bem resume José Guilherme Berman Corrêa Pinto:

(...) a Suprema Corte praticamente não atacava a validade de atos legislativos provenientes do Poder Legislativo federal, não exercia controle sobre questões políticas, limitava-se a declarar a inconstitucionalidade quando esta fosse fora de dúvida razoável, colocando-se numa posição de deferência perante o legislador, e não se falava na supremacia de sua interpretação de preceitos constitucionais sobre aquela fornecida pelos demais poderes políticos ou pelo próprio povo diretamente10.

Já no Século XX, e até os dias de hoje, a atuação da Suprema Corte foi diversa. As

muitas limitações que a Corte se impunha foram mitigadas ou deixadas de lado com o

decorrer do tempo, devido principalmente a duas mudanças construídas nesse período. A

primeira alterou a maneira como o direito constitucional era interpretado: o que antes era visto

como um direito eminentemente político, no qual o Poder Judiciário deveria evitar intrometer-

se (autocontenção), passou a ser tratado como direito ordinário. A segunda, que não pode ser

dissociada da primeira, foi a afirmação da Suprema Corte como intérprete-mor do texto

constitucional, abandonando-se a idéia de paridade entre os Poderes na interpretação da

Constituição e a reverência dada à interpretação feita pelo povo (constitucionalismo popular)

ou por seus representantes.

A partir destas mudanças, a Suprema Corte assumiu o papel de destaque antes

apontado, passando a decidir as principais questões constitucionais surgidas nesses mais de

duzentos anos de constitucionalismo norte-americano. O writ of error, que era o veículo por

9 Para uma análise completa do caso v. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 3 et seq.; e TRIBE, Laurence H. American Constitucional Law, 2nd ed. New York: The foundation press, Inc., 1988, p. 23 et seq. 10 PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Repercussão Geral e Writ of Certiorari. 2006. 161 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2006, p. 30.

meio do qual estas questões chegavam à Suprema Corte, foi substituído, gradualmente, pelo

writ of certiorari, que será fruto de análise em item posterior.

2.2 O modelo brasileiro

O direito constitucional brasileiro, embora surgido ainda no Império, com a

Constituição outorgada por D. Pedro I em 1824, só passou a contar com uma corte

constitucional à época da proclamação da República11.

De fato, com o advento de nossa segunda Carta Constitucional, fruto de uma

Assembléia Constituinte recém-eleita após a derrocada do regime imperial12, surgiu o

Supremo Tribunal Federal, em 189113.

Rui Barbosa, que, notadamente, foi o mentor desta constituição, era um estudioso e

admirador do direito estadunidense. Esta forte influência foi decisiva para a escolha da forma

federalista do Estado brasileiro e para a criação de nossa Corte Constitucional, inaugurando-se

o controle judicial incidental e difuso da constitucionalidade das leis no Brasil14-15, não

existindo, portanto, controle em abstrato das normas.

Como se pode inferir do texto constitucional de 189116, o Supremo possuía uma ampla

competência. A originária abrangia o julgamento de autoridades como o Presidente da

11 Durante o período imperial existiu o Supremo Tribunal de Justiça, que era provocado pelo recurso de revista, de origem portuguesa, com a função precípua de defesa da lei em tese. A propósito, v. SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1963, p. 30. 12 Para uma exposição sucinta, porém ilustrativa deste período, v. SKIDMORE, Thomas E., Uma história do Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 106 et seq. 13 Cumpre esclarecer, a título de curiosidade histórica, que a possibilidade de controle jurisdicional das leis e o próprio Supremo Tribunal Federal já estavam previstos na legislação do Governo Provisório republicano, nos Decretos 510 de 22.06.1890 e 848 de 11.10.1890. Cf. BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira – Legitimidade democrática e instrumentos de realização. Rio de Janeiro: RT, 2004, nota de rodapé 256; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. São Paulo: RT, 2007, p. 73. 14 BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 123-124. 15 Sobre a influência de Rui Barbosa e sua interpretação acerca do controle de constitucionalidade inaugurudo com a Constituição de 1891, v. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 170-174. 16 Art 59 - Ao Supremo Tribunal Federal compete: I - processar e julgar originária e privativamente: a) o Presidente da República nos crimes comuns, e os Ministros de Estado nos casos do art. 52; b) os Ministros Diplomáticos, nos crimes comuns e nos de responsabilidade;

República e seus Ministros de Estado; a resolução de conflitos entre entes da federação ou

entre a União e Estados estrangeiros; e a uniformização de decisões divergentes de tribunais

inferiores. A competência recursal sobre decisões dos juízes e Tribunais Federais era

praticamente irrestrita (nos processos criminais havia uma limitação, só se analisavam os

recursos que eram pró-réu), enquanto no plano da justiça estadual só os casos envolvendo

inconstitucionalidade de leis (federais ou estaduais) ou tratados (federais) eram apreciados.

Como bem esclarece Gustavo Binenbojm, a importação do sistema norte-americano de

controle de constitucionalidade, baseado na tradição da common law, embora representasse

uma forma democrática de acesso à Constituição, tanto pelas partes litigantes como pelos

juízes e tribunais, apresentou, desde seus primórdios, certas deficiências e incompatibilidades,

devido à nossa tradição jurídica romano-germânica17.

Com efeito, havia o grave problema da insegurança jurídica, gerado pela possibilidade

de tribunais diversos, em decisão última, julgarem a mesma matéria de maneira divergente,

posto que não se previu nenhum mecanismo de vinculação aos precedentes como o stare

decisis anglo-saxônico. Além disso, outra falha no sistema era a ausência de eficácia erga

omnes nas decisões do Supremo, o que permitia a proliferação de demandas idênticas,

versando sobre a mesma questão constitucional, já que a lei declarada inconstitucional

permanecia vigendo.

Algumas alterações feitas pela Constituição de 1934 tentaram solucionar parte destes

problemas, além de introduzir modificações relevantes no controle de constitucionalidade

c) as causas e conflitos entre a União e os Estados, ou entre estes uns com os outros; d) os litígios e as reclamações entre nações estrangeiras e a União ou os Estados; e) os conflitos dos Juízes ou Tribunais Federais entre si, ou entre estes e os dos Estados, assim como os dos Juízes e Tribunais de um Estado com Juízes e Tribunais de outro Estado.

II - julgar, em grau de recurso, as questões resolvidas pelos Juízes e Tribunais Federais, assim como as de que tratam o presente artigo, § 1º, e o art. 60; III - rever os processos, findos, nos termos do art. 81.

§ 1º - Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas. § 2º - Nos casos em que houver de aplicar leis dos Estados, a Justiça Federal consultará a jurisprudência dos Tribunais locais, e vice-versa, as Justiças dos Estados consultarão a jurisprudência dos Tribunais Federais, quando houverem de interpretar leis da União.

17 BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 124.

pátrio: a vedação ao exame de questões exclusivamente políticas pelo Poder Judiciário (art.

68); a exigência de maioria absoluta de votos dos juízes de um tribunal para a declaração de

inconstitucionalidade (art.179); a previsão da representação interventiva (art.12, §2º); e a

atribuição de competência ao Senado Federal para suspender, total ou parcialmente, a

execução de ato jurídico declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário (art. 91, IV).

A representação interventiva era um mecanismo de provocação do Supremo, pelo

Procurador Geral da República, para que aquele declarasse a constitucionalidade ou não da lei

que determinasse a intervenção da União em um Estado da Federação, com o fim de assegurar

a observância dos princípios constitucionais do art 7º da Constituição18. Surgia, assim, o

germe do controle abstrato de constitucionalidade, que seria aperfeiçoado nas constituições

seguintes, como veremos.

Com a competência atribuída ao Senado Federal buscou-se resolver os problemas

existentes já apontados, dando-se efeito geral às decisões de inconstitucionalidade do

Supremo. Cabe lembrar que esta competência existe até hoje, embora haja quem a considere

desnecessária no sistema híbrido de controle atual19.

Após o Estado Novo (1937-1945), durante o qual Getúlio Vargas possuiu poderes,

atribuídos pela Constiuição de 1937, para tornar sem efeito decisões de inconstitucionalidade

exaradas pelo Supremo20, a Constituição de 1946, fruto da redemocratização, restaurou o

controle de constitucionalidade no Brasil, além de abolir a possibilidade de interferência

direta dos outros poderes nas decisões do STF. Houve uma mudança significativa na

18 Art 7º - Compete privativamente aos Estados: I - decretar a Constituição e as leis por que se devam reger, respeitados os seguintes princípios: a) forma republicana representativa; b) independência e coordenação de poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada aos mesmos prazos dos cargos federais correspondentes, e proibida a reeleição de Governadores e Prefeitos para o período imediato; d) autonomia dos Municípios; e) garantias do Poder Judiciário e do Ministério Público locais; f) prestação de contas da Administração; g) possibilidade de reforma constitucional e competência do Poder Legislativo para decretá-la; h) representação das profissões; 19 CLÈVE, 124-125

20 Art 96 - Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República. Parágrafo único - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.

representação interventiva21, pois não mais se averiguava a constitucionalidade da lei que

decretava a intervenção, mas sim a constitucionalidade de atos normativos dos Estados

perante os princípios constitucionais ligados ao republicanismo, ao federalismo e à

democracia.

Como foi dito antes, a representação interventiva significou o surgimento da ideia de

controle abstrato em nosso ordenamento, pois esse expediente podia ser suscitado

independemente da existência de um caso concreto posto perante o Judiciário, objetivando

primordialmente a suspensão da eficácia do ato jurídico impugnado22-23.

Como aponta a doutrina24, o controle abstrato de constitucionalidade foi introduzido

em nosso ordenamento jurídico com a Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de

1965, ainda na vigência da retalhada Constituição de 1946, durante o regime militar

instaurado com o golpe de 1964. A denominada ação genérica de inconstitucionalidade, com

previsão legal no art. 101, I, alínea “k”25, da Constituição, seguia os moldes da representação

interventiva, dando ao Supremo a competência para declarar a inconstitucionalidade de lei ou

ato de natureza normativa federal ou estadual, mediante provocação exclusiva do Procurador

Geral da República.

Passava o Brasil a adotar um sistema híbrido ou misto de controle de

constitucionalidade, com o já tradicional controle concreto e difuso, de inspiração

21 Art 8º - A intervenção será decretada por lei federal nos casos dos nº VI e VII do artigo anterior. Parágrafo único - No caso do nº VII, o ato argüido de inconstitucionalidade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção. 22 BINENBOJM, Gustavo, op. cit., p. 126. 23 Constituição de 1946, art. 13 - Nos casos do art. 7º, nº VII, observado o disposto no art. 8º, parágrafo único, o Congresso Nacional se limitará a suspender a execução do ato argüido de inconstitucionalidade, se essa medida bastar para o restabelecimento da normalidade no Estado. (grifou-se). 24 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. Ed. cit, p. 63-64; MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 188-192; e BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 126-127. 25 Constituição de 1946 (texto pós-Emenda Constitucional n. 16), art. 101, I, “k” – Ao Supremo Tribunal Federal compete: I – processar e julgar originariamente: k) a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador Geral da República”.

estadunidense, e o controle abstrato e concentrado, mediante ação direta ao Supremo, baseado

no modelo europeu idealizado por Hans Kelsen26.

Outra mudança relevante, trazida por essa Emenda com a introdução do inciso XIII ao

artigo 124 da Constituição27, foi a autorização dada aos legisladores estaduais para instituir o

controle de constitucionalidade de leis ou atos municipais, em processo de competência

originária dos Tribunais de Justiça.

A Carta outorgada de 1967 e a Constituição de 196928 (Emenda Constitucional n. 1,

de 17 de outubro de 1969) mantiveram a estrutura do controle de constitucionalidade,

havendo tão somente três alterações mais relevantes: deixou-se de prever, na Constituição de

1967, a ação genérica estadual, inaugurada pela Emenda Constitucional n. 16 de 1965; além

disso, em 1967, concedeu-se ao Supremo a competência para estabelecer em seu regimento

interno “o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou de recurso”29,

o que possibilitaria a criação da arguição de relevância em 1975, que será fruto de análise em

momento posterior; por fim, na Carta de 1969 foi prevista a ação direta na esfera estadual,

seguindo o modelo da representação interventiva, para os casos de intervenção em

Múnicípio30.

Houve ainda mais duas modificações durante o regime militar, instituídas pela

Emenda Constitucional n. 7, de 13 de abril de 1977 (grupo de medidas conhecido como

“pacote de abril”): a primeira foi a instituição da representação com fins de interpertação de

lei ou ato normativo estadual ou federal, de competência do Procurador-Geral da República,

que visava “evitar a proliferação de demandas, com a fixação imediata da correta exegese da

26 Gustavo Binenbojm faz uma boa análise sobre o modelo inventado pelo jurista e filósofo austríaco, v. BINENBOJM, Gustavo, op. cit., p. 36 et seq. 27 Constituição de 1946 (texto pós-Emenda Constitucional n. 16), art. 124, XIII: a lei poderá estabelecer processo, de competência originária do Tribunal de Justiça, para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de Município, em conflito com a Constituição do Estado. 28 Esta Emenda Constitucional promoveu uma reforma tão profunda na Carta de 1967, que a doutrina costuma se referir a ela como Constituição de 1967/69. Como assevera José Afonso da Silva, a Emenda Constitucional n. 1 “teórica e tecnicamente, não se tratou de emenda, mas de nova constituição”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 87. 29 Art. 115, p. único, “c”. 30 Art. 15, § 3º, “d” - A intervenção nos municípios será regulada na Constituição do Estado, somente podendo ocorrer quando: d) o Tribunal de Justiça do Estado der provimento a representação formulada pelo Chefe do Ministério Público local para assegurar a observância dos princípios indicados não Constituição estadual, bem como para prover à execução de lei ou de ordem ou decisão judiciária, limitando-se o decreto do Governador a suspender o ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade.

lei”31; e a segunda foi a criação do instituto que possibilitava ao STF avocar, também a pedido

do Procurador-Geral da República, causas julgadas em instância inferior que envolvessem um

possível perigo de lesão à ordem, saúde, segurança ou finanças públicas, para que se

suspendessem os efeitos da decisão proferida e para que conhecesse plenamente do caso –

instituto que ficou conhecido, justamente, como avocatória. Fechava-se, assim, o cerco aos

magistrados, que desde o início do regime ditatorial haviam perdido suas garantias funcionais,

o que proporcionou ao governo autoritário o controle total do Poder Judiciário32.

Com a redemocratização, o Brasil ganhou uma nova Carta Constitucional, fruto de

uma Assembléia Nacional Constituinte que durou dois anos, com ampla participação dos mais

diversos setores sociais e correntes ideológicas, promulgada em 5 de outubro de 1988. A

“Constituição cidadã”, como ficou conhecida esta Carta, além de representar uma nova ordem

social, pautada pela democracia e pelos direitos fundamentais, trouxe inúmeras mudanças ao

controle de constitucionalidade pátrio que, tomando-se por base a sistematização feita por

Luís Roberto Barroso33, podem ser resumidas assim:

1. A ampliação do rol de legitimados para propor a ação direta de

inconstitucionalidade (art. 103);

2. A criação de instrumentos de controle da inconstitucionalidade por omissão

(arts. 5º, LXXI e 103, § 2º);

3. O restabelecimento da ação direta de inconstitucionalidade na esfera

estadual (art. 125, § 2º);

4. A previsão de um mecanismo de arguição de descumprimento de preceito

fundamental (art. 102,§ 1º);

5. A criação do Superior Tribunal de Justiça (art. 104), que limitou a matéria

do Recurso Extraordinário às questões constitucionais (art. 102, III).

Destarte, manteve-se o sistema híbrido de controle de constitucionalidade, convivendo

o controle difuso-concreto com o concentrado-abstrato, assim como a representação

31 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 192-193.

32 Ressalte-se que a composição do STF fora alterada, no início da ditadura militar, passando-se dos tradicionais onze para dezesseis ministros, o que garantia ao regime o controle sobre a maioria do tribunal. 33 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. Ed. cit, p. 65.

interventiva, ligeiramente modificada (art. 36, III); e aboliram-se do ordenamento jurídico

pátrio os mecanismos anti-democráticos de outrora, como a avocatória.

A Emenda Constitucional n. 3, datada de 17 de março de 1993, tornou ainda mais

intrincado o sistema brasileiro de jurisdição constitucional, com a introdução da ação

declaratória de constitucionalidade. Esta assemelha-se à ação direta de inconstitucionalidade,

objetivando a confirmação, pelo Supremo, da constitucionalidade de lei ou ato normativo,

com eficácia erga omnes e efeito vinculante.

Como se vê, a Constituição de 1988 modificou substancialmente o controle de

constitucionalidade brasileiro, com ênfase para o modelo concentrado e abstrato, originado na

Europa continental. Esta tendência, iniciada no regime militar, perdurou até 2004, fundada na

esperança de que um modelo de jurisdição constitucional mais compatível com a tradição

jurídica brasileira pudesse resolver os problemas estruturais enfrentados pelo Supremo34.

Entretanto, percebeu-se que este tipo de controle também apresentava problemas e

acarretava dificuldades ao STF35. Assim, tentando dar melhor tratamento ao controle concreto

e difuso, o constituinte derivado promulgou a Emenda Constitucional n. 45, conhecida como

“Reforma do Judiciário”, em 8 de dezembro de 2004, permitindo ao Supremo aprovar

súmulas vinculantes (art. 103-A) e criando um novo requisito de admissibilidade para o

recurso extraordinário, a repercussão geral (art. 102, § 3º).

Desde os primórdios do controle concreto e difuso brasileiro até os dias de hoje, o

recurso extraordinário foi o veículo por meio do qual as questões constitucionais chegaram e

chegam ao Supremo Tribunal Federal. Torna-se indispensável, portanto, analisar este

instituto, tarefa que se passa a cumprir em seguida.

2.3 O recurso extraordinário

34 Estes problemas serão detalhados no tópico seguinte. 35 Cf. PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Repercussão Geral e Writ of Certiorari. 2006. 161 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. p. 83-85.

Olvidando-se a divergência doutrinária quanto à matriz do recurso extraordinário36,

sua existência já estava prevista no Decreto 848 de 11 de outubro de 1890, tendo sido

reafirmado na primeira constituição republicana brasileira, em 1891.

Conforme o que se disse no tópico anterior, o Supremo possuía uma vasta

competência originária e recursal, atribuída pelo artigo 59 da constituição. Dentre as

competências recursais, havia a previsão do parágrafo primeiro, para as causas em que se

debatia a validade de atos normativos dos Estados frente à Constituição ou às leis federais,

nas quais a decisão da justiça estadual, em última instância, era favorável aos atos

impugnados; e para as causas nas quais se contestava a aplicação ou a validade de tratados ou

leis federais, sendo a decisão contra estes. Nessas duas hipóteses, utilizava-se do recurso

extraordinário, que, registre-se, ainda não tinha tal denominação.

Surge com a Carta de 1934 o nome recurso extraordinário, mantido por todas as

constituições seguintes. A competência recursal do Supremo não sofreu alterações

significativas ao longo da experiência constitucional republicana, até o advento da

Constituição de 1988, que criou o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Desde então, o

Supremo passou a tratar somente das supostas afrontas à Constituição, por meio do recurso

extraordinário, cabendo ao STJ a revisão referente às violações à legislação federal, através do

recurso especial.

Há na doutrina uma discussão sobre a melhor denominação do recurso

extraordinário, e o seu enquadramento dentre os recursos excepcionais37, no entanto, como

assevera Rodolfo de Camargo Mancuso:

(...) na classe dos recursos, a subdivisão desejável deve ser aquela que considere certas circunstâncias procedimentais bem visíveis: alguns recursos têm uma forma menos rígida; são dirigidos a Tribunais locais ou regionais; não apresentam exigências específicas quanto à sua admissibilidade; comportam discussão de matéria de fato e de direito; e a mera sucumbência ( = o fato objetivo da derrota) basta para deflagrar o interesse na sua interposição. A esses podemos chamar “comuns”, “normais” ou “ordinários”, conforme a terminologia que se prefira. Naturalmente, os outros recursos que, ao contrário desses, apresentam uma rigidez formal de procedibilidade; são restritos às quaestiones juris; dirigem-se aos Tribunais da cúpula judiciária; não são vocacionados à

36 Enquanto alguns sustentam sua origem portuguesa (v. nota de rodapé), outros afirmam sua proveniência norte-americana – cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 957. 37 V. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 124-125.

correção da mera “injustiça” da decisão (...), esses ficam bem sob a rubrica de “especiais”, “excepcionais” ou “extraordinários” 38.

A essas características apontadas, o autor soma outras particularidades, definidas em

lei, que diferenciam o recurso extraordinário dos ordinários, como o prequestionamento e a

repercussão geral39.

O recurso extraordinário apresenta, assim, características específicas que o distinguem

dos demais recursos, e esta particularidade muito tem a ver com as suas funções. Tomando-se

por base a obra de Bruno Dantas40, é possível dividir as funções dos recursos de cúpula em

clássicas (nomofilática e uniformizadora) e contemporâneas (dikelógica e paradigmática).

A função nomofilática, éspecie das funções clássicas, tem sua origem na França

revolucionária, na qual, como visto em tópico acima (1.1.2), a burguesia saiu vitoriosa,

fulminando o regime monárquico.

A desconfiança que pairava sobre os juízes gerou a Corte de Cassação, órgão situado

fora do Poder Judiciário e que tinha a função precípua de proteger a letra da lei, objetivando

suprimir qualquer possibilidade de interpretações múltiplas de um mesmo comando

normativo, proporcionando segurança jurídica à nova ordem social.

Fala-se hoje, após o ocaso do positivismo legalista, em nomofilática dialética ou

tendencial, na qual o hermeneuta não se prende mais aos limites da lei em si, mas busca uma

interpretação abrangente, compreendendo o ordenamento jurídico como um todo. Nas

precisas palavras de Bruno Dantas:

(...) de modo a significar essas expressões [nomofilaquia dialética ou tendencial] a persecução da unidade do direito, e não mais da lei, mediante a utilização de processos hermenêuticos que auxiliam na investigação da solução mais racional e afinada com preceitos constitucionais. Em outras palavras: utiliza-se um processo dialético para possibilitar ao juiz aferir, dentre as múltiplas interpretações possíveis, aquela que melhor equacione a lide41.

A segunda função clássica é a uniformizadora, por meio da qual intenta-se garantir, no

exercício da função jurisdicional, um efetivo respeito aos princípios da igualdade de todos

perante a lei e da legalidade.

38 Ibidem, p. 125-126. 39 Ibidem, p. 126. 40 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 57 et seq. 41 Ibidem, p. 58-59.

Esta função, ao dar uniformidade à jurisprudência de um Estado, visa afastar as

perplexidades e incoerências das decisões judiciais, posto que, diante de uma mesma moldura

fática, num mesmo contexto histórico, a aplicação de uma determinada lei a um caso concreto

deve produzir o mesmo resultado.

A verdade é que, diante da complexidade da vida moderna, na qual as mudanças

paradigmáticas ocorrem cada vez mais rápido e as relações são cada vez mais intrincadas, e

com a inegável ampliação do acesso à justiça e da judicialização das questões políticas , o juiz

não desfruta mais da confortável posição de ser la bouche de la loi, sendo chamado a decidir

as questões que lhe são propostas de forma efetiva, devendo, para tanto, ponderar os mais

diversos princípios (muitas vezes sem um conteúdo normativo definido) e interpretar

conceitos jurídicos vagos e indeterminados.

Impossível, perante esta realidade, que não haja interpretações conflitantes por parte

dos magistrados, mesmo diante de casos similares, o que se corrige através dessa função

uniformizadora dos recursos excepcionais, em prol da igualdade e da legalidade (vista como

proteção à interpretação emprestada a uma lei).

A primeira das funções contemporâneas é a função dikelógica. Partindo da análise

etimológica do vocábulo, Bruno Dantas chega à seguinte conceituação: “(...) a função

dikelógica está associada à busca de justiça no caso levado ao tribunal, mediante a correta

aplicação do direito. Trata-se, pois, da tutela do chamado ius litigatoris”42.

Desta forma, a despeito das lições tradicionais da doutrina, afirma-se a função dos

recursos aos tribunais de cúpula como um mecanismo de justiça concreta, não apenas reflexa,

com a decisão sobre o direito objetivo.

Evidentemente que esta função varia de intensidade conforme o sistema adotado. Nas

cortes de cassação tradicionais, como a da França, essa função é menos veemente, pois tem-se

como regra o reenvio ao juízo prolator da decisão recorrida, não procedendo a Corte à revisão

da decisão. Já nos sistemas nos quais a prática é a revisão da decisão, tem mais destaque esta

função, pois a corte “aplica o direito à espécie”43-44.

42 Ibidem, p. 66. 43 Esta é uma menção ao Enunciado 456 da súmula da jurisprudência dominante so STF, que diz: “O Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário, julgará a causa, aplicando o direito à espécie”.

Por fim, a segunda função contemporânea é a paradigmática, também chamada

persuasiva. Esta função atribui às decisões em sede de recursos excepcionais força vinculante,

influenciando o comportamento dos tribunais inferiores, que devem se pautar pelos

precedentes das cortes supremas.

Assim como a função dikelógica, a paradigmática também tem variações de

intensidade, mas não conforme o sistema de corte adotado. A diferença chave neste caso é o

tipo de tradição jurídica predominante no país: nos países de tradição romano-germânica (civil

law), embora haja hipóteses ensejadoras de vinculação dos tribunais inferiores, esta não é a

regra, já que a fonte primordial do direito neste sistema é a lei; já nos países de tradição anglo-

saxônica, esta vinculação é o pilar que garante o funcionamento de todo o sistema, no qual a

primazia como fonte do direito é dos costumes e da jurisprudência.

É interessante notar que há uma tendência crescente de aproximação entre essas

diferentes tradições jurídicas: enquanto países da common law vêm procedendo cada vez mais

à compilação de suas leis em estatutos escritos, nos países da civil law vê-se a adoção de

institutos de vinculação aos precedentes, principalmente das cortes constitucionais45.

Apesar de todas essas características e funções que fazem do recurso extraordinário

um recurso excepcional, a prática, ao longo de sua existência, demonstrou que aquilo que

deveria ser “extraordinário” tornou-se um instrumento vulgar, utilizado em larga escala desde

seus primórdios, levando ao assoberbamento crônico de nossa corte constitucional, conhecido

como “crise do Supremo”.

Esta crise, como esclarece Rodolfo de Camargo Mancuso46, chegou a tal ponto pela

morosidade em seu tratamento, que deveria ter se realizado a partir de uma perquirição

profunda acerca das causas que levaram à falência do recurso extraordinário e do STF.

A apresentação dos dados a seguir47, relativos aos processos distribuídos no Supremo,

é bem ilustrativa desta “crise”.

44 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 15ª ed. rev. e atual.

Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, p. 585. 45 No sentido do texto, v. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. Ed. cit., p. 14; DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 72-76. 46 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 74.

Tabela 1

Porcentagem de RE e AI em relação aos processos distribuídos no STF de 1990 a 1995

47 Fonte: Estatísticas do STF. Dados disponíveis em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=REAIProcessoDistribuido>

Ano 1990 1991 1992 1993 1994 1995

Total Processos

Distribuídos

16.226 17.567 26.325 23.525 25.868 25.385

AI Distribuídos

2.465 5.380 7.838 9.345 8.699 11.803

% AI / Relação

Processos Distribuídos

15,2 30,6 29,8 39,7 33,6 46,5

RE Distribuídos

10.780 10.518 16.874 12.281 14.984 11.195

% RE / Relação

Processos Distribuídos

66,4 59,9 64,1 52,2 57,9 44,1

Soma RE + AI

13,245 15.898 24,712 21,626 23,683 22,998

% AI + RE / Relação

Processos Distribuídos

81,6 90,5 93,9 91.9 91,6 90,6

Tabela 2

Porcentagem de RE e AI em relação aos processos distribuídos no STF de 1996 a 2001

Ano 1996 1997 1998 1999 2000 2001

Total Processos

Distribuídos

23.883 34.289 50.273 54.437 90.839 89.574

AI Distribuídos

12.303 16.863 26.168 29.677 59.236 52.465

% AI / Relação

Processos Distribuídos

51,5 49,2 52,1 54,5 65,2 68,6

RE Distribuídos

9.265 14.841 20.595 22.280 29.196 34.724

% RE / Relação

Processos Distribuídos

38,8 43,3 41,0 40,9 32,1 38,8

Soma RE + AI

21.568 31.704 46.763 51.957 88.432 87.193

% AI + RE / Relação

Processos Distribuídos

90,3 92,5 93,0 95,4 97,4 97,3

Tabela 3

Porcentagem de RE e AI em relação aos processos distribuídos no STF de 2001 a 2007

Ano 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Total Processos

Distribuídos

87.313 109.965 69.171 79.577 116.216 112.938

AI Distribuídos

50.218 62.519 38.938 44.691 56.141 56.909

% AI / Relação

Processos Distribuídos

57,5 56,9 56,3 56,2 48,3 50,4

RE Distribuídos

34.719 44.478 26.540 29.483 54.575 49.708

% RE / Relação

Processos Distribuídos

39,8 40,4 38,4 37,0 47,0 44,0

Soma RE + AI

84.937 106.997 65.478 74.174 110.716 106.617

% AI + RE / Relação

Processos Distribuídos

97,3 97,3 94,7 93,2 95,3 94,4

Em 2008 e 2009 os números foram os seguintes:

Tabela 4

Porcentagem de RE e AI em relação aos processos distribuídos no STF em 2008 e 2009*

Ano 2008 2009*

Total Processos

Distribuídos

66.873 42.729

AI Distribuídos 37.783 24.301

% AI / Relação

Processos Distribuídos

56,5 56,9

RE Distribuídos 21,531 8.348

% RE / Relação

Processos Distribuídos

32,2 19,5

Soma RE + AI 59.314 32.649

% AI + RE / Relação

Processos Distribuídos

88,7 76,4

* Dados de 2009 atualizados até dezembro.

A partir destes números é possível perceber como a “crise do Supremo” é

verdadeiramente uma crise do recurso extraordinário, posto que, de 1990 até 2007, a soma de

recursos extraordinários e agravos de instrumento representava mais de noventa por cento dos

processos que ingressaram no STF. Em 2008 e 2009, há um movimento de redução nessa

assustadora média, fruto das alterações legislativas inauguradas em 2007 (dentre elas a

repercussão geral).

Estudos na doutrina mostram que esta conclusão já era previsível nas primeiras

décadas do século passado, embora algumas das causas apontadas, apesar de verdadeiras,

mostraram-se não serem as únicas48.

De fato, pregava-se que uma grande diferença entre o nosso federalismo e o

federalismo norte-americano, que inspirou o modelo brasileiro, era a principal razão para a

desnaturação do recurso extraordinário pátrio e a sobrecarga do Supremo. Esta diferença dizia

respeito à autonomia dos Estados, que no federalismo estadunidense era ampla, competindo

aos Estados legislar sobre diversos ramos do direito. No caso brasileiro, a formação do

federalismo partiu da União para os Estados, o que explica a enorme competência exclusiva

para legislar atribuída à União, enquanto que aos Estados cabiam pouquíssimas matérias.

Com isso, os Tribunais estaduais, ao exercerem suas funções, estavam quase sempre

aplicando direito federal, o que ensejava um sem número de recursos extraordinários

provenientes das Justiças Estaduais, posto que o recurso extraordinário era cabível em casos

que envolvessem questões constitucionais ou infraconstitucionais, transformando o Supremo

em uma instância de revista49.

No decorrer do século anterior, houve diversas tentativas de “desafogar” o Supremo,

que, em sua maioria, mostraram-se improfícuas, sobre as quais se discorrerá em outro

momento (3.1, infra).

Apesar dos contornos dramáticos e estarrecedores da “crise do STF” (que, como se

disse, é uma crise do recurso extraordinário), é um pouco alentador o fato de que muitos

outros sistemas jurídicos enfrentam (ou enfrentaram) esse mesmo problema, como se

demonstrará a seguir.

2.4 – Crise das Cortes Constitucionais: fenômeno mundial

48 Para um retrato completo da visão doutrinária sobre a “crise do Supremo” no século passado, v. DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 78 et seq.; e MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 73 et seq. 49 LIEBMAN, Enrico Tullio. Perspectivas do recurso extraordinário. Revista Forense, v. LXXXV, jan. 1941, p. 601-602, apud DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 79.

De fato, como observa a doutrina que se debruçou sobre este tema, a sobrecarga de

trabalho na corte suprema não é uma exclusividade do Brasil50.

Este fenômeno afetou inúmeros outros países, como, por exemplo, os Estados Unidos,

a Alemanha, a Argentina, o Japão, a Espanha e a Itália. Em todos eles medidas de correção no

sistema foram necessárias para reduzir o excesso de recursos dirigidos às cortes

constitucionais, embora nem todas tenham sido efetivas.

Este alcance mundial da crise parece fundar-se no estilo de vida moderno-

contemporâneo da humanidade, com relações sociais, econômicas e internacionais cada vez

mais complexas e conflituosas. Nas palavras de Bruno Dantas, este fenômeno:

(...) decorre, fundamentalmente, de um lado, da estrutura econômica que estimula o conflito de interesses, que põe em xeque as relações jurídicas establecidas, (...) e, de outro, a mudança de paradigma consubstanciada no paulatino distanciamento dos ideais do liberalismo econômico e a aproximação do welfare state, com a crescente intervenção do Estado na ordem econômica e nas relações privadas, de modo a perseguir os interesses gerais da coletividade51-52.

Outro fator apontado como causa deste problema (embora seja algo absolutamente

positivo) é o crescimento do acesso à justiça, movimento idealizado pelo italiano Mauro

Cappelletti53, que, ao pregar uma maior efetividade na proteção dos direitos dos indivíduos

por parte do Estado, fez aumentar o número de demandas, e consequentemente, o de recursos.

Dada a amplitude desta questão, convém analisar algumas soluções utilizadas em

outros países, tendo-se em vista, ainda, que algumas delas influenciaram diretamente as

medidas adotadas pelo Brasil, o que se fará no capítulo que segue.

50 Cf. ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER. Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do judiciário: primeiros ensaios crítivos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 64 et seq; DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 83-85. 51 Ibidem, p. 84. 52 Daniel Sarmento esclarece essa maior intervenção do Estado: “Neste novo paradigma [a expansão das tarefas da constituição, a partir da metade do século XX], a visão sobre o papel do Estado mesmo em relação aos direitos individuais se modifica. Se até então prevalecia a ideia de que, para não desrespeitar estes direitos, bastava que os poderes públicos se abstivessem de atentar contra eles, doravante será reconhecido que o Estado tem também deveres positivos nesta esfera. Além de não violar, ele deve ainda proteger os direitos individuais dos seus cidadãos (...)”. SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006, p. 173. 53 Sobre o assunto, consultar o clássico, Mauro Cappelletti e Bryan Garth, Acesso à justiça.

3 RESPOSTAS À CRISE: EXPERIÊNCIA EM OUTROS PAÍSES

Neste capítulo pretende-se discorrer sobre a experiência vivenciada em alguns dos

países que também enfrentaram o assoberbamento de suas cortes de cúpula, analisando as

medidas tomadas para remediar tal problema e sua influência sobre o equacionamento pátrio.

Primeiramente, abordar-se-á o caso norte-americano, expondo as mudanças ocorridas

desde o começo do século passado; e, em seguida, uma exposição sobre a resposta argentina,

mais especificamente, a lei 23.774, de 1990.

3.1 Estados Unidos

É assente na doutrina que os Estados Unidos foram os pioneiros na criação de filtros

para os recursos às cortes supremas, servindo de paradigma aos demais países que adotaram

esse mesmo mecanismo54.

O writ of certiorari55 tem sua origem na Lei Judiciária de 1789, pois, segundo a

doutrina americana, na seção 14 do capítulo XX56, já havia a previsão para a concessão de

writs necessários ao exercício das jurisdições das cortes57. Assim, a Lei Judiciária de 1891

54 Como aduz Bruno Dantas: “Seu caráter paradigmático é mesmo reforçadoquando, em casos como o sa Espanha, o legislador propositalmente buscou estabelecer critérios objetivos para fugir do risco de dotar a sua Corte Suprema de poderes semelhantes aos que detêm os membros da Suprema Corte dos EUA”. DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 91. 55 Uma definição simples do writ of certiorari: “A type of writ, meant for rare use, by which an appellate court decides to review a case at its discretion. A writ of certiorari orders a lower court to deliver its record in a case so that the higher court may review it. The U.S. Supreme Court uses certiorari to pick the most of the cases that it hears”. Tradução Livre: Um tipo de mandado, de uso raro, pelo qual uma corte de apelação decide revisar um caso conforme a sua discrição. O writ of certiorari ordena que uma corte inferior entregue o registro de um caso para que a corte superior possa revisá-lo. A Suprema Corte dos Estados Unidos usa certiorari para marcar a maioria dos casos que examina. Disponível em < http://topics.law.cornell.edu/wex/Writ_of_certiorari>, acesso em 13 de janeiro de 2010. 56 Judiciary Act of 1789, Chapter XX, Section 14: And be it further enacted, That all the before-mentioned courts of the United States, shall have power to issue writs of scire facias, habeas corpus, and all other writs not specially provided for by statute, which may be necessary for the exercise of their respective jurisdictions, and agreeable to the principles and usages of law (...). Disponível em < http://www.constitution.org/uslaw/judiciary_1789.htm>, acesso em 13 de janeiro de 2010. 57 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 93.

(Evarts Act) e a de 1925 (Judges’ Bill) não são o veículo de criação deste instrumento, como

alguns costumam apontar.

A Lei Judiciária de 1891 efetuou relevantes reformas no Poder Judiciário, em atenção

ao crescente número de processos que chegavam à Suprema Corte após a Guerra de Secessão

(1861 a 1865). Eis as principais mudanças: a criação de nove cortes federais de apelação

(circuits courts of appeal); e a impossibilidade recursal em relação à maioria das decisões

destas novas cortes, excetuando-se a certificação feita por uma corte inferior de uma questão

de direito ou a concessão do writ of certiorari por parte da própria Suprema Corte. Neste

momento, o writ of certiorari começa a assumir a função de inclusão de causas na

competência da Suprema Corte, permitindo à Corte selecionar os casos que solucionaria58.

Foi em 1925 que, após um acréscimo de competência atribuído por uma lei de 1914, a

qual, também, consolidou a ideia de discricionariedade judicial59 no certiorari60, este

mecanismo estabeleceu-se como o principal meio de acesso à Suprema Corte. O movimento

para tal afirmação foi capitaneado pelo Chief Justice William Howard Taft, ex-presidente dos

Estados Unidos (1909-1913), que assumira a presidência da Suprema Corte em 1921, quando

passou a articular politicamente a aprovação do projeto elaborado segundo suas ideias,

visando uma ampla e irrestrita discricionariedade na concessão do writ of certiorari, limitando

a jurisdição recursal obrigatória (mandatory jurisdiction) aos casos fundados em interpretação

constitucional61-62.

Logo após este marco estabelecido, a Suprema Corte ampliou ainda mais sua

discricionariedade, com o famoso leading case Olmstead v. United States63, no qual o

presidente Taft sustentou a possibilidade da Corte ignorar fundamentos outros, que não

fossem estritamente constitucionais. Ademais, se houvesse mais de uma questão

constitucional, a Corte poderia resolver apenas uma delas, caso não se interessasse pela(s)

outra(s) (limited grant of certiorari).

58 Ibidem, p. 94. 59 Existe uma grande discussão quanto ao significado da discricionariedade judicial (judicial discretion) no direito estadunidense. A propósito, v. ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. Op. cit., p. 70, nota de rodapé 11; e DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 91, nota de rodapé 4. 60 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 94-95. 61 PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Op. cit., p. 35-36

62 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 95. 63 277 U.S. 438 (1928)

Este caminho rumo à discricionariedade judicial plena só se completaria com a edição

da Supreme Court Selection Act, em 1988. Por meio dessa lei, restringiram-se os recursos à

Suprema Corte, restando unicamente o certiorari e a certification of questions64.

Portanto, o Poder Legislativo norte-americano (e a própria atuação da Suprema Corte)

foi, gradualmente, concedendo poderes à Suprema Corte, de modo que esta tem, hoje, plena

liberdade na determinação de sua agenda. É importante observar que, diversamente do Brasil,

a competência recursal da Suprema Corte não está inserida no texto constitucional, o que

viabilizou todas essas reformas, feitas por meio de leis infraconstitucionais.

O procedimento do writ of certiorari encontra-se regulado no regimento da Suprema

Corte (Supreme Court Rules), mais precisamente na parte III, da regra 10 a 1665. José

Guilherme Berman Corrêa Pinto apresenta o seguinte resumo das principais regras

procedimentais:

Dentre as regras que disciplinam o procedimento formal do certiorari, pode-se destacar a admissão da chamada apelação per saltum, ou seja, a interposição do certiorari antes mesmo do julgamento pelo tribunal inferior, desde que a questão tenha uma importância pública suficiente para justificar a provocação imediata da Suprema Corte, entre outras normas acerca do número de cópias que devem ser fornecidas, o limite de páginas para petição (no máximo 30), o prazo para a interposição (90 dias), o conteúdo que deve constar obrigatoriamente da petição e possibilidade de a parte recorrida oferecer petição (obrigatória em casos de pena de morte)66.

É relevante destacar a possibilidade de intervenção de amicus curiae no procedimento,

em favor de qualquer das partes.

Uma questão interessante diz respeito ao quorum para a concessão do certiorari, que

não tem regulação expressa, sendo definido por uma regra costumeira, conhecida como “regra

dos quatro” (rule of four). Conforme essa regra, a concessão do certiorari depende do voto de

quatro dos nove juízes, não sendo necessária a maioria dos votos. Há, ainda, uma segunda

prática, que se tornou habitual entre os presidentes: quando três ministros votam pela

64 Sobre a certification of questions, v. ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. Op. cit., p. 70, nota de rodapé 11. 65 As regras da Suprema Corte estão disponíveis em: <http://www.supremecourtus.gov/ctrules/2007rulesofthecourt.pdf>. Acesso em 14 de janeiro de 2010. 66 PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Op. cit., p. 41-42.

concessão, o Chief Justice, adere a eles, atingindo-se, assim, o quorum necessário (join-three

vote)67.

Na regra 16 estão elencadas as três decisões possíveis em um writ of certiorari: a

Suprema Corte pode proferir uma decisão sumária sobre o mérito da causa; pode admitir o

certiorari, hipótese em que as partes são convocadas para defender suas posições, por meio de

sustentação oral e razões escritas; e pode negar a concessão, o que efetiva integralmente a

decisão recorrida68.

A regra de maior destaque, no entanto, é a regra 10, por traçar alguns parâmetros

conceituais do certiorari. Eis o seu conteúdo:

Rule 10. Considerations Governing Review on Certiorari Review on a writ of certiorari is not a matter of right, but of judicial discretion. A petition for a writ of certiorari will be granted only for compelling reasons. The following, although neither controlling nor fully measuring the Court’s discretion, indicate the character of the reasons the Court considers: (a) a United States court of appeals has entered a decision in conflict with the decision of another United States court of appeals on the same important matter; has decided an important federal question in a way that conflicts with

67 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 99.

68 O texto da regra 16 é o seguinte: Rule 16 - Disposition of a Petition for a Writ of Certiorari: 1. After considering the documents distributed under Rule 15, the Court will enter an appropriate order. The order may be a summary disposition on the merits. 2. Whenever the Court grants a petition for a writ of certiorari, the Clerk will prepare, sign, and enter an order to that effect and will notify forthwith counsel of record and the court whose judgment is to be reviewed. The case then will be scheduled for briefing and oral argument. If the record has not previously been filed in this Court, the Clerk will request the clerk of the court having possession of the record to certify and transmit it. A formal writ will not issue unless specially directed. 3. Whenever the Court denies a petition for a writ of certiorari, the Clerk will prepare, sign, and enter an order to that effect and will notify forthwith counsel of record and the court whose judgment was sought to be reviewed. The order of denial will not be suspended pending disposition of a petition for rehearing except by order of the Court or a Justice. Tradução Livre: Regra 16 – Disposição de uma Petição para o Writ of Certiorari: 1. Depois de considerar os documentos distribuídos pela Regra 15, a Corte irá ingressar com uma regra apropriada. A ordem pode ser uma disposição sumária sobre o mérito. 2. Sempre que a Corte der provimento a uma petição para o writ of certiorari, o Escrivão irá preparar, assinar e dar entrada em uma ordem nesse sentido e irá notificar em seguida o cartório e a corte cujo julgamento será revisto. O caso depois será agendado para apresentação de razões finais e sustentação oral. Se os autos não tiverem sido previamente registrados nessa Corte, o Escrivão requisitará ao escrivão da corte que tiver em posse dos autos, para certificá-lo e transmiti-lo. Um writ formal não será expedido, salvo se for especificamente ordenado. 3. Sempre que a Corte indefere uma petiçao de writ of certiorari, o Escrivão irá preparar, assinar e dar entrada em uma ordem nesse sentido e irá notificar em seguida o cartório e a corte cujo julgamento foi procurado para ser revisto. A ordem de indeferimento não será suspensa pendendo disposiçao de petição para revisão exceto por ordem da Corte ou de Juiz da Corte.

a decision by a state court of last resort; or has so far departed from the accepted and usual course of judicial proceedings, or sanctioned such a departure by a lower court, as to call for an exercise of this Court’s supervisory power; (b) a state court of last resort has decided an important federal question in a way that conflicts with the decision of another state court of last resort or of a United States court of appeals; (c) a state court or a United States court of appeals has decided an important question of federal law that has not been, but should be, settled by this Court, or has decided an important federal question in a way that conflicts with relevant decisions of this Court. A petition for a writ of certiorari is rarely granted when the asserted error consists of erroneous factual findings or the misapplication of a properly stated rule of law69.

Não obstante a sua relevância, este regra não apresenta de forma cristalina os

contornos que um writ of certiorari precisa ter para ser concedido70, fato que é agravado pela

não-fundamentação das decisões em certiorari. Desta forma, alguns estudos buscaram,

através da análise de casos e do comportamento dos juízes, compreender melhor as

características que levam um certiorari a ser concedido.

Conforme noticia Bruno Dantas, em 1963, formou-se um grupo de quatro

pesquisadores, chefiado por Joseph Tanenhaus, cujo trabalho identificou três características

ligadas ao recebimento de um certiorari, entre os anos de 1947 e 1956: quando a propositura

do writ fora feita pela União; em casos de divergência entre juízes da corte imediatamente

69 Tradução livre: Regra 10: Considerações que regem o Writ of Certiorari A decisão sobre o writ of certiorari não é uma matéria de direito, mas de discricionariedade judicial. Uma petição de writ of certiorari somente será admitida se houver fortes razões. As seguintes disposições, embora não controlem ou limitem completamente a discricionariedade da Corte, indicam a característica das razões que a Corte considera: (a) uma Corte de Apelação dos Estados Unidos proferiu uma decisão em conflito com a decisão de outra Corte de Apelação sobre a mesma importante matéria; decidiu uma importante questão federal de uma forma que conflita com a decisão de uma corte estadual de última instância, ou se afastou do curso aceito e comum do procedimento judicial, ou ratificou um tal afastamento por uma corte inferior, ao ser chamada para o exercício do poder de revisão da Corte; (b) uma corte estadual de última instância tenha decidido uma importante questão federal de uma forma que conflita com a decisão de outra corte estadual de última instância ou de uma corte de apelação dos Estados Unidos; (c) uma corte estadual ou uma corte de apelação dos Estados Unidos tenha decidido uma importante questão de direito federal que não tenha sido, mas deveria ser, resolvida por esta Corte, ou tenha decidido uma importante questão de direito federal de uma maneira conflitante com decisões relevantes desta Corte; Uma petição de writ of certiorari raramente é aceita quando o erro alegado consiste em uma apreciação fática errônea ou na má aplicação de uma regra de direito propriamente estabelecida. 70 Há quem chame a definição apresentada pela regra 10 de “tautológica”. PERRY Jr., H. W. Deciding to Decide: Agenda Setting in the United States Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 34, apud PINTO, José Guilherme Berman Corrêa Pinto. Op. cit., p. 43.

inferior ou quando esta ocorria entre duas ou mais cortes ou agências do governo; e nas

hipóteses envolvendo liberdades civis71.

Este estudo ficou conhecido como cue theory (“teoria do indício”), e causou grande

polêmica no meio acadêmico norte-americano, gerando outros estudos, que por vezes o

confirmaram (como no estudo de 1982, realizado por Virginia Armstrong e Charles Johnson,

tomando os anos de 1967, 1968, 1976 e 1977 por base), e noutras o relativizaram (como foi a

pesquisa de Sidney Ulmer, William Hintze e Louise Kirklosky, publicada em 1972, que dos

três indícios apontados pela cue theory, confirmou apenas o relativo à autoria da União)72.

Já no ano de 1988, Gregory Caldeira e John Wright publicaram um artigo que

demonstrou a influência da participação de grupos de interesses nas decisões da Suprema

Corte. Segundo os autores, a presença de um ou mais amicus curiae intervindo no certiorari,

tem relação direta com a concessão ou não do writ, concluindo-se que tal atuação dos grupos

de interesse se reflete na escolha da agenda da Suprema Corte73.

Outra pesquisa de grande relevância foi a realizada por H. W. Perry Jr., adotando uma

metodologia diferente: em vez de análises estatísticas, Perry entrevistou diversos funcionários

públicos, envolvidos direta ou indiretamente no julgamento de um certiorari na Suprema

Corte, incluindo cinco juízes e mais de sessenta assessores (clerks) desta Corte, assim como

juízes das cortes de apelação, procuradores-gerais e advogados74.

Uma das primeiras conclusões de Perry desmente o comportamento estratégico dos

juízes, pois a análise feita a partir de suas entrevistas mostrou uma forte rejeição a esta

prática. Portanto, o tráfico de influências e as negociações entre os membros da Corte para

concessão do certiorari não são bem-vistas, e, quando ocorrem, são feitas de uma maneira

formal. A prática estratégica verdadeiramente reconhecida entre os integrantes da Suprema

71 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 100. 72 Loc. cit. 73 CALDEIRA, Gregory; WRIGHT, John. Organized interests and agenda setting in the U.S. Supreme Court, American political Science Review, n.82, p. 1109-1127. Artigo disponível em < http://epstein.law.northwestern.edu/research/supctLawCaldeira.pdf>. Acesso em 14 de janeiro de 2010. Nas palavras dos autores: “When a case involves real conflict or when the federal government is petitioner, the addition of just one amicus curiae brief in support of certiorari increases the likelihood of plenary review by 40%-50%. Without question, then, interested parties can have a significant and positive impact on the Court's agenda by participating as amici curiae prior to the Court's decision on certiorari or jurisdiction”. 74 PERRY JR., H. W. Deciding to Decide: Agenda Setting in the United States Supreme Court.

Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 08-10, apud José Guilherme Berman Corrêa Pinto. Op. cit., p. 45.

Corte é a posição defensiva que um juiz adota, negando a concessão do certiorari, quando crê

que sua posição não será vencedora no exame da questão, conhecida como “defensive

denials”75.

Desta forma, Perry, ao confrontar a tese dominante entre os estudos anteriores,

estabelece um novo viés, necessário à interpretação das decisões da Suprema Corte, que é a

análise de aspectos técnico-jurídicos do caso proposto76. Como bem resume José Guilherme

Berman Corrêa Pinto sobre o estudo de Perry:

A validade de seu trabalho decorre principalmente da demonstração de que o procedimento de decisão da admissibilidade dos casos na Suprema Corte é ao mesmo tempo político e jurídico, e que todos os juizes atuam utilizando elementos técnicos e estratégicos, muitas vezes ao mesmo tempo. Não parece crível a conclusão a que os modelos puramente estatísticos predominantes na doutrina chegam, de que a definição da agenda da Suprema Corte é um processo exclusivamente político-estratégico, devendo ser reconhecido o papel das matérias técnico-jurídicas que ocupam, indubitavelmente, um importante espaço nas razões de decidir adotadas.77

Por fim, há o estudo de Robert L. Stern, Eugene Gressman, Srephen M. Shapiro e

Kenneth S. Geller sobre a relevância das questões discutidas no caso como influência sobre a

Suprema Corte, baseado em análise de casos. Conclui-se que o certiorari tende a ser acolhido

quando a decisão impugnada declara a inconstitucionalidade de uma lei federal, ou quando é

feita uma interpretação não desejada para se evitar tal declaração78.

Outra conclusão importante é apontada por Bruno Dantas:

(...) a Suprema Corte dos EUA exerce um juízo altamente subjetivo no sentido de avaliar o melhor momento de se pronunciar sobre uma determinada questão jurídica. Isso se deve, em grande medida, ao regime do stare decisis vigente naquele país, pois, diferentemente dos países de tradição romano-germânica, as decisões dos tribunais irradiam eficácia vinculante aos juízes e tribunais inferiores, e uma decisão precipitada da Suprema Corte poderia até mesmo inibir o florescimento de uma corrente jurisprudencial mais justa e consetânea com o sistema constitucional79.

Esse estudo elaborou um rol de parâmetros utilizados pela Suprema Corte no

reconhecimento da relevância das questões debatidas, dos quais se destacam:

75 Loc. cit. 76 José Guilherme Berman Corrêa Pinto discorre analiticamente sobre estes aspectos na obra de Perry. PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Op. cit., p. 46-49. 77 Ibidem, p. 53-54. 78 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 105 79 Ibidem, p. 105-106.

1. Quando a decisão do tribunal inferior prejudicar substantivamente a aplicação

da lei, comparando-se à declaração de inconstitucionalidade;

2. Quando a decisão recorrida contrariar a interpretação boa e assente conferida à

lei por agências reguladoras ou órgãos públicos;

3. Quando houver diversos casos pendentes nos tribunais inferiores envolvendo

questões novas ou problemáticas, que recomendem uma atuação célere da

Suprema Corte, com fins paradigmáticos;

4. Quando o caso envolver enorme quantia de dinheiro;

5. Quando as questões envolverem muitos interessados diretos que sejam partes

processuais.

Da análise de todos esses estudos expostos, é possível depreender que a Suprema

Corte utiliza-se de diversos parâmetros para conceder o writ of certiorari, alguns mais

objetivos (como a presença da União e o valor da causa), e outros com um caráter mais

subjetivo (como na escolha do melhor momento para decidir sobre determinada questão).

Nota-se, ainda, que para reconhecer a relevância das questões discutidas no caso, não

necessariamente elas devem ultrapassar os interesses subjetivos das partes, como no caso da

repercussão geral brasileira.

3.2 Argentina

A Argentina, a exemplo do Brasil, também se inspirou nos Estados Unidos, quando

em 13 de outubro de 1862, promulgou a Lei Federal 27, prevendo o recurso extraordinário,

que seria modificada pela Lei Federal 48 de 1863.

Em 1990, sobreveio a Lei 23.774, inaugurando o “certiorari” argentino. Com efeito,

esta lei modificou o art. 280 do Código Procesal Civil y Comercial de la Nación (CPCN),

passando a ter a seguinte redação:

Cuando la Corte Suprema conociere por recurso extraordinario, la recepción de la causa implicará el llamamiento de autos. La Corte, según su sana discreción, y con la sola invocación de esta norma, podrá

rechazar el recurso extraordinario, por falta de agravio federal suficiente o cuando las cuestiones planteadas resultaren insustanciales o carentes de trascendencia80.

Esta alteração gerou grande debate entre a doutrina argentina: enquanto uns

defenderam a criação do filtro, como uma solução necessária à crise de sobrecarga da

Suprema Corte, outros levantaram questionamentos de ordem constitucional acerca do

instituto e de sua aplicação pela Corte81.

Um dos problemas levantados foi a inexigibilidade de fundamentação da decisão

tomada pela Suprema Corte. Nestor Sagüés, de maneira provocativa, aduz sobre o tema:

El nuevo art. 280 del Cód. Proc. Civil y Com. de la Nación, permite a la Corte elegir los expedientes sin dar fundamentos (‘con la sola invocación de esta norma’, puntualiza el articulo en referencia). La duda surge porque la Corte Suprema ha reputado arbitrarios los fallos com fundamentación o motivación insuficientes, según una larga y sesuda elaboración jurisprudencial, en función de las garantías constitucionales del debido proceso y defensa en juicio. El nuevo art. 280 permite a la Corte pontificar: ‘Haz lo que yo digo, pero no lo que yo hago’, cosa que no parece muy coherente en un régimen republicano.82

A inexigibilidade de fundamentação não foi o único problema apontado pela doutrina.

Também a discricionariedade sã, que pode ser exercida pela Corte, suscitou questionamentos,

pela ausência de contornos mais definidos sobre tal prerrogativa e pela prática inconsistente

dela por parte da Suprema Corte, o que geraria uma certa insegurança jurídica83.

80 Tradução livre: “Quando a Corte Suprema conhecer por meio de recurso extraordinário, a recepção

da causa implicará na avocação dos autos. A Corte, segunda sua discricionariedade sã, e apenas invocando esta norma, poderá rechaçar o recurso extraordinário, por falta de lesão federal suficiente ou quando as questões discutidas resultarem não substanciais ou carentes de transcendência”. 81 Cf. Dantas, Bruno. Op. cit., p. 115. 82 SAGÜÉS, Nestor Pedro. Derecho procesal constitucional: recurso extraordinário. 4. ed. Buenos

Aires: Astrea, 2002. 2 v., p 438-439, apud Bruno Dantas. Op. cit., p. 116. Tradução livre: O novo art. 280 do Código Processual Civil e Comercial da Nação, permite à Corte escolher os processos sem dar fundamentos (‘apenas invocando esta norma’ pontualiza o artigo em referência). A dúvida surge porque a Corte Suprema tem considerado arbitrários os julgados com fundamentação ou motivação insuficientes, segundo uma longa e prudente elaboração jurisprudencial, em função das garantias constitucionais do devido processo e defesa em juízo. O novo art. 280 permite à Corte permite à Corte ensinar: ‘Faça o que eu digo, mas não o que faço’, coisa que não parece muito coerente em um regime republicano. 83 Bruno Dantas anota, sobre a definição da discricionariedade sã e sobre a insegurança jurídica,

citando Santiago Sentis Melendo e Nestor Sagüés, respectivamente: “(...) aunque no existan reglas que expresen qué es o conduzca a la sana discreción – estándares o válvulas renuentes a una definición sencilla – los conceptos de reglas de experiencia, las máximas éticas y un criterio típico, conjugados en equilibrado manejo, han de conducir al resultado práctico pero al mismo tiempo valioso a que tiende la consagración de esta innovación”. (Tradução livre: “Ainda que não existam regras que expressem o que é ou conduz à discricionariedade sã – parâmetros ou válvulas resistentes a

Não obstante tais ressalvas doutrinárias (que, de fato, são relevantes), houve uma

vultosa redução no número de recursos extraordinários aceitos pela Suprema Corte, e, com o

passar dos anos, foi possível estabelecer alguns critérios na aplicação do filtro desenvolvido,

principalmente sob a hipótese de intranscendência das questões debatidas no recurso

extraordinário84. Desses critérios, cumpre destacar o referente às decisões que declaram a

inconstitucionalidade de uma norma jurídica, que têm transcendência presumida pela

Suprema Corte argentina, pois este critério poderia ser adotado entre nós, como ressalta Bruno

Dantas:

(...) a hipótese contida na alínea b do inciso III do art. 102 da nossa Constituição consiste no verdadeiro controle difuso de constitucionalidade a ser exercido na órbita federal, de modo que toda vez que um juiz ou tribunal se vale da permissão constitucional para declaração, incidenter tantum, da inconstitucionalidade de leis federais ou tratados internacionais está gerada, sem sombra de dúvida, uma situação jurídica que potencialmente repercutirá de forma geral na sociedade.85

Vistos os casos dos Estados Unidos e da Argentina, cumpre agora discorrer sobre a

experiência brasileira, tema do próximo capítulo.

uma definição simples – os conceitos de regras de experiência, as máximas éticas e um critério típico, conjugados num manejo equilibrado, hão de conduzir ao resultado prático mas ao mesmo tempo valioso a que tende a consagração desta inovação”); “(...) no es fácil anticipar cuándo la Corte Suprema hará uso y en qué medida, del ‘rayo exterminador’que le brinda el citado art. 280. Tampoco lo ejercita de modo parejo, puesto que la misma norma, de discutible factura, le autoriza, por ejemplo, rechazar un recurso extraordinário sobre una cuestión carente de transcedencia o admitirlo, todo ello según su gusto y paladar. Dos recursos extraordinários similares, ambos intranscendentes, pueden ser aceptado uno, y rechazado el outro. Y eso es permitido por el referido art. 280, lo que da pábulo, por supuesto, a interrogantes y maledicencias acerca de por qué existe trato discriminatório, cuando se produce este”. (Tradução livre: “Não é fácil antecipar quando a Corte Suprema fará uso, e em que medida, do ‘raio exterminador’ com que a brinda o citado art. 280. Tampouco o exercita de modo similar posto que a mesma norma, de discutível correção, a autoriza, por exemplo, a rechaçar um recurso extraordinário sobre uma questão carente de transcendência ou admiti-lo, tudo isso conforme seu gosto e paladar. Dois recursos extraordinários similares, ambos intranscendentes, podem ser aceito um, e rechaçado o outro. E isso é permitido pelo referido art. 280, o que estimula, por exemplo, questionamentos e maledicências acerca de por que existe tratamento discriminatório, quando isso ocorre”.). Op. cit., p.117-118. 84 Cf. Bruno Dantas. Op. cit., p. 122-125. 85 Ibidem, p. 123.

4 A RESPOSTA BRASILEIRA

Este capítulo tem por escopo analisar o histórico de soluções brasileiras para a crise do

recurso extraordinário até a criação da repercussão geral, que será detalhada a partir de seus

aspectos constitucionais e infraconstitucionais.

4.1 Soluções pré-repercussão geral

Como já se demonstrou anteriormente, a “crise do Supremo”, tema recorrente na

doutrina, na verdade é uma crise do recurso extraordinário86, que se arrasta desde as primeiras

décadas do século anterior.

Com efeito, a importação parcial do modelo norte-americano de controle de

constitucionalidade, principalmente sem a discricionariedade judicial, gerou problemas ao

sistema brasileiro, dos quais o acúmulo de recursos, indubitavelmente, é o mais grave.

Assim, há relatos de doutrinadores sobre a necessidade de “desafogar o STF” desde

191587. Entretanto, foi só em 1934 que as primeiras medidas foram adotadas, quando a

Constituição daquele ano vedou a apreciação de questões exclusivamente políticas pelo

Judiciário (art. 68) e atribuiu ao Senado Federal a competência para suspender parcial ou

integralmente a execução de ato jurídico declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário (art.

91, IV)88. Tais medidas não produziram grandes mudanças e o problema foi se agravando com

o decurso dos anos e pela ausência de novas soluções.

O ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Carlos Moreira Alves, com a

propriedade de quem esteve anos naquela corte, elaborou um completo resumo das

providências legais e regimentais que foram adotadas, desde a década de 50 até o período pré-

86 Item 1.3, supra. 87 Cf. KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. A repercussão geral das questões constitucionais e o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário. In: WAMBIER. Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do judiciário: primeiros ensaios crítivos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 746. 88 Item 1.2, supra.

Constituição de 1988, com o intuito de solucionar ou, pelo menos, amenizar a crise,

reproduzido por Rodolfo de Camargo Mancuso, compensando a longa citação:

Dentre essas providências, o ministro lembra: “A Lei 3.396/58 exigiu que o despacho de admissão do recurso extraordinário fosse motivado, à semelhança do que já ocorria com o que não admitia; a Emenda Regimental, de 28 de agosto 1963, criou a súmula como instrumento de trabalho para facilitar a fundamentação dos julgados; a Emenda Constitucional 16/65 outorgou ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar representações de inconstitucionalidade de leis e atos normativos, estaduais e federais, com a finalidade – que vem expressa na exposição de motivos do projeto dessa Emenda – de lhe permitir, num único julgamento, solver a questão da constitucionalidade, ou não, dessas normas, o que estancaria, no nascedouro, a fonte de recursos extraordinários que lhe seriam interpostos se a declaração de inconstitucionalidade se tivesse de fazer em cada caso concreto; a Emenda Constitucional 1/69 admitiu restrições ao cabimento do recurso extraordinário quando interposto com fundamento nas letras a e d do inc. III de seu art. 119”.

Na sequência, lembra o ministro, outros obstáculos foram sendo engendrados: em 1970, o Regimento Interno “estabeleceu uma série de casos de restrição ao recurso extraordinário, admitindo, como válvulas de escape, as alegações de ofensa à Constituição Federal e de dissídio com sua jurisprudência predominante”; depois, em 1975, a Emenda Regimental 3, ampliativa daquelas restrições, “substituiu, como exceção a elas, o dissídio com sua jurisprudência predominante pela argüição de relevância da questão federal”; já em 1977, sobreveio a Emenda Constitucional n. 7, que, “com a mesma inspiração de reduzir o número de recursos extraordinários, introduziu, em nosso sistema jurídico, a representação de interpretação de leis ou atos normativos estaduais e federais, e consagrou, em seu texto, o instituto da argüição de relevância da questão federal”. Esse Regimento, revisto e atualizado em 1980, aumentou – prossegue o Min. Moreira Alves – “as restrições ao recurso extraordinário, mas, em contrapartida, acrescentou uma terceira válvula de escape: a manifesta divergência com suas súmulas”. Finalmente, encerrando o rol, a Emenda Regimental 2/85 “alterou o sistema de restrição ao recurso extraordinário, enumerando os casos de cabimento dele nas hipóteses das letras a e d do inc. III do art. 119 da Emenda Constitucional 1/69, o último dos quais é o acolhimento da argüição de relevância da questão federal nos feitos não mencionados”.89

Com base na síntese feita pelo ex-Ministro Moreira Alves, é possível distinguir duas

categorias de soluções tentadas no sistema brasileiro: óbices regimentais, principalmente após

o advento da Constituição de 1967, que deu plena liberdade ao Supremo para regular o

procedimento dos processos de sua competência; e óbices legais, constitucionais ou

infraconstitucionais. Estas categorias carecem de uma exposição mais detalhada, incluindo as

soluções inauguradas com a Constituição de 1988 e após esta.

89 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 76-77.

4.1.1 Óbices regimentais

Os óbices regimentais, frutos de atividade atípica do Supremo, na qual atua como

legislador, foram utilizados em larga escala na tentativa de conter o excessivo número de

recursos extraordinários. Esta prática trouxe algumas inovações importantes ao sistema

jurídico brasileiro, criando institutos que perduram até hoje, como é caso da súmula da

jurisprudência dominante, ou que inspirariam o legislador pátrio, consagrando-os em leis

posteriores aos regimentos.

Efetivamente, o primeiro óbice regimental criado foi a Emenda Regimental de agosto

de 1963, que instituiu a súmula da jurisprudência dominante do STF, com o escopo de

simplificar a motivação das decisões do Tribunal, posto que um enunciado da súmula

representa o fundamento principal utilizado para decidir uma série de julgados. Assim, a

súmula foi idealizada para facilitar a justificação de uma decisão do Supremo, vinculando

unicamente esta Corte. Os demais órgãos do Judiciário não estavam presos a ela, sua eficácia

era “meramente persuasiva”90.

A Constituição de 1967, em seu art. 115, parágrafo único, alínea “c”91 atribuiu ao

Supremo o poder de legislar sobre o processo e julgamento dos feitos de sua competência, e

esta prerrogativa, agora com status constitucional, passou a ser exercida de maneira mais

expressiva.

Em 1970, um novo Regimento Interno, fundado no art. 119, parágrafo único, da

Constituição de 1967/6992, restringiu a admissão do recurso extraordinário em diversos casos,

excetuando apenas aqueles em que houvesse “ofensa à Constituição ou discrepância manifesta

de jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal”93.

90 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 87. 91 Art. 115, p. único, “c” - O Regimento Interno estabelecerá: c) o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou de recurso. 92 Art. 119, p. único - As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, dêste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie ou valor pecuniário. 93 Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal de 4 de setembro de 1970, art. 308: “Salvo nos casos de ofensa à Constituição ou discrepância manifesta de jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal, não caberá o recurso extraordinário, a que alude o seu art. 119, parágrafo único, das decisões proferidas: I – nos processos por crime ou contravenção a que sejam cominadas penas de multa, prisão simples ou detenção, alternadas ou acumuladas, bem como as medidas de segurança com

Já em 1975, houve a Emenda Regimental 3, a qual ampliou, consideravelmente, o rol

de restrições ao recurso extraordinário do art. 308, além de criar a arguição de relevância da

questão federal, que substituiu a discrepância manifesta de jurisprudência como meio de se

transpor estas restrições, somada à hipótese de ofensa à Constituição. A arguição de

relevância será fruto de maiores considerações posteriormente (item 3.2.3).

Uma revisão feita em outubro de 1980 diminuiu ainda mais as hipóteses de cabimento

do recurso extraordinário, acrescentando, porém, uma terceira exceção: a inequívoca

divergência em relação à súmula do Supremo.

Por fim, a Emenda Regimental 2 de 1985 modificou o modelo vigente até então,

passando a enumerar os casos de admissibilidade do recurso extraordinário, dentre os quais a

comprovada relevância da questão federal, e não mais as restrições a tal cabimento94.

Este conjunto de medidas, mormente as ligadas à restrição de hipóteses de cabimento

do recurso extraordinário, criadas pelo próprio Supremo, apesar de ter sido alvo de constantes

críticas doutrinárias95, inegavelmente atingiu o próposito almejado, posto que, com os filtros

estabelecidos, houve uma redução no número de recursos que chegaram ao STF.

O histórico dos óbices regimentais é interrompido pela Constituição de 1988, que não

manteve a competência legislativa delegada ao Supremo, de maneira que as alterações

êles relacionadas; II – nos litígios decorrentes: a) – de acidente do trabalho; b) – das relações de trabalho mencionadas no art. 110 da Constituição; III – nos mandados de segurança, quando não julgarem o mérito; IV – nas causas cujo o benefício patrimonial, determinado segundo a lei, estimado pelo autor no pedido, ou fixado pelo juiz em caso de impugnação, não exceda, em valor, de sessenta (60) vêzes o maior salário mínimo vigente no País, na data do seu ajuizamento, quando uniformes os pronunciamentos das instâncias ordinárias; e de trinta (30), quando entre elas tenha havido divergência, ou se trate de ação sujeita a instância única”. 94 Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal de outubro de 1980, art. 325 (alterado pela Emenda Regimental 2/85) - Nas hipóteses das alíneas "a" e "d" do inciso III do artigo 119 da Constituição Federal, cabe recurso extraordinário: I - nos casos de ofensa à Constituição Federal; II - nos casos de divergência com a Súmula do Supremo Tribunal Federal; III - nos processos por crime a que seja cominada pena de reclusão; IV - nas revisões criminais dos processos de que trata o inciso anterior; V - nas ações relativas à nacionalidade e aos direitos políticos; VI - nos mandados de segurança julgados originariamente por Tribunal Federal ou Estadual, em matéria de mérito; VII - nas ações populares; VIII - nas ações relativas ao exercício de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, bem como às garantias da magistratura; IX - nas ações relativas ao estado das pessoas, em matéria de mérito; X - nas ações rescisórias, quando julgadas procedentes em questão de direito material; XI - em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal. 95 Rodolfo de Camargo Mancuso reproduz frase bastante ilustrativa do sentimento predominante à época, na qual se afirma que o Regimento Interno do STF criava: “um campo minado entre a Nação e o Supremo, que alguém dificilmente pode percorrer incólume”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., 92.

envolvendo o recurso extraordionário desde então decorreram da atuação do Poder

Legislativo, por meio de leis ou de emenda à Constituição96, como será visto a seguir.

4.1.2 Óbices legais

Não obstante a prevalência dos obstáculos criados via regimental no período

destacado, os óbices legais sempre estiveram presentes, e, após a Constituição de 1988,

tornaram-se o único meio de introdução de novas soluções para a crise do recurso

extraordinário.

Conforme o que foi relatado antes, a primeira tentativa relevante de contenção de

recursos extraordinários foi a Lei 3.396 de 1958, a qual exigia a fundamentação da decisão

que admitisse o recurso extraordinário, tal qual a decisão denegatória.

No ano de 1965, a Emenda Constitucional 16 instituiu o controle abstrato de

constitucionalidade de leis e atos normativos, mediante provocação do Procurador-Geral da

República, permitindo ao Supremo “cortar o mal pela raiz”, ou seja, com a declaração sobre a

constitucionalidade ou não de determinada norma, ainda em abstrato, o Supremo podia evitar

que um sem-número de recursos baseados nessa questão de constitucionalidade tivessem de

ser julgados concretamente97.

Logo em seguida, a Constituição de 1967, no já citado art.115, parágrafo único, alínea

“c”, outorgou ao Supremo o poder legiferante que deu origem a todos os óbices regimentais

impostos ao cabimento do recurso extraordinário no período analisado.

A Constituição de 1967/69, no também já mencionado art. 119, parágrafo único,

admitiu a imposição de restrições, pelo Regimento Interno do Supremo, ao cabimento do

recurso extraordinário, levando em consideração a natureza, a espécie ou o valor pecuniário

da causa.

96 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 87.

97 Ao menos esta era a expectativa, como explica Sandro Marcelo Kozikoski, ao afirmar que esta medida foi criada “sob os auspícios de que tal procedimento refletiria na diminuição do número de recursos extraordinários (exposição de motivos)”. KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. A repercussão geral das questões constitucionais e o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário. Op. cit., p. 747.

A Emenda Constitucional 7 de 1977 (“pacote de abril”), ao instituir a representação

interpretiva de leis ou atos normativos estaduais ou federais, deu seguimento às tentativas de

contenção de demandas semelhantes, versando sobre a mesma questão constitucional, além de

ter consagrado o instituto da arguição de relevância, criado pelo Regimento Interno do

Supremo em 1975.

O advento da Constituição de 1988 significou o fim da era das restrições regimentais,

ao retirar a competência atribuída ao Supremo em 1967. Mas as modificações mais relevantes

foram a extinção da arguição de relevância e a criação do Superior Tribunal de Justiça, que

atendeu a um antigo anseio doutrinário.

De fato, já na década de 60, José Afonso da Silva defendia a modificação da estrutura

do Poder Judiciário Federal, repartindo-se as competências e atribuições dos órgãos

judiciários da União. Nas palavras então escritas por este constitucionalista:

(...) falta um Tribunal Superior correspondente ao TSE e ao TST para compor as estruturas judiciárias do Direito comum, do Direito fiscal federal e questões de interesse da União e do Direito penal militar. (...) Esse é o defeito que precisa ser eliminado com a criação de, pelo menos, um Tribunal Superior, cuja função será a de exercer as atribuições de cúpula e de composição das estruturas judiciárias defeituosas (...). Tal órgão, que denominaríamos de Tribunal Superior de Justiça por uma questão de uniformidade terminológica relativamente aos já existentes, teria como competência fundamental, entre outras, julgar, em grau de recurso, as causas decididas em única ou última instância pelos tribunais ou juízes estaduais, dos feitos da fazenda nacional e militares.98

Rodolfo de Camargo Mancuso relata o encontro de notáveis juristas, tais como,

Miguel Seabra Fagundes, Caio Tácito, Caio Mário da Silva Pereira, Miguel Reale, José

Frederico Marques entre outros, em 1965, para discussão sobre a viabilidade da criação de um

novo tribunal, nos moldes do que propusera José Afonso da Silva, do qual resultou um

relatório, com o seguinte conteúdo nos itens 9, 10 e 11:

9. Decidiu-se, sem maior dificuldade, pela criação de um novo Tribunal. As divergências sobre a sua natureza e o número de tribunais, que a princípio suscitaram debates, pouco a pouco se emcaminharam por uma solução que mereceu, afinal, o assentimento de todos. Seria criado um único Tribunal, que teria uma função eminente como instância federal sobre matéria que não tivesse, com especificidade, natureza constitucional, ao mesmo que teria a tarefa de apreciar os mandados de segurança e habeas corpus originários, os contra-atos dos Ministros de Estado e os recursos ordinários das decisões denegatórias em última instância federal ou dos Estados.

98 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 456.

10. Assim, também, os recursos extraordinários fundados exclusivamente na Lei Federal seriam encaminhados a esse novo Tribunal, aliviando o STF de uma sobrecarga.

11. Realizada essa tarefa inicial pela mesa-redonda, que reduziu o seu debate a um projeto que vai em anexo, frisaram os seus membros, sem reservas, que a sugestão em momento algum poderia significar um desprestígio para o STF. Seria, antes, o aprimoramento de uma instituição que teria a seu cargo somente matéria da mais alta relevância jurídica e constitucional, dispensando-o de outras mais da competência dos tribunais comuns, federais ou estaduais.99

Estas, portanto, são as origens do Superior Tribunal de Justiça, criado para aliviar a

carga de trabalho no Supremo, por meio da divisão da competência originária histórica dessa

Corte Suprema, que cuidava da preservação tanto do direito constitucional quanto do

infraconstitucional. Assim, o STJ, previsto no art. 104 da Constituição de 1988, passou a ser o

guardião do direito federal infraconstitucional, tarefa exercida por meio do recurso especial,

além das outras competências estabelecidas pelo art. 105 da mesma Carta100.

Infelizmente, a criação do novo Tribunal não atingiu o resultado colimado, como

afirma Bruno Dantas: “A triste realidade, porém, é que a criação do STJ definitivamente não

resolveu a crise do recurso extraordinário. (...) [muito pelo contrário] se antes tínhamos

apenas um tribunal estorvado pelo volume de processos, agora temos dois sofrendo do mesmo

mal.101

Cabe ressaltar que parte da doutrina não só se opunha à criação do STJ102, como

também previa o fracasso dessa medida, muito em função do caráter excessivamente analítico

da Constituição de 1988. Como aponta Daniel Sarmento: “(...) a Carta de 88 tem também os

seus defeitos, e um deles é especialmente grave: trata-se de uma Constituição excessivamente

99 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 107-108. 100 Rodolfo de Camargo Mancuso resume bem a competência infraconstitucional do STJ: “(...) ela é plena (= ampla e irrestrita), tanto em direito material como processual, atuando geralmente no plano da revisão – errores in iudicando -, mas podendo também atuar como corte de cassação – errores in procedendo/nulidades insanáveis -, abrangendo as modalidades originária, recursal-ordinária e recursal-especial: CF, art. 105, I,II e III, nessa ordem”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 114. 101 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 53-54. 102 Rodolfo de Camargo Mancuso anota algumas críticas então feitas, como a “de que o modelo republicano-federativo recomendava a existência de um só orgão de cúpula judiciária”; e o fato de que a criação do STJ aumentaria a morosidade na prestação jurisdicional, configurando-se este Tribunal como uma 3ª instância. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 112.

longa, prolixa, detalhista, pródiga em miudezas”103. E segue o constitucionalista fluminense,

explicando tal particularidade da Carta Constitucional de 1988:

Do ponto de vista histórico, são compreensíveis as razões que levaram à adoção deste modelo constitucional inflacionado. As forças políticas presentes na Assembléia Constituinte desejavam assegurar, já naquele momento, os seus interesses e bandeiras. Calejadas por sucessivas decepções, elas não confiavam no legislador futuro, nem tampouco em como as cortes judiciais poderiam interpretar, mais à frente, afirmações principiológicas vagas que o constituinte viesse a estabelecer. Queriam, portanto, ver estampado no texto, da forma mais clara e minuciosa possível, a garantia do direito ou interesse por que lutavam. A pressão que exercitaram, combinada com uma certa dose de imaturidade política dos constituintes, é responsável, em boa medida, pelo texto excessivamente detalhista da Carta de 88.104

Assim é que, embora encarregado exclusivamente das questões constitucionais, o

Supremo Tribunal Federal continuou com uma tarefa hercúlea por dar conta, sobrecarregado

de recursos extraordinários.

Outro problema, de ordem prática, apontado pelo professor Barbosa Moreira é o fato

de que:

Temos agora dois recursos em vez de um só, interponíveis ambos, em larga medida, contra as mesmas decisões. Daí a necessidade de articulá-los; e o sistema resultante teria de ficar, como na verdade ficou, bastante complicado em mais de um ponto. É inegável que o novo regime acarreta, muitas vezes, aumento considerável na duração do processo.105

Apesar de não ter sido a solução para a crise do recurso extraordinário, não parece

correto pregar a inutilidade da criação do STJ. Aqui, neste caso, se aplica perfeitamente o

famoso dito popular “ruim com ele, pior sem ele”. Verdadeiramente, diante do número

assustador de recursos especiais que dão entrada anualmente no STJ, hoje é inconcebível a

estruturação do Poder Judiciário sem esta Corte. É o que aduz Bruno Dantas:

(...) pensamos que, mesmo que o tempo tenha revelado que o tribunal não se justificou da mesma forma que o constituinte o concebeu [ou seja, como solução para a sobrecarga do Supremo], ele ocupou satisfatoriamente espaços no desenvolvimento da nossa democracia que certamente o STF, sozinho, não teria condições de ocupar. Acreditamos que, com a repercussão geral restringindo sobremaneira o RE, o labor do STJ se sobressairá ainda mais.106

103 SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. Op. cit., p. 181.

104 Loc. cit. 105 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p. 586. 106 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 56-57.

O mesmo autor defende, inclusive, a extensão do pressuposto da repercussão geral

também ao recurso especial, o que, por certo, reduziria consideravelmente o trabalho dos

trinta e três Ministros do STJ107.

Esta parece ser a mesma posição defendida por Arruda Alvim, ao afirmar

causticamente:

O que pode causar espécie é que – numa comparação – no plano do direito constitucional brasileiro haja questões constitucionais que não provoquem repercussão geral, ao passo que, no patamar relativo às questões legais de direito federal, todas elas provocam ou provocariam essa repercussão, dado que não resultou instituído – ou, ainda, não resultou instituído – esse sistema, ou análogo, para o STJ. Ao menos pela diversidade de tratamento pelo legislador constitucional, pode-se concluir desta forma.108

Outro óbice legal foi a Lei 9.756 de 1998, que modificou o CPC, trazendo inovações

ao processamento do recurso extraordinário (e também do recurso especial)109, tais como a

modalidade retida do recurso, quando interposto contra decisões interlocutórias em processos

de conhecimento, cautelar ou embargos à execução (art. 542, § 3º, CPC); e o aumento

expressivo dos poderes do relator: poder de conhecer e dar provimento ao agravo de

instrumento interposto contra a decisão que inadmitiu o recurso extraordinário, quando o

acórdão recorrido estiver em confronto com a súmula ou jurisprudência dominante do

Supremo (art. 544, § 4º, CPC); poder de negar “seguimento a recurso manifestamente

inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência

dominante” do Supremo (art. 557, caput, CPC); e poder de dar provimento a recurso, caso a

decisão recorrida esteja em confronto com súmula ou com jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal (art. 557, § 1º-A, CPC).

As inovações desta lei deram maior dinâmica ao sistema recursal brasileiro,

especialmente no caso dos recursos excepcionais, pois a adoção da modalidade retida evita

que questões sem decisão final no juízo a quo cheguem ao STF, enquanto que a concessão de

107 Ibidem, p. 54. 108 ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. Op. cit., p.68. 109 Barbosa Moreira, apoiando-se em Cândido Rangel Dinamarco, critica a prática legislativa da disciplina conjunta dos recursos extraordinário e especial: “Não parece muito feliz, por outro lado, a opção de legislador de disciplinar sempre em conjunto o recurso extraordinário e o especial – primeiro na Lei nº 8.038 (arts. 26 e segs.), agora no Código (arts. 541 e segs.) -, como se assim fossem ambos necessariamente interpostos. Aqui e ali, a disciplina resultou mais difícil de compreender do que se poderia conseguir com tratamento diferenciado”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p. 586.

maiores poderes ao relator valoriza a jurisprudência sumulada ou dominante110 daquele

Tribunal, dando maior eficácia as suas decisões111. Ressalte-se que, contra eventuais prejuízos

causados por esse juízo monocrático, há a possibilidade de agravo (art. 557, § 1º, CPC), que,

se usado abusivamente, enseja a aplicação de multa (art. 557, § 2º, CPC).

A Emenda Constitucional 45 de 2004 não pode deixar de ser apontada como um dos

grandes óbices legais utilizados para tentar diminuir a crise do recurso extraordinário. Esta

Emenda, conhecida como “Reforma do Judiciário”, criou dois institutos que interferem

substancialmente no acesso ao STF, quais sejam: a súmula de efeito vinculante; e a

repercussão geral das questões constitucionais.

A súmula de efeito vinculante consta do art. 103-A, inserido no texto constitucional

pela Emenda. Eis o seu texto:

O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

O efeito vinculante, aliás, não é exclusividade das súmulas editadas pelo STF, posto

que a Emenda Constitucional 45 também atribuiu esse efeito às decisões em sede de ação

direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade. Confira-se a

redação dada ao art. 102, § 2º da Constituição:

As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

110 A doutrina faz um grande esforço para delinear o que seria jurisprudência dominante. Como aponta

Rodolfo de Camargo Mancuso, a melhor conceituação parece ser a de Dinamarco: “Aproximadamente, tem-se como jurisprudência dominante em dado tribunal uma linha de julgamentos significativamente majoritária em seus órgãos fracionários, ainda que não pacífica; a existência de decisões contrárias, ou de votos vencidos, não retira a essas linhas vitoriosas a condição de jurisprudência dominante, embora deva ser levada em conta para a verificação sobre a realidade de prevalência da jurisprudência no sentido majoritário”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 97. 111 Ibidem, p. 79-80; DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 88.

Esse efeito vinculante, tanto das súmulas editadas, quanto das decisões de mérito no

controle de constitucionalidade abstrato, serve para prestigiar o labor do Supremo Tribunal

Federal, reforçando sua função de guardião da Constituição112.

Esses dois institutos foram regulamentados por leis editadas no ano de 2006: a Lei

11.417 tratou da edição, revisão e cancelamento da súmula de efeito vinculante do STF,

enquanto a Lei 11.418 disciplinou o requisito da repercussão geral das questões

constitucionais nos recursos extraordinários. Estas leis podem ser consideradas os últimos

óbices legais relevantes, instituídos com o objetivo de solucionar (ou minimizar) a crise do

recurso extraordinário.

Por fim, cumpre mencionar uma providência que sempre esteve em pauta, não

obstante sua total ineficácia, que é o aumento do número de ministros do STF. Rodolfo de

Camargo Mancuso relata que:

Ao longo de sua história, o STF apresentou diversa composição numérica: sob o Império, com o nome de Supremo Tribunal de Justiça, contava dezessete “Juízes Letrados”. No regime instaurado pela Constituição republicana de 1891, compunha-se de quinze juízes. Na Carta de 1934 eram onze seus ministros, número que não se alterou nas Constituições de 1937 e 1946. Em 1966, o Ato Institucional 2 elevou esse número para dezesseis, o que ficou mantido na Carta de 1967. Já em 1969, o Ato Institucional 6 reduziu outra vez a onze os ministros do STF, situação que perdurou na EC 1/69 (art. 118) e quantitativo mantido na vigente CF de 1988 (art. 101).113

Sandro Marcelo Kozikoski, por sua vez, destaca:

Solução simplista e comprovadamente improducente, mas que, vez por outra volta à baila, diz respeito ao aumento do número de Ministros da Corte Suprema. De fato, ao longo de sua história, o STF apresentou diversas composições numéricas, sem reflexos diretos na amenização do acúmulo do serviço judiciário.114

De todo evidente que o mero aumento de ministros não é capaz de solucionar a crise

que perdura quase um século, a menos que a composição do Supremo passasse de onze para

mil ministros, servindo essa proposta de solução apenas como uma curiosidade histórica.

112 Esta consideração é feita teoricamente, baseada no texto legal e no que expõe a doutrina. É uma pena que, nem sempre, ela se traduza verdadeira na prática, como se viu no caso da súmula vinculante 11 de 2008, sobre o uso de algemas. 113 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., 98. 114 KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. A repercussão geral das questões constitucionais e o juízo de

admissibilidade do recurso extraordinário. Op. cit., p. 747

4.2 Repercussão geral

Após o longo caminho percorrido no século passado, com inúmeras tentativas de

solucionar a crise enfrentada pela Corte Maior brasileira, chega-se, enfim, à repercussão geral,

instituto inaugurado com a Emenda Constitucional 45 e regulada no plano infraconstitucional

pela Lei 11.418.

É importante destacar, desde já, a natureza jurídica deste instituto, para facilitar toda a

análise posterior que será feita.

Conforme o magistério de José Carlos Barbosa Moreira:

Todo ato postulatório sujeita-se a exame por dois ângulos distintos: uma primeira operação destina-se a verificar se estão satisfeitas as condições impostas pela lei para que o órgão possa apreciar o conteúdo da postulação; outra, subsequente, a perscrutar-lhe o fundamento, para acolhê-la, se fundada, ou rejeitá-la, no caso contrário.115

Assim, os recursos, no que se refere ao primeiro ângulo destacado por este

processualista, deve passar por um juízo de admissibilidade, que é justamente a análise do

preenchimento, por parte do recurso, de certos requisitos indispensáveis, para que possa ter

seu mérito apreciado.

Isto porque, como destaca o professor Barbosa Moreira:

É óbvio que só se passa ao juízo de mérito se o de admissibilidade resultou positivo; de uma postulação inadmissível não há como nem porque investigar o fundamento. Reciprocamente, é absurdo declarar inadmissível a postulação por falta de fundamento.116

Costuma-se classificar os requisitos de admissibilidade dos recursos em dois grupos,

quais sejam: requisitos intrínsecos – concernentes à existência do poder de recorrer; e

requisitos extrínsecos – ligados ao modo de exercer esse poder.117

115 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p. 261. 116 Loc. cit. 117 Existe uma divisão na doutrina com relação ao referencial desta classificação, v. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4ª ed. rev., amp. e atual. de acordo com a nova Lei do Agravo (Lei 11.187/2005). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.152-153. Seguiu-se aqui a posição de Barbosa Moreira (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p. 263) e de Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 32).

Barbosa Moreira enumera da seguinte esses requisitos:

Alinham-se no primeiro grupo [requisitos intrínsecos]: o cabimento, a legitimação para recorrer, o interesse em recorrer e a inexistência de fato impeditivo (v.g., o previsto no art. 881, caput, fine) ou extintivo (v.g., os contemplados nos arts. 502 e 503) do poder de recorrer. O segundo grupo [requisitos extrínsecos] compreende: a tempestividade, a regularidade formal e o preparo.118

No que concerne à inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer, a

posição de Teresa Arruda Alvim Wambier parece mais adequada, ao incluir estas hipóteses no

âmbito do interesse recursal.119

A leitura do arts. 102, § 3º da Constituição de 1988 e 543-A do CPC, que poderia ser

esclarecedora com relação à natureza jurídica do instituto, em verdade, faz surgir enorme

celeuma doutrinária:

Art. 102, § 3º - No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.

Art. 543-A – O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.

Para Marinoni e Mitidiero, a repercussão geral pode ser enquadrada como um

“requisito intrínseco de admissibilidade recursal: não havendo repercussão geral, não existe

poder de recorrer ao Supremo Tribunal Federal”.120

Em posição contrária a essa que estabelece a repercussão geral como um requisito

intrínseco de admissibilidade, Rodolfo de Camargo Mancuso a qualifica como:

um pré-requisito genérico ao juízo de admissibilidade do RE, porém manejável secundum eventum: (i) quando a avaliação resulta negativa, é absoluta e excludente, dispensando o exame dos pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade (prazo, preparo, prequestionamento, adequação, interesse, legitimidade) [...]; (ii) quando a avaliação resulta positiva, é relativa e não necessariamente includente, porque não assegura, de per si, que o RE vá ser conhecido (o que fica a depender do atendimento aos pressupostos de admissibilidade) nem que vá ser provido [...].121

118 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p. 263.

119 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. Ed. cit., p. 152.

120 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 33.

121 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 208-209.

Esta ideia também é defendida por Arruda Alvim:

O exame da repercussão geral deverá ser prévio à admissibilidade, propriamente dita, ou à admissibilidade em sentido técnico, como assunto preliminar, já quando e dentro do âmbito do julgamento do recurso. A presença da repercussão geral, em certo sentido, é também submetida a um exame (não é ato de julgamento, por isso que a deliberação não tem caráter jurisdicional); este exame não deixa de ser uma “forma de admissibilidade”, mas previamente à possibilidade de julgamento e apenas em função do reconhecimento pelo tribunal, por meio de pronunciamento de caráter político, da presença da repercussão geral que se encontra na questão constitucional objeto do recurso, “admitindo” o recurso; de resto o próprio texto refere-se a que o tribunal procederá à “admissão do recurso”, usando do verbo admitir. Mas essa deliberação preliminar é inconfundível com a admissibilidade propriamente dita (com a verificação do cabimento/enquadramento do recurso nas hipóteses do art. 102 da CF e legislação ordinária), a qual é juízo preambular já dentro do procedimento do julgamento do recurso.122

Há ainda uma terceira corrente, defendida por Bruno Dantas, segundo a qual a

natureza jurídica da repercussão geral é de:

pressuposto específico de cabimento do recurso extraordinário, de modo que, embora dotado de peculiaridades, se insere no juízo de admissibilidade desse recurso.[...] Entedemos que a essência da repercussão geral guarda sintonia fina com a recorribilidade, um dos vetores do requisito do cabimento. Quando a Constituição concede ao STF poderes para, por dois terços de seus membros, reconhecer a carência de repercussão geral das questões constitucionais discutidas num determinado RE, e, em consequência, declarar a sua inadmissibilidade, estamos diante de regras meramente procedimentais que conduzirão, no fundo, ao reconhecimento de que a decisão é irrecorrível, ao menos em sede extraordinária.123

Para este autor, o não reconhecimento da repercussão geral e a consequente

irrecorribilidade são preexistentes à decisão do Supremo, sendo esta meramente

declaratória.124-125

Portanto, não obstante as outras correntes, a melhor concepção parece ser esta última,

que considera a repercussão geral como um pressuposto específico de cabimento, dotado de

algumas particularidades.126

122 ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. Op. cit., p. 64. 123 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 216-218.

124 Ibidem, p. 218. 125 Teresa Wambier tece considerações interessantes sobre a natureza declaratória do juízo de admissibilidade, associando-a à questão da ação rescisória. Cf. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. Ed. cit., p. 149-150, nota de rodapé 38.

4.2.1 Parâmetros legais: Constituição de 1988

O art. 102, § 3º da Constituição, acrescentado pela Emenda Constitucional 45/2005,

não trouxe maior disciplina sobre o instituto que inaugurou, a repercussão geral, deixando a

tarefa de maior detalhamento à legislação regulamentadora infraconstitucional.

Entretanto, duas questões foram suscitadas e debatidas pela doutrina, a partir deste

parágrafo: o momento para apreciação da repercussão geral e o quorum exigido para a

inadmissão do recurso extraordinário pela denegação da repercussão geral.

A questão do momento em que deve ser apreciada a repercussão geral causa bastante

discussão na doutrina, pois não foi regulada pela Lei 11.418, continuando o texto

constitucional como base dessa querela doutrinária, havendo duas correntes que a dividem.

A primeira, capitaneada por Arruda Alvim e Rodolfo de Camargo Mancuso, defende

que o exame sobre a repercussão geral das questões constitucionais deve se dar antes do juízo

de admissibilidade recursal propriamente dito (requisitos intrínsecos e extrínsecos), baseando-

se, principalmente, na literalidade do próprio dispositivo constitucional.127-128

126 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 218. Na sequência da obra, Bruno Dantas rebate eventuais críticas ao

seu posicionamento. Ibidem, p. 219-220. 127 Rodolfo de Camargo Mancuso apresenta uma longa lista de justificativas para seu posicionamento, rebatendo argumentos da outra corrente doutrinária: “(i) é o texto constitucional que estabelece a prioridade na aferição da repercussão geral, ao dizer que o STF o fará para o fim de ‘admissão do recurso’ (§ 3º do art. 102 – EC 45/2004), repercussão essa que é de ser posta como ‘preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal’ (CPC, § 2º do art. 543-A, cf. Lei 11.418/2006), não se podendo, embora por respeitáveis razões pragmáticas ou utilitárias, extrair dos textos de regência o que neles não se contém; (ii) a interpretação cabível e possível é aquela que se possa fazer conforme a Constituição, ou seja, buscando extrair a máxima efetividade da norma, do modo como a colocou o constituinte revisor; (iii) os iniciais temores de uma excessiva sobrecarga ao Pleno do STF se dissiparam ou ao menos se atenuaram com o disposto no § 4º do art. 543-A do CPC, cf. Lei 11.418/2006 – ‘Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, quatro votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário’ -, a par das novas disposições regimentais que delegam ao Presidente, quando oficia como Relator, e aos Relatores o juízo de delibação acerca da ‘repercussão geral’ (alínea c do art. 13, V; § 1º do art. 21 – ER 21/2007, DOU 03.05.2007); (iv) efetivamente, o Presidente do STF, atuando como Relator está autorizado a despachar ‘os recursos que não apresentem preliminar formal e fundamentada de repercussão geral, ou cuja matéria seja destituída de repercussão geral, conforme jurisprudência do Tribunal’ (RISTF, alínea c do art.13, V), em decisão agravável (RISTF, § 2º do art. 327, cf. ER 21/2007); (v) ainda, a Presidência ‘recusará recursos que não apresentem preliminar formal e fundamentada de repercussão geral, bem como aqueles cuja matéria carecer de repercussão geral, segundo precedente do Tribunal, salvo se a tese tiver sido revista ou estiver em procedimento de revisão’, atribuição que se estende ao Relator sorteado, ‘quando o recurso não tiver sido liminarmente recusado pela Presidência’ (RISTF, art. 327 e § 1º - ER 21/2007);

Já a segunda corrente, que tem por defensores, Elvio Ferreira Sartório e Flávio Cheim

Jorge; Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero; e José Rogério Cruz e Tucci, aduz que,

antes da análise da repercussão geral, os outros requisitos de admissibilidade devem ser

averiguados pelo Relator do recurso, já que o exame da repercussão geral é mais complexo,

não podendo ser decidido monocraticamente.

Destarte, como lecionam Élvio Sartório e Flávio Cheim:

Num primeiro momento, será preciso averiguar, monocraticamente, se o recurso é admissível ou não, para, na hipótese positiva, posteriormente submeter à turma o debate acerca da repercussão geral. Em verdade, seria demasiadamente desgastante ao STF se fizesse de forma diversa; haveria o risco de reconhecer a existência da repercussão geral e, posteriormente, não conhecer o recurso no mérito, por ausência de outro requisito de admissibilidade.129

Da mesma forma, afirma José Rogério Cruz e Tucci:

A esse propósito, parece-me que o relator do recurso extraordinário deve examinar, com precedência, todos os demais pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário. Sendo positivo o juízo de admissibilidade, só então é que a questão da repercussão geral será levada à apreciação da turma.130

Marinoni e Mitidiero compartilham da mesma opinião:

Registrado e distribuído o recurso, procederá previamente o relator ao exame de sua admissibilidade. Poderá o relator, nesse momento, não admitir o recurso extraordinário, por exemplo, por intempestividade ou

(vi) quando a alegada repercussão geral se encontre reproduzida em múltipos recursos extraordinários versando idêntica controvérsia (CPC, art. 543-B, cf. Lei 11.418/2006), os Relatores estão autorizados a ‘cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do art. 543-B do Código de Processo Civil’ (RISTF, § 1º do art. 21, cf. ER 21/2007), dispositivo que se completa com o art. 328 e parágrafo único do RISTF, cf. ER 21/2007; (vii) o Relator não precisará submeter aos demais Ministros, por meio eletrônico, ‘cópia de sua manifestação sobre a existência, ou não, de repercussão geral’ em ocorrendo a hipótese de o recurso ‘versar questão cuja repercussão já houver sido reconhecida pelo Tribunal, ou quando impugnar decisão contrária à súmula ou à jurisprudência dominante, casos em que se presume a existência de repercussão geral’ (RISTF, § 1º do art. 323, cf. ER 21/2007). Cf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 206-208. 128 ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. Op. cit., p. 64. 129 SARTÓRIO, Elvio Ferreira; JORGE, Flávio Cheim. O recurso extraordinário e a demonstração da repercussão geral. In: WAMBIER. Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 186. 130 TUCCI, José Rogério Cruz e. Anotações sobre a repercussão geral como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário (Lei 11.418/2006), p. 9. Disponível em http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1211289535174218181901.pdf> acessado em 10 de dezembro de 2009

por ausência de afirmação de violação de questão constitucional na decisão recorrida.131

Por esse viés pragmático desta segunda corrente, evitando-se que um recurso

extraordinário inadmissível tenha sua repercussão geral analisada, de forma desnecessária, por

uma Turma ou mesmo pelo Plenário do Supremo, acompanha-se este segundo entendimento,

embora reconhecendo a propriedade dos argumentos da primeira corrente.132

A segunda questão que deriva do texto constitucional é a relativa ao quorum exigido

para que a repercussão geral não seja reconhecida.

Como se depreende da leitura do art. 102, § 3º, é necessário que pelo menos dois

terços dos Ministros do STF se manifestem pela inexistência da repercussão geral para que o

recurso extraordinário seja inadmitido com base nesse motivo.

Arruda Alvim, ao analisar este quorum exigido aduz:

A recusa do recurso extraordinário, porque ausente a repercussão geral, pela elevada maioria de dois terços é saudável, porquanto procura que esteja subjacente a essa recusa um alto grau de certeza e segurança, compensatórias - diga-se assim – da circunstância da repercussão geral constituir-se num conceito vago, propiciando menor certeza e menos segurança.133

Ainda sob esse viés de “mecanismo de compensação”, Bruno Dantas complementa:

No caso da repercussão geral, o fato é que estamos diante de um conceito jurídico indeterminado que encerra restrição a recurso de estatura constitucional. Dada sua indeterminação conceitual – que necessariamente envolve um elevado teor de subjetividade na aplicação in concreto -, o elevado quorum serve como “elemento compensador” da natural redução da previsibilidade, especialmente se cotejado com um conceito minucioso.134

Essa análise permite concluir que a regra continua sendo a admissibilidade do recurso

extraordinário, exigindo-se quorum qualificadíssimo para a sua inadmissão por ausência de

repercussão geral, havendo “verdadeira presunção de repercussão geral das questões levadas

ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal pela via do recurso extraordinário”.135

131 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 48.

132 V. nota de rodapé 127. 133 ARRUDA ALVIM. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. Op. cit., p. 65.

134 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 221.

135 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 47-48.

Há que se destacar a inegável influência do modelo norte-americano na adoção desse

quorum, posto que, como se disse anteriormente136, no caso do writ of certiorari, prevalece a

regra costumeira conhecida como rule of four, segundo a qual, pela manifestação de quatro

dos nove Justices, o certiorari é conhecido.

4.2.2 Parâmetros legais: Lei 11.418/2006

O art.102, § 3º da Constituição de 1988 carecia de regulamentação, que sobreveio com

a Lei 11.418 de 2006. Esta lei inseriu, no CPC, o art. 543-A, que disciplina boa parte do

procedimento ligado ao reconhecimento da repercussão geral no recurso extraordinário, e o

art. 543-B, que cuida da análise da repercussão geral no caso de multiplicidade de recursos

fundados na mesma questão.

O caput do art. 543-A do CPC dispõe sobre a irrecorribilidade da decisão que não

admite o recurso extraordinário pela ausência de repercussão geral. Não obstante a claríssima

dicção legal, a doutrina aponta que ela não deve ser interpretada literalmente, sendo cabíveis

embargos de declaração contra aquela decisão. Isto porque, como aponta Bruno Dantas, este

recurso:

[...] está relacionado ao direito das partes de obter tutela jurisdicional materializado em provimentos claros, coerentes e completos, e tem como finalidade precípua escoimar os pronunciamentos judiciais de vícios de obscuridade, contradição ou omissão, que eventualmente lhe impinjam mácula, de modo a “revelar” a decisão que deveria ter sido proferida.137

Marinoni e Mitidiero vão mais além, ao defenderem a possibilidade, em tese, de

impetração de mandado de segurança, utilizado como sucedâneo recursal, “pela contingência

dos conceitos de relevância e transcendência constituírem conceitos jurídicos indeterminados

que reclamam preenchimento com valorações objetivas”138. Entretanto, como os próprios

autores admitem, o Supremo tem precedentes no sentido da não admissão de mandado de

segurança contra atos de seus Ministros.139

136 V. item 3.1.

137 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 304. 138 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 60. 139 Loc. cit.

O § 1º do art. 543-A revela a moldura estabelecida pelo legislador ao conceito de

repercussão geral, a saber: questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social

ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. Na análise de Marinoni e

Mitidiero, “nosso legislador alçou mão de uma fórmula que conjuga relevância e

transcendência”140, ou seja, não basta que a questão ventilada seja importante sob os aspectos

econômico, político, social ou jurídico, ela há de se refletir em um espectro considerável de

pessoas, revelando-se “útil para a persecução da unidade do Direito no Estado Constitucional

brasileiro, compatibilizando e/ou desenvolvendo soluções de problemas de ordem

constitucional”141.

Importante destacar que, nesse ponto, o filtro brasileiro não acompanhou seu modelo

americano, que não exige a transcendência para conhecer do certiorari.142

Para José Rogério Cruz e Tucci:

Andou bem o legislador não enumerando as hipóteses que possam ter tal expressiva dimensão, porque o referido preceito constitucional estabeleceu um ‘conceito jurídico indeterminado’ [...] que atribui ao julgador a incumbência de aplicá-lo diante dos aspectos particulares do caso analisado.143

Sobre a questão dos “conceitos jurídicos indeterminados”, cumpre esclarecer que o seu

conteúdo inerentemente subjetivo (“halo conceitual”144) não acarreta a delegação de poder

discricionário para sua delimitação; trata-se, na verdade, de processo meramente

interpretativo.145

No § 2º do mesmo artigo, expõe-se a forma de demonstração da repercussão geral,

devendo ser apresentada em preliminar do recurso. Afirmam Marinoni e Mitidiero que “trata-

se de exigência de forma, concernente ao modo de exercer o poder de recorrer”, destacando

que não se concebe o não-conhecimento pelo mero descumprimento dessa forma146.

Outra característica destacada neste parágrafo diz respeito ao juízo de admissibilidade

do recurso. Esta é uma particularidade da repercussão geral, como um pressuposto específico

140 Ibidem, p. 33. 141 Ibidem, p. 34. 142 V. item 3.1. 143 TUCCI, José Rogério Cruz e. Op. cit., p. 6.

144 Expressão cunhada por Marinoni e Mitidiero. V. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 34. 145 Ibidem, p. 34-35; DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 232. 146 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 43.

do cabimento, que não permite a outro tribunal, que não o Supremo, apreciar a existência ou

não desse pressuposto. Em outras palavras, o Supremo possui competência exclusiva para

aferir a admissibilidade do recurso extraordinário, no que concerne à repercussão geral. Com

relação aos outros requisitos de admissibilidade, o juízo continua o mesmo, podendo ser

aferido pelo tribunal a quo.

Já o § 3º do citado artigo, trata da presunção legal da existência de repercussão geral.

Como afirma José Rogério Cruz e Tucci:

Coerente com outras disposições processuais, em particular, com a regra do art. 557 do Código de Processo Civil, o § 3º do art. 543-A pressupõe, de modo expresso, a existência de repercussão geral nas hipóteses em que o recurso extraordinário impugnar acórdão, cujo fundamento contrariar súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal.147

O intuito deste expediente é valorizar as decisões do Supremo, ressaltando sua função

como guardião da Constituição, dando, assim, maior dinâmica ao sistema recursal.

Outro mecanismo que preconiza a dinâmica recursal é o previsto no § 4º do art. 543-A,

que determina, nos casos em que a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no

mínimo, quatro votos, a dispensa da remessa ao Plenário. Com isto, previne-se a sobrecarga

desnecessária do Tribunal Pleno, já que, com quatro votos pró-repercussão geral, atinge-se a

minoria exigida para o conhecimento do recurso, sob esse aspecto.

O § 5º do art. 543-A, estabelece a eficácia futura da decisão de inadmissibilidade do

recurso extraordinário pela inexistência de repercussão geral, determinando o indeferimento

liminar dos casos idênticos posteriores. Como bem aduz Bruno Dantas:

Esse dispositivo é indicativo da concepção que o legislador pretendeu imprimir ao instituto [repercussão geral]: a de móvel da solução definitiva da crise que se abate sobre a Corte.

Realmente, não faria sentido que o plenário do STF precisasse se reunir para analisar a presença ou ausência de repercussão geral todas as vezes que um RE chegasse à Corte. Além de contra-senso do ponto de vista pragmático, pois frustraria a esperada redução no número de recursos, interpretação assim reduziria a natureza paradigmática das decisões do STF.148

147 TUCCI, José Rogério Cruz e. Op. cit., p. 6.

148 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 305.

Novamente, como se vê, busca-se desobstruir o STF, favorecendo-se a celeridade

processual e o fortalecimento das decisões da Corte Suprema. No entanto, não se pode olvidar

a ressalva feita pelo mesmo autor:

[...] o cuidado que se deve ter ao aplicar esse dispositivo deve ser absoluto. Não basta que os casos sejam assemelhados, sendo exigível e indispensável a identidade da tese jurídica em discussão, sob pena de violação do texto constitucional.149

Na hipótese de má-utilização desta regra, é cabível a impugnação por meio de agravo

interno, baseando-se no art. 557, § 1º do CPC e no art. 327, § 2º do RISTF.

No § 6º do mencionado artigo, institui-se a possibilidade de intervenção de terceiros

no exame da repercussão geral, subscrita por um advogado, desde que admitida pelo Relator.

A doutrina afirma que esta manifestação não se enquadra nas modalidades tradicionais de

intervenção de terceiros, concluindo que tal intervenção traduz-se na figura do amicus curiae,

como definido por Bruno Dantas, apoiado na lição de Cássio Scarpinella Bueno.150

Justifica-se a inclusão desta possibilidade pelo caráter paradigmático das decisões

sobre a repercussão geral, que, como visto, terão eficácia futura. Mas não é só isso que

justifica tal intervenção. Segundo as teorias contemporâneas da interpretação constitucional, o

processo dessa interpretação deve ser ampliado para além do processo constitucional

concreto. É o que propõe, por exemplo, Peter Häberle, com a tese da sociedade aberta dos

intérpretes da Constituição, explicando:

A sociedade torna-se aberta e livre, porque todos estão potencial e atualmente aptos a oferecer alternativas para a interpretação constitucional. A interpretação constitucional jurídica traduz (apenas) a pluralidade da esfera pública e da realidade (die pluralistische Öffentliechkeit und Wirklichkeit), as necessidades e as possibilidades da comunidade, que constam do texto, que antecedem os textos constitucionais ou subjazem a eles. A teoria da interpretação tem a tendência de superestimar sempre o significado do texto.151

No mesmo sentido, Marinoni e Mitidiero afirmam que “a Constituição é um

documento democrático; sua interpretação tem de ser plural”152.

149 Ibidem, p. 306. 150 Ibidem, p. 297. 151 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997, p. 42-43. 152 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 42.

Uma rápida lida no parágrafo único do art. 1º da Constituição de 1988 basta para

corroborar estas teses: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de

representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Portanto, um Estado

Democrático de Direito deve dispor de mecanismos que permitam a participação, de forma

plural, dos indivíduos que o compõem, e o amicus curiae atende perfeitamente a este

desiderato.

Ressalte-se que, segundo o art. 323, § 2º do RISTF, a decisão do Relator que admite

ou não a participação do amicus curiae é irrecorrível.

Um detalhe importante, que decorre dos dois últimos parágrafos analisados e do art. 3º

da Lei 11.418/2006, é o poder delegado pelo legislador ao STF, para que este estabeleça, por

meio de seu Regimento Interno, as normas necessárias à execução da referida lei.

Bruno Dantas, analisando a constitucionalidade desta delegação, conclui que:

[...] o STF tem competência para dispor em seu regimento interno meramente sobre as questões sobre as quais, por mandamento constitucional, já dispunha, ainda que a lei não tivesse trazido o dispositivo supracitado [art. 3º]: as regras de governo interno do tribunal, a saber, competência e funcionamento de seus órgãos.

Contrario sensu, resta evidente que não cabe ao RISTF trazer quaisquer regras que tenham conteúdo de processo ou procedimento, pena de usurpação de competência reservada à lei formal.153

Por fim, o § 7º do art. 543-A prevê que “a Súmula da decisão sobre a repercussão geral

constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão”.

O art. 543-B do CPC

153 DANTAS, Bruno. Op. cit., p. 278.

5 CONCLUSÃO

Por tudo o que se expôs nessa monografia, a análise do modelo constitucional-federal

brasileiro e do Supremo Tribunal Federal, das causas que levaram à crise do recurso

extraordinário e das soluções adotadas no direito comparado, conclui-se que houve demora na

identificação das origens do assoberbamento do STF, o que levou à adoção de inúmeras

medidas equivocadas ao longo do século passado, que, em sua maioria, revelaram-se

absolutamente ineficazes.

Com a Emenda Constitucional 45 e a Lei 11.418, o constituinte derivado e o legislador

corrigiram os erros de outrora, pois, pela avaliação feita sobre o instituto da repercussão geral,

é possível concluir que este coaduna-se perfeitamente com os anseios doutrinários e sociais,

servindo como instrumento à tutela jurisdicional efetiva e à celeridade processual.

Esta foi, sem dúvida, a melhor solução adotada para a resolução da crise do recurso

extraordinário, não só pelos resultados práticos atingidos, mas, principalmente, por sua

dogmática atenta à nova interpretação constitucional e aos valores democráticos e plurais que

constituem o cerne da Carta Constitucional de 1988, possibilitando uma maior participação da

sociedade nas decisões que influenciam diretamente suas vidas.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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FOLHA DE AVALIAÇÃO

Nome da Instituição Universidade Cândido Mendes

PROJETO A VEZ DO MESTRE Pós-Graduação Lato Sensu

Título da monografia Repercussão Geral no Recurso Extraordinário

Autor: Joaquim Tadeu Pontes Ferreira

Data da entrega: 22/08/2010

Avaliado por: