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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGEM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS-MESTRADO RENATO CARDOSO DE MORAES POESIA EM TELA: LUCINDA PERSONA CUIABÁ-MT 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGEM

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE

LINGUAGENS-MESTRADO

RENATO CARDOSO DE MORAES

POESIA EM TELA: LUCINDA PERSONA

CUIABÁ-MT

2010

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RENATO CARDOSO DE MORAES

POESIA EM TELA: LUCINDA PERSONA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos de Linguagem da

Universidade Federal de Mato Grosso, como

parte dos requisitos para a obtenção do título de

Mestre em Estudos de Linguagem.

Orientador: Profª Drª Célia Maria Domingues

da Rocha Reis

CUIABÁ-MT

2010

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A meu querido pai, Paulo Cardoso, pela paciência ao ensinar-me as primeiras cores.

A Renata, minha filha, por mostrar-me a porta da graduação, e ajudar-me a entrar e a sair

por ela.

A Thiago, meu filho, por acreditar que seria possível.

A minha esposa Ilza, ela mesma, e a seus heterônimos: Dita, que só faz o miolo do essencial;

Constança que faz o mais; e Zazá, poderosa, que projeta, retém, assiste, tolera, co(labora)

em tudo.

E a Bárbara, nossa netinha.

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AGRADECIMENTOS

À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem- Mestrado.

À Profª Drª, e orientadora, Célia Maria Domingues da Rocha Reis.

Ao Prof. Dr. Aguinaldo José Gonçalves.

Ao Prof. Dr. José Serafim Bertoloto.

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Mais tarde

é sempre uma página para síntese e repouso.

Lucinda Persona

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RESUMO

A produção poética de Lucinda Nogueira Persona, autora paranaense radicada em Mato

Grosso, apresenta muitos recursos plástico-pictóricos. Aproveitando tal tendência,

desenvolveremos a presente pesquisa de modo transdisciplinar, objetivando a percepção

e análise das correlações entre literatura e pintura, as suas soluções discursivas,

estilísticas; o modo como, pela palavra, as imagens tomam corpo no espaço-tempo,

apropriam-se dos elementos visuais - pontos, traços, sombras, luz, cor, superfície -,

configurando poesia. Para o artista plástico, para o poeta, apropriar-se dos elementos

visuais é vivenciar a experiência da expressão, tentativa de condensar num suporte a

carga emotiva dos lampejos de suas visões.

Palavras-chave: Lucinda Persona, literatura, pintura, poesia mato-grossense.

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ABSTRACT

The poetic production of Lucinda Nogueira Persona, a female author from Paraná,

living in Mato Grosso, presents many plastic-pictographic resources. Profiting from this

tendency, the present research is developed in a transdisciplinary mode, aiming the

perception and analysis of the correlations between literature and painting, their

discursive solutions, stylistics; The way that, through words, images take shape in the

time-space, achieving visual elements – points, traces, shadows, light, color, surface - ,

constituting poetry. To the plastic artist, to the poet, achieving visual elements is to live

an experience of expression, trying to condense in a support the emotive load of the

flashes of their visions.

Keywords: Lucinda Persona, literature, painting, poetry from Mato Grosso.

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SUMÁRIO

Dedicatória.......................................................................................................................03

Agradecimentos...............................................................................................................04

Resumo............................................................................................................................06

Abstract............................................................................................................................07

INTRODUÇÃO...............................................................................................................09

CAPÍTULO I. DO VAZIO À FORMA ..........................................................................13

1 VAZIO E FORMA......................................................................................................13

1. 1 OS ELEMENTOS VISUAIS ...................................................................................15

1. 1. 1 A linha..................................................................................................................15

1. 1. 2 A superfície..........................................................................................................19

1. 1. 3 O volume..............................................................................................................23

1. 1. 4 A luz.....................................................................................................................27

1. 1. 5 A cor.....................................................................................................................32

1. 1. 6 A forma.................................................................................................................40

1. 1. 7 A singularização...................................................................................................46

1. 1. 8 A composição.......................................................................................................50

CAPÍTULO II. DA INÉRCIA À DRAMATICIDADE RÍTMICA................................56

2. 1 O espaço-tempo.......................................................................................................56

2. 2 O ritmo.....................................................................................................................58

2. 3 Alguns moduladores do movimento........................................................................63

2. 3. 1 O intervalo, a pausa.............................................................................................64

2. 3. 2 Diagonais, curvas, espirais e algo mais...............................................................69

2. 3. 3 O contraste...........................................................................................................79

2. 3. 4 A nitidez e o esmaecimento.................................................................................81

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................85

CRÉDITOS ICONOGRÁFICOS....................................................................................87

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................87

ANEXOS.........................................................................................................................91

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INTRODUÇÃO

No contexto de pesquisas que já há algum tempo vínhamos desenvolvendo sobre

artes plásticas e produção de pinturas, deparamo-nos com a produção poética de

Lucinda Nogueira Persona, na qual vislumbramos muitos recursos plástico-pictóricos,

como luz, cor, volume, contrastes etc., tanto em verso como em prosa.

O poeta, utilizando-se da paleta infinita da linguagem, das múltiplas texturas

verbais, da pluralidade sonora e rítmica da língua, compõe seu arranjo no branco do

papel. A aproximação literatura-pintura nos deu ânimo para aprofundarmo-nos nesse

conhecimento.

Superadas as primeiras impressões de leitura da obra de Lucinda, constatamos a

consistência e a frequência de uso de recursos plásticos, entre tantos outros que chamam

a atenção do leitor para a obra. Optamos, então, por tomá-la como objeto de nossa

pesquisa, elaborando uma proposta interartes com o objetivo de estudar as correlações

entre literatura, poesia e pintura.

Assim, ajustando a lente para o nosso objeto, procuramos buscar um suporte

teórico que ressaltasse o seu fazer artístico singular, criterioso, que valoriza a expressão

verbal e serve-se de elementos correlatos à pintura.

Não se trata de um tipo de abordagem contemporânea, conforme comenta Celina

Mello ao discorrer sobre mudança de valores “no espaço-histórico clássico”:

Um dos temas que serão regularmente tratados pelos acadêmicos , em

debates e conferências, é o da comparação entre as artes, exercício

retórico e secular. Era citada, frequentemente, a fórmula atribuída por

Plutarco a Simônides de Ceos: “a pintura é uma poesia muda, / a

poesia uma pintura que fala” (MELLO, 2004, p.32).

nem que seu caráter transdisciplinar seja algo que se coloque em esferas extra-literárias,

haja vista a amplitude das imagens verbais, que se constroem também com música,

desenho, pintura, cinema. É por isso que, diz Aguinaldo Gonçalves, “todo pensamento

que se dispõe a adentrar devidamente as esferas do estético, sobretudo a estética da

palavra, acabará por defrontar-se com o universo dos demais sistemas” (1997, p. 60).

Naturalmente, ao refletirmos sobre “a linguagem ou sobre suas tensas relações com a

chamada realidade [... ou sobre] essa natureza imaterial do signo da arte” (idem,

ibidem), havemos de dialogar com a música, desenho, pintura, cinema etc. Na

introdução de sua obra Arte Poética, Horácio diz: “Os pintores e poetas sempre tiveram

igual poder de tudo ousar” (in: TRINGALI, 1994, p.27), e poderíamos acrescentar “de

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tudo [e em tudo] ousar”, consoante o pensamento de Fiedler: “O artista fala em pedra,

em madeira, em bronze, em cor, exatamente como o poeta fala em palavras: o artista

torna o pensamento visível, sem [necessariamente] o intermediário dos conceitos

verbais” (FIEDLER apud READ, 1972, p. 25).

Em nosso estudo transrelacional, almejamos que os diferentes sistemas de

representação, literatura e pintura, encontrem um espaço comum e amplo de diálogo.

Gonçalves diz: “é nessa esfera do provável que incluo os meus estudos das homologias

[...]” (GONÇALVES, 1997, p. 60). Queremos ter em mente essa perspectiva múltipla

da linguagem, à moda do que ensina Barthes:

“Interpretar um texto não é lhe conferir um sentido [...] trata-se de

apreciar o plural de que é constituído [...] um plural triunfante, não

[...] empobrecido por nenhuma obrigatoriedade de representação (de

imitação). Nesse texto ideal, as redes são múltiplas e jogam entre si,

sem que nenhuma possa comandar as outras; esse texto é uma galáxia

de significantes, não uma estrutura de significados; ele não tem

começo; é irreversível; tem um acesso com múltiplas entradas [e ... ]

nenhuma pode ser declarada principal [...] desse texto absolutamente

plural os sistemas de sentido podem apoderar-se, mas seu número

nunca se encerra, pois se mede pelo infinito da linguagem”

(BARTHES, 1970 apud MELLO, 2004, p.134).

Seguindo especificidades da produção literária na perspectiva da Crítica

Estilística, e os efeitos plástico-pictóricos que os versos alcançam na perspectiva crítica

da História da Arte, o trabalho se organiza em dois capítulos e procede a uma das

múltiplas leituras possíveis da obra de Persona.

No primeiro capítulo, procuramos ressaltar como ocorre, pela linguagem, a

apropriação dos elementos visuais, num fazer que contempla desde o vazio até a forma

“acabada” ─ linha, superfície, volume, luz, cor, composição, forma, singularização.

No segundo, além da inclusão de alguns aspectos essenciais à formulação

rítmica, como espaço e tempo, por exemplo, buscamos demonstrar como a linguagem

poética suscita a modulação do movimento ao evocar aspectos correlatos à pintura –

diagonais, curvas, espirais, contraste, nitidez e esmaecimento.

Os poemas de Lucinda Persona, citados e/ou coletados para análise, trazem seus

títulos grafados em maiúsculas, tais como se apresentam na obra. Notamos essa

peculiaridade estilística de titulação também na prosa, como na subtitulação de Ele era

de outro mundo (1997) e A cidade sem sol (2000), obras de literatura infanto-juvenil.

Tal uso confere certa solenidade (MARTINS, 2008, p. 91) aos poemas, talvez como se

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vê nos escritos sagrados: “LIVRO DO ECLESIASTES OU PREGADOR” (ALMEIDA, 1998,

p. 861). Eis a lista dos poemas:

Por imenso gosto (1995):

“EXPOSTA À TARDE”, p. 17;

“SOBRE A MESA BRANCA”, p. 23;

“EM HORA CREPUSCULAR”, p. 41;

“UMA CHAMA”, p. 43;

“FOLHAS PARDAS E VERMELHAS”, p. 67.

Ser cotidiano (1998):

“IDENTIDADE”, p. 11;

“AO REDOR DO CORAÇÃO”, p. 12;

“EXPOSTA À TARDE”, p. 17;

“HOMENS, FORMIGAS”, p. 21;

“HISTÓRIA”, p. 32;

“EU SONHO”, p. 36;

“VAGAROSAS, SOMBRIAS”, p. 38;

“PARA A MÃO ABERTA”, p. 58;

Sopa escaldante (2001):

“TUIUIÚ”, p. 22;

“MAR DO NORTE”, p. 50.

Leito de acaso (2004):

“LEITE”, p. 22;

“STAZIONE SANTA MARIA NOVELLA”, p. 45;

Tempo comum (2009):

“TODA SOPA É EXPANSÃO”, p. 55;

“OVOS À VISTA”, p. 56.

O estudo se constrói num terreno fundamentado basicamente pelos trabalhos teóricos

que exponho a seguir.

As obras de Alfredo Bosi, Reflexões sobre a arte (1986) e O ser e o tempo da

poesia (2000) oferecem subsídios que nos levam a refletir sobre a arte, e, nas palavras

de Célia Reis, o seu “estar-ali”: a arte como uma condensação da realidade, da

experiência ou do “não sentido da existência quotidiana” (BOSI, 1986, p.56). E, mais

especificamente, sobre a linguagem como código originalmente fértil, de múltiplos

significados. Temas como espaço, tempo e ritmo, explorados pelo professor, muito nos

auxiliaram na melhor compreensão e desenvolvimento dos temas propostos.

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Como que instrumentalizando nossas análises relativas à linguagem, em

Introdução à Estilística (2008), Nilce Martins fornece rico material em que aborda,

entre outros, os aspectos fônicos, lexicais, sintáticos e discursivos.

Quanto à estética da palavra frente aos demais sistemas de representação

artística, Aguinaldo Gonçalves, em Relações Homológicas entre literatura e artes

plásticas: algumas considerações (1997), contribui principalmente quando aborda

questões relacionadas às modalidades espaciais da poesia; à continuidade temporal e

simultaneidade espacial na obra de arte. E, em Signos (em) cena: ensaios – variações

acerca de modulação no trabalho de arte: fragmentos críticos (2010), Gonçalves nos

subsidia ao apresentar o processo de ruptura das camadas que tendem a cristalizar o

signo em sua “condição biunívoca”: é o “estilhaçamento” que pode elevá-lo ao estatuto

de “signo complexo”.

Os ensaios críticos de Celina Mello, reunidos em A literatura francesa e a

pintura (2004), além de se aproximarem de nosso objeto, pela temática literatura-

pintura, embasam nossas considerações ao tratar de elementos como a “visão linear”, o

desenho, a luz e, entre outros, o processo composicional.

Especificamente em termos de artes plásticas, em Universos da arte (2004),

linha mestra sob a qual procuramos estruturar a pesquisa, Fayga Ostrower traz à luz

conceitos essenciais da linguagem visual, que estimulam e conduzem ao exercício de

compreensão e fruição da obra de arte.

Paralelamente ao trabalho de Fayga, em Ponto e linha sobre plano (1997), de

Kandinsky, encontramos importantes definições, dentre as quais, do plano pictórico, do

ponto, da linha, do movimento; e, mais, reflexões sobre características dos fenômenos e

sobre apreciação da obra de arte.

Em A Arte de agora, agora: uma introdução à teoria da pintura e escultura

modernas (1972), de Herbert Read, consideramos, sobretudo, as noções de métodos de

pintura, conforme a intenção do artista, se plasticidade, se movimento ou ritmo.

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CAPÍTULO 1 – DO VAZIO À FORMA

1. VAZIO E FORMA

Nesse primeiro capítulo procuramos desenvolver breve análise do fazer literário

de Lucinda Persona, no espaço-tempo: do plano original à forma “acabada” e seu

entorno. De como, pela palavra, as imagens tomam corpo, apropriam-se dos elementos

visuais, desenham-se de pontos, de traços, vingam das sombras, modelam-se sob a luz,

colorem a nudez de sua superfície. De como, pela palavra, consolidam a presença, isto

é, “reúne[m] a expressão, a impressão e a reflexão: dir-se-ia o logos, o pathos e o ethos”

(GONÇALVES, 2010, p. 142). E assim, nas palavras da própria poeta: “[...] resgato

agora que em minha escrita a paisagem é um componente imprescindível. A

visualização do entorno é muito importante. As formas e as cores são substanciais”1.

Partamos, então, do vazio, nesse caminho até a forma.

O vazio, não há como representá-lo aqui. Um grande retângulo sem

preenchimento ou uma folha em branco seriam apenas seções de um todo num contexto.

A ideia do vazio é uma abstração. Para o artista plástico, para o poeta, ter o vazio diante

de si é ser instigado à experiência da expressão, tentativa de condensar num suporte a

carga emotiva dos lampejos de suas visões. A síntese produzida por tal experiência pode

ser definida, nas palavras de Bosi, como “um modo da presença que tende a suprir o

contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós”

(BOSI, 2000, p. 19).

Ao analisarmos a pintura na poesia de Lucinda Persona, utilizamos o termo

“vazio” no sentido de um espaço delimitado, natural ou previamente preparado para o

recebimento de ações que resultem em um código ou linguagem poético-pictóricos. E,

nas palavras do conhecido pintor russo, esse vazio pode ser entendido como o plano

original, “a superfície material destinada a suportar o conteúdo da obra”

(KANDINSKY, 1997, p. 105). Tomemos, como exemplo, um dos poemas de Lucinda

em que se observa o preenchimento desse “vazio” por representações de ocupação

sucessiva do espaço, marcadas por intensa temporalidade.

EXPOSTA À TARDE

nos lugares públicos

e ruas apinhadas

uma esquina

1 Extraído da entrevista que realizamos com Lucinda Persona, em 2009, colocada integralmente nos

anexos.

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não tem mesmo nenhum significado

A banda encardida de sua dobra

o seu dobrar de tudo ou nada

a desproporção das sombras

atrás dos seus corpos apressados.

(“EXPOSTA À TARDE”. Por imenso gosto, 1995, p. 17)

No plano original, ou suporte, ainda “vazio”, os elementos visuais, sutilmente,

vão se desenhando. Algo que ainda não se conhece está sob a luz: / Exposta à tarde /.

Esse fenômeno atmosférico e índice temporal, a tarde, é o elemento de maior

abrangência dentro do plano. Há um indício de “coisa” e a certeza de espaço, tempo e

luz. Esse “algo” que move o poema ainda não se revelou. Contudo, os espaços se

segmentam, tomam forma de locais comuns: / [...] lugares públicos / e ruas apinhadas /.

A singularidade da obra, dentre outras leituras, se observa no cuidado em impedir que o

poema desande para o peculiar, para o específico. O comum, o plural e o geral são

preservados: os lugares são de todos. Indeterminação e ambiguidade são valorizadas: as

ruas são, estão ou apinham-se, não se sabe. E mesmo o predomínio do artigo

definido, ― como se observa em à tarde, nos lugares, a banda, o seu dobrar, a

desproporção etc ― o fato não abala a estrutura de generalidade arquitetada. Um só

artigo indefinido sustenta o esquema antitético geral-específico do poema. No verso

/ uma esquina /, o artigo indefinido apresenta o ponto focal, uma imagem que se projeta

no espaço, trazendo a reminiscência de uma esquina qualquer, de um espaço público

qualquer; lugar de criação, extraído do “mundo tumultuoso e fragmentário [...], em que

os fragmentos encontram um ponto, um centro ao redor do qual possam comprimir-se”

(DE SANCTIS, apud READ, 1972, p. 50).

Agora, de passagem, a questão temporal, pois que retomaremos o assunto em

outro capítulo. No verso / Exposta à tarde /, o emprego do particípio, por si, já confere

certa imobilidade à cena, esta que se desenha num recorte de tempo: a tarde emoldura

ou delimita temporalmente o quadro. No desenvolvimento das imagens, em

determinado ponto, o fluir do tempo parece congelar-se: a figura de / uma esquina /

surge isolada e estática. Entretanto, sutilmente, o ritmo é retomado: já se pode ver o lado

encardido dessa esquina, o movimento do / [...] seu dobrar [...] / e, como num gráfico

instável, a linha requebrada das sombras desproporcionais /. E tão intenso se torna o

movimento, que as sombras que seguem / [...] seus corpos apressados / mais se

assemelham a espectros quase a transcender os limites da página.

Nessa primeira e breve análise, notamos o emprego de recursos estilísticos que

suscitam elementos visuais, essenciais à formulação de imagens poético-pictóricas.

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Vejamo-los mais detalhadamente. Segundo Fayga Ostrower, são apenas cinco: linha,

superfície, volume, luz e cor (2004, p. 53). Entretanto, vale acrescentar aqui o ponto, já

que, numa criteriosa abordagem, Kandinsky dedica todo um capítulo sobre esse

elemento singular. E talvez Fayga não o tenha incluído especificamente nesse seu

trabalho porque, como o próprio pintor russo afirma, o ponto originariamente “pertence

à linguagem e significa silêncio”, ele é “a derradeira e única união do silêncio e da

palavra” (KANDINSKY, 1997, p. 17).

1. 1 - OS ELEMENTOS VISUAIS

1. 1. 1 - A linha

O peso deseja uma só linha, e a força, infinitas. Leonardo da Vinci

Somos, agora, convidados a um passeio com Klee. A caminhada é uma alegoria

dele, conhecida como Um passeio com a linha. No roteiro por ele proposto,

encontraremos os elementos visuais que ora nos interessam.

Numa abordagem sobre “a arte da fantasia livre”, Read diz ser Paul Klee o

artista mais representativo desse tipo de pintura (1972, p. 108). E como nosso estudo é

um passeio sobre áreas que se interligam, literatura-pintura, pensamos que, pela riqueza

poética, pela alegria fantasiosa da imaginação criativa de Klee, devamos acompanhá-lo

nesse passeio:

[...] De um ponto morto parte o primeiro ato [...] (linha) [...] uma

parada [...] (linha interrompida, ou linha unida por paradas repetidas).

Uma olhada para trás [...] (movimento oposto) [...] aqui e acolá (feixes

de linhas). Um rio [...] (movimentos ondulantes) [...] uma ponte (uma

série de arcos) [...] encontramos uma pessoa [...] unidos por alegria

(convergência), [...] separados por diferenças (curso independente de

duas linhas). [...] excitação [...] (expressão, dinamismo e psique da

linha). [...] um campo arado (superfície toda desenhada de linhas), [...]

uma floresta cerrada. A linha perde seu caminho [...] Não estou mais

muito calmo: na vizinhança de outro rio há nevoeiro (elemento

espacial). Logo, todavia, ficará claro. Cesteiros [...] com suas carroças

(a roda), [...] uma criança de cachos maravilhosos (movimentos

espirais). [...] está abafado e escuro (movimento espacial). Relâmpago

[...] (linha ziguezague), [...] estrelas sobre nós (pontos). [...] Antes de

deitar, toda espécie de recordações há de emergir, porque uma

excursão nos dá tantas impressões... [...] uma criança doente... Tudo

acabado (ZAHN, 1920, p. 19-20 apud READ, 1972, p. 108-109).

Em sua “pequena excursão à terra do melhor entendimento”, Klee vai

destacando, um a um, os elementos visuais; “uma excursão nos dá tantas impressões...”,

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diz ele. Notamos que é a partir “de um ponto morto” que se processa o desenvolvimento

das imagens e, nelas, a ênfase dada ao elemento linha com suas modulações: o

intervalo, a pausa, a oposição, a segmentação, o adensamento, o contraste, o ritmo, tudo

se encaminhando para o redesenho e tintura de um dramático mundo de sonhos.

Assim como na alegoria de Klee, ao analisarmos o poema Em hora crepuscular,

partimos, igualmente, de um ponto.

EM HORA CREPUSCULAR

Ela (mulher velada)

olha para os confins

da rua suburbana

Aos poucos

os elementos de sua rotina

perdem contorno e contraste

Quando Ele ainda é um ponto

dançando no horizonte

das coisas habituais

Ela já se aquece

tem sido completa

no seu reino simplificado

Ele (homem de transparências)

vem devagar pelo meio-fio

Ela

não se furta ao sonho diário

de vê-lo crescer

e Ele cresce

dentro dos olhos pássaros dela

e dentro do que nela é tépido.

(“EM HORA CREPUSCULAR”. Por imenso gosto, 1995, p. 41)

De um ponto / dançando no horizonte / surge uma figura, Ele, que parece fugir

do ponto de fuga, e que caminha em direção ao primeiro plano, como que vencendo

uma escala especular progressiva, como numa mise-en-abyme (MELLO, 2004, pp. 61-

63), em que, espelho ante espelho, as imagens se replicam numa sobreposição infinita

de planos: o “espectador” vê a mulher que olha para os confins, e os olhos dela

retornam a imagem dEle, a dos olhos dEle, a do horizonte etc. E o termo confins

reforça a idéia de infinito sugerida por este tipo de construção.

Dos versos destacados a seguir, podemos dizer que o másculo Ele aparentemente

figura como personagem principal do poema, uma vez que, a partir de sua aparição, é

possível notar, / Aos poucos /, um aumento em movimento, nitidez, brilho, calor, em

emoção, vejamos:

[...]

Ele (homem de transparências)

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[...]

e Ele cresce

dentro dos olhos pássaros dela

e dentro do que nela é tépido.

Percebemos que, oculta na penumbra de / [...] seu reino simplicado /, no

domínio do que lhe é comum, Ela “apenas” aguarda a chegada dEle. O movimento dela

é, sobretudo, interno: / Ela já se aquece /. Entretanto, / [N]Ele (homem de

transparências) /, se vê uma gama de possibilidades advinda de sua exposição à luz,

indicada pelas transparências. / [E] Ele cresce /, delineia-se na reflexividade; transpõe-

se a convexa e débil gema / [...] dos olhos pássaro dela /. Há como que um jogo de

contrastes simultâneos, os protagonistas, numa vibração rítmica, alternam seus papéis:

ora é ele, ora é ela quem toma a cena como figura principal. O verso / Ela /, isolado,

sem complementos, o menor do poema, uma só palavra de três letras, surge como o

maior: em /Ela / se concentra toda a tensão do poema. / Ela / é o receptáculo das

impressões materiais, físicas, psíquicas. E em outro sentido esse / Ela / também pode ser

entendido como o maior, o mais expressivo verso. Pois, sendo o menor, graficamente é

o que mais se estende em “nulidade”, em vazios que ocupam seu próprio espaço

significativo de nada, de um nada que fala como ou mais que o silêncio. Esse jogo de

contrastes pode ser observado ainda na predicação exterior, luminosa e expansiva dEle

contra a / [d]Ela (mulher velada), encapsulada, na penumbra de seu recolhimento, no

casulo da simplicidade. A idéia dEle como objeto de interesse maior parece consolidar-

se pelo nome-pronome Ele grafado em maiúscula também no interior dos versos: /

Quando Ele ainda é um ponto / ; / e Ele cresce /. Tal distinção, segundo Nilce Martins,

“pode ainda sugerir uma personificação, uma idealização” (MARTINS, 2008, p.91),

uma reafirmação da concepção do “homem [...] como símbolo” (CHEVALIER, 1993, p.

495). Entretanto, sabemos: Ele domina figurativamente, enquanto que Ela o faz

emocionalmente.

Dentre outros elementos, observamos a configuração e o movimento do objeto

foco do poema, os quais se originam a partir de um ponto em deslocamento, ou seja, na

configuração da linha ou traço que, segundo Mello, é importante elemento na

“representação da Idéia”:

“Em todos os discursos e tratados sobre o Belo na pintura, vinculados

ao espaço-histórico clássico, encontramos a palavra desenho – dessin

– grafada como dessein – desígnio, intenção, o que gera uma forte

ambigüidade semântica e aponta para uma valorização do traço por

seu caráter de representação da Idéia (MELLO, 2004, p.34).

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Auxilia-nos, nessa abordagem, as considerações, definições e reflexões do

teórico de arte e pintor, Kandinsky, que praticamente aboliu a representatividade

figurativa em seus trabalhos pictóricos. Ele foi também professor da famosa Bauhaus,

“escola de arquitetura e de artes aplicadas que se tornou o grande centro da prática do

design moderno na Alemanha dos anos 20” (CHILVERS, 2007, p. 47). Em sua obra

teórica Ponto e linha sobre plano, o professor russo destaca a importância da linha em

configurações rítmicas. A linha, diz ele, “pode ser considerada um elemento

secundário”, no sentido de que ela “é o rasto do ponto em movimento, logo seu produto.

Ela nasceu do movimento – e isso pela aniquilação da imobilidade suprema do ponto”

(KANDINSKY, 1997, p. 49).

Agora, como vimos no poema, de um ponto / dançando no horizonte / surge a

linha, que configura o personagem e indica o movimento dele pela calçada, traço que o

encaminha em direção ao primeiro plano: / Ele [...] / vem devagar pelo meio-fio /;

/ e Ele cresce /, numa típica representação de “perspectiva direta”, nos termos de Boris

Uspênski (1979, p. 170). A construção privilegia a visão linear, isto é, uma

representação pictórica em que as formas são descritas primordialmente pelo uso de

linhas e contornos muito acentuados e não pela mancha cromática (MELLO, 2004,

p.77). Nesse terreno, Read vem em nosso auxílio:

Grosseiramente falando, existem dois métodos alternativos na pintura

– o método do tom e o método da linha. Se desejarmos profundidade e

coesão plástica em nosso quadro, devemos, então, desenvolver nossas

relações tonais à custa do contorno linear: mas se, por outro lado,

desejarmos movimento e ritmo, então devemos desenvolver a ênfase

linear à custa do tom. (READ, 1972, p. 61).

Embora o poema apresente profundidade (acentuada pela mise-en-abyme, que

valoriza o recurso temporal), o desenvolvimento da linha impõe ritmo, determina a

direção do movimento dEle ou encontro dela. E esse deslocamento, desde o plano de

fundo, é um dos índices para a percepção da tridimensionalidade (OSTROWER, 2004,

p. 55). Intensificando o dinamismo da cena, a trama verbal guia o olhar do leitor no

cenário que vai se configurando. O primeiro plano, ou presente, é apresentado pela

imagem da mulher que olha para o passado. O olhar dela e do leitor dirigem-se ao

passado, para os confins, para um ponto em movimento na linha do horizonte. E o

retorno, do passado para o presente, é dado pelos versos: / Quando Ele ainda é um

ponto / dançando no horizonte / e / vem devagar pelo meio-fio /.

A ação do tempo no tempo é também assinalada pela narrativa linear; pelos

advérbios quando, já, ainda e devagar; pela locução adverbial aos poucos; pelo uso do

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gerúndio dançando e, entre outras possibilidades, pela flexão verbal em perdem, vem,

por exemplo.

1. 1. 2 - A superfície

O que importa é conhecer a fundo

a superfície das máscaras.

Lucinda Persona

Esse percurso até a forma iniciou-se no vazio, passou pelo ponto, seguiu até a

linha e agora prossegue com outro elemento visual, a superfície. Nesse caminho,

acreditamos de valor o que nos partilha Fayga: ao observarmos duas linhas horizontais,

paralelas, de mesmo tamanho, notamos que apresentam um movimento longitudinal

rápido em determinada direção (desenho 1).

desenho 1

Entretanto, se acrescentarmos duas verticais, de forma que as linhas se

encontrem em suas extremidades, observamos novo efeito: o movimento visual é

reduzido drasticamente, surge uma imagem aparentemente estática, definida pelas

linhas de contorno que delimitam uma área. Temos então um novo elemento visual, a

superfície, que organiza bidimensionalmente o espaço, em altura e largura.

desenho 2

Na estruturação espacial da superfície, os elementos se integram de tal maneira

que se tem a impressão de estagnação, as linhas perdem a autonomia de correr

livremente, e assumem a característica de se comportar, de dar conformidade à área que

contornam. E, concernente ao movimento visual da superfície, Fayga complementa:

Quanto mais as duas dimensões se compensarem, proporcionalmente,

tanto mais diminui o movimento visual ― por exemplo, no quadrado,

onde os lados são iguais (desenho 3), e mais ainda no círculo, onde

não há ângulos nem pontas que possam projetar-se no espaço

(desenho 4). [...] se uma das dimensões prevalecer visualmente, um

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certo movimento poderá se restabelecer para a área toda,

impulsionando-a na direção dominante (desenho 2). Notamos [...]

para as superfícies: reduzindo o movimento visual, reduz-se o fluir do

tempo (OSTROWER, 2004, p. 59).

desenho 3 desenho 4

Uma das características mais intrigantes do elemento visual superfície é o

conceito do espaço idealizado. Segundo Fayga, este se configura quando de sua

estabilização e imobilização pela compensação mútua das duas dimensões que o

estruturam. Neste caso, trata-se de pura expansão sem indicação de tempo.

(OSTROWER, 2004, p. 59).

Quanto à noção tempo-espaço, que naturalmente engloba o elemento superfície,

Klee assim se manifesta:

O espaço também é uma noção temporal. O fator tempo intervém tão

logo um ponto entra em movimento e se converte em linha. O mesmo

ocorre quando uma linha engendra, ao deslocar-se, uma superfície. O

mesmo se dá a respeito do movimento que leva das superfícies aos

espaços (KLEE, 1979 apud GONÇALVES, 1997, p. 64, grifo nosso).

O sábio Klee, transcendendo o ofício de pintor, entranha-se apropriadamente na

crítica de arte mediante o literário: “Trata-se daqueles raros artistas que conseguem não

só manifestar seu juízo estético por meio das obras que produzem, mas ir além, ao

escreverem sobre estética com disposição e fundamentos ímpares” (GONÇALVES,

2004, p. 33). O conceito de espaço-tempo que o artista e crítico preconiza auxilia-nos na

análise do poema “Para a mão aberta”, extraído da obra Ser cotidiano, de Lucinda

Persona.

Desde o título até o último verso desse poema, o leitor se vê em meio a uma

constelação de ideias temporais e espaciais. Por ora, entretanto, procuraremos nos ater

ao elemento espacial superfície. Todavia, sabendo que “todo acontecimento descansa no

movimento” (KLEE, 1979 apud GONÇALVES, 2004, p. 32), haveremos de incorrer,

naturalmente, na questão temporal.

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PARA A MÃO ABERTA

De novo

minha atenção se volta

para a mão aberta.

E nem tentarei explicar

o que explicação não tem.

Primeiro olho a palma

esta planície

cor-de-rosa e ardente

repleta de caminhos

que tento percorrer.

Depois

olho o lado oposto

também uma planície

mas apagada e seca

me fazendo meditar

por muito tempo

terra adentro

até que a atmosfera

se torna carregada

e a primeira gota de chuva

silenciosa

cai.

(“PARA A MÃO ABERTA”. Ser cotidiano, 1998, p. 58)

Olhando para esse título ─ “PARA A MÃO ABERTA” ─ é possível observar seu

aspecto de verso, que integra o corpo do poema, impressão que se confirma em razão

de, mais adiante, haver um verso com essas mesmas palavras. Em seu merecido

destaque, o título carrega também uma ideia de dedicatória. Por meio dessa repetição,

entre outras sutilezas semânticas, há um adensamento do poema, que vai se constituindo

como um cântico à mão que se abre em sujeição e / ou aceitação. Se a partir do título se

torna possível tal leitura, vemos então o movimento interno e externo da mão: uma que

outorga, a do poeta, e outra que alcança favor ao recobrar graça pela perenização da

arte. Disso abstraímos a recorrência da imagem “mão” que ─ juntamente com o

movimento depreendido pela preposição “para” e pela locução adverbial / De novo /, ou

ainda pela flexão verbal / [...] se volta /, ─ fortalece a ideia de tempo cíclico.

De caráter intimista, o poema inicia-se com uma imagem constituída de linhas

que se fecham em contorno: a mão aberta, planície definida pela bidimensionalidade. À

medida que o tema se desenvolve, novas ações expressivas vão dando corpo à obra.

Uma cor única e lisa, derivada do vermelho quente, é acrescentada; os caminhos são

traçados, e a poesia nos arrebata (primeiro o poeta, depois o leitor), linhas que tentamos

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percorrer. / Depois / olho o lado oposto /, nova planície se nos apresenta, de textura

diferente, seca, característica que lhe confere opacidade.

Comparando partes desse poema com partes da alegoria de Klee, observamos

intrigantes semelhanças. Observemos estas palavras do artista: “Cruzamos um campo

arado (superfície toda desenhada de linhas)” e ainda estas: “Toda sorte de linhas

diferentes, pinceladas, traços, superfícies lisas, superfícies salpicadas, superfícies

sombreadas” (ZAHN, 1920, p. 19-20 apud READ, 1972, p. 108-109). Relacionando

essas idéias do pintor com as da poeta, obtivemos os seguintes diagramas:

diagrama 1:

a mão aberta ; a palma ; esta planície

Cruzamos um campo arado (superfície toda desenhada de linhas)

que tento percorrer

repleta de caminhos

diagrama 2:

(*)

esta planície / cor-de-rosa e ardente até que a atmosfera / se torna carregada

[...] superfícies lisas, superfícies salpicadas, superfícies sombreadas.

e a primeira gota de chuva / silenciosa / cai.

(*) A cor rosa, única, reafirma a textura lisa da superfície.

Nesses diagramas, tanto no discurso do pintor quanto no da poeta, podemos

notar expressões e imagens que se articulam, complementam-se, tais como as de

superfície que se visualiza em “campo arado”, palma, mão aberta, planície. Observa-se

o movimento do pincel no ato de pintar em “Cruzamos um campo arado” e a hesitação

da poeta diante de tantas possibilidades ante o plano pictórico que se estende diante de

si: / esta planície / [...] / repleta de caminhos / que tento percorrer /. Há ainda ideias

que se relacionam pelo uso de mesmo elemento visual, no caso a linha, mas de modo

expressivo diferente: a “(superfície toda desenhada de linhas)” sugere um segmento do

plano cuja área se vê recortada por linhas paralelas e equidistantes, enquanto que em

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/ esta planície / cor-de-rosa e ardente / repleta de caminhos /, a área do plano é sulcada

por linhas de espessura, profundidade, direção e comprimento diversos.

E a pintura prossegue, transita da luminosidade à obscuridade, da leveza rosa

ardente ao peso atmosférico: /até que a atmosfera / se torna carregada /. Mas uma

esperança há: a gota silenciosa que cai foi notada, senão pela reflexão da luz, ao menos

pelo calor que carrega.

1. 1. 3 - O volume

Para pintar bem uma paisagem tenho, em primeiro lugar,

de descobrir as massas geológicas. Paul Cézanne

Pensar em volume é mais que avançar ou retroceder, mais que aproximar ou

afastar, é sair agitando as águas da bidimensionalidade, superando-a. O ponto é fixo; a

linha é escrava da direção; o plano é superfície congelada; o volume é dono do espaço:

Enquanto linha e superfície são elementos que ainda se inserem nas

dimensões do plano pictórico, os elementos restantes, volume, luz e

cor, ultrapassam a estrutura bidimensional. Por esta razão são

considerados elementos mais dinâmicos. O espaço que poderá ser

estruturado com eles ultrapassará sempre, em dimensões, a base do

plano. [...] Podemos definir o seguinte conceito: quando vistas em

conjunto com horizontais e verticais, as diagonais introduzem a

dimensão da profundidade. (OSTROWER, 2004, p. 54).

A obra de Persona transcende o aparente, o palpável, numa concepção visual que

excede o domínio do espaço-tempo. Em resposta à nossa entrevista, Lucinda diz: “E

depois, já na elaboração do poema, vem a necessidade de uma linguagem que favoreça a

projeção dos sentimentos. De uma linguagem que na estrutura fixa do poema recupere

tudo: forma, tamanho, peso, policromia, sons e movimento”2. Nessa busca, revela-se um

vigor construtivo capaz de moldar mesmo o intangível, como vemos no verso: / [...] a

cor inauferível daquela areia /, do poema

SOBRE A MESA BRANCA

entornou duas medidas de arroz

escolheu

revolveu

levou séculos construindo dunas

e desmanchou

Afundou as mãos

na cor inauferível daquela areia

2 Ver entrevista nos anexos.

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depois atravessou um deserto

[...]

(“SOBRE A MESA BRANCA”. Por imenso gosto, 1995, p. 23)

Lucinda vê, modula e, do comum, cria o novo, que é poesia, como diz Oswald

de Andrade: “Aprendi com o meu filho de dez anos que a poesia é a descoberta das

coisas que nunca vi” (ANDRADE, 1990, p. 99). Quanto a essa necessidade de

descobrir, de desvendar aquilo que já estava lá, Cézanne, um dos precursores, senão o

principal da pintura moderna, assim se pronuncia: “Para pintar bem uma paisagem

tenho, em primeiro lugar, de descobrir as massas geológicas” (GASQUET, 1926 apud

BOSI, 1986, p. 40) e em outro lugar: “A natureza é sempre a mesma, embora aquilo que

chega à nossa vista nunca pareça igual. Nossa arte deveria fazer transparecer o

permanente, debaixo de todas as aparências que mudam” (REWALD, 1937 apud

OSTROWER, 2004, p. 115).

Assim, sob as mãos da poeta, o trivial, o corriqueiro, torna-se substância

plástica: / levou séculos construindo dunas / e desmanchou /. A matéria granulada e

seca, sob a pressão das mãos da artista, ganha plasticidade. As dunas são lentamente

moldadas e depois desfeitas, entretanto o árido deserto segue banhado pela leveza da

luz; cobre-se de uma cor sem peso, sem pigmento, cobre-se de cor-luz (PEDROSA,

1982, p. 17): / Afundou as mãos / na cor inauferível daquela areia /. Agora, o comum e

o banal são um brinquedo. A poesia folga, brinca com o natural, deixa o rastro

instantâneo duma arte que se engasta para a posteridade.

Em outro poema, HOMENS, FORMIGAS, notadamente na segunda estrofe, é possível

que se observe “o permanente debaixo das aparências que mudam”, aquilo que toca, que

cabe ao Homem; impressões indeléveis, cinzeladas pelas fundas experiências do ser

cotidiano. Mas, antes de lermos o poema, talvez seja oportuno um esclarecimento: há

nele a referência a outro poeta: / que um poeta argentino1

/. E, em nota de rodapé, ou ao

pé do poema, a autora revela tratar-se de Leonardo Martínez. A metáfora usada pelo

poeta argentino dá o mote e a imagem central do poema, a antropomorfização das

formigas, haja vista que quem se enterra, sepulta, são os homens. O subterrâneo é a

morada natural das formigas, como a superfície o é para eles. Daí absorve a reflexão

fecunda – e até comum – de transferir a idéia de subterrâneo físico das formigas, para a

interioridade espiritual dos homens. Vejamos o poema:

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HOMENS, FORMIGAS

Com patas e mandíbulas

as formigas acumulam terra

na frente de seus ninhos

formando pequenos montes

que um poeta argentino1

chamou de “grandes túmulos”.

As formigas se enterram vivas.

Os homens desses lugares

mais calmos e distantes

(como a cidade da minha infância)

ainda fazem covas simples no chão

para enterrar os mortos

demarcando cada local

com pequeno morro de terra socada.

As sepulturas frescas

ficam lá erguidas

ondulando em cadeias paralelas

formando as mais baixas

montanhas de um continente.

Homens, formigas, grandes comparsas

trabalhando seus mundos subterrâneos

a escuridão de seus destinos.

(“HOMENS, FORMIGAS”. Ser cotidiano, 1998, p. 21)

No terreno inerme, que se deixa escavar, observa-se o registro da crua realidade:

/ As sepulturas frescas / ficam lá erguidas / ondulando em cadeias paralelas /. Essa

tênue imagem ― tão mais desvanecente quanto mais distante no tempo e no espaço: /

(como a cidade da minha infância) / ― que emerge em meio aos sedimentos revolvidos

no leito da memória, configura o aspecto comum, patente e inconfundível de um campo

sagrado onde se sepultam os mortos. A terra mexida, a superfície revolvida pelo

humano, responde suave e pacificamente, ondulando como um lençol ao vento. O

terreno modificado propicia uma melhor resposta à luz, que incide nos pequeno[s]

morro[s]. Daí a percepção do volume pela grafia, pelos fonemas, pelos versos, pelo

signo completo: o poema. Observemos os versos: / ondulando em cadeias paralelas /

formando as mais baixas / montanhas de um continente /. Neles, as nasais seguem

melancolicamente ressoando em cadência, sendo interrompidas aqui e ali por pequenas

cruzes (letras “t”) fincadas a espaços nos pequenos montes, e no continente. São

paralelismos, recurso que permite a expressividade em versos como os do final da

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segunda estrofe, os quais sugerem fileiras de covas, e o intervalo entre eles como as

estreitas ruas entre as sepulturas.

A aliteração reforça a ideia de movimento repetitivo, característico de

superfícies maleáveis submetidas à ação de forças diversas: terra, morro como origem,

suporte e fim humanos. Considerando os aproveitamentos sonoros, o /u/ assonante

mantém potencialmente o sentido de noturnidade, imagem de um aspecto do

significado, a motivação sonora (MARTINS, 2008, P.46) em acumulam, ondulando,

túmulos, escuridão, mundos subterrâneos.

Os vários recursos usados no tecido poético criam tensões, ritmos, volume,

adequando-se bem à sugestão dos variados matizes e texturas na configuração da

imagem pictórica, como um pintor que opta por matérica ou tênue pincelada.

Entre homens e formigas, ressaltam as imagens dos pequenos montes e dos

pequeno[s] morro[s] de terra socada. O plano é trabalhado, a materialidade é conduzida

de modo a permitir que o espaço se estruture além base e altura, que seja explorado

também em profundidade, como se vê em / As sepulturas frescas / ficam lá erguidas /

ondulando em cadeias paralelas /. Transcendendo a bidimensionalidade, elevando-se da

base, traçando elementos da perspectiva, o volume torna mais dinâmico o poema

(OSTROWER, 2004, p. 54).

1. 1. 4 - A luz (...)

É meio-dia, Luís Maurício, hora belíssima entre todas,

pois, unindo e separando os crepúsculos, à sua luz se consumam as bodas

do vivo com o que já viveu ou vai viver, e a seu puríssimo raio

entre repuxos, os chicos e as palomas confraternizam na Plaza de Mayo.

(...)

Drummond3

Dentre os elementos visuais, cremos possível destacar a luz como o mais

importante. A luz torna os elementos sensíveis visualmente. Por sua excelência, na vida,

nas artes plásticas, poderíamos tê-la abordado já de início. Entretanto, não o fizemos.

Queríamos, primeiramente, passar pelo desenho e depois, sim, prosseguir rumo à cor e à

forma acabada. Mas, desde que partimos, a luz não nos tem abandonado, segue

impregnando-nos, dia e noite. Como diz Pedrosa: “em condições normais, o preto

3 Extraído de A Luís Maurício, infante. In: Carlos Drummond de Andrade. Antologia Poética (organizada

pelo autor), 2002, p. 117.

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absoluto não existe na natureza” (1982, p. 118), isto é, a luz integra o meio. No uso

expressivo da luz, ela apropria-se de outros elementos visuais:

[...] Em qualquer dos elementos visuais, [...] volume, cor, superfície, e

até mesmo nas configurações tênues da linha, surge sempre uma

figura espacial de maior ou menor substância. Isso não acontece com a

luz, que parece consistir de pura energia. [...] No caso da luz, esse

elemento não só pode como deve ser, necessariamente, composto por

outros elementos. Como componentes do contraste claro/escuro

podem entrar linhas, superfícies ou volumes, ou ainda tonalidades de

cor [...]. (OSTROWER, 2004, p. 91-92).

Na observação de uma pintura, se desejamos compreender se a luz é ou não seu

principal elemento estrutural, devemos atentar aos contrastes de claro/escuro, conforme

orienta Fayga:

[...] Nas pinturas renascentistas, [...] a maioria das imagens mostra a

claridade difusa da luz do pleno dia; mas o elemento visual que é

elaborado formalmente nesses quadros é o volume. Já no

Impressionismo, os artistas descrevem a luminosidade atmosférica;

mas quando examinamos a estrutura do espaço impressionista, vemos

que o elemento formal elaborado não é a luz e sim a cor. O elemento

luz será identificado nos contrastes de claro/escuro. [...] Através do

contraste claro/escuro, a luz articula uma vibração no espaço [...]

(OSTROWER, 2004, p. 87).

Na pintura neoclássica, Celina Mello ressalta a importância da luz como

elemento ordenador da tela:

Além da visão linear, a transposição neoclássica do mundo visível

para a tela se dá com a iluminação proveniente de uma única fonte de

luz. Essa técnica visava a conferir clareza às formas representadas,

tornando a fonte de luz um segundo elemento ordenador da tela,

juntamente com o ponto de fuga (MELLO, 2004, p. 63).

Dentre os muitos significados de elaborações expressivas formuladas a partir da

antítese claro/escuro, Fayga destaca as que “traduzem oposição de valores, que podem

ser entendidas como conflitos” e ressalta ainda que “essas qualidades opostas estão

sempre e necessariamente reunidas; entendemos por isso uma síntese, uma possível

integração de oposições e conflitos” (OSTROWER, 2004, p. 90).

Como que preparando para a poesia, Ostrower fala-nos, ainda, dos “significados

muito especiais que o fenômeno da luminosidade natural tem para nós” (p. 93). O artista

plástico, quer pela palavra ou por outro meio, consciente ou intuitivamente, explora a

luz em seu processo criador. Ainda que uma obra de arte visual seja elaborada em

“plena” escuridade, é somente sob a luz que ela pode ser apreciada integralmente.

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Através do controle dos efeitos luminosos luz, sombra, cor, artistas podem lograr êxito

na configuração de uma atmosfera apropriada, ideal para a vazão expressiva de sua

sensibilidade, como podemos apreciar no conto O retrato oval, de Poe:

[...] A posição do candelabro me desagradava e, estendendo a mão,

com dificuldade, para não perturbar o sono do criado, coloquei-o de

modo a lançar seus raios de luz em cheio sobre o livro.

Esse gesto, porém, produziu um efeito totalmente inesperado. Os raios

das numerosas velas (pois havia muitas) caíam agora dentro de um

nicho da sala que até então estivera mergulhado na intensa sombra

lançada por uma das colunas da cama. E assim vi, em plena luz, um

retrato até então despercebido. Era o retrato de uma jovem no

alvorecer da feminilidade (POE, 1997, p. 278-282).

“Não é por acaso”, diz Fayga, “que as realizações espirituais e os íntimos valores do ser

– o amor, a verdade, a consciência – são sempre formulados em termos de qualidades de

luz: claro, lúcido, transparente”. É a luz o elemento formal, por excelência, “adequado

para se articularem as sínteses espirituais da humanidade” (OSTROWER, 2004, p. 93).

Atentos que estamos a uma abordagem transdisciplinar, desejamos que esse

fluxo luminoso não apenas tanja o literário como um rótulo frio, mas que seja como

aquela cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa4, um ser-em-si que o inunde de

brilhos e cores.

UMA CHAMA

no início da madrugada

de qualquer dia

nos faz atravessar

a madrugada

como

pássaros

e chegar

Lá é um feliz

campo de brilhos:

o grande sol

(e esta fala acabará noturna?)

(“UMA CHAMA”. Por imenso gosto, 1995, p. 43)

Quanto ao aspecto formal, esses versos parecem fazer fundo ao que seria a

imagem de uma superfície em chamas, com línguas de fogo de tamanho diverso, que se

4 Referência aos versos / Não era mais a imagem de uma cobra de vidro / que fazia uma volta atrás de casa. /,

de Manoel de Barros, em Uma Didática da Invenção, In: "O Livro das Ignorãças" (BARROS, 1993, p.

27).

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configurariam a partir dos vãos deixados pelos versos irregulares. Num desenho

rudimentar, essa leitura seria algo como:

desenho 5

A luz é anima, o sopro que suprime o temor, que impele a atravessar o corredor

da vida / como / pássaros /; tocha acesa a evocar as luzes, os acordes diversos:

palavras, sons, brilhos, cores, sabores, música. Luzes que brilham pela

sugestionabilidade sonora que permeia o poema, numa recorrência de vogais claras,

abertas, por exemplo em madrugada, pássaros, fala, acabará. Efeito que se intensifica

mediante o claro / escuro dos sons no verso final: / (e esta fala acabará noturna?) /. Sob

esse aspecto, o signo “acabará”, dentre todos do poema, é o que mais estampa a face

resplandecente de sua forma de expressão, plena de substância no sentido da luz: /a/ /a/

/a/ /á/, em oposição a sua outra face obscurecida, dada pela forma do conteúdo. No

contexto, “acabará” pende para um caráter disfórico, que desde já vai preparando para

fechar o poema na densa escuridade de “noturna”. E frisamos o adjetivo “densa” porque

o signo “noturna” conjuga elementos de suas formas, de expressão e conteúdo, num

possível sentido que adensa a impressão de enclausuramento, de escuridão e de fim.

A manhã fulgurante e veloz desse poema prenuncia um dia cantante. Entretanto,

como vimos, esse dia luminoso, melódico, que corre do Lá para o sol, acabará por

declinar num melancólico noturno, melodia serena, de caráter meditativo, que sugere a

noite (SADIE, 1994): / (e esta fala acabará noturna?) /. O desfecho nostálgico, a

sujeição do espírito às impressões vespertinas, o pressentimento de tristeza, o tom

reflexivo, enfim, tudo o que se condensa nesse final entre parênteses, e se comprime na

reclusão imposta pela noite, tudo vem valorizar o efeito luz que predomina no poema.

Tecendo-se de claro-escuro, não há referência direta à cor. Os extremos luz/sombra

imprimem o ritmo ao delimitar o percurso do movimento visual, que se rege pela

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variação tonal. Entre os polos luz/sombra, chama/brilho, interpõe-se a madrugada, que

atua no esquema rítmico ao representar os tons intermediários, como uma ponte no

intervalo noite―dia. Essa integração reafirma o efeito luz idealizado desde a instância

composicional, o primeiro dos “três passos do processo criador” (GONÇALVES, 2010,

pp. 27-28). “Para que o elemento [luz] se torne expressivo”, complementa Fayga

Ostrower, “é preciso todo o movimento visual desdobrar-se através de valores claros e

escuros” (2004, p. 88). O processo construtivo é recorrente, como se observa no poema

LEITE.

LEITE

Em leite sobrenadando

Meu mundo acorda todo mundo

Que queira sorver o êxtase do claro.

Sempre gostei de acordar

e, ainda em desalinho,

abrir de par em par meu resto de cansaço

deitar os olhos prolongadamente

no apalermado mar de telhas.

Um bom olhar de horizonte

de tanto valer não vale nada

para o frouxo tecido da memória

[...]

Não deixar nada claro

é próprio das cidades.

Todas elas têm seus matadouros

Vendo o que vejo

aqui da janela

continuo.

(“LEITE”. Leito de acaso, 2004, p. 22)

O título, LEITE, em capitais, reforça a ideia dele como cabeça do poema: aquele

que orienta, que organiza a construção e que vai desde já derramando sua brancura. A

torrente luminosa, como uma enchente, arrasta, inunda e desperta todos os seres que se

deleitam com a luz. Essa alegre influência irradia para todo o poema. Observamos sua

ação, por exemplo, na escolha lexical, como em: gostei, abrir, bom, mar, horizonte,

infinito, mais além e ainda pela estruturação dos versos, que evidencia o efeito

expansivo da luz, como o prolongado / abrir de par em par meu resto de cansaço /.

Note-se que o verso se expande, derrama-se. E esse recurso é reiterado em / deitar os

olhos prolongadamente / no apalermado mar de telhas. /. O uso do infinitivo deitar, por

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si, já exprime a ideia de se estirar, esparramar-se. Assim, a imagem movimenta-se

preguiçosa e lentamente, estende-se no comprido da horizontalidade sugerida pelos

longos vocábulos: prolongadamente e apalermado. A expansão se desenha ainda pela

visão do / [...] mar de telhas /, e pela placidez e largueza de / Um bom olhar de

horizonte /, cuja linearidade e extensão acentuam-se pelo adjetivo bom. Porém, toda

essa amplidão, leveza e transparência, / por terra e tempo consumidos /, vão se turvando

gradativamente. Palavras, versos que negam a luz, expressões que suscitam imagens

opacas, foscas, toscas e apagadas, como que acinzentadas, escuras e sujas, ganham

espaço; entre as quais citamos: consumidos, óbitos, difícil, matadouros, não, “nada

claro”. E o ar falta, a atmosfera torna-se densa, os espaços restringem-se, não há mais

permissão para se / sorver o êxtase do claro /. A sentença é dada: / Não deixar nada

claro / é próprio das cidades. / Todas elas têm seus matadouros. /. Palavras pesadas,

que cutucam a ferida aberta da realidade da vida citadina; uma rajada de lama a turvar, a

poluir a via láctea tão pura e cuidadosamente assentada. Mas há, no final, um fôlego,

um intervalo; há uma janela: / Vendo o que vejo / aqui da janela / continuo. /, e a poesia

respira; o ar puro penetra dando continuidade à vida; a obra ganha em dramaticidade

rítmica, os contrastes desempenham seu papel, confirmam o efeito luz na estruturação

do poema.

1. 1. 5 - A cor

Essa redescoberta do humano no tempo não poderia se fazer

sem um espetáculo cromático de luzes e sombras. Célia Reis

Algumas palavras de Bosi iniciam nossa reflexão sobre a cor, esse fenômeno

natural cuja percepção é imanente ao humano:

Quando se pensa em arte literária, não se pode esquecer que os

componentes da sua forma, os motivos e os temas, não são elementos

sensíveis „puros‟ (como as cores, „que pensam por si mesmas‟, na

palavra de Baudelaire), mas já se acham pejados de significações

(BOSI, 1986, p. 57).

O pensamento do professor permite que se entreveja uma das especificidades da

cor: sua singularidade expressiva, poder mutante tendente à fuga da previsibilidade. O

emprego expressivo da cor em sua inocência inata poderá apresentar resultados

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surpreendentes e mesmo inesperados. A dinâmica desse elemento visual encontra

ressonância nas palavras de Fayga, quando diz não fazer o menor sentido, para o artista

plástico, comentar sobre cores isoladas, como se fossem autônomas, já dotadas de

conteúdo expressivo. Desprovidos de contexto, não se pode afirmar que o vermelho é

excitante, ou que verde acalma. Cada cor terá sua expressividade condicionada à função

que desempenhe (OSTROWER, 2004, p. 115).

Ainda, segundo Fayga, “a cor se caracteriza pela sua inerente carga de

sensualidade”: “há uma excitação dos sentidos, que é própria da cor e que não existe em

nenhum outro elemento visual” (idem, p.103). Essa energia potencial da cor talvez

possa traduzir-se singularmente nas palavras de Célia Reis: “Essa redescoberta do

humano no tempo não poderia se fazer sem um espetáculo cromático de luzes e

sombras” (REIS, 2008, p. 99), afirmativa conforme ao que diz Baudelaire: “Como um

sonho está imerso em uma atmosfera colorida que lhe é peculiar, assim uma concepção,

ao tornar-se composição, tem necessidade de mover-se em um meio colorido que lhe

seja peculiar” (apud BOSI, 1986, p. 37). É por isso que Hegel diz que é a cor e a arte de

colorir que forma o pintor, e ele complementa:

Detemo-nos com prazer, sem dúvida, no desenho, e excepcionalmente

no estudo ou no esboço, como naquilo que de modo preeminente

revela a qualidade do gênio; mas não importa com que riqueza de

invenção e imaginação, com que força direta a alma de um artista

possa afirmar-se em tais estudos devido à concha mais transparente e

móvel de sua forma, o fato é que para pintar precisamos ter cor, se é

que a obra não deve permanecer abstrata do ponto de vista de seu

material sensual na individualidade e articulação vitais de seus objetos

[...] (HEGEL, 1920 apud READ, 1972, p.22).

Como “uma coisa é imaginar cores e outra, completamente diferente, é percebê-

las” (OSTROWER, 2004, p. 103) e conscientes de que não pretendemos esta nossa

“obra” puramente abstrata, incluímos um exercício de visualidade (esquema 1)

objetivando destacar algumas características das cores.

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esquema 1

Nesse esquema é possível observar a dinâmica de cada cor em si mesma, das

cores entre si, e inúmeras correlações destas no espaço, tais como as de profundidade:

proximidade e distanciamento; de temperatura: aquecimento e esfriamento; de

mobilidade: expansão e retração; de materialização: densidade e transparência; entre

outras (idem, p. 111).

A relação de “temperaturas” cromáticas, segundo Fayga, fundamenta-se a partir

das três cores básicas do espectro solar: o vermelho, o amarelo e o azul. Dentre elas, o

vermelho e o amarelo são considerados quentes, enquanto que o azul é considerado cor

fria. “A razão de tal distinção [...] se origina em experiências humanas elementares

imemoriais. Assim, o vermelho e o amarelo são espontaneamente associados a calor,

fogo, sol, enquanto que o azul se associa a céus, gelo e frio” (idem).

Observando a parte superior do quadro seguinte, esquema 2, não é difícil

destacar dois conjuntos: um primeiro, composto de cores quentes, cujas formas, unidas

por segmentos de reta, parecem aproximar-se do espectador. Em contrapartida, o

segundo conjunto, demarcado por um quadrilátero, composto predominantemente de

azuis frios e do verde ligeiramente aquecido pelo componente amarelo, parece

distanciar-se, situando-se mais ao fundo. Seguindo o mesmo raciocínio, também se

observa, na parte inferior deste mesmo esquema, a composição de outros dois

conjuntos. Porém, há uma inversão nas relações de profundidade. O conjunto unido por

segmentos de reta, cujas formas apresentam cores frias, parece estar além do de cores

quentes, agrupado pelos arcos. Notamos ainda que o mesmo verde da parte superior,

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que fora desprezado como cor quente, agora é aproveitado nesta nova relação, pelo

calor que apresenta ante aos azuis bastante frios.

esquema 2

Essas características expressivas da cor, entendemo-las relevantes no processo

poético-pictórico de Lucinda Persona, uma vez serem abundantes na obra da escritora,

tanto em verso como em prosa.

E o argumento se confirma ao observarmos o que diz Célia Reis: “Ela [Lucinda]

emprega formas diversas que mostram os bastidores da sua poesia, o poema se fazendo,

o processo. Uma delas é a cromatização – „persigo brilhos‟ – a expressão da realidade

em imagens matizadas e sinestésicas” (REIS, 2004, p. 31). Tomemos um poema como

exemplo:

FOLHAS PARDAS E VERMELHAS

galhos e ervas secas

são régios motivos

que o chão abriga

para passos lentos

e alguma poesia

Para se evocar o escrito florido:

“toda carne é como erva”

e “roubar o espírito” dizendo:

a carne é rosa branca, amarela,

encarnada

este espinho tão fundo é nada

Não dói.

Mas todo o sangue se vai

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nesse morrer repentino.

(“FOLHAS PARDAS E VERMELHAS”. Por imenso gosto, 1995, p. 67)

No processo construtivo, digamos pictórico, desse poema, há pinceladas desde o

início, como num “quadro em que se explora as possibilidades do pictural, mais do que

do linear” (MELLO, 2004, p. 64). E Celina, em nota, apresenta a seguinte definição de

pictural: “Diz-se do modo de pintar em que a imagem é definida por transições suaves

entre massas de cores e de tonalidades e não por marcados contornos e linha.

(MARCONDES apud MELLO, 2004, p. 77). A poeta tem ante si o espaço em branco e

também os matizes selecionados na paleta. Cores quentes, encarnadas e telúricas estão

entre seus meios expressivos. Nas primeiras pinceladas, / FOLHAS PARDAS E

VERMELHAS / galhos e ervas secas /, temos os tons terra, cores rebaixadas em

crominância, e o vermelho, que se destaca vivo, não somente por sua pureza, como

também pelo contraste com as cores neutras, ou ainda por apresentar-se sem a mistura

de sua complementar (diferentemente do que ocorre com as folhas de cor parda), ou

ainda por uma concepção psíquica ou intelectual. E nesse sentido, último, Pedrosa diz:

sempre que alguém, em qualquer lugar, por qualquer motivo, toma um

pincel para colorir a obra que inicia, seu espírito utiliza consciente ou

inconscientemente o resultado de escolhas e opções milenarmente

preparadas para este instante mágico. Cada cor traz consigo uma longa

história. (PEDROSA, 1982, p. 107).

O dístico que abre o poema apresenta ritmo vertiginoso, esses velozes versos

nominais ganham “sentido” e direção ante a aparição do verbo de ligação, que os

designa como régios motivos, que são abrigados pelo chão. Esse ritmo parece remeter a

uma pintura gestual, “que enfatiza em sua conformação final, o modo particular como

foi aplicado o pigmento” (CHILVERS, 2007, p. 213), ou a uma action painting ― “[...]

estilo de pintura [...] no qual a tinta é gotejada, vertida e/ou atirada sobre a tela” (idem,

p. 5). Ou ainda a uma pintura tachista ― “[que se] caracteriza por pinceladas ou

manchas irregulares de cor (tache em francês significa mancha, borrão)” (idem, p. 515).

As cores vão como que caindo, como manchas coloridas, sobre o plano plástico-

pictórico, compondo o manto real. Folhas, / galhos e ervas secas / depositam-se como

camadas sucessivas de tinta, que vão tingindo esse tecido e dando forma aos régios

motivos. A sublimidade dessa fazenda evoca ainda as cores-símbolo da realeza, como o

dourado e o azul.

O vigoroso ritmo inicial é amainado, como veremos, pela escolha lexical,

sintaxe, ortografia, pontuação. As folhas e galhos que vão caindo encontram resolução

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no plano pictórico, termo do movimento natural do ato de pintar, ou anteparo da ação

expressiva. E nesse caso, o chão é esse espaço de resolução. A estagnação desses

elementos naturais, ainda que temporária, aponta para um estado de inércia. No verso

/ que o chão abriga /, os termos chão e abriga auxiliam na organização da

dramaticidade rítmica ao indicar o espaço e o estado que naturalmente todo o corpo em

movimento “deseja”, o repouso. Como se observa, conteúdos semânticos e sintáticos

sugerem pausa, seja pela concretude do nome “chão”, pelo recolhimento implícito na

flexão verbal “abriga”, seja pelo uso da subordinação. O conteúdo semântico do verso

/ para passos lentos / também funciona como redutor da velocidade. Essa ideia é

reforçada pela inicial maiúscula “P” no verso / Para se evocar o escrito florido: /,

assinalando mais que um novo segmento, um novo andamento do poema. Toda sorte de

imagens que rapidamente foram absorvidas pela contemplação conduzem agora a outro

estado de espírito, mais melancólico e reflexivo. E os dois-pontos no final do verso

também conferem certa expectação.

Depois de passarmos pelos versos / para passos lentos / e alguma poesia /,

pequeno intervalo sem referência cromática direta, seguindo através do suporte

composicional, deparamo-nos com um borrifo de cores, /[...] o escrito florido: / e, mais

além, o par complementar vermelho―verde, sugerido em / “toda carne é como erva” /.

O poder de fusão dessas complementares (OSTROWER, 2004, p. 116) parece auxiliar na

unidade do verso.

Dentre os labores construtivos, destacamos a ambiguidade. Nos versos / a carne

é rosa branca, amarela / encarnada /, é a ambiguidade, sobretudo, que lhes confere

maior beleza, que potencializa a carga emocional da metáfora, possibilitando, entre

tantas leituras, uma que atenua o impacto da expressão “roubar o espírito”. Na verdade,

não há “roubo do espírito”, senão um eufemismo, um novo manto poético, que reitera o

dito profético. Pois “Roubar o espírito”, subtrair a seiva da vida, confirma a efemeridade

da erva e da rosa. Outros recursos estilísticos empregados aproximam novo e sagrado,

metáfora e comparação. Há como que um paralelismo semântico nos versos. Vejamos:

[...]

“toda carne é como erva”

[...]

a carne é rosa branca, amarela,

encarnada

[...]

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Essa expressão, “toda carne”, extraída das Escrituras, pode remeter ao Homem, aos

homens, aos povos. Tal possibilidade de leitura parece encontrar ressonância em / a

carne é rosa branca, amarela, / encarnada /. Nesses versos que se aproximam pela

repetição do termo “carne”, há uma pluralidade cromática, que parece indicar a

diversidade de etnias, o homem branco, o amarelo etc. E essa multiplicidade reflete o

plural implícito em “toda carne”. A aproximação também ocorre sintaticamente, há um

“quase-paralelismo” sintático: comparação/metáfora. No verso / “toda carne é como

erva” /, a mensagem é atenuada pela comparação, enquanto que em / a carne é rosa

branca, amarela, / encarnada /, essa mesma mensagem, aparentemente eufemizada pela

poesia, encontra maior rigor pela metáfora. O sagrado se reescreve, recobre-se de novos

matizes.

Num dos percursos possíveis do poema, a meio-caminho à densidade maior da

cor, isolado, o verso / encarnada / ganha brilho. A meio-caminho porque, depois de

passarmos pelas cores neutras, e pela dessaturação completa do vermelho, que se dá

pela transição do rosa ao branco, retomamos uma cor quente, o amarelo, e prosseguindo

com a saturação chegamos ao encarnad[o] ou vermelho, “também chamado [...] rubro”

(PEDROSA, 1982, p.109); e desse vermelho ao denso carmim, que “é um vermelho

tirante ao violeta” (idem, p.108), e chegamos ao sangue, como se lê: / Mas todo o

sangue se vai / e assim, como a natureza, o poema é cíclico. A carne é branca, a carne é

flor, a carne é toda cor.

No exemplo que segue, esperamos complementar o que já temos demonstrado,

quando não, ao menos confirmá-lo.

SOBRE A MESA BRANCA

entornou duas medidas de arroz

[...]

levou séculos construindo dunas

e desmanchou

Afundou as mãos

na cor inauferível daquela areia

depois atravessou um deserto

[...]

Lavou cuidadosamente o que estava limpo

combinando com paz e luz de esmalte

Levou ao fogo as sementes mortas

A panela de alumínio chispeava

o aroma do alho foi além dos muros

Então

sorriu amarelo para a falta de mistérios

para o pouco significado da experiência

Somou

sonhou e sonhou

enquanto cozinhava

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as (des) vantagens de ser comum.

(“SOBRE A MESA BRANCA”. Por imenso gosto, 1995, p. 23)

O título do poema atua como exposição do plano plástico-pictórico a ser

explorado: “SOBRE A MESA BRANCA”. E é sobre essa mesa que se inicia a luta

com as palavras. O branco, virgem, a um tempo instiga e atemoriza. Tanto o poeta

quanto o pintor necessitam de vigor e coragem para enfrentar o embate com as cores

ante o vazio. A composição principia-se com cenários monocromáticos ou praticamente

destituídos de cor: o arroz branco sobre a mesa branca5; dunas de areia de cor

inauferível; um deserto. Notamos que a luta com as cores prossegue, vejamos:

Lavou cuidadosamente o que estava limpo

combinando com paz e luz de esmalte

O dístico parece expressar a busca do matiz mais puro. O ato de / lav[ar]

cuidadosamente o que estava limpo / pode sugerir o esforço em alcançar a cor sem

mistura, empenho que se reitera no verso / combinando com paz e luz de esmalte /. Na

tarefa diária, o que passa ou vaza pelas mãos, não escapa ao “ser sensível”: a água limpa

que segue limpa redobra a luz, multiplica até mesmo os pequenos detalhes: das mãos,

do ambiente e, por que não dizer, da própria alma da poeta.

Inicialmente, há no poema o predomínio do efeito expressivo da luz; a cor como

que se desmaterializa pela aproximação dos extremos na escala tonal de claros-escuros

(OSTROWER, 2004, p. 106). Caracterizada pela escolha lexical, a cor segue indefinida,

sendo apenas sugerida. O brilho, entretanto, que é luz refletida, é valorizado. O branco

inicial tinge-se, as cores vão surgindo com todo seu poder sensual:

Levou ao fogo as sementes mortas

A panela de alumínio chispeava

Notamos a vibração veemente que há nessas imagens. O fogo, quente e vivo,

com sua madeixa de cores, flameja ante as opacas e apáticas sementes mortas, apagadas

em brilho e mobilidade. E / A panela de alumínio chispeava /: inclui-se aqui o

alumínio6, cor metálica fria que, ao fogo, fulgura chispas, lampejos coloridos. Depois

5 O branco sobre o branco lembra a célebre pintura, Quadrado branco, sobre fundo branco, de Casimir

Malevitch (PEDROSA, 1982, p. 118). 6 “panela de alumínio”: por extensão, a ambiguidade denotaria a cor alumínio. Dedução possível, como se

depreende em outro verso da autora: “em nuvens de abóbora” (“POR IMENSO GOSTO”, In: Por imenso

gosto, 1995, p.21) (grifo nosso).

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dessa explosão luminosa, a vivacidade é atenuada, e a obra ganha em ritmo, em

dramaticidade:

Então

sorriu amarelo para a falta de mistérios

para o pouco significado da experiência

Somou

sonhou e sonhou

O advérbio de tempo, / Então /, que compõe verso inteiro e isolado, puxa as

rédeas do poema, conferindo-lhe novo andamento. Entre as notas mais intensas desta

melodia, marcadas pelas chispas fulgurantes, há um intervalo. O amarelo ganha espaço,

insinua-se como transição. Observa-se uma alternância cromática entre cores frias e

quentes, como uma vibração, um ir e vir. O amarelo, cor luminosa de baixa densidade,

semanticamente apropriada para simbolizar / [...] a falta de mistérios / e / [...] o pouco

significado da experiência /, contrasta com o colorido, com a iridescência “peculiar dos

sonhos”, implícitos no verso / sonhou e sonhou /.

E / não [nos] furt[emos] ao sonho diário7 / ─ “que as cores não se resumam à

pintura e nem a vida se reduza à figura” (FIGUEIREDO, 1990, p. 79) ─, sonhemos

também, juntamente com / Ela /, o sonho condensado, como o expresso pelas palavras

de Aline Figueiredo.

1. 6 – A forma

Quanto mais se perde a consciência das faces do signo,

mais se vislumbra a inconsistência das coisas e dos seres. Aguinaldo Gonçalves

Procuramos fundamentar esse nosso estudo da forma a partir da visão de

teóricos que congregam ampla visão do signo, necessária à compreensão de uma

linguagem não estanque, como a da arte em sua excelência.

Assim, incluímos afirmações de Hjelmslev, que diz ser fundamental o

reconhecimento das duas faces do signo ─ expressão e conteúdo ─ responsáveis pela

estrutura da linguagem, pelo modo como se manifesta. Num primeiro momento de uma

análise, o teórico sugere a divisão do texto em apenas duas partes: o plano da expressão

e o plano do conteúdo (2009, p. 55-63).

7 Referência ao poema Em hora Crepuscular (In: Por imenso gosto, 1995, p. 41).

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Nessa perspectiva, em seu ensaio denominado As três instâncias de leitura do

quadro A Negra de Tarsila do Amaral, Gonçalves expõe o método que utilizou para

analisar a referida obra. Em síntese, consistiria na percepção e compreensão de três

instâncias sígnicas: “o signo ligado ao referente”, o “signo elevado à condição de

símbolo” e o signo como “signo complexo da arte [...] capaz de ir além do reflexo de

referentes preconcebidos ou de arquétipos estereotipados” (GONÇALVES, 2010, p.

83).

Notamos que o processo de apreensão e compreensão da forma suscita uma

leitura múltipla, coerente, cujos elementos podem até se distanciar do vértice, sem,

contudo, perder o vínculo com o essencial. Vejamos o que diz Fayga:

As formas de percepção não são gratuitas nem os relacionamentos se

estabelecem ao acaso [...] sentimos perfeitamente que há um nexo. [E]

que de certo modo somos nós o ponto focal de referência, pois ao

relacionarmos os fenômenos nós os ligamos entre si e os vinculamos a

nós mesmos [...] nós os orientamos de acordo com expectativas,

desejos, medos, e sobretudo de acordo com uma atitude do nosso ser

mais íntimo, uma ordenação interior (OSTROWER, 1987, p. 9).

No nosso entender, essa pluralidade coerente manifestada por Fayga dialoga

com o pensamento de Gonçalves. Ambos evidenciam o interessante fenômeno que

integra ato criador e obra. No ato criador, os elementos são atraídos por uma força

centrípeta (ordenação interior) que os vincula e, na obra, são contidos por essa mesma

força. Por isso o crítico diz da obra de arte: “um objeto harmônico e incômodo”:

Pluralidade aqui não possui o sentido de diversidade multifacetada, ao

contrário, traz em si a consciência de síntese, de coerência, de direção

centrípeta das imagens e das relações que fazem da obra [A Negra, no

caso] um objeto harmônico e incômodo, pelo movimento dos sentidos

que suas figuras instauram (GONÇALVES, 2010, p. 80).

Sob esse ponto de vista, Gonçalves comenta ainda que “em cada gesto mental,

podemos encontrar a forma, o caminho que constrói o que conforma meu modo de ver

ou entender uma espécie de pensamento puro, como diria Valéry, ou de modulação, a

propósito da formulação de Mallarmé” (GONÇALVES, 2010, p. 24). Esse pensamento

outra vez se entrelaça ao de Fayga, quando ela diz de um estado de tensão do ato criador

da forma, fundamental no processo em que a “tensão psíquica” é objetivada em uma

“forma física” e, por isso, capaz de nos afetar “em termos de intensidade, emocional e

intelectual, [sem a qual] não haveria como se saber algo sobre o significado da ação,

sobre o conteúdo expressivo da forma ou ainda sobre a existência de eventuais

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valorações” (OSTROWER, 1987, p. 28). É por isso que, ante uma obra de arte, ante

“um universo de categorias plásticas integradas e indivisíveis que provocam uma

dinâmica produtora de relações de sentido” (GONÇALVES, 2010, p. 20), o observador

atento pode, por exemplo, sintetizar uma instância como disfórica, ainda que os

conteúdos, numa primeira impressão, apontem para um efeito eufórico. Vejamos agora

o poema:

OVOS À VISTA

Não há paz nos meus olhos

De novo, meu alvo:

ovos à vista

(e mãos à obra)

Sim, são ovos os que ali estão

na obviedade de sua forma

na avidez de sua elipse

o que se vê por fora

e não é muito

Há uma dúzia deles

sempre do mesmo modo

gêmeos

já mortos em cada caso

(deixo isso às claras)

Ovos

passo horas

enfrentando

o caos

Um é o outro

um é o outro

um é o outro

Não há nada

de diferente

no que vejo?

(“OVOS À VISTA”. Tempo comum, 2009, p. 56)

Intuitiva ou inconscientemente pode ter ocorrido que, antes da leitura desse

poema, tenhamo-lo submetido a alguns questionamentos primários: se o poema se

estrutura em estrofes; se os versos são regulares ou se há algum aspecto figural na

conformação do texto; se aparece inteiro na página ou estende-se para além dela. Há

uma necessidade de se tomar pé de uma apreensão inicial dos aspectos formais da obra,

seu tamanho, sua estrutura corpórea; até para se saber se o momento é propício para

uma primeira leitura; se o tempo disponível será suficiente ao menos para se ter uma

primeira impressão do todo. Quando adquirimos um livro, geralmente observamos os

aspectos de sua configuração, dimensões, peso, a arte da capa, o tipo de papel do miolo,

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o tipo de letra etc.; leituras que se somarão à impressão da obra como um todo. Esse

contato com a obra de arte, a percepção dessas realidades, se feitos em primeira mão,

podem atuar como um pré-aquecimento, como um abrir de janelas para a ciranda da

poesia.

Assim, para a análise do poema Ovos à vista, procuramos ter em mente o

fenômeno da linguagem como uma necessidade de se (re)conhecer as instâncias do

processo criador e da recriação da obra de arte pela apreensão, tais como o momento da

comunicação referencial do signo, ligado às coisas do mundo; as possíveis leituras

simbólicas; como se dá o processo ou o seu reconhecimento; como ou por que

determinada obra de arte alcança grau elevado de poeticidade, ou

de modulação. Procuramos demonstrar, ainda, como a figuratividade do texto associada

a elementos como os “aspectos fônicos do trabalho literário; os problemas de

significado no interior da trama poética e integração de som e sentido num todo

inseparável” (JAKOBSON, 1983, p. 485) contribuem para a síntese do poema como um

“signo complexo”8.

Deparamo-nos com as potencialidades significativas da palavra Ovos. Paul

Henle diz que a palavra é “um signo imediato de seu sentido literal, e um signo mediato

de seu sentido figurativo” (apud RICOEUR, 2005, p. 289). E, lembrando Hjelmslev, “o

signo é uma grandeza de duas faces, uma cabeça de Janus com perspectiva dos dois

lados, com efeito nas duas direções: „para o exterior‟, na direção da substância da

expressão, „para o interior‟, na direção da substância do conteúdo” (2009, p. 62).

Ao olharmos para o poema à luz desses conceitos, algumas imagens e seus

significados começam a tomar corpo em nosso espírito. Desse modo, ante a palavra

Ovos, sofremos a força imediata do signo tentando ligar-nos a um contexto ainda em

suspensão. Em tempo, as “modalidades de enfoque”, as “ordenações de campo” e “de

grupo”, discutidas por Fayga (OSTROWER, 1987, p. 79-90), afetam nossa mente:

pensamos em {ovo comida fome}; pensamos em {ovo semente fruto}. Dessas primeiras

configurações mentais, outras ordenações, outras relações de sentido se fazem presente.

Adiantando um pouco, veremos que, vencido o engodo do índice referencial, a função

metalingüística revelar-se-á como dominante na estrutura do poema.

A pluralidade de sentidos suscitada pelo poema parece originar-se da metáfora

do rompimento da fina casca do ovo, figura enfaticamente expressa pela conformação

visual do texto.

8 A expressão “signo complexo” é utilizada tanto por A. J. Greimas - Semiótica francesa (1972) quanto

por Iuri Lotman - Semiótica russa (1978).

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O aspecto, digamos, externo do texto já apresenta dois segmentos distintos.

Observa-se um deslocamento horizontal de boa parte da base da estrofe, que desliza em

bloco para a direita, sem, contudo, desmembrar-se em outra estrofe. Esse novo

segmento recebe como que uma credencial, um sub-título / Ovos /, que o vincula ao

bloco maior, ao bloco superior. Há uma agudeza, um apuro na construção. Note-se

como os versos irregulares do segmento superior desenham como que fractais de uma

casca de ovo quebrada, contrastando com o inferior, mais liso, estreito e fluido,

modulado numa linearidade vertical. A figura representa como que um gesto comum da

culinária: o ovo que, tendo sido cuidadosamente quebrado numa das extremidades, é

levantado e lentamente inclinado para que somente a clara escoe, retendo a gema no

invólucro quase intacto.

Somente uma força interior, uma tensão angulosa bicando esse simulacro ovóide

pode romper e afastar as crostas para o derramamento da poesia. Penso em / (deixo isso

às claras) /, o verso dentro dos parênteses, forçando a abertura dessa concha bivalve

para que a poesia flua numa nova direção e sentido, numa “trajetória [vertical] rumo à

interiorização” (GONÇALVES, 1994, p. 243), fazendo com que o poema desprenda-se

da página e constitua-se presença palpável.

Em se tratando desse signo singular, ovos, de significações plurais em expressão

e conteúdo, não há como se evitar uma rápida passagem pelo simbólico. Sendo o ovo

“um símbolo universal [que se] explica por si mesmo” (CHEVALIER, 1993, p. 672),

apenas destacaremos algumas relações que acreditamos relevantes para a compreensão

do poema. Por exemplo, a fragilidade do ovo, que o torna objeto de cuidados; sua forma

inteira e justa; seu pendor ao repouso, revelador do plano inclinado9, que bem o soube

Clarice Lispector; e o ovo como emblema de renovação e de manifestação. Sabe-se que

essas associações são bastante fecundas e estão assimiladas em diversas culturas, de

modo que não há como negar seus reflexos na produção artística e, naturalmente, em

nossa análise.

Dissemos anteriormente de um enfoque metalingüístico, e agora desejamos

comentar sobre essa abordagem expressiva. O texto de Lucinda Persona se estrutura

como uma manifestação poética do ato criador. Além da elaboração formal do poema,

há outros índices que apontam para essa dedução. Numa releitura, encontramos no título

a indutora temática Ovos, que, em primeira instância, atua como um apelo à

9 Expressão usada por Clarice Lispector no conto O ovo e a galinha: "O ovo desnuda a

cozinha. Faz da mesa um plano inclinado" (In: Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Francisco Alves,

1994. p. 57).

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referencialidade, contexto essencial para a trama poética proposta. Prosseguindo, vemos

o primeiro verso: / Não há paz nos meus olhos /: eis o que move o artista, essa

necessidade de modular “tensões psíquicas” (OSTROWER, 1987, p. 27) em ordenações

objetivas, no caso, o poema, objeto de um anseio, como se observa em: / De novo, meu

alvo: /. Há uma necessidade quase obsessiva que se conjuga à convocação para o

poético: / Não há paz nos meus olhos /. Como instrumento sensível integrado à poesia, o

artista só descansa quando da resolução da obra de arte. Não obstante o compromisso,

notamos uma disposição para o fazer poético, que se concentra em: / (e mãos à obra) /.

E já supomos que essa obra não consiste em fritar ovos ou bater claras em neve. Mais

adiante, há versos que homologam a previsão: / (deixo isso às claras) / e também: /

passo horas / enfrentando / o caos /. Descartamos, então o eventual pensamento de

horas em trabalho culinário, exceto se estamos lembrados da expressão “culinária

poética”, muito bem utilizada por Marta Cocco10

. Entendemos ainda que esse embate

contra o caos se justifica pelos princípios de lingüistas como Ferdinand Saussure e

Louis Hjelmslev, quando reportam à “substância do conteúdo”, a matéria amorfa do

pensamento. Essas / [...] horas / enfrentando / o caos / é o tempo despendido no labor

mental para ordenação da massa informe do pensamento em materializações coerentes,

tanto em formas de conteúdo como em formas de expressão, das quais se constitui a

linguagem (HJELMSLEV, 2009, p. 62). De modo que pela forma a poeta alcança a

resolução de seu questionamento: / Não há nada / de diferente / no que vejo? /. Pela

forma o artista pode lograr escape do aspecto biunívoco do signo e caracterizar sua obra

como diferente, como um “signo complexo”.

Há um ideal mimético de descomplicação da forma manifestado nos versos / o

que se vê por fora / e não é muito /. Esse pensamento se confirma pelo garimpo lexical

inverso: as palavras valorizadas são as de uso cotidiano, palavras comuns, de fácil

locução e, em maioria, mono ou dissilábicas. Umas poucas palavras mais complexas

foram incluídas pela sua evidente expressividade, tanto em conteúdo quanto em

expressão: obviedade, avidez, elipse.

No todo do poema, destaca-se a similitude formal e única entre estes dois versos:

/ (e mãos à obra) / e / (deixo isso às claras) /. Os valores sígnicos desses parênteses são

fundamentais para a percepção do movimento dos elementos constituintes da imagem,

10

Culinária poética em Lucinda Persona: um banquete de imagens (COCCO, 2005). A partir do espaço

doméstico, a cozinha, os alimentos; e considerando “alguns pressupostos da crítica temática e o conceito

de imagem (BOSI, 2009, p. 9)” a autora estabelece relações de modo a compor os pratos: salada de

couve, salada de alface, salada de tomate, cebola frita, arroz e uma sopa de ervilhas (2005, p. 141).

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que se orientam a partir de forças externas e internas. No verso / (e mãos à obra) /,

conquanto forças internas atuem, enxergamos as mãos em concha como uma metáfora,

uma tensão no sentido de compressão, que presentifica ou materizaliza a força externa

demandada pelos atos de compor, realizar e modular (GONÇALVES, 2010, p. 27-28).

E no verso / (deixo isso às claras) /, como vimos anteriormente, o recurso promove um

efeito inverso: a tensão da expressão é valorizada por um movimento de expansão, de

abertura.

Ainda outros elementos, sobretudo os aspectos fônicos e gráficos (grafemas),

como as letras “o” e “v”, por exemplo. A palavra ovos é uma feliz escolha; é uma

palavra dotada de eixos; nasceu adaptada para girar, para rolar autônoma, leve e solta;

plena de mistérios sibilantes. A percepção e uso desses aspectos da forma corroboram

para a inteireza da obra. Nesse sentido, notamos a presença de um componente que,

segundo Jakobson, é obrigatório na poética da atualidade: “uma integridade de

entonação” (1983, p. 486). Pois notamos, na oralidade do verso, uma entonação

possível, que acentua determinadas sons. Como exemplo, assinalamos os sons mais

fortes nesses primeiros versos do poema:

Não há paz nos meus olhos

De novo, meu alvo:

ovos à vista

(e mãos à obra)

Ao estender esse critério para o poema todo, podemos sentir a vibração das

vogais claras e graves como uma metáfora do claro/escuro ou do brilhante/opaco, como

que texturizando as superfícies. Cada novo recurso de estilo ajustado no seu devido

lugar e função vem validar os demais, concorrendo para que a forma ludibrie o plano e

plasme na luz toda sua plenitude, para que ocupe o espaço em tridimensão, com todo

seu volume, como um ovo mesmo ovo: um ovo-poema.

1. 7 – A SINGULARIZAÇÃO

A consciência de fabricação da realidade pela linguagem

parece agir pelo avesso. Aguinaldo Gonçalves

Na expressão artística, entendemos singularização como recurso que vem

valorizar a forma e não anulá-la. Talvez se possa dizer que a singularização é um tipo

de estilização da forma ou, em outras palavras, um jeito de se alcançar certa

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especificidade da forma, atribuindo-lhe caracteres inusitados. Nesse sentido, Gonçalves

diz que “às vezes o processo de singularização tão próprio do trabalho artístico ocorre

como se fosse um soco, físico ou mental, e parece que o real se oferece de modo a doer

os olhos” (2010, p. 141). Entendemos, então, que o expressionismo, por exemplo, se

manifesta em procedimentos singulares do fazer artístico. Chilvers comenta que o termo

expressionismo “consiste num abandono com as tradições de naturalismo e numa

consequente valorização de aspectos como “distorções ou exageros de forma e cor que

expressam, de modo premente, a emoção do artista” [...] (2007, p. 183).

Em relação à singularização e ao consequente estranhamento, Bertoloto analisa

uma obra de Aleixo Cortez11

, aplicada em espaço público, e faz o seguinte comentário:

“na pintura, o artista aproveitou a saliência e a volumetria quadriculada da parede

(suporte), o que provoca uma distorção na ideia da projeção almejada” (BERTOLOTO,

2006, p. 107). Esse suporte irregular utilizado pelo artista, “as linhas horizontais e

verticais [pre]existentes na parede criam um atrito e um estranhamento ao olhar

perceptivo” (idem, p. 107).

Esperamos que a partir da análise do poema Ao redor do coração a questão

proposta tome mais corpo.

AO REDOR DO CORAÇÃO

Sete horas da manhã.

Meio raquítico

enferrujado

o sol veio ao mundo.

A vida mal alcançou nossas juntas.

Estamos à mesa

sentados frente a frente

cara a cara

tanto faz.

Um pouco dobrados

à canga cósmica

máscara triste

sim

mas estamos aqui

entre nossas conchas cartilaginosas

atrás de nossos narizes

debaixo dos cabelos

ao redor do coração.

11

Benedito Aleixo Cortez, pintor mato-grossense natural de Poconé, “vive em Cuiabá e desde criança

frequenta o ateliê do Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT, recebendo orientação do artista

primitivista Nilson Pimenta” (BERTOLOTO, 2006, p. 151).

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Nossa pele ― como está séria!

Porém, dentro de nós,

rica em cálcio

e banhada em gordurosa luz,

a caveira sorri.

(“AO REDOR DO CORAÇÃO”. Ser cotidiano, 1998, p. 12)

O início do poema, dado pelo título, conjuga elementos que parecem remeter a

um estado de bom ânimo, de bem-estar, pela idéia de aconchego e de abrigo que a

expressão “Ao redor do coração” transmite. E o primeiro verso, / Sete horas da manhã /,

inaugurando o dia, abre uma perspectiva de pensar a obra sob um tom eufórico,

entretanto esse pensamento logo se desvanece. A partir do segundo verso começamos a

encontrar marcas de um tom disfórico. Palavras e expressões como “raquítico”,

“enferrujado”, “tanto faz” e ainda versos como / Um pouco dobrados / à canga cósmica

/ máscara triste /, entre outros, prenunciam desfecho sombrio. E não demora notarmos o

jogo “eufórico vs disfórico” como estruturante, o qual justifica e emprega sentido à

compleição do poema.

Essas contraposições parecem atuar como acareamentos. Notem-se as

expressões: “frente a frente” e “cara a cara”; como nelas esse raciocínio fica evidente.

E também em “tanto faz” podemos ler essas duas palavras com um sentido de “um prá

lá, outro prá cá”. Dentre outros pares opostos possíveis, destacamos estes: “vida vs

caveira”; “enferrujado vs gordurosa”; “sim vs porém”; “/ máscara triste / vs / a caveira

sorri /”.

Mas como se esperava, não só de oposições está firmada a obra. Notamos uma

singular congruência espaço-temporal na disposição dos elementos dentro da moldura.

Como materialidade manipulável, cada elemento é forçado a se ajustar, a se conformar

em seu micro-espaço no quadro que se constrói. Veja-se, por exemplo, o peso que

enverga os que estão à mesa: / Um pouco dobrados / à canga cósmica /. E essa força

que subjuga os elementos só pode ser representada e compreendida pelo uso de uma

linguagem coerente. E realmente observamos uma coerência na instalação dos objetos,

desde a definição do ponto preciso na linha do tempo: / Sete horas da manhã / ─ marco

fundamental na preparação do ambiente que se cobre de ferrugem, matiz e estado

indicativos do tom apático das “coisas” no poema ─ até os talhes, as sobreposições e /

ou desrealizações que impõem relevo à obra. Nesse sentido, destacamos o uso de

advérbios, conjunções e expressões que desvelam camadas, exploram profundidade e

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expõem a plasticidade e composição dos seres, por exemplo: “entre”, “atrás”,

“debaixo”, “ao redor” e “dentro”. A idéia de interior ou mesmo de transparência ainda

se manifesta naquilo que não está visível, como em / [...] nossas juntas /, / entre nossas

conchas [...] / a caveira [...] / etc.

Embora aparentemente fixado o instante de um presente imaginário: / Estamos

[...] / sentados [...] / [...] dobrados /, sentimos o tempo correr, mas esse parece fluir do

lado de fora do quadro. Lá dentro, entretanto, o instante fatídico revela-se à semelhança

de peças de estatuária. Conquanto persista, o tempo parece consistir em ações externas,

seja no tempo despendido na produção da obra, seja no necessário à percepção dos

elementos e consequente construção de sentidos. Exceto se pensamos num observador

intruso, que rompe a parede invisível da “perspectiva linear clássica” (USPÊNSKI,

1979, p. 170-196) e põe-se a avaliar o conjunto a partir de pontos de vista diversos. Pelo

menos é essa a nossa impressão até que chegamos ao último verso: / a caveira sorri /.

Aqui se observa um salto temporal, também visualizado pelo deslocamento dos três

últimos versos, que lembra a aceleração temporal característica de desfecho em muitas

narrativas. Esse avanço repentino no tempo calcifica o que estático se apresentava,

pulveriza todo revestimento orgânico desvelando o branco / [...] em gordurosa luz /,

pois lemos / ao redor do coração / e não muito longe / a caveira sorri /. Desse processo

construtivo, talvez possamos dizer que alcança a magnitude de que trata Gonçalves em

seu ensaio Marcas do Expressionismo na literatura brasileira:

[... o] caráter singular que os elementos adquirem no interior do verso

[... a] estranha maneira de se valer dos elementos, [...] exacerbando em

seus procedimentos uma certa sensorialidade que fica entre a

materialidade das imagens e ao mesmo tempo um universo semântico

de caráter pessimista no que diz respeito à concepção do homem e do

seu destino (GONÇALVES, 2010, pp. 120-121).

Na reprodução mental dos sons, dos aspectos fônicos, pudemos notar efeitos que

enriqueceram os propósitos poéticos. Assim, dentre os recursos sonoros utilizados,

observamos a recorrência do som / k /, sensivelmente relevante na obra, assim como a

intencional cacofonia em: / rica em cálcio /, / à canga cósmica /. Vejamos esses sons

assinalados no poema:

AO REDOR DO kORAÇÃO

Sete horas da manhã.

Meio rakítiko

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enferrujado

o sol veio ao mundo.

A vida mal alkançou nossas juntas.

Estamos à mesa

sentados frente a frente

kara a kara

tanto faz.

Um pouko dobrados

à kanga kósmika

máskara triste

sim

mas estamos aki

entre nossas konchas kartilaginosas

atrás de nossos narizes

debaixo dos kabelos

ao redor do koração.

Nossa pele ― komo está séria!

Porém, dentro de nós,

rika em kálcio

e banhada em gordurosa luz,

a kaveira sorri.

Esses sons, modulados do irônico ao tétrico, lembram carrascos representados

em áreas periféricas de algumas pinturas (USPÊNSKI, 1979, p. 191-198) ou vilões de

histórias fabulosas. Podemos como que ouvir pelo cenário, entre as figuras, um ruidoso

kkkkkkkk!, gargalhada sinistra, escárnio da morte ante a impotência e precariedade

humanas. Debaixo da aparência, transitória, cristaliza-se igualmente uma aparente

perenidade, daí o riso sarcástico do carrasco, do eterno ente, da morte.

1. 8 – A composição

Uma expressão de um sentimento interno vagarosamente formada,

experimentada e trabalhada, de ponta a ponta,

repetida e quase pedantescamente. Kandinsky

A composição, segundo Celina Mello, “exige o respeito às leis da proporção,

representa o trabalho intelectual presente na obra e reflete sua concepção, considerada,

então, superior a sua execução” (2004, p. 35). Nessa linha de raciocínio, Matisse

argumenta o seguinte:

A expressão [...] está na disposição inteira do meu quadro – o lugar

ocupado pelas figuras, o espaço vazio ao seu redor, as proporções –

tudo desempenha seu papel. A composição é a arte de dispor de

maneira decorativa os vários elementos que o pintor usa para

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expressar sentimentos. [...] Uma obra de arte implica em uma

harmonia de todas as coisas em conjunto (une harmonie d’ensemble):

todo pormenor supérfluo ocupará, na mente do espectador, o lugar de

algum outro pormenor que é essencial (apud READ, 1972, p. 49).

No sentido dessa busca por uma expressão harmônica, em que forma e conteúdo

estejam conjugados na unidade objetiva da obra, é que incluímos um belo texto de De

Sanctis, citado por Read, uma passagem de obra crítica publicada em 1870, em História

da Literatura Italiana. O texto é rico em poesia, mágico em movimento e aborda

contundentemente o momento criativo, aquele período da luta conceptiva, intelectual e

sensitiva do “escritor criador”, em meio ao fluido nutritivo da realidade, razão pelo qual

desejamos apreciá-lo no todo, ainda que a citação resulte longa:

A época inicial da inspiração de um poeta – aquela época tentativa que

é tão altamente dramática – está oculta para a crítica. É a época de luta

silenciosa do poeta consigo próprio, de contornos vagos, do ir e vir em

sua mente; é a história íntima do poeta. Quando um assunto entra no

cérebro de um escritor criador, de pronto dissolve aquela parte da

realidade que o sugeriu. As imagens terrenas parecem flutuar, como

objetos em uma massa de vapor vista de cima. As figuras – as árvores,

as torres, as casas – desintegram-se, tornam-se fragmentárias. Para

criar realidade, um poeta deve antes ter força para matá-la. Mas

instantaneamente os fragmentos unem-se outra vez, apaixonados um

pelo outro, procurando um ao outro, reunindo-se com desejo, com o

pressentimento obscuro da nova vida à qual estão destinados. E o

primeiro momento real de criação nesse mundo tumultuoso e

fragmentário é o momento em que tais fragmentos encontram um

ponto, um centro ao redor do qual possam comprimir-se. É então que

a criação do poeta sai do ilimitado, que a torna flutuante, e assume

uma forma definida, é então que nasce. Nasce e vive, ou melhor,

desenvolve-se gradualmente, em conformidade com sua essência

(apud READ, 1972, p. 50).

Essa “dramática e oculta luta” talvez se traduza, conforme o pensamento de

Kandinsky, como aquela densa expressão de um sentimento profundo, cuidadosa e

lentamente trabalhada em sua totalidade, quase maçante e, digamos, próxima do

exagero. E o criterioso pintor complementa: “Nisto, razão, consciência, propósito,

desempenham um papel esmagador. Mas de cálculo nada resta; apenas sentimento”

(apud READ, 1972, p. 122).

Em nossa concepção, por ser imanente ao Homem, a arte apreende-o,

materializa-se como documento social e rompe a barreira dos séculos. Assim,

independentemente do sistema de representação, a poesia responde à vibração humana.

Com a chegada dos tempos modernos, conforme diz Gonçalves, a poesia avança para

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além das representações temporais e passa a incorporar a “materialidade do discurso

poético” (GONÇALVES, 1997, 63), resultando numa produção mais abrangente de

significados:

[...] após o advento do verso livre, resultante dos grandes avanços da

modernidade, a poesia passou a ter uma esfera composicional que,

sem negar sua natureza temporal, avançou para as modalidades

espaciais [...]. [A] palavra posta na condição material da folha em

branco, que por si mesma deixou de ser um repositório de versos para

se tornar parte dos sentidos construídos ou sugeridos pelas

possibilidades da montagem [...] sua distribuição no espaço, sua

dimensão gráfica [...]. (idem, p. 62, 63).

Para Gonçalves, “o ato de compor tira o artista da referencialidade do mundo e o

impulsiona para a esfera semiótica da tela que tem de deixar de ser branca e não pode

apenas ser preenchida, sob pena de cair no engodo estético ou na falsa consciência

criadora” (GONÇALVES, 2010, p. 27). Referindo-se a obra de Stéphane Mallarmé,

Gonçalves sustenta ser a modulação o determinante dos “recursos de linguagem que

constituem essa poética [...]. Através dela nasce uma lógica composicional que eleva o

signo poético ao limite extremo. [Ao que o crítico denomina] „esfera maior da potência

da linguagem‟ ” (idem, p. 37).

Nesse contexto de labor composicional, notamos que o poema Para a mão

aberta, que fecha o Ser cotidiano, mais que apresentar aspectos como o uso do verso

livre, por exemplo, revela também atenção ao desenho e, em alguma medida, à

concretude da linguagem. E esse critério na montagem transcende a unidade, ou talvez a

consolide, quando o poema ocupa seu lugar e papel no todo da obra:

PARA A MÃO ABERTA

De novo

minha atenção se volta

para a mão aberta.

E nem tentarei explicar

o que explicação não tem.

Primeiro olho a palma

esta planície

cor-de-rosa e ardente

repleta de caminhos

que tento percorrer.

Depois

olho o lado oposto

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também uma planície

mas apagada e seca

me fazendo meditar

por muito tempo

terra adentro

até que a atmosfera

se torna carregada

e a primeira gota de chuva

silenciosa

cai.

(“PARA A MÃO ABERTA”. Ser cotidiano, 1998, p. 58)

O poema divide-se em três estrofes, que marcam acentuadamente a ação do

tempo. A primeira assinala o retorno, isto é, o tempo mítico ou cíclico, sobretudo no

primeiro verso: / De novo /. E notamos que essa ideia de retorno estrutura não apenas

esse poema como também toda a obra. Os poemas de Ser cotidiano parecem estar

protegidos, como em concha, pelas mãos da poeta, que se configuram pelos poemas

primeiro e último, Identidade e Para a mão aberta, e atuam como “moldura do livro”

(USPÊNSKI, 1979, p. 188). Em análise desse último poema, notamos em seu segundo

verso, / minha atenção se volta /, essa noção de circularidade reiterada. As duas estrofes

finais conferem o ritmo, o movimento do volver da mão, notadamente pelo uso dos

advérbios primeiro e depois. E na última temos o desenho da queda da gota de chuva,

que é arrematado pelo expressivo ai, como um gemido final: / cai. /”. Em meio à

atmosfera carregada, às intempéries do coração, é possível que se vislumbre um quê de

esperança, de desafogo, um indício de tempos melhores: a gota (salina, acrescentamos)

atinge seu destino. Pela saturação das emoções, a chuva se prenuncia sobre a

imobilidade da planície opaca e seca. E não há explicação, como diz a poeta: / E nem

tentarei explicar / o que explicação não tem. /. O sentimento que se filtra pela gaze da

poesia remete-nos ao início, à primeira estrofe, reafirmando o tempo mítico.

Dentro ainda de uma dimensão gráfica, notamos na obra de Lucinda Persona o

uso dos espaços como recurso estilístico. O espaço empregado como recurso expressivo

afeta a palavra em seus múltiplos sentidos:

Muitas vezes, o espaço entre os signos ou a distribuição do signo no

espaço do poema é responsável por efeitos de sentido que jamais

seriam conseguidos se nos mantivéssemos apenas na esfera da

temporalidade. Até mesmo essa temporalidade é muitas vezes

enriquecida, é expandida na esfera do poema, graças aos

procedimentos de teor espacial dos elementos constitutivos do texto

(GONÇALVES, 1997, p. 63).

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Na construção dos versos da última estrofe do poema Mar do Norte, observamos

a utilização do elemento espacial que, entre outras possibilidades, acentua a

temporalidade, enfatiza a dramaticidade rítmica:

[...]

Nunca vi nuvens tão assombrosas

como as que o céu apresenta agora.

Estou num barco que vai

para um lugar desconhecido.

[...]

nada posso fazer

exceto deixar que o tempo corra

mais e mais

para alcançar o que me estremece

e sempre chega:

o daqui a pouco.

(“MAR DO NORTE”. Sopa escaldante, 2001, p. 50)

A longa faixa com brancos usada na criaç verso / mais e mais /

impõe um caráter dramático à cena ao ampliar a sensação do tempo fluindo velozmente.

Entre outras possibilidades, o recurso pode sugerir a idéia de impotência, de

impossibilidade de ação: / Nada posso fazer / exceto deixar que o tempo corra /.

Esses novos recursos composicionais, que ganham “espaço” a partir dos avanços da

modernidade, são comentados por Gonçalves: “a poesia passou a ter uma esfera

composicional que, sem negar sua natureza temporal, avançou para as modalidades

espaciais” (GONÇALVES, 1997, p. 62).

Ainda nessa perspectiva, Lucinda Persona, em nossa entrevista, revela um pouco

de sua convocação para a arte, do diálogo que mantém entre literatura e pintura:

[...]

Além da poesia, você tem ou já teve alguma interação mais íntima

com as artes plásticas?

Não. Nunca tive uma proximidade mais concreta com tela, pincéis e

tintas. Gosto de desenhar e desenho bastante em minhas aulas de

Histologia e Embriologia. Digo sempre que faço “giz sobre quadro

negro”. Às vezes, desenho em cartões que envio aos amigos. [...] Por

outro lado, talvez seja útil comentar o diálogo poético que faço com a

pintura a partir do poema A melhor convocação:

A melhor convocação

sempre feita pelos ventos

nos horizontes vazios

chamando o que a eles pertence:

silhuetas de barcos e pássaros

para quem está no cais

e põe devoção no mar

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E barcos acabam chegando

sem que se saiba de onde

e negros pássaros ao fundo

contra o poente laranja.

Esse poema teve como motivação justamente um óleo sobre tela com

todos os elementos citados num entardecer. [...].

Assim, como que dando acabamento a essas observações, Gonçalves afirma que

a poesia que se iniciou no século XIX e que se desenvolveu no século

XX não prescinde do olho do leitor-observador. A sua constante

procura de uma iconização ou de uma espécie de diagramação mental

exige que o leitor „olhe‟ para sua organização gráfica, observe o seu

desenho, até mesmo para que possa se aproximar um pouco de sua

verdadeira entonação, traço decisivo dessa forma de poesia

(GONÇALVES, 2010, p. 48).

Para o crítico, essas influências surgidas a partir da modernidade exigem do

olhar sensível do leitor, que se sente incapaz de proceder a uma leitura genuína,

primordial, sem que elementos motivadores despertem as potencialidades do signo, que

enriquecido atomiza as possibilidades de leitura (idem, p. 47).

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CAPÍTULO 2 – DA INÉRCIA À DRAMATICIDADE RÍTMICA

Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico. Kandinsky

Os elementos visuais, como vimos, estão presentes em toda elaboração que se

pretenda artística e, por isso mesmo, expressiva. Consciente ou intuitivamente, o artista

os emprega em sua criação, seja poesia, pintura, escultura, arquitetura etc. No

desenvolvimento desse segundo capítulo, procuramos apresentar uma análise da obra

literária de Lucinda Persona, abordando principalmente os aspectos relacionados ao

movimento, ao ritmo.

Essa tarefa abrange necessariamente noções espaço-temporais, essenciais a

formulações rítmicas. Também havemos de abordar alguns recursos estilísticos que

auxiliam na expressividade, possibilitando ao artista a transmissão da sensação de

movimento, da percepção do ritmo, da hesitação e ambigüidade etc. Essas

peculiaridades podem ser observadas, por exemplo, quando o pintor opta em imprimir

uma pincelada no lugar preciso, com extensão, espessura, densidade, direção e cor

específicos; ou ainda quando ele reduz uma área que seria coberta por uma cor

dominante etc. Quanto ao poeta, dentre tantas possibilidades, ele pode determinar a

melhor posição de uma palavra ou expressão, escolhidas por seus múltiplos ou infinitos

sentidos, seja por relações semânticas, sintáticas, formais, culturais, históricas etc.

2. 1 – Espaço-tempo

O espaço também é uma noção temporal.

Paul Klee

Como vimos na epígrafe, Klee “defende” o espaço como noção temporal

(KLEE, 1979 apud GONÇALVES, 1997, p. 64). E, ao falar sobre espaço e tempo, que

não se restringem necessariamente à esfera visual, o pintor e artista gráfico suiço aborda

elementos dinamizadores da obra de arte, que respondem pelo movimento.

Nesse sentido, em Universos da arte, numa aula sobre movimento visual, Fayga

revela a seus alunos a intenção de “suscitar um certo tipo de atenção: [...] lidamos com

elementos expressivos, portanto, era preciso perceber o modo exato como são

apresentadas as marcas visuais que constituem a imagem” (OSTROWER, 2004, p. 14).

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Naturalmente, ao serem abordados elementos dinâmicos, necessário se faz o

reconhecimento ou percepção do espaço e tempo. Um exemplo para ilustrar esse

contexto é o filme A Ilha Nua (1960), do premiado produtor Kaneto Shindo, nascido em

1912, em Hiroshima. O drama se passa numa das pequenas ilhas do arquipélago

japonês, na qual vive um casal com seus dois filhos, em meio à escassez de água e

alimentos, até que uma desgraça, a morte do filho, vem mudar tudo, exceto sua luta

particular e silenciosa em meio às adversidades da natureza. Há uma busca de

representação natural do ritmo da vida. Os espaços são supravalorizados, por exemplo,

na ênfase dada à distância entre a ilha e o continente; no zigue-zague das trilhas que

cortam os flancos da pequena ilha e que a custo são vencidos num embate constante

contra o tempo etc. Cena clássica, de marcação nítida e verossímil do espaço-tempo, é a

do pai que corre de casa em casa à busca do médico. Em cada passo, seu sofrimento, o

tempo a roer-lhe as esperanças. A câmera distante possibilita visão do cenário que

engloba integralmente a cena. No geral, as cenas são extremamente lentas; o árduo

trabalho, cadenciado no arrastar do tempo, chega a causar agonia; detalhes como um

céu dramático ou um fruto boiando junto à linha d‟água são como simbólicas iscas a

amarrar a trama, como que preparando o espectador para o inesperado.

No tocante a essas percepções, quer seja na poesia, na pintura ou no cinema,

independentemente do meio e procedimentos, “a manifestação do poético, engendrado

por [esses] meios distintos de expressão”, resulta sempre no mesmo, “na composição da

metáfora” (GONÇALVES, 1997, p. 59). Entretanto, em cada caso, “instâncias

sensoriais e abstratas distintas” (idem) evidenciam-se “na poesia, pelo ritmo [...]; na

pintura, pelas relações instauradas, a emergência do poético, por formas transfiguradas

no espaço e recompostas na simultaneidade do tempo” (idem).

A continuidade temporal e a simultaneidade espacial conjugam-se, por

procedimentos estéticos, no que se poderia chamar imagem, rompendo

com a fria divisão entre as categorias. Isso não é primazia de um tipo

de obra de arte. O verdadeiro artista, que tenha consciência da sua arte

e domínio de seu meio expressivo, conseguirá esse resultado

(GONÇALVES, 1997, p. 62).

Lucinda Persona, na materialização de suas visões, por meio de um apurado

senso espacial, conduz-nos a um / [...] eterno dobrar / de líquidas esquinas. /, a um

espaço poético. Aquilo que poderia passar despercebido, emoções encobertas pela

crosta do tempo, a um simples gesto, um calcar de mãos sobre o arroz já limpo, e eis a

poesia densa, como um oásis em meio às dunas de cor inauferível. Por vezes, um

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restrito quarto de hotel transmuta-se num espaço propício à produção artística. Nessa

luta de apreensão do espaço-tempo, numa tentativa de condensação da experiência pela

emoção, desvela-se o domínio do poético. E isso remete-nos aos fundamentos das artes

plásticas, à percepção de forças que rompem com a estagnação, que tensionam os

elementos, fazendo com que se descreva o movimento no espaço conquistado: “O fator

tempo intervém tão logo um ponto entra em movimento e se converte em linha. [...] O

mesmo se dá a respeito do movimento que leva das superfícies aos espaços (KLEE,

1979 apud GONÇALVES, 1997, p. 64).

2. 2 – O ritmo

Mas se tu vens a qualquer momento,

nunca saberei a hora de preparar o coração...

É preciso ritos. Antoine de Saint-Exupéry

[...] É preciso ritos.

─ Que é um rito? Perguntou o principezinho.

─ É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz

com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras

horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na

quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia

maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem

qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!

(SAINT-EXUPÉRY, 1983, p. 71).

Nesse excerto de um clássico da literatura, não quisemos fazer nenhuma

“intervenção”, isto é, nenhuma alteração no texto “original”, que viesse mudar-lhe os

sentidos. Entretanto, com a devida licença, entendemos possível a depreensão de um

conceito de ritmo, se substituíssemos nesse trecho a palavra rito por ritmo. Pois a

observação do rito “abre uma janela” para o fôlego da raposa, / por isso é que os

poemas têm ritmo /, diz Mario Quintana, / ─ para que possas profundamente respirar. /

Quem faz um poema salva um afogado. /12

. Eis o motivo de o autor de O Pequeno

Príncipe ─ numa recriação poética de padrões de comportamento culturalmente

estabelecidos, como o do caçador, por exemplo, ─ inventar ritos, criar novos ritmos que

dinamizam a vida. Esses novos padrões rítmicos permitem que um poema “seja

diferente dos outros”, que um verso se meça com outro. Felizmente, o ritmo é natural à

12

Versos extraídos do poema Emergência, de Mario Quintana (In: MORICONI, 2001, p. 117)

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vida. Sem a variedade rítmica, a vida seria insuportável. Nesse sentido, segundo

Gonçalves

a poesia consiste no engendramento de um ritmo que se enforma

como se delineasse estados de sensibilidade e não exprimisse um

estado particular. Para isso entendemos que haja necessidade, no

mínimo, de uma habilidade do gênio criador em pelo menos observar

com profundidade o mundo ou os pequenos mundos que trazem em

seu espaço átomos que possam ser desagregados, a ponto de gerarem

outras relações com outros espaços (GONÇALVES, 2010, p. 169).

Portanto, se o artista plástico deseja um ritmo dinâmico, vibrante, talvez pudesse

utilizar-se do efeito avanço/recuo simultâneo de que fala Fayga: “O claro, referido

visualmente ao escuro e avançando, se irradia e se expande; referido visualmente ao

claro, o escuro recua e se contrai” (OSTROWER, 2004, p. 88). Na explicação da autora,

há uma ilustração que ora procuramos reproduzir preservando a semelhança com

original:

desenho 6

[...] tivemos [...] a impressão da bola branca no fundo preto crescer e

vir para a frente, ao passo que a bola preta parecia diminuir e recuar

no fundo branco. Ao mesmo tempo, havia um segundo movimento: o

próprio fundo branco que continha a bola preta também parecia

expandir-se e avançar em relação ao quadrado preto adjacente. [...] no

fenômeno do avanço-recuo simultâneo e na expansão-contração que o

acompanha, a vibração torna visível um espaço de profundidade [...]

[Essa] profundidade não mais se apresenta tridimensional, pois não

percebemos [suas] dimensões de altura e largura. Em vez disso, vemos

o tempo. Todas a vibrações – pulsações – necessariamente abrangem

aspectos temporais. O artista os formula como ritmos (ibidem, p. 89;

91).

Como o assunto abordado, entre outros aspectos, diz respeito ao efeito visual do

avanço-recuo simultâneo e da contração-expansão que o acompanha, entendemos que a

borda da figura (desenho 6), originalmente traçada em preto, ainda que de pequena

espessura, poderia afetar o resultado, senão visual, ao menos intelectualmente, uma vez

que esta estreita linha de contorno dos quadrados, a um só tempo, estaria ligeiramente

ampliando o quadrado preto e reduzindo o branco. Além disso, esse fino traço que

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delimita essas formas parece insuficiente para conter o fundo branco, cuja

predominância julgamos afetar a percepção do fenômeno. Procuramos, então, eliminar

essas implicações indesejáveis com a aplicação de um fundo de cor distinta numa

saturação de média cromaticidade (desenho 7).

desenho 7

Entendemos que a solução apresentada confere maior justeza pela igualdade das

dimensões das formas e, por isso mesmo, amplia o efeito vibratório, tornando mais

perceptíveis os aspectos temporais.

Quanto à mensuração do fator tempo na arte, Bosi diz que “o espaço e o tempo,

categorias universais que preexistem a todas as artes, e de todas são a matéria primeira,

recebem de cada uma delas um tratamento que jamais dispensa a medida” (1986, p. 18).

Entretanto, cremos que, no caso do fenômeno do avanço-recuo simultâneo, essa medida

jamais possa ser aferida cartesianamente.

Na poesia, como vimos, instâncias sensoriais e abstratas são alcançadas “pelo

ritmo engendrado, o diagrama emergente e primordial” (GONÇALVES, 1997, p. 59), e

também pelo desenho, que “quanto menos se definia, mais enriquecedor se tornava para

o meu espírito” (idem). Nesse contexto,

“Fala-se usualmente desse retorno como ritmo, quando se desenvolve

no tempo, e desenho, quando se distribui no espaço. Assim falamos do

ritmo da música e do desenho da pintura. Mas um leve aumento de

sofisticação logo nos fará falar do desenho da música e do ritmo da

pintura. A interferência é que todas as artes possuem um aspecto

temporal e um espacial [...]. As obras literárias também se movem no

tempo, como a música, e se estendem em imagens, como a pintura”

(FRYE, 1973 apud GONÇALVES, 1997, p. 62).

Vejamos agora alguns aspectos que movimentam o poema, impondo-lhe ritmo.

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STAZIONE SANTA MARIA NOVELLA

Coisa alguma está às claras:

Stazione Santa Maria Novella.

É lento o espasmo que altera sua forma.

Nada se perde no curso deste mundo.

Há bulbos que germinam facilmente

em suas faces.

Verrugas arrepolhadas

que se negam aos espelhos.

De luas indecisas se iluminam as fachadas.

De indiferença, as faces operárias.

Anoitece. A população flutua.

Os resíduos urbanos

distorcem as luzes normais.

Stazione. Todos vão e voltam,

não há ninguém que não procure a si mesmo.

Vozes migratórias se cruzam

o livre comércio das ilusões infesta o ar.

Camelôs proclamam no caos.

Opor-se com igual força

evita a reles aquisição. Stazione.

Reconstruo sua ausência

na extensão da cidade onde vivo.

(“STAZIONE SANTA MARIA NOVELLA”. Leito de acaso, 2004, p. 45)

Na leitura de Stazione encontramos ritmos singulares, que sugerem direções a

serem seguidas, o ir e vir, por exemplo, / [...] Todos vão e voltam, / como as

“composições” que transitam na estação florentina. Quanto ao termo “composição”, O

Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, dentre outros significados para esse verbete,

traz esses que ora nos interessam: “4. Produção literária ou artística” e outro “14. Bras.

O conjunto dos carros de um trem, nas estradas de ferro” (FERREIRA, 1986).

Considerando essas correlações, o poema funciona como um grande pátio onde

as “composições”, de variados tamanhos, se alinham, paralelamente, à esquerda da

página. Aproximações entre termos como composição (poema)-estação; verso-

composição (trem); palavra-carro (vagão); verbo-locomotiva, vão criando uma certa

configuração visual que lembra locomotivas, conforme tentaremos mostrar a seguir.

Em maioria, os versos do poema se alongam, fluem sem obstáculo até a parada

final, o ponto. Numa abstração, assemelham-se aos vagões, na igualdade do vão que há

entre eles, que a um tempo os une e separa, equidistantemente:

/ É lento o espasmo que altera a sua forma. /;

/ não há ninguém que não procure a si mesmo. /;

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/ o livre comércio das ilusões infesta o ar. /.

E essa ideia de dimensão, de prolongamento, também é retomada no verso:

/ na extensão da cidade onde vivo. /.

Os versos, em maioria, aparentam ser semanticamente isolados uns dos outros,

expressando em si uma ideia completa, uma sentença, espécie de anacolutos dando

ênfase à intenção de compor o difuso campo que a artista tinha diante dos olhos. No

entanto, paralelismos sintáticos, que sugerem partida, operação transformadora e

chegada, revelam unidade:

/ É lento o espasmo que altera a sua forma. /

/ Há bulbos que germinam facilmente /

/ não há ninguém que não procure a si mesmo. /

Os verbos são o motor dos versos ─ altera, germinam ─, assim como as frases

nominais vão sinalizando para a imobilidade, advertindo quanto à necessidade de

redução da marcha, quanto à parada próxima ou indicando o nome da estação – função

de placas:

/ Stazione Santa Maria Novella. /

/ Stazione. Todos vão e voltam, /

/ evita a reles aquisição. Stazione. /

Ou à fatalidade do dia, quando a desaceleração é inevitável, tornando os termos

elementos rodantes13

isolados, estacionados no pátio, num terminal, num trilho,

calçados pelo ponto:

/ Anoitece. A população flutua. /;

/ Stazione. Todos vão e voltam, /;

/ evita a reles aquisição. Stazione. /.

13

Termo técnico comum no setor ferroviário. A expressão pode ser encontrada, por exemplo, em:

http://www.fundacionmapfre.com.br/Portal/Fundacao/Arquivos/Download/Upload/262.pps, acesso em: 28/10/2010.

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2. 3 – ALGUNS MODULADORES DO MOVIMENTO

Quando se requer uma representação mais dinâmica e/ou dramática, o artista

(poeta, pintor etc.) pode articular o pensamento, expressando-o por meio de signos ou

marcas visuais que regulem o movimento segundo seu querer. Assim, ele tanto pode

enfatizar como suavizar certos elementos. Na pintura, ou na poesia, por exemplo, o

artista pode realçar linhas do primeiro plano, como podemos ver nesses versos que

compõem uma das estrofes do poema Tuiuiú, em que o céu, ou plano de fundo, cede

espaço à figura dessa magnífica ave:

[...]

O tuiuiú é tão grande, tão grande que

ao levantar vôo

o céu sai de perto.

[...]

(“TUIUIÚ”. Sopa escaldante, 2001, p. 22)

O artista pode também buscar profundidade rebaixando e/ou intensificando cores de

determinados objetos; arejar um espaço unindo áreas; acentuar a luz em um foco de

maior interesse etc. Na poesia, é possível trabalhar o movimento utilizando-se de

recursos estilísticos que incluem aspectos ortográficos, sintáticos, rítmicos, formais etc.

Todos esses procedimentos implicam questões espaço-temporais, que afetam o

desenvolvimento rítmico da obra. Vejamos a seguir um pouco mais acerca de alguns

desses recursos.

2. 3. 1 - O intervalo, a pausa

Elementos linguísticos e semióticos, o intervalo e a pausa são recursos de estilo

que modulam o movimento em uma obra de arte. Em relação a esse recurso, Fayga

comenta da “possibilidade de se modular o movimento da linha introduzindo

intervalos”, e acrescenta: “quanto maiores forem estes em relação aos segmentos

lineares, tanto mais lento se torna o percurso. Os intervalos funcionam como pausas”

(OSTROWER, 2004, p. 54). Nesse sentido, vale o que Bosi ensina:

Ritmada e entoada, a frase não é um contínuo indefinido. Abriga

pausas internas. Deságua no silêncio final. [...] A pausa divide e, ao

dividir, equilibra. Mas as paradas internas exercem um papel ainda

mais intimamente ligado ao movimento inteiro da significação. Uma

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vírgula, um ponto-e-vírgula, um “e”, um branco de fim de verso, são

índices de um pensamento que toma fôlego para potenciar o que já

disse e chamar o que vai dizer (BOSI, 2000, p. 121).

Mais que comentar, Bosi nitidamente aplica o recurso da pausa em sua fala, por

exemplo, quando diz: “A pausa divide e, ao dividir, equilibra”. A frase é visualmente

tão didática que dispensa comentário.

Notadamente, pausa e intervalo têm sido utilizados a fim de se ressaltar

conteúdos sintáticos, semânticos, sonoros, rítmicos, capazes de promover uma

modulação da linguagem, teoria que Gonçalves sintetiza como uma “remissão para a

esfera prismática da linguagem poética” (GONÇALVES, 2010, p. 63). “Muitas vezes, o

espaço entre os signos ou a distribuição do signo no espaço do poema é responsável por

efeitos de sentido que jamais seriam conseguidos se nos mantivéssemos apenas na

esfera da temporalidade” (idem, 1997, p. 63). Gonçalves assinala essa riqueza da

refração da linguagem num trecho de seu ensaio O Legado de João Guimarães Rosa:

Sua obra consiste numa permanente remissão para a esfera prismática

da linguagem poética, engendrada sem se valer da forma convencional

do verso, mas determinada por um ritmo crespo, composto de

pequenos garranchos, ou de ramos secos que se enviesam e se

emaranham frente a qualquer tentativa de fluência, ficando ali, em

cada ponto de seus contornos, matizada pelo próprio nó entre

ramagens que obstruem a passagem muitas vezes líquida da prosa e

nos mantém presos no entrefluxo, apesar de manter aparente

horizontalidade como base do plausível (idem, 2010, p. 167-8).

Numa primeira leitura, essas palavras desenharam em nosso espírito o seguinte

movimento: é como se tentássemos colher um fruto maduro, e esse despencasse

afundando pelas folhas, varando os ramos e se acomodasse sorrindo num nicho,

requisitando outra vez nossa atenção. Um movimento assim, de ritmo encrespado por

uma linguagem singular, estilhaça os padrões da mera representatividade e nos submete

a uma espécie de organismo vivo ainda não identificado pelos nossos sentidos. Daí a

perplexidade ante a obra que é arte.

Procuraremos demonstrar a seguir como a poeta serve-se de elementos como o

intervalo ou a pausa, por exemplo, para modular a linguagem:

VAGAROSAS, SOMBRIAS

Vagarosas, sombrias, vão as gôndolas.

Uma atrás da outra. Vejamos como é isso:

procissão confusa, eterno dobrar

de líquidas esquinas.

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Os canais as canções o lodo.

Nenhum vento me alcança aonde não vou.

Os gondoleiros, monumentais e monótonos,

na clara demonstração de uma rotina

remando remando

puxando as águas dos alicerces podres.

O que pensa um gondoleiro

(assim grande e silencioso)

enquanto rema com rosto de cera

e vazio nos olhos?

Alguém disse que o movimento é eterno.

O meu não-movimento é essa viagem.

De súbito, uma sacada com flores vermelhas.

Sem perda de tempo elas gritam

silenciosas como nunca

o choque interno do seu sangue.

Nada é fixo ou definido.

O que importa é conhecer a fundo

a superfície das máscaras.

(“VAGAROSAS, SOMBRIAS”. Ser cotidiano, 1998, p. 38)

Talvez se possa afirmar ser esse poema um tratado poético do movimento.

Desde o título até o último verso, observamos a modulação do movimento em

elaborações rítmicas. O poema inicia-se sob uma atmosfera de monotonia, que se

assinala pela repetição: o título reaparece integralmente no primeiro verso: / Vagarosas,

sombrias, vão as gôndolas. / E isso não é acaso, e muito menos descuido. Os versos

projetam impressões sofridas. A monotonia da repetição, as gôndolas, / Uma atrás da

outra. /, as mesmas coisas, o ritmo lento, pausado; as vírgulas como obstáculo, e mesmo

o polissêmico “vão”.

As tristes naus, soerguidas das reminiscências, não apresentam brilho nem cor.

No cenário mudo, a solene marcha segue sobre o leito aquoso. Justapostas, as imagens

da memória vão se recompondo.

Vejamos como é isso:

procissão confusa, eterno dobrar

de líquidas esquinas.

Os canais as canções o lodo.

Chega-se, então, ao sexto verso: / Nenhum vento me alcança aonde não vou. /.

Mais que apresentar interessante ritmo, pela ausência de pausas internas, inteiro,

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estrategicamente incrustado, o verso reverbera para além de seu espaço, ancorando o

poema:

Nenhum vento me alcança aonde não vou.

Afirmar a posição desse verso como estratégica é concordar com o pensamento

de Matisse, pintor impressionista, quando diz que a expressão “está na disposição

inteira do meu quadro – o lugar ocupado pelas figuras, o espaço vazio ao seu redor, as

proporções – tudo desempenha seu papel” (MATISSE apud READ, 1972, p. 49). A

partir desse verso, ocorre como que um transe óptico: uma imagem outra se materializa,

desvela-se como em espelho, estereoscópica. Isto é, um tipo de imagem de forte

impacto visual, que se constitui fundamentada na capacidade do cérebro de detectar

pequenas diferenças entre as imagens captadas por um e outro olho, gerando a sensação

de tridimensionalidade e possibilitando visualização de formas ocultas em superfícies

de diferentes níveis de profundidade (OTUYAMA, 2010). Assim, lançado como âncora

de proa, o verso promove mudança brusca no estado de coisas, no fluxo do pensamento.

A âncora freia e, ao frear, promove aquela guinada característica, que faz a popa

achegar-se ao cais, facilitando o desembarque ─ das ideias, nesse caso. Até aqui, as

reminiscências esbarravam na contemplação: as gôndolas, / Os canais as canções o

lodo. /, mas agora um vento arrebata, não aquele súbito vento14

, fenomenológico, de

outro poema de Persona. Trata-se de um vento diferente, o qual recai sobre os que se

expõem e alcança aqueles que estão, ou que são:

Nenhum vento me alcança aonde não vou.

A metonímia, ou mais precisamente, a sinédoque, estiliza esse verso proverbial,

que vem frisado pelas negativas Nenhum e não. Num exercício lingüístico, a expressão

“Nenhum vento”, de tom mais específico, poderia ser substituída por um termo mais

genérico, ou mais vago, como “Nada”. Essa substituição possibilitaria uma leitura

como: / [Nada] me alcança aonde não vou / ou ainda, pela positiva, / [Tudo] me

alcança aonde [...] vou /. Vemos que o recurso utilizado faz com que esse verso aponte

para a torrente de imagens que desemboca no corpo do poema. Aqui, o vento reveste-se

simbolicamente de tudo aquilo que eventualmente possa dar acabamento ao ser, ainda

que mutilando-o. Assim, numa fração de tempo, esse vento epifânico pirografa marcas

indeléveis, fazendo lembrar a ambientação naquela passagem em que um cego mascava

14

Referência ao poema Aquele súbito vento (PERSONA, Por imenso gosto, 1995, p. 29).

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chicles, no conto Amor, de Clarice Lispector: “Logo um vento mais úmido soprava

anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável” (LISPECTOR in

MORICONI, 2001, p. 213). Há um start, uma centelha que desencadeia novo processo

mental. “Mas o mal estava feito”, diz o narrador no referido conto (ibidem, p. 214). A

partir de então, há um deslocamento, um novo tropo, para outra realidade e / A vida

mud[a] de lugar. /15

. O foco move-se do geral para o específico. Lembrando Kandinsky,

do exterior para o interior, da superfície para o “além”.

O pintor russo fala desse novo lugar quando argumenta que “todo fenômeno

pode ser vivido de duas maneiras” e que “essas duas maneiras decorrem da natureza dos

fenômenos, de duas de suas propriedades: exterior e interior” (KANDINSKY, 1997, p.

9). E ele exemplifica:

Se observarmos a rua através da janela, seus barulhos são atenuados,

seus movimentos são fantasmagóricos e a própria rua, por causa do

vidro transparente, mas duro e rígido, parece um ser isolado

palpitando num “além”. Mas abramos a porta: saímos desse

isolamento, participamos desse ser, tornamo-nos ativos nele e vivemos

sua pulsação por todos os sentidos” (KANDINSKY, 1997, p. 9).

Transposta essa porta, surge a indagação:

Os gondoleiros, monumentais e monótonos,

na clara demonstração de uma rotina

remando remando

puxando as águas dos alicerces podres.

O que pensa um gondoleiro

(assim grande e silencioso)

enquanto rema com rosto de cera

e vazio nos olhos?

Ainda “fantasiado”, como que escapado de um palco ou de alguma encenação

pública, o gondoleiro embarca em nova representação, provocando superação da

moldura, alteração nas fronteiras entre o representado e o real, ampliação do espaço

artístico convencional (USPÊNSKI, 1979, p. 175). E talvez esse quadro queira

simbolizar o abismo, o movimento, a eterna viagem em que se encontra o ser: sempre

fugindo de si, buscando-se a si ou como diz Lucinda Persona, / não há ninguém que

não procure a si mesmo / 16

.

15

Referência ao verso / A vida mudou de lugar /, que encerra o poema Aquele súbito vento (PERSONA,

Por imenso gosto, 1995, p. 29). 16

Verso do poema STAZIONE SANTA MARIA NOVELLA, In: "Leito de acaso" (PERSONA, 2004, p. 45).

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Alguém disse que o movimento é eterno.

O meu não-movimento é essa viagem.

Entretanto, em suspenso fica o questionamento: / O que pensa um gondoleiro /.

Sigamos para a segunda estrofe, que também atua como uma pausa.

De súbito, uma sacada com flores vermelhas.

Sem perda de tempo elas gritam

silenciosas como nunca

o choque interno do seu sangue.

A quadra inteira se interpõe ao fluxo do pensamento, represando-o,

intensificando as tensões, para de vez desaguar num remate que reitera o essencial: o

anseio de conhecer o que há por trás da rija, física e imediata camada das aparências. E

mais, o que de sublime e oculto se traduziria no brilho visto através das pequenas

janelas, vazadas na dura e estéril camada que resguarda do mundo o ser que rema.

O poema, de pronto, remete a Veneza, histórica cidade que se constituiu sobre

centenas de ilhotas do Adriático, próximas à costa nordeste italiana. Além do panorama

histórico-cultural, o aspecto geográfico também pesa na análise, porque podemos

considerar a monotonia do nivelamento, do plano bidimensional imposto pela laguna,

que se fragmenta pelas vias líquidas. A ausência de rampas, lombadas, leva a pensar no

deslizamento contínuo, no balanço cadenciado e repetitivo das embarcações,

movimento que de certa forma pode ser inquietante para o passageiro, por instabilizar

importante parâmetro de referência, a linha imaginária entre terra e mar, o que se

confirma em: / nada é fixo ou definido /.

2. 3. 2 - Diagonais, curvas, espirais e algo mais

Intuitivamente observamos que horizontais e verticais são mais estáveis que o

dinamismo expresso pelo uso de diagonais, curvas e espirais.

“Divergindo de horizontais e verticais, e contrastando com suas

qualificações estáticas, as outras direções ― diagonais, curvas e espirais

― se nos afiguram de maior mobilidade, tornam-se dinâmicas”,

“potencialmente instáveis e carregadas e maior movimento visual”

(OSTROWER, 2004, p. 19 e 32).

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Relativo a essa abordagem, Fayga diz ser horizontais e verticais posições

estáticas, que indicam diferentes noções de imobilidade:

[...] a horizontal é percebida [...] como posição deitada, dando idéia de

sono, repouso, morte, calma, sempre uma idéia de imobilidade [...]. A

vertical, posição em pé, corresponde à postura típica humana. [...]

Estar em pé significa uma posição que a todo momento tende a

instabilizar-se, pois ao darmos um passo à frente abandonamos a

vertical e entramos na diagonalidade, para podermos daí atingir novo

equilíbrio, novamente na vertical (OSTROWER, 2004, p. 19).

Convém ainda ressaltar que “verticais expressam grandeza e dignidade”

(ANDRADE, 1990) e que “a verticalidade é prioritária em nossa percepção”

(OSTROWER, 2004, p. 32). Eis um singelo desenho:

desenho 8

Independentemente do que queira representar essa figura, o olho humano,

associado à capacidade do cérebro, apreende a imagem de imediato. A verticalidade que

predomina na figura se vê enfatizada porque aparenta algo que aponta para cima, como

um minarete natural, talvez. A acentuada proeminência e a reduzida base da figura

minimizam ou mesmo descartam a tendência de leitura e interpretação. O movimento

visual analítico, característico da leitura, é bastante reduzido, resultando um impacto

visual, que se dá pela velocidade em que os conteúdos são apreendidos.

Assim, mais que propor vigor e energia, talvez se possa dizer que a vertical é

afeita à dramaticidade. Lembrando Leonardo, por ser a vertical a linha desejada pelo

peso, ela está sujeita e é passível de tragicidade, tendendo a instabilizar-se a todo

momento.

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Observados esses aspectos, olhamos agora para as imagens poético-pictóricas

que se configuram a partir da leitura do poema Mato Grosso em labaredas. Por ora,

procuramos destacar o poder sugestivo da palavra, num poema que evidencia o

movimento a partir da variedade e da especificidade das linhas que desenham o

dramático.

Logo, se a poesia clama dramaticidade, o poeta pode atender a esse apelo

deixando um pouco de lado as amarras visuais e sígnicas que indicam serenidade,

calma, tranquilidade, como as horizontais, por exemplo, e servir-se de elementos que

proponham instabilidade, movimento, drama. Exceto quando as horizontais, por

oposição, amplificam o efeito dramático que se espera das verticais, diagonais, curvas e

espirais.

A horizontal é a reta [...] que acompanha praticamente todas as

tendências de leitura e interpretação [...] sua presença sugere calma,

tranqüilidade e frieza. A vertical [...] liga-se à projeção da altura, e sua

oposição à linha horizontal funciona como contraste natural aos

efeitos desta. Sua presença sugere vibração e atividade. A linha

diagonal situa-se numa posição intermediária entre as horizontais e

verticais. É um termo de equilíbrio e, como resultante de forças,

sugere o movimento dos elementos. [...] (MORAES, 2010, p. 4).

Vejamos, então, sob esses aspectos o poema:

MATO GROSSO EM LABAREDAS

Ontem, no telenotícias do meio-dia,

vi cangurus desnorteados

num incêndio na Austrália.

De imediato, sobre o leito de cozidos

remontaram outras imagens

dos incêndios deflagrados

na paisagem regional.

Vi Mato Grosso em labaredas

as labaredas como cordas estrangulando

gargantas que se uniam

na música da carne em combustão.

Vi emas atônitas

despenhando ao longo das chamas

e serpentes abrasadoras subindo

pela agitada coluna de fogo.

Muito mais tarde (penoso contar)

vi ninhos e lagartos ao rescaldo.

(“MATO GROSSO EM LABAREDAS”. Leito de acaso, 2004, p. 36)

A notícia desses incêndios, na Austrália e em Mato Grosso, alcança, na poesia,

dimensões universais. A dramaticidade do tema e o tipo de abordagem requerem um

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texto de andamento rápido, fluido. Pedem um estilo em que a gravidade dos fatos seja

articulada numa linguagem extremamente dinâmica, apropriada para imprimir angústia

ante a destruição veloz e implacável do fogo.

E o poema atende a esse clamor. Desde seu início observamos o uso expressivo

da linguagem. O título MATO GROSSO EM LABAREDAS, grafado em capitais, com

tom hiperbólico de manchete, aponta para uma circunstância de dimensão sócio-

ambiental; evidencia o impacto na região e valoriza também a noção de espaço, a

horizontalidade, o plano que se configura pela extensão do território mato-grossense.

Temos a impressão de que todo o Estado encontra-se sob o domínio das chamas. E

mesmo a sutil sugestão de verticalidade expressa no termo “labaredas” fortalece a

estrutura semântico-sintática sob a égide da oposição vertical/horizontal. Aliás, o termo

“labaredas” é tão expressivo que notadamente figura no meio jornalístico, muitas vezes

estilisticamente associado ao antitético “debeladas”, de semelhança sonora, rítmica e

visual.

Em conformidade com o dinamismo temático, o poema se constrói num todo

comunicativo, em que sensações resgatadas da lembrança são redesenhadas numa

linguagem apropriada. No rápido andamento do poema, o leitor pode ser tomado de

surpresa, pois logo poderá ver/ouvir o chiado da carne em combustão. O fôlego curto

imprime velocidade metafórica à leitura, que parece competir com a ação veloz do fogo.

Aproximando-nos dos versos, tentamos visualizar elementos que favorecem essa

modulação do movimento.

O poema constitui-se de estrofe única com cinco períodos; parece sugerir

uma leitura corrida;

o texto tem aspecto de notícia;

predominam orações coordenadas;

o título e o primeiro período revelam linguagem passível de ser considerada

estritamente referencial;

no segundo período, ainda há o predomínio da linguagem referencial, mas

embute-se um recheio poético: / [...] sobre o leito de cozidos /;

a partir do terceiro período, a poesia rompe com o referencial, como que

abandonando a noção espaço-temporal, para depois retomá-la;

desde então, os períodos são como que imersos em plasma poético, para

serem soerguidos e configurarem as visões da poeta;

no último período, pouca matéria orgânica há que alimente o fogo, o ritmo é

então atenuado;

os parênteses barram a visão, chamam à reflexão, instauram nova instância

temporal: hora do levante dos danos: / Muito mais tarde ( penoso contar ) /.

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Um estilo vigoroso move alavancas, aciona metáforas que potencializam o

drama das imagens, gera tensão, que é “a força viva do elemento”, no dizer de

Kandinsky (1997, p. 50). Por mais banal que seja o movimento, um gesto, um delgado

traço a bico de pena, uma locução etc., em determinado contexto, pode chegar a ser

considerado complexo. Isso porque, como se sabe, o movimento nunca é único, e

depende do referencial. A Terra, por exemplo, deslocando-se em sua órbita elíptica em

torno do sol, gira sobre seu próprio eixo (GONZATTI, 2008, p. 35) e descreve um

movimento com certo grau de complexidade, o de revolução. Semelhantemente, uma

bola de boliche, quando devidamente arremessada, gira sobre seu eixo e descreve o

segmento de uma trajetória espiralada, até que se choque contra os pinos.

Portanto, a percepção do grau de complexidade do movimento depende da

abrangência da análise, do foco de observação dos fenômenos dentro dos limites

previamente estabelecidos e, naturalmente, da experiência e sensibilidade do

observador. Na pintura, esse limite máximo geralmente se define pelo plano original,

termo comentado no capítulo anterior, quando se falava sobre o “vazio”. Seguindo o

raciocínio, numa obra de arte, cada elemento tem sua atuação modulada pelo contexto.

Na inserção de uma palavra ou cor, tanto o elemento quanto o ambiente sofrem

modificações. Fayga nos diz que cada cor terá sua expressividade condicionada à

função que desempenhe (OSTROWER, 2004, p. 115). E naturalmente compreende-se

que a função da cor somente ficará estabelecida dentro de seu contexto de atuação.

Em meio às pesquisas e devido ao nosso particular interesse por aquarelas,

tivemos grande prazer em conhecer um pouco do trabalho de Gerhard Richter. E isso

aconteceu quando da divulgação da entrada ilegal no Brasil da pintura Claudius (1986),

de autoria do pintor alemão, cuja avaliação à época alcançava a cifra de alguns milhões

de reais. A obra foi apreendida e posteriormente doada pela Superintendência da

Receita Federal ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)17

.

Assim, vejamos então uma aquarela de Richter, que entendemos apropriada para

auxiliar-nos na análise plástico-pictórica-literária que se propõe.

17

In: Folha.com. Disponível em: <http://www.inf.ufsc.br/~otuyama/port/stereogram/basic/>. Acesso

em 22/10/2010.

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Não caberia aqui uma análise detalhada desse trabalho de Richter, mas podemos

destacar o critério conceito-formal, numa elaboração em que se observa intensa busca

do movimento. A solução encontrada pelo artista é tão dramática que talvez chegue ao

“trágico” ou à “plasmação do insondável” (GONÇALVES, 2010, p. 61). Nessa

aquarela, observamos elementos visuais como direção, espessura, densidade e

mobilidade das linhas, a paleta reduzida, a luz, o volume, a aparência contrastante das

figuras etc. Praticamente banida da pintura, a horizontalidade apenas se insinua na

reduzida base em que as figuras se assentam. A intenção de uma obra bastante dinâmica

já se entrevê na escolha do plano original disposto na vertical. A sensação de intenso

movimento advém, dentre outros recursos, do predomínio de marcas visuais como

verticais, diagonais, espirais e dos contrastes formal, tonal, cromático etc. A dureza, a

rigidez e a consistência das diagonais aprisionam as formas soltas, sinuosas, sinistras e

Gerhard Richter - 1977 - 22 x 17.4 cm

Aquarela sobre papel milimetrado – diponível em http://www.gerhard-richter.com/art/watercolours/

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espectrais no centro do quadro. Essas figuras aprisionadas, de contornos indefinidos,

apresentam ainda forte contraste cromático frio/quente.

Esse mesmo labor construtivo observamos no poema de Lucinda Persona.

Interessante notar como os processos composicionais são recorrentes tanto na pintura

como na poesia. A solução encontrada pela poeta remonta às duas características dos

fenômenos, expostas por Kandinsky: exterior / interior ou superfície / “além”:

Se observarmos a rua através da janela, seus barulhos são atenuados,

seus movimentos são fantasmagóricos e a própria rua, por causa do

vidro transparente, mas duro e rígido, parece um ser isolado

palpitando num “além”. Mas abramos a porta: saímos desse

isolamento, participamos desse ser, tornamo-nos ativos nele e vivemos

sua pulsação por todos os sentidos” (KANDINSKY, 1997, p. 9).

Nos ensinamentos de Kandinsky vibra um pensamento mais profundo: a fruição

plena de uma obra de arte está além da excitação, além da reflexão superficial da

consciência: “[...] Também aí temos a possibilidade de penetrar na obra, de nos

tornarmos ativos nela e vivermos sua pulsação por todos os nossos sentidos”

(KANDINSKY, 1997, p. 9-10). Olhemos para o poema:

Ontem, no telenotícias do meio-dia,

vi cangurus desnorteados

num incêndio na Austrália.

De imediato, sobre o leito de cozidos

remontaram outras imagens

dos incêndios deflagrados

na paisagem regional.

[...]

De modo análogo, encontramos nesses versos nítida separação temporal,

marcada pelas expressões: “Ontem” e “De imediato”. Esse Ontem é como o vidro que

isola o ser palpitante no além, atenuando os ruídos, confundindo a percepção dos

movimentos. Esse Ontem é um divisor que coloca cada fenômeno no seu devido lugar.

Ele distancia e isola o exterior ao tempo que nos acolhe no interior, em meio aos

acontecimentos. Além dessa barreira encontra-se o distante, um passado já meio

apagado; aquém dela, a lembrança nítida, o próprio ser, em quem “vivemos sua

pulsação por todos os sentidos” (idem, p. 9), a realidade local:

[...]

vi cangurus desnorteados

[...]

Vi Mato Grosso em labaredas

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[...]

Vi emas atônitas

[...]

vi ninhos e lagartos ao rescaldo.

Esses quatro versos iniciam-se de forma idêntica, paralelismo sintático, com o

verbo “ver” flexionado na primeira pessoa do pretérito perfeito simples: “vi”, “Vi”,

“Vi” e “vi”. Apesar da persistência dessa mesma desinência verbal, o contexto permite

que se levantem algumas considerações pertinentes à modulação temporal, o que

naturalmente implica em movimento. Vejamos:

O tempo psicológico ou subjetivo: / De imediato, sobre o leito de cozidos /

remontaram outras imagens /. O instante epifânico de conformação das imagens,

ou, nas palavras de Bosi, “o tempo relâmpago da figura que traz à palavra o mundo-

da-vida sob as espécies concretas das imagens singulares” (BOSI, 2000, p. 144)

O hoje está implícito no discurso pelo advérbio ontem. É o momento em que ocorre

o registro das impressões pela articulação da linguagem; tempo da escrituração do

poema.

O pretérito perfeito simples: vi... as labaredas como cordas

O pretérito imperfeito está implícito em: / vi cangurus desnorteados / [e enquanto

via] / remontaram outras imagens /

O futuro do pretérito está implícito em: / Muito mais tarde [...] / vi ninhos e

lagartos ao rescaldo. /.

Isolando as primeiras palavras desses quatro versos, temos:

vi Vi Vi vi

preâmbulo clímax desfecho

Nesse esquema observamos um ritmo que parece representar a ação natural do

fogo: início débil seguido de um período de atividade intensa e depois o declínio e

extinção do agente. Mais detalhadamente:

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“vi” com “v” minúsculo: aparenta ser mais fraco, apagado, por estar

intercalado entre dois versos, no meio do período. Pode representar o

além, o exterior, aquele incêndio distante, que não queima na própria

pele. Pode simbolizar ainda o início de uma catástrofe.

“Vi” com “V” maiúsculo: aparenta ser mais vigoroso; soa forte por iniciar o

período. Pode representar o interior, o local, a imersão numa realidade que

afeta o “eu”, como o fogo na própria casa.

Redundância do “Vi” com “V” maiúsculo: atua como reforço, enfatizando a

gravidade dos fatos, o fogo indomável que se avoluma e destrói vidas.

“vi” com “v” minúsculo: soa fraco, é o fim; representa a extinção das chamas e apresenta o

saldo danoso do flagelo.

Chegamos então, ao miolo, à cratera do vulcão, ao lugar em que os “elementos

ardendo se desfazem18

”:

[...]

Vi Mato Grosso em labaredas

as labaredas como cordas estrangulando

gargantas que se uniam

na música da carne em combustão.

Vi emas atônitas

despenhando ao longo das chamas

e serpentes abrasadoras subindo

pela agitada coluna de fogo.

[...]

Por assim dizer, são esses os versos principais do poema. São a fotografia ou o

filme dessa notícia poética. Neles se concentram a carga e profusão imagéticas, que

resultam de linguagem adequada à expressão dramática, ao ritmo, ao movimento. “Os

tropos e figuras dão início ao grande espetáculo (fanopeia, para Pound) para se

integrarem à imagem sonora (profusão de assonâncias e aliterações) que vai desenhando

e determinando o anagrama iconográfico da ideia” (GONÇALVES, 2010, p. 138). Sob

o simulacro poético, pesa a dimensão da gravidade do fato: o Estado em chamas. As

18

Alusão ao vaticínio apocalíptico: “...e os elementos, ardendo, se desfarão, e a terra e as obras que nela

há se queimarão” (II Epístola de S. Pedro 3:10. In: A Biblia Sagrada, 1998).

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imagens remontam em turbilhão. A repetição do termo “labaredas” em diferentes

posições nos versos e também o gerúndio iniciando um verso e finalizando outro, como

em / despenhando ao longo das chamas / e serpentes abrasadoras subindo /, reforçam a

visualização mental desse remoinho de imagens, dessa / [...] agitada coluna de fogo /

que suga os seres.

O movimento cruzado e espiralado também é notado na aquarela de Richter. As

imagens desses versos, as curvas, a sinuosidade e o movimento da linha se desenham

pelas labaredas, igualmente pela corda, pelo nó que estrangula. Notamos o movimento

marcado pelo gerúndio estrangulando, que comunica uma ação inacabada. Esse mesmo

efeito de continuidade, de ação ou reação não concluída, observamo-lo pelo emprego do

pretérito imperfeito em / gargantas que se uniam / e também pela expressão “carne em

combustão”, evidenciando que a carne continua sendo queimada ou queimando-se.

Ainda alguma efervescência rítmica se assinala pelo movimento do agente: fogo,

cordas; do paciente ou reagente: gargantas, carne em combustão; pelos efeitos: união na

dor comum; o sinestésico chiado da carne em combustão; pela ambigüidade: as

gargantas se uniam por causa do laço apertado ou eram vozes em uníssono, sob mesmo

sofrimento.

Vi emas atônitas

despenhando ao longo das chamas

e serpentes abrasadoras subindo

pela agitada coluna de fogo.

O reflexo da perplexidade ante a calamidade se vislumbra pelo uso do forte

adjetivo, pela proparoxítona “atônitas”: / Vi emas atônitas /. Percebemos os

movimentos verticais, espirais e cíclicos, característicos de massas aquecidas em

deslocamento: despenhando, subindo. Esse ritmo também é marcado pelo uso enfático

do gerúndio, pelo adjetivo agitada, pela idéia de sinuosidade das serpentes

abrasadoras, que se assemelham às labaredas, tanto em forma quanto em mobilidade e

poder destrutivo: / e serpentes abrasadoras subindo /. Da expressão “ao longo” se

obtém a dimensão, a extensão, a amplitude do fenômeno. E assim, como na aquarela de

Richter, a dramaticidade se estampa numa produção que envolve vários elementos

dinâmicos: horizontais em oposição às verticais; diagonais, curvas, espirais e sugestão

de cores quentes pelos termos: incêndios, labaredas, chamas, cozidos, combustão,

abrasadoras, fogo e rescaldo. Essas considerações, sobretudo em relação à

horizontalidade e a verticalidade, encontram ressonância nos estudos de Kandinsky,

quando diz:

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A horizontal [...] corresponde à linha da superfície [...] é, pois, uma

base de apoio fria, que pode continuar em todas as direções. O frio e o

plano são ressonâncias básicas dessa linha, e podemos designá-la

como a forma mais concisa da infinidade das possibilidades de

movimentos frios.

[...] no oposto dessa linha, encontra-se, em ângulo reto, a linha

vertical, em que o plano é substituído pela altura, logo o frio pelo

quente. Assim, a linha vertical é a forma mais concisa das infinitas

possibilidades de movimentos quentes.

[...] a diagonal, esquematicamente vista num ângulo idêntico às duas

linhas precedentes, tendo por isso a mesma inclinação para as duas, o

que define sua sonoridade interna – união em partes iguais de frio e de

quente. Logo a forma mais concisa das infinitas possibilidades de

movimentos frios-quentes. (KANDINSKY, 1997, p. 50,51).

Esse cuidado, o engenho recorrente no labor artístico, lembra a importância do

uso das linhas, das direções, fundamentais na elaboração dramática, como ocorre, por

exemplo, no poema Ismália, de Alphonsus de Guimaraens (in MORICONI, 2001, p.

45). No belo poema, quando Ismália, como um anjo, pende as asas para voar, ela

descreve uma linha resultante, a diagonal, intermediária entre as forças opostas,

imprimidas pela horizontalidade fria, passiva do mar, e pela enérgica verticalidade da

torre, que liga céu e mar, numa associação de “ideias de elevação e de transcendência”

(OSTROWER, 2004, p. 31). Promovendo essa aproximação entre os poemas ensejamos

exaltá-los como obras de elevada sensibilidade e rigor técnico.

2. 3. 3 – O contraste

Dependendo do emprego, os contrastes podem funcionar como redutores ou

intensificadores do movimento. Zonas de contraste, por exemplo, áreas em que linhas

se cruzam ou adensam-se “criam em nossa percepção o equivalente a obstáculos a

serem transpostos” (OSTROWER, 2004, p. 15) e, naturalmente, ocorre sensível redução

do movimento, devido ao aumento do peso visual. Por outro lado, contrastes que advém

de intensas variações cromáticas ou luminosas podem servir ao artista como soluções

rítmicas a incrementar a dramaticidade, como numa pintura barroca, por exemplo: “O

barroco penetra o espaço em profundidade, obrigando o olho a avançar ou retroceder

diante dos jogos violentos de contrastes entre as imagens (WÖLFFLIN, 1915 apud

BOSI, 1986, p. 39). Esse efeito vibratório de avanço/recuo simultâneos, como vimos,

evidencia espaços de profundidade, que implicam em questões temporais.

Retomando o poema Vagarosas, sombrias, em que analisamos principalmente o

uso do intervalo e pausa, observamos nele cuidadosa elaboração formal, rítmica,

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semântica, sintática. Nesse momento de nosso estudo, fixar-nos-emos nos contrastes,

nas estruturas sígnicas capazes de modificar o movimento, o ritmo.

No aspecto estrutural do poema, observamos que este se segmenta em três

estrofes irregulares. A primeira, bastante longa e densa, contrasta visualmente com as

duas últimas, bem menores, mais ligeiras. Essa diferenciação formal pode atuar como

índice de mudança de andamento, impondo ou sugerindo maior velocidade no final da

obra. O conteúdo sintático-semântico também confirma esse pensamento:

De súbito, uma sacada com flores vermelhas.

Além da circunstância temporal expressa pela locução adverbial de forte

impacto sonoro, / De súbito, [...] /, note-se como outro verso / Sem perda de tempo [...] /

também carrega-se de significações temporais. E mais, a poeta utiliza-se do contraste

cromático para valorizar um foco de interesse, o importante momento da quebra da

monotonia, que se instaurara desde o título até o último verso da primeira, longa e

cadenciada estrofe. Os contrastes ainda podem ser observados pelas antinomias,

antíteses, e demais oposições como: flor/podre; movimento/não-movimento;

cor/sombra; silêncio/grito; instável/fixo; pálido/vívido; súbito/nunca; fundo/superfície

etc. Talvez o nome que condense esses aspectos esteja no verso / o choque interno do

seu sangue. /, o termo “choque”, entre outras possibilidades, pode significar colisão, o

que implica necessariamente em movimento; pode expressar energia, vibração, impacto

da cor.

Entendemos que a ambiguidade possa ser comparada ao efeito vibratório do

contraste simultâneo, que comentamos no primeiro capítulo. Nas artes visuais, o

contraste pode promover uma alternância na percepção de profundidade e tempo. “Nos

elementos luz e cor”, diz Fayga, “também existe a profundidade do espaço, mas [não

havendo] referências visuais de diagonalidades, largura e altura, não será uma

profundidade tridimensional” (OSTROWER, 2004, p. 73). Por analogia, podemos dizer

que a ambiguidade se aproxima do contraste, no sentido de gerar certa instabilidade ao

permitir leituras diversas, e mesmo simultâneas. Vejamos o terceiro período do poema

Mato Grosso em Labaredas:

Vi Mato Grosso em labaredas

as labaredas como cordas estrangulando

gargantas que se uniam

na música da carne em combustão.

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Nesses versos, importantes ambiguidades auxiliam na modulação que define “a

altitude da obra e o grau de poeticidade que atingiu” (GONÇALVES, 2010, p. 28).

Instaura-se a hesitação que nos leva a questionar: seria o apertado laço mortal, / as

labaredas como cordas estrangulando /, o principal agente a fazer com que as gargantas

se unissem naquele ou ante aquele terrível som de carne em combustão, ironicamente

chamado música? Ou seria o unissonante clamor de vozes das / gargantas que se uniam /

no gemido último da dor comum? Ou tudo isso, ou nada disso?

2. 3. 4 – A nitidez e o esmaecimento

Se uma execução muito nítida é necessária,

isto se dá para que o sonho seja muito nitidamente traduzido.

Baudelaire

Quanto ao desvanecimento, ao esmaecimento ou à indefinição das formas,

acreditamos sejam recursos estilísticos ou técnicas que despertam o interesse, que

estimulam a curiosidade ao provocarem certa inquietação, pelo poder de sugestão que

carregam, predicados favoráveis ao trabalho artístico. Nesse sentido, assim diz

Gonçalves: “[...]Ao ler um poema [...], surgia em minha mente uma espécie de

diagrama, delineando um desenho [...] quanto menos se definia o desenho, mais

enriquecedor se tornava o fenômeno para o meu espírito” (GONÇALVES, 1997, p. 58,

59). Interessante observar que o pesquisador utiliza o termo desenho para impressões

obtidas durante a leitura ― de um poema, por exemplo. E relacionando com observações

de obras pictóricas, diz ele: “a mesma sensação de avesso me atravessava o espírito: as

relações entre categorias plásticas determinavam o indefinível que só o poema

conseguia engendrar” (ibidem, p. 59). Observemos o desenho nessa aquarela de Olson,

publicado em Curso de desenho e pintura – Aquarela: técnicas básicas, p. 9, pela

Editora Globo, em 1996.

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Imagem 1 – Meredith Ann Olson, aquarela sobre papel, 51 x 72 cm

A pintura, diz o editor, e o notamos também, “tem forte aura de mistério.

Sabemos que se trata de uma paisagem, mas mesmo assim o trabalho permanece

desafiadoramente vago. As formas são apenas sugeridas, convidando o observador a

imaginar como seria a cidade que aparece à distância” (GLOBO, 1996, p. 9). Ao fundo,

os contornos indefinidos pela névoa que filtra a paisagem distante, aparentam elementos

típicos de uma pintura impressionista, tornando o trabalho mais instigante, como um

apelo à visitação, um desafio ao desvendamento.

Vejamos, então, alguns versos do poema Eu sonho

Quando tuas camisas flutuam ao sol

limpas e vagamente primorosas

não penso em teus poros

[...]

Quando tuas camisas se agitam ao sol

divinamente vagas, eu sonho.

[...]

(“EU SONHO”. Ser cotidiano, 1998, p. 36)

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e também de História, tendo em mente alguns desses intrigantes aspectos do

impressionismo na arte:

[...]

Mal amanhece e sem tocar o chão

ela flui séria e franzina

[...]

No diminuto quintal mal cabe o cachorro.

Há um neto que se esgueira entre as galinhas

e os eflúvios das camisolas ao sol.

[...]

(“HISTÓRIA”. Ser cotidiano, 1998, p. 32)

Observamos nesses versos a intenção poética de apreensão do instante, do

efêmero, flagrado num tempo fugidio, em que se valoriza, sobretudo, a percepção da

mutabilidade dos seres pela ação natural do vento, da luz ou de outro elemento que

altere a aparência das coisas, como nas palavras da poeta, no poema Stazione: / Os

resíduos urbanos / distorcem as luzes normais / e também na entrevista: “Uma

dimensão existencial e social que vi destituída de sofisticação, nas gradações cinzentas

de um fim de dia”19

. Essas palavras de Persona vibram na mesma freqüência do

comentário de Proença Filho: “O que importa apresentar é o estado de espírito num

momento dado, provocada tal situação por algum acontecimento exterior” (2004, p.

289).

Pois então, notamos esse movimento interno causado por impressões externas,

como segue: no fluir do tempo, enfatizado pela redundância do pronome Quando; no

andamento rítmico lento / rápido, ou suave / frenético, das camisas que / [...] flutuam

[...] / ou / [...] se agitam ao sol /; na aparência dos objetos que se modifica pela ação do

vento, pela luz do sol que revela a pureza dos matizes, expressos pelos adjetivos plurais

“limpas” e “primorosas”; e também pela riqueza do colorido que o termo “sonhos”

conota; a imprecisão da formas sugeridas pelos advérbios em / [...] vagamente

primorosas / e em / divinamente vagas, [...] / e o reforço pelo adjetivo plural “vagas”.

Num comentário sobre a repercussão inicial da tendência impressionista na pintura,

Hauser aborda esse aspecto da representatividade pelo uso de formas imprecisas:

19

A entrevista completa com Lucinda Persona encontra-se nos anexos.

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Embora as obras impressionistas apresentassem um estilo

aristocrático, elegante, sensível, o público não as entendeu; sentiu

mais a perda do que o ganho com as novas formas expressivas;

encarou como provocação a rápida execução e o aspecto informe das

representações (HAUSER, 1995, p.901).

Quanto ao poema História, os aspectos comentados são recorrentes: na marcação do

fluir do tempo: / Mal amanhece e sem tocar o chão /; na restrição espacial que reforça o

casual, o instante: / No diminuto quintal mal cabe o cachorro. /; nos efeitos dos

elementos naturais, vento, luz, sobre os objetos: / e os eflúvios das camisolas ao sol. / e

no movimento expresso pela locução verbal em: / Há um neto que se esgueira entre as

galinhas /. Assim, nessa análise, consideramos o que diz Hauser: “Toda tela [ou poesia]

impressionista é o depósito de um momento no perpetuum mobile da existência, a

representação de um equilíbrio instável, precário, no jogo de forças contendoras”

(HAUSER, 1995, p. 897).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos até este ponto, e acreditamos que nosso trabalho não terá sido em vão

se a visão que temos da obra poética de Lucinda Persona aproxima-nos das palavras

proferidas por Herbert Read acerca da monumentalidade da técnica pictórica de Edvard

Munch: “As linhas cercam os planos, e estes planos, em termos de tinta, são tão

definidos em forma, tão intensos em cor e tão firmemente organizados em um sentido

estrutural, que assumem a profundidade e a atmosfera das coisas sólidas” (1972, p. 61).

Talvez, dentro dos limites em que se inscreveu esse nosso plano, tenhamos de

alguma forma compreendido melhor nosso objeto, seja pelo ritmo das linhas que nos

acercaram, pelo desenho que se configurou nesse percurso, pela imersão no colorido das

linguagens ou pela tensão quanto ao volume do estudo dentro do tempo proposto e,

como / Coisa alguma está às claras /, pela dúvida num e noutro ponto. “Nem tudo é

visível e compreensível, ou ─ dito de outro modo ─ sob o visível e o compreensível

escondem-se o invisível e o incompreensível” (KANDINSKY, 1997, p. 123).

Ao “concluir” esse trabalho, sentimos partilhar um pouquinho daquele momento

feliz de Klee, aquela suavidade no espírito, advinda da conquista, ainda que parcial, desta

linguagem de fronteiras indefiníveis, a Poesia: “Deixo agora de trabalhar. Compenetrei-me

no ambiente de uma maneira tão suave que, sem esforço, me sinto cada vez mais seguro. A

cor me domina, não a necessito procurar. Me possui, sei-o bem. Tenho aqui o sentido deste

momento feliz: eu e a cor somos UM. Sou pintor” (KLEE). Entretanto, ainda que

compreendemos estar longe do pleno domínio desse ambiente, há um desejo firme de

adentrar mais profundamente o espaço da pesquisa, de maneira tal que o ser se integre e

seja apenas extensão, veículo do saber, projetando suas hastes para além dos muros do

medo e da incerteza.

Devemos procurar alguma explicação mais ampla na vida espiritual

dos povos envolvidos ─ pois a ciência da arte é no fim de contas a

ciência da psicologia humana, e as mutações da história da arte são

apenas parte do processo fundamental que governa todo

desenvolvimento na história humana: “o ajustamento variegado e

decisivo do homem ao mundo externo”20

(READ, 1972, p.83).

20

Read dá o devido crédito da frase ao incluir esta outra em seu texto: “Essa última frase é citada de

Forma no Gótico de Worringer (READ, 1972, p. 83).

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Ao lermos Identidade21

espalmamos a mão, a poesia acontece ─ porque arte é

sonho pego a laço, poesia é emoção. E porque finitos, uma vez nosso, o sonho nos

acossa, instiga-nos, estraçalha nosso temor, cobre-nos de descaminhos, transparência de

possibilidades sem data de vencimento, pois / [...] Sem os sonhos / não somos nada /

Talvez apenas / excessivas distâncias / (PERSONA, 2009, p. 55). Montados no dorso do

sonho, transcendemos o limiar das plenitudes, sondamos universos, cruzamos as janelas

da arte, e encontramo-nos a vaguejar na expansão.

21

Poema do livro Ser cotidiano (PERSONA, 1998, p. 11).

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ANEXOS

Entrevista com Lucinda Persona

1 – Prezada Lucinda, aos treze anos você percebeu que cresceu para imagens!

Aproximadamente, com que idade essas imagens se conformaram em palavras, em

poemas?

Essa indagação, tão cristalina, exige que eu use alguns dados biográficos.

Quando remonto ao passado, num exercício retroativo que me é sempre agradável pelo

que lá encontro, em termos de paisagem natural e outras tantas, eu verifico que bem

cedo, antes dos três anos de idade, já era atenta ao entorno. Nasci numa fazenda, no seio

de um ambiente rico em árvores, pastagens, riachos, animais, nuvens, sol, vento, chuva.

Depois, quando minha família se transferiu para a cidade, encontrei outra gama de

elementos paisagísticos que me impressionaram. Antes dos dez anos, quando eu já

travara milhares de diálogos com o cosmo, tive momentos especiais de descoberta e

afirmação do futuro com as letras. Um dos momentos surpreendentes foi ouvir de uma

professora a leitura de belíssima história e saber que por trás das mágicas aventuras

havia uma autora, alguém que escrevera. Depois, a leitura de um poema de Cecília

Meireles, num jornal, foi outra experiência intensa com a palavra e o que pode causar

no espírito. Experiência que acrescentou fascínio, complexidade, tumulto e

possibilidades em minha existência.

Quando escrevi o poema Ponte dos suspiros, o verso de abertura: Cresci para

imagens, foi uma manifestação do efeito das imagens em meu espírito. Já referi em

outros momentos e resgato agora que em minha escrita a paisagem é um componente

imprescindível. A visualização do entorno é muito importante. As formas e as cores são

substanciais. José Saramago, no início de seu romance Levantado do chão diz: o que

mais há na terra é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre

sobrou. E concordo plenamente com a magnífica expressão do escritor. Não dispenso

paisagem, seja natural ou plasticamente criada. E assim a poesia se cumpre.

2 – “Stazione” é um poema riquíssimo, não apenas na habilidade construtiva, mas

principalmente pelo peso e densidade que flutuam sob a luz distorcida pelos

resíduos humanos. Seria esse ambiente na Itália? E, por que a Europa? A “Ponte

dos Suspiros” também acentuou a escolha?

A poesia se produz do envolvimento dos sentidos com as coisas do mundo, num

misto de conforto e inquietude. Dessa relação do poeta com o todo surge o poema. E

assim aconteceu com Stazione Santa Maria Novella. Essa estação fica perto de uma

igreja com o mesmo nome e faz parte do cardápio turístico da italiana Florença, que

visitei com redobrada atenção por ser a cidade de Dante Alighieri, cuja obra, Divina

comédia, eu pude conhecer pela primeira vez aos quatorze anos de idade.

Embora aquela estação seja um local de certo modo comum, não deixou de me

surpreender. E até assombrar. Assim como me assombrariam, provavelmente, outras

estações do mundo. Lá, no meio do povo, do trânsito, dos camelôs e do ar poluído, foi

desencadeada a sensação do proverbial “peso trágico” de um cotidiano alheio. Uma

dimensão existencial e social que vi destituída de sofisticação, nas gradações cinzentas

de um fim de dia. Saltou-me aos olhos o desassossego. Algo que eu não podia medir.

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Havia na fisionomia diferente uma espécie de cansaço ambulante, uma tensão entre os

passageiros daquela hora. Hora que era de todos e de ninguém. Aquela atmosfera e

aquela gente que me pareceu intranqüila e apenas do trabalho ficaram integradas à

minha memória e reapareceram no poema, através de um exercício de recordação e

reconstrução. No fundo, uma necessidade de explorar a realidade comum, independente

do lugar.

3 – “A chuva esconde o horizonte e alisa / a ausência de uma cova”. Em que

momentos ou estado de espírito uma imagem ausente vem vibrar assim pra você?

Eis uma questão que remete diretamente ao processo de elaboração e também à

realidade do poema em si. De fato, um poema possui elementos externos mais aparentes

e elementos internos de alcance mais difícil. Posso acrescentar que costumo produzir

em duas condições. Uma, no distanciamento, com base apenas na memória,

transportando-me para perto do objeto de poesia ou vice-versa. Outra, é uma elaboração

estimulada por uma presença concreta do objeto. É quando meu lado visual fala mais

forte. O código de barras foi escrito exatamente numa época chuvosa, na comunhão

com a paisagem e na reflexão sobre o futuro do corpo mortal. Sim, a chuva esconde o

horizonte, não deixa ver o horizonte e alisa a ausência de uma cova: a minha ou a de

qualquer outro que esteja vivo.

4 – A sua sensibilidade, Lucinda, há que se viver na sua poesia, pura magia que dá

vida mesmo a um toco de lápis. Os grandes poetas, desde tempos imemoráveis,

conluiam-se na alquimia da vida. O seu poema “Primeira Escrita” é como um

convite a Cora Coralina: “venha, vamos „inventar com ventos e horizontes

indeterminados‟”. Você acredita que os grandes poetas, como você, sempre se

encontram e conversam em seu silêncio mudo?

Quanta coisa importante acerca da poesia nessa questão. E quanta coisa generosa

na parte que me corresponde. Mas, falemos da poesia com seus méritos e

encantamentos, e dos poetas sem os adjetivos. Dos poetas, simplesmente, como

indivíduos do mundo, como seres no plano do sensível, como seres que experimentam a

estética dos sonhos e a linguagem dos espantos (que o Mario Quintana tanto gostava).

Sim, os poetas interagem na dimensão de suas obras, estabelecem um diálogo

secreto através dos tempos. Um tipo de conversa que independe da concretude dos

corpos, semblantes, orelhas ou vozes. Um tipo de conversa através do silêncio e da

distância no espaço e no tempo. Um tipo de conversa que desvela a poesia como um

fenômeno, antes de tudo, espiritual.

5 – Há muito de percepção visual em sua poesia que nos remete à pintura. E em

outro poema seu encontramos esses belos versos, de ritmos e movimentos

maravilhosos: “Minhas mãos fanáticas por tela e teclas, estão agora a meio

caminho das suas”. Além da poesia, você tem ou já teve alguma interação mais

íntima com as artes plásticas?

Não. Nunca tive uma proximidade mais concreta com tela, pincéis e tintas.

Gosto de desenhar e desenho bastante em minhas aulas de Histologia e Embriologia.

Digo sempre que faço “giz sobre quadro negro”. Às vezes, desenho em cartões que

envio aos amigos. Como certa vez, num momento de correspondência com Manoel de

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Barros, desenhei um caracol e como resposta o poeta escreveu: “obrigado pelas suas

palavras e pela boa lesma do cartão: esse ente que se reside”.

Por outro lado, talvez seja útil comentar o diálogo poético que faço com a

pintura a partir do poema A melhor convocação:

A melhor convocação

sempre feita pelos ventos

nos horizontes vazios

chamando o que a eles pertence:

silhuetas de barcos e pássaros

para quem está no cais

e põe devoção no mar

E barcos acabam chegando

sem que se saiba de onde

e negros pássaros ao fundo

contra o poente laranja.

Esse poema teve como motivação justamente um óleo sobre tela com todos os

elementos citados num entardecer. Um dos versos, silhuetas de barcos e pássaros, foi

destacado num autógrafo do casal Jorge Amado e Zélia Gattai em resposta ao meu

primeiro livro. E gostei de perceber que aos escritores chamou a atenção algo que fazia

parte da paisagem real e ficcional de suas vidas.

Esperando não cair em excesso, gostaria de referir também que o meu gosto pela

pintura transparece nas capas dos meus livros, todos com obras de artistas plásticos

locais. O Ser cotidiano, por exemplo, tem na capa uma couve-flor de Regina Veloso.

Quando enviei o livro ao poeta Antônio Carlos Secchin, recebi um cartão réplica com

pintura de Edouard Manet retratando um feixe de aspargos. Creio que aqui está mais um

registro de compreensão e expressão entre poetas. De percepção da matéria e das

intenções. Enfim, uma trama ardilosa típica da poesia.

6 – Num de seus poemas você diz guardar os belos invólucros de sabonete. Teria

esse detalhe alguma relação com o seu fazer artístico?

Geralmente, a totalidade do que acontece repasso para a escrita. O que realmente

comigo se passa na prática é uma absoluta observância do comum. Por muito prezar a

vida, tudo me parece importante. Nada é pequeno. Nada é mais rico do que a miudeza, a

coisa mínima. A poeira tem sentido. A poesia também pode estar aderida à poeira.

Especificamente no poema Seiva de alfazema, fui movida pela imagem de um campo de

alfazemas, imagem essa estampada no invólucro do sabonete. Por muito tempo, guardei

esse motivo, até encontrar a linguagem que favorecesse a projeção dos sentimentos em

torno daquela realidade banal, mas significativa aos meus olhos.

7 – Quando você diz de você, é belo também o vislumbre de seu companheiro. Em

sua experiência, você poderia nos falar um pouco sobre o que significa para um

homem ter uma esposa-poeta e poeta-esposa?

De início, não sei se saberia explicar essa condição ou mesmo oferecer um

panorama de significados. Em todo caso, tentarei, de acordo com minha vivência e

modo de ser.

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Por um lado, a poesia ocupa todos os espaços do meu dia a dia. Porém, é muito

mais o espaço da memória, do psiquismo. Minha disponibilidade de espírito para a

poesia é integral. Entretanto, existe a vida prática. O tempo consumido com a família e

o trabalho. Há uma necessidade de administrar tudo. Nesses termos, a poesia acaba

perdendo em tempo real. O que me põe num estado íntimo dividido. Será que esse

dilema tem ressonâncias ou uma aura de significados?

Por outro lado, é necessário abordar também essa complexidade inerente a

muitas criaturas e, creio, a todo poeta, ou seja, o modo especial de ver o mundo, de

achar que a vida não se resume ao que se vê e ao que se vive. É preciso acrescentar que

a poesia, embora faça um bem enorme, traz consigo um buquê de perfumes estranhos,

principalmente os da insatisfação e da incompletude. Um estado de busca de algo que

não se sabe ao certo o que é. Uma atração pelos mistérios, pelo efêmero e pelo eterno,

um debate entre os opostos, esperança e desesperança, otimismo e desencanto. Sem

contar a incrível necessidade de silêncio.

Há muito a dizer, porém me detenho para perguntar: tudo isso reflete no

companheiro? E se reflete, é um elemento complicador ou não? Significa para ele ser

mais compreensivo e mais paciente? Significa um aprendizado sobre como lidar com

um drama que ao fim e ao cabo está na pura intimidade do (da) poeta?

8 – Os seus poemas são tão ricos em movimento que, por vezes, como num filme, as

imagens nos surpreendem. Que vivências despertam em você essas imagens, esse

ritmo envolvente?

Em princípio, qualquer vivência pode ser base para a escrita, toda experiência

em si, os lugares reais, as coisas reais são motivos. E depois, já na elaboração do poema,

vem a necessidade de uma linguagem que favoreça a projeção dos sentimentos. De uma

linguagem que na estrutura fixa do poema recupere tudo: forma, tamanho, peso,

policromia, sons e movimento. Acho fantástico o movimento daquilo que está parado,

como é o caso de um poema na folha de papel.

9 – Creio que podemos afirmar ser a cor um traço expressivo em sua obra. Em A

Cidade sem Sol, o fenômeno do lusco-fusco parece mesmo dar relevo e brilho as

cores, as quais se acentuam pelo contraste, como se observa neste trecho do

capítulo: O desastre ecológico.

(...) As plantas e os insetos haviam sofrido curiosa modificação na cor. Os

vários tons de verde, que antes predominavam nas folhas e caules, foram

desbotando, até se perder. As folhas adquiriram a cor de prata fosca. As

borboletas imitaram as folhas prateadas, e os insetos, de um modo geral,

cor de prata se tornaram. Não mais se viam os besouros azuis e amarelos,

nem as fabulosas joaninhas pintadas. Outros animais também perderam a

cor. Os lagartos, originalmente verdes, apareciam como esbranquiçados

monstrengos nos jardins destruídos.

(...)

Caso você estivesse proibida de usar as cores, que elementos tomaria na hipotética

reescrita dessa sua obra poética? Seria possível preservar a existência de A Cidade sem

Sol?

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Antes de tudo, fico contente que a leitura de minha obra tenha provocado esse

enfoque. E que questão difícil essa. Também desafiante e instigadora. Acho que A

cidade sem sol sem as cores seria “a treva”, roubando a expressão da menina Bianca,

personagem da telenovela: Caras e bocas. Treva – inquietante expressão.

Entretanto, como fugir das cores? Elemento tão presente na vida humana desde

sempre? Embora se saiba que muitas obras artísticas já se concretizaram sem a realidade

da cor. Como fugir das cores que têm maravilhado todos os mortais e sido objeto de

estudo e paixão de muitos profissionais, cientistas, pintores, poetas? Como fugir das

cores quando temos luz e órgão da visão?

Mas vamos à resposta específica. Creio que, impedida de usar as cores, com

certeza A cidade sem sol deixaria de existir como tal, pois luz e cores são os

ingredientes mais fortes e decisivos da história.

Isso me leva a refletir em que medida a cor está presente em minha escrita e no

seu papel em meu processo criativo. E indo um pouco mais longe (ou mais perto?)

gostaria de colocar um súbito e vivo desassossego ante a perspectiva da vida desligada

da luz.

Lucinda Persona

Cuiabá,15/05/2009

P.S. Agradeço imensamente a oportunidade desta entrevista, encarecendo que foi uma

experiência importante para a minha reflexão em torno daquilo que escrevo. E escrever,

além de motivo de alegria é sempre uma espécie de jornada. Peço perdão se por vezes

me perdi no caminho ou se na caminhada ocupei muito tempo no refletir e agir para dar

corpo ao texto.

Obs.: Gostaríamos, se possível, de sua autorização para publicação no sítio da UFMT.

Sim, Renato, eu autorizo a publicação da entrevista conforme achar conveniente.