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2021 Renato Brasileiro de Lima Manual de Processo Penal volume único 10 ª edição revista atualizada ampliada

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Page 1: Renato Brasileiro de Lima - Editora Juspodivm

2021

Renato Brasileiro

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10ªedição

revista atualizada ampliada

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

TÍTULO

2JUIZ DAS

GARANTIAS

1. SUSPENSÃO CAUTELAR DA EFICÁCIA DOS ARTS. 3º-A A 3º-F DO CPP (STF, ADI 6.299 MC/DF, REL. MIN. LUIZ FUX, J. 22/01/2020)

Na condição de Relator das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (j. 22/01/2020), todas ajuizadas em face da Lei n. 13.964/19, o Min. Luiz Fux suspendeu sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implan-tação do juiz das garantias e de seus consectários (CPP, arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F), afir-mando, ademais, que a concessão dessa medida cau-telar não teria o condão de interferir nem suspender os inquéritos e processos então em andamento, nos termos do art. 11, §2º, da Lei n. 9.868/95.

Sem embargo de a referida medida cautelar ter acarretado a suspensão da eficácia da integralidade dos dispositivos normativos abordados no presente Título do nosso Manual de Processo Penal, o qual, aliás, sequer existia na edição anterior da nossa obra, reputamos válido – e até mesmo honesto com o leitor – procedermos a uma análise minuciosa, detalhada e crítica de toda a sistemática pertinente à criação do juiz das garantias pela Lei n. 13.964/19, até mesmo porque sua constitucionalidade (formal e material) ainda será objeto de apreciação pelo Plenário do Supremo Tribu-nal Federal, que poderá confirmar (ou não) a decisão proferida pelo Eminente Min. Luiz Fux.

2. NOÇÕES INTRODUTÓRIASNosso Código de Processo Penal (Decreto-Lei

n. 3.689, de 3 de outubro de 1941) entrou em vigor em pleno Estado-Novo, mais precisamente no dia 1º de janeiro de 1942, tendo nítida inspiração no modelo fascista italiano que deu origem ao deno-minado Código Rocco de 1930.1 Daí, aliás, a opor-

1. Prova disso, aliás, é a Exposição de Motivos do CPP, que, no seu n. II, salienta: “De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha--se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação

tuna observação feita por Fauzi Hassan Choukr, no sentido de que “conhecemos uma história legisla-tiva republicana sem que tenhamos um Código de Processo Penal integralmente nascido da atividade democrática parlamentar”.2

Desde então, sem embargo da abertura demo-crática consumada no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a incorporação de inúmeros Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos ao nosso ordenamento jurídico, desta-cando-se, dentre eles, o Pacto de São José da Costa Rica, nosso Código sofreu apenas alterações pon-tuais, como, por exemplo, a mudança da sistemá-tica atinente ao interrogatório (Lei n. 10.792/03), procedimento do júri (Lei n. 11.689/08), prova (Lei n. 11.690/08), procedimento comum (Lei n. 11.719/08), e, mais recentemente, a alteração de dispositivos do CPP relativos às medidas cautelares de natureza pessoal (Lei n. 12.403/11). A estrutura básica da legislação processual penal, porém, foi mantida, e ainda se encontra alicerçada em bases inquisitoriais oriundas do regime totalitário vigente durante a 2ª Guerra Mundial. Prova disso, aliás, é a subsistência de dispositivos legais – de duvidosa constitucionalidade e convencionalidade – que au-torizam o próprio juiz a requisitar a instauração de

repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituo-sa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contempori-zar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum (...) No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal avisado favorecimento legal aos criminosos (...) É ampliada a noção de flagrante delito... A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade para ser um dever imposto ao juiz, adquire a sufi-ciente elasticidade para tornar-se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal”. (nosso grifo).

2. CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários con-solidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 2).

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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

um inquérito policial (CPP, art. 5º, II),3 a decretar de ofício a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes ou a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante, seja na fase investigatória, seja na fase processual (CPP, art. 156, incisos I e II, respectivamente), ou que auto-rizam o próprio juiz a realizar pessoalmente uma busca domiciliar (CPP, art. 241).

Era premente, portanto, a mudança da nossa legislação processual penal como um todo, para que sua estrutura fosse, enfim, adaptada à nova or-dem constitucional e convencional, notadamente ao sistema acusatório (CF, art. 129, I) e à garantia da imparcialidade (CADH, art. 8º, n. 1). Afinal, não se pode mais compreender o processo penal como um mero instrumento necessário para o exercício da pretensão punitiva do Estado. Muito além disso, o processo penal há de ser compreendido como uma forma de tutela dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Para tanto, é dizer, “para que tenhamos um processo ético, limpo, sem surpresas, equilibra-do, com regras definidas e conhecidas, e que valoriza o ser humano”,4 este deve ser concebido como um processo de partes, em que as atividades de acusar e julgar estejam efetivamente distribuídas a diferentes personagens, estruturado sobre um procedimento em contraditório, cabendo às partes desenvolver a atividade probatória com o objetivo de convencer um julgador imparcial, a quem é dado decidir de maneira subjetivamente desinteressada.

É dentro desse contexto que surgem, então, os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3ºD, 3º-E e 3º-F, introduzidos no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19: o primeiro deles, após dispor que o processo penal terá estrutura acusatória, veda expressamente a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação; os demais passam a prever a figura do juiz das garantias, dora-vante responsável pelo controle da investigação cri-minal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, ficando impedido de mais adiante funcionar na instrução e julgamento do mesmo feito.

Cuida-se, a Lei n. 13.964/19, do produto final do chamado “Pacote Anticrime”, projeto de lei apre-sentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao

3. Recentemente, o Min. Dias Dias Toffoli, na condição de Presidente do Supremo Tribunal Federal, determinou, de ofício, com fundamento no art. 43 e seguintes do RISTF, a instauração de inquérito “para apurar a existência de notícias fraudulentas (“fake News”), denunciações calu-niosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, difamandi e injuriandi, que estariam supostamente atingindo a honorabilidade e a segurança daquela Corte, de seus membros e familiares” (Portaria GP n. 69, de 14/03/2019 – Inq. 4.781), designando, para a condução do feito, o eminente Ministro Alexandre de Moraes.

4. GIACOMOLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal: considera-ções críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 13.

Congresso Nacional, em 19 de fevereiro de 2019, cujo propósito era o de atualizar a legislação criminal e o processo penal, sistematizando as mudanças em uma perspectiva mais rigorosa no enfrentamento à criminalidade, teoricamente em consonância com o anseio popular expressado nas eleições presiden-ciais de 2018. No mês de março de 2019, a Câmara dos Deputados criou uma Comissão para apreciar o referido “Pacote”, que passou a trabalhar, em pa-ralelo, com uma proposta alternativa, elaborada, no ano de 2018, por um grupo de juristas encabeçado pelo Ministro Alexandre de Moraes. Curiosamente, porém, a vedação explícita à iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação (CPP, art. 3º-A) e a figura do juiz das garantias (CPP, arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F) não constavam de nenhum desses dois projetos. Na verdade, foram ali inseridos através de emenda, reproduzindo, em grande parte, o conteúdo referente à matéria que integrava o Projeto de Lei n. 8.045/2010 (Projeto de Lei do Senado n. 156/09), destinado à criação de um novo Código de Processo Penal, que até já fora aprovado pelo Senado Federal, mas que ainda aguarda apreciação por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados.

Independentemente de como se deu a introdu-ção desses artigos no Projeto que deu ensejo à Lei n. 13.964/19, fato é que a sua legítima aprovação pelo Poder Legislativo, referendada, indiretamente, pelo próprio Presidente da República, que poderia vetá--los, mas não o fez, representa, pelo menos enquanto não aprovado o Projeto de Lei que visa à criação de um novo Código de Processo Penal, a maior revolu-ção já experimentada pela legislação processual penal pátria desde 1942, que poderá, enfim, se ver livre de uma estrutura marcantemente inquisitória que sempre a orientou. Passemos, pois, à análise dessa mudança de paradigma que os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, todos do CPP, deverão produzir no seio do nosso Código de Processo Penal.

3. ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO PROCESSO PENAL

CPPANTES da

Lei n. 13.964/19

CPPDEPOIS da

Lei n. 13.964/19

Sem correspondente. Juiz das GarantiasArt. 3º-A. O processo pe-nal terá estrutura acusató-ria, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.’

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

3.1. Da suspensão da eficácia sine die do art. 3º-A do CPP introduzido pela Lei n. 13.964/19

A despeito de o art. 3º-A ter sido introduzido no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19 no capítulo denominado “Juiz das Garantias”, ao lado, portanto, dos arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, com eles não guarda nenhuma relação. Trata-se, na verdade, de uma mera ratificação da estrutura acusatória do nosso processo penal, em fiel obser-vância ao art. 129, inciso I, da Constituição Fede-ral, do que deriva a conclusão de que seria vedada qualquer inciativa do juiz na fase de investigação, bem como a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Daí a nossa surpresa com a decisão proferida pelo Min. Luiz Fux por ocasião da apreciação da medida cautelar nos autos das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (j. 22/01/2020). Apesar de o art. 3º-A do CPP não guardar nenhuma relação com o juiz das garantias, porquanto apenas enuncia postula-dos básicos do sistema acusatório, foi colocado no “mesmo bolo” que os arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F do CPP para fins de suspensão de sua eficácia, senão vejamos: “(...) suspendo sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e seus consectários [arts. 3º-A, 3º-B, 3ºC, 3º-D, 3º-E, 3º-F, do Código de Processo Penal] (...)”.

Sem embargo da suspensão sine die da eficácia, ad referendum do Plenário, do art. 3º-A do CPP, que não guarda nenhuma relação direta com a figura do juiz das garantias, reputamos oportuno comentar todas as possíveis mudanças que a sua introdução pela Lei n. 13.964/19 será capaz de produzir no âmbito da nossa legislação processual penal como um todo, haja vista a possibilidade de o Plenário da Suprema Corte, tão logo pautada a decisão das diversas ADI’s ajuizadas contra o Pacote Anticrime, revogar a decisão monocrática do Min. Luiz Fux.

3.2. Gestão da prova pelo magistrado: a veda-ção da iniciativa acusatória do juiz das garan-tias e da iniciativa probatória do juiz da instru-ção e julgamento

Para a estruturação de um sistema verdadei-ramente acusatório, não basta a separação das fun-ções de acusar, defender e julgar. Para além disso, é de todo relevante que o juiz não seja o gestor da prova, cuja produção deve ficar a cargo das partes. Afinal, enquanto o juiz não se mantiver estranho à atividade investigatória e instrutória como um mero observador, tendo liberdade para produzir atos investigatórios e probatórios de ofício a qual-quer momento da persecução penal, não há falar em

um magistrado verdadeiramente imparcial, é dizer, um terceiro desinteressado em relação às partes. A chave para a compreensão dos sistemas acusatório e inquisitório recai, portanto, sobre a gestão da prova e sobre os princípios dispositivo (iniciativa proba-tória exclusiva das partes) e inquisitivo (atividade probatória a caráter do magistrado), que lhes são, respectivamente, regentes.

Quando se fala, pois, em um sistema acusa-tório, como aquele explicitamente adotado pela Constituição Federal (art. 129, inciso I), que atri-bui à pessoa diversa da autoridade judiciária a titularidade da ação penal pública, há de se ter em mente que estamos falando de um modelo democrático, cujo núcleo (gestão da prova), vin-culado ao seu princípio informador – dispositivo –, orientará uma atividade judicial imparcial, quer durante a fase investigatória, quer durante a fase judicial, respeitando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa, na busca limitada da verdade processual, jamais real.5 Não basta, pois, pensar o sistema acusatório baseado exclusivamente na separação inicial das atividades de acusar e julgar. Afinal, como observa Aury Lopes Jr.,6 de nada adianta uma separação inicial, com o oferecimen-to de uma denúncia pelo Ministério Público, se, na sequência, ao longo de toda a marcha proce-dimental, ao juiz for outorgado um papel ativo de protagonismo na busca pela prova ou até mesmo na prática de atos típicos da acusação.

Noutro giro, quando se pensa em um sistema inquisitório, ter-se-á um modelo claramente auto-ritário, cujo núcleo (gestão da prova), vinculado ao seu princípio informador (inquisitivo), orientará uma atividade claramente incompatível com a imparciali-dade, colocando em segundo plano o contraditório e a ampla defesa, na busca ilimitada da verdade real.7 Assim, na busca dessa utópica verdade real, o impu-tado deixa de ser sujeito de direitos e passa a ser um mero objeto de investigação, ficando, assim, subme-tido a um inquisidor que está autorizado a extrai-la

5. Nesse contexto: RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: re-flexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 175.

6. Direito processual penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 189.

7. A distinção entre verdade real e processual/formal é vista, por exem-plo, na doutrina de Ferrajoli (Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 51-52), que enfatiza a necessidade de superação da chamada verdade substancial (real ou absoluta), utópica e inalcançável, por uma verdade processual de caráter aproximativo, que não pretende ser declarada como a verdade, já que condicionada ao processo e às garantias da defesa. Trata-se, pois, de uma verdade controlada quanto ao método de aquisição e reduzida quanto ao conteúdo informativo em relação à hipotética verdade substancial, protegendo, assim, os cidadãos, de práticas autoritárias.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

a qualquer custo.8 O juiz, então, deixa de tutelar a presunção de inocência e passa a funcionar como um “buscador da verdade – o Google da verdade real”.9 Como observa Geraldo Prado,10 tal sistema é estrutu-rado com vista à realização do direito penal material, em que a função do juiz se limita a concretizar o poder punir do Estado, como se o exercício do magis-tério penal fosse uma questão de segurança pública.

Enfim, ou a produção de provas é tarefa das partes e se está diante de um modelo acusatório (princípio dispositivo – juiz espectador), ou é do juiz (juiz ator/inquisidor), e se está então diante de modelo diverso, qual seja, o inquisitório. Não há, pois, espaço para um meio-termo.11 Resta, pois, ana-lisarmos a (in) constitucionalidade dessa atuação ex officio do magistrado, seja ele o juiz das garantias, durante a investigação preliminar, seja ele o juiz da instrução e julgamento, no curso do processo judi-cial, o que pressupõe um cotejo da nova sistemática introduzida no art. 3º-A do CPP com aquela cons-tante do art. 156 do CPP, cujos incisos facultam ao juiz agir de ofício antes de iniciada a ação penal (inciso I) e no curso da instrução ou antes de pro-ferir sentença (inciso II).

3.2.1. Da vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias na fase investigatória

Inovando em relação à antiga redação do art. 156 do CPP, que só permitia a atuação probatória de ofício do juiz no curso do processo, a nova re-dação dada ao art. 156, inciso I, do CPP, pela Lei nº 11.690/08, passou a prever que ao magistrado seria permitido, de ofício, mesmo antes do início da ação penal, determinar a produção antecipada de pro-vas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

8. LOPES Jr., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 180.

9. PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 13.

10. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucio-nal das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 105.

11. Como observa Ricardo Gloeckner, o processo acusatório distingue--se do inquisitorial pela gestão da prova (possibilidade de intervenção judicial na instrução), daí por que “não há possibilidade de conciliação em um meio-termo (...) Ou há poderes judiciais instrutórios ou é faculdade das partes a colheita das provas (...) Inquisitividade – poderes instrutórios do juiz – somente pode ser pensada a partir do sistema inquisitório. Im-possível um significante querer dizer uma mesma coisa e seu contrário (princípio da não-contradição). (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal: introdução principiológica à teoria do ato processual irregular. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 211-217).

Com a adoção do sistema acusatório pela Cons-tituição Federal (art. 129, inciso I), restou consolidada a obrigatoriedade de separação das funções de acu-sar, defender e julgar, fazendo com que o processo se caracterize como um verdadeiro actum trium per-sonarum, sendo informado pelo contraditório. Esse sistema de divisão de funções no processo penal acusatório tem a mesma finalidade que o princípio da separação dos poderes do Estado: visa impedir a concentração de poder, evitando que seu uso se dege-nere em abuso. Com essa separação de funções, alia-da à oralidade e publicidade, características históricas do sistema acusatório, e com partes em igualdade de condições, objetiva-se a preservação da imparcialida-de do magistrado, afastando-o da fase investigatória, a qual deve ter como protagonistas tão somente a autoridade policial e o Ministério Público.

É óbvio que o juiz das garantias não está im-pedido de agir na fase investigatória. Mas essa atuação só pode ocorrer mediante prévia provo-cação das partes. Exemplificando, vislumbrando a autoridade policial a necessidade de mandado de busca domiciliar, deve representar ao magistrado no sentido da expedição da ordem judicial (CPP, art. 3º-B, XI, “c”). De modo semelhante, surgin-do a necessidade de uma prisão temporária para acautelar as investigações, deve o órgão Ministerial formular requerimento ao juiz competente (CPP, art. 3º-B, V). Na fase investigatória, portanto, deve o magistrado agir somente quando provocado, atuando como garante das regras do jogo. Afinal, como sintetiza a Exposição de Motivos do Código Modelo para Ibero-America, “o bom inquisidor mata ao bom juiz, ou ao contrário, o bom juiz des-terra ao inquisidor”.

O que não se deve lhe permitir, nessa fase pre-liminar, é uma atuação de ofício. E isso porque, pelo simples fato de ser humano, não há como negar que, após realizar diligências de ofício na fase investiga-tória, fique o juiz das garantias envolvido psicolo-gicamente com a causa, colocando-se em posição propensa a decidir favoravelmente a ela, com grave prejuízo a sua imparcialidade. A partir do momento em que uma mesma pessoa concentra as funções de investigar e colher as provas, estará comprometido a priori com a tese da culpabilidade do acusado. Com efeito, se o magistrado tomou a iniciativa de determinar, de ofício, a realização de um ato inves-tigatório, mesmo antes do início do processo penal, já indica, por si só, estar ele procurando uma confir-mação para alguma hipótese sobre os fatos, é dizer, estar ele se deslocando daquela posição de impar-cialidade decorrente da sua posição de terceiro para

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

uma posição parcial, não mais alheia aos interesses da acusação ou da defesa.

Essa discussão quanto à atuação do magistrado de ofício na fase investigatória não é novidade no Brasil. Quando entrou em vigor a Lei nº 9.034/95, também conhecida como Lei das Organizações Cri-minosas, o art. 3º previa que, na hipótese de quebra do sigilo de dados fiscais, bancários, financeiros e eleitorais, a diligência seria realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de jus-tiça. O dispositivo conferia ao magistrado, assim, poderes para diligenciar pessoalmente na obtenção de elementos informativos pertinentes à persecução penal de ilícitos decorrentes da atuação de orga-nizações criminosas, com dispensa do auxílio da Polícia Judiciária e do Ministério Público, criando uma espécie de juiz inquisidor.

O Supremo Tribunal Federal foi chamado a analisar a constitucionalidade do dispositivo, tendo concluído que o art. 3º seria parcialmente incons-titucional. No tocante aos sigilos bancário e finan-ceiro, entendeu a Suprema Corte que o art. 3º teria sido revogado pelo advento da Lei Complementar nº 105/01, que passou a regulamentar a matéria. Em relação aos dados fiscais e eleitorais, todavia, o Supremo reconheceu a inconstitucionalidade do art. 3º, por flagrante violação ao princípio da imparcia-lidade e consequente violação ao devido processo legal.12

Em outro importante precedente (HC 94.641/BA, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 11/11/2008, DJe 43 05/03/2009), a 2ª Turma do Supremo concedeu, de ofício, habeas corpus impetrado em favor de condenado por atentado violento ao pudor contra a própria filha, para anular, em virtude de ofensa à garantia da imparcialidade da jurisdição, o proces-so desde o recebimento da denúncia. In casu, no curso de procedimento oficioso de investigação de paternidade promovido pela filha do paciente para averiguar a identidade do pai da criança que essa tivera, surgiram indícios da prática delituosa supra, sendo tais relatos enviados ao Ministério Público. O parquet, no intuito de ser instaurada a devida ação penal, denunciara o paciente, vindo a inicial acusatória a ser recebida e processada pelo mesmo juiz daquela ação investigatória de paternidade. En-tendeu-se que o juiz sentenciante teria atuado como se autoridade policial fosse, em virtude de, no proce-dimento preliminar de investigação de paternidade, em que apurados os fatos, ter ouvido testemunhas

12. STF, Tribunal Pleno, ADI 1.570/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 22/10/2004.

antes de encaminhar os autos ao Ministério Público para a propositura da ação penal.

Ora, se o Supremo Tribunal Federal concluiu pela inconstitucionalidade do juiz inquisidor previs-to no art. 3º da revogada Lei nº 9.034/95 (ADI n. 1.570), tendo, ademais, reconhecido a imparcialida-de de magistrado que aturara de ofício como ver-dadeira autoridade policial em procedimento preli-minar de investigação de paternidade (HC 94.641/BA), outra conclusão não há senão a de que o art. 156, inciso I, do CPP, é absolutamente incompatível com o nosso sistema acusatório e com a garantia da imparcialidade.13

Em um sistema acusatório, cuja característica básica é a separação das funções de acusar, defender e julgar, não se pode permitir que o magistrado atue de ofício na fase de investigação. Essa concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, o juiz inquisidor, além de violar a imparcialidade e o de-vido processo legal, é absolutamente incompatível com o próprio Estado Democrático de Direito, asse-melhando-se à reunião dos poderes de administrar, legislar e julgar em uma única pessoa, o ditador, nos regimes absolutistas. Trata-se, enfim, a figura do juiz-espectador em contraposição à figura inquisitó-ria do juiz-protagonista, de verdadeiro “preço a ser pago para termos um sistema acusatório”.14 Portanto, a tarefa de recolher elementos para a propositura da ação penal deve recair sobre a Polícia Judiciária e sobre o Ministério Público, preservando-se, assim, a imparcialidade do magistrado, que só deve intervir quando estritamente necessário, e desde que seja provocado nesse sentido.

Louvável, nesse sentido, o disposto na primeira parte do art. 3º-A do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, que, após dispor que o processo penal terá estrutura acusatória, veda a iniciativa do juiz das garantias na fase de investigação. Operou-se, pois, a revogação tácita do art. 156, inciso I, do CPP, nos exatos termos do art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (“A lei posterior revoga a anterior quando expressamen-te o declare, quando seja com ela incompatível ou

13. Em sentido um pouco diverso, sustenta Grinover que, “para uma interpretação sistemática dessa disposição, cabe lembrar que, na redação dada ao art. 155, a Lei 11.690/2008 estabelece uma distinção entre o que é prova e aquilo que constitui elemento informativo da investigação. Ao dizer, assim, que o juiz pode determinar produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, a lei não contempla outra coisa senão a iniciativa judicial para a antecipação de atos tendentes à formação de provas – não de elementos de investigação –, diante do risco de desa-parecimento ou deterioração das fontes de informação”. (As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 124).

14. LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 190.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”).15

3.2.2. Da vedação da iniciativa probatória do juiz da instrução e julgamento no curso do pro-cesso penal

Sempre houve consenso na doutrina e na juris-prudência quanto à vedação da iniciativa acusatória do magistrado em sede de investigação preliminar. Tal consenso jamais existiu, todavia, quando se fa-lava desta mesma atuação ex officio do magistrado no curso do processo judicial (iniciativa probatória), tal qual previsto, aliás, no inciso II do art. 156 e em tantos outros dispositivos do Código de Processo Penal.

De um lado, parte da doutrina admite que, de modo subsidiário, e exclusivamente durante a fase processual da persecução penal, possa o juiz deter-minar a produção de provas que entender pertinen-tes e razoáveis, a fim de dirimir dúvidas sobre pontos relevantes, seja por força do princípio da busca da verdade, seja pela adoção do sistema da persuasão racional do juiz (convencimento motivado). Nesse caso, é imperioso o respeito ao contraditório e à garantia de motivação das decisões judiciais. A fim de dirimir eventual dúvida que tenha nascido no momento de valoração da prova já produzida em juízo, esta atuação deve ocorrer de modo supletivo, subsidiário, complementar, nunca desencadeante da colheita da prova. Em síntese, não se pode permitir que o magistrado se substitua às partes no tocante à produção das provas. Essa iniciativa probatória residual do magistrado pode ser exercida em cri-mes de ação penal pública e ação penal de inicia-tiva privada. Ora, se o querelante pode dispor do direito de ação, isso não significa dizer que o juiz é obrigado a reconhecer eventual pretensão deduzida quando não convencido do direito pleiteado, sem poder, antes, averiguar a verdade dos fatos que lhes são postos, mesmo em se tratando de ação penal privada.16

Para tanto, deve o magistrado atuar de manei-ra imparcial. Se o escopo do juiz for o de buscar provas apenas para condenar o acusado, além da violação ao sistema acusatório, haverá evidente

15. Em sentido relativamente diverso, eis o teor do Enunciado n. 5 da Procuradoria-Geral de Justiça e da Corregedoria-Geral do Ministério Público de São Paulo: “O art. 3º-A do CPP não revogou os incisos I e II do art. 156 do mesmo diploma legal, salvo no caso do inciso I, no que tange à possibilidade de determinar, de ofício, a produção antecipada da prova na fase de investigação”.

16. Nesse contexto: BASTOS, Marcelo Lessa. Processo penal e gestão da prova: a questão da iniciativa instrutória do juiz em face do sistema acusa-tório e da natureza da ação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 93.

comprometimento psicológico com a causa, sub-traindo do magistrado a necessária imparcialida-de, uma das mais expressivas garantias inerentes ao devido processo legal, prevista expressamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8º, nº 1).

Admitida a produção de provas ex officio no curso do processo penal, deve o magistrado assegu-rar que as partes possam participar da sua produção (contraditório para a prova), ou, caso isso não seja possível, garantir-lhes o direito de se manifestar so-bre a prova produzida (contraditório sobre a prova). Ademais, diante do resultado da prova cuja produ-ção foi determinada de ofício pelo magistrado, deve se franquear às partes a possibilidade de produzir uma contraprova, de modo a infirmar o novo dado probatório acrescido ao processo. Além disso, de modo a preservar sua imparcialidade, impõe-se ao magistrado o dever de motivar sua decisão, expondo a necessidade e relevância da prova cuja realização foi por ele determinada ex officio.

Na visão dessa primeira corrente, essa atuação subsidiária do juiz na produção de provas não te-ria o condão de comprometer sua imparcialidade. Na verdade, como destaca a doutrina, “os poderes instrutórios do juiz não são incompatíveis com a im-parcialidade do julgador. Ao determinar a produção de uma prova, o juiz não sabe, de antemão, o que dela resultará e, em consequência, a qual parte vai beneficiar. Por outro lado, se o juiz está na dúvida sobre um fato e sabe que a realização de uma prova poderia eliminar sua incerteza e não determina sua produção, aí sim estará sendo parcial, porque sabe que, ao final, sua abstenção irá beneficiar a parte contrária àquela a quem incumbirá o ônus daquela prova. Juiz ativo não é sinônimo de juiz parcial. É equivocado confundir neutralidade ou passividade com imparcialidade. Um juiz ativo não é parcial, mas apenas um juiz atento aos fins sociais do pro-cesso, e que busca exercer sua função de forma a dar ao jurisdicionado a melhor prestação jurisdicional possível”.17

Também não há qualquer incompatibilidade entre o processo penal acusatório e um juiz dotado

17. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. Op. cit. p. 83. Em sentido semelhante, Marco Antônio de Barros ad-verte que “a imparcialidade do juiz não exclui seu poder-dever de buscar a verdade, sobretudo porque imparcialidade não se confunde com inércia e nem está limitada ao sabor de uma contrariedade ativa da partes, mas das garantias processuais de defesa. É perfeitamente possível compati-bilizar a imparcialidade com a busca da verdade, bastando apenas que a função jurisdicional seja exercida com equilíbrio e em consonância com os ditames legais” (A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 122).

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

de iniciativa probatória, que lhe permita determinar a produção de provas que se façam necessárias para o esclarecimento da verdade. A essência do sistema acusatório repousa na separação das funções de acu-sar, defender e julgar. Por mais que a ausência de poderes instrutórios do juiz seja uma característica histórica do processo acusatório, não se trata de uma característica essencial a ponto de desvirtuar o refe-rido sistema. Consoante prevê a própria Exposição de Motivos do CPP, enquanto não estiver averigua-da a matéria de acusação ou da defesa, e enquanto houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet. É por isso que se diz que no processo penal o juiz tem o dever de investigar a verdade; e a busca da verdade traduz um valor que legitima a atividade jurisdicional penal. Nessa linha, como observa Antônio Scarance Fernandes, “não se deve mesmo retirar do juiz o poder probatório, pois não há porque impedi-lo de, para seu convencimento, esclarecer alguns aspectos da prova produzida pelas partes ou a respeito de algum dado probatório vindo aos autos”.18

Essa atuação subsidiária do magistrado no to-cante à produção de provas no curso do processo pode ser facilmente percebida a partir da leitura do art. 212 do CPP. De acordo com o caput do art. 212 do CPP, “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na re-petição de outra já respondida”. O parágrafo único do art. 212 do CPP, por sua vez, prevê que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”. Da leitura do dispositivo em questão, cuja redação foi determinada pela Lei nº 11.690/08, percebe-se claramente que a produção probatória deve recair predominantemente sobre as partes, o que, no entanto, não significa dizer que o magistra-do deva adotar um comportamento absolutamente inerte no curso do processo. Na busca de um pro-cesso justo, pode o magistrado atuar de maneira subsidiária, complementando o quanto trazido aos autos pelas partes.

Além do art. 156, inciso II, do CPP, há outros dispositivos que consagram poderes instrutórios do juiz no curso do processo penal. A título de exem-plo, o art. 127 do CPP autoriza o juiz a decretar o sequestro em qualquer fase do processo ou mesmo antes de oferecida a denúncia ou queixa. Noutro

18. FERNANDES, Antônio Scarance. Reação defensiva à imputação. Op. cit. p. 17.

giro, segundo o art. 196 do CPP, a todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes. Por sua vez, de acordo com o art. 209, caput, o juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras teste-munhas, além das indicadas pelas partes. Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem (CPP, art. 209, § 1º). Segundo o art. 234 do CPP, se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, indepen-dentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos autos, se possível. De seu turno, os arts. 241 e 242 do CPP, além de autorizarem a autoridade judiciária a realizar pessoalmente uma busca domiciliar, preveem expressamente a possi-bilidade de a busca ser determinada de ofício pelo magistrado. Na mesma linha, por força do art. 366 do CPP, entende-se que cabe ao Juiz da causa decidir sobre a necessidade da produção antecipada da pro-va testemunhal, podendo utilizar-se dessa faculda-de quando a situação dos autos assim recomendar, especialmente por tratar-se de ato que decorre do poder geral de cautela do Magistrado.19 O art. 404 do CPP autoriza que o próprio juiz, independente-mente de requerimento das partes, determine a rea-lização de diligências consideradas imprescindíveis ao esclarecimento do fato delituoso.

Esse entendimento, porém, sempre foi criticado por parte da doutrina nacional, que entendia que, independentemente do momento da persecução pe-nal em que se encontrar o caso penal – investigação preliminar ou fase judicial –, não se pode admitir a atuação ex officio do magistrado, sob pena de vio-lação ao sistema acusatório e, consequentemente, à imparcialidade do magistrado. Como ser humano que é, se o juiz da instrução e julgamento tomar uma decisão de ofício no tocante à produção de provas, seja em benefício da acusação, seja em favor da defesa, restará vinculado a esta decisão, e, mesmo que involuntariamente, buscará a sua manutenção, superestimando novas informações que possam confirmá-la, ao mesmo tempo em que tenderá a subestimar outras que a contrariem. Ao determinar a realização de uma prova, estará, pois, nas palavras de Giacomolli,20 “retirando a sua toga de terceiro e vestindo a da acusação, sepultando o in dubio pro reo e a prestação da tutela jurisdicional criminal

19. Nesse sentido: STF, 1ª Turma, HC 93.157/SP, Rel. Min. Ricardo Le-wandowski, j. 23/09/2008, DJe 216 13/11/2008.

20. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 285.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

efetiva, com a observância do devido processo pe-nal, pela contaminação da parcialidade”.

Com efeito, segundo Geraldo Prado, “a busca das provas da autoria e da existência da infração penal, pelo juiz, por mais grave que possa parecer o delito, compromete a imparcialidade daquele que vai decidir (...)”, pois, “pelo menos do ponto de vista psicológico, por mais sereno que seja o magistrado, sua inserção na mencionada atividade implicará certo grau de comprometimento com os fatos apurados, afastando-se o julgador do ponto de equilíbrio que, como garantia das partes, traduz-se no princípio do juiz imparcial”.21

Não há espaço, portanto, para a atribuição de poderes instrutórios ao juiz da instrução e julga-mento no curso do processo penal, sem que se esteja colocando em risco a sua imparcialidade, haja vista esta possível e muito provável vinculação com as decisões ex officio que ele vier a proferir a respeito da prova. Quando assim o faz, o magistrado acaba por assumir sua parcialidade para a condução do feito, mesmo que no plano do inconsciente. Absolutamen-te incompatíveis, portanto, tais poderes instrutórios do julgador à luz do princípio da imparcialidade.

É dentro desse contexto, leia-se, no sentido de que não existe investigador imparcial, que surge a nova redação do art. 3º-A do CPP, que dispõe que o processo penal terá estrutura acusatória, veda-das a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acu-sação. Conquanto o dispositivo não seja, quanto à fase processual, tão claro quanto o é em relação à investigação, uma interpretação sistemática da Lei n. 13.964/19 como um todo nos leva a crer que, do-ravante, não mais será admitida qualquer iniciativa do magistrado, nem mesmo no curso do processo judicial. Não apenas por força da nova redação do art. 3º-A, in fine, do CPP, mas também pelo fato de o Pacote Anticrime ter vedado expressamente a possibilidade de decretação de qualquer medida cautelar pessoal de ofício pelo magistrado, seja du-rante a fase investigatória – o que já era vedado antes (Lei n. 12.403/11) –, seja durante a fase processual (CPP, arts. 282, §§2º e 4º, e 311, todos com redação dada pela Lei n. 13.964/19). Ora, se o Código de Processo Penal veda expressamente a decretação ex officio de uma medida cautelar, inclusive no curso

21. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 199. Ainda segundo o autor (Op. cit. p. 137), “quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador”.

do processo penal, como justificar, então, a produ-ção de provas ex officio nesta etapa da persecução penal? Enfim, se ao juiz da instrução e julgamento não é permitido se substituir à atuação probatória do órgão da acusação, deverá recair, portanto, ex-clusivamente sobre a acusação, o ônus de compro-var a imputação constante da peça acusatória, sem qualquer tipo de intervenção do juiz, a não ser para sanar dúvida pontual em algumas hipóteses, como, por exemplo, complementando as perguntas for-muladas pelas partes às testemunhas (CPP, art. 212, parágrafo único).22

Não se pode mais continuar a insistir, contra a Constituição, em manter um sistema inquisitório por-que assim o preveem os incisos I e II do art. 156 do CPP, em permanente conflito com o modelo acusató-rio extraído do art. 129, I, da Constituição Federal, e do próprio art. 3º-A do CPP, que, nas palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “reclama um devido processo legal e, assim, incompatível com aquele no qual o juiz é o senhor do processo, o senhor das pro-vas e, sobretudo – como sempre se passou no Sistema Inquisitório – pode decidir antes (naturalmente racio-cinando, por primário e em geral bem intencionado) e depois sair à cata da prova que justifique a decisão antes tomada”.23

Quando se confere ao juiz tamanho protago-nismo no curso do processo penal, podendo buscar e produzir a prova que quiser, praticamente deso-nerando as partes do seu ônus probandi (CPP, art. 156, caput), o magistrado põe em risco toda aquela ideia de alheamento aos interesses em jogo ineren-te à imparcialidade que deve nortear sua atuação, tornando despicienda inclusive a própria existência do órgão acusatório, já que não é tão incomum que se utilize dessa iniciativa probatória supostamente em “favor da sociedade”. De mais a mais, enquanto se insistir na atribuição de poderes investigatórios ou instrutórios ao juiz das garantias ou da instrução e julgamento, respectivamente, estará mantida nas

22. Com entendimento semelhante: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Car-valho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 15.

23. Op. cit. p. 9. Como observa Aury Lopes Jr. (Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 164), “a principal crítica que se fez (e se faz até hoje) ao modelo acusatório é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição da imparcialidade), pois este deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcio-nado. Esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (através da inquisição) um gravíssimo erro”.

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

mãos do magistrado a gestão da prova, logo, pre-servado todo o sistema inquisitório do Código de Processo Penal de 1941, em flagrante contradição com a Constituição Federal (art. 129, I) e com a própria redação do art. 3º-A do CPP.

Operou-se, pois, a revogação tácita do art. 156, inciso II, do CPP, bem como de todos os demais dis-positivos constantes do Código de Processo Penal que atribuíam ao juiz da instrução e julgamento iniciativa probatória no curso do processo penal. É bem ver-dade que o legislador poderia ter sido mais direto e objetivo, revogando-os expressamente, de modo a privilegiar a técnica e a própria segurança jurídica. Mas tal omissão não impede que se produza uma interpretação sistemática, coerente com o próprio es-pírito das mudanças produzidas pela Lei n. 13.964/19 e com o sistema acusatório, que sempre repudiou veementemente esta iniciativa probatória no curso do processo judicial. É tempo, pois, de deixarmos de acreditar, ingenuamente, que o magistrado não tem sua imparcialidade contaminada ao procurar se substituir às partes no tocante à produção de provas.

Os Tribunais, todavia, mesmo após a entrada em vigor do Pacote Anticrime, continuam ofere-cendo enorme resistência à adoção de um sistema verdadeiramente acusatório, tal qual preconizado pelo art. 3º-A do CPP. Prova disso, aliás, é o teor da decisão proferida pelo 6ª Turma do STJ nos autos do HC 583.995/MG, in verbis: “(...) O Código de Processo Penal de 1941 adota um modelo no qual ao juiz é reservado o papel de apenas julgar, e não o de também investigar. (...) Continuam em vigor, porém, dispositivos do CPP, como o art. 5º, II (que permite ao juiz requisitar a instauração de inquérito policial), o art. 10, §1º (que torna a autoridade judi-ciária a destinatária do inquérito policial), o art. 156, I (que faculta ao juiz ordenar, de ofício, a produção antecipada de provas, mesmo durante o inquérito policial, por considerá-las urgentes e relevantes), bem como o art. 574, segunda parte (que determina ao juiz submeter sua decisão, mesmo sem recurso da parte, ao exame da jurisdição superior, nos casos ali indicados). Também se poderiam acrescer a esse rol de dispositivos outras situações de provável compro-metimento psicológico do juiz, como o mecanismo de controle do arquivamento do inquérito policial positivado no art. 28 – do CPP - ainda em vigor, dada a suspensão, pelo STF, da vigência da nova redação dada a tal preceito pela Lei n 13.964/2019 -em decorrência do qual o juiz se substitui ao órgão de acusação no exame da suficiência de elementos informativos para dar início a uma ação penal, ao ser autorizado a recusar a promoção de arquivamen-to das investigações. Em tal hipótese, não rara no

quotidiano forense, recaem relevantes dúvidas sobre a imparcialidade do juiz que, após remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, recebe-os de volta com uma denúncia ofertada contra o investigado cujo inquérito se recusou a arquivar, mesmo com o anterior pedido do membro do Ministério Público. Tais exemplos indicam que, mesmo em processo com estrutura acusatória, existem diversas situa-ções nas quais se realizam atividades judiciais sem provocação do titular da ação penal, ou mesmo em oposição à sua manifestação, o que valida a obser-vaçã“ de que “mais do que de sistema inquisitorial ou de sistema acusatório, com referência à legislação processual penal moderna, é mais usual falar de mo-delos com tendência acusatória ou de formato in-quisitorial (DALIA, Andrea & FERRAIOLI, Marzia. Manuale di Diritto Processual Penale. 5ª ed. Milão: 2003, p. 27). Em verdade, nossa praxe judiciária não tem acolhido dogmas ou princípios de maneira ab-soluta, pois as idiossincrasias de nosso país e do seu sistema de justiça criminal acabam por engendrar soluções sensíveis a argumentos de cunho prático. E não se há de identificar essa postura, necessaria-mente, como algo negativo, pois cada país precisa construir um complexo normativo que, sem descon-siderar as experiências estrangeiras, seja funcional e adaptado às características de nossa realidade”.24

Ao fim e ao cabo, convém destacar que o art. 3º-A do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, deixou uma margem perigosa para a sobrevi-vência do sistema inquisitório. Isso porque, ao vedar a iniciativa probatória do juiz no curso do processo penal, fez referência à impossibilidade de substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Ou seja, interpretando-se a contrario sensu o referido dispositivo, ter-se-ia como válida a iniciativa probatória do juiz no curso do pro-cesso penal quando o fizesse em favor da defesa. Ora, por que motivo devemos admitir que o juiz da instrução e julgamento se substitua à atuação probatória da defesa, produzindo provas de ofício, se deriva do princípio da presunção de inocência a regra de julgamento segundo a qual, diante da dúvida, outra opção não há senão a absolvição do acusado em face do in dubio pro reo? De mais a mais, tendo em conta o princípio da comunhão das provas, por força do qual a prova é comum, quem poderá garantir que tal prova não estaria

24. STJ, 6ª Turma, HC 583.995-MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j.15.09.2020, DJe 07.10.2020. No sentido de que se admite a iniciativa probatória, de maneira residual, por parte do julgador – in casu, do art. 209 do CPP –, haja vista os princípios da busca da verdade real e do livre convencimento: STF, 1ª Turma, RHC 154.680-PE, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 05.10.2020, DJe 14.10.2020.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

sendo produzida ex officio pelo juiz da instrução e julgamento para prejudicar o acusado, e não o contrário? Há de se tomar cuidado, portanto, com a parte final do art. 3º-A do CPP, para que não entre em rota de colisão com a estrutura acusató-ria delineada por todas as inovações introduzidas pela Lei n. 13.964/19.

4. JUIZ DAS GARANTIAS

CPPANTES da

Lei n. 13.964/19

CPPDEPOIS da

Lei n. 13.964/19

Sem correspondente. Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legali-dade da investigação cri-minal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judi-ciário, competindo-lhe especialmente:I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Cons-tituição Federal;II – receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidadeda prisão, observado odisposto no art. 310 deste Código;III – zelar pela observân-cia dos direitos do pre-so, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;IV – ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;V – decidir sobre o re-querimento de prisão provisória ou outra me-dida cautelar, observado o disposto no § 1º desteartigo;VI – prorrogar a prisão provisória ou outra me-dida cautelar, bem como substituí-las ou revogá--las, assegurado, no pri-meiro caso, o exercíciodo contraditório em au-diência pública e oral, naforma do disposto nesteCódigo ou em legislaçãoespecial pertinente;

CPPANTES da

Lei n. 13.964/19

CPPDEPOIS da

Lei n. 13.964/19

VII – decidir sobre o re-querimento de produção antecipada de provas con-sideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pú-blica e oral;VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autori-dade policial e observado o disposto no § 2º desteartigo;

IX – determinar o tranca-mento do inquérito poli-cial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;X – requisitar documen-tos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;XI – decidir sobre os re-querimentos de:

a) interceptação telefô-nica, do fluxo de comu-nicações em sistemas deinformática e telemáticaou de outras formas decomunicação;b) afastamento dos sigilosfiscal, bancário, de dados e telefônico;c) busca e apreensãodomiciliar;d) acesso a informaçõessigilosas;e) outros meios de obten-ção da prova que restrin-jam direitos fundamen-tais do investigado;XII – julgar o habeas corpus impetrado an-tes do oferecimento da denúncia;XIII – determinar a ins-tauração de incidente de insanidade mental;

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS

CPPANTES da

Lei n. 13.964/19

CPPDEPOIS da

Lei n. 13.964/19

XIV – decidir sobre o recebimento da denún-cia ou queixa, nos ter-mos do art. 399 deste Código;XV – assegurar pronta-mente, quando se fizer necessário, o direito ou-torgado ao investigado e ao seu defensor de aces-so a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, es-tritamente, às diligências em andamento;XVI – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;XVII – decidir sobre a homologação de acordo de não persecução pe-nal ou os de colabora-ção premiada, quando formalizados durante a investigação;XVIII – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.§ 1º O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e qua-tro) horas, momento em que se realizará audiên-cia com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituí-do, vedado o emprego de videoconferência.§ 2º Se o investigado es-tiver preso, o juiz das ga-rantias poderá, mediante representação da autori-dade policial e ouvido o

CPPANTES da

Lei n. 13.964/19

CPPDEPOIS da

Lei n. 13.964/19

Ministério Público, pror-rogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim ainvestigação não for con-cluída, a prisão será ime-diatamente relaxada.’

4.1. ConceitoNa dicção do art. 3º-B, caput, do Código de Pro-

cesso Penal, incluído pela Lei n. 13.964/19, o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos di-reitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário. Consiste, pois, na outorga exclusiva, a um determinado órgão jurisdicional, da competência para o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal, o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse mesmo caso penal.

Cuida-se de verdadeira espécie de competência funcional por fase do processo,25 é dizer, a depen-der da fase da persecução penal em que estivermos, a competência será de um ou de outro juiz: entre a instauração da investigação criminal e o recebimen-to da denúncia (ou queixa), a competência será do juiz das garantias, que ficará impedido de funcionar no processo; após o recebimento da peça acusatória e, pelo menos em tese, até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória (ou absolutória), a competência será do juiz da instrução e julga-mento. Objetiva-se, assim, minimizar ao máximo as chances de contaminação subjetiva do juiz da causa, potencializando, pois, a sua imparcialidade, seguindo na contramão da sistemática até então vi-gente, quando a prática de qualquer ato decisório pelo juiz na fase investigatória tornava-o prevento para prosseguir no feito até o julgamento final (CPP, art. 75, parágrafo único, e art. 83).

Não se trata, o juiz das garantias, de função ju-risdicional inédita no nosso ordenamento jurídico, porquanto sempre existiu, e sempre existirá, em um Estado Democrático de Direito, uma autoridade judi-ciária competente para a tutela dos direitos e garantias fundamentais em qualquer fase da persecução penal,

25. Para mais detalhes acerca da competência funcional (conceito, es-pécies, etc.), remetemos o leitor ao Título atinente à competência criminal.

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TÍTULO 6 • PROVAS

TÍTULO

6

PROVAS

CAPÍTULO ITEORIA GERAL

DAS PROVAS

1. TERMINOLOGIA DA PROVA1

Em sentido amplo, provar significa demonstrara veracidade de um enunciado sobre um fato tido por ocorrido no mundo real. Em sentido estrito, a palavra prova tem vários significados. Por isso, inicialmente, é importante firmarmos algumas pre-missas terminológicas.

1.1. Acepções da palavra provaA palavra prova tem a mesma origem etimoló-

gica de probo (do latim, probatio e probus), e traduz as ideias de verificação, inspeção, exame, aprovação ou confirmação. Dela deriva o verbo provar, que significa verificar, examinar, reconhecer por expe-riência, estando relacionada com o vasto campo de operações do intelecto na busca e comunicação do conhecimento verdadeiro. Na verdade, há três acep-ções da palavra prova:

1) Prova como atividade probatória: consis-te no conjunto de atividades de verificação e de-monstração, mediante as quais se procura chegar à verdade dos fatos relevantes para o julgamento.2 Nesse sentido, identifica-se o conceito de prova com a produção dos meios e atos praticados no processo visando ao convencimento do juiz sobre a

1. Este tópico introdutório é feito com base nas lições do Prof. AntônioMagalhães Gomes Filho: Estudos em homenagem à professora Ada Pelle-grini Grinover. Coord.: Flávio Luiz Yarshell e Maurício Zanóide de Moraes. São Paulo: DPJ Editora, 2005.

2. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. III. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 43.

veracidade (ou não) de uma alegação sobre um fato que interesse à solução da causa. Sob esse prisma, pode se dizer que há, para as partes, um direito à prova (right to evidence, em inglês), que funciona como desdobramento natural do direito de ação, não se reduzindo ao direito de propor ou ver pro-duzidos os meios de prova, mas, efetivamente, na possibilidade de influir no convencimento do juiz. Com efeito, de nada adianta o Estado assegurar à parte o direito de ação, legitimando a propositura da demanda, sem o correspondente reconhecimento do direito de provar, ou seja, do direito de se uti-lizar dos meios de prova necessários a comprovar, perante o órgão julgador, as alegações feitas ao longo do processo. Há de se assegurar às partes, portanto, todos os recursos para o oferecimento da matéria probatória, sob pena de cerceamento de defesa ou de acusação. Conquanto constitucionalmente asse-gurado, esse direito à prova, por estar inserido nas garantias da ação e da defesa e do contraditório, não é absoluto. Em um Estado Democrático de Direito, o processo penal é regido pelo respeito aos direitosfundamentais e plantado sob a égide de princípioséticos que não admitem a produção de provas me-diante agressão a regras de proteção. A legitimaçãodo exercício da função jurisdicional está condicio-nada, portanto, à validade da prova produzida emjuízo, em fiel observância aos princípios do devidoprocesso legal e da inadmissibilidade das provasobtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, LIV e LVI);

2) Prova como resultado: caracteriza-se pelaformação da convicção do órgão julgador no curso do processo quanto à existência (ou não) de de-terminada situação fática. Por mais que não seja possível se atingir uma verdade irrefutável acerca dos acontecimentos ocorridos no passado, é possível

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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

atingir um conhecimento processualmente verda-deiro acerca dos fatos controversos inseridos no processo sempre que, por meio da atividade proba-tória desenvolvida, sejam obtidos elementos capazes de autorizar um determinado grau de certeza acerca da ocorrência daqueles mesmos fatos;

3) Prova como meio: são os instrumentos idô-neos à formação da convicção do órgão julgador acerca da existência (ou não) de determinada situa-ção fática, cujo conceito será trabalhado com mais detalhes logo abaixo.

1.2. Distinção entre prova e elementos informativos

Com as alterações produzidas pela Lei nº 11.690/08, passou a constar expressamente do art. 155 do CPP a distinção entre prova e elementos in-formativos. O tema já foi objeto de análise no Título atinente à Investigação Preliminar, mais precisamen-te nos itens 3 (“Finalidade do Inquérito Policial) e 4 (“Valor probatório do inquérito policial”), para onde remetemos o leitor.

1.3. Provas cautelares, não repetíveis e antecipadas

A interpretação a contrario sensu do art. 155 do CPP deixa entrever que é possível que o juiz forme sua convicção exclusivamente com base em 3 (três) espécies de provas, ainda que produzidas na fase investigatória:

a) Provas cautelares: são aquelas em que háum risco de desaparecimento do objeto da prova em razão do decurso do tempo, em relação às quais o contraditório será diferido.3 Podem ser produzidas no curso da fase investigatória ou durante a fase judicial, sendo que, em regra, dependem de autori-zação judicial. É o que acontece, por exemplo, com uma interceptação telefônica. Tal medida investiga-tória, que tem no elemento da surpresa verdadeiro pressuposto de sua eficácia, depende de prévia au-torização judicial, sendo que o investigado só terá conhecimento de sua realização após a conclusão das diligências. Quando estamos diante de medidas cautelares inaudita altera parte, a parte contrária só poderá contraditá-la depois de sua concretização, o que é denominado pela doutrina de contraditório diferido, postergado ou adiado;

3. O contraditório diferido (ou sobre a prova) pode ser compreendi-do como o reconhecimento da atuação do contraditório após a formação da prova. Não se confunde com o contraditório real (ou para a prova), que demanda que as partes atuem na própria formação do elemento de prova, sendo indispensável que sua produção ocorra na presença do órgão julgador e das partes.

b) Prova não repetível: é aquela que, uma vezproduzida, não tem como ser novamente coleta-da ou produzida, em virtude do desaparecimento, destruição ou perecimento da fonte probatória. Po-dem ser produzidas na fase investigatória e em juízo, sendo que, em regra, não dependem de autorização judicial. Exemplificando, suponha-se que alguém te-nha sido vítima de lesões corporais de natureza leve. O exame pericial levado a efeito imediatamente após a prática do delito dificilmente poderá ser realizado novamente, já que os vestígios deixados pela infra-ção penal irão desaparecer. Ante o perigo de que haja dispersão dos elementos probatórios em relação aos fatos transeuntes, sua produção independe de prévia autorização judicial, podendo ser determi-nada pela própria autoridade policial imediatamen-te após tomar conhecimento da prática delituosa. Como dispõe o art. 6º, inciso VII, do CPP, logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá, dentre outras diligências, determinar que se proceda a exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias. Perceba-se que, nos mesmos moldes do que ocorre com as provas cautelares, o contraditório também será diferido em relação às provas não repetíveis. Para que possam ser utilizadas no curso do processo, imperiosa será a observância do contraditório sobre a prova, permi-tindo que as partes possam discutir sua admissibi-lidade, regularidade e idoneidade. Não há, todavia, necessidade de realizá-las novamente no curso do processo penal, até mesmo porque provavelmente isso não seria possível.4 Bom exemplo disso, aliás, é o quanto previsto no art. 159, § 5º, inciso I, do CPP,que permite às partes, durante o curso do processojudicial, requerer a oitiva dos peritos para esclare-cimento da prova ou para responderem a quesitos;

c) provas antecipadas: são aquelas produzidascom a observância do contraditório real, perante a autoridade judicial, em momento processual distin-to daquele legalmente previsto, ou até mesmo antes do início do processo, em virtude de situação de urgência e relevância. Tais provas podem ser pro-duzidas na fase investigatória e em juízo, sendo in-dispensável prévia autorização judicial. É o caso do denominado depoimento ad perpetuam rei memo-riam, previsto no art. 225 do CPP. Supondo-se que

4. No sentido de que perícias e documentos produzidos na fase in-quisitorial são revestidos de eficácia probatória sem a necessidade de serem repetidos no curso da ação penal por se sujeitarem ao contraditório diferido: STJ, 5ª Turma, AgRg no AREsp 1.032.853/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 27/02/2018, DJe 07/03/2018; STJ, 5ª Turma, AgRg no AREsp 521.131/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 08/02/2018, DJe 21/02/2018; STJ, 5ª Turma, HC 413.104/PA, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. 08/02/2018, DJe 15/02/2018; STJ, 5ª Turma, AgRg no AREsp 312.502/DF, Rel. Min. Felix Fischer, j. 13/06/2017, DJe 01/08/2017.

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TÍTULO 6 • PROVAS

determinada testemunha presencial do delito esteja hospitalizada, em grave estado de saúde, afigura-se possível a colheita antecipada de seu depoimento, o que será feito com a presença do juiz, e com a par-ticipação das partes sob contraditório. Caso ainda não haja uma pessoa formalmente apontada como suspeita da prática do delito, deve o magistrado di-ligenciar para que a defesa técnica seja patrocinada por um advogado dativo. Nesse caso, o depoimento ficará integrado aos autos com o mesmo valor legal que teria caso fosse prestado no curso da instrução. Outro exemplo de prova antecipada é aquele cons-tante do art. 366 do CPP, em que, determinada a suspensão do processo e da prescrição em relação ao acusado que, citado por edital, não tenha compa-recido nem constituído defensor, poderá ser deter-minada pelo juiz a produção antecipada de provas urgentes, nos termos do art. 225 do CPP. Nesse caso, para que se imponha a antecipação da prova urgen-te, deve a acusação justificá-la de maneira satisfató-ria (v.g., ofendido com idade avançada). Isso porque, na visão dos Tribunais Superiores, a inquirição de testemunha, por si só, não pode ser considerada prova urgente, e a mera referência aos limites da memória humana não é suficiente para determinar a medida excepcional.5 Sobre o assunto, dispõe a súmula nº 455 do STJ que “a decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo”. A Lei n. 13.431, de 4 de abril de 2017, com vigência um ano depois de sua publicação oficial, também dispõe que o depoimento especial, assim compreendido o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária, deverá ser realizado uma única vez, sempre que possível, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado (art. 11, caput). Aliás, consoante disposto em seu art. 11, §1º, o depoimento especial deverá seguir o rito cautelarde antecipação de prova: I – quando a criança ouadolescente tiver menos de 7 (sete) anos; II – emcaso de violência sexual. O Código de Processo Pe-nal silencia acerca do procedimento a ser adotado

5. De acordo com a jurisprudência, a produção antecipada das provas,conforme o art. 366 do CPP, exige concreta demonstração da urgência e da necessidade da medida. Não é motivo hábil para justificá-la a simples assertiva de que as testemunhas, no futuro, possam vir a mudar de ende-reço, dificultando a colheita de provas, e que elas poderão perder a me-mória dos fatos. Nesse sentido: Informativo nº 416 do STJ – RHC 21.173/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2009. Na mesma linha: STF, 1ª Turma, HC 96.325/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 157 20/08/2009; STJ, 6ª Turma, HC 122.936/PB, Rel. Min. Nilson Naves, DJe 15/06/2009.

no caso de colheita dessa prova antecipada. Não obstante, com fundamento no art. 3º do CPP, que-remos crer ser possível a aplicação subsidiária do novo Código de Processo Civil, que trata de maneira expressa da matéria nos arts. 381 a 383.

1.4. Destinatários da provaDestinatários da prova são todos aqueles que

devem formar sua convicção. De modo geral, tem--se como destinatário o órgão jurisdicional (juiz outribunal) sobre o qual recai a competência para oprocesso e julgamento do delito.

Parte da doutrina sustenta que o Ministério Pú-blico também pode ser destinatário da prova. A de-pender do referencial adotado, sustentam, é possível dizer que o órgão ministerial, detendo a titularidade da ação penal pública, também é destinatário da prova, na medida em que, na fase pré-processual, as provas têm como finalidade o convencimento do órgão ministerial (formação de sua opinio delicti).6

Com a devida vênia, como visto anteriormente, na fase investigatória, não se pode usar a expressão ‘prova’, salvo no caso de provas cautelares, não re-petíveis e antecipadas. Objetiva o inquérito policial a produção de elementos de informação. Por isso, preferimos dizer que o órgão do Ministério Público é o destinatário desses elementos, e não da prova, cuja produção se dá, em regra, somente em juízo, quando a decisão acerca da prática de determinado fato delituoso compete única e exclusivamente ao juiz natural.

1.5. Elemento de prova e resultado da provaElementos de prova (evidence, em inglês) são

todos os dados objetivos que confirmam ou negam uma asserção a respeito de um fato que interessa à decisão da causa. Deve ser empregado no plural – elementos de prova ou elementos probatórios –, pois o convencimento judicial, em princípio, resulta demais de um, ou seja, de uma pluralidade de informa-ções. Funcionam, assim, como elementos de prova adeclaração de uma testemunha sobre determinadofato, a opinião emitida por perito sobre a matériade sua especialidade, o conteúdo de um documentojuntado aos autos, etc.

Sob outro prisma, a palavra prova pode ser vista como a conclusão que se extrai da análise dos elementos de prova constantes do processo: é o re-sultado da prova (proof, em inglês), obtido não ape-nas pelo somatório dos elementos de prova, como

6. FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6ªed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2009. p. 689.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

também por meio de uma atividade intelectual do magistrado, que permite estabelecer se a afirmação ou negação do fato é verdadeira, ou não.

Como aponta Gomes Filho, essa distinção entre elemento de prova e resultado de prova é de suma relevância prática no processo penal brasileiro. Na dicção do autor, nos casos em que a lei admite a ape-lação contra decisões do júri quando “for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos” (art. 593, III, d) ou quando autoriza a revi-são criminal diante da contrariedade “à evidência dos autos”, o sentido dessas expressões só pode ser o resultado da prova, não sendo viável entender-seque a existência de um só elemento poderia afastaro conhecimento da impugnação.7

1.6. Finalidade da provaA finalidade da prova é a formação da con-

vicção do órgão julgador. Na verdade, por meio da atividade probatória desenvolvida ao longo do pro-cesso, objetiva-se a reconstrução dos fatos investiga-dos na fase extraprocessual, buscando a maior coin-cidência possível com a realidade histórica. Verdade seja dita, jamais será possível se atingir com absoluta precisão a verdade histórica dos fatos em questão. Daí se dizer que a busca é da verdade processual, ou seja, daquela verdade que pode ser atingida atra-vés da atividade probatória desenvolvida durante o processo. Essa verdade processual pode (ou não) corresponder à realidade histórica, sendo certo que é com base nela que o juiz deve proferir sua decisão.

1.7. Sujeitos da provaSujeitos da prova são as pessoas ou coisas de

quem ou de onde deriva a prova, podendo ser pes-soal ou real. A prova pessoal consiste numa afirma-ção de conhecimento ou na certificação de fato ou fatos do processo. A prova real equivale à atestação que advém da própria coisa constitutiva da prova (o ferimento; o projétil balístico da arma utilizadana prática de um delito).

Como observa Adalberto Camargo Aranha, “to-dos os fatos deixam vestígios, que podem ser reais, ou morais. Os primeiros ligam-se à realidade incons-ciente das coisas, enquanto os segundos resultam de impressões conscientes do espírito. A coisa atesta, inconscientemente e sem influência do espírito hu-mano, vestígios do fato probando; é a prova real que, em última análise, consiste na atestação inconsciente feita por uma coisa na qual ficou impresso um si-nal. As perícias, as vistorias e todas as modificações

7. Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. Coord.: Flávio Luiz Yarshell e Maurício Zanóide de Moraes. São Paulo: DPJ Editora, 2005. p. 308.

corpóreas constituem prova real. O homem testemu-nha, mediante uma afirmação pessoal e consciente, um fato por ele conhecido por ciência própria ou por meio de terceiros; é a prova pessoal. É a revela-ção consciente feita por uma pessoa das impressões mnemônicas de um fato. A prova real é a atestação inconsciente feita por uma coisa”.8

1.8. Forma da provaQuanto à forma da prova, ou seja, a maneira

pela qual a prova se apresenta em juízo, a prova pode ser documental, material ou testemunhal.

Documento, do latim documentum, de docere (mostrar, indicar, instruir) é o papel escrito que traz em si a declaração da existência (ou não) de um ato ou de um fato (v.g., escritos públicos ou particulares, cartas, livros comerciais, fiscais, etc.). A prova ma-terial é aquela que resulta da verificação existencial de determinado fato, que demonstra a sua mate-rialização, tal como ocorre com o corpo de delito, instrumentos do crime, etc. Por fim, testemunhal é a prova que consiste na manifestação pessoal oral. A prova testemunhal é espécie do gênero prova oral, que é mais abrangente, já que inclui os esclareci-mentos de perito e assistente técnico, bem como eventuais declarações da vítima.

1.9. Fonte de prova, meios de prova e meios de obtenção de prova

A expressão fonte de prova é utilizada para desig-nar as pessoas ou coisas das quais se consegue a pro-va, daí resultando a classificação em fontes pessoais (ofendido, peritos, acusado, testemunhas) e fontes reais (documentos, em sentido amplo). Cometido o fato delituoso, tudo aquilo que possa servir paraesclarecer alguém acerca da existência desse fato podeser conceituada como fonte de prova. Derivam dofato delituoso em si, independentemente da existên-cia do processo, ou seja, são anteriores a ele, sendoque sua introdução no feito se dá através dos meios deprova. Exemplificando, suponha-se que determinadocrime tenha sido praticado dentro de uma sala deaula. Todas as pessoas que presenciaram o cometi-mento do delito serão consideradas fontes de prova.Essas pessoas poderão ser levadas à apreciação dojuiz, o que se dará pela sua introdução no processopelos meios de prova, in casu, pela prova testemunhal.

Por sua vez, meios de prova são os instrumen-tos através dos quais as fontes de prova são intro-duzidas no processo. Dizem respeito, portanto, a

8. ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2006. p. 25.

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uma atividade endoprocessual que se desenvolve perante o juiz, com o conhecimento e a participação das partes, cujo objetivo precípuo é a fixação de da-dos probatórios no processo. Enquanto as fontes de prova são anteriores ao processo e extraprocessuais, os meios de prova somente existem no processo. Como aduz Badaró, “a testemunha de um fato é a fonte de prova, enquanto suas declarações em juízo são o meio de prova. O documento é uma fonte de prova, a sua incorporação ao processo é o meio de prova. O livro contábil é a fonte de prova, enquanto a perícia contábil é o meio de prova”.9

Os meios de prova podem ser lícitos ou ilícitos. Somente os primeiros podem ser admitidos pelo ma-gistrado, dispondo o art. 157 do CPP que são inad-missíveis as provas ilícitas, assim entendidas as obti-das em violação a normas constitucionais ou legais, devendo ser desentranhadas dos autos do processo.10 Como destaca Nucci, os meios ilícitos abrangem não somente os que forem expressamente proibidos por lei, mas também os imorais, antiéticos, atentatórios à dignidade e à liberdade da pessoa humana e aos bons costumes, bem como os contrários aos princí-pios gerais de direito.11

Por fim, os meios de investigação da prova (ou de obtenção da prova) referem-se a certos procedi-mentos (em regra, extraprocessuais) regulados por lei, com o objetivo de conseguir provas materiais, e que podem ser realizados por outros funcionários que não o juiz (v.g., policiais). No Código de Processo Penal, apesar de inserida entre os meios de prova, a busca pessoal ou domiciliar deve ser compreendida como meio de investigação, haja vista que seu objeti-vo não é a obtenção de elementos de prova, mas sim de fontes materiais de prova. Exemplificando, se de uma busca domiciliar determinada pelo juiz resul-tar a apreensão de determinado documento, este sim funcionará como meio de prova, uma vez juntado aos autos do processo. Outros exemplos de meios de investigação são as interceptações telefônicas, regu-ladas pela Lei nº 9.296/96, bem como a infiltração de agentes, prevista tanto na Lei nº 11.343/06 (art. 53, inciso I), quanto na Lei nº 12.850/13 (arts. 10 a 14). Pelo menos em regra, devem ser produzidos sem prévia comunicação à parte contrária, funcionando a surpresa como importante traço peculiar, sem a qual seria inviável a obtenção das fontes de prova. Nesse ponto, diferenciam-se dos meios de prova, na medida em que, em relação a estes, é de rigor a observância ao

9. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 166.

10. Para mais detalhes acerca da inadmissibilidade das provas ilícitas, vide abaixo tópico pertinente ao assunto.

11. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 389/390.

contraditório, que pressupõe tanto o conhecimento acerca da produção de determinada prova, quanto a efetiva participação na sua realização.

Essa distinção entre meios de prova e meios de obtenção de prova também é importante quando se aponta as consequências de eventuais irregularidades ocorridas quando do momento de sua produção. De-veras, eventual vício quanto aos meios de prova terá como consequência a nulidade da prova produzida, haja vista referir-se a uma atividade endoprocessual. Lado outro, verificando-se qualquer ilegalidade no tocante à produção de determinado meio de obten-ção de prova, a consequência será o reconhecimento de sua inadmissibilidade no processo, diante da vio-lação de regras relacionadas à sua obtenção (CF, art. 5º, LVI), com o consequente desentranhamento dos autos do processo (CPP, art. 157, caput).

Em síntese, podemos trabalhar com o seguinte quadro comparativo entre os meios de obtenção de prova e os meios de prova:

Meios de obtenção de prova Meios de prova

– Em regra, são executa-dos na fase preliminar deinvestigações, o que nãoafasta a possibilidade deexecução durante o cursodo processo, de modo apermitir a descoberta defontes de prova diversasdas que serviram para aformação da opinio delicti;

– Em regra, são realiza-dos na fase processualda persecução penal; ex-cepcionalmente, na faseinvestigatória, observadoo contraditório, aindaque diferido (ex: provasantecipadas);

– são atividadesextraprocessuais;

– são atividadesendoprocessuais;

– são executados, em re-gra, por policiais aos quais seja outorgada a atribuição de investigação de infra-ções penais, geralmentecom prévia autorização econcomitante fiscalizaçãojudiciais;

– consistem em atividadesdesenvolvidas perante ojuiz competente, valendolembrar que o juiz quepresidir a instrução deve-rá, pelo menos em regra,julgar o feito (CPP, art.399, § 2º);

– são praticados com fun-damento na surpresa, com desconhecimento do(s)investigado(s);

– são produzidos sob ocrivo do contraditório,com prévio conhecimentoe participação das partes;

– se praticados em des-conformidade com omodelo típico, há de serreconhecida sua ilicitude,com o consequente desen-tranhamento dos autos doprocesso.

– se praticados em descon-formidade com o modelotípico, são sancionados,em regra, com a nulidadeabsoluta ou relativa.