reminiscências da cultura clássica em luís soares, de machado de assis

Upload: rejane

Post on 07-Mar-2016

222 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

TCC apresentado.

TRANSCRIPT

REMINISCNCIAS DA CULTURA CLSSICA EM, LUS SOARES, DE MACHADO DE ASSIS.

Rejane Muratori Zapal Pimentel UFV

RESUMO: No presente artigo so analisados os dilogos observados entre a narrativa machadiana e a cultura greco-romana no conto Lus Soares, enfocando a presena dos conceitos de mito, de mitema, de clssico, da intertextualidade e do dialogismo, que sero brevemente abordados neste estudo, a fim de elucidar e embasar as anlises que sero realizadas.

PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis. Dialogismo. Intertextualidade. Mito. Clssico.

ABSTRACT: In this paper the dialogues that can be established between the Greco-Roman culture and Machado's narrative in the tale named Lus Soares are analyzed. The focus is on the presence of myths concepts, of mytheme, of classic, of intertextuality and of dialogism, which will be briefly covered in this study, in order to elucidate and to support the analyzes that will be done.

KEY WORDS: Machado de Assis. Dialogism. Intertextuality. Myth. Classic.

1- INTRODUO

Machado de Assis foi um grande escritor brasileiro, fundador da Cadeira n 23 da Academia Brasileira de Letras e produziu vrias obras, sendo: doze romances, crnicas, poesia, teatro e uma srie de contos, dentre eles Contos Fluminenses, datado de 1870. Esse livro foi o quarto lanado pelo autor, mas o primeiro de contos, e considerado obra de sua primeira fase.

Nele retratada de forma bem detalhada a vida da sociedade carioca daquela poca, possibilitando ao leitor uma importante visualizao do cenrio no qual o texto literrio se desdobra e os personagens vivenciam. Para Coutinho, Machado nos proporcionou a oportunidade de conhecimento do estilo de vida daquela poca onde

o que predominava no a preocupao social sem, embargo de estar presente a imagem do social, a sociedade de seu tempo, por ele observada com olhar agudo, sensvel e registrador, o que a tornou um seguro retrato de sua poca. Mas a realidade, o meio, para ele, constituam apenas a base, a matria-prima que, imagem de todos os grandes artistas, ele transfigurava em arte. (COUTINHO, 2006, p. 24)

Joaquim Maria Machado de Assis foi um autor que [...] foi admirado e apoiado desde cedo, [...] aos cinquenta anos era considerado o maior escritor do pas, objeto de uma reverncia e admirao gerais, que nenhum outro romancista ou poeta brasileiro conheceu em vida, antes e depois dele. (CANDIDO,1968, p. 16). Trata-se portanto de um escritor com uma inteligncia e perspiccia bem acima da mdia que conquistou com dedicao, o reconhecimento que persiste e persistir para todas as geraes pois

hoje o escritor nacional por excelncia. Sua obra no perde em releitura, ao contrrio sempre excitante todas as vezes que dela nos aproximamos. No se tendo limitado aos cnones de nenhuma escola, sabendo ao invs de beneficiar-se das contribuies vlidas que podiam oferecer-lhe; com a sua notvel capacidade de absorver lies e influncias, fosse da realidade, fosse das leituras, sem deixar de ser ele mesmo. (COUTINHO, 2006, p. 24)

Como metodologia de trabalho para a elaborao desse artigo, foram realizadas as seguintes tarefas: primeiramente foi selecionado e lido o conto Lus Soares; a partir da leitura, foram identificados os mitemas presentes na obra, em seguida foi realizado o levantamento bibliogrfico a fim de promover a aplicao dos conceitos tericos que seriam abordados. Aps esses momentos, o conto foi relido e reanalisado para possibilitar a percepo das influncias da cultura clssica no texto em questo, percebendo nas citaes, como Machado utilizou as reminiscncias dessa cultura atravs da utilizao de uma parte mnima do mito, os mitemas.

O objetivo deste trabalho fixa-se exatamente neste ponto: examinar como Machado insere no conto Lus Soares fragmentos da Antiguidade Clssica e tentar levantar hipteses de porque o autor utiliza de forma to recorrente em suas obras essa estratgia de narrao. Para que as anlises faam sentido e para a contextualizao da obra, sero aqui citadas algumas passagens do conto, sempre mencionando que a nossa proposta consiste em investigar como a cultura clssica est presente no conto machadiano j citado.

importante, portanto, inicialmente esclarecer o que vem a ser os mitemas, pois esta a principal temtica deste trabalho. Para Montesini: [...] mitema, [...] seria a parte mnima do mito, visto que este pode conter em si vrias narrativas interligadas. Se tomarmos o mito de Hrcules como exemplo, teremos cada trabalho executado por esse heri como um mitema. (MONTESINI, 2010, p. 24).

Tambm preciso elucidar como o conceito de mito trabalhado no conto, pois ser buscado, neste artigo, compreender e analisar como Machado de Assis utiliza um fragmento, um resduo, uma reminiscncia desses mitos no texto.

Sendo assim, Machado, ao mencionar nomes de criaturas mitolgicas e personagens cones da Antiguidade Clssica, utiliza o mito, ou parte dele, como uma narrativa que enriquece ainda mais as suas produes literrias.

Ainda trabalhando o conceito de mito, fundamental esclarecer que mitos so [...], narrativas tradicionais, para Burket, e , segundo esse autor

narrativa uma forma de linguagem que condicionada, na sua sequncia caracterstica, pela linearidade da linguagem humana e, na sua dinmica, veiculada pelo tipicismo da vivncia do homem. A narrativa tradicional est sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novo . Nesta medida, mito uma sntese a priori. A , a relao com a realidade, secundria e a maior parte das vezes s parcialmente certa: a narrao tem o seu . (BURKET, 1991, p.16)

H trabalhos anteriores em que j se encontraram mitemas nas produes machadianas, como o caso de Miss Dolar, A mulher de Preto, A mo e a Luva e Helena, o que demonstra que Machado era um conhecedor e leitor assduo dos clssicos e que estabelecia de forma recorrente uma relao intertextual com o passado clssico e toda a sua cultura.

Compulsando o conto Lus Soares, foram encontrado seis mitemas que remetem Antiguidade Clssica, quais sejam: trs personagens histricos, um se referindo a um general conhecido e lembrado atravs de milnios por suas grandes conquistas e seu grande imprio alm de dois cidados atenienses; e trs personagens ficcionais, no caso um monstro e duas divindades.

Esses mitemas nem sempre so facilmente compreendidos por quem l o conto, mas, a partir do significado que eles portam, possvel que o leitor, sendo dialgico, compreenda de forma mais completa a obra machadiana, e se aprofunde nos traos psicolgicos dos personagens, que nem sempre so detectados de forma bvia quando se realiza a leitura do texto.

Para embasar e orientar as anlises dos fragmentos do conto, que sero realizadas mais adiante, preciso elucidar alguns conceitos. O primeiro que abordaremos o da intertextualidade, pois possvel considerar que Machado estabeleceu relaes de intertextuais com a Antiguidade Clssica, e esses conceitos so desenvolvidos por Kristeva (1976) e Fiorin (2006). Kristeva se baseou nas teorias bakhtinianas para elaborar um conceito para essa referncia a outro texto como sendo o seguinte: A palavra (o texto) um entrecruzar de palavras (de textos) onde se l pelo menos uma outra palavra (texto). (...) todo o texto se constri como mosaico de citaes, todo o texto absoro e transformao de um outro texto (KRISTEVA 1976, p. 72).

Fiorin em seu livro intitulado Introduo ao Pensamento de Bakhtin, faz meno Kristeva, explicitando que a autora em

[...]sua apresentao de Bakhtin na Frana, publicada em 1967 na revista Critique [...] diz que, para o filsofo russo, o discurso literrio no um ponto, um sentido fixo, mas um cruzamento de superfcies textuais, um dilogo de vrias estruturas, um cruzamento de citaes. (FIORIN 2006, p. 51).

Fiorin, ainda na mesma obra citada, conceitua intertextualidade, sendo que para ele:

[...] deveria ser a denominao de um tipo composicional de dialogismo: aquele em que h no interior do texto o encontro de duas materialidades lingusticas, de dois textos. Para que isso ocorra, preciso que um texto tenha existncia independente do texto que com ele dialoga. (idem, ibidem, p. 52)

Portanto, a intertextualidade, para os dois autores citados, ocorre no momento em que h duas materialidades lingusticas quando, por exemplo, dois textos so analisados, e um possui existncia independente do outro, como ocorre em Machado ao utilizar os fragmentos da cultura clssica em suas produes literrias. Montesini resume muito bem esse conceito dizendo que a obra literria s completa, portanto, dentro de um sistema literrio, a partir de sua relao com seus arqutipos, que a transformam (MONTESINI, 2010, p. 20)

O conceito de clssico tambm deve ser aqui abordado, o que, segundo Calvino, dentre outras acepes, vem a ser ser [...] aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatvel (CALVINO, 1993, p. 15). Para esse autor ento, o clssico o que est sempre presente, atual, permitindo ser estudado e analisado vrias vezes e ainda assim descobrir alguma interpretao que seja nova. Para Calvino os clssicos servem para entender quem somos e aonde chegamos. (idem, ibidem, p. 16).

Esse amplo conceito que pormenoriza o fato de os clssicos sempre estarem atuais no importando quanto tempo passe, deve ser aqui trabalhado por pensarmos que Machado utiliza a mitologia clssica em diversas produes literrias aps muitos sculos se passarem e essa remisso, portanto, caracteriza que o clssico sempre ser relembrado e reinventado ao longo do tempo.

O ltimo conceito que ser tratado aqui o de dialogismo que elaborado a partir de uma relao de sentido entre dois enunciados, como define Fiorin (2006), para este autor

[...] todos os enunciados no processo de comunicao, independentemente de sua dimenso, so dialgicos. Neles, existe uma dialogizao interna da palavra, que perpassada sempre pela palavra do outro, sempre e inevitavelmente tambm a palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que est presente no seu. Por isso, todo discurso inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo so as relaes de sentido que se estabelecem entre dois enunciados (FIORIN,2006, p.19).

No conto em anlise, Machado utiliza com frequncia o dilogo com a cultura Clssica, no qual leva-se em considerao a relao discursos que se perpassam. Mais adiante no artigo, precisamente nas anlises, sero ainda tratados os conceitos de estilizao e pardia, trabalhados por Fiorin (2006).

A partir da contextualizao do autor, da construo da metodologia de trabalho, do objetivo do presente artigo e de acordo com o referencial terrico supracitado, nos dedicaremos, na seo seguinte, s anlises do conto Lus Soares, nas quais sero trabalhadas as relaes entre os conceitos j citados e a presena dos mitemas.

2- A OBRA E ANLISE DOS MITEMAS

2.1 Lus Soares, o afortunado?

Os primeiros fragmentos da cultura clssica -chamado aqui de mitemas-, esto situados no captulo primeiro do conto machadiano, logo aps o narrador ter descrito a vida e a rotina nada comuns do personagem Lus Soares, que deve ser aqui citada a fim de posteriormente dispormos de uma anlise mais completa

Livre em todas as minhas aes, no quero sujeitar-me lei absurda que a sociedade me impe: velarei de noite, dormirei de dia.

[...]

A aurora para ele era o crepsculo, o crepsculo era a aurora. Dormia doze horas consecutivas, durante o dia, quer dizer das seis da manh s seis da tarde. Almoava s sete e jantava s duas da madrugada. No ceava. A sua ceia limitava-se a uma xcara de chocolate que o criado lhe dava s cinco horas da manh quando ele entrava para casa. Soares engolia o chocolate, fumava dous charutos, fazia alguns trocadilhos com o criado, lia uma pgina de algum romance, e deitava-se. (ASSIS, 2006, p. 44)

possvel afirmar por meio do trecho citado, que o personagem central do conto se trata de um bom vivant, que aproveita intensamente a herana abastada que seu pai deixara at o dia em que fica sem dinheiro. Pode-se pressupor que Lus Soares no exercia qualquer ofcio ou ocupao e sua rotina se baseava em dormir na maior parte do dia e sair na madrugada para se divertir.

Alm disso, possvel considerar tambm que ele repetia a mesma rotina todos os dias e era uma pessoa de personalidade aptica, alm de que no conseguia nem mesmo amar algum verdadeiramente, pois segundo a fala do prprio personagem em discurso direto, ele nasceu, [...] com a grande vantagem de no ter cousa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabea. Isso que chamam de juzo e sentimento [...] so verdadeiros mistrios. No os compreendo porque no os sinto (idem, ibidem, p. 45)

Ao avanar algumas frases no texto machadiano, encontra-se o primeiro mitema da obra, que est no seguinte trecho:

Soares acrescentava que a fortuna suplantara a natureza deitando-lhe no bero em que nasceu uma boa soma de contos de ris. Mas esquecia que a fortuna, apesar de generosa, exigente, e quer da parte dos seus afilhados algum esforo prprio. [...] Quando v que um tonel esgota a gua que se lhe pe dentro, vai levar os seus cntaros a outra parte. (idem, ibidem, p.45)

Para Harvey, Fortuna na religio romana a deusa que traz, [...] deve-se notar que seu nome no era usado com a significao usual e popular da palavra fortuna, isto , boa sorte, acaso e sim, no sentido de destino, (Harvey, 1987, p.239) portanto o seu nome era utilizado para determinar o destino de um homem. Aqui, o narrador machadiano estabelece, uma relao dialgica, pois pretende valer-se, no conto, de um sentido semelhante ao que a palavra possua na antiguidade, pois a fortuna que supera a natureza e exige empenho dos que a possuem, acaba por reger o destino de Lus Soares.

Segundo o dicionrio Michaelis, fortuna significa, entre outras definies bens, riqueza, boa sorte, felicidade. No conto, seu sentido o da felicidade produzida pelo gozo de boas condies econmicas, tendo em vista que Soares foi um personagem que durante toda a vida foi contemplado pela presena dessa sorte; quando a perdeu, ficou desafortunado, sem direo e sentido certos na vida.

Para reforar ainda mais essa considerao, Grimal (1987, p. 178), afirma em seu dicionrio que a deusa Fortuna

foi respeitada na religio romana da poca clssica. Identificava-se com efeito, com a Tique grega. Era representada com o corno da abundncia, com um lema (porque ela , umas vezes sentada, outras vezes de p, quase sempre cega., ou seja, ela que determina a direo que a vida de cada um seguir. (idem, ibidem, p. 178)

No conto em questo, Machado insere a divindade clssica como se existisse, de fato, uma deusa Fortuna que zomba da vida do personagem Lus Soares e que controla o seu destino. Portanto, no momento em que fica pobre, ele deixou de ser abenoado e agraciado pela Fortuna, e configura-se assim, uma ironia do destino, pois tudo o que Soares almejava era usufruir por toda a vida de sua fortuna, e esta acabou por escapar dele facilmente.

A releitura feita por Machado evocando a presena da deusa, nos faz refletir que a qualquer momento uma transformao pode ocorrer na vida dos homens em virtude de uma desgraa. Quando pensamos nisso na realidade do conto, a desgraa vivenciada por Soares foi ficar pobre.

O narrador machadiano ento, ao utilizar a palavra fortuna com um sentido semelhante ao que era utilizado na antiguidade, ou seja no sentido clssico, estabelece o que, Fiorin (2006, p.18) entende ser, [...]a ocupao do discurso pela palavra do outro, sendo este o motivo de nenhum discurso ser totalmente original, visto que todo discurso possui marcas de outro j existente..

Ainda utilizando esse mitema, podemos afirmar que o narrador machadiano estiliza o termo fortuna no excerto citado e estabelece o que, segundo Fiorin vem a ser [...] a imitao de um texto ou estilo, sem a inteno de negar o que est sendo imitado, de ridiculariz-lo, de desqualific-lo. (2006, p. 43)

Nesse mitema possvel encontrar, assim, o que chamado por Fiorin (2006, p. 48) de dialogismo estilstico., no qual um termo to remoto relembrado e trabalhado de forma to eficiente em um texto atual, preservando, ainda, algo equivalente ao que essa terminologia significava para os povos da antiguidade.

Vale ressaltar que, na utilizao desse mitema, o narrador estabelece uma relao com o clssico de uma forma pouco clara para o leitor do conto que no possui um conhecimento a respeito dessa pequena parte da mitologia grega. Mas, importante frisar um ponto observado: mesmo que o leitor desconhea a carga histrica e mitolgica do termo, a compreenso do texto literrio no ficar prejudicada em seu todo.

Sendo assim, se o termo fortuna for pensado como sorte, felicidade, assim como est no dicionrio, possvel que fique claro para o leitor que a partir do momento em que Soares se encontrou pobre, a sua sorte, to presente em toda a vida, o deixou. J pensando no termo Fortuna tambm como divindade, possvel que seja realizada uma leitura mais completa, pois considerado que o destino do personagem, pilotado pela Deusa, foi definido de acordo com a vontade divina em zombar de Soares.

2.2 A temida Hidra

Avanando um pouco mais no texto literrio, o narrador machadiano nos contempla com a presena do segundo mitema:

Cuidava que os seus bens eram remanescentes como as cabeas da hidra antiga. Gastava s mos largas; e os contos de ris, to dificilmente acumulados por seu pai, escapavam-se-lhe das mos como pssaros sequiosos por gozarem do ar livre. Achou-se portanto pobre quando menos esperava. (ASSIS, 2006, p.45)

A hidra de lerna, segundo Grimal (2005, p. 209), foi um monstro criado para testar Hracles, em seus doze trabalhos, e foi extremamente difcil para o semideus cumprir a tarefa e mat-la pois cada cabea cortada voltava a crescer.

A hidra de lerna ainda possua a peculiaridade de ter a cabea do meio [...] imortal. Hracles, entretanto, cortou-a e enterrou-a. Colocou-lhe depois em cima de um enorme rochedo. Por fim, molhou as suas flechas no veneno da hidra (ou no seu sangue), envenenando-as assim. (GRIMAL 2005, p. 209).

Com base nas consideraes acima, possvel perceber que trata-se de um monstro impossvel de ser exterminado e no entanto, Hracles, com muita perspiccia e com a ajuda de seu sobrinho Iolau, conseguiu derrot-lo e assim concluir sua misso.

Nesse sentido o narrador, nessa passagem do texto, remete ao rduo trabalho de Hracles e possivelmente espera que o leitor faa as devidas associaes e considere que Soares imaginava o patrimnio lhe deixado pelo pai como algo permanente, contnuo e indestrutvel, assim como eram as cabeas da prpria hidra.

Esse monstro mitolgico pode ter sido escolhido nesse momento do texto para enfatizar o modo como Soares vivia, ou seja, de forma tranquila e despreocupada, sem trabalhar e exercer qualquer atividade para preservar os seus bens, talvez por imaginar que a sua riqueza seria eterna.

bem notvel que Machado estabelece aqui uma relao de ironia, sendo este um recurso dialgico do discurso parodstico (FIORIN, 2008), visto que ele subverte o sentido da figura do monstro mitolgico, que possua vrias cabeas, sendo de difcil aniquilao e remanescente, para se referir a dilapidao do patrimnio de Soares. Essa subverso caracterizada pelo fato de o dinheiro no ser algo que se regenera e ressurge quando gastado, prova disso est inclusive no conto, no qual Soares esbanja tanto ao longo de sua vida, que acabou ficando sem o seu patrimnio.

Atravs dessa releitura do mitema, o autor nos oferece uma percepo de como o personagem do conto possua um pensamento inocente e superficial quanto as suas prprias posses, e como Soares era acomodado e vivia confiando que estaria imune de ficar na pobreza sem, claro fazer nenhum tipo de esforo.

Nessa relao dialgica com o clssico, o narrador machadiano nos demonstra de forma clara a associao feita com a mitologia greco-romana, oferecendo para o leitor, mesmo que este no se atente para os fatos, a oportunidade de perceber do que est sendo falado no conto e relacione o pensamento do personagem com a criatura mitolgica em questo.

2.3 Aspsia e Alcibades, os companheiros ideais para Soares

O terceiro e o quarto mitema aparecem bem mais adiante na obra, no segundo captulo . Portanto necessrio que se conte um pouco da histria a fim de que haja uma plena compreenso do momento em que eles esto inseridos.

Lus Soares ao ficar pobre, vai para a casa de um tio, o Major Lus da Cunha Vilela, que descrito de forma irnica, com o autor criticando veladamente a mentalidade poltica da poca, seno vejamos:

[...] era com efeito um homem j velho e adoentado. Contudo no se podia dizer que morreria cedo. O Major Vilela observava um rigoroso regmen que lhe ia entretendo a vida. Tinha uns bons sessenta anos. Era um velho alegre e severo ao mesmo tempo. Gostava de rir, mas era implacvel com os maus costumes. Constitucional por necessidade, era no fundo de sua alma absolutista. Chorava pela sociedade antiga; criticava constantemente a nova. Enfim foi o ltimo homem que abandonou a cabeleira de rabicho. (ASSIS, 2006, p.48)

Nesse momento tambm inserida na histria a personagem Adelaide, prima de Soares, que ser tambm trabalhada de forma mais detalhada adiante

Vivia o Major Vilela em Catumbi, acompanhado de sua sobrinha Adelaide, e mais uma velha parenta. A sua vida era patriarcal. Importando-se pouco ou nada com o que ia por fora, o major entregava-se todo ao cuidado de sua casa, aonde poucos amigos e algumas famlias da vizinhana o iam ver, e passar as noites com ele. (ASSIS,2006, p.48)

Com a leitura do conto, possvel perceber que o major era um homem bastante dedicado sua sobrinha, e tinha a famlia como a sua maior riqueza. Prova disso que abriu as portas de sua casa e recebeu com todo o carinho o sobrinho que no via h anos, enquanto Soares pretendia mesmo que o tio o colocasse, usando a sua influncia, em um bom emprego pblico com um bom salrio.

Ento, Soares dissimula de forma bastante convincente que estava arrependido da vida boemia que teve, e que a partir daquele momento queria adquirir mais responsabilidade, fazendo assim com que o tio se convencesse de sua sinceridade e o recomendasse, atravs de uma carta, a um ministro. Assim da a um ms estava empregado em uma secretaria com um bom ordenado. (idem, ibidem, p.49)

Mas, com o decorrer do conto, o narrador machadiano demonstra toda a inteno de Soares, que como todo bom libertino pretendia retornar sua vida da mesma forma que era antes: Aquilo na existncia de Soares no passava de um parntesis mais ou menos extenso. Almejava por fech-lo e continuar o perodo como havia comeado, isto , vivendo com Aspsia e pagodeando com Alcibades. (idem, ibidem, p.50)

Neste fragmento encontram-se os dois mitemas que remetem-se a cidados atenienses, o narrador utiliza da intertextualidade, a qual, segundo Kristeva (1974), encontrada quando a linguagem se encontra de forma dupla. Esta intertextualidade ocorre a partir da citao dos cidados atenienses, uma vez que h referncia s suas pessoas, e mister que haja a assimilao de quem eles foram para a interpretao total da narrativa e da inteno machadiana.

O primeiro a ser trabalhado ser Aspsia, que segundo Harvei era a companheira de Pricles, que

foi um homem de carter forte, sbrio, incorruptvel e reservado [...] ele dominava Atenas graas sua oratria persuasiva, ao seu carter e a sua poltica que se impunha por si mesma a maioria dos cidados. Sua autoridade era to grande que o perodo de seu governo passou a ser conhecido como a poca de Pricles [...] sob sua liderana Atenas, embora sendo nominalmente uma democracia, foi de fato, dirigida por seu melhor cidado. [...] Escolheu para ser sua companheira de toda a vida a clebre hetaira ou cortes Aspsia de Miletos, uma mulher perfeita (HARVEY 1987, p. 389)

Aspsia foi uma figura notvel em um mundo na qual a mulher era vista sempre como inferior, tendo em vista que os adversrios de Pricles viam nela uma cortes que vivia de seu charme e levava uma vida brilhante, especialmente quando tinha a sorte de trair amantes ricos. Sua relao com Pricles, contudo, parece ter sido slida e duradoura. (MOSS, 1924, p.47)

Nesse mitema, Machado possivelmente estabelece que Soares almejava se relacionar, ou se divertir na noite, com uma mulher como Aspsia, visto que ela seria o tipo feminino ideal para o personagem do conto em questo. claro que Soares, tendo o esprito da boemia muito evidente em si, apreciaria muito bem as qualidades de Aspsia quando estivesse na noite, pois estaria acompanhado de uma prostituta elegante, charmosa e culta, mas, que fique claro, Aspsia no era uma mulher para se casar.

Mencionando o nome da cortes ateniense, o narrador pode ter pretendido mostrar que Soares no desejava para si mesmo, mesmo que s para se divertir, uma mulher comum, ou seja, sem qualidades relevantes e uma beleza que seduzisse a todos, alm de que enfatiza mais uma vez que Soares no pretendia viver um relacionamento pautado em casamento e construo de famlia com ningum.

O terceiro mitema presente no conto Alcibades, que, segundo Harvey (1987, p.26) era um ateniense de famlia nobre, [...] homem de beleza e talento notveis, mas arrogante, inescrupuloso e dissoluto. Era com Alcibades que Soares queria se divertir, pois se observarmos a descrio feita de Alcibades, o carter dos dois bem semelhante, e dessa forma, podemos pressupor que se um encontro viesse a ocorrer, os dois construiriam, com toda certeza que nos orienta o narrador, uma relao de afinidade e seriam amigos de boemia.

Aqui, Machado utiliza o mitema de forma estilizada, pois no adultera quem foi Alcibades, e sim demonstra que o personagem do conto queria conviver e se divertir com algum como o cidado ateniense, ou seja, algum de personalidade duvidosa e uma posio social privilegiada. Assim, o autor pretende dar destaque ao fato de que Soares em nada mudou ou amadureceu aps reencontrar o seu tio e comear a trabalhar, muito pelo contrrio.

Nesses dois mitemas, o narrador machadiano nos oferece releituras da mitologia clssica colocadas de forma estratgica no conto, estabelecendo, assim, uma relao intertextual. Tambm faz uso de um processo dialgico ao selecionar essas duas figuras gregas supracitadas e aplic-las na construo psicolgica de Soares, estabelecendo, assim, relaes entre eles, a fim de nos dizer e frisar mais uma vez, que Lus Soares queria sem dvida, viver na boemia.

Ainda com base nas informaes oferecidas acima sobre Aspsia e Alcibades, podemos supor que, nessa relao com o clssico, evidencia-se ainda mais a personalidade boemia do personagem Lus Soares, se considerarmos que ele pretendia se relacionar na noite com uma mulher como Aspsia e aproveitar a vida libertina com Alcibades.

O que possvel concluir com a presena desses dois mitemas no conto que, portanto, Machado coloca no conto em questo o que Fiorin considera ser (2008, p. 18), ecos e lembranas de outros enunciados que confirma e completa os sentidos estabelecidos entre eles, instaurando dessa forma, uma relao de dialogismo e dilogo.

2.4 Adelaide, a Afrodite machadiana

Tendo em vista esses pensamentos de Soares, podemos pressupor que neste momento do conto ele no se sentiu realizado e satisfeito, fato que veremos neste momento. O terceiro captulo do conto se inicia com o narrador descrevendo a personagem Adelaide:

A prima Adelaide tinha vinte e quatro anos, e a sua beleza, no pleno desenvolvimento da sua mocidade, tinha em si o condo de fazer morrer de amores. Era alta e bem proporcionada; tinha uma cabea modelada pelo tipo antigo; a testa era espaosa e alta, os olhos rasgados e negros, o nariz levemente aquilino. Quem a contemplava durante alguns momentos sentia que ela tinha todas as energias, a das paixes e a da vontade. (ASSIS, 2006.p. 51)

Adelaide possua ento hipoteticamente um ideal de beleza clssico, pois retratada como possuindo uma estrutura equilibrada e proporcional, o que nos remete as esculturas clssicas, com as suas formas em total harmonizao.

O narrador tambm menciona que ela tinha o poder de fazer morrer de amores, fato que nos permite inferir que Machado pode considera-la como a Afrodite da histria, pois a Deusa portava todo o poder de provocar amor e desejo.

necessrio mencionar trechos da obra para que fique claro a relao dos dois personagens, sendo que Adelaide amava Soares, mas ele a ignorava, dizendo que quem tem a minha fortuna no se casa; mas se se casa sempre com quem tenha mais. Os bens de Adelaide so a quinta parte dos meus; para ela negcio da China; para mim um mau negcio. (idem, ibidem, p.51).

A prima, no entanto, sentia por Soares um amor puro e verdadeiro suprimido h muitos anos. O narrador menciona o sentimento de Adelaide e o descreve minunciosamente mencionando que Adelaide amara o primo, no com um simples amor de primos, que em geral resulta da convivncia e no de uma sbita atrao. Amara-o com todo o vigor e calor de sua alma (idem, ibidem, p.51).

Mesmo resguardando todo esse amor, Adelaide fazia o possvel para no ser notada, pois ela convivia com ele sem lhe tratar de forma diferenciada ocultando sempre que podia as suas emoes. O narrador menciona a relao dos primos como uma convivncia extremamente distante na qual poucas palavras so trocadas.

Mas, com a convivncia

A prima de Lus Soares sentiu que pouco a pouco lhe ia renascendo o antigo afeto. Procurou combat-lo sinceramente; mas no se impede o crescimento de uma planta seno arrancando-lhes as razes. As razes existiam ainda. Apesar dos esforos da moa o amor veio pouco a pouco invadindo o lugar do dio, e se at ento o suplcio era grande, agora era enorme. Travara-se uma luta entre o orgulho e o amor. A moa sofreu consigo; no articulou uma palavra.

Lus Soares reparava que quando os seus dedos tocavam os da prima, esta experimentava uma grande emoo: corava e empalidecia. Era um grande navegador aquele rapaz nos mares do amor: conhecia-lhe a calma e a tempestade. Convenceu-se de que a prima o amava outra vez. A descoberta no o alegrou; pelo contrrio, foi-lhe motivo de grande irritao. (idem, ibidem, p. 52)

Machado ento, ao mencionar o tipo de beleza de Adelaide e o fato de ela guardar e canalizar dentro de si o amor pelo primo, nos remete a uma possvel associao com a deusa clssica, mas, importante considerar que nenhum personagem da poca, no caso do sculo XIX, possuem caractersticas capazes de nos remeter de forma convicta a deuses clssicos de fato.

Na readaptao do mitema, ao comparar uma simples moa da poca com uma divindade olmpica (Vnus, para os romanos, ou Afrodite para os gregos, era a deusa do amor e da beleza), h uma espcie de rebaixamento da divindade, fazendo com que esse trecho seja uma representao do avesso ao sagrado, portanto, profano.

De acordo com o conto, possvel inferir que Adelaide no possui semelhanas com Afrodite e tambm podemos inferir de acordo com a descrio e o direcionamento que nos oferecido pelo narrador machadiano, que ela no possui em si a capacidade de fazer qualquer um morrer de amores e que trata-se de uma moa simples, muito tmida e retrada para manifestar as suas emoes. Era tambm muito submissa ao tio, no tendo o poder de questionar as decises tomadas por ele que diziam respeito a sua prpria vida, como quando este a prometeu em casamento a Soares sem a consultar primeiro, como ser trabalhado no prximo mitema.

Machado ento se relaciona de forma dialgica com o clssico neste momento de forma obscura, pois somente os leitores mais crticos observariam a relao com a deusa Afrodite. Sendo assim, para que as devidas associaes sejam feitas, preciso que o conto seja lido com bastante cautela para que a lembrana da deusa olmpia se confirme. (Fiorin, 2008, p. 18)

2.5 Lus Soares, o Alexandre de seu tempo?

Avanando um pouco mais no conto, o Major, percebendo o amor que Adelaide nutria por Soares, props ento que os sobrinhos se casassem mas Soares j pressentia que o tio tomaria essa deciso, e o narrador nos conta que ele

Receava que o tio, descobrindo o sentimento da sobrinha, propusesse o casamento [...]; e recus-lo no seria comprometer no futuro a esperada herana? A herana sem o casamento era o ideal do moo. Dar-me asas, pensava ele, atando-me os ps, o mesmo que condenar-me a priso. o destino do papagaio domstico; no o aspiro a t-lo. (ASSIS, 2006, p. 52)

Adelaide estimava o primo, mas quando foi informada da deciso, temia que Soares inferisse que ela esmolava os afetos do seu corao (idem, ibidem,p.53), demonstrando que era um mulher orgulhosa e que preferia o sofrimento humilhao. (idem, ibidem, p.53)

Adelaide ento comeou a observar as atitudes do primo e notou nele expresses de desprezo direcionadas a ela

Duas vezes notou Adelaide essa expresso de desdm da parte do primo. Que mais precisava para reconhecer que o rapaz sentia por ela a mesma indiferena de outro tempo! Acrescia que sempre que os dous se encontravam ss, Soares era o primeiro que se afastava dela. Era o mesmo homem.

No me ama, no me amar nunca! dizia a moa consigo. (idem, ibidem, p.53)

Em um dia chega Catumbi Anselmo, fazendeiro rico, veterano da independncia e capaz de grandes feitos (idem, ibidem, p.53). Ele tinha tido uma relao de amizade com o pai de Adelaide e chorou a perda como se fora seu prprio irmo (idem, ibidem,p.53), fato que comoveu o major e estabeleceu grande amizade para os dois. Anselmo era um homem bastante expansivo e afetuoso, o narrador machadiano o caracteriza como sendo um verdadeiro fogo de artifcio (idem, ibidem, p.54), e ele no gostou de Lus Soares pelo fato de ele no demonstrar bem a sua alegria, por ser aptico, como j citado anteriormente.

Anselmo determinou que no dia 15 de dezembro seria realizada uma conferncia com o major e seus familiares e a escolha desta data se deu pelo fato de ser aniversrio de 10 anos da morte do pai de Adelaide que descrito como sendo

um gnio excntrico; toda a sua vida foi uma grande originalidade. Ideava vinte projetos, qual mais grandioso, qual mais impossvel, sem chegar ao cabo de nenhum, porque o seu esprito criador to depressa compunha uma cousa como entrava a planear outra. (idem, ibidem, p.54).

O fazendeiro relata que este o confiou um papel com a declarao de que eu s o abrisse em presena dos seus parentes dez anos depois de sua morte (idem, ibidem, p.54), e continua dizendo que

antes de morrer, continuou Anselmo, o meu querido amigo entregou-me uma parte da sua fortuna, quero dizer a maior parte, porque a menina recebeu apenas trinta contos. Eu recebi dele trezentos contos, que guardei at hoje intactos, e que devo restituir segundo as indicaes desta carta (idem, ibidem, p.55)

A carta escrita pelo pai de Adelaide, portada por Anselmo, impunha uma condio para que Adelaide recebesse a herana, qual seja, ela precisaria se casar com o primo, a quem o pai dela tinha profunda afeio.

Dessa forma, Adelaide descobre que dona de uma fortuna, e com isso, lana um olhar insensvel ao primo, que agora a olhava com contentamento e ternura (idem, ibidem, p.55). Adelaide o olhou por alguns instantes e um sorriso, j no zombeteiro, passou pelos lbios do rapaz. A moa sorriu com tamanho desdm s zumbaias de um corteso. (idem, ibidem, p.55). Agora, ocorreu uma inverso de papis, no qual o primo que sempre a esnobava e ignorava agora se torna alvo de todo o desprezo e frieza dela.

O Major, mostrando novamente que tem bons sentimentos, chama Soares para uma conversa e diz

_Lus, [...] s o homem mais feliz do mundo.

Parece-lhe meu tio? Disse o moo procurando disfarar sua alegria.

_s, tens uma moa que te ama loucamente. De repente cai-lhe nas mos uma fortuna inesperada; e essa fortuna s pode hav-la com a condio de se casar contigo. At os mortos trabalham a seu favor. (idem, ibidem,p.55)

O tio, durante a conversa, aconselha Soares afirmando que a riqueza no essencial [] no te aconselho que te cases com ela se no tiveres alguma afeio. Nota que eu no me refiro a essas paixes de que me falaste. Casar mal, apesar da riqueza, sempre casar mal. (idem, ibidem, p. 56)

Assim, Soares demonstrando mais uma vez toda a sua capacidade de dissimular afirma que sabe disso e que s se casar se realmente nutrir afeio pela prima. Mas o narrador machadiano deixa claro que [...] a resoluo do casamento estava assentada no esprito de Soares. Em vez de esperar a morte do tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na posse de um excelente peclio, o que se lhe afigurava tanto mais fcil, quanto era a voz do tmulo que o impunha. (idem, ibidem, p.56) Neste momento, mais uma vez, o narrador nos mostra o verdadeiro carter de Soares, que era oportunista e interessado somente em alar vantagens econmicas de maneira que lhe convinha.

A partir da, acreditando que seria fcil obter o dinheiro da prima, Soares comeou a se ver dono da fortuna de Adelaide e a se imaginar em diversas situaes que viveria quando se casasse com ela, o narrador revela novamente nessa parte do conto a faceta do bom vivant que Soares era, mencionando a todo o tempo os planos que ele imaginava colocar em prtica quando fosse dono da herana da prima.

Mas Adelaide no lhe dava nenhuma esperana de que ela ainda o amava, tratando-o com total indiferena.

[...] o rapaz procurava os olhos da prima, j os encontrava, j lhes pedia aquilo que recusara at ento, o amor da moa. Quando mesa, as suas mos se encontravam, Soares tinha o cuidado de demorar o contacto, e se a moa retirava a mo, o rapaz nem por isso desanimava. Quando se encontrava a ss com ela, no fugia como outrora, antes lhe dirigia alguma palavra, a que Adelaide respondia com fria polidez.

Quer vender o peixe caro, pensava Soares.

Uma vez atreveu-se a mais. Adelaide tocava piano quando ele entrou sem que ela o visse. Quando a moa acabou, Soares estava por trs dela.

-Que lindo! Disse o rapaz; deixe-me beijar-lhe essas mos inspiradas.

A moa olhou sria para ele, pegou no leno que pusera sobre o piano e saiu sem dizer palavra.

Esta cena mostrou a Soares toda a dificuldade da empresa; mas o rapaz confiava em si, no porque se reconhecesse capaz de grandes energias, mas por espcie de esperana na sua boa estrela.

- difcil subir a corrente, disse ele, mas sobe-se. No se fazem Alexandres na conquista de praas desarmadas. (idem, ibidem, p.57)

Com a contextualizao do momento no qual aparece o ltimo mitema da obra, podemos considerar que comea a ocorrer uma inverso de papis no conto, pois a partir deste momento Adelaide passa a ser o alvo de Soares, que lutar, sua forma, para reconquistar o amor prima, claro que almejando somente usufruir da vida cercada de riquezas que agora ela poderia lhe oferecer.

A vontade de conquist-la to latente em Lus Soares que utilizado por ele mesmo o nome de Alexandre, que, segundo Harvey , era

um homem genial, que realizou frente de uma monarquia militar, o que nenhuma cidade-estado grega foi capaz de realizar: a propagao da civilizao grega ao Oriente. Em decorrncia de suas conquistas o carter dessa civilizao mudou. A Grcia baixou para uma posio secundria; suas cidades-estados perderam a independncia, e com esta a atmosfera peculiar em que suas obras haviam sido produzidas. A civilizao helnica, proporo que se estendia a novas regies, passou a expor-se a novas influncias, e assim nasceu a poca helenstica. (HARVEY, 1987, p. 30)

Nesse quinto mitema, temos a presena de um discurso direto, no qual quem est falando o prprio personagem, portanto quem se compara com Alexandre o prprio Lus Soares, que se considerava capaz de realizar o que quisesse, desde que, importante salientar, no fosse exigido nenhum tipo de esforo.

Mas um pouco anterior ao mitema, o narrador nos d a ideia que Soares era um fraco, pois no era capaz de ser tomado por grandes energias, ou seja, no era capaz de grandes feitos para conquistar alguma coisa na vida, acreditando somente na sorte, como sempre fez.

Alexandre lembrado atravs de milnios pelas suas realizaes e conquistas grandiosas, portanto ao inseri-lo no conto, Machado utilizou novamente a pardia que, Kristeva (1974) considera ser uma significao oposta palavra de outrem, contrastando de forma clara, assim, o temperamento acomodado e oportunista de Soares com a bravura e determinao incontestveis de Alexandre. Tambm utilizada novamente a intertextualidade, pois ocorre a partir da meno ao nome de Alexandre, uma referncia sua biografia, e necessrio que exista a compreenso de quem foi este general para a obteno uma interpretao mais eficiente da narrativa machadiana, Kristeva (1974).

Ao utilizar o clssico neste momento, Machado pretende acentuar a forma deturpada com que o prprio Soares se enxergava, visto que o leitor possui a perspectiva do narrador e a do prprio personagem quando se refere a si mesmo. Sendo assim, sabemos que este era um aristocrata burgus, pertencente a classe da burguesia incipiente do sculo XIX, que vivia uma rotina pautada na vida noturna e no comodismo, e que, no entanto, presume que pode conseguir o amor da prima e qualquer coisa que desejasse, como um grande conquistador o faria, no caso Alexandre.

O conto nos d a oportunidade de afirmar que Soares era, um covarde, que no tinha disposio para realizar nada, nem mesmo as tarefas dirias mais banais. O narrador ao longo do texto j pretendeu mostrar que tratava-se de uma pessoa totalmente aptica, que se movia somente por seus interesses nada honestos. Para concluir o conto, o final de Soares no surpreende, pois estando abandonado, pobre, tendo por nica perspectiva o trabalho dirio, sem esperanas no futuro, e alm do mais, humilhado e ferido em seu amor-prprio, Soares tomou a triste resoluo dos cobardes (idem, ibidem,59), e assim, se suicidou.

Esse desfecho nos mostra que Soares nunca seria Alexandre, e que Machado ao citar esse mitema no conto, pretende estabelecer uma relao de pardia muito clara para o leitor. Pois Alexandre quando citado no conto, pela voz textual do prprio personagem acentua ainda mais o carter de Soares, e o leitor precisa valer-se de sua memria para compreender isto, como destaca Fiorin (2008, p. 42). Portanto, essa associao dialgica com o clssico pode ser percebida claramente pelo leitor, que pode relacionar a utilizao do mitema em questo, com alguns traos psicolgicos do personagem central do conto.

3- CONSIDERAES FINAIS

Nos momentos iniciais da construo deste artigo, decidimos trabalhar com algum conto presente na coletnea Contos Fluminenses, de Machado de Assis, que, como pudemos perceber, possui grande interesse pela Antiguidade Clssica, visto que esta cultura se faz presente em grande parte de suas obras. As produes machadianas so, em sua maioria, dialgicas, pois possuem em sua natureza, a presena, ora de forma clara, ora de forma velada, de outros discursos e outras culturas.

O motivo principal da escolha desse autor se deu pelo fato de que, se tratando de um escritor de inteligncia e capacidade de escrita mpares, este utiliza de muitas influncias em suas obras, especialmente no que se refere, como j citado, Grcia e Roma Antigas. J a razo para termos escolhido Lus Soares, se deu pelo fato de ser um conto que ainda no havia sido analisado antes, e tambm por este possuir uma quantidade satisfatria de releituras do que vem a ser clssico.

Com a constatao da presena de mitemas no conto, podemos considerar que Machado pensou suas obras para o leitor do futuro, ou seja, o leitor mais crtico e sagaz, capaz de perceber e compreender seus jogos de sentidos e sua ironia fina. Machado no pretendia causar grande impacto e reflexes na sociedade do sculo XIX, na qual os livros, na maioria das vezes, eram usados somente com o intuito de ostentao para os mais abastados.

A realizao deste trabalho acadmico nos possibilitou ainda concluir que Machado estudava de forma intensa para produzir suas obras, fato este que as torna ainda mais ricas culturalmente, possibilitando ao leitor atento a aquisio de muitas informaes e conhecimento, alm, claro, de fazer com que esse obtenha um vasto conhecimento de mundo.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

A HISTRIA ILUSTRADA DA GRCIA ANTIGA. So Paulo: Escala, [2007]

ASSIS, Machado de. Obra completa. v. 1. Romances. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006a.

BURKERT, Walter. Mito e mitologia. Lisboa: Edies 70, 1991.

CALVINO, talo. Por que ler os clssicos? So Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CANDIDO, A. Esquema de Machado de Assis. In: __. Vrios escritos. 3. ed. rev. e ampl. So Paulo: Duas cidades, 1995, pp. 17-39.

COUTINHO, Afrnio. Estudo crtico: Machado de Assis na literatura brasileira. In: __. ASSIS, Machado de. Obra completa. v. 1. Romances. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, pp. 23-65.

DICIONRIO. Michaelis. Disponvel em: . Acesso em: 17/06/2015.

FIORIN, Jos Luiz. O dialogismo. In:__. Introduo ao pensamento de Bakhtin. So Paulo: tica, 2008, pp. 18-59.

GRIMAL, Pierre. Dicionrio da mitologia grega e romana. 5 ed. Rio de Janeiro, 2005.

GUTMAN, Guilherme. Amor Celeste e Amor Terrestre: o encontro de Alcibades e Scrates em O Banquete, de Plato. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, v. 12, n. 3, p. 539-552, setembro 2009.

HARVEY, Paul. Dicionrio Oxford de Literatura Clssica. Rio de Janeiro, 1987.

MOSS, Claude. Dicionrio da civilizao grega. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, ed. 2004.

MONTESINI, Cludia de Ftima. Do clssico ao comezinho: intertextualidade e ironia em Papis avulsos, de Machado de Assis. Dissertao de Mestrado. So Jos do Rio Preto, SP: Universidade Estadual Paulista, 2010.

Portal Grcia Antiga. Disponvel em . Acesso em: 17 de junho de 2015, 21:05.

Disponvel em: HYPERLINK "http://www.machadodeassis.org.br/"http://www.machadodeassis.org.br/.

Segundo Montesini (2010, p.11) Machado escreveu 218 contos em sua carreira de escritor, dos quais 76 foram recolhidos e publucados em livros, e somente oito foram escritos diretamente para livros. Dos 210 contos publicads em folhetins, 53 constaram na Gazeta de Notcias e 43 em A Estao.

Para Antonio Candido (1968), a obra de Machado oferece para o leitor atento muitas surpresas, podemos pensar que essa uma delas.

O termo fortuna aparece dezenove vezes ao longo do conto. Mas esse est de acordo com o objetivo do artigo por se tratar de reminiscncia da cultura clssica na obra.

[...] era uma serpente gigantesca e de muitas cabeas, que aterrorizava a regio de Lerna, na Arglida. Filha de Equidna e Tfon, tinha por irmos Cbero, o co do Hades; Ortro, o co monstruoso de Grion e a Quimera. A picada da Hidra, era extremamente venenosa e contra o veneno no existia antdoto. Quando uma cabea era cortada, outra nascia em seu lugar, e alm disso uma era imortal. Disponvel em: HYPERLINK "http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0030"http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0030. Acesso em: 14/06/2015.

[...] a quem os latinos chamavam de Hrcules, o heri mais popular e o mais clebre de toda a mitologia clssica. (GRIMAL, 2006, p. 205).

Hera provocou um acesso de loucura em Hracles, de tal forma que ele matou Mgara e seus filhos, imaginando que fossem inimigos. Aps essa calamidade o heri partiu para o exlio e foi consultar o orculo de Delfos para saber a melhor maneira de purificar-se. O orculo mandou-o ir a Trins e servir Euristeu, rei daquela cidade, durante doze anos, ascenando-lhe com a imortalidade se executasse os Trabalhos impostos por Euristeus: o leo de nemea, a hidra, o javali erimntio, a cora de gerneia, as aves estinflias, o estbulo de augeias, o touro de creta, os corcis de diomedes, o cinto da amazona, os bois de geron, as mas de hesperides e crberos (HARVEY, 1987, p.265-267).

Termo com que eram designadas as cortess, as companheiras, diferentes das prostitutas comuns por serem geralmente livres e extrarem da riqueza de seus amantes uma relativa independncia.[...] Sua beleza, e frequentemente os conselhos de uma intermediria, proporcionava-lhes uma reputao que as fazia procuradas pelos homens ricos e famosos (MOSS, 1924, p.165)

Alcibades tambm mencionado na obra O banquete de Plato, (427-347 a.C) , obra que retomada por Gutman (2009, p. 10), que menciona Alcibades como sendo uma figura mpar [...] dotado de beleza extraordinria, impetuosidade, violncia, gosto pelas coisas boas e belas e pelos grandes feitos, tambm era uma pessoa a popular e de carter duvidoso.

Revista A Histria Ilustrada da Grcia Antiga , p.32.

Afrodite, segundo Harvey (1987, p. ) a deusa grega do amor.

[...] era capaz de seduzir a todos, Deuses ou mortais. Disponvel em HYPERLINK "http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0179"http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0179. Acesso em: 18/06/2015.

[...] o Grande, Alexandre III da Macednia (356-323 a. C), filho de Filipe II e Olimpis. Teve como preceptor Aristteles e aprendeu a cincia militar com os ensinamentos de seu pai, tendo presenciado aos dezoito anos de idade a batalha de Cairnea, onde comandou a cavalaria. (HARVEY, 1987, p. 27)

20